Neutra Cientfica 2023

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SOBRE A “NEUTRALIDADE” CIENTÍFICA OU A OBJETIVIDADE NA CIÊNCIA

Autora: Aline de Pinho Dias


A idéia da “neutralidade ou objetividade” da ciência tem sua origem no pensamento de
um filósofo inglês chamado Francis Bacon (1561-1626/Renascimento). Na época em que o
Homem confiava cada vez mais em si próprio e no uso da razão para compreender o
mundo, Francis Bacon leva esta idéia ao extremo e defende a noção de filosofia como
ciência primeira, ou seja, como a ciência que está acima de todas as outras e apresenta
como sua teoria filosófica a criação de um método de investigação da natureza, que
deveria ser utilizado por todas as ciências, através do qual poderíamos chegar à
verdadeira natureza das coisas. Este método era chamado por Bacon de “a verdadeira
indução”.

Segundo Bacon, a “verdadeira indução” não seria uma generalização apressada, feita a
partir de uma amostra inadequada da natureza, e sim, uma forma de proceder
extremamente rigorosa, cuidadosamente planejada e esquematizada. Faz parte desse
procedimento cuidadoso, de que fala Bacon, tomarmos consciência dos fatores que podem
gerar imprecisões em nossas investigações e nos livrarmos deles. Estes fatores geradores
de imprecisões e que bloqueiam a mente humana são chamamos por Bacon de “ídolos”:
ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do mercado, ídolos do teatro.

“Todas essas teorias, teoremas e controvérsias medievais devem ser jogados fora
e esquecidos; para se renovar, a filosofia deve começar tudo do zero e com a
mente purificada. O primeiro passo, portanto, é o expurgo do intelecto. Devemos
tornar a ser como criancinhas, livres de ismos e abstrações, despidos de
quaisquer preconceitos e predisposições. Temos que destruir os ídolos da mente.
“(BACON, pg. 136)

1) Ídolos da tribo – correspondem às tendências comuns que todo ser humano está
sujeito, a saber: tendência de julgar as coisas pelas aparências e à aderir opiniões
comuns; tendência de querer respostas rápidas e fechar questão; tendência a
acreditar no que já está estabelecido desprezando idéias novas; tendência de se deixar
abalar por novidades impactantes.

1 Ex: A compreensão humana, devido à sua natureza peculiar, pressupõe facilmente


um grau de ordem e regularidade nas coisas maior do que aquele que encontra na
realidade. Daí a ficção de que todos os corpos celestes se movem em círculos
perfeitos.

2 Ex: Em nosso cotidiano aderimos freqüentemente às opiniões comuns, julgando


situações sem ter embasamento algum, sem ter leitura suficiente para opinar sobre
um dado assunto. Por exemplo, é bastante freqüente aquelas situações em que as
pessoas se sentam numa mesa de bar e passam horas discutindo política. Em geral,
são discussões totalmente vazias, que só confirmam o que já existe e o que todos
pensam sobre o assunto.

3 Ex: Abra a revista Veja, leia atentamente e você encontrará milhares de afirmações
comuns, ou seja, sem fundamentos.
“Lula é um homem inteligente, caso contrário não teria sido presidente. Será que ela
ainda não percebeu que esse modelo econômico herdado de FHC não vai levar o país

1
a lugar nenhum e que foi justamente para mudar esse modelo que a população o
elegeu?“ Augusto Freitas (veja, PG.89, 7 ABRIL 2004).

“Os instintos são fundamentais na hora de fazer negócios. É graças aos instintos que
um bom negociador sabe quando deve ter paciência, o momento de ser agressivo ou
de rever suas estratégias. Mais uma vez, trata-se de uma qualidade preciosa, porque é
rara: os instintos para ser um vencedor são algo que se carrega no sangue. Você
nasce -ou não- com eles.” Donald Trump (VEJA, pg.108, 7 ABRIL 2004)

2) Ídolos da Caverna - são tendências individuais que procedem do caráter, da


educação, dos costumes e inclinações do indivíduo.

Ex: Algumas pessoas são demasiadamente conservadoras, outras demasiadamente


atraídas pela novidade; algumas pessoas tem a mente analítica e vêem diferenças em
toda parte, outras são sintéticas e vêem semelhanças em toda parte; algumas
pessoas são excessivamente sintéticas e outras o contrário.

3) Ídolos do mercado/Foro – (nascidos do comércio e da associação dos homens


entre si) São armadilhas escondidas na linguagem que utilizamos. Por exemplo:
palavras sem sentido, palavras ambíguas e mal definidas. O jogo vazio de palavras
também entra nas armadilhas da linguagem.

1 Ex: “Porque os homens conversam por meio da língua; mas as


palavras são impostas segundo a compreensão da multidão; e de
uma prejudicial e inapta formação de palavras surge uma
maravilhosa obstrução da mente. ... Os filósofos falam sobre a
“primeira causa não causada”, ou “primeiro motor não movido”;
mas será que não se trata, uma vez mais, de frases tipo folha de
parreira, usadas para cobrir a nudez da ignorância e, talvez,
indicativas de uma consciência culpada por parte de quem as usa?
Toda inteligência clara e honesta sabe que nenhuma causa pode
ser sem causa, nem qualquer motor não movido. “

2 Ex: “...Nas últimas três semanas, Daniela, de 31 anos, falou com


quase uma dezena de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Leu
livros de sociobiologia. Comparou teorias distintas colocadas de pé
para explicar as interações entre os sexos. Avaliou tudo com a
experiência de quem já se envolveu com a produção de diversas
edições especiais de VEJA sobre homens e mulheres e já assinou
quase duas dezenas de reportagens de capa da revista. ”Quase
desisti quando vi que havia explicações muito distintas para os
mesmos fenômenos. Os dados ora desprezavam os aspectos
culturais, ora ignoravam que homens e mulheres são criaturas de
carne e osso movidas a hormônios e outros elementos químicos da
paixão. Meu desafio foi integrar as informações usando o bom
senso de mulher e de jornalista, diz Daniela”. (VEJA, pg.7, 21
janeiro 2004)

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4) Ídolos do Teatro – são provocados por teorias falsas, sistemas filosóficos
equivocados. São erros que se transmitem com as teorias das escolas filosóficas e que
se baseiam na utilização de procedimentos de demonstração errôneos e na mera
ficção de teorias. Por exemplo: sistemas ideológicos.

“... a indução era a busca das formas escondidas das coisas e tem de partir de
registros precisos e regulares de observações. Por exemplo, se quisermos
descobrir a forma do calor, temos que fazer uma tabela de casos em que o calor
se encontra presente (por exemplo, os raios do sol e as faíscas de uma
pederneira), casos em que ele se encontra ausente (por exemplo, os raios da lua
e das estrelas), e casos em que está presente em diferentes graus (por exemplo,
em animais, em diferentes alturas e em diferentes circunstâncias). Quando
comparamos as tabelas descobrimos aquilo que está sempre presente quando o
calor está presente, aquilo que está sempre ausente, e aquilo que varia em
proporção com a sua presença. “ (KENNY, pg.245).

Segundo Bacon, o objetivo da ciência era o domínio da natureza para o proveito da


sociedade e o conhecimento era entendido como uma cópia autêntica da natureza, da
realidade, sem imaginações enganosas. Para que o homem conseguisse fazer uma cópia
fiel da realidade, ou seja, para obter o conhecimento objetivo, ele deveria
antecipadamente livrar-se dos ídolos acima citados.

A CRÍTICA DE KARL POPPER À IDÉIA DE NEUTRALIDADE CIENTÍFICA E SUA


TESE ACERCA DA VERDADE NA CIÊNCIA CONTEMPORÂNEA
Segundo Popper, Bacon caiu na própria teia ao dar um poder absoluto para a ciência e
cair no dogma do mérito supremo da observação. Os argumentos de Popper contra Bacon
são os seguintes:

a) A idéia de que podemos expurgar todos os preconceitos, todas as idéias ou teorias


preconcebidas antes da observação é ingênua e equivocada porque não temos
condição de saber se uma idéia que cremos sobre o mundo ou sobre o homem é um
preconceito a não ser no momento em que o próprio avanço do conhecimento nos
leva a descartá-la. Por exemplo, só tivemos condições de nos livrar do preconceito de
que a Terra se mantinha parada ao encontrarmos uma prova que refutava esta
afirmação;
b) Não é possível termos consciência de todos os nossos preconceitos;
c) Uma mente purificada de toda e qualquer teoria não é só uma mente purificada, mas
uma mente vazia;
d) Operamos sempre com teorias, mesmo que não tenhamos consciência delas. No
entanto, deveríamos ter consciência delas para buscarmos teorias alternativas e até
comparar teorias.
e) Não existe observação pura”, ou seja, uma observação sem nenhuma componente
teórica. As observações experimentais são interpretações dos fatos à luz de alguma
teoria. Ou seja, nós vamos observar para confirmar ou refutar uma hipótese que
formulamos sobre um dado fenômeno.
f) A grande preocupação de Bacon ao falar da importância da observação pura, livre de
teorias, é que ele acreditava que se verificássemos fatos à luz de teorias
preconcebidas ou de preconceitos estaríamos sujeitos a confirmar e a fortalecer essas
teorias ou esses preconceitos – eles não nos deixariam aprender com a experiência.

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No entanto, segundo Popper, a solução não é buscar uma observação pura (livre de
teorias), mas estabelecer claramente os critérios observacionais segundo os quais suas
teorias ou seus preconceitos poderiam ser refutados.

A solução de Popper é:

1) “Todos os cientistas que pretendem ver suas teorias apoiadas pela experiência ou
observação, devem estar dispostos a fazer a sí próprios a seguinte pergunta: Serei
capaz de descrever quaisquer resultados possíveis da observação ou experiência que,
se forem alcançados, refutem minha teoria?”

Segundo Popper, se o cientista não é capaz de estabelecer os critérios, segundo os quais,


sua teoria deveria ser refutada num experimento, então, sua teoria não é uma teoria
empírica porque não podemos afirmar que observações particulares apoiam
empiricamente sua teoria.

O ponto de partida de Popper com esta afirmação é que: não temos como saber quando
uma teoria é verdadeira, mas temos como saber quando uma teoria é falsa. Podemos
dizer quais são os critérios que falseariam minha teoria. Na medida em que submeto ela a
testes rigorosos e, mesmo assim, as observações feitas não falseiam minha teoria, então,
ela é considerada corroborada (confirmada) até que se prove o contrário. Por exemplo:
Minha tese é que “água ferve a 100 graus”, nas condições x de pressão. Meu critério de
refutação dessa a firmação é: se nas condições x de pressão, à temperatura de 100 graus
centígrados, a água não ferver, então, minha tese é falsificada ou refutada.

Este é o critério de demarcação de Popper do que sejam afirmações da ciência e o que


são afirmações que não devem ser consideradas científicas - toda afirmação da ciência
deve ser passível de verificação e refutação.

Quanto às afirmações que não nos fornecem critérios de falseabilidade ou de refutação,


estas não são consideradas por Popper como falsas, mas apenas como não pertencentes
ao campo das ciências empíricas.

2) Não há problema alguma se as observações ou os experimentos são aceitos como


apoiando uma teoria ou hipótese previamente concebida, se estas observações ou estes
experimentos são testes rigorosos à teoria ou à hipótese. Ou seja, se são tentativas sérias
de refutar (de encontrar falhas) a teoria ou hipótese previamente estabelecida.

“... a função decisiva da observação e da experiência em ciência é a crítica. A observação


e a experiência nada podem estabelecer de modo conclusivo, pois existe sempre a
possibilidade de um erro sistemático através da interpretação errada sistemática de um ou
outro fato. Mas a observação e a experiência desempenham, sem dúvida, um papel
importante na discussão crítica das teorias científicas. Essencialmente, ajudam-nos a
eliminar teorias mais fracas. Prestam assim o seu apoio, embora apenas no presente, à
teoria sobrevivente – ou seja, à teoria que foi rigorosamente testada mas não refutada.”
(POPPER, PG.118.)

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“...fazia parte da religião da ciência, antes de Eisntein, reivindicar a autoridade da ciência.
Havia, como se sabe, alguns “hereges”, nomeadamente o grande filósofo americano
Charles S. Peirce, o qual, antes de Eisntein, declarou que a ciência partilhava a falibilidade
com todos os empreendimentos humanos. Contudo, o falibilismo de Peirce tornou-se
influente sobretudo após a revolução einsteiniana. “(POPPER, pg.120)
“A ciência começa por teorias, por preconceitos, superstições e mitos. Ou melhor, começa
quando um mito é posto em causa e derrubado – ou seja, começa quando algumas das
nossas expectativas se não verificam. Mas isto significa que a ciência começa por
problemas, problemas práticos ou problemas teóricos."

Resumo geral de Popper:


1 – Todo o conhecimento científico é hipotético e conjectural;
2 - O aumento do conhecimento, e do conhecimento científico em particular, consiste em
aprendermos com nossos erros;
3 - O que se pode designar por “método da ciência” consiste na aprendizagem sistemática
através dos nossos erros – propondo novas teorias com ousadia e examinando
sistematicamente os erros que cometemos (discussão e exame crítico das teorias);
4- Entre os argumentos mais importantes utilizados nesta discussão crítica encontram-se
argumentos vindos de teses experimentais;
5 - As experiências são constantemente guiadas por teorias, por palpites teóricos de que
o experimentador não se encontra, com frequência, consciente, por hipóteses respeitantes
a possíveis fontes de erros experimentais e por esperanças ou conjecturas sobre o que
será uma experiência proveitosa;
6 – O que se denomina objetividade científica consiste tão somente na abordagem crítica:
no fato de que se formos parciais a favor da nossa teoria preferida, alguns dos nossos
amigos e colegas estarão desejosos de criticar o nosso trabalho;
7- Este fato deveria encorajar-nos a tentar refutar as nossas próprias teorias – a tentar
impor-nos alguma disciplina;
8- Apesar de tudo, seria um erro pensar que os cientistas são mais “objetivos” do que as
outras pessoas. Não é a objetividade ou o desprendimento do cientista individual, mas da
própria ciência (o que se pode chamar “a cooperação amigável - hostil dos cientistas”- ou
seja sua disponibilidade para a crítica mútua) que constitui a objetividade;
9- Apenas uma teoria que declare ou subentenda que determinados acontecimentos
concebíveis não irão, de fato, ter lugar é uma teoria passível de ser testada. O teste
consiste justamente em tentar provar, por todos os meios ao nosso alcance, os
acontecimentos que a teoria afirma não, poderem ocorrer;
10 - O autoritarismo na ciência estava ligado à idéia de estabelecer, isto é, de provar ou
verificar, as suas teorias. A abordagem crítica está ligada à idéia de testar, quer dizer,
tentar refutar, as suas conjecturas;
Referências Bibliográficas

BACON, Francis. Os pensadores. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultural,1999.
POPPER, karl. O mito do Contexto - Ciência: Problemas, objetivos, responsabilidades. Portugal: Edições 70,
2001.
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