Forças, Fluxos E A Astúcia Dos Líquidos: Geórgia Evangelos de Almeida Kyriakakis

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FORÇAS, FLUXOS

E A ASTÚCIA DOS LÍQUIDOS

Geórgia Evangelos de Almeida Kyriakakis

Tese apresentada ao Departamento de Artes Plásticas da Escola


de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como
exigência parcial para a obtenção do título de doutor.

Orientadora:
Profa. Dra. Maria do Carmo Costa Gross

São Paulo
2006
Para meu pai
e para minha sempre amiga
Heloisa Parfait
AGRADECIMENTOS

Aos meus colegas, artistas e professores, que direta ou indiretamente,


contribuíram para a realização desse trabalho e à minha orientadora, Carmela
Gross pela orientação sempre precisa.

Pelo apoio e pela ajuda na realização de FORÇAS E FLUXOS agradeço à


Fundação Armando Álvares Penteado, Marcio Pereira, Frederico Augusto, Rildo
Gontijo, Maria Isabel Ribeiro e Roberto Kyriakakis.

Pelo auxílio prestado na elaboração do texto e na execução do projeto gráfico


meu agradecimento à Branca de Oliveira, Claudio Mubarac, Mila Chiovatto,
Agnaldo Farias, Suzanna Coroneos, Mônica Shoennacker e Ana Panisset.

Um agradecimento mais que especial aos meus amigos Abel Coelho e Angela di
Sessa, que colaboraram em várias etapas do trabalho, e ao meu filho Matheus
que, apesar da pouca idade, compreendeu a importância desse trabalho e com
paciência abriu mão de muitas horas de convivência com a mãe.

À minha família que sempre me apoiou em tudo.


ÍNDICE

Resumo, 1
Abstract, 2
Apresentação, 3

Parte I: OBRAS
Continentes, 5
Graphos, 14
Oblíquas, 23
Helenas, 26
Estáveis, 41
Instáveis, 50
Mesmas e Outras, 55
Forças e Fluxos, 73

Parte II: ANOTAÇÕES, FONTES E REFERÊNCIAS


Concepções iniciais, 96
Continentes, 99
Graphos, 101
Um jogo de forças, 104
Oblíquas, 106
Helenas , 108
Estáveis, 113
Instáveis, 116
As obras e o espaço, 118
Mesmas e Outras, 121
Forças e Fluxos, 124

Referências Bibliográficas, 128


1

RESUMO

O núcleo principal dessa tese de doutorado é um conjunto de obras, realizadas


entre 2002 e 2006. Trata-se de minha produção artística mais recente, na qual
se desdobram algumas concepções presentes em meu trabalho de mestrado.

CONTINENTES e GRAPHOS são trabalhos que têm sua matriz no desenho;


OBLÍQUAS, HELENAS, ESTÁVEIS e INSTÁVEIS são peças tridimensionais;
MESMAS E OUTRAS é uma espécie de gravura-instalação e FORÇAS E FLUXOS
é uma vídeo-instalação.

Apesar de serem formadas por meios diferentes, são obras nas quais a linha
e a superfície são concebidas como interfaces que se manifestam através da
fisicidade dos materiais, do nivelamento de substâncias lábeis e dos limites
entre o equilíbrio e a instabilidade.

As obras são acompanhadas por esse texto memorial, no qual procuro indicar
as constelações de pensamentos e interesses que conduzem à realização dos
trabalhos, bem como as concepções, as operações poéticas e as referências
presentes no processo de criação.
2

ABSTRACT

The main core of this thesis is a group of works made between 2002 and
2006. They are related to my recent artistic production in which are unfolded
some conceptions presented in my mastership work.

CONTINENTES and GRAPHOS are works which have been based in drawing;
OBLÍQUAS, HELENAS, ESTÁVEIS and INSTÁVEIS are tri-dimensional pieces;
MESMAS E OUTRAS is a kind of etching-installation and FORÇAS E FLUXOS is
a video-installation.

Despite of being made from different media, they are works where the line
and the surface are conceived as interfaces that reveal themselves through
the materials’ physicality, the slipping substances’ level and the limits between
the balance and instability.

A memorial text is attached to the works and I have tried to indicate the con-
stellation of thoughts and concerns that led to their accomplishment, as well
as, the conceptions, the poetic operations and some references present in the
creation’s process.
FORÇAS, FLUXOS
E A ASTÚCIA DOS LÍQUIDOS

Parte I

OBRAS
3

APRESENTAÇÃO

FORÇAS, FLUXOS E A ASTÚCIA DOS LÍQUIDOS apresenta uma parte de minha


produção artística, entre os anos de 2002 e 2006. O conjunto das obras é composto
por sete séries de trabalhos e uma vídeo-instalação. GRAPHOS e CONTINENTES são
obras que mantêm uma relação íntima com o desenho; OBLÍQUAS, HELENAS,
ESTÁVEIS e INSTÁVEIS são peças tridimensionais; MESMAS E OUTRAS é um
conjunto de gravuras e FORÇAS E FLUXOS é o título da vídeo-instalação.

Apesar de serem formadas por meios diferentes, são obras que nascem de um
mesmo núcleo de problemas, provenientes do interesse pela materialidade das
coisas, pelos processos de transformação e pelos limites entre o equilíbrio e a
instabilidade, a permanência e a transitoriedade.

A apresentação das obras obedece à seqüência na qual foram produzidas e, desse


modo, informa sobre o fluxo da ação criadora e a maneira como ela se realiza por
meios e procedimentos diversos.

As obras, o processo de realização de cada uma delas e as exposições nas quais


foram apresentadas, estão documentados aqui por meio de reproduções
fotográficas. Essas imagens são acompanhadas por um texto memorial, no qual
procuro indicar as concepções, as operações poéticas e algumas referências,
presentes no percurso de criação.

O texto trata também da relação das obras com o espaço, porque, nas exposições,
as obras são transformadas em aparelhos, com os quais procuro criar uma
justaposição de elementos concretos e imaginários que ativam e alteram a
percepção do espaço.
5

CONTINENTES

Matrizes fotográficas dos CONTINENTES, 18x24 cm.


6
7
8

CONTINENTES I, 2002, grafite sobre papel, 35x45 cm


9

CONTINENTES II, 2002, grafite sobre papel, 35x45 cm


10

CONTINENTES III, 2002, grafite sobre papel, 35x45 cm


11

CONTINENTES IV, 2002, grafite sobre papel, 35x45 cm


12

CONTINENTES V, 2002, grafite sobre papel, 35x45 cm


13

Montagem da Série CONTINENTES, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003


14

GRAPHOS

Etapas de realização dos GRAPHOS


15
16

GRAPHOS I, 2002, gesso e mármore, 80 x 60 cm


17

GRAPHOS II, 2002, gesso e mármore, 80 x 60 cm


18

GRAPHOS III, 2002, gesso e mármore, 80 x 60 cm


19

GRAPHOS IV, 2002, gesso e mármore, 80 x 60 cm


20

GRAPHOS V, 2002, gesso e mármore, 80 x 60 cm


21

GRAPHOS VI, 2002, gesso e mármore, 80 x 60 cm


22

Montagem dos GRAPHOS ao lado da Série BURACOS, PLANOS E CONTINENTES, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003
24

Montagem das OBLÍQÜAS com as elevações ao fundo, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003
25
26

HELENAS

Recortes iniciais em papel dobrado


30

Processo de torneamento das peças de vidro


31
32

HELENAS DE ÓLEO, 2002, vidro, óleo, roldana e cabo-de-aço, 90 x 15 ø peça maior, 40 x 15 ø peça menor
33

Detalhe HELENAS DE ÓLEO, 2002


34
35

HELENAS DE PÓ, 2002, vidro, pó de metal, roldana e cabo-de-aço, 90 x 15 ø peça maior, 40 x 13 ø peça menor
36
37
38

Montagem das HELENAS DE PÓ com as elevações ao fundo, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003
39

Exposição no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003


40
41

ESTÁVEIS

ESTÁVEIS III, 2002, vidro, cimento e óleo queimado, 35 x 90 x 25 cm


42
43

Detalhe ESTÁVEIS III


44

ESTÁVEIS II, 2002, vidro, cimento e silicone, 30 x 60 X 35 cm


45
46

ESTÁVEIS I, 2002, vidro, cimento e óleo, 20 x 40 x 30 cm


47
48
49

Montagem das ESTÁVEIS, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003


50

INSTÁVEIS

Processo de execução dos CONTEÚDOS


51

CONTEÚDOS I, 2003, gesso, 48 x 28 x 20 cm


52
53

CONTEÚDOS II, 2003, gesso, 45 x 30 x 28 cm


54

CONTEÚDOS III, 2003, gesso, 46 x 25 x 23 cm


23

OBLÍQÜAS

OBLÍQUAS, 2002, vidro, gesso e cabo-de-aço, 150 x 7cm; 120 x 5cm e 60 x 7cm
27

Estudos para as HELENAS


28
29
56

Estudos para construção das figuras e localização da áreas negras


57
58
59
60
77

Estudos iniciais para disposição dos recipientes


55

MESMAS E OUTRAS

Recortes iniciais em papel


61

MESMAS E OUTRAS I, 2004, gravura em metal, 145 x 210 cm


62

MESMAS E OUTRAS II, 2004, gravura em metal, 145 x 210 cm


63

MESMAS E OUTRAS III, 2004, gravura em metal, 145 x 210 cm


64

MESMAS E OUTRAS IV, 2004, gravura em metal, 210 x 145 cm


65

MESMAS E OUTRAS V, 2004, gravura em metal, 210 x 145 cm


66

MESMAS E OUTRAS VI, 2004, gravura em metal, 210 x 145 cm


67

MESMAS E OUTRAS VII, 2004, gravura em metal, 210 x 145 cm


68

MESMAS E OUTRAS VIII, 2004. gravura em metal. 210 x 145 cm


69

Vista parcial da exposição MESMAS E OUTRAS no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em 2004
70

Vista parcial da exposição MESMAS E OUTRAS no Gabinete de Arte Raquel Arnaud em 2004
71
72
73

FORÇAS E FLUXOS
74

Croquis da experimentação I, 2005


75

Registros fotográficos da experimentação II, 2005


76

Registros fotográficos da experimentação III, 2005


78

Estudos Iniciais para disposição dos monitores


79

Imagens iniciais dos vídeos - vídeo 4


80

vídeo 3
81

vídeo 1
82

vídeo 5
83

vídeo 2
84

Processo de preenchimento
85
86
87
88
89

Montagem da instalação FORÇAS E FLUXOS, Centro Universitário Maria Antonia, 2006


90
91
92
93
94
FORÇAS, FLUXOS
E A ASTÚCIA DOS LÍQUIDOS

Parte II

ANOTAÇÕES, FONTES
E REFERÊNCIAS
96

CONCEPÇõES INICIAIS

Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

João Guimarães Rosa

As coisas nos olham. O mundo visível é um excitante perpétuo:


tudo desperta ou alimenta o instinto de se apropriar da figura ou
do modelado da coisa que o olhar constrói.
Paul Valéry

As concepções que orientam a realização das obras reunidas nessa tese, já


existiam em minha trajetória anterior, apresentada em meu trabalho de
mestrado.1 Trata-se da percepção da linha e da superfície como uma interface
entre duas substâncias postas em contato.

Tais concepções têm origem na dinâmica entre o visível e o inteligível e surgem


inicialmente da observação de paisagens formadas por montanhas e horizontes
- cuja linha pertence simultaneamente ao céu e à terra - e do contato com
plantas topográficas, nas quais a superfície e o nível do mar são concebidos
como um plano extenso e contínuo que atravessa a geografia.2

A maneira como o nível do mar é traduzido pela topografia produz em mim

1 BURACOS PLANOS, DUPLOS, ELEVAÇÕES é o título homônimo das obras e da dissertação, realizada
sob a orientação da Profa. Dra. Maria do Carmo Costa Gross e apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em 2001. A exposição das obras foi realizada
no Centro Universitário Maria Antonia no mesmo ano.
2 A topografia é um código de representação gráfica que dimensiona o volume e os acidentes
geográficos a partir das curvas de nível – linhas de contorno, projetadas a partir de cortes
imaginários e paralelos à superfície do mar que se estendem indefinidamente e secionam, em alturas
regulares, o volume/superfície terrestre. Na topografia, o nível do mar é considerado como a cota
zero das altitudes.
97

certas indagações, que se conjugam numa imagem mental. O que constitui o


nível do mar? Poderia a superfície da água ser concebida como uma espécie
de membrana impalpável e, portanto, desprovida de espessura material que
separa a água do ar? Esse limite tênue não é determinado pelo peso físico das
duas matérias? É possível visualizar tal superfície sem que o olhar penetre
também na matéria? Quando a superfície da água reflete o mundo, ela não se
torna simultaneamente perceptível e invisível?

Para mim, ao observar as paisagens evidenciam-se também os acidentes


geográficos, porque eles revelam as transformações, naturais e artificiais, que
constantemente alteram a superfície terrestre e a geografia.3

Observar uma paisagem, tendo como referência essas ocorrências, me faz


perceber a transitoriedade e a mobilidade naquilo que se manifesta como
imagem de quietude e estabilidade. A percepção de que a geografia nunca se
fixa, altera minha ótica sobre as paisagens. Elas passam a ser sempre outras,
embora eu veja repetidamente a mesma imagem.

Minha atenção se detém nas grandes concavidades do solo nas quais a água é
represada naturalmente. Os lagos são concebidos como a intersecção de
elementos visíveis e invisíveis. A forma e o contorno da superfície da água é a
parte visível do lago, sob a qual se esconde a depressão submersa. Trata-se de
uma relação de duplicidade, na qual a força da gravidade se manifesta
intensamente. A horizontalidade precisa e contínua da superfície da água
provoca em mim uma sensação de equilíbrio, que se contrapõe à irregularidade
e à organicidade dos acidentes geográficos.

3 Refiro-me aqui aos eventos decorrentes da movimentação constante do solo e das placas
tectônicas - como os terremotos que, em tempos imemoriais, criaram, por exemplo, os vales, as
planícies ou as montanhas – assim como os processos de erosão e sedimentação, naturais ou
resultantes de intervenções humanas.
98

O interesse pelo equilíbrio físico, pelo nivelamento e pela força da gravidade


conduz minha atenção também para as operações materiais inerentes às
construções arquitetônicas, nas quais esses fatores são primordiais, embora
possam produzir sensações de instabilidade. Assim como, para os processos de
transformação, a partir dos quais materiais como cimento, barro, aço, vidro,
entre outros, adquirem resistência e solidez.

Com essa constelação de pensamentos e referências, surge um interesse


crescente pela transparência, pelos movimentos quase imperceptíveis, pelo
contato físico entre os materiais, pela força da gravidade como um dos
elementos responsáveis pela ordem material no mundo e pela capacidade dos
líquidos em regular a horizontalidade e o equilíbrio.

Na criação e na realização das obras, procedo por apropriações e aproximações


poético/visuais e procuro trabalhar a partir das dificuldades de se dimensionar e
explorar materialmente uma concepção de linha e superfície que existe como
uma abstração ou como agente da imaginação.

O processo de trabalho se desenvolve num campo onde os elementos concretos,


imaginários e conceituais se entrecruzam constantemente. Não me refiro a um
campo criado a priori, a partir do qual a obra é feita. Ao contrário, é o fazer que
coloca em evidência o livre trânsito desses elementos. Eles se movem dentro da
produção, ora se mesclando, ora se diferenciando a partir dos limites e das
possibilidades impostas pelos materiais e pelas operações realizadas.
99

CONTINENTES

Não conheço arte que possa envolver mais inteligência do que


o desenho. Quer se trate de extrair do complexo da visão a
descoberta do traço, de resumir uma estrutura, de não ceder à
mão, de ler e pronunciar dentro de si uma forma antes de
escreve-la; ou então de a invenção dominar o momento, de a
idéia se fazer obedecer, se tornar precisa e se enriquecer com o
que ela se torna no papel, sob o olhar.

Paul Valéry

A intensidade da imagem é proporcional à sua descontinuidade


e à sua abstração máxima, ou seja, a da decisão de
degeneração do real. Criar uma imagem consiste em ir retirando
do objeto todas as suas dimensões, uma a uma: o peso, o
relevo, o perfume, a profundidade, o tempo, a continuidade e,
é claro, o sentido. ... Cada objeto fotografado não é senão o
vestígio deixado pela desaparição de todo o resto.

Jean Baudrillard

Fotografias de paisagens em preto e branco são as matrizes de desenhos


produzidos com grafite sobre papel.4 Cada um deles é formado exclusivamente
por uma ou duas formas orgânicas, uniformemente negras e bem definidas, e
aparentemente abstratas. Trata-se do contorno de lagoas, cujo perímetro é
decalcado da foto, transferido para outra folha de papel e, em seguida,
preenchido totalmente com grafite.

Os desenhos são feitos com uma série de operações, através das quais a
paisagem é reduzida sucessiva e dramaticamente. Reduções que se iniciam na
fotografia – que já subtrai da paisagem a cor, a mobilidade, a amplitude, entre
outros elementos – e continua no descarte dos elementos figurativos da imagem
fotográfica quando se processa o decalque. O que sobra ou permanece visível é
somente uma linha - a forma/contorno da superfície da água que, descolada de

4 As imagens fotográficas foram realizadas no Horto Florestal de Faxinal do Céu, em 2002, durante
o projeto de residência artística Faxinal das Artes.
100

sua matriz, também desaparece e posteriormente ressurge como uma membrana


imaginária.

A fotografia provoca em mim uma sensação de distanciamento da concretude do


mundo, que se intensifica no delineamento e na transferência. Nessas operações, a
imaginação é ativada e produz a sensação de estar contornando o vazio material e
descolando a superfície da água de sua própria materialidade: como se manuseasse
o impalpável, vou transportando películas, aderidas a uma folha de seda, que se
fixam no contato com a materialidade de um papel mais encorpado.

O contorno linear, copiado na superfície desse papel, refaz o vínculo com a


concretude das coisas, mas agora sem a reminiscência forte das lagoas. A linha
adquire um contorno próprio o qual pertence às operações estritamente gráficas.

Na construção do desenho, a materialidade se manifesta através da pressão do


gesto que produz o acúmulo de grafite. Criado por um atrito intenso e repetitivo,
ele marca o papel e confere ao desenho uma propriedade física e visual.

Durante a realização do trabalho, o contato com a concretude do mundo nunca


se desfaz totalmente. Ele é mantido pela forma das lagoas, pelos meios e pelos
procedimentos materiais e manuais. É que ao processo interessa ativar um
espaço intermediário onde o fazer possa transitar pela materialidade e fisicidade
das coisas, sem nelas se fixar.
101

GRAPHOS

Toda superfície é uma interface entre dois meios onde ocorre uma
atividade constante sob forma de troca entre as duas substâncias
postas em contato. Esta nova definição científica de superfície
demonstra a contaminação em vias de se concretizar: a “superfície-
limite” torna-se uma membrana osmótica, um mata-borrão... mas
ainda que esta etimologia seja mais rigorosa do que as anteriores,
nem por isso é menos sintomática no que diz respeito a uma
mutação na noção de limitação. A limitação do espaço torna-se
comutação, a separação radical transforma-se em passagem
obrigatória, trânsito de uma atividade constante, atividade de trocas
incessantes, transferência entre dois meios, duas substâncias. O que
até então era a fronteira de uma matéria, o “terminal” de um
material, torna-se agora uma via de acesso dissimulada na entidade
mais perceptível. A partir de agora, a aparência das superfícies
esconde uma transparência secreta, uma espessura sem espessura,
um volume sem volume, uma quantidade imperceptível...

Paul Virilio

Em uma placa de mármore polida é cavada uma reentrância, que em seguida é


completamente preenchida com gesso em estado líquido. Depois de endurecido,
o gesso é desbastado, de modo a restaurar a superfície uniforme da placa.

Com esta intervenção, a placa é recomposta em seu volume e sua forma original,
mas a aparência visual e táctil que temos agora mostra um desenho frágil que
pulsa entre a linha do contorno e a qualidade da matéria.

Que desenho é esse? Trata-se do vestígio de operações de equilíbrio e de


intervenções materiais que se tornam quase imperceptíveis quando a superfície
da placa é restaurada. Inicialmente, derramo uma certa quantidade de parafina
líquida sobre a superfície de mármore precisamente nivelada. O nivelamento
evita o escorrimento brusco do material e agencia a criação de formas
102

arredondadas. Quando a parafina se esfria e se solidifica, decalco o seu contorno


na pedra. Esta linha será a matriz para o encadeamento das operações
seguintes, descritas anteriormente. Ao final do processo, o desenho se
potencializa nas diferentes intensidades dos materiais e nas relações entre a
unidade e o fragmento, a matéria, o vazio e o preenchimento.

No processo de realização dos GRAPHOS opero a partir do contato físico dos


materiais, da força da gravidade e do controle dos acontecimentos, até certo
ponto imprevisíveis. A polidez do mármore facilita a mobilidade da parafina
líquida; ao despejá-la sobre a placa, procuro o limite tênue entre o equilíbrio e
a instabilidade: o ponto no qual o acúmulo pode romper a contenção do
material. Quando isso ocorre, a parafina escorre rapidamente, a forma da
contenção se desfaz e o processo é reiniciado.

Desse modo, cada um dos trabalhos é fruto de uma série de experiências


distintas, nas quais, ora a parafina é despejada a partir de um mesmo ponto, ora
a partir de dois pontos adjacentes, formando simultaneamente duas porções
menores cujos contornos ficam prestes a se tocar.

Essa operação de equilíbrio/nivelamento da placa se repete para a inclusão do


gesso. Ela permite inserí-lo de uma única vez e, assim, é possível obter o branco
homogêneo e uniforme do material.

Durante a realização do trabalho a percepção da superfície como uma espécie


de marco zero do volume é uma referência constante.5 Adicionando e subtraindo
alternadamente os materiais, produzo concavidades e convexidades que são

5 Caracterizado pela presença ou ausência de matéria, o volume é concebido aqui como um corpo
positivo ou negativo; um espaço, côncavo ou convexo, vazio ou compactado pela matéria. Tal
concepção orienta parte de minha produção artística a partir de 1998 na qual estão incluídas as obras
que compõem meu trabalho de mestrado
103

apreendidas como estados tensivos e transitórios da superfície original da placa.6

Essas operações compõem um processo no qual apagamento e desvelamento se


conjugam. O desenho surge quando a percepção dos procedimentos materiais
se atenua - quando as reentrâncias ficam encobertas, a espessura do gesso
desaparece e a superfície passa a pertencer simultaneamente ao mármore e ao
gesso.

O uso do termo Graphos – raiz grega que dá origem ao termo grafia – procura indicar
um desvio na maneira de conceber e registrar uma idéia, um desenho. Posicionar a
obra apoiada no chão e encostada na parede é uma tentativa de mantê-la próxima do
território onde o processo se desenvolve, no qual a dialética entre a concretude das
coisas e a imaterialidade da imagem é problematizada.

6 O acumular e o subtrair - sejam eles produzidas por um gesto manual, pelo calor, pelo contato
físico entre os materiais ou por máquinas e ferramentas - são operações recorrentes em meu
trabalho e determinam a realização de várias obras, tais como: Cerâmicas e Hung Pieces, 1996,
ambas apresentadas na XXIII Bienal Internacional de São Paulo; Isopor, 1997, apresentada no Arte-
cidade IV; Membranas do Vazio, 1998, entre outras.
104

JOGOS DE FORÇAS: OBLÍQUAS


HELENAS
ESTÁVEIS
INSTÁVEIS

Apesar de possuírem gramáticas distintas, alguns vetores comuns a esses


trabalhos me permitem reuni-los como um núcleo específico dentro do conjunto
que compõe essa tese.

São obras formadas por peças torneadas de vidro ou de cerâmica, de tamanhos


e formas variadas, que são suspensas por cabos-de-aço ou posicionadas de
maneira inclinada, de modo a criar uma instabilidade física e visual. A seguir, elas
são preenchidas com substâncias lábeis, para que o nivelamento natural desses
materiais - usado como elemento de precisão, ordenação e equilíbrio - seja
confrontado com o posicionamento inclinado das peças.

Desse modo, evidencia-se a tensão física e o equilíbrio frágil, presentes em todo


processo de realização dos trabalhos. Eles são provocados quando os materiais
e as peças são submetidos à força da gravidade. Trata-se de operações, nas
quais procuro explorar a simetria, o prumo, o movimento e a equivalência de
peso e que me permitem pensar sobre os limites entre o equilíbrio e a
instabilidade.

A primeira manifestação desse jogo de forças se processa no torneamento das


peças.7 Nele, a plasticidade do barro, a simetria dos tubos e o movimento

7 A modelagem do vidro é feita em tornos horizontais, similares aos verticais usados para o
torneamento da argila. É uma técnica que possibilita uma precisão maior do que aquela obtida com
o sopro, porque usa tubos previamente produzidos pela indústria. Por isso, é regularmente usada na
preparação de recipientes para a indústria química. Todas as peças, de vidro e de cerâmica, foram
produzidas por técnicos, em oficinas especializadas, a partir de um desenho com indicação minuciosa
das medidas.
105

circular contínuo do torno proporcionam estabilidade e precisão à argila e ao


vidro - quando amolecido por maçaricos de alta potência - evitando assim o
desmoronamento ou escorrimento desses materiais.

O torneamento evidencia uma troca constante entre o interior e o exterior da


peça, potencializado pela superfície transparente do vidro. A maneira como o
interior, refletindo a pressão, se contrai e se dilata imediatamente, provoca em
mim a sensação de estar modelando o vazio ou percorrendo uma superfície
contínua, imensurável e infinita.

Essa dinâmica orienta todo o processo de construção desse núcleo de trabalhos,


na qual há também uma problemática entre o que sustenta e o que é
sustentado.

É nesse contexto que procuro explorar a transparência nas OBLÍQUAS, nas


HELENAS, nas ESTÁVEIS e nas INSTÁVEIS. Ela me permite expor as operações
que engendram a tensão entre o equilíbrio e a instabilidade. Com isso, pode-se
perceber o frágil na obra; compreender que ela é feita de uma rede de relações
precisas, mas que estão num limiar de se desfazer, ao menor indício de
perturbação.

As etapas subseqüentes do processo de construção dos trabalhos destinam-se a


subverter a precisão, a simetria, e o equilíbrio obtidos no processo de
torneamento dos recipientes para, posteriormente, criar um novo sistema de
relações em cada uma das obras.
106

OBLÍQUAS

Para o físico, equilíbrio é o estado no qual as forças, agindo sobre um


corpo, compensam-se mutuamente. Consegue-se o equilíbrio, na sua
maneira mais simples, por meio de duas forças de igual resistência
que puxam em direções opostas. A definição é aplicável para o
equilíbrio visual. Como um corpo físico, cada padrão visual finito tem
um fulcro ou centro de gravidade. E da mesma forma que o fulcro
físico mesmo do objeto plano mais irregularmente configurado pode
ser determinado, localizando-se o ponto no qual ele será equilibrado
na ponta de um dedo, também o centro de um padrão visual por ser
determinado por ensaio e erro. (...) Com exceção das configurações
mais regulares, nenhum método de cálculo racional conhecido pode
substituir o sentido intuitivo de equilíbrio do olho. De nossa suposição
anterior, segue-se que o sentido de visão experimenta equilíbrio
quando as forças fisiológicas correspondentes no sistema nervoso se
distribuem de tal modo que se compensam mutuamente. (...) não se
pode determinar o centro visual de uma peça escultórica pendurando-
a em um pedaço de corda. Aqui novamente a orientação vertical
importará. Faz também diferença o fato da escultura estar pendurada
no ar ou assentada numa base, em pé num espaço vazio ou em um
nicho.
Rudolf Arnheim

Três tubos longilíneos de vidro transparente são suspensos verticalmente através


de cabos-de-aço finíssimos, que pendem do teto, atravessam internamente as
peças, para serem fixados por dentro, no centro do fundo de cada uma.8

Por serem finos, alongados e simétricos, os tubos adquirem a verticalidade dos


cabos, aprumados pela força da gravidade.9 A forma de fixação dos cabos, a
abertura da extremidade superior dos tubos e as sutis diferenças de diâmetro e
comprimento provocam uma inclinação diferente em cada peça.

8 O cabo é preso a um anteparo, construído em aço-inox e formado por um pino soldado numa
chapa, que é inserido no tubo através de pequenos orifícios criados em sua base. O anteparo tem a
dupla função de vedar o orifício e suportar o peso do trabalho, reduzindo a pressão sobre o vidro.
9 O fio-de-prumo, esse instrumento ao mesmo tempo rudimentar e hodierno, parece ser uma espécie
de emblema da força da gravidade, do equilíbrio e da verticalidade mais precisa. Pela simplicidade e
inteligência considero como uma das invenções mais bonitas do homem e sempre é evocado quando
me assombro com edificações altíssimas ou simplesmente me transporto por um elevador.
107

Em seguida, os tubos são preenchidos parcialmente com gesso líquido, cada um


em uma altura distinta. Desse modo, parte das operações responsáveis pela
sustentação, inclinação e fixação das peças fica submersa e se torna quase
imperceptível. A ocultação interfere na percepção das tensões físicas e evidencia
as relações entre a linha e o volume, o vazio e a matéria, a transparência e a
opacidade das superfícies.

Por se tratar de um líquido, a superfície do gesso - independente da inclinação


de cada peça - assume a sua natural horizontalidade e, ao se solidificar, fixa
definitivamente a relação entre a inclinação do tubo, a horizontalidade do
conteúdo e a posição do cabo.

Esse procedimento permite que os tubos sejam instalados e reinstalados


indefinidamente, tendo sempre como referência o nivelamento das superfícies
de gesso, que passa a ser o único índice para a montagem de todas as peças.
O nivelamento torna-se um componente invariável e preciso, em contraposição
ao desarranjo visual produzido pelas diferentes inclinações, formatos e alturas
dos tubos.

A altura do nivelamento e a distância entre as peças são as variantes a partir das


quais o conjunto pode adquirir múltiplas ordenações no espaço. Elas
determinam a localização e a extensão de um plano horizontal subjacente,
virtual e imaginário, criado pelo nivelamento.

Nas OBLÍQUAS, o nivelamento e o prumo são elementos que restabelecem


uma sensação de equilíbrio frente ao desajuste entre as peças; as linhas que
evidenciam as diferenças são as mesmas que garantem o equilíbrio visual.
108

HELENAS

Fisicamente, obtém-se transparência quando uma superfície ao cobrir a


outra deixa passar luz suficientemente para manter o padrão de baixo
visível. Véus, filtros, vapores são fisicamente transparentes. Contudo, a
transparência física não é de maneira alguma garantia de transparência
perceptiva. Se pusermos óculos de lentes coloridas, que cubram o campo
visual inteiro, não veremos uma superfície transparente na frente de um
mundo normalmente colorido, mas um mundo cor-de-rosa ou verde.
Tampouco vemos uma camada transparente cobrindo uma pintura
quando uma cobertura de verniz foi aplicada uniformemente. (...)
Concluímos que, se a forma de uma superfície fisicamente transparente
coincidir com a forma do fundo, não se vê nenhuma transparência.
Tampouco a transparência é visível quando um pedaço de material
transparente é colocado sobre um fundo homogêneo. São necessários
três planos para que se possa criar transparência.(...) Por isso, a
superposição de formas é um pré-requisito da transparência – uma
condição perceptiva necessária, embora não suficiente.

Rudolf Arnheim

HELENAS é um termo genérico para designar dois trabalhos: as HELENAS DE


ÓLEO e as HELENAS DE PÓ, cada uma das quais formada por duas ânforas de
vidro, de base afunilada e de tamanhos e formas diferentes.10

A primeira etapa de realização das HELENAS consiste em estudos preliminares


feitos com recorte de papel dobrado. Eles me permitem explorar, através da
simetria, as inúmeras possibilidades de formato da ânforas, cuja variação no
diâmetro de uma mesma peça é fundamental para as operações subseqüentes.
Com esses recortes realizo os croquis que me ajudam a projetar o trabalho e a
escolher definitivamente as peças.

10 O termo “helenas”, aliado ao uso das ânforas, tem um duplo sentido no trabalho. Por um lado é
uma espécie de alusão – não desprovida de ironia – à noção grega de perfeição, precisão e exatidão
na manufatura das obras de arte. Por outro lado, Helena é também uma referência à figura feminina,
pela capacidade que tem de interagir, de transformar e de transitar constantemente entre a
fragilidade e a resistência, a força e a delicadeza.
109

Cada dupla de ânfora é suspensa por um único cabo-de-aço. Ele é longo e cada
uma das extremidades é fixada em uma das peças. Ao ser suspenso pelo meio,
adquire a aparência de dois cabos separados.

O cabo passa por uma roldana afixada próxima ao teto e, desse modo, a ação da
gravidade se intensifica no trabalho: a força com que a ânfora mais pesada é
atraída para baixo é a mesma que tende a lançar a menor para o alto. A
instabilidade se atenua na medida em que as diferenças de peso se reduzem
gradualmente, decorrentes da inserção do óleo ou do pó dentro das ânforas.

Nas HELENAS, a ampliação e as variações no diâmetro de cada ânfora


intensificam as múltiplas inclinações, provocam um desvio forte na verticalidade
do cabo e introduzem um componente de imprevisibilidade no processo.

O equilíbrio e a precisão resultam de operações nas quais a estabilidade e a


instabilidade são transitórias e criadas a partir do peso físico do conjunto. As
HELENAS são como balanças compostas por peças, cuja densidade se altera
constantemente durante a realização do trabalho.

HELENAS DE ÓLEO

A forma de fixação do cabo nas ânforas das HELENAS DE ÓLEO é a mesma


utilizada nas OBLÍQUAS.11 Além do movimento promovido pela diferença de
peso, as peças tombam e oscilam continuamente e ambos os movimentos se
estabilizam com a inserção gradual do óleo na ânfora menor.

Trata-se, todavia, de uma estabilidade frágil que logo se desfaz. Preenchida até

11 Ele é preso a outro tipo de anteparo, formado por parafusos e roscas, torneados em aço inox e
retentores de borracha, que também são inseridos através de orifícios, criados na base afunilada da
ânfora. Assim como nas Oblíquas, os anteparos servem também para vedar os orifícios evitando o
escoamento do material.
110

o limite de transbordamento, a ânfora menor passa a desequilibrar o conjunto -


a ordem do peso se inverte e, com isso, a instabilidade reaparece no processo.

O equilíbrio físico do conjunto é obtido quando a ânfora maior é preenchida


parcialmente pelo óleo. Ela se transforma no lastro do trabalho, pois o que
determina a quantidade de óleo é o peso físico de sua oponente, a ânfora
menor. Elas se compensam mutuamente e podem se posicionar em alturas
diferentes. O processo é finalizado quando as duas ânforas são ajustadas pelo
nível do óleo, que passa a ser o mesmo para ambas.

Embora a precisão no nivelamento seja visualmente mais forte, ela não é a


responsável pelo equilíbrio físico das peças. É, na verdade, uma possibilidade,
entre tantas outras, criada pela distribuição exata do peso.

O trabalho então é instalado de forma que o nivelamento se localize próximo à


altura do olhar. Desse modo, a superfície do óleo desaparece parcialmente e é
percebida como uma linha contínua e horizontal que interliga as ânforas.

Proveniente da mesma força que promove a instabilidade no processo, o


nivelamento, apesar de movediço e instável, é um índice de precisão e equilíbrio
frente aos deslocamentos e as tensões produzidas no trabalho. Vale ressaltar
que essa relação é potencializada pela transparência dos materiais, ao evidenciar
a inclinação das peças e o desvio na verticalidade do cabo-de-aço.

A altura do nivelamento destaca o desenho formado pelas linhas do nível e do


cabo-de-aço, o qual se transforma constantemente a partir da refração de luz
que o óleo produz nas peças e do trânsito do observador. Ora o cabo se alinha
perfeitamente, criando com o nivelamento um cruzamento ortogonal, ora se
deforma, se desloca ou desaparece totalmente, interrompendo uma
continuidade que é, sobretudo, material.
111

HELENAS DE PÓ

Em uma das extremidades do cabo-de-aço é criada uma alça na qual a outra


extremidade passa depois que o cabo atravessa internamente as peças. Essa
espécie de amarração é a forma de fixação usada nas HELENAS DE PÓ. Nela, o
ponto a partir do qual as peças são suspensas localiza-se na borda da boca da
ânfora. Isso destitui a idéia de um eixo central, que se desloca na suspensão e
provoca inclinações diferentes daquelas produzidas anteriormente.

Essa forma de fixação mantém os orifícios inferiores da ânfora abertos. Quando


o pó é inserido pela abertura superior, ele escapa por essa passagem,
dificultando o balanceamento das peças.12

Nas HELENAS DE PÓ as duas ânforas são preenchidas simultaneamente. A


diferença das alturas e do posicionamento das peças torna-se um fator
importante para a obtenção do equilíbrio. Conjugados, eles mantêm o trabalho
no limite de desmoronamento.

O equilíbrio tênue do trabalho é o que mantém o pó dentro das ânforas.


Compactado pelo seu próprio peso e pressão ele pode voltar a escoar através do
orifício ao menor indício de agitação das peças. Por estar no lugar de maior
vulnerabilidade no trabalho, o orifício funciona como um dispositivo, destinado a
indicar a presença, a intensidade e o fluxo de turbulências.

É por esse motivo que as ânforas localizam-se próximas ao piso: para que as

12 O pó é produzido pela carbonização da palha-de-aço em fornos cerâmicos de alta temperatura.


Ele é composto por minúsculos filamentos que, ao serem acumulados, criam uma trama, responsável
pela contenção do material dentro das peças. Trata-se do resíduo de trabalhos anteriores, usados
primeiramente nos Duplos, reutilizados nas Elevações, e que agora ressurgem totalmente
desintegrados pelo manuseio. A reutilização dos materiais e os processos de transformação –
presente, por exemplo, no torneamento das ânforas – são procedimentos recorrentes em minha
trajetória artística. Eles me interessam porque evidenciam o transitório no tempo, no corpo e na
matéria.
112

minúsculas partículas de metal carbonizado não se dispersem ao cair, levadas


pelas correntes de ar. O resíduo, quando se acumula no chão e se dispersa,
revela uma proximidade com a ampulheta. É um registro indicial que torna
perceptível as aberturas e passagens, a estabilidade precária da obra e sua
relação com o tempo.

Nas HELENAS DE PÓ as operações são sempre da ordem das aproximações e


nunca das exatidões. Na obra, não há nivelamento ou outro elemento capaz de
indicar uma ordenação no trabalho. Há o estado de tensão entre queda e
suspensão, velocidade e fixidez, aceleração e força gravitacional, peso e volume.
Permanecer suspensa e sem contato com o piso é o único indício de que
permanecem em equilíbrio.
113

ESTÁVEIS

A fixidez é sempre momentânea. Como pode sê-lo sempre? Se


o fosse, não seria momentânea – ou não seria fixidez. O que
eu quis dizer com esta frase? Talvez tivesse em mente a
oposição entre movimento e imobilidade, uma oposição que o
advérbio sempre designa como incessante e universal:
estende-se a todas as épocas e compreende todas as
circunstâncias. Minha frase tende a dissolver essa oposição e
assim se apresenta como uma maliciosa transgressão do
princípio de identidade.

Octávio Paz

Recipientes alongados de vidro, de formatos pontiagudos, arredondados e


simétricos, são posicionados horizontalmente dentro de caixas de madeira,
perfeitamente niveladas. Em volta deles é despejado massa de cimento com
água, até atingir a metade da peça. Para que a fração submersa seja igual
àquela que se mantém acima do nível do cimento, uso as extremidades
pontiagudas dos recipientes como referência. Elas marcam a localização do eixo
interno e central, responsável pela simetria das peças.

Com essas operações crio simultaneamente uma base branca - cuja superfície é
devidamente nivelada – nas quais se formam as concavidades, onde os
recipientes se ajustam perfeitamente. A precisão na coincidência entre o côncavo
da base e o convexo do objeto de vidro, obtida por esse processo e fixada com
a solidificação do cimento, é fundamental para o desenvolvimento subseqüente
do trabalho.

Em seguida, as peças de vidro são deslocadas ligeiramente em relação ao seu


molde, de modo que uma parte delas se projete para fora das concavidades.
Com isso, um fino ajuste se desfaz, as peças ficam inclinadas em relação à base
114

e as concavidades tornam-se parcialmente visíveis. No vazio deixado na base,


evidencia-se o recipiente como duplo.

A peça de vidro é fechada e possui apenas um pequeno orifício por onde é


injetado silicone líquido ou óleo queimado, até atingir o nível que coincide com
a superfície do cimento. Represados pelo vidro, os materiais líquidos adquirem
uma forma e um contorno próprios. São volumes que se formam e se localizam
numa região do trabalho onde uma parte da concavidade, do recipiente e da
superfície nivelada do cimento se cruzam.

Os líquidos tornam-se uma interface forte, através da qual se estabelece a


comunicação entre o interior e o exterior dos recipientes e cuja materialidade
movediça, transforma a precisão num componente frágil do trabalho.

Quando o nível do líquido coincide com o da base de cimento forma-se uma


superfície contínua que, aparentemente, corta e atravessa os recipientes. No vão
da concavidade, a continuidade dessa superfície é estritamente potencial.

Esse intervalo, criado entre a forma da concavidade e o volume do líquido,


provoca uma sensação de disjunção na relação entre continente e conteúdo e
evidencia a vocação da interface em se situar entre as coisas como uma
superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas
espécies, duas realidades de ordens diferentes.13

A opção de utilizar materiais líquidos brancos ou totalmente negros tem por


intenção explorar os contrastes e os diferentes graus de reflexibilidade que a
superfície do vidro produz no contato com esses materiais. Eles intensificam a
transitividade dos conceitos, das sensações e do foco do olhar, que reflete a

13 Levy, Pierre. O que é o virtual, Ed. 34. São Paulo, 1996, p.181.
115

própria dinâmica de troca entre o interior e o exterior, existente no trabalho: ora


se detém nos acontecimentos externos e na forma dos recipientes, ora parece
abstrair sua presença para mirar apenas a superfície dos materiais líquidos ali
represados.

As ESTÁVEIS partem de uma idéia que só pode efetivamente se concretizar no


espaço onde as obras são instaladas, já que qualquer irregularidade no solo pode
desfazer a precisão no ajustamento, fundamental para a constituição da obra.
116

INSTÁVEIS

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.


Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? pergunta Kublai
Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra –
responde Marco -, mas pela curva do arco que estas
formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois
acrescenta:
Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde: sem pedras o arco não existe.
Italo Calvino

Ânforas de cerâmica, de diferentes tamanhos e formatos, são as matrizes desses


trabalhos realizados em gesso, cuja forma corresponde ao limite de
represamento de um líquido dentro das ânforas em posição horizontal.

Assim como nas ESTÁVEIS, as ânforas são deitadas dentro de caixas de madeira,
para que o gesso possa ser derramado em volta das peças. Só que agora ele é
inserido até começar a penetrar pela abertura da ânfora e a concavidade, criada
com a remoção das matrizes, é usada como molde para a confecção da peça
final.

Ela é produzida pela inserção de uma nova massa de gesso que preenche
totalmente as concavidades, até se nivelar com a superfície do molde. Com isso,
uma parte da ânfora desaparece e uma área plana é criada na peça. Depois de
removida do molde, ela reproduz a forma da ânfora que parece ter sido cortada
horizontalmente.

Tais operações se baseiam na concepção de que o vazio interior da ânfora


117

reproduz sua forma externa. O ponto de transbordamento, de fora para dentro,


é o mesmo de dentro para fora e, desse modo, ele reflete o limite de
represamento interno. É como se, inversamente, o líquido estivesse prestes a
escoar pela boca da ânfora.

É fundamental que as aberturas sejam consideravelmente menores que o


diâmetro da peça e que o ponto de transbordamento nunca se localize abaixo da
base afunilada, para manter visível no trabalho a forma das ânforas. Sem ela, e
sem a sensação de corte, criada pelo nivelamento, a relação entre o interior e o
exterior das peças se perderia.

O posicionamento das obras reproduz a inclinação natural de algumas ânforas


mas, a faceta plana tende a se manter paralela à superfície de apoio.14 Deste
modo, apesar de ser arredondada e não ter um ponto fixo de apoio, a obra se
mantém num equilíbrio frágil: comporta-se como se o gesso ainda estivesse em
estado líquido e contido no recipiente.

Nas INSTÁVEIS há uma espécie de desaparição relativa e imaginária do


recipiente. O que vemos é seu espaço interno, transformado em exterioridade.
A ânfora parece adquirir uma transparência imaginária – não produz reflexo, pois
não há superfície material; está e não está simultaneamente, pois não pode ser
vista, apenas intuída.

14 Refiro-me aqui à superfície plana de uma mesa ou de uma base comum.


118

AS OBRAS E O ESPAÇO

De fato, essas esculturas postam-se freqüentemente como


corpos delicados, quase imateriais, rondando e desafiando
perigosamente sua própria existência. Não se oferecem como
simples alteridades. Não são corpos inequívocos, evidentes,
que, à maneira das tradicionais esculturas constituídas de
matéria e opacidade, abrem clareiras na vacuidade do espaço.
É como se a matéria de que são feitos, mesmo quando pouca,
desejasse e se confundisse com o ar mais próximo, desejasse e
se confundisse com o espaço entorno. (...) esse território
imediatamente vizinho, esse intervalo invisível e silencioso que
há entre as coisas, ou que envolve cada uma delas, e que
também é espaço mas que descuidadamente chamamos de
vazio ou de ar.
(...)

O olho é o alvo.

Agnaldo Farias

CONTINENTES, GRAPHOS, OBLÍQUAS, HELENAS e ESTÁVEIS foram reunidas


numa única exposição,15 composta por duas salas. A primeira, localizada à
entrada da galeria, era ampla, comprida e com pé-direito alto. Ao fundo dela, e
separada apenas por uma divisória branca de madeira, estava a outra sala,
menor e parcialmente visível da entrada.

Nesse espaço contíguo à sala principal, estavam expostas as ESTÁVEIS e as


obras que mantêm uma relação íntima com o desenho. Além dos GRAPHOS e
dos CONTINENTES apresentei também uma série não incluída nessa tese.16

15 Exposição realizada no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em 2003, na qual não foi incluída a série
INSTÁVEIS, que continua inédita.
16 Trata-se de BURACOS PLANOS II, realizada em 2001. Apesar de não tê-la incluído na tese – pela
proximidade com o trabalho anterior já abordado na dissertação – ela mantém um certo parentesco
com as séries CONTINENTES e GRAPHOS, razão pela qual foi apresentada na mesma exposição.
119

Na sala maior, foi onde procurei criar uma interação das obras com o espaço.
Nela, as HELENAS DE ÓLEO, as HELENAS DE PÓ e as OBLÍQUAS foram
dispostas, distantes umas das outras, e circundadas por uma versão das
ELEVAÇÕES, que se estendia como uma linha única e estreita percorrendo todas
as paredes. 17

O grupo, composto por obras suspensas, transparentes e delgadas ocupava de


forma discreta o espaço, evidenciando a amplitude da sala e a relação entre a
horizontalidade contínua das ELEVAÇÕES e o posicionamento vertical e inclinado
das outras peças.

O nivelamento dos trabalhos - determinado pelo nível do óleo nas HELENAS, do


gesso nas OBLÍQUAS e pela base dos volumes nas ELEVAÇÕES – atuava como
uma referência tênue e fugidia que, tal como um corte, atravessava as peças, o
espaço e o corpo do observador na altura média do olhar. Com isso, criava um
plano ou superfície imaginária subjacente, que dividia a sala em duas frações.

A percepção de que a fração inferior se constituía como uma parte, na qual as


HELENAS e as OBLÍQUAS se encontravam parcialmente ou totalmente
submersas, se processava por meio da suspensão, da transparência do vidro, do
acúmulo dos materiais na parte inferior dos recipientes e pela interrupção brusca
e contínua da base das ELEVAÇÕES.

17 Elevações são volumes de pó de palha-de-aço carbonizada, acumulada sobre lâminas de metal,


afixadas perpendicularmente à parede. A placa é presa por anteparos que se tornam imperceptíveis
quando são soterrados pelo pó. Nesse trabalho, a placa e a parede são rebatimentos fortes e
precisos, cuja materialidade parece se dissipar em contato com os montes de pó. O que se vê é uma
interrupção brusca, plana e contínua que secciona os volumes numa mesma altura e profundidade.
Isso suscita uma imagem de continuidade dos montes e do espaço para além de sua fração visível.
É como se ambos fossem infinitamente maiores e se projetassem para fora do espaço construído.
Desse modo, as paredes parecem adquirir transparência e desaparecem na mesma intensidade em
que a superfície subjacente imaginária, criada pelo nivelamento das peças, se torna perceptível e
oculta uma parte submersa dos montes. Com as Elevações aspiro transformar a sala num fragmento
de algo imensurável.
120

A continuidade e o tamanho reduzido dos montes de pó ampliavam


aparentemente o espaço, provocando no observador a sensação de
distanciamento físico. Quando ele se afastava dos montes, era lançado para
longe das únicas coisas que poderiam lhe conferir referência de estabilidade e
equilíbrio. Nesse sentido, o nível das HELENAS DE ÓLEO e das OBLÍQUAS, ao
evitar que a continuidade da superfície imaginária fosse desfeita por sua
extensão e imaterialidade, se transformava numa referência para o observador.

Talvez pudesse até ousar um pouco e indicar de maneira figurada a forma como
meu corpo parecia ser tragado por essa montagem. Era como se o solo
desaparecesse inadvertidamente e meu corpo, náufrago num oceano imaginário,
procurasse rebatimentos nos quais pudesse se apoiar.

Na montagem, cada uma das obras funcionava como uma espécie de aparelho.
Juntas, construíam a superfície imaginária e alteravam a percepção do
observador acerca do espaço e do peso das coisas.18

18 Penso que a idéia da obra como aparelho já havia se insinuado através das montagens anteriores das
Elevações, mas permanecia de certa maneira inconsciente. De fato, o que determinava os possíveis
agrupamentos e a ordenação dos montes era exatamente a construção da superfície imaginária e a
alteração da percepção dos espaços, nos quais foram inseridos.
121

MESMAS E OUTRAS

MESMAS E OUTRAS é um conjunto de oito gravuras de grandes dimensões19,


cada uma das quais formada pelo agrupamento de oito pranchas. São, ao todo,
sessenta e quatro pranchas, produzidas a partir das mesmas quatro matrizes
que, articuladas entre si, geram formas que lembram o contorno de ânforas,
taças, garrafas, entre outros tipos de recipientes, usualmente utilizados para
conter substâncias líquidas.20

Trabalhar com as mesmas matrizes e ordená-las de maneira a serem sempre


outras, é a finalidade de um jogo quase matemático de construção e
desconstrução.

A primeira etapa na realização do trabalho, consiste na criação de um desenho


simétrico, formado por uma única linha, composta por segmentos retos e curvos
que, ao atravessar verticalmente o papel, cria simultaneamente o perfil de dois
recipientes diferentes. A seguir, o papel é secionado horizontalmente em quatro
partes iguais e a linha desenhada é recortada.

Ao efetuar os cortes, são traçadas linhas que não se fixam e que produzem
simultaneamente uma divisão e uma multiplicação. A linha originária - ou o
trajeto do corte, propriamente dito - não desaparece: permanece potencialmente

19 As gravuras medem 210 x 145 cm.

20 Opto pela gravura para enfatizar a idéia de uma matriz única e material que se desdobra em
outras. Tal escolha é oportuna porque me permite também realizar o trabalho a partir da
corporeidade e do contato físico de diferentes materiais, presentes no corte da chapa e no processo
de estampagem, realizado a partir da pressão e do peso do rolo compressor sobre a superfície do
papel. A técnica utilizada nas MESMAS E OUTRAS é usualmente designada como técnica aditiva da
gravura em metal, na qual o metal é substituído por chapas de poliestireno. As áreas negras são
obtidas a partir da colagem de uma camada homogênea de carborundum sobre a superfície da chapa
e simula a tradicional maneira negra da gravura em metal.
122

presente em ambas as faces cortadas, o que possibilita o reajuste preciso das


partes.21

Desse modo, surge um jogo de peças, com as quais são feitos os estudos para
a construção das diferentes figuras de recipientes. A continuidade original da
linha desenhada e a simetria, permitem inverter e girar livremente as quatro
frações horizontais do desenho, ampliando as possibilidades combinatórias. Ao
serem re-alinhadas de diversos modos, substituídas ou repetidas, elas formam o
perfil de outros recipientes, cujo desenho simétrico se completa com o
espelhamento da primeira coluna.

As matrizes são produzidas a partir da ampliação das peças e, portanto, cada


uma delas é formada por duas partes, as quais correspondem a uma das quatro
frações horizontais do desenho original.

Ao efetuar a impressão, é sempre deixado um intervalo entre as duas partes de


cada matriz. Com isso, o traço que dá contorno aos recipientes é um relevo no
papel, produzido pela força da prensa, o qual reconstitui a linha/trajeto de corte.

Algumas pranchas não têm qualquer tinta, apenas esse relevo, usado para criar
na figura uma área de aparente transparência. Outras, têm uma das partes
totalmente negra, que é posicionada na parte central das figuras, para sugerir a
presença de um líquido, contido no recipiente. A posição e a extensão dessa área
negra determinam a verticalidade ou a horizontalidade de cada gravura.

Apesar de ter como referência os estudos preliminares, o jogo entre construção


e desconstrução se manifesta novamente durante o processo de impressão. Ele é
dividido em duas etapas: na primeira, são produzidas as trinta e duas pranchas

21 A singularidade existente no corte é um elemento presente na realização de outros trabalhos, tais


como nos DUPLOS e nas ELEVAÇÕES, ambos de 2001.
123

sem tinta e, somente depois, algumas partes das mesmas matrizes são
preparadas e entintadas para a impressão das pranchas restantes, compostas
pelas áreas negras. Desse modo, a idéia de totalidade se fragmenta e só retorna
quando todas as pranchas são re-agrupadas para a construção das gravuras.

MESMAS E OUTRAS é concebida como uma espécie de gravura/instalação, na


qual procuro inventar um nivelamento, onde a presença da gravidade seja
apenas sugerida. Assim como nas gravuras, o peso físico é substituído pela
densidade visual do negro, em contraste com o branco do papel, do espaço e da
aparente transparência da figura dos recipientes.

Os princípios e as intenções que orientam a montagem são análogos àqueles


descritos anteriormente para a outra exposição. As gravuras são montadas tendo
como referência o nível criado pelas áreas negras, o qual se localiza sempre numa
mesma altura das paredes, situada na altura média do olhar.

Como essas áreas ocupam 1/4, 2/4 ou 3/4 da figura de cada recipiente, o
alinhamento horizontal provoca, simultaneamente um desnivelamento das
gravuras. Umas ficam mais altas e outras rentes ao chão; algumas se posicionam
horizontalmente, enquanto outras são verticais. Com esse desajuste, a
horizontalidade precisa do nivelamento é evidenciada.

Tal disposição, somada ao tamanho das gravuras, intensifica a construção como um


componente importante da montagem, por meio do qual a altura física e o vão central
da sala são potencializados.

A planaridade das gravuras, a maneira como são dispostas em todas as pareces do


espaço e a ausência efetiva da gravidade no nivelamento, me conduzem à
percepção de estar contornando e edificando o vazio da sala, cujo espaço é
redimensionado simultaneamente pelo plano contínuo, imaginário e subjacente,
criado com o nivelamento.
124

FORÇAS E FLUXOS

FORÇAS E FLUXOS é uma vídeo-instalação que nasce da idéia de poder tingir o


mundo. Trata-se de uma imagem mental, através da qual se manifesta a
interação de forças físicas, fluxos naturais e processos artificiais, presente
também nas transformações constantes do mundo.

A idéia do trabalho tem origem numa série de experimentações, nas quais


procuro criar uma construção instável e transitória a partir da interação da água
com diferentes recipientes utilitários de vidro.22

Na primeira delas, os recipientes apóiam-se precariamente uns nos outros e a


água é despejada dentro de cada um deles separadamente, de modo que seu
nível seja o mesmo em todas as peças. Isso nem sempre é possível, por conta
das diferenças de tamanho e formato dos recipientes e da alteração constante
do peso, provocada pela inserção da água. Quando esse nivelamento coletivo se
realiza, é resultado de um equilíbrio preciso e tênue, por vezes, obtido através
da reordenação constante dos potes.

Num segundo momento, os recipientes são empilhados e encaixados uns dentro


dos outros e a água é inserida continuamente dentro da peça localizada no ponto
mais alto do conjunto. Ela preenche os recipientes debaixo a partir de
transbordamentos sucessivos e, ao tomar completamente as peças, produz uma
refração que redesenha o conjunto e que transforma conteúdo e continente num
corpo único e transparente.

22 Os recipientes são copos, taças, tubos de ensaio, globos de luminárias, vasos e potes de vários
tamanhos e formatos, os quais, de modo geral e por sua funcionalidade, possuem sempre um ponto
de apoio que lhe dá estabilidade. Ao agrupar e apoiar esses recipientes uns nos outros procuro, em
algumas construções, subverter essa estabilidade, posicionando-os de modo inclinado e numa
situação instável.
125

Ao fotografar essa experiência, percebo que a imagem imóvel da fotografia é


incapaz de reproduzir, de maneira satisfatória, o fluxo dos acontecimentos
presentes no processo, os quais desaparecem quando o conjunto fica tomado
pela água.

Por esse motivo, na terceira experimentação, os procedimentos usados


anteriormente se mesclam e as peças são empilhadas, apoiadas e encaixadas
umas nas outras. O que parece uma disposição aleatória é, de fato, uma
construção cuidadosa, criada para explorar e registrar em vídeo o fluxo do líquido
por entre os recipientes. Para evidenciá-lo, a água é tingida com anilina verde,
o que possibilita o contraste e a coloração, sem perder a transparência.

Aos poucos - e sem que se perceba com nitidez de onde flui - o líquido verde
começa a invadir a construção. Ele o faz a partir de transbordamentos sucessivos
que partem de dentro para fora e de fora para dentro dos recipientes.

No processo são produzidos nivelamentos múltiplos, internos e externos, bem como


áreas de contenção de ar. Eles ocorrem toda vez que o líquido começa a se acumular
em recipientes menores, posicionados dentro de outros maiores, de onde a água flui,
ou quando não consegue penetrar completamente em algumas peças, devido ao seu
posicionamento ligeiramente emborcado.

Quando a elevação do nível da água parece se imobilizar repentinamente, é


porque ela está se esvaindo por alguma passagem e, em algum lugar da
construção, um outro represamento/nivelamento está se formando.

O fluxo lento do líquido é sempre o mesmo, mas preenche os recipientes em


velocidades distintas, de acordo com a forma, o tamanho e a localização de cada
peça.
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Quando o nível do líquido começa a atravessar ininterruptamente a imagem,


torna-se perceptível a presença de um recipiente maior, dentro do qual as peças
estão posicionadas. Trata-se de um aquário, cujos limites são descartados pelo
enquadramento da câmera. A partir desse momento, a transparência do líquido,
dos recipientes e do aquário se funde à da tela do monitor - cuja superfície
material parece desaparecer nas etapas iniciais do processo.

O ritmo lento no qual o processo se desenvolve, é bruscamente interrompido


pela reacomodação dos recipientes, frente à pressão, exercida pelo volume
de líquido no fundo do aquário - que tende a empurrar os recipientes ainda
vazios para o alto. Ao reordenar rapidamente a construção, esse acidente
inesperado, quebra o silêncio e retira o observador de uma espécie de
contemplação apática.

Ao expor o processo de preenchimento dos recipientes, o vídeo evidencia


também a comunicação e a troca constante entre o interior/exterior das peças e
as diferentes velocidades - acelerações e durações – determinadas pelo formato
dos recipientes.

As relações espaciais e temporais envolvidas no processo, me levam a realizar


essa experiência inúmeras vezes a partir de construções/agrupamentos
diferentes. Deste modo, foi produzido um conjunto de imagens videográficas, o
qual dá origem ao projeto de vídeo-instalação FORÇAS E FLUXOS.

A instalação é composta por nove aparelhos de tv, dispostos numa linha que se
posiciona de forma transversal no espaço, nos quais são reproduzidos
simultaneamente três desses vídeos.

Trata-se de vídeos diferentes, cada um dos quais reproduzido por dois


monitores, que se localizam distantes um do outro. As imagens iniciais dos
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vídeos são semelhantes e compostas pelos recipientes ainda vazios. Quando o


processo de inserção do líquido se inicia, as diferenças entre eles ficam cada vez
mais evidentes.

Nos vídeos da instalação, a forma como o líquido preenche sucessivamente as


peças e a maneira como elas se reacomodam constantemente, obedecem ao
fluxo natural do material e à pressão exercida pela força da gravidade, mas o
tempo, no qual o processo se desenvolve, é alterado pelo computador.

Essa espécie de equalização do tempo, produzida durante a edição dos vídeos,


altera a duração das ocorrências naturais desde o início do processo, mas só se
torna perceptível, quando o nível do liquido começa a atravessar
ininterruptamente cada imagem e a se elevar, de forma sincronizada, em todas
elas. A partir desse momento, forma-se um nivelamento único e contínuo,
o qual é evidenciado pela disposição, linear e justaposta, dos monitores.

Com esse nivelamento contínuo e sincronizado, procuro ativar a percepção de


uma superfície imaginária subjacente, que atravessa horizontalmente o espaço,
e provocar no observador uma sensação de submersão gradual. Trata-se
evidentemente de elementos imaginários, mas que se mesclam à um
acontecimento físico: quanto mais o nível do líquido se eleva na imagem, mais a
luminosidade verde que se projeta dos monitores, toma o ambiente, até tingi-lo
totalmente por uma luz esverdeada.

Depois de alguns segundos após a submersão completa das peças, os vídeos


retornam à sua imagem inicial, composta pelos recipientes ainda vazios para que
o processo de preenchimento se reinicie. Cada seqüência tem aproximadamente
dez minutos e se repete continuamente durante a permanência da obra.
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