O Novo Status Da Obra de Arte Texto

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O NOVO STATUS DA OBRA DE ARTE

Na arte contemporânea, a transgressão mais importante dos critérios comuns usados para
definir a arte é que a obra de arte já não consiste exclusivamente no objeto proposto pelo artista,
mas em todo o conjunto de operações, ações, interpretações etc. provocadas por sua proposição.
isto é, de fato, uma questão sociológica, questão esta que precisa ser considerada por aquele que
se aventura no mundo da arte contemporânea. É a razão pela qual tantos permanecem do lado de
fora, pois, às vezes, nem compreendem o que precisa ser compreendido: eles não conhecem as
regras do jogo. Daí surge um conflito de paradigmas.

Retorno ao exemplo mais famoso: a Fonte de Marcel Duchamp (o próprio fato de essa obra
ter se tornado um emblema da arte contemporânea, apesar de datar da Primeira Guerra Mundial,
ou seja, de um período em que a arte moderna havia se tornado o novo paradigma, já comprova,
por si só, que a "arte contemporânea" não representa um período na história da arte, mas uma
categoria estética). Na Fonte, a obra de arte não reside na materialidade do objeto proposto (aqui,
um mictório), mas no ato de propô-lo para uma exposição no Salon des Indépendants; nas
muitas histórias que narram como chegou a não ser exposto e como, por fim, ressurgiu quatro
décadas mais tarde na forma de réplicas vendidas a algumas galerias e museus; nos muitos
protestos e até atos de vandalismo que provocou; nos comentários infindáveis que continuam a
construir seu mito etc. Ou seja, a obra de arte abandonou o objeto produzido pelo artista para
investir em contextos, palavras, ações, coisas, números... Daí a importância do contexto na arte
contemporânea: é impossível contar a história da Fonte sem mencionar e explicar o contexto
do Salon des Indépendants, a ausência de jurados, a presença de Duchamp entre os organizadores
etc. etc.

A fonte, 1917

Um exemplo mais recente é do artista francês Daniel Buren (imagem abaixo). Ele expõe
suas listras aplicadas sobre peças de metal, colunas, paredes etc., mas sua obra de arte não reside
naquele material listrado, como a maioria das pessoas suporia num primeiro momento por perceber
a proposta conforme os paradigmas clássico e moderno. A obra de arte consiste na forma como
todo o ambiente é reconstruído e reorganizado por meio daquilo que Buren chama de "outil visual"
("ferramentas visuais"). A arte é encontrada, portanto, no contexto em que o objeto proposto (as
listras) é inserido, e não no objeto em si. Enquanto o espectador não entender essa nova regra do
jogo, não poderá apreciar ou até mesmo ver o que está em jogo. As experiências da psicologia
da Gestalt com a percepção visual tratam exatamente disto: ou se vê um coelho, ou se vê um pato;
ou se veem as listras, ou se vê o ambiente. Passar de um para o outro depende apenas do tipo de
paradigma que você aplica a tudo o que lhe é apresentado como obra de arte.
Isso explica alguns dos protestos violentos contra esse tipo de proposta, ainda mais quando
é financiado pelo poder público, comissionado e avaliado em nome do bem comum (Heinich,
1998b). Aqueles que contemplam esse tipo de obras de arte conforme o paradigma/modelo
clássico ou, como acontece mais frequentemente, moderno, não conseguem entender como essas
obras podem receber alguma forma de reconhecimento; inversamente, aqueles que as percebem
conforme o paradigma sob o qual foram criadas não conseguem entender como algumas pessoas
podem não perceber e aceitar tais razões.

A DIVERSIFICAÇÃO DOS MATERIAIS

A transgressão dos limites da arte significa também o emprego de novos tipos de materiais
ou modos de apresentação. instalações, performances, land art, arte corporal, vídeo, fotografias
em cores em grande escala, multimídia e arte cibernética fazem parte do vocabulário básico do
artista contemporâneo. Esta é outra grande diferença em relação à arte clássica e moderna, pois
durante séculos, até o início da década de 1960, as artes visuais eram produzidas com um pequeno
número de materiais bem definidos: óleo, pastel, aquarela, lápis, carvão, água-forte; papel, tela,
gesso, madeira ou pedra, argila, madeira, bronze... Agora, tudo mudou. Mesmo sem ver a obra,
você consegue adivinhar que se trata de arte contemporânea apenas lendo sua descrição, como:
"latão", "feltro e graxa", "telas de TV", "corais e pão", "módulos acústicos", ou, em termos mais
amplos, "materiais variados" ou "dimensões variáveis". Consequentemente, a arte do restaurador
também sofreu mudanças drásticas: a arte contemporânea suscita questões de restauração
completamente novas, como atestam associações profissionais específicas e revistas
especializadas.

Evidentemente, existem também pinturas e esculturas na arte contemporânea. Mas são


relativamente raras e normalmente são expostas sem moldura, no caso das pinturas, e sem
pedestal, no caso das esculturas. Uma escultura da arte contemporânea se parece mais com uma
instalação, que apresenta uma relação específica com o espaço; e uma pintura da arte
contemporânea apresenta dimensões enormes, de forma que dificilmente pode ser emoldurada (o
que, por sua vez, representa uma transgressão da exigência moderna conforme a qual a obra deve
expressar a interioridade do artista), ou é feita de modo a se encaixar no espaço em que é exibida,
exigindo assim uma continuidade entre tela e ambiente (o que, por sua vez, representa uma
transgressão da definição clássica e moderna de uma obra de arte como objeto produzido por um
artista).

Instalação feita em Berlim pelo artista e ativista chinês Ai Weiwei utilizando 14 mil coletes salva-vidas. A obra procura
chamar atenção para a crise dos refugiados.

O DISCURSO SOBRE A OBRA É PARTE DA OBRA

A extensão da obra de arte para além da materialidade do objeto produzido ou apresentado


pelo artista inclui também o discurso sobre a obra. Uma obra de arte contemporânea quase nunca
existe sem um texto, assinado ou não, escrito pelo próprio artista ou, melhor ainda, por um
especialista - por um crítico ou curador.

Exatamente da mesma forma como o contexto se tornou parte da obra, o discurso sobre a
obra se tornou parte da proposta artística. É por isto que hoje as escolas de arte - pelo menos na
França - incluem em sua agenda pedagógica também a mestria do discurso, como, por exemplo,
"Ser capaz de falar sobre sua obra e de construir um texto em torno dela".

Consequentemente, a descrição e, mais ainda, a interpretação, são atividades básicas na


arte contemporânea. Ao contrário do que afirmam alguns críticos do senso comum sobre a suposta
"vacuidade" da arte contemporânea, sentido ou significação de forma alguma estão ausentes: são
exigências fundamentais neste mundo. Mas muitas vezes não dizem respeito à obra em si, nem
mesmo à arte em geral, mas a toda a sociedade para a qual a arte contemporânea supostamente
deve ser um espelho - melhor ainda se for um espelho crítico.

Uma das características específicas da arte contemporânea é a implementação de ideias e


sensações ou emoções na mente e no corpo do espectador. Essas sensações, porém, e ao
contrário da arte moderna, não são apenas visuais e precisam permitir a possibilidade de uma
interpretação. Na arte contemporânea, a "arte visual" tem se tornado mais hermenêutica do que
visual. E mesmo quando tende a se tornar cada vez mais "sensacional", como nas tendências mais
recentes e populares, as obras não são introduzidas no mundo da arte contemporânea sem um
discurso que as acompanhe - algo como um passaporte que permita à obra ultrapassar a fronteira
entre o mundo ordinário e o mundo especial da arte contemporânea.

Fonte: HEINICH, Nathalie. PRÁTICAS DA ARTE CONTEMPORÂNEA: UMA ABORDAGEM


PRAGMÁTICA A UM NOVO PARADIGMA ARTÍSTICO. 2014. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/sant/a/mR8Qvdt4MMns5PTN6pkQvqC/?lang=pt#

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