Ferreira Gabriela
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RESUMO: A Invenção da Solidão, de Paul Auster, constrói-se a partir de fragmentos, uma teia de conexões
e contradições em que reverbera o acaso, onde a anedota funciona como "forma de conhecimento", conforme
o narrador. Essa narrativa, por sua vez, é dividida em dois momentos. No primeiro, há a construção textual da
ideia da perda do pai – "O Homem Invisível" – bem como a interposição de fotos, que fariam parte da
história da família Auster. Seguem-se, após, comentários sobre o acaso em "O Livro da Memória". Assim,
considerando a produção de artistas como Marcel Duchamp e Valério Vieira, analisam-se, neste trabalho,
texto e imagens sob o viés comparatista. Utiliza-se, como aporte teórico, a obra de Michel Foucault, a fortuna
crítica acerca da narrativa e textos de Paul Auster, classificados, tal qual A Invenção da Solidão, como "não-
ficção".
ABSTRACT: The Invention of Solitude, by Paul Auster, is built from fragments, a net of connections and
contradictions in which chance reverberates, and where the anecdote works as a "form of knowledge",
according to the narrator. This narrative, in its turn, is divided in two moments. In the first, the idea formed is
that of the loss of the father – "The Invisible Man" – as well as the interposition of pictures, a part of the
Austers' family history. Commentaries on the nature of chance follow, in "The Book of Memory". Hence,
considering the production of artists such as Marcel Duchamp and Valério Vieira, text and image are
analyzed in this paper in a comparatist perspective. As theoretical approach, the works of Michel Foucault
and critical studies about the narrative are used, as well as publications by Paul Auster classified – like The
Invention of Solitude – as "non-fiction".
1 Introdução
*
Graduada em Letras e aluna de Mestrado em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. E-mail: gabisemensato@gmail.com.
escritor Auster – que agora refere a si mesmo como A. – de montar um plano de escrita:
"seguir com uma descrição detalhada de sistemas de memória clássicos, completar com
tabelas, diagramas, desenhos simbólicos" (AUSTER, 2003, p. 62). Segue, então, com o uso
da "mnemotécnica", relacionada à prática de auxiliar a memória. Para isso, cita textos –
como os fragmentos da poesia de Mallarmé, traduzidos por ele –, eventos, como sua visita
ao quarto de Anne Frank. Ele conclui, assim, que tudo, de alguma forma, está conectado a
todo o resto.
As epígrafes indicam o tom de cada parte da obra. Neste caso, a primeira delas é de
Heráclito, e é um aviso. Quando se procura pela verdade, deve-se estar preparado para o
inesperado, já que ela é difícil de achar e "puzzling" (enigmática) quando encontrada. A
referência ao enigma, ao puzzle como jogo, é frequente em Auster. Isso leva a uma
inevitável necessidade de interpretar os jogos de palavras com os quais trabalha em seus
textos. Essa busca pela "verdade", por exemplo, repete-se em outras narrativas, como
Leviathan (1992), que se inicia com a notícia da morte de um personagem, linha narrativa
desenvolvida até sua resolução, ao final. Poderia mesmo se dizer que esse jogo da corda
bamba entre a "verdade" e o que chama de "fato" é uma preocupação constante de seus
escritos.
A segunda epígrafe, a do Livro da Memória, é citação de Pinóquio, de Carlo
Collodi e refere-se também à morte. É um diálogo entre a Gralha e a Coruja, sobre o que
significa quando os "mortos começam a chorar" (AUSTER, 2003, p. 61). Segundo a
Coruja, é que eles não desejam morrer.
Considerando os conceitos desenvolvidos nas últimas décadas pela teoria literária,
A Invenção da Solidão seria considerado metaficcional e autoficcional. A narrativa é
autorreferencial, tratando de sua própria estrutura, propósito e de suas referências. Quanto
à figura do "autor", principalmente, enquanto função ou posição dentro do texto, como
desenvolvido por Foucault (1971), há grandes divergências entre a crítica especializada.
Classificada como "não-ficção" pela editora, por exemplo, essa obra é também tratada
como "experiência em autobiografia" (Blazejewski, 2002). No entanto, através de análise,
ela claramente apresenta ficcionalização do "eu", utilizando-se de experiências pessoais do
escritor, como a perda, e de seu nome. Não se pode tratar de "autobiografia" tradicional
sob nenhum aspecto, muito menos de um texto "não-ficcional".
Um dos aspectos mais instigantes relativos a esse investimento "autobiográfico" é a
inserção de fotos na narrativa, o que pode ter motivado sua classificação dentro dessas
categorias. Por isso, este artigo irá debruçar-se no trabalho com a imagem realizado na
obra, e na sua relação com o acaso. Para tanto, o estudo é dividido em duas partes iniciais,
direcionadas a cada momento de Invenção, mais a conclusão. Essa divisão baseia-se na
ideia de diferenciar-se cada um desses momentos em função de sua organização dentro da
própria narrativa. Isto é, inicia-se pelo retrato e segue-se com o livro de memórias.
Procura-se reconhecer, ainda, algumas referências evidentes ao nascimento e à morte
presentes na obra.
"One day there is life" – "Um dia, há vida" – (AUSTER, 2003, p. 3). Assim inicia
Retrato de um Homem Invisível. Impossível escapar da associação dessa passagem com
aquela presente na Genesis da Bíblia. Isto é, Deus diz que "haja luz", por exemplo, e há
luz. O ato de fala possibilita a criação do mundo. No texto de Auster, um ato de fala
similar, "há vida", cria o personagem. É um homem saudável, passando seus dias,
pensando na vida pela frente. E então, diz-nos o narrador, há morte. Abala-se com o
choque da morte do pai, sem causa aparente, sem aviso. A vida torna-se morte.
A maior preocupação era de que seu pai não havia deixado traços, rastros, de que a
vida dele desaparecesse com sua partida. Por isso, o filho resolve escrever sobre esse
homem "invisível" para si e para os outros, um homem sem vínculos, isolado. A partir daí
a narração passa a olhar para o passado, num movimento entre este e o presente, através da
inserção de comentários sobre a vida jovem e adulta, misturada a descobertas recentes
sobre sua família. O filho escritor visita a casa onde o pai morava, mexe em seus objetos
pessoais, descobre fotos dispersas. Algumas das fotos o ajudam a "preencher lacunas"
(AUSTER, 2003, p. 11).
A narração é "em retrospectiva", move-se entre um passado mais e menos recente
(a infância, a morte do pai) e o presente (a escrita do texto para manter viva a memória do
pai). Essa necessidade de preencher lacunas através das fotos de família esquecidas, ao
mesmo tempo em que possibilita a escrita do texto, também expõe suas lacunas. Trata-se
de memórias, primeiramente na tentativa de "pintar o retrato" do homem invisível.
Memórias, porém, que indicam seus próprios limites, diferentemente de uma autobiografia
ou livro de memórias tradicional, que procuraria manter a verossimilhança interna ligada
aos fatos externos que retrata, sendo estes, na verdade, apenas reconstituições do ponto de
vista de um observador, nunca "fiéis" aos fatos.
Assim, nas memórias o pai é descrito como um ser solitário, retirado do convívio,
"no sentido de não ter que ver a si mesmo, de não ter que ver a si sendo visto por qualquer
outro"1 (AUSTER, 2003, p. 13). Após a morte, portanto, há o esforço de investigar essa
solidão combinado com a consciência da impossibilidade de adentrá-la.
O pai não podia falar de sua vida interior, ele agia com indiferença frente a ela, em
silêncio. Partindo disso, o narrador se pergunta: "Se não há nada, então, mas silêncio, não é
presunçoso de minha parte falar? Ainda assim: se houvesse algo além de silêncio, teria eu
sentido a necessidade de falar, em primeiro lugar?"2 (Paul Auster, 2003, p. 16). Ele procura
encontrar esse homem invisível, caracterizar sua vida interior. Sabe, entretanto, da
impossibilidade de sucesso de seu projeto, que considera desde o início um fracasso.
Num comentário acerca de uma frase de Van Gogh sobre a necessidade de contato,
de afeição, o narrador conclui que talvez seja isso que conte: "chegar ao centro do
sentimento humano, apesar das evidências3" (AUSTER, 2003, p. 23). Esse encontro com
as palavras do pintor, cuja vida, aliás, também já foi contada a partir de seus "fracassos", se
dá pela coincidência, pelo acaso, quando o personagem Paul Auster começa a sentir que
perde o contato com o que escreve, que se distancia da vida interior que procura.
Cada memória é uma "ressurreição passageira", nem enterrada nem inteiramente
recuperável. Em Paul Auster, or the Heir Intestate, Paul Bruckner (1995, p. 28) chama
atenção para esse "senso de anulação redentor" presente em Invenção. O "eu" precisa
morrer para poder viver no texto.
Para pintar este retrato, ele descreve o homem. Faz uma lista de aspectos de sua
aparência que parece apenas tornar a distância entre o observador e o observado ainda
maior, acentuando os pontos brancos. O tamanho de suas mãos, seus calos, chá com limão,
sua face. E então se visualiza a foto do pai.
1
A tradução é minha. Texto original: "In the sense of not having to see himself, of not having to see himself
being seen by anyone else".
2
A tradução é minha. Texto original: “If there is nothing, then, but silence, is it not presumptuous of me to
speak? And yet: if there had been anything more than silence, would I have felt the need to speak in the first
place?”
3
A tradução é minha. Texto original: "Perhaps this is what really counts: to arrive at the core of human
feeling, in spite of the evidence."
Figura 1 – O truque fotográfico.
Fonte: AUSTER, 2003, p. 27.
O narrador ainda nota que, pela iluminação e por sua posição, parece que esses homens lá
se uniram para fazer uma reunião espírita (seance). Então, ao analisar a foto, percebe que
são todos o mesmo homem. O encontro espírita torna-se "verdadeiro": "como se ele tivesse
chegado lá apenas para invocar-se, para trazer-se de volta dos mortos, como se,
multiplicando-se, ele houvesse inadvertidamente tornado-se invisível"5 (AUSTER, 2003,
p. 26).
Observa-se também, através da foto e da descrição, que o truque fotográfico não
permite que os homens possam ver um ao outro, por causa de sua posição ao redor da
4
A tradução é minha. Texto original: "(...) a trick photograph taken in an Atlantic City studio sometime
during the Forties. There are several of him sitting around a table, each image shot from a very different
angle, so that at first you think it must be a group of several different men."
5
A tradução é minha. Texto original: "(...) as if he has come there only, to bring himself back from the dead,
as if, by multiplying himself, he had inadvertently made himself disappear."
mesa. Cada "eu" vê apenas o vazio entre os pares, o que faz o narrador considerar esta uma
"foto da morte", um "retrato de um homem invisível".
Confrontado com as fotos e com a tarefa que impôs a si mesmo – a escrita – o
escritor sente-se paralisado, como se as palavras não pudessem descrever o que pensa.
Sente que não conseguirá escrever, quando antes achava que a escrita curaria a ferida do
passado.
Essa foto liga Auster a seu passado e também traz à lembrança outra imagem: o
retrato de cinco ângulos de Marcel Duchamp (Five-way portrait of Marcel Duchamp), de
1917. Na verdade, esse tipo de técnica, provavelmente com espelhos, não parece ter sido
incomum no início do século XX.
Trata-se, portanto, de outro autorretrato múltiplo, dessa vez mais próximo da paródia, já
que há um elemento de humor, e de reflexão, nas diversas posições tomadas pelo autor.
Há mais uma foto na obra de Auster: a de sua família, por volta de 1911 e 1912. O
pai, dessa vez, é um bebê, sentado ao colo de sua mãe. Nota-se que a imagem foi rasgada e
colada novamente, deixando traços de uma parte que não está mais ali. Quando analisada
novamente, o escritor percebe que parte de um homem invisível – as pontas dos dedos do
avô – ainda apareciam tocando o ombro de uma das crianças.
Figura 4 – A família Auster.
Fonte: AUSTER, 2003, p. 29.
6
'Como Sair da Sala Que É o Livro?', Paul Auster e as consequências do confinamento.
que é escrita. Esses achados (fotos, cartas, notícias) que constituem "provas" do passado
são o que mantém o escritor ativo, impedindo sua mente de extraviar-se.
Comentários inseridos entre as memórias, no entanto, impedem que esses fatos
levem o leitor a sentir-se muito confortável frente à "verdade". Parecem lembrar-nos do
enigma. O narrador descreve a "força desconcertante e descontrolada da contradição" e
como "cada fato é anulado pelo próximo fato, cada pensamento engendra um pensamento
igualmente oposto" (AUSTER, 2003, p. 54). Ele conclui que todos, porém, são verdade.
Cada imagem pintada do pai é verdadeira, mesmo que todas se contradigam. A imagem
que se forma não é completamente nítida, nunca será igual ao homem. Ela é sempre um
ponto de vista e deixa visível sua própria natureza ilusória. Pode-se dizer que essa narrativa
até certo ponto autoficcional constrói-se a partir de fragmentos. Nesse caso, a anedota pode
funcionar "como forma de conhecimento".
O acaso, portanto, está infiltrado na narrativa, funcionando, até certo ponto, como
uma linha de enredo ou encadeamento dos "fatos". Além do nome do escritor como ponto
crucial para a análise da autoficção, existem também outras anedotas utilizadas ainda nessa
primeira parte que aproximam Invenção de escritos posteriores de Auster, interligando-os a
sua vida não ficcional. Uma dessas histórias recorrentes presente no texto é a viagem à
França e o tempo que ele teria passado lá. O quarto apertado em que viveu, a visita do pai,
a dificuldade de sustentar-se, todos esses detalhes tornam a experiência de leitura muito
similar àquela do déjà vu. Depois de ler A Invenção da Solidão, Leviathan, O Caderno
Vermelho e Invisível, por exemplo, é difícil recordar claramente como essa mesma viagem
é relatada em cada obra, já que ela está presente em todas.
No fim de Retrato, um último esforço em direção à escrita é construído a partir das
citações de Blanchot e Kierkegaard. Auster não consegue mais falar, o silêncio que o
atormentava desde o início agora o impede. O pai torna-se mais uma vez invisível, mas o
que foi escrito dá ao homem uma nova vida, pelo ato da criação literária.
7
Uma tradução aproximada seria: "Foi. Nunca mais será."
8
Tradução minha. Texto original: "To begin with death. To work my way back into life, and then, finally, to
return to death."
Seu livro das memórias está repleto de pensamentos de outros e de comentários
sobre o acaso, o qual os liga ao autor. Cada uma dessas subpartes, mesmo com título (com
numeração) diferenciado – isto é, livro e comentário – se trata de anedotas. É a construção
do conhecimento através de anedotas anunciada na primeira parte da narrativa.
No Livro da memória: Livro Um, por exemplo, A. está sozinho na sua pequena sala
em Nova York na noite de Natal de 1979. Esse prédio, como muitos da vizinhança,
costumava ser um lugar de trabalho. Traços desse antigo espaço permanecem no presente.
De imediato, isso pode trazer à memória o diário de Anne Frank, a qual é citada mais tarde
por ele. Nesse momento, os dois narradores se aproximam por descrever esse espaço de
trabalho que passa a servir como moradia. O isolamento de ambos leva à escrita. Ambos
não consideram sua nova moradia um lar, mas é tudo que têm. A. sente-se relutante em
sair. Anne não pode sair, pois ela e sua família judia são perseguidas, como tantos outros,
pelos nazistas.
Permanecendo na sala por muito tempo, ele pode "preenche-la com seus
pensamentos" (AUSTER, 2003, p. 62). Cada vez que sai, no entanto, leva seus
pensamentos consigo. Durante sua ausência, a sala gradualmente se esvazia. Quando
retorna, o processo se reinicia.
Esse espaço da sala sugere, para Stephen Fredman, o espaço do livro. É também, no
entanto, o espaço da memória, que demanda uma "luta interior"9, como se ele "fosse
forçado a assistir seu próprio desaparecimento"10 (AUSTER, 2003, p. 63), como se
entrasse em outra dimensão e passasse a viver em um buraco negro.
Outro personagem conhecido, não histórico, que viveu num escritório foi Bartleby,
de Herman Melville. Assim como A., ele parece desaparecer dentro da sala. A linguagem o
deixa, não se sabe se por causa das cartas extraviadas com a qual trabalhara antes, ou pelo
trabalho de copista que pratica então. Enquanto Bartleby "prefere não fazer" e não falar,
A., através do narrador, esforça-se por preencher a página em branco, mas também não tem
voz. Como Bartleby, o que transmite ao papel são as palavras de outros.
De alguma forma essa sala de trabalho, que é moradia, mas nunca parece ser um
lar, repete-se nos romances de Paul Auster. Esse é o espaço principal das narrativas, ainda
que, por vezes, o escritor ande pela cidade, observe as pessoas, e escreva em seu caderno
vermelho.
9
Tradução minha. Texto original: "Inner struggle."
10
Tradução minha. Texto original: "It is as if he were being forced to watch his own disappearance."
O Primeiro comentário sobre a natureza do acaso inicia pela afirmação de como
tudo começou. Um amigo conta uma história. Muitos anos se passam e ele volta a pensar
nela. "Não é que se inicie com a história. Na verdade, no ato de lembra-la, ele percebe que
algo está acontecendo com ele. Porque a história não teria ocorrido a ele a menos que o que
invocou sua memória já não estivesse se fazendo sentir"11 (AUSTER, 2003, p. 65). Sem
saber, ele estava atravessando um espaço de memória quase desaparecida. Mesmo com o
surgimento de parte da lembrança, não consegue identificar desde quando a estava
procurando.
Descreve-se, então, a vida do pai de M., o amigo. Ele se escondera dos nazistas por
muitos meses em Paris, numa chambre de bonne. Esse tipo de sala francesa consiste num
espaço pequeno, geralmente no último andar da casa, acessível por escadas. O pai de M.
eventualmente conseguira escapar e fugir à America. Teve, então, um filho, M., que,
depois de anos, resolveu ir à França para estudar. Depois de procurar por um bom tempo
um lugar para morar, ele acha uma chambre de bonne. Quando escreve ao pai para contar a
novidade, descobre que está instalado no mesmo quarto em que o pai se escondera durante
a guerra.
O comentário, portanto, é sobre uma coincidência. O livro da memória, por outro
lado, concentra-se na história do esforço de escrever. Os dois iniciam pela sala, como
afirma o narrador12.
4 A Invenção da Solidão
O comentário seria uma categoria que designa o ato de fala do narrador que "vai
além do fornecimento de fatos do mundo ficcional e do recontar eventos" (NÜNNING,
2005, p. 74). Por essa razão, os comentários seriam ocasionalmente identificados como
"intrusões" ou "intervenções" autorais13. De acordo com Ansgar Nünning (apud Seymour
Chatman, 1978), dois tipos de comentários podem ser distinguidos: aquele sobre a estória e
aquele sobre o discurso. O primeiro pode ser explanatório, avaliativo e generalizador. O
11
Tradução minha. Texto original: "It is not that it begins with the story. Rather, in the act of remembering it,
he has become aware that something is happening to him. For the story would not have occurred to him
unless whatever summoned its memory had not already been making itself felt."
12
Tradução minha. Texto original: "It begins, therefore, with this room. And then it begins with that room."
(2003, p. 65).
13
Tradução minha. Texto original: "Commentary is a general category designating those speech acts by a
narrator that go beyond providing the facts of the fictional world and the recounting of events. (For this
reason they are also occasionally identified as 'authorial intrusions' or 'interventions'.)".
segundo estaria se referindo mais ao ato de narração do que ao "mundo representado" dos
personagens. O comentário acerca da estória seria mais um ato de interpretação acerca das
motivações dos personagens, por exemplo, enquanto o comentário sobre o discurso seria
mais autorreflexivo, como em uma metanarrativa.
Como se pode perceber, em A Invenção da Solidão encontram-se esses dois tipos
de comentário. Na primeira parte da narrativa, que é em primeira pessoa, há observações
sobre a personalidade do pai, sobre os motivos para sua avó ter assassinado o marido,
sobre a história da família Auster. Na segunda parte, o narrador está tão próximo de A.
que, mesmo falando dele em terceira pessoa e comentando suas experiências, é difícil
distinguir sua voz da de seu personagem. Auster e A. são o mesmo, e, no entanto, nunca
serão o mesmo, pois estão separados pelo discurso.
Há, ainda, uma autoanálise da construção do texto, o que seria classificado como
comentário sobre esse discurso. Para entender os fatos, entra em cena a memória, nada
mais do que uma observação do passado, o qual habita então no presente (presente-como-
passado). "Na presença de uma realidade extraordinária, a consciência toma lugar da
imaginação"14 (AUSTER, 2003, p. 66). O narrador cita, assim, Wallace Stevens após a
lembrança da história incrível do amigo que vivera na França. E nada mais extraordinário,
afinal, do que uma genuína coincidência. Para interpretá-la não é tão necessária a
imaginação, defende ele, mas sim a "consciência", no movimento em que a mente esvazia-
se para preencher a "sala" do livro.
Essa afirmação entra em sintonia com o que Paul Auster declara na sua introdução
ao livro True Tales of American Life (2002). Nessa coletânea de contos escritos por
moradores dos Estados Unidos, Auster diz estar procurando por "estórias verdadeiras que
soassem como ficção" (AUSTER, 2002, p. xiv), que desafiassem as expectativas. São
estórias que o fazem questionar a definição de "realidade".
A preocupação com as definições de realidades – ficcionais e factuais – é corrente
em sua obra. Seus jogos literários, através de citações de outros escritores, da
reinterpretação de livros, filmes, levam a conclusões sempre abertas, isto é, à ideia de que
há sempre distância entre as realidades. Só se fala no discurso, nunca fora dele. A vida
experimentada fora da realidade ficcional, portanto, não pode ser descoberta dentro da
ficção, a não ser já como discurso. O que se conclui é que a classificação de A Invenção da
14
Tradução minha. Texto original: "In the presence of extraordinary reality, consciousness takes the place of
imagination".
Solidão como "não-ficção" não é pertinente. Da mesma forma, considerá-la apenas como
autobiografia também é insuficiente depois de uma leitura atenta.
O acaso, por sua vez, tem uma função determinante dentro dessa obra. Ele é uma
forma de entender a experiência, os fatos que não são apenas frutos da "imaginação". O
narrador pretende observar como as coincidências se relacionam, mas, mais do que isso,
como é possível perceber a própria realidade interior através delas.
Todas as pinturas de outros a que ele se refere – Woman pouring milk, Woman Holding a
Balance, The Bedroom, por exemplo – são apenas citações dentro do texto. As imagens em
si não aparecem, estão "invisíveis". As imagens que estão no texto são as fotografias
inseridas na primeira parte, onde se veem homens sentados ao redor de uma mesa, e a
família Auster, em que o avô está ausente. Elas dialogam, ainda, com outras fotos muito
representativas, como a de Marcel Duchamp e a de Valério Vieira.
Portanto, podem-se ler, nessa narrativa, traços ainda mais complexos ligados ao
segundo tipo de comentário, aquele sobre o discurso. A Invenção da Solidão tem
características metanarrativas que levam a considerar a natureza da própria ficção, da arte,
através de um discurso próximo, em momentos, ao gênero ensaio. Não se trata apenas de
autorreflexão ou autoficção, mas de uma rede de observações acerca do conjunto de
produções artísticas. Esta é uma ficção com caráter crítico, aproximando-se dos ensaios
escritos por Auster nos anos 1970, como A Arte da Fome.
Invenção, como livro de memórias, retrato ou diário, expõe os espaços em branco,
as ausências e os silêncios que se revelam na história (e na estória). É uma narrativa que
fala de si, do outro e do eco que se pode ouvir entre ambos. Sua leitura do Quarto, de Van
Gogh, poderia muito bem aplicar-se ao próprio quarto da solidão: "E isso é tudo – não há
nada nesta sala de persianas fechadas"16 (AUSTER, 2003, p. 121).
15
Tradução minha. Texto original: "Again, his inner movements were expressed in the form of painting: an
emotional state finding representation in a work of art, as though another's solitude were in fact the echo of
his own."
16
Tradução minha. Texto original: "And that is all-there is nothing in this room with closed shutters".
REFERÊNCIAS
____________. The Book of Illusions. New York: Faber and Faber Limited, 2002.
____________. The New York Trilogy. London: Faber and Faber Limited, 2004.
____________. True Tales of American Life. New York: Faber and Faber, 2002.
BARTHES, Roland. A Morte do Autor. IN: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
BRUCKNER, Pascal. Paul Auster, or The Heir Intestate. IN: Beyond The Red Notebook.
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Pennsylvania Press, 1995. Disponível em <http://books.google.com.br>. Acessado em 30
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FREDMAN, Stephen. "How to Get Out of the Room That Is the Book?" Paul Auster and
the Consequences of Confinement. Postmodern Culture v.6 n.3, 1996. Disponível em
<http://pmc.iath.virginia.edu/text-only/issue.596/fredman.596>. Acessado em 05 de agosto
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