Ação Pedagógica Inclusiva Na Educação Infantil

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Artigo

Dossiê Bebês e Crianças com Deficiência


Original
na Educação Infantil

AÇÃO PEDAGÓGICA INCLUSIVA NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


O INDICIARISMO COMO PRINCÍPIO
Inclusive pedagogical action in early childhood education: evidentialism as a
principle

André Luís de Souza LIMA Carla Karnoppi VASQUES


Programa de Pós-Graduação em Educação Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
UFRGS Porto Alegre, Brasil
Porto Alegre, Brasil k.recuero@gmail.com
andre.lima@ufrgs.br https://orcid.org/0000-0002-3284-8749
https://orcid.org/0000-0002-5144-714x

Luciane PANDINI-SIMIANO
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade do Sul de Santa Catarina- UNISUL
Tubarão, Brasil
lucianepandini@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8378-2359

Mais informações da obra no final do artigo

RESUMO
Ante a presença de crianças que sinalizam algum tipo de impasse na aprendizagem, deficiência ou autismo,
a educação infantil é convocada a reinventar suas formas de fazer. O recorte apresentado, fragmento de
uma cena compartilha o trabalho de uma professora com um menino identificado como autista. O
paradigma indiciário propõe a observação de detalhes e acontecimentos pouco evidentes no cotidiano de
creches e pré-escolas, mas constitutivos da possibilidade de reconhecer as múltiplas formas de habitar a
instituição educativa e fazer-se criança.
PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil. Educação Inclusiva. Paradigma indiciário.

ABSTRACT
In the presence of children who show some kind of impasse in learning, disability or autism, early childhood
education is called to reinvent its ways of doing. The presented scene, a fragment of a case, shares the
work of a teacher with a boy identified as autistic. The evidential paradigm proposes the observation of
details and events that are not very evident in the daily life of day-care centers and preschools, but that
are constitutive of the possibility of recognizing the multiple ways of inhabiting the school and becoming a
child.
KEYWORDS: Early childhood education. School inclusion. Evidential paradigm.

Zero-a-Seis, Florianópolis, v. 24, n. Especial, p. 794-810, jul./jul., 2022. Universidade Federal


de Santa Catarina. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2022.e89923
INTRODUÇÃO

Há um jogo epistemológico em curso na educação cujos efeitos não são sempre


tão evidentes. São várias as formas de conhecer – a criança, o professor – e a validação
desse conhecimento não pode decorrer de atitudes exclusivamente teoréticas, que
restringem ao modelo de conhecimento científico-naturalista o fundamento da ação
pedagógica. Há algo fora das lentes dos microscópios, das neuroimagens e da
psicometria que permanece irredutível a esses termos, para além do escopo
estabelecido por seus parâmetros quantitativos.
Neste artigo, gostaríamos de expor ideias preliminares que advogam pela
importância da vida ordinária em instituições educativas como matriz de uma posição
alternativa à hegemonia do discurso médico-cientificista na educação de crianças que
apresentam impasses na aprendizagem atribuíveis a condições identificadas como
deficiências ou autismo. Descrições ordinárias, diferenciando-se das técnico-científicas,
podem conter significados mais preciosos e potentes para a ação pedagógica ante
impasses educacionais que aquelas dependentes de discursos que excluem esses
impasses. Apresentar uma cena educativa a partir dos sinais e indícios que levaram
uma professora a considerá-la importante, constitui-se como ferramenta
suficientemente robusta e de tradição bem estabelecida na literatura e na filosofia, em
termos de transmissão, formação e pesquisa. A partir disso, resta possível afirmar um
estatuto de validade análoga à do discurso cientificista para essa espécie de recurso
presente e ativo na vida cotidiana de professores na educação infantil.
Enquanto principal expositor do paradigma indiciário e proponente do
indiciarismo enquanto método, o italiano Carlo Ginzburg (1939-) estende hoje sua
influência por todas as áreas das Ciências Humanas. Sua contribuição tem efeitos, entre
outras, em pesquisas na Antropologia (CIRO, 2016), na Filosofia (OMODEO, 2019;
ZANIN, 2018) e na Psicanálise (TFOUNI, SANTOS, et al., 2016; GOMES, 2019). Nesta
última, sua relevância se estabelece a partir de uma afinidade própria com o método
psicanalítico, o qual é tomado por esse autor como cena paradigmática1 de indiciarismo.
Nesse sentido, a apresentação que aqui realizaremos busca tecer aproximações
possíveis entre sua obra e a produção de pesquisa e formação na necessária interface

1
Conforme Thomas Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas (posfácio 1969), tomamos aqui a ideia
de paradigma enquanto modelo, exemplo; e não como sinônimo de teoria.

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entre educação infantil e educação especial em sua perspectiva inclusiva. Abordaremos
aspectos biográficos e geográficos relacionados às heranças intelectuais de Carlo
Ginzburg para, em seguida, abordar os fundamentos do indiciarismo e seu lugar nas
ciências humanas. Nossa intenção é a de mostrar que é possível validar
epistemologicamente uma forma de produzir ação pedagógica não reduzida à
compreensão biomédica na natureza das relações de ensino-aprendizagem e sua
perspectiva universalista, produzindo pensamento suficientemente acurado a partir de
uma prática que reside na não especialização e na sensibilidade atenta das professoras
da educação infantil.
Para perfazer esse argumento, iniciaremos pela narrativa de uma cena de
inclusão no contexto da educação infantil que, como muitos outros, se ambienta num
espaço entre dois mundos: entre a sala e os corredores, entre o convite e o silêncio,
entre a clínica e a pré-escola. A história de Rodrigo2 guarda aquilo que há de mais
cotidiano e episódico na presença de crianças identificadas como público-alvo das ações
inclusivas. Contudo, também evidencia o trabalho altamente sofisticado e sensível3 de
uma professora que assume uma posição pacientemente ativa na escuta das
necessidades específicas de uma criança tomada por ela, desde o início, como
pertencente àquele espaço, ainda que nem sempre pudesse habitá-lo como os demais.
Na construção dessa narrativa tomamos como referência, além do conceito de
indiciarismo de Carlo Ginzburg, a obra do escritor francês Georges Perec (2009; 2010),
sobretudo seu pequeno ensaio Aproximações do quê? e o romance A vida, modo de
usar. Nesses trabalhos, vemos assentada uma alternativa às tradicionais maneiras de
construir pesquisa em educação por meio do esforço de documentação da vida
ordinária, um recurso já bastante explorado por historiadores, antropólogos e
escritores.
No Brasil, no campo da pedagogia na educação infantil, são recentes os estudos
que investigam tais questões. Podemos citar, nesse sentido, os trabalhos de Ostetto
(2008), Marques (2010) e Pandini-Simiano (2015) que, ao defenderem a escuta, a
observação e o registro no contexto educativo, sugerem a documentação pedagógica,

2
Todos os nomes são fictícios e as informações guardam o sigilo das pessoas e instituições envolvidas. A
cena narrada privilegia o contexto educacional, em detrimento de aspectos relativos ao trabalho clínico e
a cooperação entre escola e família. O método é o da construção do caso que, na perspectiva psicanalítica,
implica aquilo que pode ser construído a partir da transferência (DUNKER, 2011).
3
Aludimos aqui à ideia de sensibilidade tanto em seu sentido lato – referindo aquela pessoa capaz de
impressionar-se, comover-se, estar emocionalmente aberta – quanto em seu sentido estrito, referindo a
percepção de sensações, a acurácia dos sentidos. Esta última habilidade humana esteve sempre sob
suspeição ou descartada nas formas de conhecimento referenciadas no modelo técnico-científico das
ciências experimentais.

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um dispositivo narrativo tecido entre crianças e adultos, com fios da experiência da vida
ordinária. Trata-se de uma postura de cuidado, atenção e valorização do fragmento, do
irrisório, do menor. Atento ao mundo, o professor reconhece, valoriza e colhe
preciosidades, as quais, se não forem colhidas e narradas, correm o risco de perderem-
se. Pequenos encantamentos que recuperam do fato o possível, o que ele foi, o que
poderia ter sido e o que pode ser (Pandini-Simiano, 2015).
Dessa forma, ao construir a narrativa, buscamos dar efeito àquilo que o escritor
francês Georges Perec (2010) enuncia como a importância do ordinário, do
infraordinário, do que se dá cotidianamente e quase nunca ganha importância, porque,
justamente, a ele já estamos muito acostumados.

O que acontece realmente, o que vivemos, o resto, todo o resto, onde ele está?
O que acontece a cada dia e que sempre retorna, o banal, o cotidiano, o evidente,
o comum, o ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual, como dar
conta disso, como interrogá-lo, como descrevê-lo? Interrogar o habitual. Mas
justamente, estamos acostumados a ele. Nós não o interrogamos, ele não nos
interroga, ele parece não causar problemas, nós o vivemos sem pensar nisso,
como se ele não veiculasse nem perguntas nem respostas, como se não fosse
portador de qualquer informação. Não é nem mais condicionamento, mas
anestesia. Dormimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas onde está nossa
vida? Onde está nosso corpo? Onde está nosso espaço? (PEREC, 2010, p. 179).

A partir disso, a ideia de vida ordinária é tomada neste artigo da forma mais
intuitiva: estamos nos referindo ao modo como a cada dia meninas e meninos chegam
à instituição educativa, são acolhidos, interagem entre si, brincam, desenham, se
expressam pelas mais diversas linguagens ... Estamos falando também dos ritmos, dos
sinais, dos horários marcados, da merenda, dos intervalos, das trocas de período, das
saídas ao pátio, dos anúncios e eventos coletivos. Incluem-se também as relações com
o espaço: o tamanho das salas, a condição dos pátios, o bairro onde fica a instituição
educativa, a distância de casa medida em quarteirões ou esquinas. Há semáforos no
caminho? Quantos? Referimo-nos também ao modo como se dão os encontros, quando,
como e por quê. Além disso: a todas as coisas que são ditas a fim de descrever ou
produzir essa realidade comum (LIMA, 2018).
Objetos, espaços, tempos e trajetos são potencialmente significativos e capazes
de inscrever múltiplas e valorosas formas de pertença e partilha. Acontecimentos
minúsculos, como o ir e vir de um sapato, são indícios decisivos para marcar um lugar
comum, um lugar de vida, no qual adultos e crianças estão implicados na relação com
seus interlocutores como leitores, partícipes e intérpretes de si e do mundo.

GINZBURG, O SABER INDICIÁRIO E OS SINAIS DA VIDA ORDINÁRIA

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Os gregos contam que Teseu recebeu de presente de Ariadne um fio. Com esse
fio, Teseu se orientou no labirinto, encontrou o Minotauro e o matou. Dos rastros
que Teseu deixou a vagar pelo labirinto, o mito não fala” (GINZBURG, 2006
7, p. 7).

Nas primeiras linhas de O fio e os rastros, um de seus livros mais maduros, o


historiador e epistemólogo Carlo Ginzburg fala do mito grego em que Ariadne empresta
para Teseu um fio para que ele se guie dentro do labirinto. Dessa forma o autor retoma,
condensadas nessa imagem, considerações concernentes à sua forma de produzir
conhecimento: trata-se de uma pesquisa cujas descobertas surgem da relação entre o
fio do relato (da narração, do texto que produz quem conta a história) e aquilo que ficou
no rastro, na minúcia, no pormenor, conjunto de evidências observáveis. Tal qual para
Teseu e Ariadne, a flexibilidade desse fio, se pode imaginar, é relevante; não apenas
aceitável, mas necessária e elementar. É o que torna essa relação possível. Ginzburg
ainda está preocupado com a prova dos fatos, mas o ponto central da reflexão aqui é o
modo como se conta os fatos, pois a narrativa informa algo para além do conteúdo e
mesmo da intenção de quem conta. (GINZBURG, 2007).
Nascido na Itália, na cidade de Turim, em 1939, as figuras da mãe e do pai de
Carlo Ginzburg merecem ambos menção por sua relevância para a história, a política e
a cultura daquele país. Natália Ginzburg, foi uma das maiores romancistas da Itália.
Seu livro, Todos os nossos ontens, é considerado um clássico da literatura italiana
amplamente influente e estudado. O pai, Leone Ginzburg, por sua vez, foi um jornalista
combativo do fascismo italiano que veio a ser assassinado pela Schutzstaffel (SS, o
exército paramilitar nazista) após a invasão alemã. É considerado internacionalmente
um herói antifascista (COELHO, 2006).
A Universidade de Pisa, instituição de formação de Carlo Ginzburg, é conhecida
por ter sido, entre o fim do século XVI e início do XVII, o local de origem daquele que
viria a refundar a física por meio da matemática. Galileu Galilei, jovem com pretensões
artísticas cujos pais gostariam que tivesse sido médico, acabou tornando-se um
professor impetuoso e revolucionário. Em Pisa, desafiava a hegemonia do saber
especulativo-dedutivo aristotélico por meio da mensuração dos resultados de seus
experimentos. Enquanto matemático, tinha por inspiração intelectual não o sábio de
Estagira – cuja metafísica, ética, poética, lógica e física eram então tomadas como
fundamentos de toda a cosmologia ocidental e alinhada ao cânone da teologia cristã –,
mas Arquimedes, um outro grego antigo que viveu em Siracusa (à época, grega; hoje,
parte da Itália) e estabeleceu princípios e axiomas fundamentais ainda hoje para as

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ciências exatas. O suntuoso campanário da catedral, simbólico para o espírito
imponente dos toscanos, já era conhecido na cidade como a torre que havia se
inclinado, era também o prédio mais alto na região da universidade. Dessa torre, Galileu
fez seu laboratório. Ao que tudo indica, fez isso abandonando do alto bolas de canhão
de diferentes pesos, e medindo o tempo que levavam para atingir o solo, o que refutou
de vez o célebre pressuposto aristotélico de que a velocidade da queda de um corpo
era proporcional ao seu peso (NAESS, 2015). Enquanto espaço da formação inicial de
Carlo Ginzburg e uma universidade que, para o ocidente, tem uma importância muito
grande no que diz respeito ao surgimento da ciência moderna, Pisa é também o lugar
onde Galileu Galilei começou a se interessar por Copérnico (outro matemático). Nesse
período, a história do conhecimento estava engendrando as mudanças que a levaram a
estabelecer a observação, o experimento e, fundamentalmente, a quantificação dos
resultados como condição necessária para o estatuto da prova e, por sua vez, para a
validação de algo como ciência. A essa mudança contemporaneamente se dá o nome
de Revolução Científica. O espírito crítico de um revolucionário matemático como Galileu
voltava-se contra a falta de rigor na obtenção e no tratamento dos dados observados,
as evidências (REALE e ANTISERI, 2004); o que culminava nas inferências aristotélicas
infundadas e nos dogmas cristãos que poucos anos antes haviam levado Bruno à
fogueira. Aquilo que vinha a ser conhecido dessa forma, não mais poderia receber o
nome de ciência.
Ao mesmo tempo, a revolução científica é a revolução da ideia de saber e de
ciência. A ciência – e esse é o resultado da revolução científica, resultado que Galileu
iria explicitar com clareza absoluta – não é mais a intuição privilegiada do mago ou
astrólogo iluminado, individualmente, nem o comentário a um filósofo (Aristóteles) que
disse “a” verdade e toda a verdade, isto é, não é mais um discurso sobre “o mundo de
papel”, mas sim, investigação e discurso sobre o mundo da natureza (REALE e
ANTISERI, 2004, p. 143).
Assim, aquele que é considerado um sábio a respeito de algo, passou a ser não
mais o que possui um conhecimento privado, iniciado – como um astrólogo ou um mago
–, tampouco o universitário comentador de textos clássicos. O culto, no sentido gerado
pela revolução científica, é aquele que apresenta um saber público, controlado e
progressivo; o qual, para ser validado, precisa de contínuo controle experimental. E, à
medida que se aproxima da técnica, dos instrumentos de medida e da precisão
matemática, a experiência do cientista identifica-se com a noção de experimento,
orientado pelo princípio fundamental do rigor (REALE e ANTISERI, 2004, p. 146).

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Quatro séculos depois de Galileu, a propósito de discutir a epistemologia que
fundamenta seu trabalho de pesquisa, Carlo Ginzburg encontrou-se às voltas com a
justificativa de seu método historiográfico e, para tanto, propôs um oxímoro: rigor
flexível (GINZBURG, 1989, p. 179). A partir desse intencional e aparente contrassenso,
sua intenção é a de caracterizar as formas de conhecer que mantêm compromisso com
o rigor e a objetividade da prova, mas se utilizam de regras que não se prestam à
formalização, pois dependem de idiossincrasias imponderáveis da sensibilidade
individual, tais como faro, golpe de vista e intuição. Nem tudo está dado a todos. Por
toda a parte, há dados negligenciáveis sobre a realidade que passam despercebidos
pela maioria de nós, nossos instrumentos de medida e de produção de imagens. Menos
para os farejadores, visionários, intuitivos e aqueles que ficam atentos aos sinais.
Isso porque:

[...] o grau de cientificidade, na acepção galileana do termo, decrescia


bruscamente, à medida que das “propriedades” universais da geometria, passava-
se às “propriedades comuns do século” das escritas e, depois, às “propriedades
próprias individuais” das pinturas – ou até das caligrafias.Essa escala decrescente
confirma que o verdadeiro obstáculo à aplicação do paradigma galileano era a
centralidade maior ou menor do elemento individual em cada disciplina.
(GINZBURG, 1989, p. 163).

A pesquisadora Márcia Rodrigues (2005) ressalta o dilema das ciências humanas


surgido a partir de Galileu como ponto de partida para as reflexões de Ginzburg. A
questão a ser solucionada tem a ver com a dificultosa adesão às bases lançadas pela
Revolução Científica como critério de validação. Nas humanidades, as construções
retóricas têm sido responsáveis por tornar inteligíveis e plausíveis especulações cuja
verdade é, em grande parte, inferida, habitando o campo do provável. A avaliação sobre
tal procedimento é a de que algo sobre o próprio objeto de pesquisa parece se perder
em um enrijecimento dos critérios de verificação em busca de uma verdade
matematicamente segura e experimentalmente controlável. “[...] ou as ciências
humanas assumem um estatuto frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumem
um estatuto forte para chegar a resultados de pouca relevância” (RODRIGUES 2005, p.
5). A solução apontada por Ginzburg consiste em garantir-se em uma forma de
conhecimento cujas raízes estão lançadas desde os princípios da humanidade – nas
habilidades dos caçadores em encontrar suas presas, nos complexos códigos dos
mágicos e adivinhos – mas também muito presentes em disciplinas desenvolvidas no

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século XIX, como a história da arte, a psicanálise e uma certa forma de fazer medicina4.
A partir do indício, é possível restabelecer uma relação perdida entre natureza e cultura,
entre dado e retórica. Não se abandona a ideia de rigor, mas, afastando-se do modelo
galileano, readmite-se a flexibilidade dos sentidos na observação e, pela combinação
de técnica, sensibilidade e inferência, se chega à verdade provável, “[...] que não é
nem a verdade dos positivistas, nem a impossibilidade da verdade dos céticos, nem o
relativismo pós-moderno” (RODRIGUES 2005, p.5). Desse modo, Ginzburg nos
apresenta uma metáfora que busca representar a coerência do paradigma indiciário:

Poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios de um tapete.
Chegados a este ponto, vemo-los a comporem-se numa trama densa e
homogênea. A coerência do tapete é verificável percorrendo o tapete com os olhos
em várias direções. [...] O tapete é o paradigma que chamamos a cada vez,
conforme os contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico. Trata-
se, como é claro, de adjetivos não sinônimos que, no entanto, remetem a um
modelo epistemológico comum, articulado em disciplinas diferentes, muitas vezes
ligadas entre si pelo empréstimo de termos-chave. (GINZBURG, 1989, p. 170).

Carlo Ginzburg (1989) nos diz que o conhecimento venatório, cujo patrimônio
cognoscitivo formou-se durante os milênios em que a humanidade se dedicou à caça,
consiste na capacidade de reconstruir mentalmente e de forma complexa os
movimentos e trajetórias das presas a partir de sinais deixados por pegadas, ramos
quebrados, cheiros e tipos de sons distantes. Por esse motivo, “O caçador teria sido o
primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se
não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos.” (GINZBURG,
1989, p. 152). Sob essa perspectiva, evidencia-se a existência de um saber
caracterizado pela capacidade de dispor dados aparentemente negligenciáveis em uma
sequência inteligível, desenhando uma realidade complexa não experimentável
diretamente a não ser por aqueles que a testemunharam e foram capazes de percebê-
la (GINZBURG, 1989, p. 152).

QUANDO A VIDA CABE EM UM SAPATO

Rodrigo ingressa no atendimento psicológico encaminhado pela educação infantil.


Com quatro anos, corpo franzino e olhar errante, suas palavras são parcas e quase
estrangeiras. Um encontro difícil, afirmam professores e familiares. Rodrigo pouco

4
Ginzburg faz uma diferenciação entre um modelo semiótico (mais antigo, ligado à pesquisa dos sintomas)
e outro anatômico (de base galileana). Nesta tese, essa diferença nos interessa em consequência das
relações entre medicina e educação especial.

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parece uma criança pequena, sobretudo por performar aquilo que se tem
convencionado como Transtorno do Espectro do Autismo (TEA)5.
Beatriz, a professora responsável pelo encaminhamento, conta ser a quarta
tentativa de inclusão na educação infantil e que não deseja fracassar. Como professora
de uma rede pública municipal, compreende ser sua responsabilidade, e da instituição,
propor alternativas capazes de valorizar as diferenças, contudo, pergunta: Como
construir uma experiência educacional com um menino que parece preferir o
isolamento, que não responde às tentativas de brincar, cantar, desenhar e interagir?
Acolher o não saber fazer, os receios e o que se apresenta como esquisitice foi o
primeiro passo. A proximidade entre pré-escola, clínica e familiares torna-se parceria
imprescindível. No que se refere à ação pedagógica, a aproximação indireta, delicada e
atenta ao que chamamos vida ordinária foi o caminho inventado. Para tanto, ao
contrário de insistir na participação através das brincadeiras, rodas de conversa e outras
atividades coletivas, características da educação infantil, optou por respeitar a quase-
presença do menino, acolhendo seus rastros e restos como índices potencialmente
relacionados ao encontro com o outro e às suas singularidades.
Foi assim que habitar as margens da sala, correr no pátio e desaparecer na caixa
de areia ganharam o estatuto de lugares do Rodrigo. Toda a aproximação, por sua vez,
era mediada pelos objetos por ele recolhidos. A pedra, a areia, a pinha e as cascas de
árvores passam a marcar seu trajeto do pátio à sala; da sala à caixa de areia; da caixa
ao corredor; do corredor à janela. Atenta aos movimentos, a professora reconhece,
valoriza e colhe esses cacos de presença como fragmentos preciosos, os quais, se não
fossem colhidos e narrados, corriam o risco de perderem-se. Esse rastro era registrado
pela professora, sendo apresentado como formas possíveis de estar com, de estar perto,
de estar entre.
Uma das crianças maiores, entretanto, foi a primeira a perceber que Rodrigo,
algum tempo depois, se aproxima quando sua turma canta "o sapo não lava o pé, não
lava porque não quer…". Com a porta e as janelas abertas era possível escutar os risos,
bem como sentir a alegria diante dos tantos pés e muitos chulés. E, da janela da outra
sala, essa menina atenta pode reconhecer um Rodrigo na borda da cantoria…

5
No presente artigo não discorreremos sobre o diagnóstico e a caracterização do autismo e/ou do TEA.
Situamos, contudo, que nossa abordagem se sustenta na psicanálise contemporânea e em autores como
Jean-Claude Maleval e Éric Laurent. Desde esta perspectiva, o autismo não é uma deficiência e tampouco
uma doença, mas um modo de funcionamento subjetivo singular. Cabe aos psicanalistas e aos educadores
criarem condições favoráveis à ampliação do laço social, reconhecendo o trabalho psíquico e as saídas
inventivas construídas pelos autistas. Nesse sentido, o paradigma indiciário permite colher e valorar
indícios, sinais e acontecimentos pouco legíveis e reconhecidos na vida ordinária das escolas.

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Passado mais algum tempo, Rodrigo passa a ocupar um corredor próximo à sala
de referência como espaço privilegiado: estar entre salas e passagens apresentou-se
como um lugar possível. Nesse entre-lugares, uma cena minúscula, que facilmente
poderia ser ignorada ou "corrigida" ganhou relevo: um sapato voa para perto da sala,
para perto de Beatriz e das crianças, a cada cantoria: “o sapo não lava o pé […] mas
que chulé!” Beatriz recolhe o sapato, sem nada dizer e joga-o de volta, na direção de
Rodrigo, cantando: “o sapo mora na lagoa, não lava o pé porque não quer!” A cada dia,
mais e mais, o sapato entra na sala. Beatriz repete o mesmo ritual: recolhe o sapato e
o arremessa novamente, cantando a cantiga com as crianças. Nesse vai e vem, Rodrigo,
aos poucos e pelas bordas, entra na sala, chega mais próximo da professora, das
crianças e das vozes. Primeiro, em forma e presença de sapato. Depois, uma perna, um
braço e um olhar. Mais tarde ainda, com todo o seu corpo.
No fim do ano letivo, algo semelhante a "chuléé" foi ouvido pela professora e
pelos colegas. Rodrigo, nas palavras de Beatriz e das crianças, faz parte da turma, já
canta e até dança com o grupo. A mãe chora de emoção, pois seu pequeno aprendeu a
brincar. O pai, sapateiro, fica emocionado ao ver que o filho tem algo de seu e da
família.

RIGOR FLEXÍVEL E A AÇÃO PEDAGÓGICA INCLUSIVA

A educação especial como área do conhecimento e modalidade de ensino que


perpassa todos os níveis, etapas e modalidades (BRASIL, 2008) carrega consigo os
efeitos do discurso médico-cientificista ao propor, por exemplo, espaços e propostas
pedagógicas organizados a partir das lesões, transtornos e deficiências mesmo em
contextos escolares comuns e experiências ditas inclusivas. Contudo a perspectiva
inclusiva enseja um papel para a educação especial que não a limita a um conjunto de
técnicas de intervenção camufladas de práticas pedagógicas mais ou menos
civilizatórias, como muitas vezes se percebe esse campo. Para Lima (2022), as ciências
biomédicas, ao operarem a separação entre normalidade e anormalidade, oferecem as
bases necessárias para a distinção entre capazes e não capazes, tornando estes
inferiores àqueles. Essa forma de conhecer sustenta a persistência da opressão e da
exclusão no Brasil contemporâneo. A opressão e a exclusão, por sua vez, sustentam-se
na preeminência nas formas de produção de conhecimento reducionistas,
normocêntricas e colonizadas.

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As diretrizes inclusivas e a interseccionalidade6 procuram interrogar essa
hegemonia, introduzindo no cenário político e científico diferentes leis, políticas e
operadores conceituais voltados para o esclarecimento do capacitismo7 estrutural e
estruturante e redução da desigualdade e exclusão social e educativa. Tais diretrizes e
conceitos suscitam muitos debates e produções voltados, dentre outros, para análise
do atendimento educacional especializado, da formação de professores, do currículo,
dos processos avaliativos e de gestão. Apesar destes movimentos, o acesso à educação
em instituições de educação infantil não é uma experiência universal e a luta
anticapacitista faz-se cada vez mais necessária devido, entre outros, ao
desconhecimento epistemológico e político sobre a educação e cuidado de meninos e
meninas em instituições educativas frente às demandas inclusivas.
Ao considerar a população em seus primeiros anos de vida, percebemos com
muita clareza tal realidade. Trabalhos consistentes, como os de Meletti e Bueno (2011)
e Meletti e Ribeiro (2014) demonstraram que a educação infantil para meninos e
meninas é uma experiência possível para muito poucos, compondo cerca de 1% do total
de matrículas e concentrada sobretudo na pré-escola. Esses autores argumentam que
os baixos índices de matrícula, a hegemonia dos espaços segregados sobre a educação
inclusiva e a ausência de serviços especializados sinalizam fragilidades no processo de
implementação das políticas educacionais inclusivas. Essas constatações tornam-se
ainda mais preocupantes se considerarmos que a ausência de atendimento
especializado e a educação em instituições de educação infantil nos primeiros anos da
infância, tende a prejudicar ou impedir o desenvolvimento psíquico, cognitivo e social
de crianças em situação de desvantagem (BENINCASA, 2009; VICTOR, 2010).
É sem mais hesitação, portanto, que se faz necessário o fortalecimento da
articulação entre a educação especial e a educação infantil. O ambiente da educação
infantil configura um espaço privilegiado para o combate às desigualdades e

6
A pluralidade das experiências de opressão e desigualdade não podem ser tomadas de modo isolado, mas
precisam ser analisadas desde uma perspectiva inter-relacionada, na qual o pensamento e o conhecimento
se sistematizam em diferentes intersecções. Isso é a interseccionalidade. Kimberle Crenshaw (1989), uma
das principais pesquisadoras da teoria crítica da raça, é conhecida como propositora da noção de
interseccionalidade. No Brasil, o feminismo negro de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e, mais recentemente,
Carla Akotirene, trabalham ativamente com essa perspectiva como ferramenta de análise das opressões
sociais de identidades minoritárias.
7
Fiona Campbell (2009) descreve o capacitismo como “uma rede de crenças, processos e práticas que
produzem um tipo particular de self e de corpo (padrão corporal), o qual é projetado como o perfeito, típico
da espécie e, portanto, essencial e totalmente humano. A deficiência, então, é considerada um estado
diminuído do ser humano.” (p. 42, tradução nossa). Como forma de opressão sistemática às pessoas com
deficiência e amplamente presente em nossa cultura, o capacitismo apresenta-se de maneira estrutural,
ou seja, compõe a própria maneira de viver e produzir em sociedade.

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fortalecimento de ações que contribuam para uma sociedade menos capacitista. Desse
modo, é igualmente urgente a produção, análise e discussão de formas de
conhecimento questionadoras de práticas que se fundamentam na normalização e
reeducação dos sujeitos. Nesse sentido, consideramos que propor práticas educativas
a partir do cotidiano é fundamental para a elaboração de alternativas ao modelo
hegemônico. Como pensar criticamente a partir de outras racionalidades, senão
reconsiderando aquilo que é capaz de produzir pertencimento?
Sabemos que o processo de implementação de políticas públicas é tortuoso e
frequentemente se afasta das diretrizes propostas pela orientação que lhes deu origem.
No campo da educação inclusiva, particularmente, ainda há um caminho a ser
percorrido. Nesse ínterim, e talvez essa seja a única forma de percorrê-lo, as práticas
cotidianas precisam ser reinventadas por professores e instituições educativas,
ultrapassando a leitura de que é suficiente cobrir o que é predeterminado em termos
de preconizações legais para os serviços e atendimentos. É preciso considerá-los como
encontros. Nosso argumento, a partir da cena compartilhada, reafirma que parte desta
caminhada passa pela construção de outros aportes epistemológicos, capazes de
recolocar a figura do professor como autoridades pedagógicas, ainda que as credenciais
dessa autoridade não partilhem dos ideais de cientificidade que separa crianças ainda
muito pequenas entre normais e anormais, capazes e incapazes.
Beatriz se desloca da perspectiva hegemônica ao colher do cotidiano com Rodrigo
sinais geralmente negligenciados e conferir-lhes pertinência histórica, relacional e
pedagógica; ao reconhecer nas entradas e saídas de um sapato, nas cantigas que
marcam presenças e ausências, no espaço entre salas, corredores, olhares e vozes,
manifestações relativas ao outro, ao desejo de estar com, de estar perto em suas
múltiplas e legítimas formas. Desde este ponto de vista, a ação pedagógica inclusiva foi
elaborada a partir de uma lógica diferente daquela que prevalece na cientificidade de
praxe da educação de pessoas com deficiência. Tais processos não dependem da
racionalidade teorética, dos manuais classificatórios que, por sua vez, privilegiam aquilo
que é considerado coerente e ordeiro; eles correspondem a todas as alterações,
ocupações, inversões, invenções, usos, equívocos, sons, cheiros e texturas que utilizam
os jogos com o tempo, os espaços e os corpos na relação do outro com o outro.
Beatriz nos ensina que é preciso seguir os traços, atravessar as palavras, os
silêncios e os sentidos, interrogando-os. Fazer dessa travessia o próprio processo
educativo. Temos conseguido observar, sentir e valorizar aquilo que se apresenta na

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miudeza dos encontros? Na ordinariedade dos nossos caminhos para o trabalho, para a
sala de referência, para as universidades, entre as casas, as salas e as pessoas?
No trabalho diário com a educação de crianças com autismo ou deficiências, seja
por meio atendimento educacional especializado (AEE), seja em sala ou mesmo nas
ações junto à equipe pedagógica, percebe-se como pode ser difícil e exaustivo
sustentar, institucionalmente, práticas que respeitem os princípios inclusivos em um
sentido não restrito à letra fria das legislações e políticas. Por esse motivo, entendemos
o direito à educação e o acolhimento à alteridade como origens e fim de nossos esforços
intelectuais, formativos e de ação pedagógica. Do mesmo modo, tencionamos que esse
esforço produza a prática cotidiana dos processos inclusivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Às crianças com deficiências ou autismo dentro das instituições educacionais


infantis têm sido reservadas práticas marcadamente objetivadoras, pautadas nas
limitações e faltas. Muitas vezes, sequer considera-se a presença de atendimento
educacional especializado e a comparação e a normalização fundamentam instrumentos
pedagógicos rotuladores, invisibilizando, ou até mesmo impedindo, a construção do
sentido de pertencimento.
Estabelecida nossa argumentação, resta ao conceito de indiciarismo, em sua
relação com o pormenor cotidiano, ordinário, o papel de fundamentação da validação
epistemológica necessária para escapar à subjugação do saber e da atividade de
educador à hegemonia biomédica. Nesse sentido, o historiador italiano Carlo Ginzburg
surge como pensador investido em um projeto intelectual cuja ambição é teorizar e
sistematizar sobre a epistemologia das ciências humanas a partir do paradigma
indiciário. Seu esforço é o de pesquisar as origens muito antigas desse paradigma, a
fim de fazer perceber o modo como ele tem operado com naturalidade em diversas
disciplinas e atividades que reconhecemos como legítimas. Assim, os passos
argumentativos e a cena educativa aqui apresentados devem conduzir à compreensão
da proposta ginzburguiana como saída para o dilema entre a adesão ao modelo
cientificista incapacitante e o embotamento desautorizado; ou ainda: “sair dos
incômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo’” (GINZBURG, 1989,
p. 178).
Desde as primeiras páginas deste artigo, sinalizamos nossa ligação com aquilo
que acontece e é dito em contexto de sala referência, na vida pulsante da instituição

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educativa. Reafirmamos, portanto, nossa intuição inicial de que, se pudermos dar
atenção às cenas que cotidianamente realizam os processos de inclusão/exclusão e
expressam suas formas de entrar em contato com as instituições e práticas onde esses
processos se passam, talvez possamos também compreender melhor os âmbitos que
parecem ocultos nessas cenas, as explicações demasiado rápidas e individualizantes, a
desumanização remanescente dos períodos de internações compulsórias e
institucionalizações totalizantes.

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NOTAS
TÍTULO DA OBRA
AÇÃO PEDAGÓGICA INCLUSIVA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O INDICIARISMO COMO
PRINCÍPIO
Inclusive pedagogical action in early childhood education: evidentialism as a principle

André Luís de Souza Lima


Doutor em Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Porto Alegre, Brasil
andre.lima@ufrgs.br
https://orcid.org/0000-0002-5144-714x

Carla Karoppi Vasques


Doutora em Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Programa de Pós-Graduação em Educação
Porto Alegre, Brasil
k.recuero@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-3284-8749

Luciane Pandini-Simiano
Doutora em Educação
Universidade do Sul de Santa Catarina- UNISUL
Programa de Pós-Graduação em Educação
Tubarão, Brasil
lucianepandini@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8378-2359

ENDEREÇO DE CORRESPONDÊNCIA DO PRINCIPAL AUTOR


Rua dezessete de junho, n. 514 CEP 90110-170. Cidade Tubarão, RS, Brasil.

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
Concepção e elaboração do manuscrito: A. L. S. Lima, C. K. Vasques, L. Pandini-Simiano
Coleta de dados: A. L. S. Lima.
Análise de dados: A. L. S. Lima, C. K. Vasques, L. Pandini-Simiano
Discussão dos resultados: A. L. S. Lima, C. K. Vasques, L. Pandini-Simiano
Revisão e aprovação: A. L. S. Lima, C. K. Vasques, L. Pandini-Simiano

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- NUPEIN/CED/UFSC. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de
responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da
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HISTÓRICO – uso exclusivo da revista


Recebido em: 30-06-2022 – Aprovado em: 08-07-2022

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