2023 - Museu Foto e Arquivo ThaisLopesCamargo - VCorrig
2023 - Museu Foto e Arquivo ThaisLopesCamargo - VCorrig
2023 - Museu Foto e Arquivo ThaisLopesCamargo - VCorrig
São Paulo
2023
Thais Lopes Camargo
Versão Corrigida
São Paulo
2023
1
2
Aprovado pela orientadora
CAMARGO, Thais Lopes. Museu de arte, fotografia e arquivo: a atuação de Claudia Andujar
e George Love no MASP (1971-1976), 2023. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2023.
Banca Examinadora:
4
À Dona Santa (in memorian) com quem aprendi
que devagar se vai ao longe e à Maria que me
ensina sobre continuidade.
5
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pelo financiamento sem o qual a realização desta pesquisa não teria sido possível.
À Helouise Costa, pela generosidade nas orientações, pelo rigor nas revisões e pela inspiração
através de suas pesquisas.
Aos professores Ricardo Fabbrini e Mirtes Marins de Oliveira, pelas considerações no exame
de qualificação que muito contribuíram para o encaminhamento da pesquisa. Às professoras
Ana Maria Mauad e Ana Paula Simioni pelos fecundos apontamentos na banca de defesa da
dissertação.
Ao Centro de Pesquisa do MASP, pela acolhida nos anos em que fiz parte da equipe do núcleo.
À Maíra, Romeu, Luiza, Tamires, Anna Clara, Marina, Júlia, Alice pelo aprendizado
compartilhado. À Bruno e Adriana pelo envio dos arquivos digitais. À Ivani pela valiosa
entrevista.
À Renata, José Maurício, Vitor e Lúcia, que estiveram mais próximos durante o período do
mestrado, pelas trocas.
À Laís e Juliana pelas muitas horas de conversa e escrita conjunta, mesmo que virtual, enquanto
vigorou o isolamento da pandemia.
Ao trio maravilha Danieli, Patrícia e Erika, por estarem sempre atentas e fortes, e por seguirmos
renovando nossas alianças afetivas durante tanto tempo.
6
Ao meu irmão Thiago, com quem compartilho a paixão e que sem saber me colocou no
caminho da pesquisa.
Aos meus pais, Caio e Célia, por me incentivarem e respeitarem minhas escolhas.
À todas, todos e todes amigues com quem teço redes de afeto, a convivência com vocês é o
que sustenta meus passos.
7
Se houvesse
um museu
de momentos
um inventário
de instantes
um monumento
para eventos
que nunca aconteceram
se houvesse
um arquivo
de agoras
um catálogo
de acasos
se houvesse
um acervo
de acidentes
um herbário
de esperas
um zoológico
de ferozes alegrias
se houvesse
um depósito de detalhes
um álbum
de fotografias
nunca tiradas
8
RESUMO
Esta dissertação visa investigar o processo de assimilação da fotografia pelo Museu de Arte de
São Paulo (MASP) a partir do estudo de caso da atuação conjunta de Claudia Andujar e George
Love no museu, entre 1971 e 1976. Neste período, além de se dedicarem à fotografia, eles
realizaram pesquisas com audiovisuais e novas tecnologias de imagem que deram origem a
propostas em consonância com experiências do campo da arte contemporânea. Enquanto
profissionais vinculados ao MASP, Andujar e Love organizaram exposições, tais como a
Grande São Paulo/76, ministraram cursos no Laboratório de Fotografia, intermediaram
negociações para realização de eventos, trocaram correspondência com importantes fotógrafos
e figuras públicas da época e fundaram o Departamento de Fotografia do museu. A partir da
documentação disponível no Arquivo Histórico do MASP, foi possível recuperar a atuação
conjunta de Claudia Andujar e George Love, bem como a sua reverberação no debate sobre a
entrada da fotografia nos museus de arte. A relação de ambos com Pietro Maria Bardi, então
diretor do MASP, também foi investigada e traz elementos para o entendimento dos jogos de
poder envolvidos nesse processo. Os estudos de autores como Christopher Phillips, Rosalind
Krauss, Douglas Crimp e Philippe Dubois, constituíram relevantes referenciais teóricos. Os
resultados da pesquisa contribuem para a compreensão de um período no qual a fotografia se
inseriu de modo definitivo na agenda expositiva e nos acervos dos museus de arte da cidade de
São Paulo e aponta para a complexidade das relações entre museus de arte, fotografia e arquivo
na década de 1970.
9
ABSTRACT
This dissertation aims to investigate the process of assimilation of photography by the Museu
de Arte de São Paulo (MASP) based on the case study of the collaborative work of Claudia
Andujar and George Love at the museum, between 1971 and 1976. At this particular moment,
in addition to dedicating themselves to photography, they carried out new image technologies
and audiovisual researches that gave rise to proposals in accordance with experiences in the
field of contemporary art. As professionals connected to MASP, Andujar and Love organized
exhibitions, such as Grande São Paulo/76, taught courses at the Photography Laboratory,
mediated negotiations for holding events, exchanged correspondence with important
photographers and public figures of the time and founded the museum's Department of
Photography. From the documentation available at the Historical Archive of MASP, it was
possible to recover the collaborative work of Claudia Andujar and George Love, as well as its
reverberation in the debate about the entrance of photography into art museums. Their
relationship with Pietro Maria Bardi, then director of MASP, was also investigated and
provides elements for understanding the power games involved in this process. Studies by
authors such as Christopher Phillips, Rosalind Krauss, Douglas Crimp and Philippe Dubois
constituted relevant theoretical references. The research results contribute to the understanding
of a period in which photography was definitively inserted in the exhibition agenda and in the
collections of art museums in the city of São Paulo, and points to the complexity of the
relationships between art museums, photography and archives in the 1970's.
10
SUMÁRIO
Introdução…………………………………………………………………………………...12
Capítulo 01 - Fotografia e arte: da busca pela especificidade à expansão dos limites do
fotográfico………………………………………………………………………….………..25
1.1 - O MoMA e o Departamento de Fotografia………………………………….……….27
Anexos…………………………………………………………………….………………..253
11
Figura 01: Fotografia da série através do Fusca, Claudia Andujar, 1976. Fonte: Website da Galeria Vermelho.
Introdução
Entre 2014 e 2018, tive a oportunidade de integrar a equipe do Centro de Pesquisa do MASP
atuando nas diversas frentes de trabalho do departamento, tais como a organização,
conservação, digitalização, pesquisa e catalogação dos acervos arquivísticos e bibliográficos
salvaguardados pelo museu. A vivência nos labirintos das reservas técnicas nos impulsiona a
refletir acerca dos desafios enfrentados no cotidiano de profissionais que lidam tanto com a
história quanto com a memória da instituição e da arte produzida no Brasil. Alguns impasses
são potencializados quando nos deparamos com itens, como a fotografia, que apresentam certa
12
porosidade em suas fronteiras de classificação e exigem um alargamento da compreensão
acerca de sua natureza e procedência. Compreender seus contextos de produção consiste em
uma tarefa fundamental para conferir-lhes significado. Desta maneira alertamos para a
imprescindível troca de conhecimentos na construção de práticas em campos interdisciplinares
como o de arquivos produzidos em e por museus de arte, considerando as suas particularidades
e a necessidade de se discutir a fundo e de maneira bem fundamentada a formação de acervos
institucionais.
Foi através desta experiência profissional que tomei conhecimento de algumas imagens de
George Love. A coleção denominada de Arquivo de Referência foi a primeira entre os
diferentes fundos e coleções arquivísticas do museu que estive incumbida de cuidar. Uma
grande parte dos documentos abrigados pelo Arquivo de Referência estão organizados por
dossiês de artistas nacionais e internacionais. No dossiê dedicado a George Love constam
algumas folhas de print files2 que armazenam diapositivos de sua autoria doados pelo próprio
artista, em 1993, ao MASP. Surgiram, assim, questionamentos sobre as motivações tanto do
artista para a doação das obras, quanto das razões de estarem localizadas no Arquivo. À medida
em que me aproximava da produção de Love revelavam-se os vínculos de sua trajetória com a
de Claudia Andujar e com a história institucional do MASP.
Meu contato inicial com as fotografias de Andujar se deu pelo viés das Ciências Sociais e das
imagens dos Yanomami. Em 2010, enquanto frequentava o Grupo de Estudos da Imagem da
1
MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Arquivos de museus de arte e pesquisa: o Grupo de Trabalho Arquivos de
Museus e Pesquisa. In: BEVILACQUA, Gabriel; MARINGELLI, Isabel. I Seminário Serviços de Informação
em Museus. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010. Disponível em:
http://biblioteca.pinacoteca.org.br:9090/bases/biblioteca/07498.pdf acesso em 04/10/2022.
2
Print files são folhas duplas feitas de polietileno que se tornaram padrão para o arquivamento de negativos,
slides e diapositivos.
13
UNESP/Marília, formado por professores e alunos dos cursos de Filosofia, Ciências Sociais,
Biblioteconomia e Arquivologia, pude participar da organização da sessão de vídeos
etnográficos da XII Jornada de Ciências Sociais. A homenageada daquela edição foi a
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, cuja obra se debruça sobre questões da história dos
direitos indígenas e do indigenismo no Brasil, da ocupação da Amazônia, áreas de preservação
e sustentabilidade, e dos direitos intelectuais de povos tradicionais. Algumas imagens de
Claudia foram tema de uma das comunicações apresentadas no evento e me impactaram tanto
pela força plástica de seus retratos quanto pela percepção de que algo que estava sendo
transmitido ali me escapava.
O trabalho de Claudia Andujar e as imagens dos Yanomami são hoje amplamente conhecidos3.
No âmbito da antropologia, as fotografias de Andujar dispuseram de próspera acolhida por sua
mobilização pelos direitos indígenas e por seu caráter documental. No entanto, há em sua
produção da artista um diálogo com o próprio meio e com processos específicos do fazer
fotográfico que escapam às análises estritamente antropológicas. Do mesmo modo,
investigações puramente artísticas ou estéticas também não alcançam a complexidade
envolvida nos processos de captação, edição e circulação de suas imagens. No caso de Claudia,
a prática documental e a estética experimental estão radicalmente amalgamadas e, de certa
forma, acompanham a trajetória da artista.
A produção de Andujar tem sido revisitada de forma recorrente nos últimos vinte anos, quando
ela passou a elaborar novas obras a partir de seu arquivo fotográfico pessoal, que incluem
imagens captadas, em sua maioria, durante as décadas de 1970 e 1980. A valorização da
produção de época de Andujar, como o livro de fotografias Amazônia, cuja autoria é
compartilhada com George Love, veio a reboque de sua consagração artística mais ampla,
detectada principalmente a partir dos anos 20004. Algumas das exposições realizadas neste
3
Entre suas exposições individuais mais conhecidas, cujos catálogos foram importantes fontes para esta
dissertação, estão: A vulnerabilidade de ser, na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2005), Claudia Andujar -
No lugar do outro, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (2015) e Claudia Andujar - A luta Yanomami,
no Instituto Moreira Salles de São Paulo e do Rio de Janeiro (2018-2019). Esta última mostra ainda excursionou
por instituições da Europa, passando por cinco diferentes países. ANDUJAR, Claudia. A Vulnerabilidade do ser.
São Paulo: Cosac & Naify, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2005 (catálogo de exposição). NOGUEIRA,
Thyago (org.). Claudia Andujar: no lugar do outro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2015 (catálogo de
exposição). NOGUEIRA, Thyago (org.). Claudia Andujar: a luta Yanomami. São Paulo: IMS, 2018 (catálogo
de exposição).
4
Entre 2003 e 2007, Claudia foi contemplada com a Bolsa de Arte da extinta Fundação Vitae para organizar seu
arquivo e passou a ser representada pela Galeria Vermelho. Em 2005, realizou a exposição A vulnerabilidade do
ser na Pinacoteca. Destacamos também, ainda no final da década de 1990, sua participação na XXIV Bienal
Internacional de São Paulo, cujo projeto expográfico apresentou suas imagens fixas com ambiência sonora.
14
período exibiram imagens suas antes mesmo do encontro com os Yanomami, como é o caso
de Claudia Andujar - No lugar do outro, organizada pelo Instituto Moreira Salles, em 2015.
Muitas dessas fotografias apresentavam um forte teor experimental, nas quais é possível
identificar mudanças nos materiais e técnicas utilizadas por ela até então na captação e edição
das imagens, e permaneceram inéditas ou fora de circulação desde, pelo menos, 19715. Tais
imagens pareciam revelar uma espécie de sinergia entre a radicalidade das pesquisas
fotográficas de Love e Andujar, mesmo que eles tenham chegado a resultados distintos.
Na fase inicial de coleta de dados para esta dissertação detectamos uma grande lacuna em
relação à entrada oficial da fotografia no acervo do MASP. O museu registrou oficialmente a
entrada da primeira fotografia em sua coleção de obras de arte apenas em 1989, na Coleção de
Fotografia e mais sistematicamente a partir de 1991, por meio da Coleção Pirelli/MASP de
Fotografia. No entanto, quando recorremos ao Arquivo Histórico6 da instituição percebemos
uma grande presença da fotografia em exposições e atividades do museu desde sua fundação,
em 1947. No banco de dados do Arquivo Histórico constam mais de 160 exposições
fotográficas realizadas pelo museu entre os anos de 1970 e 1990, número consideravelmente
superior em relação aos anos anteriores7.
A investigação das exposições realizadas pelo MASP que envolveram a fotografia no início da
década de 1970, apontou para o relevante papel desempenhado por Claudia Andujar e de
George Love na época. As mostras apresentadas por eles, baseavam-se em audiovisuais
montados com projetores de slides em carretel, combinados com sons de fitas cassete,
tecnologia característica da época, que lhes permitiu sobrepujar os limites do estritamente
5
Entre elas estão as fotografias da série Sônia apresentadas em formato audiovisual no MASP e publicadas pela
Revista de Fotografia em julho de 1971. Trataremos destas imagens no segundo capítulo desta dissertação.
6
A noção de arquivo utilizada neste texto parte do princípio que, o aqui denominado Arquivo MASP (que
abriga o Arquivo Histórico, Arquivo Fotográfico, entre outros fundos e coleções doados ou acumulados ao
longo da história da instituição), localizado no Centro de Pesquisa, apresenta a particularidade de ser um arquivo
produzido por e abrigado em um museu de arte e, portanto, atravessado pelas atividades-fim da instituição, em
última instância, a realização de exposições. Para a execução de tais atividades são mobilizados diversos agentes
dentro da estrutura do museu que se refletem na documentação acumulada, gerando uma interação entre os
documentos produzidos pelos diferentes departamentos acionados. Os conceitos assumidos aqui derivam do viés
interdisciplinar, apoiados em um debate mais amplo sobre arquivos de museus de arte, que por vezes se afastam
e em outras convergem com o do campo da arquivística clássica. Recomendamos a leitura dos anais dos
Seminários Internacionais Arquivos de Museus de Arte, que reuniram importantes instituições culturais, em
torno de discussões de ordem prática e teórica sobre o tema, em especial a quarta edição, que tratou sobre a
formação dos profissionais que atuam nesta área. MAGALHÃES, Ana Gonçalves (coord.). Anais do IV
Seminário Internacional Arquivos de Museu e Pesquisa: A formação interdisciplinar do documentalista e do
conservador. São Paulo: Grupo de Trabalho Arquivos de Museu e Pesquisa, 2017.
7
No período anterior, de 1947 a 1969, foram realizadas 7 mostras fotográficas. Dados obtidos em consulta ao
banco de dados local do Arquivo Histórico do MASP.
15
fotográfico, por meio de práticas que apresentavam consonância com experiências artísticas
que vinham se desenvolvendo no campo da arte8. Além disso, atuaram conjuntamente na
organização de exposições e cursos que culminaram na criação de um Departamento de
Fotografia para o museu. Ao constatar que a fase de transição do fotojornalismo à militância
empreendida por Andujar durante os anos 1970, tinha ligações com sua atuação no MASP e
com os experimentalismos compartilhados entre ela e George Love, percebemos que havia a
oportunidade de realizar a investigação de um tema pouco explorado.
O MASP desde sua fundação, em 1947, acolheu modalidades artísticas consideradas não
consagradas em sua agenda expositiva, desde aquelas ligadas ao fazer manual até as artes
técnicas e aplicadas. Desse modo, mesmo constituindo seu acervo a partir das chamadas obras-
primas da pintura e escultura da história da arte ocidental, orientou sua programação pela
diversidade de áreas de interesse, incluindo o design, a tapeçaria, as artes negra e indígena9, a
moda, a arte naif, e a fotografia. Ao longo de sua história, o MASP apresentou muitas mostras
de fotografia e investigar os contextos, as imagens e os discursos institucionais que as
legitimaram foi o foco de nosso estudo. A assimilação da fotografia por museus de arte
apresenta muitas imbricações e a complexidade dos processos envolvidos decerto motivou o
desenvolvimento da pesquisa.
Neste texto, nos alinhamos ao sentido proposto por Ana Gonçalves Magalhães, atual diretora
do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), no qual defende
que o acervo de um museu de arte é composto por sua coleção de obras de arte, sua biblioteca
e seus fundos arquivísticos10. No entanto, a maleabilidade do termo e sua permeabilidade com
o termo “arquivo”, detectadas durante a pesquisa e assumidas ao longo da dissertação, nos
interessam por evidenciarem os trânsitos que emergiram ao analisarmos tanto a coleção de
obras de arte, via de regra denominada de acervo, quanto o Arquivo do MASP pelo viés do
fotográfico.
8
Nos baseamos nas assertivas de Philippe Dubois, cujas análises abarcam pontos de hibridação da fotografia
com o cinema e as artes visuais, e originaram o que denominou de “efeito cinema na arte contemporânea”.
DUBOIS, Philippe. Um ‘efeito cinema’ na arte contemporânea. In: COSTA, Luiz Cláudio da. Dispositivos de
registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; FAPERJ, 2009, p. 179-216.
9
Cito aqui o mesmo nome dado às exposições apresentadas em 1949 e 1953, respectivamente Arte Indígena e
Arte Negra, tal qual aparece na lista de exposições do Arquivo Histórico do MASP. Sabemos hoje da
insuficiência e até mesmo inadequação dessas classificações gerais, no sentido de que sugerem uma experiência
homogênea e universal do ser negro ou indígena.
10
MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Arquivos de museus de arte e pesquisa: o Grupo de Trabalho Arquivos de
Museus e Pesquisa. In: BEVILACQUA, Gabriel; MARINGELLI, Isabel. I Seminário Serviços de Informação
em Museus. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010. Disponível em:
http://biblioteca.pinacoteca.org.br:9090/bases/biblioteca/07498.pdf acesso em 04/10/2022.
16
Diante deste cenário, que mobiliza questões sobre história da fotografia, história da arte e
história das mídias, o objetivo principal desta dissertação foi recuperar a atuação de George
Love e Claudia Andujar no MASP, entre 1971, ano em que expõem pela primeira vez, até 1976,
quando encerram suas contribuições em conjunto no museu. Neste ano, Andujar se desliga das
atividades institucionais, abandona o circuito artístico e mergulha de maneira definitiva na
vivência entre os Yanomami (Figura 01), com os quais estava envolvida desde o início daquela
década. A hipótese que defendemos é que suas propostas audiovisuais para exposições do
MASP são representativas de um momento de intensas mudanças no contexto social e nas
práticas artísticas, a partir do qual passa-se a adotar premissas do fotográfico como forma de
expressão em vertentes da arte conceitual e experimental, principalmente. Tal fenômeno
ocasionou uma inflexão no campo das artes característica da passagem da arte moderna para a
contemporânea11.
Autores como os críticos de arte estadunidenses Douglas Crimp e Rosalind Krauss, constituem
importantes referências para esta dissertação. Os seus estudos recorreram, ainda na época, a
tópicos específicos suscitados pela assimilação da fotografia aos museus de arte para refletir
sobre os critérios e definições para a formação de acervos e apresentação de exposições em
11
O pesquisador Ricardo Fabbrini assinala a controvérsia do termo contemporâneo a partir de autores como
Giorgio Agamben e Georges Didi-Huberman, no entanto, assume a convenção a fim de identificar os processos
e transformações ocorridas nos anos 1960 e 1970, de tensionamento das categorias tradicionais da arte,
característicos da transição da arte moderna à arte contemporânea. É importante salientar que a inclusão de
novas práticas artísticas no sistema de arte não significa necessariamente o abandono de suas expressões
tradicionais. Esta dissertação está em consonância com o autor. FABBRINI, R. Anos 1970: da vanguarda a pós-
vanguarda. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 1, n.3, p.205-216, set. 2017. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8662237/23376 acesso 20/04/2019.
17
instituições de arte moderna e contemporânea, questionando as bases epistemológicas do
próprio conceito de arte. Ambos autores, embasados pela teoria foucaultiana, analisam
operações discursivas empreendidas pelo MoMA com objetivo de legitimar a fotografia como
arte e justificar sua presença no museu enquanto arte moderna.
Philippe Dubois, crítico francês de cinema e audiovisual, em seu livro O ato fotográfico, escrito
em 1981, já apontava para a presença maciça da fotografia entre as artes visuais e para o campo
aberto e móvel das pesquisas acerca da fotografia e do ato de fotografar. Em seus textos mais
recentes, Dubois abandona perspectivas ontológicas em relação à fotografia, dedicando-se às
hibridações entre as linguagens técnicas e tecnológicas, suas interações com as artes visuais e
os deslocamentos detectados por ele no cenário contemporâneo. A assimilação das novas
tecnologias e das linguagens audiovisuais às práticas artísticas contemporâneas, colocam
fotografia, vídeo, cinema e artes visuais em um campo de convergência que nos oferece,
conforme aponta Dubois, uma “pequena entrada lateral, capaz de revelar coisas inéditas”12.
Esta dissertação vincula-se à linha de pesquisa desenvolvida pela Profa. Dra. Helouise Costa,
acerca da legitimação da fotografia e sua incorporação a acervos de museus de arte. Seu estudo
sobre a experiência do MAC USP13 abarcou também outras duas instituições paulistas, como
o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP) e a Bienal Internacional de São Paulo.
Costa investiga a inserção da fotografia e das linguagens audiovisuais presentes nas mostras e
nos acervos, bem como o fenômeno de diluição das fronteiras entre as categorias tradicionais
da arte.
12
DUBOIS, Philippe; BORGES, Cristian. A imagem-memória ou a mise-en-film da fotografia no cinema
autobiográfico moderno. Revista Laika, v. 1, n. 1, p. 1-37, 2012.
13
COSTA, Helouise. Da fotografia como arte a arte como fotografia: a experiência do Museu de Arte
Contemporânea da USP na década de 1970. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 131-173, 2008.
18
décadas de 1960 e 1970, efetivou-se por meio da arte conceitual, pop art e vertentes artísticas
de caráter marcadamente experimental. Segundo Costa, foi através do acolhimento deste tipo
de prática que o museu “acabou abrindo espaço, talvez inadvertidamente em muitos casos, a
uma outra fotografia que não aquela considerada artística pelos cânones do modernismo.”14 Na
terceira estratégia, observada a partir dos anos 1980 e 1990, os museus de arte passaram a
valorizar um modelo pictórico para a fotografia contemporânea calcado no conceito de photo
tabelau, que dialogava com a pintura Renascentista e sua base na perspectiva, com forte apoio
da crítica especializada. Tal estratégia incorpora os usos híbridos dos anos anteriores ao mesmo
tempo em que mantém as premissas modernistas.
Bardi tinha um interesse antigo pela fotografia, que já o acompanhava antes mesmo
de sua vinda para o Brasil. Isso motivou-o, desde os primeiros anos do Museu de
Arte de São Paulo, a implantar uma agenda regular não só de exposições, mas
também de cursos, palestras, lançamentos de livros e outros eventos ligados à
fotografia.16
No entanto, apesar de ter realizado exposições, cursos e palestras sobre diversas tendências
fotográficas, a movimentação em torno da fotografia não culminou na entrada oficial da
fotografia como obra de arte durante toda a gestão de Pietro Maria Bardi, de 1947 a 1990. A
coleção de obras de arte, portanto, é insuficiente para compreender os expedientes internos que
abriram, ou não, espaço para o fotográfico. A problemática da assimilação tardia da fotografia
à coleção de obras de arte do museu, em contraste com o grande número de exposições e
atividades acerca da linguagem fotográfica, apontava para as substanciais contribuições que a
pesquisa do e no Arquivo do MASP poderia trazer para compreendermos a amplitude do
fotográfico no museu.
14
COSTA, Helouise. Op. cit., 2008, p.134.
15
Pietro Maria Bardi (1900-1999) é o diretor fundador do MASP, principal articulador do acervo de pinturas e
esculturas, responsável pela programação de mostras e atividades realizadas pelo museu, professor de cursos e
autor de muitos livros sobre história da arte brasileira.
16
COSTA, Helouise. Op. cit., 2008, p.163.
19
MASP. Nos interessou particularmente a possibilidade de recombinação dos vestígios
encontrados neste Arquivo, durante a nossa pesquisa para esta dissertação, na tentativa de fazer
emergir novas interpretações e significados acerca dos eventos passados ligados à afirmação
da fotografia como arte no museu. Neste sentido, a proposta da pesquisadora e curadora
Cristina Freire em seu artigo Archive as a battlefield17, de analisar o Arquivo em uma dupla
chave, ou seja, tanto como um lugar quanto como um discurso, trouxe valiosa contribuição
metodológica. Tal procedimento nos permitiu articular as lacunas constitutivas do Arquivo do
MASP, bem como estabelecer pontes através da análise expandida das informações ali
contidas, tanto visuais quanto textuais. A autora salienta ainda a relevância do papel dos
arquivos para a história das exposições18. Foi nesta perspectiva que desenvolvemos nossas
indagações, a partir de abordagens contemporâneas sobre arquivo, compreendendo-o
simultaneamente enquanto lugar da memória institucional e da memória enquanto construção
histórica que se refaz no presente a partir de novas miradas.
Mais do que fonte de acesso a eventos passados, o Arquivo tornou-se, no decorrer desta
pesquisa, propulsor de reflexões acerca de práticas que viabilizaram a construção de
interpretações históricas sobre a arte brasileira. Os eventos e exposições representados nos
documentos, e as operações discursivas que os legitimaram têm reverberações significativas
nas categorias de assimilação das práticas artísticas no circuito hegemônico nacional e
internacional. Nossa análise não intencionou abordar a metodologia desenvolvida para a
organização do Arquivo, mas sim recuperar práticas, critérios e mudanças de status dos
próprios documentos, evidenciando sua dinâmica sem tentar aplicar conceitos fixos que
engessassem as mobilidades que lhes são inerentes.
Há, no entanto, importantes parâmetros sobre o tema dos arquivos, e em particular dos arquivos
de museus de arte, que nortearam as reflexões aqui apresentadas. As elucubrações propostas
pelos Seminários Internacionais de Arquivos de Museus e Pesquisa, reunidas em seus anais,
constituíram referências relevantes quanto aos conceitos, práticas e funções do arquivo na
estrutura dos museus. Da primeira edição do evento, em 2009, resultou a criação do Grupo de
Trabalho de Arquivos em Museus e Pesquisa, que o MASP integrou por alguns anos, junto a
outras instituições museológicas da cidade de São Paulo. O objetivo principal do grupo era
17
FREIRE, Cristina. Archive as battlefield. In: Arnhold, H.; Forhne, U.; Wagner, M. (ed.). PUBLIC
MATTERS: Debates and documents from the sculpture projects archive. Münster: Museum für Kunst und
Kultur, 2020, p. 168. Disponível em: https://www.academia.edu/42097148/Archive_as_battlefield acesso em
07/10/2021.
18
Ibid., p. 168.
20
debater a complexidade conceitual e metodológica no entendimento crítico dos arquivos de
museus, além de discutir políticas institucionais de informação e documentação. Entre os
temas discutidos estavam o arquivo como instrumento de gestão, fronteiras entre arquivos e
acervos museológicos e bibliográficos, e formas de integração e inter-relação entre arquivos e
coleções no museu19, entre outros.
Ao refletir sobre o andamento deste Grupo de Trabalho, Ana Gonçalves Magalhães20, então
responsável pela Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do MAC USP, aponta para a
detecção de uma cisão entre as instâncias de curadoria e pesquisa e as de gestão documental
no interior das próprias instituições. Segundo Magalhães, esta cisão revela sobretudo “uma
discrepância entre a estrutura do museu e sua atualização frente às questões que emanam das
práticas artísticas”21. A autora pontua que tais práticas contemporâneas nos convocam a:
(...) uma nova leitura da estrutura museal, que antes de tudo implica a reavaliação e
redefinição daquilo que queremos dizer com o termo ‘acervo’ dentro do museu. Nesse
sentido, o acervo de um museu compõe-se de sua coleção de obras de arte, de seus
fundos de arquivo e de sua biblioteca, já que estas três estruturas estão contempladas
no modelo mais recorrente que temos de museu. No que diz respeito ao museu de arte
contemporânea, algumas proposições artísticas fogem às categorias tradicionais de
obra de arte e desafiam a instituição a compreendê-las em sua estrutura convencional
de classificação.22
19
Em 2011, segundo os anais do II Seminário Internacional Arquivos de Museus e Pesquisa, faziam parte do
Grupo de Trabalho de Arquivos de Museus e Pesquisa doze instituições museológicas da cidade de São Paulo: a
Bienal de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo (CCSP), a Cinemateca Brasileira, o Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB USP), o MAC USP, o MAM SP, o MASP, Museu Paulista (MP
USP), o Museu Afro Brasil, o Museu Lasar Segall, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Sistema Estadual de
Museus (SISEM SP). Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/arquivo/2011/03.asp
acesso em 04/10/2022.
20
Ana Gonçalves Magalhães apresentou os primeiros resultados do Grupo de Trabalho de Arquivos de Museus
e Pesquisa, em um outro evento relevante para as áreas envolvidas: o Seminário Serviços de Informação em
Museus, organizado pela Biblioteca Walter Wey e pelo Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca do
Estado de São Paulo, em sua primeira edição, realizada em 2010. MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Arquivos de
museus de arte e pesquisa: o Grupo de Trabalho Arquivos de Museus e Pesquisa. In: BEVILACQUA, Gabriel;
MARINGELLI, Isabel. I Seminário Serviços de Informação em Museus. São Paulo: Pinacoteca do Estado de
São Paulo, 2010. Disponível em: http://biblioteca.pinacoteca.org.br:9090/bases/biblioteca/07498.pdf acesso em
04/10/2022.
21
Ibid., p. 117.
22
Ibid., p. 117.
21
a interpretação de Magalhães mostrou-se adequada, tendo em vista a porosidade da fotografia
e a complexidade dos processos de sua assimilação em museus de arte.
Por outro lado, no campo da arquivística, há também considerações que nos permitem entender
questões de ordem semântica no trato com os arquivos. Segundo o Dicionário Brasileiro de
Terminologia Arquivística, elaborado pelo Arquivo Nacional, o termo arquivo pode assumir
pelo menos quatro diferentes sentidos.
Assim, nesta dissertação, quando nos referimos ao Arquivo MASP, estamos nos remetendo a
todo o acervo arquivístico abrigado pelo museu, desde a instalação predial onde funcionam os
arquivos; já por Arquivo Histórico e Arquivo Fotográfico, nos remetemos a conjuntos
específicos que integram tal acervo. Centro de Pesquisa, por sua vez, refere-se ao núcleo ou
serviço responsável pelo processamento técnico dos documentos dentro do museu.
É imprescindível ressaltar ainda que a finalização desta pesquisa foi impactada pela pandemia
de COVID-19 e consequente isolamento recomendado pela Organização Mundial da Saúde,
que acarretou o fechamento de museus, bibliotecas e arquivos. Foi preciso, portanto, adotar
estratégias que propiciassem o melhor aproveitamento possível das informações levantadas até
março de 2020. Neste sentido, o resultado final, expresso no texto a seguir, apresenta as marcas
deste período histórico. O remanejamento de um dos objetivos propostos, a saber, a análise de
procedência das fotos alocadas no Arquivo Fotográfico do MASP, foi parcialmente cumprido
e os resultados apresentados devem ser entendidos como uma investigação preliminar. Para
tanto, foi fundamental a colaboração da equipe do Centro de Pesquisa no envio de reproduções
digitalizadas. Diante deste cenário, mergulhamos com maior profundidade nos dados coletados
sobre as exposições e atividades realizadas por George Love e Claudia Andujar no museu e,
como consequência, revelou-se uma relevante contribuição para a compreensão desta etapa da
trajetória de ambos, bem como para a reflexão acerca da assimilação da fotografia por museus
23
ARQUIVO Nacional (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2005. Disponível em: https://simagestao.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Dicionario-de-
terminologia-arquivistica.pdf acesso em 04/10/2022.
22
de arte.
23
Ao final da dissertação, apresentamos em anexo uma lista das exposições de fotografia que
constam no Arquivo do MASP, com o intuito de incentivar novas investigações sobre o tema.
24
Capítulo 01
24
COSTA, Helouise. Op. cit., 2008, p.133.
25
PHILLIPS, Christopher. The judgment seat of photography. October, v. 22, 1982, p. 27-63.
25
assimilação da fotografia pelo museu de arte. Além deste texto, tomaremos como base o livro
The Power of Display de Mary Anne Staniszewski26 e o arquivo de exposições do MoMA,
disponibilizado no site oficial do museu, para examinarmos algumas de suas exposições de
fotografia em paralelo com sua história institucional.
Na sequência, traçaremos um breve histórico da fundação do MASP, nos apoiando nos estudos
de Maria Cecília França Lourenço, em seu livro Museu acolhem moderno, e nas trajetórias de
Pietro Maria Bardi, Lina Bo Bardi e Assis Chateaubriand27, focando principalmente em suas
experiências com as mídias impressas, com vistas a compreender a abertura ou não do museu
para a incorporação da fotografia. Além disso, analisaremos as exposições de fotografia
realizadas entre 1947 e 1967, das quais levantamos informações principalmente por meio da
investigação do Arquivo Histórico do MASP e de biografias recentes dos fotógrafos citados.
26
STANISZEWSKI, Mary Anne. The power of display: a history of exhibition installations at the Museum of
Modern Art. MIT press, 1998.
27
Para a breve construção de suas experiências anteriores nos utilizamos de biografias e de estudos de
especialistas em suas trajetórias (tais como Fernando Morais, sobre Chateaubriand, Renato Anelli, acerca de
Lina Bo Bardi, e os artigos do Seminário Modernidade Latina: Os italianos e os centros do modernismo Latino-
Americano, que versaram a respeito de Pietro Maria Bardi) assim como de pesquisa em artigos da imprensa da
época.
26
Por fim, analisaremos sucintamente algumas práticas artísticas emergentes no período dos anos
1960 e 1970, nas balizas adotadas por Nathalie Heinich em seu livro Le triple jeu de l’Art
Contemporain. Na última parte do capítulo, retomando o contexto de expansão das fronteiras
do campo das artes identificado por Rosalind Krauss no texto Escultura em campo de
expansão, nos dedicaremos a examinar um certo tipo de montagem audiovisual característico
dos anos 1970, no qual Philippe Dubois detecta um estágio embrionário do que denomina de
“efeito cinema” na arte contemporânea.
O MoMA foi inaugurado em 1929, pouco mais de uma semana após a quebra da bolsa de Nova
York. Paul Sachs, na época professor na Universidade de Harvard, tornou-se trustee do novo
museu e indicou seu ex-aluno Alfred Barr para assumir a direção do museu. Barr era partidário
da ideia de um museu multidepartamental, em conformidade com o pensamento racional de
matrizes disciplinares, que abrigasse a diversidade de produções e linguagens artísticas,
cumprindo a função de ferramenta educativa. No livro Sob as ruínas do museu, o historiador e
crítico de arte estadunidense Douglas Crimp nos alerta para esse gesto simples e aparentemente
neutro como sendo um modo:
(...) eficaz empregado pelo MoMA para impor uma visão parcial dos objetos em seu
poder. Trata-se da rígida divisão das práticas da arte moderna em diferentes seções
dentro da instituição. Ao espalhar a obra da vanguarda por diversas seções - Pintura
e Escultura, Desenhos, Material Impresso e Livros Ilustrados, Arquitetura e Design,
Fotografia e Filme -, ou seja, ao reforçar com rigor o que parece ser uma fragmentação
natural dos objetos segundo o meio, o MoMA automaticamente constrói uma história
formalista do modernismo.28
Como curador de exposições, Barr buscava racionalizar os modos de expor as obras de arte,
constituindo um método formalista de montagem que mais tarde viria a caracterizar o que Brian
O’Doherthy denominou de cubo branco29. A primeira exposição realizada pelo MoMA, em
1929, denominada Cézanne, Gauguin, Seurat, Van Gogh, apresentou obras de quatro pintores
28
Termo cunhado pelo artista e crítico de arte Brian O’Doherty em seu clássico artigo Inside the white cube,
cuja primeira publicação ocorreu em 1986 na revista October. O'DOHERTY, Brian. Inside the white cube: The
ideology of the gallery space. Oakland: University of California Press, 1999. Este modelo de gestão será
adotado por diversos museus modernos ao redor do globo, incluindo museus brasileiros. CRIMP, Douglas.
Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 234.
29
O'DOHERTY, Brian. Inside the white cube: The ideology of the gallery space. University of California Press,
1999.
27
clássicos do pós-impressionismo e da arte moderna europeia, em seu momento de franca
institucionalização. Nesta exposição Barr inaugurou sua técnica expositiva, valorizando os
ideais da autonomia estética da obra de arte. A novidade consistia em apresentar as obras
separadas umas das outras, penduradas na parede à altura dos olhos contra um fundo de cor
neutra, organizando-as por proximidade conceitual e estética por escolas, artistas e/ou
cronologia, em contraponto ao arranjo em mosaico que prevalecera desde os salões30.
30
STANISZEWSKI, Mary Anne. Op. cit., 1998.
31
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 30.
32
Murals by american painters and photographers [Master checklist], 1932. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/documents/moma_master-
checklist_324968.pdf?_ga=2.55067051.1641725350.1668731217-2074378237.1668731217 último acesso em
17/09/2022.
33
Chronology of the Department of Photography [Release]. May, 1964. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/momaorg/shared/pdfs/docs/press_archives/3415/releases/MOMA_1964_Reopening_004
1_1964-05.pdf último acesso em 17/09/2022.
34
Chronology of the Department of Photography [Release]. May, 1964. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/momaorg/shared/pdfs/docs/press_archives/3415/releases/MOMA_1964_Reopening_004
1_1964-05.pdf acesso 17/09/2022.
35
Os usos das palavras, no campo específico da fotografia e das linguagens audiovisuais, documento,
documental e documentação, segundo a bibliografia consultada, apresentam elasticidade dependendo dos
contextos nos quais transitam e, em certos casos, das intenções do autor. FOGLE, Douglas. The last picture
show: artists using photography, 1960-1982. Minneapolis: Walker Art Center, 2003. CHEVRIER, Jean-
François. Documentary, document, testimony… In: GIERSTBERG, Frits. et. al. Documentary now!
Contemporary strategies in photography, film and the visual arts. Rotterdam: NAi Publishers, 2005, p. 47.
36
A exposição “American Photographs” foi remontada entre julho de 2013 e março de 2014, e o livro foi
reimpresso em comemoração de seus 75 anos de lançamento, em 2015.
37
WELLS, Liz. Photography: a critical introduction. Nova York: Routledge, 2015, p. 111.
28
década de 1930 na vida das populações do interior do país. O objetivo geral do programa era
oferecer documentação visual para justificar as políticas de ajuda humanitária e conscientizar
os habitantes das grandes cidades quanto à pobreza e às dificuldades pelas quais passavam as
populações de áreas rurais38. O estilo de Evans, de acordo com a curadora de fotografia
estadunidense Lynne Warren, em muitos momentos confundiu-se com o imaginário do que a
fotografia documental deveria ser39 e, até hoje, é valorizado e estimulado pelo MoMA.
Beaumont Newhall chega ao MoMA contratado como bibliotecário, em 1935, para substituir
Iris Barry que havia sido escalada para dirigir o novo Departamento de Cinema (Film
Department) fundado naquele mesmo ano40. A primeira exposição organizada por Beaumont
Newhall, ainda em 1937, Photography 1839-1937 (Figura 02), foi pensada para marcar o
centenário da invenção da fotografia. Segundo ele, a mostra priorizava a história do meio
fotográfico ao invés da história da técnica, sem o intuito de oferecer explicações acerca da
teoria científica do processo fotográfico41. De acordo com a pesquisadora Diana Dobranszky42,
a exposição consistiu na oportunidade da entrada da fotografia pela porta da frente do museu,
bem como determinou os rumos para a legitimação e a consequente fundação de um
departamento específico para o meio.
38
WARREN, Lynne (ed.). Encyclopedia of twentieth-century photography. Nova York: Routledge, 2006, p.
481-483.
39
Ibid., p. 404.
40
Nos parece sintomático e interessante notar que o Departamento de Cinema é fundado antes de um
departamento para a fotografia. Da mesma forma, sublinhamos a passagem de ambos diretores-fundadores dos
departamentos pela Biblioteca, campo de atuação no qual os procedimentos de identificação e catalogação são
muito bem sedimentados e definidos. PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 30.
41
NEWHALL, Beaumont. The history of photography. Nova York: MoMA, 1982, p. 09.
42
DOBRANSZKY, Diana. A legitimação da fotografia no museu de arte: o Museum of Modern Art de Nova
York e os anos Newhall no Departamento de Fotografia. Tese (Doutorado em Multimeios). Instituto de Artes da
UNICAMP: Campinas, 2008, p. 17.
43
Beaumont Newhall alistou-se para o serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial, servindo o exército
americano entre 1940-1943. Durante este período, sua esposa Nancy assumiu a curadoria do Departamento de
Fotografia compartilhando da mesma estética fotográfica. Há certo apagamento de suas contribuições conforme
aponta a pesquisadora Diana Dobransky. Em sua tese de doutorado, Dobransky investiga e descreve em detalhes
29
curador ter sido convocado para servir na Segunda Guerra Mundial. Embora tenha sido curta,
essa gestão foi determinante para o estabelecimento de critérios modernistas para a fotografia,
tendo oferecido respaldo institucional para a legitimação e reconhecimento da fotografia como
arte moderna.
Figura 02: Vista da exposição Photography 1839-1937, 1937. Fonte: Arquivo MoMA.
o processo de legitimação da fotografia engendrado pelo Departamento de Fotografia do MoMA nos anos
Newhall. Ibid., 2008.
44
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 38.
30
técnico e nas vintage prints, o que acabava conferindo aura à fotografia. O filósofo alemão
Walter Benjamin observou, ainda em 1935, a importância da reprodutibilidade e o contrassenso
em se atribuir autenticidade à impressão fotográfica: “a chapa fotográfica, por exemplo,
permite uma grande variedade de cópias; a questão da autenticidade não faz nenhum sentido”45.
Christopher Phillips constata que a gestão Newhall antecipou políticas expositivas e de acervo
para a fotografia que seriam adotadas por outros museus daquele país apenas trinta anos depois.
A assimilação da fotografia pelo museu de arte através de critérios modernistas, que tomam a
fotografia enquanto objeto artístico, desconsiderou suas qualidades de imagem versátil e
reprodutível46. Assim, toda a gama de materiais advindos do processo fotográfico, como
negativos, diapositivos e fotolitos, por exemplo, ficaram restritos ao âmbito do arquivo47.
A transição dos anos Newhall no Departamento de Fotografia para a gestão de Edward Steichen
foi marcada por controvérsias. “Watch out for Steichen!”, escreveu Nancy Newhall, de acordo
do Dobranszky48, em uma de suas correspondências a Beaumont, enquanto este ainda estava
nos campos de batalha. Um novo direcionamento dado para a fotografia no museu, a partir do
engajamento institucional com o esforço de guerra, e a atuação de Steichen na organização de
exposições de propaganda política, a convite de Nelson Rockefeller, levaram ao pedido de
demissão do casal Newhall. Christopher Phillips atribui o cancelamento das políticas
desenvolvidas pelos Newhall ao fato de não terem conseguido atrair um público substancial ou
mesmo resgatar a fotografia de sua posição marginal entre as belas artes49.
Steichen mantinha uma estreita relação com as revistas ilustradas em ascensão nos EUA entre
as décadas de 1940 e 1960, e o fotojornalismo foi levado por ele para o museu. Ele acreditava
na fotografia como discurso universal e apostava em seus atributos comunicacionais e
capacidade de engajar o observador pela emoção50. Exposições organizadas por Steichen
fizeram parte da propaganda do governo estadunidense, buscando alinhar a população quanto
aos posicionamentos do governo em relação ao conflito e seus desdobramentos. Staniszewski
detecta nas exposições Road to Victory (1942), apresentada menos de seis meses depois do
ataque a Pearl Harbor, e Power in the Pacific (1945), que homenageava o exército
45
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 171.
46
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008; DOBRANSKY, Diana. Op. cit. 2008.
47
Retomaremos este tópico nas considerações finais desta dissertação, na qual abordaremos o tema dos
arquivos e seus vínculos com a fotografia e as artes visuais.
48
DOBRANSKY, Diana. Op. cit. 2008, p. 237.
49
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 39.
50
DOBRANSKI, Diana. Op. cit. 2008, p. 242.
31
estadunidense, estágios embrionários do que viria a ser a exposição fotográfica The Family of
Man51, a mais divulgada exposição realizada por Steichen.
Inaugurada em 1955, a exposição The Family of Man (Figura 03) ocupou todo o segundo piso
do prédio do MoMA com diversas seções que pretendiam mostrar a “gama da vida do
nascimento à morte”52. Cada uma das subdivisões do labirinto fotográfico, idealizado por
Steichen e seus colaboradores, apresentava um tema, formando ao todo 37 núcleos temáticos53.
A entrada da mostra consistia em uma espécie de portal de fotografias de multidão que
simbolicamente emoldurava o visitante. Em seguida havia um poema, de tom um tanto místico,
de Carl Sandburg:
Existe apenas um homem no mundo e seu nome é Todos os Homens. Só existe uma
mulher no mundo e seu nome é Todas as mulheres. Existe apenas uma criança no
mundo e o nome da criança é Todas as crianças. Um testemunho da câmera, um drama
do grande desfiladeiro da humanidade, um épico tecido de diversão, mistério e
santidade - aqui está a Família do Homem.54
Figura 03: Vista da exposição Family of Man, 1955. Fonte: Arquivo MoMA.
51
STANISZEWKI, Mary Anne. Op. cit. 1998, p. 236.
52
Release atual sobre a exposição The Family of Man. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2429 último acesso em: 06/06/2022.
53
STANISZEWKI, Mary Anne. Op. cit. 1998, p. 240.
54
There is only one man in the world and his name is All Men. There is only one woman in the world and her
name is All Women. There is only one child in the world and the child's name is All Children. A camera
testament, a drama of the grand canyon of humanity, an epic woven of fun, mystery and holiness - here is the
Family of Man. (Tradução da autora). O catálogo da exposição foi reeditado em 2015, em comemoração aos 60
anos da mostra. STEICHEN, Edward, 1879-1973. The family of man: the greatest photographic exhibition of all
time. Prefácio de Carl Sandburg. Nova York: MoMA, 1996.
32
Staniszewski descreve os ambientes da exposição desvendando os discursos que
acompanhavam as imagens. As sequências propunham um encadeamento de temas
pretensamente universais, em especial o da família, apresentando inúmeras passagens bíblicas
como textos de parede. Segundo a autora:
Para qualquer um que tivesse frequentado o Museu de Arte Moderna durante os anos
de laboratório, os temas de The Family of Man eram familiares. A visão do indivíduo
e da humanidade encontrada nas exposições de propaganda estavam nela em excesso.
As agendas nacionalistas dos tempos de guerra foram assumidas de forma ainda mais
universalista e atemporal, cuja visão de mundo era francamente religiosa. A essência
da humanidade era presumidamente heterossexual e patriarcal, com valores e
expectativas àquelas da classe média Americana dos anos 1950.55
A mostra do MoMA circulou durante oito anos por vários países por coadunar-se com os ideais
e interesses das Nações Unidas (ONU) no período após a Segunda Guerra, atingindo um
público total de mais de 9 milhões de pessoas56. Na itinerância por Paris, a exposição encontrou
em Roland Barthes um crítico ferino dos conceitos universalistas que a embasaram. Em seu
texto A grande família dos homens, publicado no livro Mitologias, Barthes desvenda a
ambiguidade do mito em torno da existência de uma condição humana essencial.
Segundo a historiadora da fotografia Erika Zerwes, a exposição encontrou outros críticos como
Susan Sontag e Allan Sekula, que questionaram o envolvimento do MoMA com o governo dos
Estados Unidos e o uso da fotografia como linguagem universal na propagação de valores do
liberalismo em regiões de interesse geopolítico, notadamente na periferia do capitalismo58. Em
The Family of Man, Steichen usou destes recursos para estruturar o discurso que pretendia
55
STANISZEWKI, Mary Anne. Op. cit. 1998, p. 236.
56
Número obtido através da página da exposição no site do MoMA. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2429 último acesso em: 06/06/2022.
57
BARTHES, Roland. A grande família dos homens. In: BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001, p. 114 (grifo nosso).
58
ZERWES, Erika. As famílias dos homens. Os trânsitos do humanismo na fotografia internacional e brasileira.
Estudos Ibero-Americanos, v. 44, n. 1, p. 149-161, 2018.
33
“celebrar os aspectos universais da experiência humana”59 e criar uma tensão dramática com
os medos reais de seu público em plena Guerra Fria.
Durante a gestão de Steichen, entre 1947 e 1962, o MoMA emergiu como uma das principais
instituições artísticas no cenário cultural do pós-guerra. Segundo Phillips, Nelson
Rockefeller62, então presidente do MoMA, endossava o posicionamento de Steichen com
relação à indústria fotográfica, enfatizando a fotografia enquanto meio de comunicação de
massa63 e instrumento de demonstração de hegemonia política e cultural.
59
Release atual sobre a exposição The Family of Man. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2429 último acesso em: 06/06/2022.
60
BAYER, Herbert. Fundamentals of Exhibition Design. Rare Book Division, The New York Public Library.
Disponível em: https://digitalcollections.nypl.org/items/90f27111-9714-4fc1-e040-e00a18064ba4 último acesso
em: 06/06/2022.
61
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 43 (grifo nosso).
62
O Brasil era considerado importante território geopolítico e o alinhamento ideológico aos Estados Unidos foi
motivo de dedicação do governo de Franklin Roosevelt, que designou Nelson Rockefeller para coordenar os
intercâmbios culturais entre os dois países, e a América Latina de uma maneira geral. É irrefutável notar o papel
exercido por Rockefeller na fundação dos museus brasileiros logo após o término da segunda guerra - o Museu
de Arte de São Paulo (MASP) em 1947, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) em 1948 e a
Bienal Internacional de São Paulo em 1951 -, sob o comando do Office of Coordinator of Inter-American
Affairs, órgão do governo dos Estados Unidos que tinha por objetivo promover a integração cultural das
Américas. Sobre as políticas culturais capitaneadas por Rockefeller no Brasil, destacamos os livros de Antonio
Pedro Tota, O amigo americano, e O Trianon do MAM ao MASP, de Daniele Pisani. PISANI, Daniele. O
Trianon do MAM ao MASP: Arquitetura e política em São Paulo (1946-1968). Editora 34, 2019. TOTA,
Antonio Pedro. O amigo americano: Nelson Rockefeller e o Brasil. Editora Companhia das Letras, 2014.
63
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 45.
34
e popularizando a linguagem fotográfica. Duas das últimas mostras realizadas por Steichen,
em 1962, apontavam para a sedimentação de uma cultura visual marcada pela produção de
fotógrafos estadunidenses. A primeira foi a retrospectiva de trabalhos dos fotógrafos do FSA,
The Bitter Years e a última, uma exposição de Harry Calahan e Robert Frank64, apontando para
uma nova geração de documentaristas.
Com tais propostas, Szarkowski pretendia desvincular a fotografia da agenda assumida por
Steichen, ao mesmo tempo, estabelecer novos parâmetros e bases formais para o meio. A
exposição The Photographer’s Eye, de 1964 (Figura 04), é considerada um marco do retorno
do Departamento de Fotografia ao ideário formalista, aos moldes dos anos Newhall, sendo que
o catálogo se tornou rapidamente um livro de referência66.
64
Photographs by Callahan and Frank at Museum of Modern Art. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/documents/moma_press-
release_326264.pdf?_ga=2.172935851.906239219.1668958819-184520652.1668958818 último acesso em:
06/06/2022.
65
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 56.
66
SZARKOWSKI, John. The photographer's eye. 3 ed. Nova York: MoMA, 2007.
35
Figura 04: Vista da exposição The Photographer’s Eye, 1964. Fonte: Arquivo MoMA.
Por outro lado, Szarkowski tentou formular uma espécie de metodologia para análise de
fotografias, a fim de atestar valor estético à composição e atribuindo mérito ao autor. Do ponto
de vista da expografia, paulatinamente retomou o uso de molduras, vidros e passe-partouts,
bem como o espaçamento regular entre as imagens apresentada na altura dos olhos, seguindo
o padrão utilizado pelo museu para os desenhos e gravuras. Na exposição de Jacques Henri-
Lartigue, realizada em 1963, Szarkowski reiterou a autoria como um importante componente
para o julgamento estético da fotografia. O curador considera Lartigue como um artista nato e
67
PHILLIPS, Christopher. Op. cit. 1982, p. 58.
68
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 156.
36
descreve sua trajetória com a fotografia, iniciada aos seus cinco anos de idade, como uma saga
heróica no texto do catálogo69.
Vale mencionar ainda a exposição New Documents70, realizada em 1967, em que Szarkowski
apresentou a produção de três jovens fotógrafos eleitos por ele como representantes da nova
geração de documentaristas. Diane Arbus, Lee Frielander e Garry Winogard, são apresentados
como herdeiros da fotografia documental estadunidense, porém com uma abordagem
radicalmente diferente dos documentaristas das décadas de 1920 e 1930, que utilizavam sua
produção como instrumento de transformação social. Segundo John Szarkowski:
Assim, o diretor mais uma vez reforça a autoria como elemento fundamental para a valorização
de talentos singulares não apenas no campo documental, mas também estético. Na mostra
foram exibidas 90 fotografias emolduradas e com passe-partout, dispostas à altura dos olhos
de forma bastante tradicional. A gestão de Szarkowski perdurou até 1981, nesta época o
Departamento de Fotografia do MoMA reiterou a valorização desta mídia pelo virtuosismo
técnico e privilegiou sua leitura formalista.
Este breve histórico do Departamento de Fotografia do MoMA, servirá como base para
analisarmos a recepção das concepções de seus curadores dos museus da cidade de São Paulo
no próximo item.
69
SZARKOWSKI, John. The photographs of Jacques Henri Lartigue. In: LARTIGUE, Jacques Henri. Nova
York: Museum of Modern Art, 1963, p. 3-4.
70
New Documents [Press release]. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/documents/moma_press-release_391564.pdf?_ga=2.77662748.906239219.1668958819-
184520652.1668958818 último acesso em: 06/06/2022.
71
New Documents [Press release]. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/documents/moma_press-release_391564.pdf?_ga=2.77662748.906239219.1668958819-
184520652.1668958818 último acesso em: 06/06/2022.
37
crescimento das cidades e da economia industrial favoreceu os debates artísticos, difundidos
por uma nascente indústria cultural que surge no bojo do desenvolvimento dos meios de
comunicação de massa. O período é marcado pela institucionalização da arte moderna em nosso
contexto, principalmente no eixo Rio-São Paulo. É neste ambiente que surgem o MASP em
1947, os Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro em 1948, e a Bienal
Internacional de São Paulo em 195172.
O Museu de Arte Moderna de São Paulo, fundado em 1948, pelo industrial Francisco
Matarazzo Sobrinho, procurou incluir a fotografia como arte moderna desde o início de seu
funcionamento. Segundo Helouise Costa, o museu realizou nove mostras de fotografia, entre
1949 e 1985, seis delas nos primeiros dez anos de existência. A autora ressalta o papel
preponderante dos fotógrafos do Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), associação
extremamente ativa no cenário cultural da capital paulista, que realizou ao menos cinco
exposições em parceria com o museu73. A exposição Estudos Fotográficos de Thomaz Farkas,
realizada em 1949, merece destaque não apenas pelo fato de Farkas ser sócio do Bandeirante74,
mas pela exposição ter sido, até onde se sabe, a primeira individual de um fotógrafo em um
museu de arte no Brasil. Na época com 25 anos, Farkas mostrou imagens de sua produção
vinculada ao FCCB desde seu ingresso ao clube, em 1942. Em seu estudo sobre a exposição,
Helouise Costa nos conta que:
Podemos entender que os estudos fotográficos que originaram o título da mostra incluíam não
só os estudos de composição na feitura das imagens em si, mas também os exercícios de edição
72
LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus acolhem moderno. Edusp, 1999.
73
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 135.
74
Tanto Farkas como muitos dos fotógrafos que aderiram à estética modernista receberam o reconhecimento
tardio de suas produções no circuito de artes local. Atribuímos a isso, em grande medida, à ascensão do
fotojornalismo, que provocou o declínio do movimento fotoclubista, e depois, em contrapartida, à fundação de
instituições cujo foco específico era a linguagem fotográfica e audiovisual (Museu da Imagem e do Som, em
1970 e o Instituto Moreira Salles em 1992). Além disso, as pesquisas sobre a história da fotografia no Brasil
merecem destaque neste processo. Cito aqui o livro fundamental de Helouise Costa e Renato Rodrigues, A
fotografia moderna no Brasil. COSTA, Helouise; RODRIGUES, Renato. Fotografia moderna no Brasil. São
Paulo: Cosac & Naify, 2004.
75
COSTA, Helouise. Os estudos fotográficos de Thomaz Farkas: 70 anos de uma exposição singular. In:
FARKAS, João Paulo; FARKAS, Kiko (edição). Estudos fotográficos, Thomaz Farkas. São Paulo: Instituto
Olga Kos de Inclusão Cultural, 2018, p. 45.
38
das imagens por conjuntos temáticos. Além disso, outro aspecto inovador da exposição diz
respeito ao projeto expográfico desenvolvido em colaboração com os arquitetos Miguel Forte
e Jacob Ruchti. Realizada no espaço do museu reservado para mostras temporárias, a exposição
se caracterizou pelo arrojo dos suportes como, por exemplo, uma sequência de tiras diagonais
sobre as quais as cópias fotográficas formavam algo como um mosaico, junto com retângulos
opacos (Figura 05)76.
Figura 05: Vista geral da exposição Estudos Fotográficos de Thomaz Farkas, MAM SP, 1949. Fonte:
Reprodução do livro Estudos Fotográficos, 2018.
Entre as imagens selecionadas para a exposição encontram-se dois registros dos espaços do
MoMA realizados durante uma viagem de Farkas à Nova York. Em sua visita, Farkas foi
recebido por Edward Steichen, que como vimos era diretor do Departamento de Fotografia.
Esse encontro o deixou bastante entusiasmado a ponto de ter decidido enviar uma amostra de
sua produção para Steichen após retornar ao Brasil77. Os modos de exibir fotografias que
vinham sendo desenvolvidos pelo MoMA na época tiveram reverberações no projeto
expográfico da mostra proposta por Farkas para o MAM SP.
76
Ibid., p. 41.
77
A carta escrita pelo fotógrafo a Edward Steichen está reproduzida no livro Estudos Fotográficos (p. 14), que
trata exclusivamente da análise histórica e conceitual da mostra dentro de um panorama artístico ampliado, visto
sua relevância na história da fotografia brasileira e a inserção da fotografia artística no circuito dos museus de
arte. FARKAS, João Paulo; FARKAS, Kiko (ed.). Op. cit., 2018.
39
German Lorca e Ademar Manarini, ambos associados do FCCB também expuseram no MAM
SP, em 1952 e 1954, respectivamente. Além disso, o clube intermediou a vinda da exposição
do fotógrafo alemão e fundador do Grupo Fotoforma, Otto Steiner78 (1955), cuja produção era
bastante disseminada nos meios fotoclubistas. Fernando Lemos e Fulvio Roiter, estes de fora
do círculo do FCCB, completam a lista de fotógrafos que expuseram no MAM SP antes da
crise institucional que se abateu sobre o museu com a doação de seu acervo e da coleção Ciccilo
Matarazzo para Universidade de São Paulo no início dos anos 1960. A fotografia voltaria a
fazer parte da agenda expositiva do MAM SP somente a partir da década de 1980 como
resultado das políticas de reorganização da instituição.
Nesse contexto, o caso da Bienal Internacional de São Paulo é bastante elucidativo quanto às
transformações que estavam acontecendo nas artes e da hibridação entre as linguagens
artísticas79. Criada pelo MAM SP, em 1951, como um programa de internacionalização das
artes, a Bienal com o passar do tempo e com o sucesso de suas edições ganhou autonomia em
relação ao museu. A convocatória da primeira edição da Bienal não contemplava a fotografia
e privilegiava as categorias tradicionais da arte: pintura, escultura, desenho e gravura. Já na
segunda edição os membros do FCCB, com atuação destacada de Geraldo de Barros,
organizaram uma sala dedicada exclusivamente à arte fotográfica em um espaço que ficou vago
devido à desistência de alguns países que não enviaram suas representações. Apesar de ter
recebido elogios de Max Bill e Walter Groupius, a sala de fotografia não foi incluída na agenda
das edições seguintes.
Na oitava edição da Bienal, em 1965, o FCCB voltou a organizar uma seção para a fotografia.
O clube recorreu ao esquema de convocatória e recebeu cerca de 400 inscrições, das quais
foram selecionadas 109 fotografias. No entanto, segundo Costa, o catálogo do evento ainda
dizia tratar-se de uma Exposição de Artes Plásticas e listava as mesmas categorias citadas
anteriormente, sem qualquer menção à fotografia80. A Bienal seguinte abriu espaço para a
Exposição Internacional de Fotografia, para a qual o FCCB selecionou imagens de fotógrafos
advindos de clubes e associações nacionais e internacionais. No mesmo ano, em 1967, a
representação dos Estados Unidos trouxe a mostra Ambiente USA: 1957/1967, que exibiu obras
78
Em seu texto para o catálogo da exposição “Geraldo de Barros a fotografia” (realizada no Sesc Belenzinho,
entre 2014 e 2015, em parceria com o IMS), a pesquisadora de fotografia alemã Simone Förster relaciona a
exposição Fotoformas de Geraldo de Barros com o Grupo Fotoforma de Otto Steiner e a reverberação do
conceito, cunhado por este, de ‘fotografia subjetiva’ na poética de Barros. Paralelo até então apenas tateado pela
crítica brasileira. In: ESPADA, Heloisa (org.). Geraldo de Barros e a fotografia. São Paulo: IMS: Sesc, 2014.
79
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 138.
80
Ibid., p. 141.
40
de Andy Warhol, Robert Rauschenberg e Edward Ruscha81, notadamente artistas de tendências
pop e conceitual que se utilizaram amplamente da fotografia em suas criações. Além disso, o
artista brasileiro Waldemar Cordeiro apresentou obras realizadas a partir de fotografias. Costa
ressalta a defasagem entre a produção artística contemporânea e os critérios de seleção
adotados pelo FCCB.
O uso de termos como “fotografia artística” ou “arte fotográfica” nos textos dos
catálogos assinados pelo Clube é indicativo de uma grande defasagem em relação à
produção contemporânea. Desse modo, a supressão da seção de fotografia na X
Bienal não é de todo surpreendente.82
O Museu de Arte Contemporânea foi fundado em 1963 para abrigar o acervo do antigo MAM
SP, a coleção Francisco Matarazzo Sobrinho e a coleção Francisco Matarazzo Sobrinho e
Yolanda Penteado que haviam sido doados para a Universidade de São Paulo. Nesse conjunto
encontravam-se também obras premiadas pela Bienal até então. Segundo Helouise Costa, a
coleção de Ciccillo Matarazzo, bem como o acervo do antigo MAM SP, não continha
fotografias, o que justifica a ausência de fotografias no núcleo inicial do acervo do MAC USP.
Costa ressalta, ainda, que Walter Zanini, professor da USP designado para dirigir o novo
museu, foi fundamental na assimilação da arte conceitual e da fotografia ao acervo do museu84.
81
Ibid., p. 139.
82
Ibid., p. 142.
83
Ibid., p. 142.
84
FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: arte conceitual no museu. São Paulo: Iluminuras, 1999.
41
pelo recebimento de uma individual itinerante denominada Cartier-Bresson: fotografias
recente, vinda do MoMA com curadoria de John Szarkowski85.
Em seu texto para o catálogo, George Love menciona a crescente valorização que a fotografia
vinha recebendo no país e os diálogos cada vez mais frequentes entre fotografia e arte
contemporânea.
Essa contribuição vem expressa não só através dos trabalhos dos próprios fotógrafos
como também ironicamente no uso de ideias fotográficas dos artistas que trabalham
em outros campos. Não é muito difícil assegurar que o emprego da fotografia é agora
frequente, não nos fotógrafos, mas nos artistas que se apossam dela e de processos
seus para resolverem seus problemas (...). Neste sentido, a presença dos fotógrafos
entre outros artistas, numa exposição que não trata da fotografia como fenômeno
isolado mas como parte integrante das artes plásticas é um sinal muito promissor.89
George Love demonstra que estava a par das discussões acerca de novas práticas adotadas por
artistas ao fazerem uso da fotografia como forma de contestação dos conceitos tradicionais da
85
Três anos depois, Bresson doou uma foto assinada de sua autoria para o acervo do museu. Em seu artigo,
Costa assinala que a exposição de Cartier-Bresson estava sendo disputada entre instituições paulistas. O MASP
não é citado nominalmente, no entanto a autora lista algumas exposições recebidas pela instituição advindas do
MoMA naquele ano e nos posteriores, como New Photography (1970), Four Contemporary Masters (1973) e
Colour as a language (1975). COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 150-151. A exposição enviada pelo MoMA
com o título de New Photography, foi renomeada como Fotógrafos Americanos ao ser apresentada no MASP
em 1970. Voltaremos a ela no segundo capítulo desta dissertação. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição
Fotógrafos Americanos, 1970. Cartier-Bresson expôs no MASP apenas em 1984. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta exposição Henri Cartier-Bresson, 1984.
86
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 151.
87
Disponível em: https://acervo.mac.usp.br/acervo/index.php/Detail/objects/18501
88
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 153.
89
LOVE, George. Apresentação. In: MAC USP. 9 fotógrafos de São Paulo, 1971. Centro de Pesquisa do
MASP.
42
arte. Por outro lado, reafirma seu pertencimento ao campo específico da fotografia e sinaliza
para a integração definitiva do meio ao sistema de arte local.
Figura 06: Vista geral da exposição 9 fotógrafos de São Paulo. Fonte: Arquivo MAC USP.
90
MAC USP. 9 fotógrafos de São Paulo, 1971. Centro de Pesquisa do MASP.
43
Figura 07: Objeto fotográfico de Claudia Andujar. Inês, 1971. Fonte: Acervo MAC USP, aquisição, 1971.
O perfil biográfico de Claudia, publicado no mesmo catálogo, indica uma trajetória consistente,
que incluia colaborações com publicações da imprensa internacional, como as revistas Life,
Look, Fortune e New York Sunday Magazine. Nota-se a sua passagem por importantes museus
e galerias estadunidenses como o MoMA, a George Eastman House, Limelight, que era uma
das poucas galerias especializadas em fotografias na época, além de ter participado do pavilhão
da Kodak na Feira Internacional de Nova York, em 1965.
Claudia e George realizaram ainda uma segunda exposição em colaboração com o MAC USP.
A exposição O fotógrafo desconhecido91 (Figura 08) foi apresentada no final de 1972 e contou
com uma comissão organizadora composta por Walter Zanini, Claudia Andujar, Maureen
Bisilliat, George Love e Djalma Batista. A estratégia da comissão partiu de uma convocatória
para fotógrafos, amadores ou profissionais, cuja produção fosse inédita ou pouco divulgada.
Foram inscritas 266 fotografias e devido ao grande número e à divergência de critérios entre
91
Mesmo não sendo possível atestar o vínculo entre as exposições, é significativo notar a semelhança entre os
títulos desta mostra e Forgotten photographers, realizada em 1951, pelo Departamento de Fotografia do MoMA
enquanto era dirigido por Edward Steichen. Forgotten photographers from the files of the Library of Congress
[Press release]. Arquivo MoMA. Disponível em: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/3285 acesso em
22/11/2022.
44
os membros da comissão optou-se por incluir todas elas na exposição. Zanini justifica o grande
número de imagens da exposição como sendo uma “avalanche” necessária:
Figura 08: Vista da exposição O fotógrafo desconhecido, MAC-USP, 1972. Fonte: Arquivo MAC USP.
92
ZANINI apud COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 154.
93
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 154.
45
fotografias pelos membros da comissão. O posicionamento de Claudia no texto do catálogo,
por exemplo, exalta a capacidade da fotografia em provocar emoções, dizendo que teria
escolhido os trabalhos que lhe tocaram “mais profundamente o lado humano e que sinto serem
realizações válidas dentro da linguagem fotográfica”94.
Do ponto de vista das fotos apresentadas e da montagem da exposição, Costa destaca que:
Obras de sete participantes da exposição foram adquiridas para o acervo do museu pouco tempo
depois, como resultado da premiação anunciada no regulamento da exposição. Vale destacar
ainda quatro mostras realizadas pelo MAC USP na década de 1970. A exposição Fotógrafos
Contemporâneos, enviada por iniciativa de Beaumont Newhall, através da George Eastman
House de Rochester. Ela teve pouca repercussão de público, talvez por ter apresentado
fotografias “distantes do formalismo e da fotografia documental incentivada pelo MoMA na
ocasião”98, aliada ao fato de tratarem-se de fotógrafos pouco conhecidos. Andujar tentou incluir
fotógrafos cujas produções pudessem conferir representatividade à mostra, o que não foi
possível devido à falta de patrocínio99.
94
ANDUJAR apud COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 154 (grifo nosso).
95
ZANINI, Walter apud COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 156.
96
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008., p. 156.
97
Ibid., p. 155.
98
Ibid., p. 156.
99
Ibid., p. 156.
46
A exposição Fotografia Experimental Polonesa, trouxe obras de fotógrafos e artistas ligados à
arte conceitual naquele país. As montagens, de acordo com Costa, “conferiam um caráter
objetual à fotografia por meio da aderência de imagens recortadas a suportes rígidos”100. Neste
mesmo ano, o MAC USP recebeu a exposição de Brassaï, enviada pelo MoMA com curadoria
de John Szarkowski, cujo texto do catálogo remete-se ao fotógrafo como autor genial e o
valoriza por seu talento em demonstrar as especificidades da fotografia101. Merece destaque,
por fim, a exposição Multimedia III, realizada ainda em 1974, por alinhar-se às vertentes
conceituais que se utilizavam das novas tecnologias como forma de expressão artística. A
curadoria já reconhecia o papel fundamental da fotografia na arte conceitual quando essa
questão era pouco discutida. Expuseram nesta mostra artistas como Regina Vater, Regina
Silveira e Arthur Barrio.
Quanto ao processo de assimilação da fotografia pelo MAC USP, Helouise Costa conclui que
ele ocorreu por meio de:
No caso do MAC USP, é fundamental considerar o papel relevante exercido pelas práticas da
Arte Conceitual. A teórica Cristina Freire analisa um conjunto de exposição conceituais
ocorridas no museu também durante os anos 1970, bem como salienta o papel da série de
exposições Jovem Arte Contemporânea, realizadas entre 1967 e 1974103.
No caso das artes plásticas, a tão debatida efemeridade das propostas lança a noção
de arte como processo decorrente de uma ideia, de um objeto impalpável para o centro
do debate. O esforço do artista, nesse período, vai no sentido de dar corpo ao invisível,
tornar material uma ideia que não teria, necessariamente, apelos formais.104
Segundo a autora, as poéticas eleitas pelos artistas conceituais incluíam suportes alternativos e
as novas tecnologia como “vídeos, filmes, audiovisuais, filmes super 8 e 16mm, discos,
100
Ibid., p. 157.
101
Ibid., p. 157.
102
Ibid., p. 162.
103
Os catálogos de todas as edições da Jovem Arte Contemporânea foram digitalizados pela equipe da
Biblioteca Lourival Gomes Machado e encontram-se digitalizados no website do MAC USP. Disponível em:
http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/biblioteca/jac.asp
104
FREIRE, Cristina. Op. cit. 1999, p. 30.
47
fotografias, xerox, off-set, livros de artista e documentação de ventos”105. Freire ressalta “o
lugar de “destaque nos trabalhos e projetos conceituais”106, aos quais voltaremos no último
item deste capítulo.
Na cidade de São Paulo em meados dos anos 1940, muito se discutia sobre a necessidade de se
criarem instituições para preservação do patrimônio cultural e artístico nacional107. Os debates
sobre a criação de um museu de arte moderna no Brasil foram noticiados por jornais e revistas,
no entanto, esteve circunscrito ao eixo Rio-São Paulo, atingindo pouca penetração em setores
mais amplos da sociedade naquele momento. O empresário das comunicações e dono do
conglomerado dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, dedicou-se pessoalmente à
concretização de tal projeto.
105
Ibid., p. 30.
106
Ibid., p. 95.
107
Mário de Andrade, expoente dos artistas modernos e um dos idealizadores da Semana De Arte Moderna,
vinha, desde a década anterior, se preocupando com a questão e procurava estabelecer parâmetros de
desenvolvimento de políticas públicas para a preservação do patrimônio artístico, engajando-se em iniciativas
governamentais. Em 1937, foi criado o Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cujo
projeto original havia sido escrito por Mário no ano anterior. Outros intelectuais importantes como Sérgio
Milliet e Mário Pedrosa também dedicaram esforços ao fomento de tais iniciativas.
108
Pontos de vista - Um museu de arte moderna para São Paulo. Diário da Noite. 13 de abril de 1946.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=093351&Pesq=pontos%20de%20vista%20194613%20de
%20abril&pagfis=4392 acesso 14/04/2022.
48
diligência individual; do Rio de Janeiro para São Paulo; de museu de arte moderna para museu
de arte moderna e antiga, e finalmente, apenas museu de arte109.
No mesmo ano de 1946, o navio Almirante Jaceguay110 atracou no porto da cidade do Rio de
Janeiro, então capital federal, trazendo da Europa o jornalista e crítico de arte Pietro Maria
Bardi e a arquiteta Lina Bo Bardi. Vindos da Itália, chegaram ao Brasil com o intuito primeiro
de organizar mostras sobre arte italiana e comercializar as obras que trouxeram consigo. Antes
mesmo de se engajarem na implantação do MASP, os Bardi já estavam envolvidos na
estruturação de mostras de arte no país. Duas exposições foram realizadas na sede do Ministério
de Educação e Saúde no Rio de Janeiro, uma contando com obras renascentistas – Exposição
de pintura italiana antiga: do século XIII ao século XVIII111, e outra de inclinações modernistas
– Exposição de arte contemporânea italiana: novos de Milão112.
As exposições haviam sido previamente preparadas na Itália pelo Studio d’Arte Palma de
Roma, galeria fundada por Pietro Maria Bardi no contexto do pós segunda guerra para negociar
as obras de arte que havia adquirido durante o conflito. A galeria obteve sucesso comercial
logo de início, chamando atenção do mercado de arte. Em 1945, Lina Bo transfere-se de Milão
a Roma para trabalhar no Studio d’Arte Palma, onde conhece Bardi. Os dois se casaram no ano
seguinte. Ao embarcarem para o Brasil, tanto Lina quanto Pietro acumulavam experiências
com o mercado de arte italiano e pretendiam encontrar parceiros comerciais no Brasil113. Ela
como arquiteta, assistente do arquiteto Gio Pontí, editora de revistas especializadas em
109
Informações retiradas de matérias veiculadas pelos Diários Associados durante o ano de 1946, em particular
pelo Diário da Noite, nas quais a criação de um museu é mencionada. Consultamos em especial as reportagens:
Um museu de arte moderna em São Paulo. Diário da Noite. 13 de abril de 1946; Um museu de arte moderna.
Diário da Noite. 18 de abril de 1946; Notas de arte. Diário da Noite. 13 de maio de 1946; Foi uma máquina.
Diário da Noite. 18 de maio de 1946; Quirino da Silva. Museu de arte moderna e clássica. Diário da Noite. 12 de
setembro de 1946; Quirino da Silva. Museu de arte moderna e clássica. Diário da Noite. 22 de novembro de
1946. Disponíveis na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=093351&Pesq=pontos%20de%20vista%20194613%20de
%20abril&pagfis=6535 acesso em 14/04/2022.
110
Informação sobre a chegada do casal Bardi no Brasil coletada do website do Instituto Bardi. Disponível em:
https://portal.institutobardi.org/os-fundadores/o-casal-bardi/ acesso em 14/04/2022.
111
STUDIO d'Arte Palma. Exposição de pintura italiana antiga: do século XIII ao século XVIII. Roma: Studio
d'Arte Palma, 1946. Catálogo de exposição.
112
BARDI, P. M. Op. cit. 1992, p. 52.
113
Sobre as motivações da vinda de Pietro Maria Bardi ao Brasil, indicamos a comunicação apresentada por
Viviana Pozzoli no Seminário Modernidade Latina, realizado pelo MAC USP em 2013. POZZOLI, Viviana.
1946! Por que Pietro Maria Bardi decide deixar a Itália e partir para o Brasil? Seminário Modernidade Latina
– Os italianos e os centros do modernismo Latino-americano. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea, 2014.
Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/anais/modernidade/conteudo.html
acesso em 14/04/2022.
49
arquitetura moderna como a Domus114; ele como jornalista autodidata, professor, articulador
de mostras, editor da revista Quadrante115 e negociante de obras de arte.
Sem dúvida, o Museu de Arte de São Paulo é o primeiro museu brasileiro a ser
implantado com critérios norteadores de uma política clara no acervo, voltada às ditas
obras-primas e de artistas célebres do passado, alicerçada por uma atuação aberta para
novas manifestações de época e caras ao moderno, como desenho industrial, moda,
comunicação visual, e também, um terceiro eixo, educacional, igualmente
comprometido com o moderno.118
114
Sobre as experiências de Lina Bo Bardi na Itália e sua relação com a revista Domus consultamos o artigo do
teórico e pesquisador da vida e obra da arquiteta Renato Anelli. ANELLI, Renato. Ponderações sobre os relatos
da trajetória de Lina Bo Bardi na Itália. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da FAU USP, n. 27, 2010, p. 86-101.
115
MIGLIACCIO, Luciano. Pietro Maria Bardi no Brasil: história, crítica e crônica de arte no Brasil.
Seminário Modernidade Latina – Os italianos e os centros do modernismo Latino-americano. São Paulo: Museu
de Arte Contemporânea, 2014. Disponível em:
http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/anais/modernidade/pdfs/LUCIANO_PORT.pdf
116
Museu de Arte de São Paulo. MASP 30 anos. São Paulo: MASP, 1977, p. 13.
117
Sobre a criação e o funcionamento do Instituto de Arte Contemporânea destacamos a pesquisa de mestrado
desenvolvida por Ethel Leon, junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, e mais tarde publicada em livro.
LEON, Ethel. IAC: Primeira escola de design do Brasil. São Paulo: Editora Blucher, 2014.
118
LOURENÇO, Maria Cecília França. Op. cit. 1999.
119
O biógrafo de Assis Chateaubriand, Fernando Morais descreve com detalhes as negociações empreendidas
por ele na formação do acervo do MASP em seu livro Chatô – O rei do Brasil dos capítulos 28 a 33, p. 408-508.
O trabalho de pesquisa para o livro foi, em grande medida, desenvolvido em consulta aos documentos
pertencentes ao Arquivo Assis Chateaubriand, salvaguardados pelo MASP. MORAIS, Fernando. Chatô: o rei
do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2016.
50
Cruzeiro120, também pertencente ao grupo Diários Associados, cumpriam importante papel na
divulgação institucional.
O fotógrafo de origem alemã Peter Scheier, entre 1947 e 1953, atuou no registro das atividades
e exposições do museu, ao mesmo tempo em que trabalhou como colaborador para a revista O
Cruzeiro, na qual publicou uma série de fotorreportagens sobre o MASP. Helouise Costa
analisa as imagens que Scheier produziu do museu, concluindo que as fotos publicadas na
revista buscavam adequar-se à estrutura peculiar das fotorreportagens, muitas vezes de viés
sensacionalista. Enquanto que as fotografias produzidas em âmbito institucional apresentam
“uma orientação mais técnica dada pelo Museu para a produção dos registros, provavelmente
pelo casal Bardi”121. Em seus primeiros anos no Brasil, Lina e Pietro desenvolveram muitas
atividades editoriais que vinham ao encontro à política cultural implantada no museu, entre
elas a revista Habitat, com a qual Scheier também colaborou.
A revista Habitat baseava-se em um projeto editorial lançado pelo casal Bardi, em 1951, e
dirigido por eles até 1953. Segundo a pesquisadora Paula Gorestein Dedecca, a iniciativa da
Habitat pode ser entendida como “parte de um projeto maior de ação no campo da cultura
idealizado pelos Bardi, cujas atividades exercidas desde sua chegada no Brasil, em 1946,
caracterizaram-se pelo investimento no caráter informativo e formativo da arte”122. Na revista,
utilizaram-se amplamente da fotografia para a disseminação de temas relacionados à
arquitetura, o mobiliário e o design. Ao nos aproximarmos da história institucional do MASP,
compreendemos que as experiências anteriores de seus principais articuladores enquanto
jornalistas, escritores e editores de revistas ilustradas, muitas vezes pautaram os usos e funções
da fotografia no museu por seu viés comunicacional.
Nos primeiros anos de funcionamento do MASP, na sede da rua sete de abril, Pietro Maria
120
COSTA, Helouise; BURGI, Sérgio (org.). As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O
Cruzeiro 1940/1960. Apresentação de Flávio Pinheiro. Texto de Fernando Cury de Tacca, Flávio Damm,
Fernando Ilharco Morgado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.
121
COSTA, Helouise. Espaços da arte: fotografia e representação em Peter Scheier. In: COSTA, H.; FABRIS,
M. Modernismos em diálogo: o papel social da arte e da fotografia na obra de Hans Gunter Flieg. São Paulo:
MAC USP, p. 99-114, 2015, p. 102.
122
DEDECCA, Paula Gorestein. Sociabilidade, crítica e posição: o meio arquitetônico, as revistas
especializadas e o debate moderno em São Paulo (1945-1965). Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU USP, 2012, p. 105.
Disponível em:
https://www.academia.edu/35807495/Sociabilidade_cr%C3%ADtica_e_posi%C3%A7%C3%A3o_o_meio_arq
uitet%C3%B4nico_as_revistas_especializadas_e_o_debate_do_moderno_em_S%C3%A3o_Paulo_1945_1965_
Sociability_criticism_and_position_the_architectonic_environment_the_specialized_magazines_and_the_moder
n_discussion_in_S%C3%A3o_Paulo_1945_1965_?email_work_card=title&li=0 acesso em 10/12/2022.
51
Bardi recorreu à fotografia como instrumento didático, realizando exposições nas quais
reproduções de obras de arte pautavam temas referentes à História da Arte ocidental, desde a
antiguidade até as tendências mais recentes, abarcando a pintura, o design, a arquitetura e temas
correlatos123. Se iniciava assim, o projeto educativo do museu para a formação do público
brasileiro para a arte. A política educativa defendida por Bardi vinha de encontro às aspirações
progressistas de Assis Chateaubriand.
Juntamente às exposições didáticas foi apresentada a exposição chamada Vitrine das formas,
cuja expografia colocava lado a lado objetos tão díspares quanto uma cerâmica marajoara e
uma máquina de escrever da marca Olivetti126. A tais iniciativas, somaram-se muitos
seminários, debates, palestras e cursos organizados pelo MASP em seus primeiros anos, que
culminaram na criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC) – escola de design e artes
123
POLITANO, Stela. Exposição didática e vitrine das formas - a didática do Museu de Arte de São Paulo.
Dissertação (Mestrado em História da Arte). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Unicamp,
2010.
124
A primeira edição da revista Museum, da também recém fundada Unesco (Organização das Nações Unidas
para Educação Ciência e Cultura), fazia parte de um processo de retomada dos museus franceses após longo
período de atividades suspensas, na qual defende-se a valorização dos patrimônios culturais abrigados pelas
instituições. Os artigos contaram com a participação de gestores de museus de várias partes do ocidente,
incluindo o Brasil, com o artigo de Pietro Maria Bardi. Disponível em:
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127418 acesso em 10/04/2022.
125
BARDI, Pietro Maria. L’exprience didatique du Museu de Arte de São Paulo. Paris: Unesco publications,
1948, p. 142.
126
Segundo a pesquisadora Stela Politano, para a coleção de objetos que compunham a Vitrine das formas
foram realizados contatos com instituições culturais como o Museu Etnográfico de Paris e o Museu de Arte
Moderna de Nova York. Além disso, os objetos, que segundo a autora representavam a evolução das formas,
contemplavam desde as “artes menores”, como o artesanato, em conjunto com fundamentos da “grande arte”.
POLITANO, Stela. Op. cit. 2010, p. 91.
52
aplicadas inspirada no modelo de ensino da Bauhaus -, que funcionou no museu entre 1951 e
1953127.
Os dispositivos desenvolvidos por Lina Bo Bardi para exibição do acervo de pinturas e para as
exposições didáticas do MASP foram incorporados, enquanto outros foram projetados
especialmente para acolher a proposta de Barros (Figura 09). O sistema de tubos modulares
criados pela arquiteta enfatizava a verve construtiva do projeto da exposição. Segundo a
curadora Heloisa Espada:
127
ANELLI, Renato Luiz Sobral. Da integração à autonomia: arte, arquitetura e cultura no Brasil (1950-1980).
Anais do 6º Seminário Docomomo Brasil, Niterói, v. 16, 2009. LEON, Ethel. Op. cit., 2014.
128
Interesse pelos cursos de fotografia do Museu de Arte. 11 de junho de 1951. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta do Curso de Fotografia, 1951.
53
às propostas museográficas de arquitetos modernos como Mies van der Rohe que
pretendiam integrar objetos de arte ao espaço da exposição e eram inspiradas em
exposições de artistas construtivos na década de 1920.129
Algumas vistas do espaço expositivo corroboram com a avaliação da autora pela proximidade
formal das soluções de montagem das Fotoformas com os projetos do Abstract Cabinet, de El
Lissitzky. A série exposta no MASP caracterizou-se como “um conjunto híbrido de fotografias
que se alinhavam tanto à geometria exata da arte concreta quanto aos desenhos livres de aspecto
infantil que aparecem em seus trabalhos gráficos”130. Espada traça uma análise da série
Fotoformas em paralelo às pesquisas desenvolvidas simultaneamente pelo artista com pintura,
gravura e artes gráficas, levando em conta a sua filiação ao concretismo do Grupo Ruptura.
Pietro Maria Bardi, no texto que escreveu para a exposição, aponta a tendência à geometrização
e à abstração na obra de Barros:
129
ESPADA, Heloisa. Fotoformas: a máquina lúdica de Geraldo de Barros. (Dissertação de mestrado) Escola
de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. 2006, p. 88.
130
ESPADA, Heloisa. Op. cit., p. 14.
131
BARDI, Pietro M. Fotoforma. Folheto de divulgação. Arquivo Histórico do MASP, Pasta da exposição
Fotoforma Geraldo de Barros, 1950. A data da exposição que consta no Arquivo MASP é 1950, reproduzimos
aqui para facilitar a localização do documento original.
54
Figura 09: Vistas da exposição Fotoformas de Geraldo de Barros, 1951. Fonte: Reprodução do catálogo
Fotoformas, de 1994. Coleção particular da autora.
Certamente Geraldo de Barros admirava Wassily Kandinsky, Piet Mondrian e Max Bill, mas o
que gostaríamos de salientar aqui é o procedimento que se tornará característico dos textos de
Bardi sobre a produção de fotógrafos: buscar filiações destes com artistas reconhecidos
internacionalmente estabelecendo quase sempre comparações estéticas com a pintura.
Interessado em fotografia desde 1946, Geraldo de Barros efetivou sua associação ao FCCB em
abril de 1949. Sua trajetória no clube foi marcada por contradições. Por um lado, incorporou
as discussões acerca da renovação da fotografia clubista no contexto do pós-guerra, difundida
naquele ambiente, por outro, opôs-se aos setores mais conservadores da produção bandeirante.
A poética concretista de Barros e seu despudor em intervir diretamente no negativo do filme,
certamente foram determinantes para seu isolamento do círculo clubista132. Em um dos
seminários internos do clube, Geraldo defendeu sua posição acerca da liberdade que pensava
ser primordial para qualquer artista133. Em entrevista publicada em 1952, o artista comenta seu
132
COSTA, Helouise; RODRIGUES, Renato. Fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
133
Ibid., p.44.
55
processo criativo e as possibilidades da fotografia abstrata:
Há uma fotografia convencional, como há uma pintura convencional. Isso não impede
a possibilidade da arte autêntica. E o lado técnico não faz senão duplicar nossas
possibilidades de descobertas. Não sou pintor, senão no momento de tirar a fotografia,
de escolher meu ângulo, meu plano. Em seguida, durante todo o tempo em que a
objetiva trabalha, faço um trabalho de composição independente do que escolhi como
assunto, trabalho no qual o único guia é o ritmo, o contraponto, a harmonia plástica.
A fotografia abstrata pode atingir alturas musicais…134
Barros explicita sua busca poética por inovações expressivas no campo da arte, combinando
procedimentos compositivos da pintura e das artes gráficas com a fotografia a fim de atingir
harmonias musicais, mesmo que dissonantes. De fato, ao utilizar-se da ponta seca para gravar
desenhos no negativo, o artista faz da fotografia um meio expressivo passível de intervenção,
algo extremamente novo e singular na produção brasileira da época. Neste sentido, podemos
considerar que o artista já se utilizava de procedimentos híbridos na composição de suas
imagens, mas, no entanto, obteve reconhecimento artístico apenas quando abandona a
fotografia e investe em sua carreira de pintor.
No momento de sua realização, a exposição Fotoforma não foi noticiada pelo BFC. Era de
costume do clube divulgar nos boletins as mostras individuais realizadas por seus sócios,
principalmente tratando-se de eventos em museus de arte. A ausência de menção à exposição
do MASP é sintomática do entendimento que localizava a produção desenvolvida por Geraldo
de Barros fora do âmbito estritamente fotográfico135. Mesmo já estando mais distanciado do
FCCB, Barros participou de importantes articulações entre o clube e o circuito artístico, sendo
um dos responsáveis pela inserção da fotografia na II Bienal de São Paulo em 1954136.
134
Poderá haver fotografia abstrata? Letras e artes. 10 de agosto de 1952. Disponível em:
https://www.geraldodebarros.com/main/wp-content/uploads/2013/03/1952_08_10_LA.pdf
135
COSTA, Helouise; RODRIGUES, Renato. Fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
136
A Sala de Fotografia contemplou a produção bandeirante, recebendo críticas positivas de Walter Gropius e
Max Bill.
137
MALBA. Annemarie Heinrich - Intenciones Secretas: Génesis de la liberacíon femenina en sus fotografías
vintage. Malba: Buenos Aires, 2015 (catálogo de exposição).
56
mulher fotógrafa em um museu de arte no país138 (Figura 11).
Figura 10: Annemarie Heinrich com José Oiticica Filho, José Yalenti e Aldo de Souza Lima no FFCB, 1951.
Fonte: BFC, nº 59, março de 1951. Website do Foto Cine Clube Bandeirante.
De origem alemã, Annemarie imigrou ainda na adolescência para a Argentina onde aprendeu
a fotografar de forma autodidata, montando um quarto escuro para revelação de negativos em
sua casa. Em 1930, abriu seu primeiro estúdio fotográfico e passou a colaborar com diversas
revistas ilustradas. Desenvolveu em paralelo sua atuação como retratista do Teatro Cólon,
considerado um dos teatros líricos mais importantes do mundo. A partir dos anos 1940, as suas
fotos de grandes personalidades da ópera e do teatro tornaram-se sua faceta mais conhecida.
Figura 11: Vistas da exposição A arte fotográfica de Annemarie Heinrich no MASP, 1951. Fonte: BFC, nº 59,
138
Hipótese corroborada por Helouise Costa em seu levantamento sobre a presença de mulheres no circuito
fotoclubista. COSTA, Helouise. Presenças efêmeras: mulheres fotógrafas no Foto Cine Clube Bandeirantes.
In: Três autoras do sexto fraco: Alice Kenji, Dulce Carneiro e Annemarie Heinrich. São Paulo: Galeria Utópica,
2020, p. 18. Disponível em:
https://www.academia.edu/44590446/Presen%C3%A7as_ef%C3%AAmeras_mulheres_fot%C3%B3grafas_no_
Foto_Cine_Clube_Bandeirante acesso em: 20/04/2022
57
março de 1951. Website do Foto Cine Clube Bandeirante.
Helouise Costa, em artigo sobre a presença de mulheres no circuito fotoclubista, nos conta que
a atuação de fotógrafas em fotoclubes argentinos era bem mais intensa do que nos clubes
brasileiros, incluindo o bandeirante140. Enquanto no Brasil a maioria das mulheres eram
relegadas ao papel secundário de meras acompanhantes de seus maridos fotógrafos, na
Argentina muitas delas estavam engajadas na formação de grupos e realização de eventos com
intuito de visibilizar sua produção fotográfica. Heinrich participou ativamente dos circuitos
fotográficos que buscavam reconhecimento artístico na Argentina. Destaca-se sua atuação no
grupo de fotógrafos intitulado “La carpeta de los diez”141. Annemarie era a única mulher do
grupo. Max Jacoby, também de origem alemã e co-fundador do grupo escreveu que a foto
Savia, de autoria de Heinrich, era tão magnífica que “inegavelmente poderia chegar a ser
expressão artística de um homem”142.
139
BFC, nº 59, p. 07.
140
COSTA, Helouise. Op. cit. 2020, p. 15.
141
Grupo artístico argentino que se constituiu a partir da autogestão e discussão coletiva das obras de cada
integrante.
142
MALBA. Op. cit. 2015, p. 233.
143
Um depoimento de German Lorca sobre Chico Albuquerque conta também sobre a dinâmica do
funcionamento do FCCB: “Conheci o Chico no Foto Cine Clube Bandeirantes. Naquela época o clube não tinha
o nível dele, era ainda muito amador. Os frequentadores tinham uma boa situação financeira, por que eram
engenheiros, industriais, médicos, farmacêuticos, dentistas. E o conceito de “amador” era o de um sujeito que
podia comprar uma máquina e fotografar, mas nem todos tinham total domínio da técnica, nem faziam
laboratório. (...) Com ele conheci uma nova trilha no fazer do retrato, por que o retrato dele era supremo! O
pessoal fazia, mas não era a mesma coisa. Ele me ensinou, por exemplo, que nunca se deve cruzar duas luzes.
58
sido produzida naquele mesmo ano em uma de suas viagens de volta à Fortaleza e tornou-se
um de seus mais célebres trabalhos. Nascido em Fortaleza em 1917, Chico Albuquerque,
iniciou-se na fotografia fazendo retratos no laboratório de fotografia montado em 1934 por seu
pai, então cinegrafista amador. Atuou como fotógrafo nas filmagens do documentário It´s all
true144 de Orson Welles, realizadas nas praias de Fortaleza. Especializou-se profissionalmente
nas áreas de fotografia industrial, arquitetônica e na documentação do crescente processo de
urbanização da capital paulista145. Além disso, Albuquerque é considerado pioneiro da
fotografia publicitária e sua atuação, em colaboração com profissionais da propaganda e
agências de publicidade nacionais e internacionais instaladas na cidade, lançou bases para a
incorporação da fotografia nas peças publicitárias no país146.
Figura 12: Fotografia da série Mucuripe, Chico Albuquerque, 1952. Fonte: Reprodução do fotolivro Mucuripe.
Dizia sempre: “Uma, e a outra mais suave”. Foi um grande aprendizado. E também, quando ia visitar seu
estúdio e o laboratório na avenida Rebouças, sempre procurava ver tudo. Como ele era cuidadoso com as
coisas…”. VELOSO, Patrícia; ALBUQUERQUE, Ricardo (org.). Chico Albuquerque: fotografias. Fortaleza:
Terra da Luz, 2009, p. 60.
144
Ibid., p. 58.
145
Sobre a relação de Chico Albuquerque com a fotografia industrial e publicitária, consultamos o catálogo da
exposição O estúdio fotográfico de Chico Albuquerque. Realizada em parceria entre O Instituto Moreira Salles e
o Museu da Imagem e do Som SP, com curadoria de Sergio Burgi, itinerou pelas cidades de São Paulo, Rio de
Janeiro e Poços de Caldas entre 2013 e 2015. ALBUQUERQUE, Chico. O estúdio fotográfico Chico
Albuquerque: retrato, publicidade, indústria, arquitetura e documentação urbana (1947-1975). Texto de Sergio
Burgi. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013.
146
A profissionalização na área das mídias é impulsionada também pela criação da primeira Escola de
Propaganda, que funcionou no Masp e posteriormente daria origem à Escola Superior de Propaganda e
Marketing, a ESPM.
59
Biblioteca de Fotografia do IMS.
Uma reportagem da época sobre a exposição de Chico Albuquerque esclarece que a jangada é
uma construção de origem indígena, que teria posteriormente incorporado a vela, elemento
proveniente da tradição europeia147. Nesta acepção, a jangada seria um produto híbrido das
culturas locais e estrangeiras, representante do mito da miscigenação fundadora da nação
brasileira e condizente com os ideais defendidos em muitos discursos de artistas e intelectuais
modernistas148. Nos parece revelador que o fotógrafo, mesmo desenvolvendo uma produção
que testemunhava a escalada do crescimento urbano e da industrialização da cidade de São
Paulo149, tenha escolhido um tema bucólico para sua primeira exposição em um museu de arte.
Em se tratando do público paulistano, as imagens tangenciavam a exotização de um Brasil
integrado à natureza que fatalmente desapareceria tendo em vista a irreversibilidade do
progresso das grandes cidades.
147
Diário de São Paulo. 09 de outubro de 1952. Arquivo Histórico do MASP, Pasta da exposição A Jangada
Chico Albuquerque, 1952.
148
As fotografias exibidas nesta exposição do MASP ficaram conhecidas posteriormente pelo nome da praia
que retratam, Mucuripe, onde também havia sido filmado o It’s all true de Orson Welles. Em 1989, foram
editadas e publicadas em formato de livro. ALBUQUERQUE, Chico. Mucuripe. Fortaleza: Marprint, 1989.
149
ALBUQUERQUE, Chico Op. cit., 2013.
150
O BFC nº 10, de julho de 1947 traz na capa fotografia de sua autoria, a edição contou ainda com reportagem
sobre sua exposição de retratos artísticos, realizada na Livraria Jaraguá.
151
Alguns dos catálogos dos museus pelos quais a coleção de obras de arte adquiridas pelo MASP até aquela
data passou: MASP. Masterpieces from the São Paulo Museum of Art. London: Arts Council of Great Britain,
1954. MASP. Chef d’Ouvre du Musée d'Art de São Paulo. Paris: Musée de l’Orangerie, 1953.
60
estadunidense deslocou as chamadas obras-primas do MASP e justificou-se pela vontade de
seus dirigentes de buscar legitimidade e autenticação para o acervo por meio do aval de
especialistas e críticos internacionais. Já durante a década de 1960, os esforços estavam
voltados para a construção da sede definitiva do museu, o icônico edifício da avenida Paulista,
que tomou quase dez anos entre projeto e finalização152.
O jovem fotógrafo que integrava a equipe dos Diários Associados faleceu em um acidente de
avião no dia 22 de dezembro de 1959, aos 33 anos de idade, causando comoção no meio
jornalístico do país. Nascido em Fortaleza, em 1926, Luciano iniciou sua carreira na área do
152
PISANI, Daniele. Op. cit. 2019.
153
Na pasta referente à exposição encontramos apenas duas cartas escritas por Pietro Maria Bardi em resposta a
Pietro Troiani, que teria enviado um possível pedido por parte dos fotógrafos, para a realização da exposição, no
entanto, esta solicitação inicial não foi encontrada. Em suas correspondências, uma do dia 16 de março de 1960
e outra, com data do dia seguinte, 17 de março de 1960, Bardi sinaliza positivamente para a organização da
mostra no espaço do museu, afirmando que o material exposto deveria ser levado para a sua aprovação, que
poderia ser feita em conjunto com os expositores. BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário Pietro
Troiani. 16 e 17 de março de 1960. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição de fotos do Grupo Paulista,
1960. Buscamos informações sobre a exposição nos boletins do Foto Cine Clube Bandeirantes próximos a data
das correspondências, nos quais não encontramos menção sobre a mostra. Por não termos localizado registros na
imprensa ou documentos de tratativas, não é possível afirmar que a exposição tenha se realizado de fato.
154
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Leão Gondim de Oliveira. 23 de dezembro de 1959.
Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição Fotografias de Luciano Carneiro, 1960.
61
jornalismo ainda muito jovem, com 16 anos, trabalhando na redação do jornal Correio do
Ceará e depois na Ceará Rádio Clube155. Interessou-se por fotografia adquirindo uma câmera
Rolleiflex, que logo trocaria pela Leica e a Nikon de filme 35 mm, mais ágeis e compactas156.
Além da fotografia, Luciano estimava também a aviação e tornou-se piloto. Segundo o
coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles, Sergio Burgi,
Em seu texto, Burgi afirma que, entre o final da década de 1940 e início dos anos 1950, a revista
O Cruzeiro iniciou uma “consistente inflexão em direção a um fotojornalismo de caráter cada
vez mais humanista e engajado”158. O autor atribui o ocorrido à entrada de um novo grupo de
fotógrafos, entre os quais Luciano Carneiro, cujas fotografias se destacavam. Segundo Burgi,
eles “diferenciavam-se claramente também159 das fotos produzidas por Jean Manzon, fotógrafo
francês (...) que introduziu a fotorreportagem como base do novo projeto editorial cujo objetivo
era ampliar a circulação da revista”160. Burgi salienta ainda que as imagens de Carneiro se
opunham às “nitidamente sensacionalistas” de Manzon, pois adotava “uma postura
estritamente ética e comprometida com a apuração objetiva dos fatos”161.
Em relação à exposição de Luciano Carneiro no MASP, não nos foi possível identificar as
imagens exibidas na ocasião, no entanto, pelo fato de tratar-se de uma homenagem organizada
pelos Diários Associados, podemos afirmar que se relacionavam com a sua produção para O
Cruzeiro. Durante os anos em que trabalhou na revista, Carneiro destacou-se na cobertura de
pautas internacionais variadas, como a Guerra da Coréia e a coroação da rainha Elizabeth II162.
O fotógrafo foi responsável também pelas reportagens que noticiaram a itinerância da coleção
155
BURGI, Sérgio (organização). Luciano Carneiro: fotojornalismo e reportagem (1942-1959). São Paulo:
IMS, 2020, p. 233.
156
Ibid., p. 233.
157
BURGI, Sérgio. Imagem e Engajamento: O fotojornalismo Humanista de Luciano Carneiro. In: BURGI,
Sérgio (organização). Luciano Carneiro: fotojornalismo e reportagem (1942-1959). São Paulo: IMS, 2020, p. 12.
158
Ibid., p. 12
159
Em um momento anterior de seu texto, Sergio Burgi refere-se ao repórter David Nasser, destacando que as
reportagens de Luciano Carneiro se diferenciavam também, do ponto de vista da escrita, do jornalista sênior da
revista. Ibid., p. 12.
160
Ibid., p. 12.
161
Ibid., p. 12 (grifo nosso).
162
BURGI, Sérgio. Op. cit. 2020, p. 234.
62
de pinturas do MASP por instituições europeias163 (Figura 13).
Figura 13: Vista da montagem da exposição da coleção de obras do MASP no Metropolitan Museum de Nova
York, Luciano Carneiro, 1957. Fonte: Reprodução do catálogo Luciano Carneiro - Fotojornalismo e
Reportagem (1942-1959). Biblioteca de Fotografia do IMS.
Imagens de Luciano Carneiro entraram para a Coleção Pirelli MASP, em 2007, na sua 16ª
edição (Figura 14). Segundo o texto do catálogo, de autoria do pesquisador Rubens Fernandes
Junior, o fotógrafo estava “sintonizado com as tendências da fotografia documental, podemos
sentir a influência de Cartier-Bresson, David Seymour, Wener Bischof, entre outros. Uma
fotografia humanista e centrada na ação cotidiana”164. O perfil biográfico de Carneiro é
acompanhado pelas seguintes informações sobre as fotografias que o museu acabava de
adquirir:
Estas imagens, cópias de época, provém dos familiares de Luciano Carneiro e serão
futuramente restauradas pela Coleção, junto com as 3 imagens cedidas anteriormente
pelo jornal Estado de Minas, constituem um núcleo que permitirá conhecer melhor
um autor que deu importante contribuição para o fotojornalismo no país.165
163
Ibid., p. 184.
164
FERNANDES JUNIOR, Rubens. Introdução. In: Museu de Arte de São Paulo Coleção Pirelli de Fotografia.
São Paulo: Masp, 2007, s/p.
165
Museu de Arte de São Paulo Coleção Pirelli de Fotografia. São Paulo: MASP, 2007, p. 20 (grifo nosso).
63
sobre os expositores e as imagens que foram veiculadas, cabe-nos comentar alguns dados
relevantes para os nossos objetivos. Na pasta do Arquivo Histórico referente a esta exposição
encontramos uma correspondência enviada a Pietro Maria Bardi por Regina Helena de Paiva
Ramos, que assina em nome da comissão organizadora do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais do Estado de São Paulo166. No documento, datado de 20 de março de 1962, ela
solicita a cessão do espaço expositivo do museu para a realização da mostra na segunda
quinzena de abril daquele ano. Uma reportagem veiculada pelo Diário de São Paulo, de 13 de
abril de 1962, informa que a inauguração da exposição aconteceria naquele mesmo dia.
Segundo a matéria, a mostra expôs cerca de duzentas imagens de fotojornalistas de São Paulo,
auxiliando o público a compreender a “situação da reportagem fotográfica na imprensa
paulista”167. Aponta ainda a relevância da fotografia integrada definitivamente “à técnica de
informar do jornal moderno” e que acompanhava “o extraordinário desenvolvimento do nosso
jornalismo”168.
166
RAMOS, Regina Helena de Paiva [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. 20 de março de
1962. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da I Exposição de Fotojornalismo, 1962.
167
Museu de Arte de São Paulo. Diário de São Paulo. 13 de abril de 1962. Arquivo Histórico do MASP. Pasta
da I Exposição de Fotojornalismo, 1962.
168
Museu de Arte de São Paulo. Diário de São Paulo. 13 de abril de 1962. Arquivo Histórico do MASP. Pasta
da I Exposição de Fotojornalismo, 1962.
64
Figura 14: Fotografia de crianças na Coreia do Sul, Luciano Carneiro, 1951. Fonte: Reprodução Catálogo
Coleção Pirelli MASP nº 16. Coleção particular da autora.
O trecho destacado evidencia o desejo de Bardi de adquirir fotografias para o MASP, ainda na
década de 1960, indicando que seriam depositadas em um arquivo fotográfico. Documento
fotográfico e documentação são palavras que o diretor do MASP irá utilizar para qualificar a
fotografia ao longo de toda sua trajetória institucional.
169
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Sindicato dos Fotojornalistas Profissionais do Estado
de São Paulo. 21 de maio de 1962. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da I Exposição de Fotojornalismo, 1962
(grifo nosso).
170
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Salomão Swartzman. 01 de abril de 1966. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da exposição individual de Maureen Bisilliat, 1966.
65
acompanhada de uma fotografia da série posteriormente intitulada de Pele Preta171 (Figura
15). A reportagem da Folha de S. Paulo, apresenta dados biográficos chamando-a de “artista”.
Conta que Bisilliat, nascida na Inglaterra, estudou com André Lhote, em Paris, e no Art
Students League, em Nova York, e trocou a pintura pela fotografia. O texto salienta ainda que
após “documentar” temas “folclóricos” na Venezuela, “dedicou-se ao jornalismo e viajou pela
América do Sul documentando fotograficamente fatos para o New York Times”172.
Figura 15: Fotografia de Maureen Bisilliat, 1966. Fonte: Reprodução de reportagem da Folha de S. Paulo, 08 de
abril de 1966. Arquivo Histórico do MASP.
171
A reportagem indica que a fotografia publicada foi exposta na ocasião. Sem explicação. Folha de S. Paulo.
08 de abril de 1966. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição individual de Maureen Bisilliat, 1966. As
fotografias desta série receberam este nome posteriormente, ao serem editadas em formato de livro pelo Instituto
Moreira Salles em 2011. BISILLIAT, Maureen. Pele preta. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011.
172
Sem explicação. Folha de S. Paulo. 08 de abril de 1966. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição
individual de Maureen Bisilliat, 1966.
173
Fotografias de Maureen Bisilliat. O Estado de S. Paulo. 12 de abril de 1966. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta da exposição individual de Maureen Bisilliat, 1966.
66
mostra. Em 15 de abril174, o mesmo jornal, dedica uma página inteira do suplemento feminino
à mostra de Maureen, neste momento já aberta ao público. Quatro imagens acompanham a
matéria: uma mulher negra com turbante branco carregando uma cerâmica com flores na
cabeça; um pescador na praia puxando sua rede; uma janela de uma casa sem o revestimento
nas paredes, com jarros de barros e algumas tapeçarias a mostra; e a fotógrafa sentada no chão
montando um painel que, provavelmente, integrou a exposição. Maureen será companheira
constante de Claudia Andujar e George Love, tanto nas exposições realizadas no MASP da
Avenida Paulista na década seguinte, quanto na experiência como fotojornalista na revista
Realidade.
Antes de partirmos para a análise da experiência de Claudia Andujar e George Love e suas
exposições audiovisuais, é pertinente abordarmos os usos da fotografia e das novas tecnologias
no cenário artístico das cidades de São Paulo e Nova York, pelas quais ambos transitaram
durante os anos 1960 e 1970.
174
Brasil para (fotógrafa) inglês ver e escrever. Suplemento Feminino. 15 de abril de 1966. Arquivo Histórico
do MASP. Pasta da exposição individual de Maureen Bisilliat, 1966.
175
ALMEIDA, Juliana. Op. cit. 2013, p. 36.
176
Ibid., p. 36.
177
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. São Paulo: Zahar, 1985, p. 10.
67
Para os filósofos alemães, o processo industrial capitalista aplicados à criação de produtos
culturais e aos meios de comunicação de massa representava um grande declínio no que
concerne aos valores de apreciação e fruição da arte para os domínios do consumo. O livro
Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, escrito por eles, foi lançado em 1947, e é
contemporâneo ao processo de massificação cultural, de grande impacto na cultura ocidental,
para o qual o fenômeno das revistas ilustradas certamente colaborou.
A Life, surgida nos Estados Unidos em 1936, representou o apogeu das revistas ilustradas178 e
valeu-se do apelo da fotografia como importante elemento para a composição de suas matérias.
Segundo Helouise Costa, a Life foi resultado da compra e reestruturação de uma publicação de
humor e variedades por “um bem-sucedido empresário do ramo das comunicações que na
ocasião já editava a Time e a Fortune”179. O design da revista, mais limpo e arrojado comparado
às suas congêneres mais antigas, juntamente com sua tipografia de letras brancas sobre um
fundo vermelho, tornaram-se marcas registradas da publicação, que teve seu modelo “copiado
à exaustão”180. Quanto ao uso da fotografia pela Life, a autora identifica que num “primeiro
momento a fotografia funcionava como ilustração do texto, ao passo que na fotorreportagem
ela passou a oferecer uma interpretação especificamente fotográfica dos temas enfocados”181.
A hegemonia da revista foi se perdendo paulatinamente na medida em que os investimentos
financeiros migraram para as novas mídias, em grande medida pela televisão, levando à
descontinuidade de sua publicação semanal em 1972.
178
COSTA, Helouise. A invenção da revista ilustrada. In: BURGI, Sérgio; COSTA, Helouise. As origens do
fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre o Cruzeiro 1940-1960. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012. p.
318.
179
Ibid., p. 318.
180
Ibid., p. 318.
181
Ibid., p. 320.
182
KAMIMURA, Masako. Barbara Kruger: Art of Representation. Woman's Art Journal, vol. 8, nº 1, Spring -
Summer, 1987, p. 40-43. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1358339 acesso em: 15/10/2022.
68
A apropriação de elementos da cultura de massa por artistas consiste, para o filósofo
estadunidense Arthur Danto183, em um momento de quebra de paradigma na teoria estética,
sobre a qual as balizas tradicionais já não mais conseguiam estender suas análises. O autor
identifica na apresentação das Brillo Box por Andy Warhol, na Stable Galley de Nova York,
em 1964, como representativa de tal ruptura. Segundo o autor, isso não significou o fim da arte
propriamente, no entanto, a mobilização operada por Warhol de um objeto comum a um objeto
de arte necessitava de uma “restauração imaginativa”184 por parte da crítica, para compreender
seu significado. Apesar de investir em proposições ontológicas, as assertivas de Danto nos são
úteis para compreender o embate com as noções estabelecidas sobre o objeto artístico, no qual
mergulharam muitos artistas das décadas de 1960 e 1970.
Neste sentido, para a socióloga Nathalie Heinich, o termo arte contemporânea não se refere
somente a um recorte cronológico, trata-se de um conceito constituído com base em critérios
tipológicos, representando assim gêneros específicos dentro da arte do presente. De acordo
com a autora, nas propostas contemporâneas a obra de arte não reside mais no objeto acabado,
mas em um “para além” do objeto186. Heinich elucida ainda que as obras de arte
contemporâneas respondem a certas características como desmaterialização do objeto artístico,
conceitualização de propostas, hibridização de materiais, utilização do corpo como matéria-
183
DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edusp, 2006.
184
DANTO, Arthur. O que é arte. Belo Horizonte, MG: Relicário Edições, 2016.
185
COSTA, Helouise. Op. cit. 2008, p. 134.
186
HEINICH, Nathalie. Une partie de main chaude. In: Le triple jeu de l’Art Contemporain. Paris: Editions de
Minuit, 1998, p. 89.
69
prima e a realização e documentação de eventos efêmeros187. Assim é possível localizá-las,
descreve a autora, a partir de quatro categorias: os ready-made, a arte conceitual, as
performances e as instalações. Ações que tomaram força a partir dos anos 1960, se
consolidaram enquanto práticas artísticas nas décadas posteriores e hoje se apresentam
plenamente institucionalizadas.
Vale acentuar também a relação de Duchamp com a fotografia estereoscópica, em diálogo com
a ciência, e a persona Rrosé Sélavy, criada a princípio para as câmeras, tensionando
procedimentos de registro, na medida em que documentava encenações189. Ainda em 1926,
Duchamp fazia incursões pelo cinema experimental, de cunho não-narrativo ou não-retilínio
como chamavam190, com o filme Anémic Cinéma191. Creditado à Rrosé Sélavy, seu alter ego
feminino, e filmado por seu assíduo parceiro Man Ray. De acordo com o artista, o que lhe
atraía no cinema era seu aspecto óptico. “Não me interessava fazer cinema enquanto tal,
tratava-se de um meio mais para alcançar meus resultados ópticos (...) era uma maneira de eu
chegar ao que eu queria. Por outro lado, este fazer cinema era curioso”192.
187
Ibid., p. 104.
188
Ibid., p.104.
189
Procedimento que ganhou força nas décadas de 1960 e 1970, quando os artistas passaram a propor eventos
efêmeros como happenings e performances, e nos registros de ações de land art e body art.
190
CANONGIA, Ligia. Quase cinema: cinema de artista no Brasil, 1970/80. Edição FUNARTE, 1981, p. 10.
191
É relevante notar o jogo de palavras contido no título do filme, em quase palíndromo, algo característico da
produção literária Dadá e surrealista. https://www.youtube.com/watch?v=mi-4P5bOlNs
192
DUCHAMP, Marcel apud. CANONGIA, Ligia. Op. cit., 1981, p. 09.
193
HEINICH, Nathalie. Op. cit. 1998, p. 104.
70
são atualizações contingentes de princípios ou problemas cuja existência é virtual”194. Segundo
a autora, os artistas conceituais têm papel fundamental na valorização e na mudança de estatuto
da imagem fotográfica, a forma perde a sua hegemonia e o objeto sofre declínio em favor das
atitudes e dos processos195.
Fabris destaca, por exemplo, a obra “Uma e três cadeiras” (1965) do artista estadunidense
Joseph Kosuth (Figura 16), que se constitui de um objeto (a cadeira), uma fotografia (da
cadeira) e uma definição linguística (de cadeira). Assim, apresenta três maneiras diferentes de
informação sobre um mesmo objeto, estabelecendo um jogo de transposição de signos no qual
a representação sensível da fotografia é fundamental. Neste sentido,
De acordo com a autora, esta operação de redundância mobilizada pelo artista demonstra que
o significado de seu gesto está além da ideia sobre os objetos, mas o próprio “processo que leva
à formação de ideias”197. Segundo Cristina Freire, “as ideias e motivações daquele tempo
permanecem latentes nos documentos e obras”198.
194
FABRIS, Annateresa. Op. cit. 2008, p. 21.
195
Ibid., p. 24.
196
Ibid., p. 22.
197
Ibid., p. 31.
198
FREIRE, Cristina. Op. cit. 1999, p. 24.
71
Figura 16: Fotografia da obra Uma e três cadeiras de Joseph Kosuth, 1965. Fonte: Arquivo MoMA.
O terceiro momento identificado por Heinich foi o surgimento da performance199, que consiste
na representação de ações, roteirizadas ou não, diante de uma platéia. O caráter documental da
fotografia ganha importância diante deste tipo de ação, tendo em vista sua efemeridade. A foto,
o registro da ação, por tanto, torna-se a própria obra ou o que nos chega do que ela pode ter
sido. O quarto e último momento está localizado, de acordo com a autora, no surgimento do
fenômeno das instalações200, que se caracterizam como objetos indefinidos por sua condição
intrínseca de híbrido. Não pode ter base nem moldura, não pode ser escultura embora seja
tridimensional, e menos ainda pintura, ainda que não exclua certos elementos pintados pelo
artista. A este último nos dedicaremos dentro do contexto de expansão do campo da arte.
Apesar do termo expandido suscitar controvérsias e parecer, de certa forma, superado nos dias
atuais, interessa-nos abordar aqui os debates teóricos que pretendiam dar conta das
transformações que estavam ocorrendo na época. Ainda em 1979, a crítica e historiadora da
arte estadunidense Rosalind Krauss publicou na revista October o artigo “Escultura em campo
expandido” no qual identificava o esgarçamento dos limites do conceito tradicional de
199
HEINICH, Nathalie. Op. cit. 1998, p. 104.
200
Ibid., p. 104.
72
escultura. De acordo com a autora, a categoria escultura havia sido moldada, esticada e torcida,
numa demonstração extraordinária de elasticidade, “evidenciando como o significado de um
termo cultural pode ser ampliado a ponto de incluir quase tudo”201.
Em sua análise, Krauss oferece contrapontos a abordagens essencialistas e formalistas por parte
da crítica, que defendiam a pureza dos meios de expressão e tendiam a refutar trânsitos,
expansões e contaminações entre linguagens. Segundo ela, “o novo é mais fácil de ser
entendido quando visto como uma evolução de formas do passado. O historicismo atua sobre
o novo e o diferente para diminuir a novidade e mitigar a diferença”202. A autora parte de
questionamentos suscitados por obras como Live-taped video corridor203 de Bruce Nauman,
realizada pela primeira vez em 1969204 (Figura 17) entre outras que estavam sendo
categorizadas como esculturas mesmo apresentando características bastante heterogêneas.
Figura 17: Instalação da obra Live Tape Corridor de Bruce Nauman, 1969. Fonte: Acervo online da Fundação
Salomon R. Guggenheim.
201
KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Arte & ensaios, v. 17, n. 17, 2008, p. 129.
202
Ibid., p. 129.
203
Ibid., p. 129.
204
A obra foi montada pela primeira vez em 1969 no Whitney Museum de Nova York, na exposição Anti-
Illusion: Procedures/Materials. Tratou-se da primeira exibição pública dos experimentos que o artista vinha
desenvolvendo com linguagens audiovisuais, especificamente com vídeo. Sobre a obra consultamos o acervo
online da Fundação Salomon R. Guggenheim. Disponível em: https://www.guggenheim.org/artwork/3153
acesso em 15/10/2022.
73
Para definir o campo ampliado da escultura, a autora elabora diagramas nos quais equaciona
um conjunto de oposições mobilizadas por estas produções, delineando uma espécie de modelo
teórico para lidar com as complexidades desses deslocamentos não contemplados pelo modelo
modernista de autonomia das formas artísticas. Segundo a autora, as obras de arte não podiam
mais serem
O termo expandido foi cunhado pelo crítico, também estadunidense, Gene Youngblood em seu
livro “Expanded cinema”, lançado em 1970, onde tinha por objetivo “discutir o ponto no qual
o cinema demanda[va] novas extensões tecnológicas”, pois “a história convencional do filme
havia chegado ao seu limite”206. Para o autor, as transformações e rupturas detectadas na época
eram decorrentes da transição pela qual o mundo passava no período específico dos anos 1970.
Youngblood localiza as chamadas novas tecnologias que surgiram neste momento como os
primórdios de uma era tecnológica, o princípio de um processo que nos lançaria em direção à
uma “evolução radical”207, comparada por ele à invenção da agricultura: a “intermedia
network”. Em que pesem as previsões superlativas e o tom um tanto místico das assertivas do
autor, no campo das artes visuais, em certa medida, o contexto abordado por ele teria originado
o que Philippe Dubois detectou como sendo um “efeito cinema”208 na arte contemporânea.
Partindo de exposições realizadas no contexto atual por instituições museais, entre elas a mostra
Le mouvement des images - art, cinema, organizada em 2006 pelo Centro Georges Pompidou
em Paris, que segundo Dubois encarnavam “o fenômeno de modo sintomático”209. No processo
de deslocamento do cinema e das linguagens audiovisuais para os espaços das exposições de
arte, uma das premissas identificadas pelo autor é a passagem “da grande sala escura e
comunitária, em que tudo deixa de ser visto em favor da concentração máxima de todos sobre
a tela retangular, para uma visão mais individualizada, com frequência sobre várias telas
205
KRAUSS, Rosalind. Op. cit. 2008, p. 136.
206
YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. New York: P. Dutton & Co., 1970, p. 42.
207
Ibid.p. 50.
208
DUBOIS, Philippe. Um “efeito cinema” na arte contemporânea. In: COSTA, Luiz Cláudio da. Dispositivos
de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contracapa/FAPERJ, 2009, p. 182.
209
Ibid., p. 179.
74
simultâneas, e mais ‘iluminada’ do filme na brancura do espaço do museu”210. Esta
transposição está na origem do que Dubois denomina “efeito cinema”.
O autor se utiliza dos conceitos benjaminianos de valor de culto e valor de exibição para
analisar tal fenômeno211. De acordo com sua interpretação, o valor de culto do cinema estaria
em sua forma clássica de projeção na sala escura, com duração temporal pré definida, o
desenrolar de uma narrativa pelas imagens e com os espectadores sentados. Já a sua forma
híbrida e contemporânea, as instalações212 audiovisuais, se caracterizam pelo valor de exibição,
no qual há a interação com o espaço expositivo, de maneira geral mais claro em termos de
iluminação, pela adoção de múltiplas telas, cuja duração será determinada pelo interesse de
espectadores que se encontram em pé ou em movimento.
As obras exibidas pela mostra evocada por Dubois, nos sugerem uma grande amplitude na
compreensão do efeito cinema, não se tratando exatamente apenas de obras fílmicas, como
Mapping the Studio (2001) (Figura 18), de Bruce Nauman, que correspondem à descrição
acima. Exemplo disso são as obras constituídas por imagens fixas que figuraram na exposição,
como as de Jeff Wall, Andy Warhol e Cindy Shermann. A obra de Shermann, Untitled Film
Still (1981), é considerada a partir de sua relação com a encenação para a câmera construindo
assim ficções inspiradas no cinema214. Já a de Jeff Wall, Picture for Women (1979), trata-se de
210
Ibid., p. 184.
211
Aula Magna do curso de Cinema Universidade Federal de Santa Catarina com o Professor Philippe Dubois,
realizada no dia 02 de abril de 2013 e publicada no canal do Youtube do Centro Acadêmico de Cinema da
UFSC. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bq8nYh6DWhA&ab_channel=CACineUFSC acesso
em 10/07/2022.
212
DUBOIS, Philippe. Op. cit., 2009, p. 208.
213
Ibid., p. 209.
214
Texto da exposição no website do Centro Georges Pompidou. Disponível em:
http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-mouvement_images/ENS-mouvement-
images.htm acesso em 10/07/2022.
75
uma fotografia em cibachrome de grandes dimensões, iluminada por backlight, que reúne em
uma única fotografia os vários momentos do decorrer de uma cena215. Por fim, a obra de Andy
Warhol escolhida para a mostra foi a serigrafia Ten Lizes (1963), na qual o artista trabalha a
composição de imagens fixas inspirado no processo cinematográfico216. Esta última nos parece
particularmente reveladora de como Dubois compreende, “fotograficamente, a natureza do
cinema (e vice-versa)”217, pois nos mostra uma mesma imagem em sequência como os
fotogramas218 do negativo de uma película (Figura 19).
Figura 18: Fotografia da instalação Mapping the Studio de Bruce Nauman, 2001. Fonte: Website do Centro
Georges Pompidou.
Em 2003, Philippe Dubois foi curador da mostra Movimentos improváveis - o efeito cinema na
arte contemporânea, para a qual selecionou obras que operam tais deslocamentos por ele
215
Texto da exposição no website do Centro Georges Pompidou. Disponível em:
http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-mouvement_images/ENS-mouvement-
images.htm acesso em 10/07/2022.
216
Texto da exposição no website do Centro George Pompidou. Disponível em:
http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-mouvement_images/ENS-mouvement-
images.htm acesso em 10/07/2022.
217
DUBOIS, Philippe; BORGES, Cristian. A imagem-memória ou a mise-en-film da fotografia no cinema
autobiográfico moderno. Revista Laika, v. 1, n. 1, p. 1-37, 2012, p. 02.
218
Por fotograma o autor se refere ao quadro unitário de um filme fotográfico e não à impressão de imagens
sem a utilização da câmera, também conhecida por fotograma, amplamente mobilizada por artistas da vanguarda
como Man Ray e László Moholy-Nagy.
76
descritos219. La Jetée, Chris Marker (1962); Revolving Upside Down (1968), de Bruce Nauman;
Vertical Roll (1972), de Joan Jonas; The Reflecting Pool (1977-1979), de Bill Viola; e Art of
Memory, de Woody Vasulka, estiveram na exposição. Entre as quais a instalação Cosmococas
(1973), de Hélio Oiticica, foi escolhida para representar os artistas brasileiros que
desenvolviam poéticas híbridas.
Figura 19: Andy Warhol, Ten Lizes, 1963. Fonte: Website do Centro Georges Pompidou.
Em seu texto para o catálogo da exposição, O efeito cinema e a hibridação dos meios na cena
brasileira, Ivana Bentes trata da ideia de “quase-cinema” proposta pelo artista em 1973, que
segundo a autora
Bentes evidencia ainda que as experiências, “vitais e originais”221, com a pop arte, a anti arte,
o happening, a performance e à cultura underground, vivenciadas por Oiticica na cidade de
Nova York durante a década de 1970, foram determinantes para as propostas conceitualizadas
219
A mostra esteve aberta ao público entre 19 de maio e 13 de julho de 2003, no Centro Cultural do Rio de
Janeiro e foi coordenada conjuntamente por Ivana Bentes. DUBOIS, Philippe. Movimentos improváveis - o
efeito cinema na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003 (catálogo de
exposição).
220
BENTES, Ivana. O efeito cinema e a hibridação dos meios na cena brasileira. In: DUBOIS, Philippe.
Movimentos improváveis - o efeito cinema na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do
Brasil, 2003, p. 30.
221
Ibid., p. 30.
77
das quais as Cosmococas222 (Figura 20) são representantes. A autora salienta que o “espetáculo
visual-sonoro”223 deflagra reações corporais com estímulos sensoriais e ambientações sonoras,
que “desarmam as classificações mentais prévias, eliminam a distância e criam um fluxo de
imagens seriadas e sons que são sentidos e experimentados pelo corpo antes de qualquer
possibilidade de reação verbalizada”224.
Figura 20: Fotografia da instalação de Coke Head’s Soup (1973) da série Comoscocas de Hélio Oiticica, 2003.
Fonte: Reprodução do catálogo da exposição Movimentos improváveis - O efeito cinema na arte
contemporânea, CCBB RJ, 2003. Biblioteca Lourival Gomes Machado, MAC USP.
Ivana Bentes aproxima ainda este tipo de produção de Oiticica a de outros artistas que
trabalharam com cinema experimental, como Júlio Bressane, Andrea Tonacci e Carlos
Reichenbach, ou que dedicaram-se à pesquisa com suportes alternativos, como Iole de Freitas,
Lygia Pape, Antonio Dias, Julio Plaza, Regina Silveira, Carmela Gross e Anna Bella Geiger.
Ainda em 1973, a curadora Aracy Amaral promoveu a mostra Expoprojeção73, realizada na
222
Nesta exposição o audiovisual da série Comoscocas exibido foi Coke Head’s Soup, que traz a imagem de
figuras públicas como Jimi Hendrix, Marilyn Monroe, Yoko Ono e Mick Jagger, redesenhados por traços de
cocaína, obra até então inédita. Ibid., p. 31.
223
Ibid., p. 31.
224
Ibid., p. 31.
78
sede do Grupo de Realizadores de Filmes Experimentais (Grife) em São Paulo225, que tratava
da produção audiovisual da época e expôs trabalhos de alguns dos artistas citados por Bentes,
entre outros.
Entre os artistas que exibiram “audio-visuais” estavam Cildo Meirelles com o, hoje famoso,
trabalho Inserções em circuitos ideológicos (Figura 21); Lygia Pape exibiu Ivan O Terrível,
criado em parceria com Ivan Serpa; Paulo Fogaça mostrou Bicho morto e Ferrofogo; Héio
Oiticica participou com Neyrótika; e Frederico Morais com O Júri, Bachelardianas, Cantares
e Curriculum Vitae I-II.
225
Verbete sobre a Expoprojeção no website da enciclopédia do Itaú Cultural. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento221139/expo-projecao-73 acesso em 10/07/2022.
226
Grafia utilizada nos anos 1970.
227
AMARAL, Aracy. Expoprojeção73. São Paulo: Centro de Artes Novo Mundo, 1973 (catálogo de
exposição).
228
Ibid., s/p.
79
Figura 21: Audiovisual Inserções em circuitos ideológicos de Cildo Meireles, 1970. Fonte: Reprodução do
catálogo da exposição Movimentos improváveis - O efeito cinema na arte contemporânea, CCBB RJ, 2003.
Biblioteca Lourival Gomes Machado, MAC USP.
Nos parece fundamental notar que, ainda na época, Morais desenvolve conceituações acerca
do audiovisual que seriam, anos depois, identificadas por Dubois. Integraram a mostra com
audiovisuais ainda: Ana Maria Maiolino, com fotografias de Paulo Fogaça e som de Laura
Clayton de Souza; Artur Barrio, com fotografias de sua autoria, de Luís Alphonsus e César
Carneiro, sonorização e sincronização de Paulo Fogaça230; Beatriz Dantas Lemos e Paulo
Lemos, com fotos, som e montagem dos próprios artistas. Interessa-nos observar ainda que
algumas das imagens do catálogo, de obras em Super 8 e 16 mm, foram impressas com as
bordas das bitolas do negativo (Figura 22).
229
MORAIS, Frederico. Cinema e Audio-visual. In: AMARAL, Aracy. Expoprojeção73. São Paulo: Centro de
Artes Novo Mundo, 1973, s/p.
230
A dissertação de mestrado da pesquisadora Roseane Carvalho consiste em uma das poucas referências sobre
o tema, trabalhado por ela também no doutorado. Ambos estudos fazem parte da escassa bibliografia acerca dos
audiovisuais dos anos 1970 na arte brasileira. CARVALHO, Roseane. Paulo Fogaça - O artista e seu tempo.
Dissertação (Mestrado em Cultura Visual). Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás - FAV
UFG, 2008. CARVALHO, Roseane. Diaporamas - um estudo crítico de audiovisuais na arte brasileira (1972-
1975). Tese (Doutorado em Arte e Cultura Visual). Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de
Goiás - FAV UFG, 2021.
80
Figura 22: Fotogramas do curta-metragem Alpha de Conceição Previati, 1971. Fonte: Reprodução do catálogo
da Expoprojeção73.
Entre os artistas citados anteriormente por Ivana Bentes, destacamos ainda Miguel Rio Branco,
que também é mencionado por Amaral, e Arthur Omar231, advindos do campo do fotográfico,
e parecem ter operado trânsitos e deslocamentos entre imagens, tais quais os mobilizados por
Claudia Andujar e George Love.
Após o caminho percorrido neste capítulo, no qual analisamos a assimilação da fotografia por
museus de arte e de sua mobilização por artistas de correntes da arte conceitual, assim como
das linguagens audiovisuais e das novas tecnologias dos anos 1970. Obtivemos assim, um
corpus teórico que nos permite estabelecer comparações e mapear as proximidades entre os
casos aqui observados e as experiências de Claudia Andujar e George Love no MASP na
década de 1970, das quais trataremos nos próximos capítulos.
231
BENTES, Ivana. Op. cit. 2003, p. 31.
81
Capítulo 02
Este capítulo tem como objetivo recuperar as experiências de Claudia Andujar e George Love
no Museu de Arte de São Paulo, em imbricação com suas trajetórias pessoais, a fim de
dimensionar suas colaborações no que diz respeito à assimilação da fotografia pela instituição
na década de 1970. As análises estão baseadas fundamentalmente nas informações coletadas
no Centro de Pesquisa do museu, que guarda o Arquivo Histórico institucional. Iniciamos com
uma breve introdução sobre a expansão das ações do MASP após a mudança para a sua nova
sede localizada na Avenida Paulista e a entrada definitiva da fotografia em sua agenda
expositiva.
No primeiro tópico deste capítulo, articulamos dados biográficos dos fotógrafos com o intuito
de compreendermos o momento de convergência de suas trajetórias pessoais, profissionais e
artísticas232. Claudia Andujar e George Love colaboraram com o MASP entre as décadas de
1970 e 1980, tendo atuado de forma conjunta no museu entre 1971 e 1976. Neste período
formavam um casal e estabeleceram uma colaborações artísticas. No segundo tópico,
232
As fontes utilizadas para a abordagem de suas trajetórias estão explicitadas no início do item 2.1.
82
descreveremos as exibições de seus audiovisuais que aconteceram em quatro eventos no
museu: o happening Som, imagem e luz233, de fevereiro de 1971; as duas exposições
simultâneas de ambos, entre junho e julho de 1971; a exposição A família brasileira, de
setembro de 1971; e a mostra Hileia Amazônica, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973.
Nesta análise, focamos nas motivações e práticas artísticas desenvolvidas pela dupla, bem
como nas estratégias institucionais utilizadas para legitimar a exibição dos audiovisuais em
exposições do museu.
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por intensas transformações políticas, sócio-
econômicas e artísticas na história ocidental. Movimentos sociais reivindicavam direitos civis
pautados em políticas identitárias de sujeitos historicamente oprimidos: mulheres, negros,
indígenas e homossexuais, principalmente. No plano internacional ocorreram movimentos de
resistência à guerra do Vietnã e manifestações de contracultura nos Estados Unidos, além de
levantes estudantis, como os de maio de 1968, na França e outros países da Europa. No Brasil,
o regime de exceção imposto pela ditadura militar acirrava-se com a promulgação do Ato
Institucional número 5 (AI-5), que resultou em perseguições políticas violentas.
Paradoxalmente, nos primeiros anos de 1970, o país viveu acelerado crescimento, fenômeno
233
A nomenclatura utilizada neste texto remete à veiculada na época e apurada através da análise de artigos
jornalísticos sobre as mostras levantadas.
83
conhecido como “milagre econômico”, que não resistiu à crise internacional do petróleo, em
1973, acarretando seu declínio já em meados da década.
No âmbito artístico e da teoria estética são muitos os anúncios de “fim da arte”, “morte do
autor” e “fim da história da arte”234. Para além de propostas catastróficas, pode-se dizer que
ocorre o esgarçamento das tradicionais fronteiras entre as práticas artísticas. No caso das artes
visuais esta diluição é representada pela abertura de alguns artistas às experimentações, muitas
vezes através da investigação das linguagens audiovisuais e das novas tecnologias emergentes.
A nova sede do MASP na avenida Paulista é inaugurada em 1968, em meio a este cenário, em
uma cerimônia solene com a presença da Rainha Elizabeth II, como era desejo de Assis
Chateaubriand expresso antes de seu falecimento. A transferência das atividades do MASP
para o prédio da Avenida Paulista, em 1968, marca o início de uma nova fase na história do
museu. O projeto didático de museu de Lina Bo e Pietro Maria Bardi ganhava uma nova sede,
dessa vez definitiva, em um edifício concebido especialmente para abrigar a coleção de obras
até então adquiridas pelo MASP, o que, ao mesmo tempo, abria espaço para uma programação
mais ampla e diversificada.
O museu multiplica a agenda de suas atividades culturais a partir de 1970, cumprindo, em certa
medida, as demandas sociais e artísticas da época. O MASP renovou sua programação
ampliando as atividades relacionadas a teatro, cinema, fotografia, música, dança, além de
cursos e laboratórios nestas áreas. Desse modo, procurou atuar no sentido de aproximar o
público do ambiente institucional experimentando formas diversificadas de atuação.
234
DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edusp, 2006;
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify 2006.
235
BARDI, P. M. Op. cit. 1992, p. 91.
84
incorpora o mundo exterior ao seu redor, numa tentativa de aproximação da arte com a vida
cotidiana. A transparência e a robustez das formas remetem a ideias caras ao modernismo, tais
como a preponderância do papel da arquitetura e do design na concepção dos museus e das
atividades que realiza, bem como aos princípios de dessacralização do espaço museal.
Figura 23: Vista da pinacoteca do MASP. Fotografia Paolo Gasparini, 1970. Fonte: Reprodução do catálogo
Concreto e cristal - O acervo do MASP nos cavaletes de Lina Bo Bardi. Coleção particular da autora.
236
BARDI, P. M. [Texto para imprensa]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Inauguração do MASP, 1968.
237
BARDI, P. M. Op. cit. 1992, p. 32.
85
As exposições de fotografia constituíram parte significativa da agenda expositiva do MASP a
partir de 1970. A primeira exposição de fotografia realizada no MASP da Avenida Paulista
Fotógrafos americanos, organizada pelo MoMA238, apresentou obras de fotógrafos como
Diane Arbus, Paul Caponigro, Lee Friedlander, Naomi Savage, Garry Winogrand, Bruce
Davidson, entre outros. Aberta ao público entre 10 e 31 de março de 1970, foi amplamente
noticiada pela imprensa da época, e as 117 fotografias exibidas documentavam as profundas
transformações que vinham acontecendo na sociedade estadunidense239. No dossiê do Arquivo
Histórico do Masp sobre a exposição há uma release que retoma a relação da instituição com a
fotografia:
O Museu de Arte desde sua fundação considerou a fotografia como uma arte tão
importante quantas outras no campo das plásticas, abrindo um curso de fotografia no
qual lecionaram Tomaz Farkas, Sacha Harnisch e outros profissionais. Ao mesmo
tempo, o museu realizou uma série de exposições, entre as quais as de Francisco
Albuquerque, Geraldo de Barros, dos Reporteres Fotograficos do Estado de São
Paulo e Maureen Bisilliat.
Na nova sede o Museu instalou seu laboratório de fotografia e vai agora começar a
série das exposição com uma grande mostra do acervo do Museu de Arte Moderna
de Nova York, que contará com a colaboração do Consulado Geral Americano em
São Paulo. A abertura da exposição está prevista para o dia 3 de março e na
oportunidade será lançado o livro do fotógrafo Sr. Peter Solmssen, intitulado São
Paulo, da editora Graficos Brunner Ltda. (...).240
Com esta declaração, o diretor do MASP reitera a abertura da instituição para a fotografia, que
esteve vinculada à princípio com membros do movimento fotoclubista e, a partir dos anos 1960,
e à fotógrafos advindos do campo do fotojornalismo. Notamos a constante parceria com
gráficas e editoras para o lançamento de livros, que se solidificou enquanto política cultural nos
anos seguintes.
238
Este é mais um paralelo que pode ser detectado com o MAC USP. No mesmo ano, a instituição recebe a
exposição “Cartier-Bresson, fotografias recentes”, também organizada pelo MoMA. COSTA, Helouise. Op. cit.
2008, p. 147.
239
NESTAS fotos, pedaços da vida dos norte-americanos. Jornal da tarde, São Paulo, 10 mar. 1970. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da exposição Fotógrafos Americanos, 1970.
240
BARDI, Pietro Maria [Release para imprensa]. Sem data. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição
Fotógrafos Americanos, 1970. As citações retiradas dos documentos do Arquivo Histórico do MASP foram
mantidas em sua grafia original, o que muitas vezes implica em erros ortográficos devido às mudanças nas
convenções linguísticas ao longo do tempo. Optamos por mantê-las por entendermos que o léxico utilizado
também é uma chave de entrada em uma outra temporalidade que, ao mesmo tempo, nos alerta acerca dos
diferentes contextos da escrita da autora e o dos agentes envolvidos nos processos abordados nesta dissertação.
86
estadunidense241. Mesmo contando com apoio do Consulado Americano a realização da mostra
enfrentou dificuldades para o desembaraço na alfândega. Em um telegrama para Bardi, Raquel
Segall242 relatou que as obras da mostra haviam sido impedidas de entrarem no país sem
aprovação da censura243. É possível supor que os entraves com a burocracia alfandegária
tenham inviabilizado maiores intercâmbios com instituições internacionais.
Pelas tratativas da exposição constatamos que houve a intenção de se realizar uma mostra
paralela com fotógrafos brasileiros, entre os quais constavam os nomes de Claudia Andujar,
José Xavier e Otto Stupakoff. O projeto não pode se concretizar tendo em vista a falta de tempo
hábil para sua montagem, sendo que Stupakoff realizou mostra individual naquele mesmo
ano244.
Em agosto de 1970, Peter Scheier apresentou a mostra 30 anos de visão e multivisão, marcando
a entrada do audiovisual nas salas expositivas do MASP (Figura 24). De acordo com o projeto
da exposição, seriam projetadas 2.000 fotografias de autoria de Scheier, editadas por Michel
Monti. Quanto à forma de apresentação, o documento elucida que “todo o material, tanto preto
e branco, como cor, será projetado sobre uma tela única de 10 por 3 metros, em sistema
backprojection, sem visibilidade do equipamento para o público. O salão não exige total
escuridão, sendo mesmo possível a projeção com a luz natural”245. O trecho destacado é
elucidativo do deslocamento precursor do “efeito cinema”246 apontado por Philippe Dubois.
241
Exposição New Documents [Press release]. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://www.moma.org/documents/moma_press-release_391564.pdf?_ga=2.77662748.906239219.1668958819-
184520652.1668958818 último acesso em: 06/06/2022.
242
Raquel Segall era o nome de casada da galerista Raquel Arnaud.
243
SEGALL, Raquel [Telegrama]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. 17 de fevereiro de 1970. Arquivo Histórico
do MASP. Pasta da exposição Fotógrafos Americanos, 1970.
244
No dossiê da exposição foi encontrada apenas uma carta de Pietro Maria Bardi enviada a Otto Stupakoff, na
qual não foi possível obter maiores informações sobre as fotografias exibidas. BARDI, Pietro Maria
[Correspondência]. Destinatário: Otto Stupakoff. 13 de fevereiro de 1970. Arquivo Histórico do MASP. Pasta
da exposição Otto Stpakoff, 1970.
245
30 anos de fotografia aplicada no Brasil [Texto]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição 30 anos de
visão e multivisão de Peter Scheier, 1970.
246
DUBOIS, Philippe. Um “efeito cinema” na arte contemporânea. Dispositivos de registro na arte
contemporânea. Rio de Janeiro: Contracapa/FAPERJ, 2009, p. 179-216.
87
Figura 24: Vista da exposição 30 anos de visão e multivisão de Peter Scheier no Masp, 1970. Fonte: Reprodução
do catálogo da exposição Arquivo Peter Scheier do IMS SP. Biblioteca de Fotografia do IMS.
Entre os anos 1970 e 1980, o MASP realizou mais de 160248 exposições que tiveram a fotografia
como expressão artística principal, algumas das quais, a exemplo da exposição de Peter Scheier,
incluíam as linguagens audiovisuais. São recorrentes os nomes de fotógrafos influentes na
época e interessados na legitimação artística da fotografia, cuja produção é relevante ainda hoje
247
30 anos de fotografia aplicada no Brasil [Texto]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição 30 anos de
visão e multivisão, 1970.
248
Dados levantados a partir da análise do banco de dados do Arquivo Histórico do MASP. Conforme
constatamos no primeiro capítulo, com a ausência de registro da exposição de Annemarie Heinrich, é possível
que o número de eventos seja superior.
88
no cenário artístico nacional. Maureen Bisilliat, Cristiano Mascaro, Madalena Schwartz, Otto
Stupakoff, Claudio Edinger, Walter Firmo, Boris Kossoy, Miguel Rio Branco, Dulce Soares,
Luigi Mamprim, Pedro Vasquez, Arnaldo Pappalardo, entre muitos outros. Este levantamento
inicial já nos dava algumas pistas sobre os critérios e as particularidades da assimilação da
fotografia empreendida pelo MASP.
Sendo assim, destacamos as mostras audiovisuais de Claudia Andujar e George Love para o
estudo de caso a seguir, por considerá-las como pontos de intersecção entre fotografia, cinema
e artes visuais, e, portanto, práticas artísticas contemporâneas. Além disso, estiveram à frente
do Laboratório de Fotografia mantido pelo MASP na década de 1970, onde lecionaram e vieram
a fundar o Departamento de Fotografia. Do levantamento inicial das exposições de fotografia
realizadas pelo MASP, de 1947 a 1989, realizado para essa dissertação, disponibilizaremos a
lista em anexo com o objetivo de contribuir para futuras pesquisas relacionadas ao tema
(ANEXO 01).
No momento em que expõem pela primeira vez no MASP, Claudia Andujar e George Love já
eram fotógrafos experientes que desfrutavam de certo reconhecimento entre seus pares do meio
fotográfico nacional e internacional. O encontro pessoal entre os dois trouxe contribuições
recíprocas em suas buscas poéticas, conforme veremos na análise de suas trajetórias pessoais
e artísticas.
Com esse propósito, adotamos a noção de trajetória de vida como um terreno amplo e aberto a
experiências variadas, em contraponto à ideia clássica de biografia. De acordo com Pierre
Bourdieu, o senso comum trata a história de vida como uma progressão de fatos lineares e
unidirecionais, um percurso orientado, “que tem começo, etapas e um fim, no duplo sentido,
89
de término e de finalidade, um fim da história”249. Bourdieu recomenda que evitemos o
entendimento de identidades fixas ou constantes a fim de incorporar as vicissitudes e as
variadas redes de relações que se estabelecem ao longo da vida:
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um ‘sujeito’
cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão
absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a
estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações.250
Além disso, via de regra, a biografia é tratada em um sentido único e individual, que se traça
exclusivamente por escolhas pessoais, em detrimento das redes de relações que se formam ao
longo de uma vida. Assim sendo, inicialmente retomaremos alguns dados biográficos de
Claudia e de George separadamente, para em seguida colocá-los em perspectiva traçando a
convergência entre suas trajetórias e, conforme veremos, também seu distanciamento.
As fontes utilizadas para tal correlação, a princípio, partiram de pequenas informações sobre a
dupla artísticas que haviam formado na década de 1970, encontradas em catálogos de
exposições monográficas recentes de Claudia Andujar251, bem como de entrevistas concedidas
por ela a curadores e pesquisadores252. Os dados levantados apontavam para os anos 1970 como
um período marcado por experimentalismos e trânsitos entre o fotojornalismo, o circuito
artístico e a militância política.
No caso de George Love pesquisas anteriores sobre sua produção fotojornalística consistiram
em relevantes fontes de pesquisa253. Depoimentos concedidos por George ao fotógrafo Zé de
249
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.).
Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 183-191.
250
Ibid., p. 189-190.
251
Destacamos três destas exposições que mais nos serviram de referência. NOGUEIRA, Thyago (org.).
Claudia Andujar - A luta Yanomami. São Paulo: IMS, 2018 (catálogo de exposição). NOGUEIRA, Thyago
(org.). Claudia Andujar - No lugar do outro. São Paulo: IMS, 2015 (catálogo de exposição). ANDUJAR,
Claudia. A vulnerabilidade do ser, São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2005 (catálogo de exposição).
252
Salientamos quatro entrevistas concedidas por Andujar utilizadas nesta dissertação, duas para pesquisadores
e duas para os curadores de suas mostras individuais: ANDUJAR, Claudia. Poesia, pintura e fotografia –
Entrevista de Claudia a Augusto Massi, Eduardo Brandão e Alvaro Machado. In: ________. A vulnerabilidade
do ser. São Paulo: Cosac Naify, Pinacoteca do Estado, 2005, p. 103-125 (catálogo de exposição). BONI, Paulo
César. Entrevista: Claudia Andujar. Discursos fotográficos, Londrina, v. 6, n. 9, jul.-dez. 2010, p. 249-273.
MAUAD, Ana Maria. Imagens possíveis Fotografia e memória em Claudia Andujar. Revista Eco-Pós, v. 15, n.
1, 2012, p. 124-146. NOGUEIRA, Thyago (org.). Claudia Andujar - No lugar do outro. São Paulo: IMS, 2015,
p. 237-245 (catálogo de exposição).
253
Cito aqui a dissertação de mestrado do pesquisador Ângelo Manjabosco: MANJABOSCO, Angelo Augusto.
O Brasil não é para principiantes: Lew Parrella, George Love e David Zingg, fotógrafos norte-americanos na
revista Realidade (1966-1968). 2016. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte) Programa de Pós-
graduação em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. E o artigo do
pesquisador Douglas Canjani: CANJANI, Douglas. O fotojornalismo expandido de George Love no Brasil:
90
Boni254 e artigos publicados na imprensa da época (décadas de 1970 e 1980) também foram de
grande valia. Além disso, seu currículo escrito, em primeira pessoa e depositado no Arquivo
MASP, nos serviu de guia para a sinopse de sua trajetória aqui apresentada.
Neste sentido, procuramos construir paralelos entre suas produções fotojornalísticas do final
dos anos 1960 e início da década de 1970, antes de se dedicarem às atividades institucionais
no circuito dos museus paulistas. Levantamos a hipótese de que na passagem de ambos pelo
campo do fotojornalismo, já estivessem investigando poéticas fotográficas que viriam a
empregar em suas criações artísticas.
Por fim, partimos para a descrição da investigação realizada no Arquivo Histórico do MASP,,
com o intuito de reconstituir as trajetórias institucionais de ambos. Analisaremos as exposições
iniciais de ambos no museu, a saber: o evento Som, Imagem, Luz (1971); os primeiros
audiovisuais que exibiram na instituição; a exposição A Família Brasileira; e a exposição A
Hiléia Amazônica. Apenas através da investigação de suas trajetórias, em justaposição aos
vestígios do Arquivo, que conseguimos dimensionar suas colaborações para a assimilação da
fotografia no MASP.
91
Aos treze anos tive o primeiro encontro com os "marcados para morrer". Foi na
Transilvânia, Hungria, no fim da Segunda Guerra. Meu pai, meus parentes paternos,
meus amigos de escola, todos com a estrela de Davi, visível, amarela, costurada na
roupa, na altura do peito, para identificá-los como "marcados", para agredi-los,
incomodá-los e, posteriormente, deportá-los aos campos de extermínio. Sentia-se no
ar que algo terrível estava para acontecer.257
Mãe e filha embarcam então em um trem para refugiados, numa difícil viagem de volta à Suíça
onde permanecem até 1946. O relacionamento difícil com a mãe e as diferenças culturais do
novo país motivaram-na a aceitar o convite de familiares paternos, que haviam imigrado para
os EUA antes mesmo da perseguição nazista, para morar com eles. A jovem Claudine chegou
em Nova York como refugiada da II Guerra Mundial e adotou o nome Claudia. Em 1949,
Claudia ingressou no Hunter College, faculdade pública integrada à Universidade de Nova
York, para estudar Humanidades. Neste mesmo ano, casou-se com o colega de ginásio Julio
Andujar, de origem espanhola e também refugiado da guerra. Julio havia se alistado no exército
americano com o objetivo de receber o visto permanente e em 1950 foi convocado para lutar
na Guerra da Coreia. Quando ele retorna aos EUA, em 1953, o casal se separa oficialmente.
Claudia decide manter o sobrenome do ex-marido como forma de dificultar a identificação de
sua origem judaica258.
Por saber vários idiomas, Claudia Andujar conseguiu emprego na Organização das Nações
Unidas, trabalhando como uma espécie de guia turístico. Ainda em 1952, vinha desenvolvendo
pinturas à óleo a partir de estudos sobre expressionismo abstrato e mostrou algumas delas em
duas exposições, uma na Galeria Coeval com o pintor e cineasta filipino Ramon Estella, e outra
nas Nações Unidas. Nesta época, Claudia frequentou museus e exposições em cartaz na
cidade259.
Durante a estadia de Claudia em Nova York, sua mãe mudou-se para o Brasil para se casar
com um imigrante romeno que havia conhecido antes de voltar para a Suíça. Em 1955, Claudia
desembarcou pela primeira vez no país para visitá-la. Fizeram juntas algumas viagens para o
litoral e o interior que motivaram-na a ficar no Brasil. Estabeleceu-se no centro de São Paulo e
conheceu pessoas do meio artístico e intelectual que transitavam pela região na época. Não foi
possível apurar se a artista trouxe consigo algumas pinturas ou se produziu depois de se fixar
em São Paulo, no entanto, os catálogos do Salão Paulista de Arte Moderna atestam que mostrou
257
ANDUJAR, Claudia. Marcados: Claudia Andujar. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
258
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2018, p. 274.
259
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015, p. 239-240.
92
algumas delas na quarta e quinta edições do evento260. Claudia expôs em 1955 e 1956,
respectivamente, ao lado de nomes consagrados do modernismo brasileiro como Alfredo Volpi
e Anita Malfatti. Por volta deste período conheceu Pietro Maria Bardi, enquanto o MASP ainda
funcionava na rua sete de abril.
Claudia Andujar começou a fotografar como forma de conhecer e se comunicar, já que ainda
não falava português, e aprendeu a revelar seus próprios filmes em um pequeno estúdio
comercial do centro da cidade. Entre os amigos que fez neste período estava o antropólogo
Darcy Ribeiro, que sugeriu para ela fotografar o povo Karajá. O primeiro contato de Andujar
com pessoas indígenas data de 1958.
Neste mesmo ano, Pietro Maria Bardi escreveu artigo para a revista Habitat no qual traçava o
deslocamento da artista da pintura para a fotografia, que veio a ser a primeira crítica de arte
sobre o seu trabalho publicada no país. O artigo reproduz algumas das fotografias realizadas
por Andujar em suas primeiras viagens pelo continente sul americano, nas quais podemos
perceber a repercussão do ambiente fotográfico americano no trabalho da jovem fotógrafa. Nas
imagens da série sobre os Karajás (Figura 25), seu primeiro projeto autoral261, e nas fotografias
das cholitas bolivianas (Figura 26), podemos notar a atenção que dispensa às composições e
aos contrastes, mesmo sendo possível perceber a busca por maior domínio técnico. Bardi
afirma em seu texto que:
(...) Quem está ao par de como poderá ser manipulada uma reprodução fotográfica -
pensamos no grande Moholy Nagy - sabe que o claro-escuro, a graduação de um
sensibilizador, a escolha do material e dos outros elementos da alquimia, de
preparação, de trabalho, de adequação, constituem valores autênticos e atuações de
arte.
Não surpreende, portanto, que Claudia tenha sido levada da pintura para a fotografia
e nesta arte transferiu os estímulos que a impeliram a pintar. O resultado é
maravilhoso, é resultado de arte, e esperamos que o volume dedicado aos Carajás que
a pintora está preparando, faça fugir por completo o sentido - um pouco melancólico,
muito humano e muito humanamente cordial de sua arte.262
Os comentários do diretor do MASP são marcados por ambivalências. Se por um lado pontua
o apuro técnico de Andujar, a comparação com a pintura parece buscar legitimidade em uma
modalidade artística consagrada. Seu argumento final, materializado pelo uso da palavra
260
Catálogos do Salão Paulista de Arte Moderna. Na edição de 1955 o nome de Claudia aparece na seção de
“Pintura” e na de 1956 na seção “Guache”.
261
ANDUJAR, Claudia. [Correspondência]. Destinatário: Jerônymo Oscar Bandeira de Mello. São Paulo, 16
de agosto de 1971. Arquivo histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia A, 1972.
262
BARDI, Pietro M. From a line to a smile. Habitat, nº 48, 1958, p. 51.
93
"cordial", revela certa tentativa de atenuar as contradições e desigualdades sociais que já faziam
parte dos questionamentos que Claudia desenvolveria em seu trabalho.
Figura 25: Claudia Andujar, Karajás. Revista Habitat, nº 48, maio-junho de 1958. Fonte: Acervo Centro de
Pesquisa do MASP.
Em alguns anos, Andujar consolidou um portfólio com o qual retornou a Nova York a fim de
divulgar seu trabalho fotográfico, visto que despertava pouco interesse das linhas editoriais da
imprensa local. Entre o final dos anos 1950 e começo da década de 1960, conseguiu publicar
nos Estados Unidos imagens da série dos Karajás na edição espanhola da revista Life263 e
realizou, em 1960, exposição individual na Galeria Limelight264. Esta que foi uma das
primeiras galerias especializadas em fotografia e funcionou por sete anos alcançando relativo
sucesso comercial, visto o incipiente mercado da fotografia na época. Andujar foi convidada
para expor suas fotografias na Limelight pelo fotógrafo Lew Parrella265, responsável pela
263
MANJABOSCO, Angelo; TONG, Valentina; ROCHA, Jan. Cronologia. In: NOGUEIRA, Thyago (org.).
Op. cit. 2018, p. 274.
264
GEE, Helen. Limelight: a Greenwich Village photography gallery and coffeehouse in the fifties.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 1997, p. 296.
265
Lew Parrella (1927-2014), fotógrafo norte-americano, atua no Brasil a partir da década de 1960 e cultiva
relações de proximidade com o MASP, mesmo nunca tendo realizado exposições no museu. Parrella é autor de
uma das fotografias mais conhecidas de Lina Bo Bardi na construção do MASP. Na coleção do fotógrafo Lew
Parrella, salvaguardada pelo Arquivo Fotográfico do MASP, existem negativos com imagens da Galeria
Limelight datados de 1959. Arquivo MASP. Coleção Lew Parrella.
94
realização de mostras da galeria na época. Parrella atuou posteriormente no Brasil como
integrante da equipe da Editora Abril e também fotografou para a revista Realidade.
Figura 26: Claudia Andujar, cholita boliviana. Revista Habitat, nº 48, maio-junho de 1958. Fonte: Acervo
Centro de Pesquisa do MASP.
Foi por intermédio de Lew Parrella que Claudia conheceu Eugene Smith, Minor White e
Edward Steichen, então diretor do departamento de fotografia do MoMA266. Em outubro de
1960, teve cinco de suas fotografias exibidas na mostra do MoMA Photographs for collectors
ao lado de imagens de Eugène Atget, Robert Capa, Robert Frank, Henri Cartier-Bresson, Ansel
Adams, do próprio Steichen, entre outros. Claudia foi uma das poucas mulheres a figurar na
exposição267 e essa participação resultou na aquisição de duas de suas fotografias para o acervo
do museu. No ano seguinte, expõe também na The George Eastman House em Rochester268.
Entre 1962 e 1964, Claudia Andujar produziu a série de fotografias sobre o tema Famílias
266
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit., 2015, p. 242.
267
Photographs for collectors, 1960. [Masters checklist]. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://assets.moma.org/documents/moma_master-
checklist_326201.pdf?_ga=2.82684950.1268700961.1653055793-1898889316.1652046240
268
MANJABOSCO, Angelo; TONG, Valentina; ROCHA, Jan. Cronologia. In: NOGUEIRA, Thyago (org.).
Op. cit. 2018, p. 274.
95
brasileiras, que pretendia publicar em revistas de circulação nacional. Porém, não houve
interesse por parte da imprensa da época e as imagens permaneceram inéditas até 2015269. De
1964 a 1965, Claudia engajou-se em um projeto no qual procurou retratar as atribuições das
mulheres da etnia Bororo. Suas fotografias continuaram a despertar maior interesse fora do
Brasil. Mesmo colaborando com publicações brasileiras como A Cigarra, Setenta, Claudia e
Quatro Rodas, Andujar ainda não havia exposto em galerias ou museus nacionais. É provável
que a situação política dos anos 1960, o golpe militar e as crises nas instituições paulistas
tenham colaborado para tal cenário. Em entrevista ao pesquisador Paulo César Boni, Claudia
nos conta sobre as dificuldades iniciais que enfrentou no fotojornalismo:
Apesar de haver trabalhado muito com fotografia no final dos anos 50 e início dos
anos 60, não foi fácil ser reconhecida como fotógrafa no Brasil. Circunstancialmente,
era mais fácil fora do país. Comecei a ser reconhecida como profissional no início
dos anos 60, na Editora Abril, mais especificamente na revista Realidade. Antes,
tentei fazer algumas coisas para a revista Claudia. Propus mostrar o Brasil que havia
por trás das famílias brasileiras. Neste sentido, fiz uma reportagem em Diamantina
(Minas Gerais) com uma família tradicional e muito religiosa, fiz outra com uma
família de classe média paulista, outra com uma família de caiçaras do litoral paulista,
e assim sucessivamente. Bom, quando eu mostrei o trabalho para o editor da Claudia,
ele disse que poderia aproveitar alguma coisa, apesar de esse tipo de reportagem não
ser o estilo da revista... Então, esse foi o meu início como fotojornalista no Brasil.270
Enquanto isso, um pouco antes de ingressar na revista Realidade, começou a ganhar certa
projeção internacional. Suas imagens foram exibidas na mostra coletiva Wetausstellung der
Photographie que itinerou por museus europeus271. Participou também da Feira Mundial de
Nova York, no pavilhão da Kodak, integrando a exposição The World and Its People, em 1965.
Seis imagens da série sobre a mulher Bororo passaram a integrar o acervo da George Eastman
House e outras duas fotos foram adquiridas pelo MoMA. Além disso, colabora com revistas
estrangeiras como Life, Look e Jubilee. Na mesma época, em meados dos anos 1960, em sua
movimentação pelo cenário artístico nova-iorquino, Claudia conheceu o fotógrafo George
Love.
269
Salvo algumas imagens exibidas em 2005 na exposição Vulnerabilidade do ser, a série sobre As famílias
brasileiras foi exposta em 2015 na exposição Claudia Andujar - No lugar do outro, realizada pelo IMS RJ, e
publicada no catálogo da mostra. NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015, p. 07-76.
270
BONI, Paulo César. Entrevista: Claudia Andujar. Discursos fotográficos, Londrina, v. 6, n. 9, jul.-dez. 2010,
p. 255.
271
MANJABOSCO, Angelo; TONG, Valentina; ROCHA, Jan. Cronologia. NOGUEIRA, Thyago (org.). Op.
cit., 2018, p. 274.
96
George Leary Love nasceu em Charlotte, nos Estados Unidos, em 24 de maio de 1937. Filho
de George Bishop Love e da escritora e compositora Rose Leary, cuja família vinha de uma
longa tradição de luta por equidade de direitos raciais naquele país. Abolicionista, o avô de
Rose dedicou-se a prestar assistência e a alfabetizar a população negra, atividade considerada
ilegal na época. Seu pai formou-se advogado e foi admitido na Ordem dos Advogados da
Carolina do Norte, tornando-se o segundo homem negro a ocupar tal posto. Rose foi a primeira
professora negra do sistema de ensino público de Charlotte, no qual atuou entre 1925 e 1964272.
Durante sua infância e juventude, George viveu em uma sociedade marcada por políticas
segregacionistas que perderiam respaldo legislativo apenas no final década de 1960273, depois
de muitos conflitos e lutas travados pelo movimento negro por direitos civis. Charlotte, no
entanto, tornou-se uma das cidades de maior segregação habitacional dos EUA durante os anos
1950. A cidade era dividida em bairros onde moravam pessoas negras e outros nos quais viviam
as pessoas brancas e da mesma forma eram separados os transportes e locais públicos. Sobre o
racismo sofrido por Love, Andujar rememora um episódio que vivenciou em uma visita à
cidade: “Em Charlotte, um dia fomos dar um passeio e um cara nos parou na rua dizendo para
a gente não andar junto, uma pessoa negra com uma pessoa branca. Fiquei chocada”274. Claudia
atribui à opção de George em viver fora dos Estados Unidos ao fato de sofrer discriminação
racial em sua terra natal275.
A família de George Love via na educação uma forma de combater o preconceito. George foi
desde cedo incentivado a dedicar-se aos estudos, e ingressou bastante jovem na universidade
por meio do programa Ford Early Entrance Scholar. Segundo seu currículo, escrito em
primeira pessoa e depositado na documentação de referência do MASP276, formou-se bacharel
em matemática com ênfase nas áreas de física e filosofia pelo Morehouse College de Atlanta,
Geórgia, em 1957, considerada uma das melhores universidades exclusivas para pessoas negras
272
Os arquivos da família constituem a coleção Leary Love Family Papers depositada na Universidade da
Carolina do Norte, na qual encontra-se atualmente parte considerável do acervo fotográfico e multimídia de
George Love. Disponível em https://findingaids.uncc.edu/repositories/4/resources/219
273
As legislações podem mudar de acordo com o Estado, a forte tradição federalista nos EUA, prevê a
autonomia de cada uma das federações para estabelecer suas próprias leis. As mobilizações do movimento negro
por direitos civis obtêm importantes vitórias desde a década de 1950, até o banimento de qualquer legislação
segregacionista nas décadas de 1960 e 1970.
274
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015, p. 242.
275
Este depoimento de Andujar reitera sua percepção quanto aos preconceitos sofridos por George nos Estados
Unidos relatados em entrevista publicada em 2005. ANDUJAR, Claudia. Op. cit. 2005, p. 116.
276
LOVE, George [Curriculo]. Arquivo de Referência. Pasta George Love.
97
da época. Neste mesmo ano, partiu para a Indonésia onde trabalhou para a United States
International Cooperation Administration, como assistente de pesquisa de campo no
departamento de educação. Passou cerca de quatro anos em constantes viagens pela Ásia,
Oriente Médio e Europa, em contato direto com diversas culturas. É possível que sua inclinação
ambientalista tenha vínculos com este período de formação e descobertas. Em 1961, de volta
aos EUA, mudou-se para Nova York e estudou matemática aplicada e filosofia na New School
for Social Research. Iniciou-se na fotografia de forma autodidata, envolvendo-se de maneira
definitiva ao filiar-se à Association of Heliographers277.
Fundada em 1963 por Walter Chappell, a Association of Heliographers era formada por
fotógrafos como Paul Caponigro, William Clift e Carl Chiarenza, interessados em novos modos
de produção e composição de fotografias. Em seu currículo, Love atribui seu interesse pela a
Associação à aproximação com o fotógrafo Minor White, cujo trabalho havia sido inspiração
para o próprio Chappell. White começou sua carreira estagiando no Departamento de
Fotografia do MoMA278 em meados da década de 1940, onde já havia exposto fotos suas na
mostra coletiva Image of Freedom279. Por intermédio de Beaumont Newhall, conheceu Paul
Strand, Edward Weston e Alfred Stieglitz. Em 1952, foi um dos diretores-fundadores da revista
Aperture, na qual também era editor. Logo após a criação da revista mudou-se para Rochester
para trabalhar na George Eastman House, chefiando o departamento onde também atuava
Walter Chappell, a quem serviu de estímulo. Possivelmente por estas razões, Minor White é
citado como um dos fundadores do movimento fotográfico da Association of Heliographers,
mesmo sem ter se tornado societário oficialmente, conforme aponta a lista de registros
publicada por Chappell280.
277
Heliografia é um processo fotográfico que pressupõe o uso da luz do sol para impressões, descoberto por
Niépce em 1829.
278
O jovem e ainda iniciante fotógrafo, passou uma temporada como estagiário de Nancy e Beaumont Newhall,
os quais lhe ensinaram sobre os procedimentos do departamento no museu. Dobransky, Diana.Op. cit. 2008, p.
151.
279
Image of Freedom [Press release]. Arquivo MoMA. Disponível em:
https://assets.moma.org/documents/moma_press-
release_325270.pdf?_ga=2.11589684.1055964441.1654186778-1734746724.1654092248 acesso em:
13/04/2022.
280
Em seu artigo, o pesquisador Douglas Canjani reproduz o texto escrito por Walter Chappell na ocasião de
abertura de exposição sobre a história da Associação de Heliógrafos, e publicado dois anos depois, no qual não
consta o nome de Minor White como fundador ou como sócio. A exposição realizada em 1998, na Hvgo Pagani
Gallery em NY, comemorou os 35 anos de fundação da Associação e contou com a participação dos membros
fundadores Paul Caponigro, Carl Chiarenza, William Clift e Marie Cosindas (a única mulher do grupo inicial de
associados), além do próprio Chappell. CANJANI, Douglas. Op. cit., 2015, s/p.
98
A Associação funcionou por pouco mais de dois anos e reuniu cerca de quarenta fotógrafos de
tendências diversas. Além dos membros fundadores - Walter Chappell, Paul Caponigro, Carl
Chiarenza, William Clift e Marie Cosindas - a certa altura, associaram-se nomes como Harry
Calaham, Syl Labrot, Larry Clark e W. Eugene Smith281. As produções eram muito
heterogêneas, o que pode ter originado o desmembramento do núcleo. No entanto, como o
próprio nome sugere, os fotógrafos do grupo estavam interessados em criar imagens que
pudessem materializar visualmente uma experiência subjetiva a partir da manipulação da luz
natural através da câmera, com o intuito tanto de penetrar quanto de transcender os assuntos
fotografados. Nas palavras do próprio Chappell:
Podemos identificar diversos pontos em comum entre as ideias defendidas pelos membros da
Associação e as declarações que George dará sobre sua produção fotográfica ao longo de sua
carreira. Neste sentido, a fotografia era para ele um meio de traduzir um sentimento, uma forma
de ampliação da percepção sobre o mundo. Ao mesmo passo que seria um veículo para atingir
autoconhecimento e aperfeiçoamento pessoal através da linguagem artística, como veremos
mais adiante.
Ele, tecnicamente, era bem mais desenvolvido que eu. Queria sempre encontrar novos
ângulos, novas maneiras de fotografar. Eu tinha uma visão mais social. Ele era um
grande fotógrafo, mas procurava uma coisa diferente daquilo que eu fotografava.
Aprendi muita coisa com George. Mais esse lado técnico e a busca por novas
linguagens na fotografia. Mas nunca abandonei meu interesse humano. A procura da
alma das pessoas. Até hoje.283
281
LOVE, George [Curriculo]. Arquivo de Referência. Pasta George Love.
282
CHAPPELL, White apud CANJANI, Douglas. Op. cit., 2015, s/p. (Tradução da autora).
283
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015, p. 242.
99
Em 1963, Love se tornou membro da Associação, e em pouco tempo assumiu a presidência e
a gerência da Heliography Gallery, localizada na cidade de Nova York. Trabalhou na
montagem de eventos e exposições, ministrou workshops na galeria até 1966 e expôs seus
trabalhos em pelo menos cinco oportunidades. Durante este período, George integrou como
fotógrafo de campo o Student Non-violent Coordinating Comittee (SNCC)284, uma das
associações mais respeitadas do movimento social estadunidense por direitos civis. Love
cobriu momentos significativos do movimento negro e registrou a trajetória de dirigentes
influentes como Huey Newton285. Ademais, coordenava outros fotógrafos para atuarem na
documentação das transformações sociais que vinham acontecendo nos Estados Unidos na
década de 1960. Também treinava e dava suporte técnico aos laboratoristas da equipe. Alguns
dos trabalhos desenvolvidos em campo deram origem à exposição Now!, organizada por Love
em 1965, na School of Visual Arts de Nova York.
2.1.3 - O casal
Em meados da década de 1960, tanto Claudia Andujar quanto George Love estavam
empenhados em suas pesquisas fotográficas e inseridos nos circuitos que tinham a fotografia
como meio de expressão artística da cidade de Nova York. A pesquisa com a fotografia foi a
propulsora do encontro entre eles. Para além de formarem um casal (Figura 27), entre 1968 e
1974, constituíram uma dupla de criação artística na qual as trocas mútuas eram constantes,
cujo exemplo é a publicação conjunta do livro de fotografias Amazônia, em 1978.
284
O SNCC foi fundado em abril de 1960, por um grupo de estudantes universitários na Shaw University de
Raleigh, Carolina do Norte, há cerca de duas horas e meia da cidade natal de Love. As primeiras atuações do
grupo consistiam em protestos pacíficos contra a segregação em restaurantes (conhecidos como sit-ins), depois
em viagens de ônibus interestaduais. A partir de 1962, com a repercussão das ações anti-segregacionistas, os
integrantes passaram a sofrer violentos ataques da Ku Klux Klan e também da polícia. O SNCC permaneceu
com estratégias não-violentas, que incluíram na agenda do comitê campanhas de conscientização do poder
político através do voto, até meados de 1966. Em 1967, o SNCC se alia ao Black Panther Party, com isso as
ações tomam uma direção mais militante e o grupo se torna exclusivo para negros. O SNCC concluiu suas
atividades no ano de 1973. Disponível em: https://www.archives.gov/research/african-americans/black-
power/sncc
285
CANJANI, Douglas. Op. cit., 2015, s/p.
100
Figura 27: Claudia Andujar e George Love, 1968. Fonte: Reprodução do catálogo Claudia Andujar - A luta
Yanomami. Coleção particular da autora.
286
CHADWICH, Whitney; COURTIVRON, Isabelle de. Amor & arte: duplas amorosas e criatividade artística.
Ana Luísa Borges (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
101
MASP, até a publicação do livro de fotografias Amazônia287. A respeito do encontro entre eles
em Nova York e a mudança de George para o Brasil, Claudia nos conta:
(...) foi nesse ambiente fotográfico que a gente se conheceu. Depois voltei para o
Brasil, e ele decidiu vir conhecer o país. Isso foi justamente numa época em que a
Editora Abril estava procurando fotógrafos. Foi uma coincidência. Ele não veio por
causa da editora, queria trabalhar, mas não sabia bem como seria. Eu o trouxera para
conhecer o Brasil, e ele gostava de mim, então se estabeleceu aqui. Foi outra feliz
coincidência ele ter começado a trabalhar na Realidade também.288
Claudia e George figuraram na equipe de fotógrafos da Editora Abril entre 1966 e 1971.
Trabalharam em diversas revistas da editora como Claudia, Bondinho, Quatro Rodas, e na
Realidade encontraram cenário propício para desenvolverem a habilidade de contar histórias
de maneira criativa e pouco óbvia. Ou melhor, exercitaram a capacidade de oferecer uma
impressão da história que queriam contar, quebrando com certos paradigmas do uso da
fotografia em reportagens.
Conviveram com uma equipe de fotógrafos de perfis distintos que incluía, entre outros, Luigi
Mamprim, Lew Parrella, Roger Bester, David Drew Zingg, Jorge Butsuem e Maureen
Bisilliat289. José Hamilton Ribeiro, um dos editores da revista, em seu depoimento para o
documentário de Jorge Bodanzky sobre A Realidade de Claudia Andujar, nos diz: “ a presença
da mulher como fotógrafa, era de fato pequena na ocasião, foi uma surpresa… uma grande
surpresa acontecer de chegarem juntas na revista Realidade duas grandes fotógrafas, duas
grandes mulheres na fotografia”290. E Maureen completa sobre sua experiência: “Eu dei muito
valor, foi uma coisa transcendental para as pessoas que tiveram, como eu, como a Claudia,
como o George, a oportunidade de fazer parte… Foi assim!”291.
Neste sentido a experiência na Realidade foi bastante produtiva, visto que em nenhuma outra
publicação brasileira os fotógrafos atuavam com tanta liberdade, participando da escolha de
287
O pesquisador Vitor Marcelino da Silva em sua tese de doutorado defende a criação coletiva do livro
Amazônia estendendo sua análise para a equipe que participou da publicação, além da dupla de autores. SILVA,
Vítor Marcelino. A construção coletiva de Amazônia: fotografia e política no livro de Claudia Andujar e George
Love. 2022. Tese (Doutorado em História da Arte). Programa Interunidades em Estética e História da Arte,
Universidades de São Paulo, 2022.
288
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015, p. 242.
289
Maureen Bisilliat mantém forte ligação com George Love e Claudia Andujar e também com o MASP entre
as décadas de 1970 e 1980.
290
BODANZKY, Jorge. A realidade de Claudia Andujar. Youtube, 13 de novembro de 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dMxEZWpBKjg&ab_channel=revistaZUM acesso em: 25/10/2018.
291
BODANZKY, Jorge. A realidade de Claudia Andujar. Youtube, 13 de novembro de 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dMxEZWpBKjg&ab_channel=revistaZUM acesso em: 25/10/2018.
102
pautas e da edição final das matérias. Dispuseram do fotojornalismo como forma de sustento,
visto que a ocupação oferecia a oportunidade de aprofundamento nas pesquisas de materiais e
de desenvolvimento da linguagem fotográfica.
Conforme depoimento de Roberto Civita proprietário e editor da revista Realidade, não havia
hierarquia entre fotógrafo e repórter, e a construção das matérias acontecia de forma coletiva:
Nos primeiros quatro ou cinco anos de Realidade, nós vivemos um momento único
do jornalismo, não só brasileiro, mas mundial. Nas reuniões de pauta mensais, em
que se discutia os assuntos a serem abordados no mês seguinte, designavam-se duplas
repórter-fotógrafo para cada matéria. Ambos saíam a campo como um time, ou seja,
não havia maior importância para um ou outro. Na volta, o layout era feito com a
participação de ambos: repórter opinava o aspecto visual e vice-versa, fotógrafo
palpitava no texto. A equipe se completava com o diretor de arte, editor de texto e
editor geral, para produção da matéria final. Não se usava o expediente do repórter
para ficar na redação escrevendo em cima de fatos levantados por pesquisadores. Isso
era considerado baixaria, anti-jornalismo.293
O design gráfico e o tratamento dado à fotografia como expressão, fizeram com que as imagens
publicadas pela revista causassem impacto significativo na imprensa local. George Love logo
tornou-se conhecido no meio editorial pelas pesquisas que desenvolvia com os processos
fotomecânicos empregados na produção gráfica da época, pelo domínio que tinha da técnica e
pelos experimentalismos que marcavam suas imagens. Love, desde suas primeiras publicações
na imprensa brasileira, alterava a cor das imagens através do uso de filtros e filmes
292
COSTA, Helouise; BURGI, Sérgio (ed.). As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O
Cruzeiro, 1940-1960. Instituto Moreira Salles, 2012, p. 289.
293
DE BONI. Op. cit. 1995, p.18.
103
infravermelhos, ou do descarte de um ou mais canais na impressão294. Publicou imagens
resultantes de longas exposições que traziam efeitos de borrões e cores adulteradas (Figura
28), rompendo com a fotografia baseada na veracidade e no retrato fiel, algo até então
impensado em se tratando de fotojornalismo no Brasil295.
Figura 28: George Love, capa Revista de Fotografia nº4, 1971. Fonte: Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP.
Claudia Andujar, por sua vez, era designada para cobrir as pautas mais desafiadoras, uma vez
que sempre esteve imbuída de coragem e espírito aventureiro. “Me mandavam para lugares
complicados de fotografar, lugares fora do comum, e eu gostava muito disso. Aliás, eu até pedia
para fazer coberturas politicamente ou socialmente fora do comum”296. Recorria a filmes preto
e branco, abusando dos altos contrastes e de sua sensibilidade em relação à captação da luz
294
O pesquisador Ângelo Manjabosco, em sua dissertação de mestrado, elabora análise sobre a experiência de
George Love na revista Realidade e suas inovações técnicas na impressão de imagens. MANJABOSCO,
Ângelo. Op. cit. 2016.
295
CANJANI, Douglas. Op. cit. 2015, p. 06.
296
BONI, Paulo César. Entrevista: Claudia Andujar. Discursos fotográficos, Londrina, v. 6, n. 9, jul.-dez. 2010,
p. 256.
104
natural, que conferiam texturas e dramaticidade às cenas retratadas. Andujar muitas vezes
captava as imagens de forma direta, publicando-as sem intervenções ou trucagens.
Por meio de duas reportagens publicadas em 1967 pela Realidade297, podemos notar a diferença
dos recursos compositivos aplicados por George Love e Claudia Andujar. Em Nasceu! (Figura
29), de janeiro de 1967, Andujar retrata em filme preto e branco o cotidiano de uma parteira da
cidade de Bento Gonçalves, interior do Rio Grande do Sul. Acompanhadas por texto de Narciso
Kalil, as imagens apresentam uma forte carga expressiva e emocional.
Figura 29: Claudia Andujar, Nasceu!, Realidade nº10, jan. 1967. Fonte: Biblioteca da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da USP.
O parto iluminado por uma luz à vela, atribui certa teatralidade à cena. A imagem do bebê
saindo do ventre da mãe foi motivo de censura à revista. As outras fotos da reportagem retratam
o antes e o depois do trabalho de parto e, segundo aponta o sociólogo Laymert Garcia dos
Santos, lembram a fotografia documental praticada nos Estados Unidos:
297
KALIL, Narciso. Nasceu! Revista Realidade, n 10, janeiro de 1967, p. 68-74. Disponível em:
http://memoria.bn.br/pdf/213659/per213659_1967_00010.pdf acesso em 25/04/2021.
105
Eugene Smith, Walker Evans, Dorothea Lange, Ernst Haas e Robert Frank, e que com
eles educou o seu olhar.298
Conforme apontado por Santos, uma referência importante neste ponto é a reportagem Nurse
Midwife de W. Eugene Smith, veiculada pela revista Life em dezembro de 1951, na qual
acompanha o cotidiano de uma parteira do interior dos Estados Unidos. Há semelhanças tanto
temáticas quanto formais entre as duas reportagens. A atenção aos contrastes de luz e sombra,
e a dramaticidade das cenas, são utilizadas para sensibilizar o leitor acerca da jornada heróica
de pessoas anônimas (Figura 30).
Figura 30: W. Eugene Smith. Nurse Midwife, Life, dezembro de 1951. Fonte: Website da revista Life.299
Já na reportagem de George intitulada Por que nosso trem não anda?300, publicada em julho
de 1967 com texto de Alessandro Porro, a página dupla que abre a matéria apresenta a sombra
de um homem, com um chapéu característico do uniforme dos maquinistas, emoldurada pela
chaminé de um trem. O fotógrafo optou por representar o seu tema por meio de uma leitura
abstrata do real, oferecendo assim um indício da cena de um maquinista na cabine da
locomotiva e não da cena em si. Nas fotos que dão sequência à matéria vale-se de cores
saturadas, provavelmente captadas por filmes em diapositivo, contraluzes e ângulos que
298
Garcia dos Santos, Laymert. Experiência estética e simpatia bergsoniana. IN: Claudia Andujar. A
Vulnerabilidade do ser. São Paulo: Cosac & Naify, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2005, p. 47-48.
299
Disponível em: https://time.com/26789/w-eugene-smith-life-magazine-1951-photo-essay-nurse-
midwife/feed/ acesso em 05/10/2022.
300
PORRO, Alessandro. Por que o nosso trem não anda? Revista Realidade, n 16, julho de 1967, p. 44-50.
Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/213659/per213659_1967_00016.pdf acesso em 25/04/2021.
106
alteram a escala real, fazendo com que os trabalhadores cresçam diante das estruturas da
ferrovia. O corpo inteiro que atravessa a vertical da página e os pequenos fragmentos da
locomotiva diagramados ao lado, nos sugerem certa magnitude do humano frente à máquina
(Figura 31).
Figura 31: George Love, Por que o nosso trem não anda?, Realidade nº16, jul. 1967. Fonte: Biblioteca da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
A edição mais famosa da história da revista Realidade tornou-se emblemática por conta do
veto sofrido pelo governo militar. O especial sobre a Amazônia, publicado em outubro de 1971,
foi sucesso de público impulsionado pelas propagandas estatais que visavam a exploração
comercial da região. Alcançou a venda de 300 mil exemplares em apenas uma semana de
107
circulação, a maior da trajetória da revista.301 Por outro lado, o conteúdo das reportagens,
apresentavam ressonância com os projetos desenvolvimentistas do governo militar e ainda
assim foram alvo de censura por parte da ditadura, culminando na demissão em massa da
equipe e a consequente descontinuidade da publicação.
A equipe escalada para esta edição contou com oito fotógrafos302 e dezesseis repórteres, que se
dedicaram por quase um ano a mapear e levantar dados sobre a região amazônica. Desde sua
natureza e geografia, as populações e culturas diversas, até impasses sobre as questões de
ocupação do território, cada vez mais fortemente invadido pela mineração e o agronegócio. O
editorial da edição especial, assinado por Luís Carta, explica a abordagem da publicação:
“queríamos contar a Amazônia do ponto de vista do herói diário, do seringueiro, do técnico, do
pescador, do desempregado, do índio. Até, num certo sentido, do jacaré, da onça, dos peixes e
das árvores”303.
A capa mostrava o rosto de uma criança indígena fotografada por Andujar (Figura 32),
resultado de seu primeiro contato com os Yanomami. As fotografias de George Love foram
publicadas na primeira reportagem da revista. Viagem ao planeta do verde, da água e do sol
apresenta a vegetação e o relevo da Amazônia vistos do alto (Figura 33), em cores e texturas
que se tornariam características das imagens de Love. O texto, sem assinatura, consiste em
pequenas inserções em meio às imagens e ressalta as grandes dimensões de área verde, de
espécies da fauna e do volume de água concentrados na região. Nas fotos, que quase sempre
ocupam mais de uma página, a natureza é representada de forma imponente e a escala humana
fica diminuta perto da vastidão dos rios (Figura 34). Uma das legendas oferece informações
sobre a captação das imagens, feitas durante um total de 59 horas de voo, seguidas de
comentário do fotógrafo: “às vezes a gente sobrevoa uma área extensa sem uma árvore florida
(...) de repente, elas explodem”304.
301
Raimundo Pereira, editor do especial Amazônia, em entrevista a Jorge Bodanzky para o documentário A
Realidade de Claudia Andujar.
302
Entre os fotógrafos estavam Jean Solari, Amâncio Chiodi, Claudia Andujar, George Love e Maureen
Bisilliat.
303
Viagem ao planeta do verde, da água e do sol. Revista Realidade, edição nº67, especial Amazônia, outubro
de 1971, p. 37. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=213659&pagfis=11504
acesso em 05/04/2022.
304
Revista Realidade. Op. cit. 1971, p. 13.
108
Figura 32: Claudia Andujar, capa Realidade - Especial Amazônia, out. 1971. Fonte: Reprodução da edição
facsimilar da revista, 2020. Coleção particular da autora.
A matéria que acompanhou o ensaio de Claudia Andujar é uma das últimas da publicação.
Intitulada A última chance dos últimos guerreiros, a reportagem traça um histórico das lutas de
resistência indígena à ocupação de seu território. O texto traz uma abordagem de perspectiva
incomum na imprensa da época e denuncia a dizimação da população indígena ao longo do
tempo. Aponta dados sobre o extermínio de 130.000 indígenas de mais de 140 etnias diferentes,
de 1900 até então305.
305
A última chance dos últimos guerreiros. Revista Realidade, edição nº67, especial Amazônia, outubro de
1971, p. 37. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=213659&pagfis=11672
acesso em 05/04/2022.
109
Figura 33: George Love, Viagem ao planeta verde, da água e do sol, Realidade - Especial Amazônia, out. 1971.
Fonte: Reprodução da edição facsimilar da revista, 2020. Coleção particular da autora.
Figura 34: George Love, Viagem ao planeta verde, da água e do sol, Realidade - Especial Amazônia, out. 1971.
Fonte: Reprodução da edição facsimilar da revista, 2020. Coleção particular da autora.
As fotos são os primeiros registros dos Yanomami feitos por Andujar. O retrato que abre a
matéria é de um jovem indígena em close-up, ocupa toda a página e nos olha com firmeza
(Figura 35). Não há legendas para a foto, no entanto, em relação ao texto, é como se nos
110
cobrasse por respostas. A última foto mostra uma mãe agachada de costas, enquanto amamenta
um bebê vasculha a cabeça de um outro adulto que, por sua vez, segura a criança (Figura 36).
Temos a impressão de continuidade, que se configuraria não apenas na relação de Andujar com
os Yanomami, mas também quanto à luta destes pela sobrevivência e pela permanência em seu
território.
Figura 35: Claudia Andujar, A última chance dos últimos guerreiros, Realidade - Especial Amazônia, out. 1971.
Fonte: Reprodução da edição facsimilar da revista, 2020. Coleção particular da autora.
Entre 1968 e 1971, Claudia continuou publicando suas fotografias em importantes revistas
internacionais como The New York Times Magazine, Look, Jubilee, Aperture e Fortune306. Foi
capa da Times com a foto de uma criança Xikrin-kayapó, etnia com a qual havia entrado em
contato um pouco antes de conhecer os Yanomami. O ensaio seria publicado posteriormente
pela revista Aperture.
Claudia Andujar e George Love colaboraram também com revistas como a Novidades
Fotoptica e a Revista de Fotografia307, das quais George foi editor de fotografia. Tais revistas
306
NOGUEIRA, Thyago (org.). Claudia Andujar: a luta Yanomami. São Paulo: IMS, 2018.
307
O ensaio de Claudia Andujar apresentado na exposição do MASP em 1971 foi publicado no primeiro número
da revista, tornando-se importante registro da série visto que não houve catálogo da exposição.
111
despontam como veículos importantes para a circulação das imagens produzidas por fotógrafos
profissionais e amadores que transitavam entre imprensa, laboratórios, museus e escolas de
fotografia. Funcionavam como importantes canais de comunicação e troca de experiências.
Figura 36: Claudia Andujar, A última chance dos últimos guerreiros, Realidade - Especial Amazônia, out. 1971.
Fonte: Reprodução da edição facsimilar da revista, 2020. Coleção particular da autora.
A Revista de Fotografia teve apenas seis números editados entre junho e novembro de 1971,
que contaram com ensaios de grande variedade técnica e estética. O ensaio fotográfico de
Claudia Andujar publicado no primeiro número da revista mostra algumas imagens do
audiovisual apresentado em sua primeira exposição no MASP. A publicação veiculou também
matérias e convocatórias para a exposição A Família Brasileira. Recorreremos a imagens
publicadas pela Revista Fotografia e pela Novidades Fotoptica que se relacionam com as
montagens audiovisuais realizadas por Claudia e George no MASP no próximo item.
112
As pesquisas com as novas tecnologias e materiais fotográficos que surgiram na década de
1970 levaram Claudia Andujar e George Love à elaboração de novos meios de expor
fotografias. Eles passaram a projetar as imagens fotográficas para além da superfície
bidimensional, tomando o espaço expositivo com luzes e sombras e articulando-as com sons
gravados em fitas cassete com intuito de envolver o público em suas experiências audiovisuais.
(...) passando em frente ao museu pensou que todo aquele vão livre do edifício ‘estava
sendo desperdiçado’. ‘Então reuni um grupo de críticos de música da revista
Bondinho e bolamos um show audiovisual que aproveitasse todo aquele espaço livre
e muitíssimo próprio para espetáculos ao ar livre’.309
O audiovisual exibido na ocasião contou com a instalação de holofotes, três projetores, três
amplificadores e 30 telas, que criavam planos verticais nos dois lados do vão livre do museu.
As imagens foram projetadas em dois sentidos, aproveitando a parede do edifício de frente para
308
MIRANDA, José Tavares. Happening no museu de arte. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 de janeiro de
1971.
309
SOM e imagem no Museu. Diário da noite, São Paulo, 17 de janeiro de 1971. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta da exposição audiovisual Love-Andujar, 1971.
113
a Avenida Paulista, e telas de plástico estendidas do outro lado, em direção à Avenida Nove de
Julho.
Entre as imagens exibidas estavam as fotografias de Claudia sobre os indígenas Xikrin (Figura
37), publicadas no mesmo mês pela revista Aperture312. A publicação das imagens sobre os
Xikrin, em outubro de 1970, na revista Novidades Fotoptica, nos ajuda a compreender a edição
exercida por George Love nas imagens de autoria de Claudia Andujar (Figuras 38 e 39). Love
editou as fotografias e publicou as imagens com cores alteradas e com as bordas do negativo.
310
SOM e imagem no Museu. Diário da noite, São Paulo, 17 de janeiro de 1971. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta da exposição audiovisual Love-Andujar, 1971.
311
As exibições de filmes no vão livre se tornaram uma constante principalmente com a Mostra Internacional
de Cinema de São Paulo, que surgiu em 1977 como parte das comemorações dos 30 anos do museu, sob
iniciativa do Departamento de Cinema da instituição supervisionado por Leon Cakoff. A Mostra foi organizada
pelo MASP em suas sete primeiras edições, tornando-se independente a partir do oitavo evento.
312
NOGUEIRA, Thyago (org.). Claudia Andujar: no lugar do outro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2015
(catálogo de exposição).
114
Figura 37: Ensaio realizado por Andujar com os índios Xikrin. Aperture, fevereiro de 1971. Fonte: Reprodução
do catálogo da exposição Claudia Andujar - A luta Yanomami, 2018. Coleção particular da autora.
Não há vestígios ou descrições das imagens apresentadas por Love. No entanto, colocando a
proposta em perspectiva com alguns textos que escreveu para a Revista de Fotografia, cuja
primeira edição foi em julho daquele ano, percebemos o envolvimento de George na pesquisa
com dispositivos sonoros e eletrônicos.
Desde o tempo em que fiz a cobertura dos distúrbios raciais nos Estados Unidos,
peguei o hábito de sair gravando tudo quanto é som e ruído que acho interessante.
Tenho uma boa sonoteca. Há alguns anos, passei a fazer experiências mais
elaboradas. Gravei, por exemplo, o foguetório e as festas do tricampeonato de futebol
e montei esses ruídos com a narração de um jogo tirada de um radinho de pilha. Essa
fita acabou se transformando numa trilha sonora da exposição ‘Futebol e Arte',
realizada no fim do ano passado no Paço das Artes, em São Paulo, que agora está
representando o Brasil na 3ª Bienal de Artes e Esporte, em Barcelona, Espanha.
De lá pra cá, tenho recebido até encomendas, como a trilha sonora de um desfile de
moda organizado pela Olivetti. Peguei uma música eletrônica de John Cage -
Variations II - e gravei numa fita uma das pistas do disco, assim reduzindo essa
música à metade. Depois, gravei em outra fita sons de computadores Olivetti. Copiei
este resultado sete vezes com velocidades diversas e depois juntei todas as cópias
numa só pista. Estava de novo com duas pistas - a primeira que era a metade pura de
John Cage e a segunda que eu tinha enriquecido, copiado, reunido. Juntei as duas
numa fita e deu uma espécie de ‘fuga eletrônica sobre um tema de John Cage’.313
313
LOVE, George. O melhor som é aquele que não enche. Revista de Fotografia, nº 02, julho/1971, p. 35.
314
SCHLOSS, Joseph G. Making Beats: The art of sample-based hip-hop. Middletown: Wesleyan University
Press, 2014, p. 65.
115
ser utilizado para dar origem a novas composições. Esta técnica foi muito utilizada pela
nascente cultura hip-hop, cuja origem remete à Nova York, e pelos primeiros disk jokeys da
época. Consiste em gravar um recorte de uma faixa do disco e modulá-lo de acordo com a
criatividade do operador do aparelho. De acordo com o músico e pesquisador Joseph Glenn
Schoss, a poética do sample para a cultura afro-americana pode ser enquadrada no que Fredric
Jameson315 entende como a lógica cultural do capitalismo tardio.
315
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo - A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática,
1997.
316
SCHLOSS, Joseph G. Op. cit., 2014, p. 65 (tradução da autora).
317
Ibid., p. 48.
116
Figura 38: Claudia Andujar, capa Novidades Fotoptica, nº43, outubro de 1970. Fonte: Biblioteca de Fotografia
do IMS. Coleção Thomaz Farkas.
Figura 39: Claudia Andujar, Novidades Fotoptica, nº43, outubro de 1970, p. 14-15. Fonte: Biblioteca de
Fotografia do IMS. Coleção Thomaz Farkas.
117
2.2.2. Primeiras exposições
A primeira exposição de Claudia Andujar e George Love no MASP foi realizada entre junho e
julho de 1971. Foram dois audiovisuais, um de cada artista, exibidos em espaços diferentes A
montagem de Love ocupou a sala de exposições temporárias, no primeiro andar do MASP, e a
de Claudia foi apresentada no pequeno auditório, localizado no primeiro subsolo. As exibições
foram realizadas no mesmo período, no entanto, tratavam-se de duas experiências diferentes,
independentes entre si. Pelas reportagens contidas na pasta referente à exposição do Arquivo
Histórico MASP, obtivemos mais detalhes da sequência visual apresentada por George Love.
As matérias priorizavam a divulgação da exposição dele.
Algumas das imagens que fizeram parte das séries exibidas por Love eram sobre a paisagem
urbana de São Paulo e Chicago e outras pertenciam a um ensaio realizado com três manequins
nas dunas de Cabo Frio318. Algo em torno de 300 slides coloridos eram projetados em telas
brancas e a cada semana ganhavam novas configurações com a recombinação das foto-
sequências319. Com a ajuda de refletores, placas de acrílico e ventiladores, as projeções se
movimentavam e eram distorcidas a fim criar as mais diversas formas e misturas de cores,
flertando com a abstração. As imagens se sucediam nas paredes laterais do salão320. Pequenos
textos foram inseridos diretamente nos slides. O áudio que acompanhava a projeção de Love
era de ruídos de uma conversa incompreensível321, refletindo a percepção do fotógrafo sobre a
vida fragmentada do mundo contemporâneo.
‘Não dá pra entender totalmente o que se passa e isso reflete o que penso da coisas
em geral’, falou Love. Para ele, todo fotógrafo quando trabalha está fazendo um auto
retrato. A sua intenção é de fazer uma coisa real, a sua percepção dela. ‘Não gostando
das coisas que se repetem, disse Love, procurei fazer fotografias que espero serem
muito vivas, pois as combinações refletidas não se repetem’. Embora procurando
retratar sempre o real, Love acredita que só percebemos parte dele. Assim a realidade
criada e sentida é captada e mostrada nas fotografias com o registro de coisas mais
318
Não foi possível localizar as imagens as quais se refere e que constituíram o audiovisual exposto na ocasião,
visto que pequena parte da produção artística de George Love é conhecida. O arquivo do fotógrafo se encontra
na J. Murrey Library da Universidade da Carolina do Norte, em Charlotte, na Leary Love Family Papers.
Catálogo de pesquisa do Arquivo disponível em
https://findingaids.uncc.edu/repositories/4/archival_objects/34050.
319
A nomenclatura foto-sequência era utilizada pelos próprios artistas, por isso foi mantida neste texto.
320
GEORGE Love. Folha da Tarde, São Paulo, 26 junho de 1971.
321
Um áudio semelhante, de ruídos de uma conversa entre pessoas que compartilham uma mesa de jantar, no
qual não conseguimos compreender o conteúdo foi utilizado na música Panis et circenses, da banda paulistana
Os Mutantes, em álbum lançado no ano de 1968. O intuito de Love parece convergir com o da música, no
sentido de criticar estruturas sociais como, por exemplo, a família.
118
interiores que exteriores. A fotografia de Love é resultado de toda sua sensibilidade
diante de coisas e situações.322
322
GEORGE Love - uma confissão em fotografia. Diário da noite, São Paulo, 17 janeiro de 1971. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição Audiovisual Love-Andujar, 1971.
323
GEORGE Love - uma confissão em fotografia. Diário da noite, São Paulo, 17 janeiro de 1971. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição Audiovisual Love-Andujar, 1971.
324
[Texto] Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Audiovisual Love-Andujar, 1971.
119
Provavelmente escrito por Pietro Maria Bardi, o artigo se assemelha a uma espécie de fusão
entre um texto curatorial e um release para a imprensa325. Era comum que Bardi escrevesse os
dois tipos. Nele, são enfatizadas as motivações filosóficas da busca artística de Love com
citações de Sócrates e Hermann Hesse. Considerando que a busca por autoconhecimento,
baseada na filosofia oriental, é tema recorrente nas obras do escritor alemão, é possível
estabelecer um paralelo com a experiência asiática de George e sua formação em filosofia.
Destacamos do texto a passagem na qual Bardi aponta que o fotógrafo permite “a participação
do aleatório do ocasional, nesse processo, o que significa fixar uma centelha do tempo cósmico
que flui”, pois incute uma perspectiva de análise dos procedimentos de composição adotados
por Love. A inserção de sobras de imagens resultantes do processo fotográfico em suas
sequências e as pontas veladas de filme, por exemplo, dialogam tanto com o recurso do sample
quanto com suas inclinações filosóficas. A palavra centelha326, em sua origem etimológica, está
ligada ao latim ‘scintillam’ e remete à uma fagulha ou faísca que se desprende de um corpo
incandescente. Consideramos que se trata de uma definição bastante apropriada para a imagem
evocada pela ponta de filme.
Devo dizer, antes de tudo, que esta apresentação é fruto de observação e reflexão,
durante alguns anos (como companheiro de reportagens), sôbre o trabalho criador de
Love em tôdas as fases do processo que utiliza para realizar suas fotos. Além disso,
reflete a conclusão de muitos diálogos mantivemos a esse respeito da posição de Love
diante dos modernos meios de comunicação visual. Porém é preciso advertir que este
ensaio fotográfico, tal como foi concebido, marca um momento preciso de George
Love, sua compreensão do mundo e de si mesmo, como homem e como artista. É um
instante de amadurecimento introspectivo e de opções filosóficas e artísticas
conseqüentemente assumidas.327
325
Pelo que pudemos apurar esta foi a única participação de Pietro Maria Bardi no desenvolvimento das
propostas, cabendo aos artistas as implicações conceituais e da montagem das exposições.
326
Definição retirada do Dicionário Houaiss online. Disponível em:
https://www.houaiss.net/corporativo/apps/www2/v6-3/html/index.php acesso em 05/12/2022.
327
Revista Novidades Fotoptica, nº 48, março de 1971, p. 21. Disponível em:
https://revistas.biblioteca.ims.com.br/fotoptica/1971/revista/publicacao48/20/ acesso em 03/07/2022.
120
Freire destaca os múltiplos processos mobilizados por George para a criação artística. E
exprime as mudanças de status pelas quais estavam passando o papel social do fotógrafo e o
estatuto da imagem técnica no circuito artístico dos anos 1970.
328
Revista Novidades Fotoptica. Op. cit., 1971, p. 21.
121
Figura 40: George Love, Novidades Fotoptica, nº48, março de 1971. Fonte: Biblioteca de Fotografia do IMS.
Coleção Thomaz Farkas.
Figura 41: George Love, Novidades Fotoptica, nº48, março de 1971. Fonte: Biblioteca de Fotografia do IMS.
Coleção Thomaz Farkas.
122
Andujar, por sua vez, apresentou a série Sônia no formato de audiovisual no pequeno auditório
do MASP (Figuras 42, 43 e 44). Trata-se de um dos poucos trabalhos da artista desenvolvidos
em estúdio. Em nossa pesquisa, obtivemos mais informações sobre a sessão de fotos que
originou o audiovisual do que sobre sua montagem. Segundo relato da própria Claudia
publicado na época329, as imagens foram captadas em uma sessão de três horas, com 10 rolos
de cromos de 36 poses, utilizando o recurso de um fundo infinito. Durante o ensaio, a fotógrafa
ofereceu a Sônia alguns discos para que ela escolhesse. Depois de ouvir vários, repete uma
única canção, a música I had a dream de John B. Sebastian. A gravação era um áudio ao vivo
da apresentação do cantor no Festival de Woodstock realizado em 1968. A modelo não entendia
a letra da canção, no entanto, era por ela inspirada a assumir poses oníricas, como se estivesse
no tal sonho cantado por Sebastian. De acordo com a fotógrafa, o ensaio integrou-se de forma
definitiva com essa música330. Claudia ressalta ainda que a modelo que lhe chamara a atenção,
uma mulher negra vinda da Bahia, encontrava-se desiludida com a tentativa de seguir a carreira
em São Paulo tendo em vista as muitas recusas que vinha sofrendo por outros fotógrafos.
Figura 41: Claudia Andujar, Série Sônia. Revista de Fotografia nº1, jun., 1971
Fonte: Acervo Centro de Pesquisa do MASP.
Uma vez captadas as imagens, Claudia passou a trabalhar os cromos fazendo cortes, revelando
em positivo e negativo e refotografando-os com ajuda de um aparelho conhecido como
329
ANDUJAR, Claudia. Ensaio: Claudia Andujar. Revista de Fotografia, São Paulo, nº 1, jun. 1971, p. 33.
330
Ibid., p.33.
123
Repronar331, que permite a utilização de filtros de diferentes cores, manipulação da exposição
e sobreposição de camadas. Essas foram experimentações importantes de aparelhos e técnicas,
nas quais percebemos o aperfeiçoamento dos métodos do trabalho em laboratório e a abertura
de Andujar para a experiência com novos materiais, filmes e equipamentos altamente
tecnológicos do período.
Figura 42: Claudia Andujar, Ensaio Sônia. Revista de Fotografia nº1, jun., 1971
Fonte: Acervo Centro de Pesquisa do MASP.
A artista projetou os slides que reconstruíram o corpo de Sônia fazendo a transição entre as
imagens de acordo com o ritmo do violão, as mudanças de harmonia, o sentido de certas
palavras cantadas por Sebastian332. Segundo ela, chegou a uma sequência ideal para o
audiovisual de 90 slides333. A primeira edição da Revista de Fotografia publicou 24 imagens
do ensaio no mesmo momento em que este era exibido no MASP.
O corpo humano é para mim o objeto mais belo que existe. Por isso, há anos sonhava
realizar um ensaio fotográfico sôbre as formas físicas da mulher. Para conseguir
revelar sua essência. No mundo atual os homens têm menos consciência do próprio
corpo. Essa consciência quando é clara e procurada aumenta misteriosamente a beleza
e o significado do corpo. Como se lhe atribuísse cores. Assim, sinto as mulheres azuis
e os homens cinza. (...) Inclusive, é possível também que, como mulher, ao realizar
331
NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015, p. 168.
332
ANDUJAR, Claudia. Ensaio: Claudia Andujar. Revista de Fotografia, São Paulo, n. 1, jun. 1971, p. 33.
333
Desta sequência apontada por Claudia, apenas 24 imagens foram publicadas no primeiro número da Revista
de Fotografia e 16 foram expostas no Instituto Moreira Salles-RJ em 2015. Ibid.; NOGUEIRA, Thyago (org.).
Op. cit. 2015 p. 169-184.
124
um ensaio estético sôbre as formas físicas femininas, esteja procurando uma
identificação reflexa e idealizada do que desconheço do meu próprio corpo334.
Nas palavras da artista, descobrimos a busca de si que inspirou o ensaio, como se procurasse
investigar as possibilidades de atuação do próprio corpo no mundo. Comenta ainda sobre a
transferência da linguagem audiovisual para a linguagem gráfica, advertindo o leitor de que ela
não saberia explicar o processo de passagem das imagens para o papel no ritmo ideal. Desse
modo, ela sugere que o formato original da obra teria sido a montagem em audiovisual com
diapositivos. O que, por sua vez, leva a crer que ela própria entendesse como obra toda a sala
onde a sequência era exibida, em sincronia com o fluxo musical, e não apenas as imagens
impressas individualmente. No entanto, a diagramação das fotos na revista favorece uma certa
cadência do olhar, duplicando as imagens em cores diferentes, alternando tamanhos e
reproduzindo sequências em cortes quase cinematográficos.
Figura 43: Claudia Andujar, Ensaio Sônia. Revista de Fotografia nº1, jun., 1971
Fonte: Acervo Centro de Pesquisa do MASP.
334
ANDUJAR, Claudia. Ensaio: Claudia Andujar. Revista de Fotografia, São Paulo, n. 1, jun. 1971, p. 33.
125
equipamentos tecnológicos da época, levam-na a radicalizar o tom experimental de suas
fotografias. Nesta série, podemos perceber uma contaminação entre o interesse de George Love
pela cor enquanto elemento de composição e os resultados obtidos por Andujar.
Uma matéria da Folha de S. Paulo, em julho de 1971, divulgou as duas exposições junto a uma
foto do casal com a seguinte legenda: “George Love e Claudia Andujar estão ligados pela sua
arte mágica”335.
Aqui o fotógrafo registra o ‘seu mundo’ para ter sobre ele um amplo conhecimento e
um poder mágico.
A arte de George Love é magia. Também, num certo sentido, a de sua esposa Claudia
Andujar.
As duas exposições deste mês de julho, no Museu de Arte de São Paulo (Av. Paulista),
completam-se, no sentido da arte como amor, na busca do humano, na compreensão
e comunicação com o próximo.336
A EXPOSIÇÃO DE GEORGE
Entra-se num planetário: o ‘planetário de Love’. É um amplo salão escuro. À medida
que se vai caminhando, notam-se sombras e luzes coloridas dispersas nas telas
translúcidas. Essas telas são tiras plasticas que vão do chão até ao teto. Estão dispostas
numa sequencia de planos, que contornando o salão formam um círculo em torno dos
espectadores. Agora, entremos no espaço interior. Interrompe-se o facho de luz do
projetor de ‘slides’ e deixa-se sombras nas telas; passa-se a fazer parte do espetáculo:
integra-se no mundo planetario de George Love.
Uma vez acomodado no chão, tem-se a impressão de amplo e total envolvimento,
mas ao mesmo tempo de uma grande amplitude e liberdade: como um horizonte em
semicírculo.
A imagem do projetor sofre a interferencia de dois planos de vidros, que pendem do
teto por um fio. Eles estão em constante movimento proporcionado por um ventilador.
As luzes, dispersas dos lados, vão se organizando até se tornarem claras e inteligíveis
nas telas do fundo. São transparencias de cidades, praias, gente. Têm uma constante
dinamica, quer pela mudança de ‘slides’, quer pelos efeitos de superposição de
imagens produzidos pelas chapas de vidro. Trechos de musicas, frases e dialogos
razoavelmente compreensiveis completam as impressões audio-visuais (...).337
335
MARQUES, Ernani. A magia da foto chinesa. Folha de S. Paulo de 05 de julho de 1971. Arquivo Folha.
336
Ibid., s/p.
337
Ibid., s/p.
126
se e sobrepunham as imagens, que ora se misturavam, ora apareciam claras e nítidas. O som
trazia recortes musicais mixados com fragmentos de diálogos em sincronia com as imagens,
completando a montagem.
Descobrimos, assim, que a instalação de Claudia era menor que a de George. Há uma diferença
considerável em termos de dimensão espacial da sala do primeiro andar em relação ao pequeno
auditório do MASP, ainda que este estivesse sem cadeiras instaladas na ocasião. O trecho
“afinal conseguiram sincronizar o gravador com o projetor de slides” sugere que se tratava de
um experimento, salientando o contentamento dos artistas com o feito. Constatamos também
que a busca artística como força criativa já se fazia presente na fala de Andujar e eram
compartilhados entre ela e George. Do mesmo modo, aponta para a coexistência entre imagens
de caráter documental e outras mais abstratas, resultado das experimentações desenvolvidas no
período.
O AMOR DE CLAUDIA
Claudia Andujar nasceu na Suíça, e é naturalizada norte-americana. Vive no Brasil
desde 1955. Sua atração pelo que é humano levou-a a interessar-se pela fotografia,
como meio de expressão. Hoje é uma das fotografas mais importantes do mundo, ao
lado do americano George Love. Conheceu-o em 1965, numa exposição fotografica
em Nova York. Desde lá, radicaram-se no Brasil.
Claudia divide seu tempo entre reportagens para revistas nacionais e estrangeiras, e
viagens a pontos distantes do interior, onde fotografa temas de seu interesse. É
famoso seu estudo sobre índios. ‘Recebi uma bolsa da Fundação Guggenheim, que
considero muito importante. Percorrerei os estados do Pará e Amazonas onde
registrarei os costumes intatos de culturas indígenas que estão desaparecendo.
Partirá daqui a dois meses (sem guias). ‘Minha preocupação não é fazer etnologia, é
registrar o aspecto humano’.339
338
Ibid., s/p.
339
Ibid., s/p.
127
O texto menciona seu “famoso estudo sobre os índios”, demonstrando o reconhecimento de
que Andujar já dispunha na época, da mesma forma acentua a importância da bolsa recém
concedida pela Fundação Guggenheim para o desenvolvimento de seu trabalho. Chama
atenção, ainda, no depoimento da artista ela afirmar que com seu trabalho não tinha intuito de
“fazer etnologia” e sim “registrar o aspecto humano”. Essa motivação continuou a reverberar
em seus discursos mesmo depois de muitos anos. Em entrevista de 2010, Andujar afirma:
Não sou antropóloga, meu trabalho nunca pretendeu ter um viés antropológico. É
fruto de uma curiosidade intrínseca, de desejo de compreensão do outro e de mim
mesma. Foi o que propiciou o meu envolvimento, minha dedicação à causa indígena.
É um trabalho cheio de emoção.340
As práticas adotadas para a obtenção dos resultados finais das imagens apresentadas nas
montagens de suas primeiras exposições no MASP, tais como as múltiplas camadas, os
recortes, as inversões de polaridade e a utilização de filtros, colocam em paralelo
procedimentos de composição poética compartilhados por Claudia e por George. Mesmo não
sabendo quais imagens foram exibidas por Love na ocasião, podemos ter uma ideia aproximada
a partir das fotografias que publicou na época.
Por meio das descrições detalhadas fornecidas pela imprensa da época, é possível concluir que
as obras de Claudia e George mobilizavam procedimentos híbridos a fim de produzir
experiências sensoriais no público. As montagens projetavam as imagens para além da
bidimensionalidade da cópia fotográfica. Nesta primeira ocasião, as propostas apresentadas
pelos artistas foram livremente desenvolvidas sem maiores intervenções por parte do MASP.
340
BONI, Paulo César. Op. cit. 2010, p. 267.
128
expográficas em outras instituições de São Paulo, como no Museu de Arte Contemporânea da
USP, e também mantinha relações profissionais com o diretor do MASP, onde havia realizado
sua primeira exposição individual alguns anos antes, conforme apontado no capítulo anterior,
sendo que voltaria a expor no museu em 1972.
341
BARDI, Pietro M. [Correspondência]. São Paulo, 02 de setembro de 1971. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta Exposição A família brasileira, 1971.
342
ALBUQUERQUE, Roberto. A família brasileira. Folha de S. Paulo, 02 de outubro de 1971. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta Exposição A família brasileira, 1971.
343
MASP mostra fotografias do tempo das nossas avós. O Dia, 07 de setembro de 1971. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta Exposição A família brasileira, 1971.
129
“A Família Brasileira”, é a exposição que o Museu de Arte Assis Chateaubriand
(Avenida Paulista, 1578) está apresentando na Sala Horácio Lafer atualmente.
Através de velhas fotografias que famílias tanto da capital como do interior
emprestaram ao Museu, o público paulistano poderá apreciar os usos e costumes de
nossos avós.
Os trajes, as poses, as festas populares, as cerimonias tanto as alegres como as tristes
(entêrro, velório) estão em exposição. Esta mostra está dividida em duas partes: uma
apresenta as fotos que foram enviadas ao Museu; a outra é através de projeções de
transparências coloridas feitas pelos fotógrafos Claudia Andujar, Maureen Bisilliat e
George Love que conseguiram manter a atmosfera dessas fotografias.
Os trajes quentes do comêço do século, os chapéus (palhetas principalmente), o corte
dos cabelos, as poses, tudo enfim que achamos curioso hoje, às vezes engraçados,
testemunham uma época de nossa história. Essa exposição é patrocinada pelo
Govêrno do Estado de São Paulo através da Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo
e Conselho Estadual de Cultura.
Entrada franqueada ao público.344
Destacamos também o trecho no qual o diretor afirma que os artistas “conseguiram manter a
atmosfera dessas fotografias”, que surge como uma estratégia de Bardi no intuito de qualificar
o audiovisual criado por Love, Andujar e Bisilliat. No entanto, em que pese as séries que
vinham sendo desenvolvidas por eles na época, nas quais os experimentalismos tensionavam o
caráter indiciário e documental da fotografia, veremos que a proposta apresentada por eles não
tinha esse compromisso estrito.
Em março daquele ano, o jornal O Estado de S. Paulo já havia publicado uma nota a respeito
da exposição programada para o segundo semestre. Contudo, ainda não se tratava de uma
344
A família brasileira no Museu de Arte de São Paulo [Texto]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Exposição
A família brasileira, 1971.
345
Conforme vimos no primeiro capítulo desta dissertação, o conceito de fotografia vernacular foi criado por
John Szarkowski com o intuito de considerar as qualidades estéticas de fotografias tomadas sem esta intenção
expressa, e com a qual a ideia de álbum de família de Pietro Maria Bardi parece dialogar.
130
convocatória. Até onde pudemos apurar, a primeira chamada pública apareceu na imprensa em
julho de 1971, veiculada pela Revista de Fotografia da qual George Love era editor de
fotografia e na mesma edição que publicou o ensaio Sônia de Claudia Andujar. A matéria
pontua que para Bardi a exposição teria uma dupla finalidade:
Neste ponto, nota-se a diferença entre as motivações de Bardi e suas concepções acerca do
tratamento que deveria ser dado à fotografia na exposição e a proposta desenvolvida para o
audiovisual. Assim, conseguimos compreender que a exposição se delineou em torno de
projetos distintos. A matéria traz ainda um breve histórico da chegada do daguerreótipo no
Brasil e trata da popularização dos retratos a partir de um relato de Álvares de Azevedo feito
em 1848, no qual o poeta se refere à “mania de daguerreotypar-se”. O texto ressalta ainda a
ambição de Bardi em encontrar a primeira fotografia feita no Brasil e informa que ele teria se
inspirado em uma exposição realizada pelo MoMA anos antes.
O Modern Art Museum de Nova York, há dez anos, fêz uma exposição desse tipo,
com muito sucesso. Chamava-se ‘The Family’. O principal, para o professor Bardi é
mostrar a estudantes e ao povo em geral um material que contribuirá para maior
compreensão da vida brasileira.347
A reverberação do discurso universalista de The Family of Man pode ser notado na abordagem
do conceito de família brasileira. O título da matéria publicada na Revista de Fotografia remete
a essa ideia, afirmando tratar-se da exibição do “álbum de uma família bem grande - a
brasileira”. O texto é concluído frisando que além da “galeria de tipos sociológicos”, haveria
346
Albúm de uma família bem grande - A brasileira. Revista de Fotografia, nº 01, jul., 1971, p. 34.
347
Ibid., p. 34.
348
STANISZEWKI, Mary Anne. Op. cit.,1998, p. 236.
131
ainda na mostra “coisas diferentes: uma conferência sobre a história da fotografia no Brasil;
um debate sobre a fotografia no Brasil de hoje; velhas máquinas de fotografia e um fotógrafo
de rua, no salão”349.
De acordo com correspondências encontradas no dossiê da exposição, Pietro Maria Bardi ainda
fez uso de sua rede de contatos para solicitar o empréstimo de fotografias. Bardi utiliza a
expressão ‘famílias tradicionais’ nas correspondências enviadas para colecionadores de
fotografia e parceiros em potencial. Esse foi o caso da carta enviada ao diretor do Museu do
Açúcar de Recife, Luis da Rosa Oiticica, no qual explica as motivações da exposição: “No
momento estamos organizando uma exposição de fotografias sobre A Família Brasileira.
Trata-se de uma pesquisa que fizemos juntos a numerosas famílias tradicionais, para
localizarmos documentos iconográficos”350.
A campanha arrecadou cerca de 500 fotografias por duas vias: as que foram enviadas em
resposta às convocatórias, e outras coletadas por Bardi em suas viagens. As imagens
arrecadadas retratam em sua maioria os hábitos e costumes de famílias abastadas do final do
século XIX e começo do século XX, aquelas que podiam pagar por seus registros fotográficos.
O levantamento que pretendia reunir um extenso número de documentos e fotos de tipos
sociais351, padeceu em sua intenção de retratar a diversidade da população brasileira, ficando
circunscrito à uma maioria de imagens advindas do eixo Rio-São Paulo.
A mostra ainda apresentou diversos processos fotográficos e usos sociais da fotografia nas
primeiras décadas do século XX, dialogando com a história de seu desenvolvimento no Brasil.
Uma reportagem da Folha de S. Paulo de 02 de outubro de 1971, salienta o caráter de raridade
das cópias fotográficas que o MASP havia recebido até aquele momento, com destaque para
os carte de visite, cartões de visita fotográficos que eram trocados entre amigos e familiares
(Figuras 44 e 45). Consistiam em retratos produzidos em estúdio e geralmente impressos em
albumina.
349
Albúm de uma família bem grande - A brasileira. Revista de Fotografia, nº 01, jul., 1971, p. 34.
350
BARDI, Pietro M. [Correspondência]. Destinatário: Luis da Rosa Oiticica. São Paulo, 05 de agosto de 1971.
Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição A família brasileira, 1971.
351
ALBUQUERQUE, Roberto. A família brasileira. Folha de S. Paulo, 02/10/1971. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta exposição A família brasileira, 1971.
132
Figura 44: Carte de visites reunidos para a exposição “A família brasileira”. Reproduções publicadas na Revista
de Fotografia nº 6, nov., 1971. Fonte: Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo.
Love, Bisilliat e Andujar compuseram o audiovisual a partir de uma seleção de 162 das
fotografias recebidas pelo MASP. As antigas fotografias foram refotografadas com filmes
diapositivos, transformadas em slides e projetadas numa tela no fundo da sala, sincronizadas
ao som de conversas e ruídos típicos de uma família antiga brasileira352. Os autores destacaram
detalhes característicos do período em que as fotos foram produzidas, chamando a atenção para
o fato de que as poses e os gestos eram um tanto rígidos e comedidos devido à longa exposição
necessária para a captura de imagens353. Um trecho da reportagem da Folha de S. Paulo,
mencionada anteriormente, sublinha a sensibilidade de Maureen Bisilliat em recriar e transmitir
o clima da época por meio de recortes e ampliações de detalhes como a posição das mãos no
colo e dos cenários tropicais típicos dos estúdios fotográficos do começo do século XX. Sobre
os projetos expositivos realizados para a ocasião, elucida:
“A sala expositiva foi dividida: em uma parte 162 fotografias vão se alternando
enquanto são acompanhadas por música; ao lado, em uma sala menor estão expostas
as fotos originais, muitas vezes semi destruídas, com as projetadas que retratam
melhor a importância histórica e o significado social do material coletado”.354
352
70 anos de nossa família. Jornal da Tarde, 28/09/1971. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição A
família brasileira, 1971.
353
A família brasileira nas fotos de George Love. Popular da Tarde, 29/09/1971. Arquivo Histórico do MASP.
Pasta exposição A família brasileira, 1971.
354
ALBUQUERQUE, Roberto. A família brasileira. Folha de S. Paulo, 02/10/1971. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta exposição A família brasileira, 1971.
133
Esta descrição nos permite entender que houve uma divisão do espaço entre as propostas dos
artistas e a do diretor. O posicionamento da reportagem se compatibiliza com as concepções
de Bardi acerca da importância histórica e social das fotografias, transferindo para o
audiovisual os mesmos conceitos. Não há informações conclusivas ou detalhes quanto às
dimensões das montagens. Porém ao indicar que “em uma sala menor estão expostas as fotos
originais” apreendemos que a montagem da parte histórica, ou didática, teria sido mais modesta
e o audiovisual ocupou o maior espaço da sala expositiva do primeiro andar. Mesmo que o
discurso institucional tenha tido maior reverberação na mídia, a proposta dos fotógrafos teve
lugar de destaque na exposição.
Figura 45: Retratos colorizados coletados para a exposição “A família brasileira”. Reproduções publicadas na
Revista de Fotografia nº 6, nov. 1971. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo.
George Love, em contraponto às ideias de Bardi, afirma que o intuito da exposição não foi
produzir um estudo sociológico ou histórico, mas promover uma espécie de viagem às origens
da fotografia brasileira, ressaltando assim a diferença entre as concepções que orientaram o
desenvolvimento da temática proposta. O fotógrafo ressalta a ligação das imagens com a
história da fotografia e as mudanças técnicas sofridas por este meio durante o século XX.
355
LOVE, George. Albúm da família brasileira. Revista de Fotografia, nº 06, nov., 1971.
134
Em reportagem veiculada em setembro de 1971 pelo jornal O Estado de S. Paulo, George
apresenta reflexões sobre a modalidade do retrato complementando questões destacadas no
trecho acima sobre as transformações da fotografia ao longo da história e as limitações do
processo de captação em seus primórdios. Love refere-se ao congelamento das poses adotadas
pelas pessoas ao serem retratadas, evidenciando o caráter ficcional das representações, visto
que as rígidas posturas assumidas pouco correspondiam ao seu estado natural. Este fenômeno,
segundo ele, teria ligação não apenas com os longos tempos de exposição do filme necessários
para a obtenção de retratos nos primórdios da fotografia, mas também seriam resultado da
rigidez das convenções sociais advindas do regime patriarcal356.
O tema também era de relevância para Claudia Andujar, que no início dos anos 1960, havia
realizado um trabalho independente de documentação que resultou no desenvolvimento da
série que ela intitulou de Famílias Brasileiras357. Esta série foi um dos primeiros trabalhos
realizados por Andujar no Brasil. Partindo do interesse em compreender como viviam os
brasileiros, envolveu o seu convívio com quatro famílias de origens e condições sociais
distintas e a documentação de suas ações cotidianas. A primeira família era dona de uma
fazenda de cacau no Recôncavo Baiano, a segunda era de origem paulistana de classe média
moradora do Jabaquara, a terceira era constituída de pescadores da vila de Picinguaba, no litoral
norte de São Paulo, e a quarta era uma família mineira religiosa da cidade de Diamantina.
As fotografias mostram cotidianos muito discrepantes entre si. As contradições são tensionadas
ao longo das imagens da série, não apenas entre os diferentes contextos sociais abordados como
também no interior de uma mesma família. As preocupações com as desigualdades sociais
vivenciadas na sociedade brasileira já se faziam presentes nas fotografias de Andujar. Em uma
das imagens (Figura 46) vemos a família baiana, dona da fazenda, assistindo televisão na sala
de estar enquanto os empregados tentam enxergar as imagens do aparelho do lado de fora da
sala, ao lado do batente da porta.
356
O novo álbum da família paulista do século passado: Maureen Bisilliat, Claudia Andujar e George Love, três
dos nossos melhores fotógrafos, estão mostrando no Museu de Arte, 162 fotos feitas entre 1880 e 1930. O
Estado de S. Paulo, 29 de setembro de 1971.
357
A fase inicial da carreira da fotógrafa foi investigada por Thyago Nogueira, curador de fotografia do
Instituto Moreira Salles (IMS). A pesquisa resultou na exposição Claudia Andujar - No lugar do outro realizada
pelo IMS do Rio de Janeiro em 2015. NOGUEIRA, Thyago (org.). Op. cit. 2015.
135
Figura 46: Fotografia da série Famílias Brasileiras, Claudia Andujar, 1962. Fonte: Reprodução do catálogo
Claudia Andujar - No lugar do outro. Coleção particular da autora.
Talvez por conter uma forte crítica social as imagens de Claudia da série Famílias brasileiras
não tenham sido apresentadas na exposição A família brasileira, apesar da coincidência do
tema. Na declaração para matéria do jornal O Estado de S. Paulo, mencionada acima, Claudia
afirma que: “a ideia de fazer uma exposição de fotos antigas da família brasileira transformou-
se mais numa exposição da árvore genealógica paulista de muitas gerações, com sua moda, de
roupa, cabelo, barba e bigode”358. Em seu depoimento nota-se o descontentamento da fotógrafa
com a maneira como o tema da exposição foi desenvolvido.
O artigo intitulado A família dos Homens, da pesquisadora Erika Zerwes, traça paralelos entre
a migração de conceitos humanistas da fotografia documental francesa para os Estados Unidos.
Ela aborda especificamente a relação entre as revistas ilustradas, a exposição The Family of
Man, e a série Famílias Brasileiras de Andujar.
358
O novo álbum da família paulista do século passado: Maureen Bisilliat, Claudia Andujar e George Love, três
dos nossos melhores fotógrafos, estão mostrando no Museu de Arte, 162 fotos feitas entre 1880 e 1930. O
Estado de S. Paulo, 29 de setembro de 1971.
136
e a tentativa de vender sua versão brasileira de People are people the world
over, mas também por sua participação em exposições cujos temas são muito
próximos de Family of Man.359
O terceiro audiovisual O homem da hileia produzido por Claudia Andujar e George Love foi
exibido no MASP de 16 de dezembro de 1972 a 04 de fevereiro de 1973, como parte integrante
da exposição Hileia Amazônica360 (Figura 47) A mostra apresentou uma grande quantidade de
objetos, a partir de extenso levantamento de viés etnográfico, com os quais pretendia-se
representar as diversas etnias da região. Ao mesmo tempo, o discurso veiculado pela exposição
carregava forte conteúdo nacionalista e ufanista. Os dossiês do Arquivo Histórico do MASP
não são conclusivos quanto ao surgimento da proposta, mesmo havendo um volume
considerável de documentos. No entanto, constatamos que o desdobramento da ideia inicial
centralizou-se no diretor do MASP.
359
ZERWES, Erika. As famílias dos homens. Os trânsitos do humanismo na fotografia internacional e
brasileira. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 44, n. 1, p. 149-161, jan.-abr. 2018, p. 159.
360
Nos documentos textuais da exposição é constante referenciá-la pelo nome “Amazônia”. Arquivo
Fotográfico do MASP. Pasta da exposição Amazônia, 1972.
137
Figura 47: Entrada da exposição Hileia Amazônica, 1972. Fonte: Reprodução do catálogo MASP 30 Anos.
Coleção particular da autora.
De fato, em carta de 09 de janeiro de 1973, o diretor atesta que “a Exposição da Amazônia [foi]
baseada especialmente na projeção de uma série de esplendidos slides de autoria de Claudia
Andujar e George Love, que ao longo de anos trabalharam naquela região”361. O trabalho dos
fotógrafos é mencionado desde as primeiras correspondências enviadas por Bardi a prováveis
parceiros para a realização da exposição. Uma das primeiras correspondências, datada de 22
de julho de 1971, tem como destinatário o professor Ulpiano Bezerra de Menezes, então diretor
do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE USP). Ainda que
os artistas não sejam citados nominalmente, a descrição de Bardi parece se referir às montagens
audiovisuais criadas por eles.
Caro Ulpiano:
Estou organizando, com a colaboração da Abril Cultural, uma exposição dedicada à
Amazonia. Foram feitas 15.000 fotografias em côres das quais será selecionada uma
serie de slides para projetar.
A exposição conterá também vitrines, construídas especialmente, para abrigar peças
de Santarém e Marajoaras.
361
BARDI, Pietro M. [Correspondência]. Destinatário: Caio de Alcântara Machado. São Paulo, 09 de janeiro
de 1973. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia A, 1972.
138
O patrocínio da Abril Cultural, editora da revista Realidade, os primeiros contatos no ano de
1971, e a participação de Claudia e George nos dois projetos sobre a Amazônia sugerem a
intenção de se realizar uma espécie de ação conjunta, visto que o diretor do museu pretendia
inaugurar a exposição ainda naquele ano362. Bardi continua a carta averiguando a possibilidade
de empréstimo de peças etnográficas da região amazônica por parte do MAE USP. No entanto,
o que nos salta aos olhos no texto é a quantidade de fotografias já captadas pelos fotógrafos,
posto que a dupla vinha registrando a região há alguns anos363. Notamos também que a data da
correspondência coincide com a primeira exposição de Claudia e George no MASP.
Algumas outras instituições contatadas por Pietro Maria Bardi para colaborarem com a
exposição Hileia Amazônica foram: Instituto de Botânica, Museu Paraense Emílio Goeldi,
Coordenadoria da Pesquisa de Recursos Naturais, Secretaria de Agricultura, Instituto Nacional
de Pesquisa da Amazônia, Ministério dos Transportes, Museu Paulista e Fundação Nacional
do Índio (FUNAI). A participação de tais instituições indica a grande ambição da proposta
conduzida pelo diretor do MASP.
Segundo o diretor do MASP, a mostra se constituiria em torno de alguns eixos temáticos além
do audiovisual, que seriam: Arqueologia, Etnografia, Ecologia, Povoação e Transamazônica.
A partir dos quais se pretendia “demonstrar o valor desses fatores - para uma comunicação
consciente e esteticamente verdadeira, além de uma ampla informação relativa a todos os
problemas do território”364. Em correspondência de 28 de agosto de 1972, Bardi pede a
colaboração do Ministro dos Transportes, Coronel Mário David Andreazza, com a cessão de
material para elaboração de uma “informação viva e completa da Transamazônica", que
considerava um feito de interesse nacional e internacional. Alguns dias antes, em 14 de agosto,
Bardi havia escrito ao engenheiro João Maciel de Moura, então presidente do Projeto Radar da
Amazônia (RADAM), implantado em 1971. O Projeto RADAM previa o levantamento dos
recursos naturais da região através da utilização de imagens captadas por cobertura
362
O pesquisador Vitor Marcelino da Silva em sua tese de doutorado constata o alinhamento da exposição com
as intenções da revista Realidade, ambas em acordo com os discursos de exploração do território amazônico
defendidos pela ditadura empresarial militar. O autor também analisa os discursos da exposição Hileia
Amazônica. SILVA, Vítor Marcelino. Op. cit., 2022.
363
Claudia conhece os Xikrin-kayapó, que vivem na região amazônica do estado do Pará, pelo menos desde
1968, quando foram publicadas suas primeiras imagens sobre esta etnia.
364
BARDI, Pietro M. [Correspondência]. Destinatário: Coronel Mario David Andreazza. São Paulo, 28 de
agosto de 1972. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia A, 1972.
139
radargramétrica365. Bardi explica que o motivo de seu contato era a realização de uma
exposição sobre a Amazônia, acentuando seu “caráter didático”.
“(...) uma exposição sôbre a Amazonia, cuja conquista não empolga somente a nós
brasileiros, mas a todos os povos da terra.
A fim de mostrar ao público paulistano, e darmos uma idéia do que seja o continente
amazonico, vimos solicitar a V. Sra. a cessão das imagens fotográficas realizadas pelo
Projeto Radam”.366
Ao estender o interesse sobre a região amazônica “a todos os povos da terra”, Bardi sugere a
articulação das mesmas inclinações universalistas que mobilizaram a exposição A Família
Brasileira, remetendo à ideia de que todos os habitantes do planeta pertenceriam a uma única
família. Ao se utilizar de termos como “conquista” e “continente” sugere a escala superlativa
que utilizava na organização da mostra, assim como seu alinhamento com discursos da ditadura
militar.
Em uma das pastas sobre a exposição há um texto, que parece ser um primeiro esboço acerca
da abordagem da temática, sob o título “Amazônia: nosso desembarque na lua”. Segundo este
documento, a exposição cumpriria a função didático-educativa de introduzir ao público
paulistano conhecimentos e estudos relativos a aspectos poéticos de lendas e mistérios da
natureza, assim como características histórico-geográficas, políticas e econômicas da região.
“Com particular interesse pelo empreendimento da Transamazônica, considerando nos seus
aspectos urbanísticos em espetacular escala e nos humanos como uma continuação da epopeia
do pioneirismo americano”367. Tal comparação estabelece um paralelo com a disputa
ideológica do contexto da guerra fria368, que culminou na chegada da missão estadunidense no
satélite alguns anos antes.
365
O RADAM foi o maior projeto de mapeamento por imagens de radar lançado na época, a nível mundial,
gerando uma grande quantidade de informações sobre toda a extensão da Amazônia Legal. Antes do Projeto, o
levantamento cartográfico era uma atividade intrincada devido às características físicas da região, com sua densa
floresta e rios sinuosos. No entanto, os planos do governo militar não concentravam-se apenas no mapeamento
cartográfico ou dos recursos hídricos, tinham como objetivo a integração e exploração econômica do território
amazônico. Entre os profissionais contratados pelo projeto não haviam estudiosos das ciências sociais ou da área
de humanas, apenas aqueles ligados ao estudo das características físicas da natureza. DE MENEZES, Paulo
Márcio Leal. Modelo conceitual e procedimentos metodológicos para a análise e interpretação de imagens no
Projeto RADAM. Anais XIV Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Natal, Brasil, 25-30 abril 2009.
Disponível em: http://marte.sid.inpe.br/col/dpi.inpe.br/sbsr@80/2008/11.17.21.41/doc/7393-7400.pdf
366
BARDI, Pietro M. [Correspondência]. Destinatário: João Maciel de Moura. São Paulo, 14 de agosto de
1972. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia A, 1972.
367
Amazônia: nosso desembarque na lua [Texto]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia B,
1972.
368
A comparação com a “conquista” da lua faz referência a um dos episódios mais conhecidos do contexto da
Guerra Fria entre os EUA e a então União Soviética, que dividiu o mundo entre 1947 e 1989. As duas
superpotências centraram seus esforços e investimentos em ciência e tecnologia na disputa pelo espaço sideral,
140
Ainda no mesmo texto, Bardi explica detalhadamente os conteúdos da mostra:
Ao analisarmos as temáticas propostas pelo diretor do MASP, concluímos que o seu interesse
pela região amazônica apresenta ecos dos discursos de integração territorial e desenvolvimento
econômico propagados pelo governo militar. É relevante lembrar que o Brasil vivia o fenômeno
conhecido como “milagre econômico” e o rápido crescimento ocorrido durante o período era
avaliado positivamente por uma parcela considerável da população. Sob outra perspectiva, as
forças de repressão política e a contundente censura aos meios de comunicação inviabilizavam
manifestações críticas a tais projetos como, por exemplo, o da Transamazônica, cujas
consequências seriam desastrosas para as populações indígenas nos anos posteriores.
que, por sua vez, tratava-se de demonstração do poderio militar de cada uma. Em 1969, os EUA foram o
primeiro país a pisar na lua. A aproximação de Bardi com a vitória dos EUA na corrida espacial o coloca em
alinhamento ideológico, ainda que simbólico, com o regime autoritário instalado no Brasil, cuja justificativa
para tomada do poder e recrudescimento repressivo foi a dita ameaça comunista. Nesta época o governo do
general Emílio Garrastazu Médici, conhecido como os “anos de chumbo” da ditadura militar, mantinha relações
de proximidade com o governo de Richard Nixon, com quem colaborou para desestabilizar o cenário político
chileno e o consequente golpe militar em 1973, que derrubou o governo eleito de Salvador Allende. Verbete de
Médici consultado no acervo online do Centro de Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/medici-emilio-garrastazzu
369
Amazônia: nosso desembarque na lua. [Texto]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia B,
1972.
141
indígenas confeccionados no tempo presente enquanto arte, situando-os em instâncias como a
do artesanato ou do artefato.
O esboço da planta baixa encontrado nos dossiês da exposição370 mostra a divisão temática
para a composição das vitrines e disposição dos objetos coletados. Foram dez ao todo, a saber:
O habitat; as tribos e sua adaptação; as habitações; a alimentação; as armas; a cestaria; a
cerâmica; os adornos; alucinógenos; as máscaras. De acordo com o texto, era importante que
as duas primeiras e a última seções estivessem nesta ordem, facilitando o entendimento por
parte do público.
Figura 48: Cartaz de divulgação da sequência visual “O homem da hileia”, de Claudia Andujar e George Love.
Fonte: Coleção de Cartazes do Centro de Pesquisa do MASP.
370
Esboço de planta baixa. [Desenho]. Arquivo histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia B, 1972.
371
Cartaz de “O homem da hileia”, 1973. Coleção de Cartazes do Centro de Pesquisa do MASP.
142
O cartaz indica que as fotografias e a edição do audiovisual ficaram a cargo de Cláudia,
cabendo a Love a ambientação do trabalho. O impresso traz ainda a data de exibição no museu,
que teria acontecido entre novembro e dezembro de 1973372. Além de ter sido apresentado na
mostra Hileia Amazônica, o audiovisual O homem da hileia foi mostrado em outras ocasiões,
conforme aponta a data impressa no cartaz.
Podemos notar, logo nas primeiras linhas do texto, um reforço da relação dicotômica entre
natureza e cultura pelo uso da expressão “estado natural”, que não se aplica no caso da
cosmovisão indígena, na qual a separação entre natureza e cultura não existe. Em outra
perspectiva, o texto fornece informações valiosas acerca da montagem do audiovisual, bem
como do método de edição das imagens. Os resultados poéticos que caracterizariam o trabalho
de Cláudia com as fotografias dos Yanomami nos anos posteriores estavam em plena
experimentação. Aqui tomamos conhecimento da técnica híbrida adotada por Andujar para a
adição de luzes coloridas em imagens preto e branco: a combinação de ampliações em preto e
branco refotografadas com filmes coloridos. Em outros termos, significa dizer que a artista
adere novas camadas de filme às suas fotografias, com a ajuda de equipamentos que permitem
o uso de filtros e manipulações, conforme visto nas exposições anteriores.
372
O audiovisual foi exibido na feira Brasil Export de Bruxelas e em eventos de música realizados no grande
auditório do MASP.
373
O Homem da Hileia [Texto curatorial]. Arquivo histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia B, 1972.
143
George Love, por sua vez, foi o responsável pela ambientação da foto-sequência, como eles
mesmos passaram a denominar a parte mais tecnológica da montagem: a programação dos
projetores, a sincronização das fotos com o som, a instalação das telas e espelhos e a
multiplicação das imagens. É ele quem idealiza a ocupação do espaço e o display expositivo.
Juntos, Love e Andujar, intencionavam transportar o espectador para um espaço atemporal,
onde a lentidão da imagem e da música se contraporiam ao ritmo cada vez mais acelerado do
mundo contemporâneo.
George encerra o relatório fazendo um balanço acerca dos custos da obra, avaliando a limitação
orçamentária e os meios de reduzir ainda mais os gastos. Ele afirma que caso não houvesse
374
LOVE, George [Comunicado interno]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia B, 1972.
144
patrocínio, ele e Claudia abririam mão de seus pagamentos em favor da remuneração de
prestadores de serviços imprescindíveis para a montagem. Nesta ocasião, menciona o possível
envolvimento de alguma editora, sugerindo que a intenção de publicar as imagens de fato já
existia desde o início. Em 16 de outubro de 1972, o MASP recebe um orçamento dos Gráficos
Brunner Ltda. para impressão de 2.000 exemplares do livro “Amazônia”375. De acordo com o
documento, a publicação compreenderia duas folhas de texto e dez folhas de gravuras, nas
quais seriam impressas as fotografias, tendo como formato previsto o de uma pasta com folhas
avulsas. Sabemos que esta publicação não foi efetivada e as negociações para a viabilização do
livro ainda se estenderiam por alguns anos.
Bardi, por sua vez, continuava em busca de patrocínios para financiar o projeto. Tendo em vista
as propostas nas quais envolve as obras produzidas por Claudia e George, presumimos que
havia uma relação de confiança entre ele os artistas, que lhe concediam uma espécie de “carta
branca” para que intermediasse tratativas de possíveis exposições. A esta altura, Claudia
Andujar já havia sido contemplada com a primeira de duas bolsas que recebeu da Fundação
John Simon Guggenheim, concedida em junho de 1971376. Ao aplicar o pedido de bolsa à
Fundação, a fotógrafa teria indicado como objeto de estudo os índios Xikrin-kayapó, mas
mudou o foco para os Yanomami a partir do conhecimento que adquiriu sobre eles. No início
de 1972, ela passa a integrar a Missão Catrimani, em Roraima, onde desenvolveu o maior
volume de seu trabalho fotográfico durante a década de 1970377.
375
Arquivo Histórico do MASP. Pasta Publicação do Livro Amazônia de Claudia Andujar e George Love, 1973.
376
Em correspondência de 16 de agosto de 1971, Claudia Andujar encaminha um pedido de autorização de
trabalho na região amazônica ao general Jerônymo Oscar Bandeira de Mello, então presidente da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI). Na carta, Andujar apresenta um pequeno memorial de trabalhos sobre populações
indígenas realizados anteriormente, a saber, os Carajás e Bororos. Explica ainda que o foco de sua pesquisa
recairá sobre os índios Xikrin, com os quais já havia começado “trabalho de documentação que gostaria de levar
até o fim”. Chama a atenção para a urgência do pedido, visto o ritmo acelerado de “aculturação” das populações
indígenas da região amazônica. Ao final de sua explanação, demanda também o “grande obséquio de incluírem
o nome do marido, George Love, profissional de fotografia e som”, a fim de autorizá-lo a “acompanhar algumas
dessas pesquisas”. Assina a carta como Claudia Andujar Love. ANDUJAR, Claudia. Carta ao general Jerônymo
Oscar Bandeira de Mello. São Paulo, 16 de agosto de 1971. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição
Amazônia A, 1972.
377
ANDUJAR, Claudia. 2018, p. 275.
378
A feira Brasil Export, realizada em 73 na cidade de Bruxelas, consistiu em um grande empreendimento de
empresários e apoiadores do regime militar com intuito de movimentar a economia nacional. Segundo Silva, o
audiovisual foi exibido com modificações nesta ocasião e Pietro Maria Bardi se utilizou do tom “cordial” para
explorar o mito das três raças de fundação do país. SILVA, Vítor Marcelino. Op. cit. 2022.
145
no exterior. Assinala que animar a exposição de Bruxelas com uma representação emotiva e
“cordial” da Amazônia seria completar com dignidade o empreendimento, conforme suas
palavras379. Novamente Bardi aciona sua rede de contatos com a finalidade de arrecadar fundos,
solicitar empréstimo de materiais e viabilizar a proposta da exposição.
Assim como o cartaz de O homem da hileia esclarece os papéis desempenhados por Claudia e
George na composição do audiovisual, os documentos do arquivo demonstram o empenho
despendido pelo diretor do museu para a realização da exposição. Se a princípio a sequência
visual dos artistas havia inspirado a mostra, a contraproposta delineada por Bardi se sobressai
na forma final da exposição por meio de seu viés fortemente ufanista, baseado em um discurso
em defesa do projeto desenvolvimentista do governo militar, de “conquista” e consequente
exploração econômica do território amazônico.
Nesta perspectiva, a instalação audiovisual dos fotógrafos tem seu sentido associado a um
discurso que se alinhava com os projetos desenvolvimentistas do governo militar para a região
amazônica, com intenção de exploração econômica do território e assimilação da sua
população. A ideia de que o desaparecimento dos indígenas seria inevitável com a integração
do território era reforçada ao terem seu modo de vida colocado como entrave ao progresso que
fatalmente aconteceria na região, dentro de uma perspectiva política de desenvolvimento
exploratório. Do ponto de vista simbólico, o fato de constarem apenas objetos, artefatos e
adornos, e não sujeitos, ratifica tal compreensão negando a existência do indígena no tempo
presente e os aprisionam a um passado longínquo.
379
BARDI, Pietro M. [Correspondência]. Destinatário: Caio de Alcântara Machado. São Paulo, 09 de janeiro
de 1973. Arquivo Histórico do MASP. Pasta exposição Amazônia A, 1972.
146
utilizavam em seus trabalhos, tais como ampliações, recortes, sobreposições e alterações de
cor. Os artistas também propunham exercícios de criação autoral a partir de referências da
produção de fotógrafos contemporâneos que mostravam aos alunos em aula. Por meio dos
documentos do Arquivo do Masp, pudemos identificar a realização de pelo menos seis cursos,
entre 1973 e 1975 (TABELA 01).
LABORATÓRIO DE
FOTOGRAFIA
Curso para alunos adiantados jul/1975 duração 3 a 5 meses Claudia Andujar e Irka Gorlaski para a GSP
Tabela 01 - Cursos do Laboratório de Fotografia do MASP. Fonte: Levantamento de dados coletados no
Arquivo Histórico do MASP.
O documento mais antigo encontrado nos dossiês dos cursos de fotografia apresenta o
programa de um curso intensivo, ministrado entre abril e maio de 1973, por Claudia Andujar e
Hugo Gama380. Com duração prevista de doze semanas e vinte e quatro encontros, o curso
incluía desde as primeiras noções de manuseio da câmera, introdução aos equipamentos de
laboratório, passando pelos conceitos e etapas dos processos de revelação e ampliação de
cópias fotográficas, até a análise de trabalhos de fotógrafos nacionais e internacionais de
tendências diversas.
Andujar incumbia-se das aulas teóricas nas quais oferecia desde retrospectivas sobre a história
da fotografia até discussões sobre o futuro dessa mídia, a partir das obras dos fotógrafos
analisados. Além disso, ela acompanhava os alunos em saídas fotográficas pelas ruas de São
Paulo. Enquanto Gama cuidava da parte prática das aulas em laboratório, introduzindo
conceitos sobre a manipulação da câmera e dos negativos, o processo e equipamentos de
380
Programa de curso. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1973.
147
revelação, ampliação e papéis fotográficos, uso de filtros, viragens em papel, grão, contraste,
latitude e ‘puxadas’ de sensibilidade.
A primeira metade do curso era reservada à introdução teórica e análise de trabalhos que foram
agrupados a partir das temáticas abordadas em aula. O tema “snap-shot como um caminho” foi
desenvolvido a partir da projeção de séries de Robert Frank e Lee Friedlander. Para representar
os fotojornalistas, os professores escolheram Henri Cartier-Bresson e W. Eugene Smith.
Propunham também discussões a partir de uma breve retrospectiva histórica sobre a fotografia,
sua expansão e especialização. As obras de Aaron Siskind, Minor White e Paul Caponigro
foram debatidas a partir do pressuposto de que exemplificavam uma “outra estética”
fotográfica. As séries de Jerry Uelsmann e Duane Michals foram utilizadas como exemplos de
fotografia surrealista e foto-sequência, respectivamente.
Entre abril e julho de 1973, Claudia Andujar e George Love lecionaram um curso para alunos
adiantados, em cuja lista de inscritos constam 17 participantes. Entre eles estavam Irene (Irka)
Goralski, que se tornaria monitora do laboratório fotográfico nos cursos subsequentes,
Constantino Ignácio Riemma e Lucila Vasconcellos Gomes, que apresentariam exposições
individuais no MASP em 1973 e 1975, nessa ordem. Os recortes de jornal381 que anunciavam
a exposição individual de Constantino Ignacio Riemma no mezanino do museu revelam que o
fotógrafo frequentava o Laboratório de Fotografia do MASP, sob supervisão de George Love
e Claudia Andujar, desde agosto de 1972. Em razão disso, podemos supor que o Laboratório
já funcionasse em caráter experimental ou até mesmo de modo informal desde então.
381
No dossiê do Arquivo Histórico do MASP sobre o curso de fotografia de 1973, há uma folha de papel sulfite
com vários recortes de notas de jornais diferentes anunciando esta exposição. Entre eles: Jornal da Tarde e a
Gazeta Esportiva, ambos de 19 de abril de 1973, e Folha da Tarde, de 24 de abril de 1973. Arquivo Histórico
do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1973.
148
Um impresso, encontrado também no Arquivo, oferece informações sobre o curso adiantado
de fotografia, indicando que foi fortemente orientado para a expressão autoral e que previa a
possibilidade de os alunos virem a realizar exposições no museu:
O Curso Adiantado de Fotografia, que será orientado por George Love e Claudia
Andujar, para alunos de conhecimento básico sobre fotografia, é uma convivência
com o meio fotográfico onde cada aluno desenvolve um projeto de seu interesse
particular que depois tem a possibilidade de expor no próprio Museu. Laboratório à
disposição dos alunos.382
Alguns meses depois, entre setembro e novembro de 1973, o Laboratório de Fotografia volta a
oferecer o curso para principiantes383. Na lista de inscritos contam-se 21 alunos. O folheto de
divulgação reproduz um texto de autoria de Minor White para o catálogo da exposição Octave
of Prayer, apresentada no Massachusetts Institute of Technology, entre outubro e novembro de
1972 e publicada como livro numa edição especial da revista Aperture publicada no mesmo
ano384. O conteúdo reforça a ideia da fotografia enquanto expressão da subjetividade do autor.
O novo fotógrafo não se sente abalado quando lhe digo que a imagem que criou já foi
feita mil vezes e melhor. Ele responde: essa é minha experiência com Isabel, ou com
Teton, essa é minha experiência de identificação com o nenê morto na sarjeta, essa é
minha experiência com uma nuvem, ou com o superior que desprezo. E o que lhe
peço é o seguinte: por favor tenha a percepção e sensibilidade para avaliar a minha
experiência. Sei que você tem a capacidade de avaliar a fotografia estética e
sociologicamente, como documentação, simbolicamente, qualquer que seja seu ponto
de vista; mas será que você pode avaliar a minha experiência? Minha união com o
assunto é uma forma de realidade; e eu sinto isso na minha cabeça, no meu coração,
no meu corpo. Minha fotografia talvez não chegue ao nível de um Stieglitz, um
Strand, um Uelsmann ou um Caponigro, mas aqui está. Será que você tem a
capacidade de medir esse meu envolvimento?385
No mesmo folheto Claudia reitera tal posicionamento afirmando que “existem mil maneiras de
se expressar através da fotografia, no entanto o importante é achar a sua própria linguagem”386.
Para isso, os esforços dos instrutores eram direcionados no sentido de cultivar o olhar
fotográfico dos alunos, debatendo referências por meio de projeções de trabalhos de
importantes fotógrafos, abordando técnicas e materiais e, em especial, propondo o
382
Folheto de divulgação. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1973.
383
Neste caso não foi possível identificar o laboratorista responsável pelo curso. Segundo Claudia, ela sempre
atuava nos cursos em conjunto com outra pessoa que ficava encarregada do trabalho mais teórico do laboratório
enquanto ela se dedicava aos estudos de composição e captação da imagem. NOGUEIRA, Thyago Op. cit.,
2015, p. 244-245 (catálogo de exposição).
384
WHITE, Minor. Octave of prayer. Aperture, vol.17, n. 01, 1972. Reproduzido em folheto de divulgação do
curso de fotografia. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1973.
385
WHITE, Minor. Op. cit. 1972 [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de
Fotografia, 1973.
386
Folheto de divulgação do curso de fotografia. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia,
1973.
149
desenvolvimento de trabalhos práticos. O folheto apresenta imagens de autoria dos alunos. No
dossiê do Arquivo Histórico sobre o curso de 1973 há ainda um convite para a abertura da
exposição Acervo de Fotografias387, endossando que uma coleção fotográfica estava sendo
organizada.
A proposta de um novo curso foi registrada apenas no ano seguinte por comunicado interno de
Claudia Andujar, em 15 de julho de 1974388. Neste mesmo dia, Luiz Hossaka informou ao
administrador do MASP a reativação do Curso de Fotografia a cargo dos fotógrafos George
Love e Claudia Andujar389. Hossaka pede para que sejam feitos pequenos reparos no
Laboratório, além da substituição de equipamentos para a volta das aulas. Em função das
informações levantadas sobre a trajetória de Claudia supomos que as atividades foram
suspensas nos meses anteriores, provavelmente em virtude das incursões da fotógrafa na região
do Catrimani390.
387
Convite. Arquivo Histórico do Masp. Pasta do Curso de Fotografia, 1973.
388
ANDUJAR, Claudia. [Comunicado interno]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia,
1974.
389
HOSSAKA, Luiz. [Comunicado interno]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
390
Segundo o catálogo da exposição Claudia Andujar - A luta Yanomami, a artista “permanece boa parte do
ano” nesta região. NOGUEIRA, Thyago. Op. cit. 2018, p. 276. Entre os documentos do Arquivo há uma carta
de Claudia para Bardi escrita em 10 de maio de 1974, na qual a artista fala sobre o começo do projeto de
interpretação da mitologia Yanomami. Falaremos de seu conteúdo no próximo capítulo quando abordarmos o
livro Mitopoemas Yanomãm. ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão
Catrimani, Roraima, 10 de maio de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
391
Não foi possível constatar se as aulas do curso realmente ocorreram de acordo com a proposta, pois segundo
o folheto de divulgação Andujar lecionaria até o final de setembro. No entanto, encontramos correspondências
escritas por ela e enviadas para Bardi no começo deste mesmo mês, da qual trataremos no próximo capítulo
desta dissertação. ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani,
Roraima, 01 de setembro de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
392
Fotógrafo de origem inglesa cujo trabalho tornou-se referência em moda e publicidade nos anos 1960.
393
O livro Tulsa foi publicado em 1971, e causou polêmica por conter cenas de jovens mantendo relações
sexuais e fazendo uso de drogas. Há uma diferença pequena, porém, notável entre os trabalhos de Larry Clark e
Eugene Smith, por exemplo, que diz respeito à inserção e/ou pertencimento do fotógrafo à comunidade que
150
interesse de Andujar por trabalhos nos quais os fotógrafos retratam o cotidiano das
comunidades nas quais estão inseridos, sendo a produção de Clark, particularmente
representativa nesse aspecto.
É notável a atualidade dos debates propostos por Claudia e George, trazendo interlocutores de
outras áreas, com experiências diversas para partilharem seus conhecimentos com o público.
As contribuições de Wesley Duke Lee, que na época adotava procedimentos fotomecânicos
retrata. Clark, ele próprio, na época em que captou as imagens da série Tulsa, era usuário de drogas. CLARK,
Larry. Tulsa. New York: Grove Press, 2000.
394
Exposta a evolução da fotografia. O Estado de S. Paulo, 22 de janeiro de 1974. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
395
No Masp, os novos caminhos da fotografia. Jornal da Tarde, 21 de janeiro de 1974. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
396
Nas reportagens de jornal da época, encontramos a programação de audiovisuais de George Love e Maureen
Bisilliat, Claudia não é citada na autoria em nenhuma delas.
397
Exposta a evolução da fotografia. O Estado de São Paulo, 22 de janeiro de 1974. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
151
como base para a composição de suas pinturas, e do psicólogo Edmundo de Freitas, que aborda
a subjetividade do fotógrafo, provocam um alargamento da compreensão sobre a fotografia,
deslocando-a do estatuto de cópia do real para um dispositivo de intervenção no real. Além
disso, os fotógrafos estadunidenses apontam caminhos possíveis para a formação de um
mercado para fotografia.
O formato de trabalho proposto se assemelha aos projetos nos quais Love coordenou, anos
antes, equipes de fotógrafos para cobrir as transformações da sociedade estadunidense nos anos
1960. Idealizado, a princípio, para se desdobrar em quatro anos, George cogita a reformulação
da ideia para um período mais curto, de seis meses a um ano, visto o alto custo do planejamento
a longo prazo. O fotógrafo oferece o espaço do museu para instalação do arquivo de imagens
resultante do projeto, assim como a utilização do Laboratório para revelações, ampliações, e
treinamento de pessoal para atuação em campo. Acena, ainda, com a possibilidade de
realização de uma exposição.
O archivo formado poderia ser guardado pelo Museu, visando inclusive como um
primeiro resultado a preparação de uma exposição fotográfica de destaque, sugestão
do Professor Bardi para qual ele se prontificou de providenciar o espaço necessário.
Este podia ser realizada assim que existir material o suficiente, e poderia servir de
398
LOVE, George [Correspondência]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Departamento de Fotografia,
1975.
399
LOVE, George [Correspondência]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Departamento de Fotografia,
1975.
152
base para eventuais publicações (...) além disso as imagens escolhidas formariam já
o núcleo para um archivo de foto-história da evolução da nossa época.400
George encerra a carta requisitando patrocínio para a realização do projeto a fim de cobrir os
custos desde filmes fotográficos até a contratação de profissionais para atuarem na captação e
guarda das fotografias produzidas. Explana ainda sobre os direitos autorais dos fotógrafos visto
que, segundo ele, “ninguém de talento trabalhará bem sabendo que perderá todas as imagens
(...) feitas em caráter permanente”401. Desse modo, evidenciam-se preocupações com pautas
trabalhistas e a organização dos fotógrafos enquanto classe profissional. Ao mesmo tempo,
notamos a crescente disposição por parte do museu em organizar uma coleção de fotografias.
Pouco tempo depois da tentativa de George Love de obter patrocínio para o projeto de
documentação da cidade de São Paulo, Claudia Andujar enviou duas402 correspondências em
que já assinava como supervisora do Departamento de Fotografia do Masp. Em 30 de junho de
1975, ela contatou o fotógrafo suíço radicado nos Estados Unidos, Allan Porter, com o objetivo
de divulgar o recém criado departamento. Porter era editor da revista Camera Magazine.
Andujar deixa implícito que a ideia do Departamento partira dela e fora prontamente acolhida
por Pietro Maria Bardi. Ela relata os eventos que promoveu com George Love e aborda as
propostas que tinha para o novo departamento:
A segunda correspondência foi endereçada à W. Eugene Smith, a quem Claudia chama por
“Gene” de forma afetuosa. A consulta tem como objetivo a aquisição de cópias e a organização
de uma mostra individual de Smith no MASP.
Primeiramente gostaria de saber se você poderia nos enviar dois prints do Minamata
mother and son, e quanto você pediria por eles? Um será para o Museu e outra para
400
LOVE, George [Correspondência]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Departamento de Fotografia,
1975.
401
LOVE, George [Correspondência]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Departamento de Fotografia,
1975.
402
Em toda a documentação consultada encontramos apenas estas duas cartas de autoria de Claudia Andujar
assinando como supervisora do Departamento de Fotografia.
403
A correspondência original foi escrita em inglês: 1 - Purchase photographs and to exchange exhibits with
other photographic center; 2 - Build a respectable collection of contemporary and old photographs; 3 - Assemble
material for exhibits for circulation in and outside Brazil; 4 - Create a reference library (Tradução da autora).
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário Allan Porter. São Paulo, 30 de junho de 1975. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
153
mim. Não sei se você se lembra que eu já tenho um print seu, você me deu de presente
de casamento, the mad man from Haiti. Gostaria muito de adquirir agora este segundo
print que realmente 'me emociona'. (...) Gene, se for possível, eu gostaria de fazer
uma mostra, uma mostra individual, no Museu, do seu trabalho. Você estaria
interessado? O Museu é moderno e temos um bom espaço. Tenho certeza que você
aprovaria. Agora a questão é como essa exposição poderia vir para São Paulo. O Prof.
Bardi, diretor do Museu, também está interessado em traze-la e estamos estudando as
possibilidades.404
Em entrevista recente por ocasião da exposição Claudia Andujar - No lugar do outro, de 2015,
Andujar demonstra ter mantido sua opinião a respeito do trabalho de Eugene Smith, mesmo
passados quase 45 anos405. Na correspondência enviada a Smith nos anos 1970, Andujar faz
ainda um relato emocionado de seu trabalho com os Yanomami, o genocídio que vinha
testemunhando e o aprendizado de sua vivência entre os indígenas. Dessa forma, conseguimos
compreender a situação de “entre mundos” na qual a fotógrafa havia adentrado.
(...) Eu terminei no ano passado um projeto de três anos entre os índios Yanomami
da Amazônia. Gene, trabalhei com eles, estudei, mas acima de tudo aprendi a amar
esse pequeno grupo de pessoas durante esse tempo. Eu os acompanhava em suas
caçadas na selva, participava de suas cerimônias religiosas e também cuidava deles
quando adoeciam. Durante minha última viagem para lá, a rodovia (e que rodovia)
foi aberta e com ela vieram as doenças e a morte. Desde então eles estão morrendo
lentamente. Fiquei ano passado quatro meses lá (não no ano passado, mas em 1974).
E no ano passado [estive lá], penso apenas duas vezes. Eu cuidava principalmente
dos doentes, mas naquela época meu trabalho como fotógrafa havia terminado, eu
sentia isso, e talvez você entenda o que quero dizer. No ano passado, me dediquei a
imprimir [as imagens] principalmente e agora também terminei. Hoje quando olho
para o trabalho sei que tem nele todo o amor que senti e sinto por essas pessoas, seu
mundo mágico (mundo espiritual) se revelou [nas imagens] e é o que considero a
única coisa que fiz na minha vida até hoje que vale a pena. Você entende isso? Bem,
não sei bem por que escrevi tudo isso para você, só acho que, conhecendo você um
pouco, você entenderá o que quero dizer.406
404
A correspondência original está escrita em inglês, os títulos das fotografias foram mantidos no idioma
original: First of all I would like to know if you could send us two prints of the Minamata mother and son, and
how much will (sic) you ask for them? One print will be for the Museum and one for myself. I don’t konw if
you will remember that I already have a print of yours, you gave me as a wedding present, the mad man from
Haiti. I would very much acquire now this second print I truly ‘feel’. (...) Gene, if it is possible, I would like to
put up a show, a one man show, at the Museum, of your work. Are you interested? The Museum is modern and
we have a good space. I am sure you would approve of it. Now the question is how this show could come to São
Paulo. Prof. Bardi, the director of the Museum is also interested in having it brought down and we are studying
the possibilities (Tradução da autora). ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário W. Eugene Smith.
Sem data. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Correspondência Geral, 1976.
405
“A relação com o outro. Gosto muito desse trabalho que ele fez no Japão, Minamata, que é uma tragédia que
a gente também causou ao mundo. Como estamos fazendo com os índios. Esse sofrimento que senti nele tem
muito a ver com esse trabalho - o interesse na luta pela sobrevivência”. NOGUEIRA, Thyago. Op. cit. 2015, p.
242.
406
A correspondência original está escrita em inglês: (...) I finished last year a three year’s project among the
Yanomami Indians of the Amazon. Gene, I worked with, studied but most of all I learned to love this small
group of people during that time. I went along with them on their hunting trips in the jungle, took part in their
religious ceremonies and also nursed them when they got sick. During my last trip there, the highway (and what
a highway) was opened and with it came sickness and death. Ever since they are slowly dying off. I stayed last
year four months there (not last year, but in 1974). And in the last year, I think only twice. I mostly took care of
the sick but by that time my work as a photographer was done, I felt that, and maybe you understand what I
154
Entre os longos períodos de incursão na floresta, Claudia precisava voltar à cidade para que os
filmes que havia captado não deteriorassem e pudessem ser revelados com boa qualidade. No
relato, conta que passados três anos de pesquisa teria apreendido muito sobre o cotidiano, as
caçadas, vivências e ritos da população Yanomami com a qual convivera, e estava pronta para
editar seu trabalho mais maduro. A artista considerava ter conseguido traduzir
fotograficamente o mundo mágico e espiritual dos Yanomami407. Em suas palavras, inferimos
que ela própria estava em busca de alguém com quem pudesse compartilhar a profundidade de
seu projeto junto aos indígenas, vendo na pessoa de um fotógrafo a quem admirava um possível
interlocutor.
Após seu retorno a São Paulo, Andujar continua envolvida com os cursos de fotografia que
lecionava no MASP, atividade que lhe garantia uma fonte de renda e também o apoio
institucional de que necessitava para continuar seu trabalho. Pela análise dos documentos408,
concluímos que o Departamento de Fotografia surge como um prolongamento dos cursos do
Laboratório e da exposição Grande São Paulo, prevista a princípio para ser realizada em 1975.
Um texto sem data, título ou assinatura, porém com tom típico da escrita de Bardi, encontrado
no dossiê do curso de fotografia de 1974, relata o processo que levou à fundação do
Departamento de Fotografia:
mean. Last year I mostly printed and now I have finished that too. Today when I look at the work, I know there
is in it all the love I felt and feel for these people, they magical world (spiritual world) came through what I
consider the only worthwhile thing I did in my life until today. Do you understand that? Well, I don’t quite know
why I wrote you all this, I just think, knowing you a bit, you will see what I mean (Tradução da autora).
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário W. Eugene Smith. Sem data. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta Correspondência Geral, 1976 (grifo nosso).
407
Na correspondência Claudia afirma que seu trabalho com os Yanomami era “a única coisa que teria feito na
vida até então que valia a pena”. ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário W. Eugene Smith. Sem
data. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Correspondência Geral, 1976.
408
A documentação do Arquivo Histórico do MASP é lacunar de uma maneira geral, no entanto, quanto ao
Departamento de Fotografia a ausência de documentos de caráter comprobatório e a pulverização das poucas
tratativas que encontramos dificulta a compreensão de seu processo de fundação, funcionamento e dissolução. A
análise aqui apresentada trata-se de uma possibilidade de interpretação destes processos.
155
O Museu distribui este folheto para ter a colaboração dos que se interessam à
fotografia. Tudo que possamos colecionar, maquinas e antigos livros, revista e
catálogos de assuntos fotográficos, recortes de jornais, arquivos será tomado em
consideração.
Se não será doado, o Museu pode adquirir.
Qualquer doação é preciosa para criar o acervo que será num segundo tempo posto a
disposição dos estudiosos e do publico em geral.409
Podemos deduzir desse relato, que o propósito de criação do Departamento de Fotografia era
resultado da mudança do estatuto social da fotografia que estava em curso na época, pois
somente após vinte e oito anos da fundação o MASP a direção dispunha-se a destinar verba
para novas aquisições de fotografias contemporâneas e antigas. O recorte histórico proposto
pelo autor do texto remonta às origens da fotografia aos primeiros dispositivos óticos utilizados
como recurso de captação de imagens por pintores italianos no século XVI, como a câmara
escura. Claudia foi convidada para a supervisão do Departamento visto as atividades que vinha
realizando na instituição, corroborando assim com a hipótese de que o seu surgimento deveu-
se ao encadeamento de ações que visava a valorização institucional da fotografia.
409
Texto de divulgação. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974 (grifo nosso).
410
Departamento de Fotografia. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Departamento de Fotografia, 1975.
156
Ao traçar o histórico da programação de fotografia, Bardi a situa no contexto da expansão das
atividades didáticas, bem como na esfera de efetivação de parcerias com importantes
instituições internacionais como o MoMA e o Visual Studies Workshop de Rochester. As
mostras de Ansel Adams e Bill Brandt, ocorridas no ano anterior, estão relacionadas ao
Departamento, sugerindo que ele já funcionava antes de sua formalização. Nos permite também
pressupor o envolvimento de Claudia e George na organização de tais eventos. O mesmo ocorre
com as exposições de caráter histórico realizadas a partir das pesquisas do fotógrafo Boris
Kossoy411, que resgatou figuras importantes da história da fotografia brasileira, evidenciando
sua participação do historiador no Departamento de Fotografia desde o seu início.
411
Em 1973, Boris Kossoy desenvolveu a exposição História da Fotografia no Brasil em parceria com Pietro
Maria Bardi, na qual apresentou resultados de sua pesquisa que revelaram importantes personagens para o
desenvolvimento da fotografia no país, como Hercule Florence e Valério Vieira. Tal constatação sugere uma
espécie de revezamento entre as pesquisas com fotografia contemporânea de Claudia e George e as
investigações históricas de Kossoy, que irá substituir Andujar no Departamento de Fotografia em 1977. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição História da Fotografia, 1973.
412
A única indicação do ano de realização é uma anotação a lápis no folheto “[1975]”. A transformação da
imagem [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
157
05/julho: Última aula: discussão geral de todo o curso; opinião dos participantes sobre
os trabalhos desenvolvidos e suas relações com os propósitos do curso.413
Claudia organizou outros dois cursos no segundo semestre de 1975. O curso básico de
fotografia ocorreu de 25 de agosto a 15 de outubro daquele ano, com aulas três vezes por
semana, além dos horários reservados para atividades práticas. No folheto de divulgação, Roger
Bester aparece como orientador e Irka Goralski como monitora de laboratório. Diferentemente
dos cursos anteriores, não há programação detalhada dos conteúdos, apenas um breve resumo.
Já o curso de fotografia para alunos adiantados, do ano de 1975, seria realizado a partir de 15
de julho, com duração entre três a cinco meses, sob orientação de Claudia Andujar e Irka
Goralski como assistente de laboratório. O objetivo do curso era documentar a Grande São
Paulo415.
413
A transformação da imagem [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de
Fotografia, 1974.
414
Curso Básico de Fotografia [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Departamento
de Fotografia, 1975.
415
Curso fotográfico para alunos avançados [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta
Exposição Grande São Paulo, 1976.
158
Este curso de fotografia para alunos adiantados é dedicado à documentação da Grande
São Paulo. As fotografias serão em branco e preto, com a finalidade de realizar uma
exposição no MASP. Cada aluno tem como tarefa desenvolver um aspecto da cidade,
uma característica marcante que a diferencie das outras cidades do Brasil.
Os diferentes temas para desenvolver serão propostos, discutidos e fotograficamente
executados pelos alunos em relação à aptidão e disponibilidade de cada um.
O curso é mais um workshop (oficina de trabalho) do que curso propriamente dito, e
terá a duração necessária para que o tema seja desenvolvido com o tempo máximo de
cinco meses.
Claudia Andujar, orientadora, coloca-se uma vez por semana, às terças-feiras à noite,
a disposição dos participantes do projeto para avaliação e discussão do trabalho.
O laboratório fotográfico estará à disposição dos alunos num período de quatro horas,
às quintas-feiras à noite e por hora marcada durante o período da manhã, sob
orientação de Irka Goralski.
As químicas utilizadas correm por conta do Museu, todo outro material (como filme
e papel) por conta do aluno. No fim do projeto o grupo decidirá junto com a
orientadora a seleção das fotografias a serem expostas. O MASP se encarregará das
despesas de tal montagem.416
416
Texto de divulgação. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1974.
417
Convocação GSP/75 [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São
Paulo, 1976.
159
A convocatória foi direcionada a fotógrafos ou, no mínimo, a pessoas que pensassem a
fotografia como meio de expressão capaz de revelar aspectos singulares das “coisas e fatos” da
cidade. O objetivo coaduna-se com as orientações quanto ao desenvolvimento dos trabalhos
dos alunos do curso proposto por Claudia, no qual tinham “como tarefa desenvolver um aspecto
da cidade, uma característica marcante que a diferencie das outras cidades do Brasil”.
O texto A GSP em exposição no MASP420 afirma que a exposição seria um grande happening
aberto à participação da população para debater os aspectos da vida na metrópole. Os visitantes
poderiam contribuir deixando suas opiniões em um grande painel interativo e também eram
convidados a responder questionários que abordavam temas suscitados pela mostra como:
habitação, transportes, construção civil, superpopulação, vida cotidiana, espaço das crianças421,
hora do almoço, entre outros. Desse modo, a mostra consistiria em um:
(...) volumoso noticiário que traduz problemas e esperanças comuns a toda população.
Centenas de slides, projetados no próprio ambiente da exposição, completam a mostra
marcada pela informalidade. Os recursos visuais assim caracterizados incluem desde
recortes de manchetes, títulos e textos de jornais até gráficos e pesquisas de opiniões
públicas que acompanham grandes ampliações fotográficas denunciando os
principais aspectos existenciais na Grande São Paulo. Tanto os positivos quanto os
negativos. Por todos esses motivos e devido ao fato da exposição ter-se inspirado na
maciça cobertura jornalística que a Grande São Paulo tem merecido, ele é dedicada
aos profissionais da imprensa.422
418
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Departamento Fotográfico do Diário Popular e
Popular da Tarde, 28 de outubro de 1975. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo,
1976.
419
Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo, 1976.
420
A GSP em exposição no MASP [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição
Grande São Paulo, 1976.
421
GSP/75 - Temário (sic) para produção em série. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande
São Paulo, 1976.
422
A GSP em exposição no MASP [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição
Grande São Paulo, 1976.
160
Além da exibição de cópias fotográficas em papel, a exposição contou com a montagem de
audiovisuais com diapositivos em formato de instalação com quatro projeções simultâneas,
uma em cada superfície de um painel em formato de cruz localizado no ponto central da sala
expositiva do primeiro andar do museu423. O desenho das projeções ficou a cargo de George
Love e Kerstin Weinschenck, e a escolha das imagens estão creditadas a Claudia Andujar e
Romulo Fialdini.
A mostra foi aberta ao público no dia 13 de março de 1976 e ficou por dois meses em cartaz.
Uma espécie de jornal da mostra, com o título de GSP/76 - Um panorama da Grande São
Paulo em todos os seus aspectos existenciais era distribuído aos visitantes convidando-os a
participarem naquela que consistia, segundo o texto, numa reportagem em desenvolvimento.
Além disso, alertava para que ela não fosse entendida como uma manifestação estritamente
artística, abrindo questionamentos acerca do papel dos museus na apresentação de “novas
experiências e na renovação da cultura”. Tal informativo revela a existência de uma mostra
paralela no segundo subsolo do museu denominada de GSP/76 Fotografada.
Sem mencionar a curadoria de Claudia Andujar, o texto do informativo lista os nomes dos 80
fotógrafos que colaboraram com a produção, entre eles alguns que se tornaram influentes no
cenário da fotografia paulistana nos anos posteriores, como Arnaldo Pappalardo, Claudio
Edinger, Rosa Gauditano, Rosely Nakagawa, Luigi Mamprim, João Luiz Musa, Miguel Rio
Branco, Cristiano Mascaro, entre outros (ANEXO 02). O texto de parede que apresentava esta
parte da exposição limitava-se ao seguinte texto:
423
Planta baixa [Desenho]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo, 1976.
424
GSP/76 - Um panorama da Grande São Paulo em todos os seus aspectos existenciais. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo, 1976.
161
Esta seção da exposição GSP é o resultado da escolha dos trabalhos apresentados, a
cargo de Claudia Andujar, responsável pelo Departamento de Fotografia do Museu,
com a colaboração de Cristiano Mascaro.425
Os documentos produzidos pelo museu durante as tratativas da exposição não mostram com
clareza o impasse a que chegaram Bardi e Andujar durante a organização, no entanto, notícias
da época fornecem informações sobre divergências entre as concepções das duas mostras. A
reportagem intitulada Na exposição do Masp, as contradições de São Paulo, publicada no
jornal O Estado de S. Paulo, faz uma clara distinção entre a “GSP/76 e a mostra de fotógrafos”
descrevendo a experiência em cada uma das montagens.
(...) o silêncio e a sobriedade convidam a uma leitura respeitosa das fotos expostas: é
como se o público saísse do supermercado ou da rodoviária e entrasse num templo, o
refúgio dos artistas e de sua manifestação pessoal diante da cidade poluída. As fotos,
elaboradas, refletem extratos da realidade que podem ou não tocar o espectador,
segundo sua percepção.427
Ainda de acordo com a matéria, o elemento em comum às duas exposições era a fotografia,
porém sob diferentes concepções. Bardi valorizava a fotografia de caráter documental como
cópia do real, cuja objetividade auxiliaria áreas fora do âmbito da arte tais como a sociologia,
a comunicação e a antropologia. Seguindo essa linha de raciocínio, ele dirige forte crítica a
fotógrafos “que trabalham para obter manchas”. Já Claudia Andujar argumentava que o
conjunto de fotos por ela reunido transmitia a cidade de “São Paulo com certa força, inclusive
informativa”, porém sem abdicar da sensibilidade e da expressão subjetiva
A publicação de dois catálogos é outro dado relevante que comprova a cisão da proposta em
duas exposições diferentes sobre a mesma temática. O primeiro deles, apesar de estampar na
capa uma fotografia de autoria de Andujar (Figura 49), enfatiza o enfoque jornalístico dado à
425
Legenda da exposição. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo, 1976.
426
Na exposição do MASP, as contradições de São Paulo. O Estado de São Paulo [Recorte sem data]. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo, 1976.
427
Na exposição do MASP, as contradições de São Paulo. O Estado de São Paulo [Recorte sem data]. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição Grande São Paulo, 1976.
162
exposição principal pelo diretor do MASP. Não foi possível identificar de forma precisa a data
de publicação, no entanto, por conter imagens da montagem do primeiro andar (Figura 50),
compreendemos que se trata de uma impressão posterior à inauguração da exposição. Em seu
conteúdo, apresenta textos de cunho histórico e sociológico representativos da abordagem
defendida por Bardi.
163
subjetivamente”428. No interior do catálogo estão algumas das fotografias mostradas na ocasião
e as escolhas gráficas e poéticas na impressão, como a inclusão das bitolas do negativo,
sugerem a participação de George Love na edição das imagens.
Figura 50: Página interna do catálogo GSP/76. Fonte: Centro de Pesquisa do MASP.
Andujar escreve para Bardi em 14 de março de 1976429, um dia após a abertura da exposição,
lamentando as desavenças que surgiram entre eles ao longo do processo de realização da
exposição. Em tom de desabafo, diz que “mesmo se durante o trabalho desta exposição nós
tivemos divergências, continuo a respeitar você”. Após esta exposição a fotógrafa distanciou-
se de forma definitiva das atividades institucionais do MASP.
428
FREIRE, Roberto. Prefácio. Grande São Paulo, 1976. São Paulo: MASP, 1976. Catálogo de exposição.
429
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. São Paulo, 14 de março de 1976.
Arquivo do MASP. Arquivo OA. Pasta Claudia Andujar.
164
Figura 51: Capa do catálogo Grande São Paulo/76 (mostra organizada por Claudia Andujar). Fonte: Centro de
Pesquisa do MASP.
Ao longo do capítulo, notamos que as intervenções de Pietro Maria Bardi tornaram-se cada vez
mais marcantes nos projetos expositivos desenvolvidos no período de colaboração conjunta do
casal Claudia Andujar e George Love com o MASP, entre 1971 e 1976. Se no primeiro
audiovisual proposto os artistas tiveram grande liberdade na execução e montagem, o mesmo
não acontece nas exposições posteriores, como indica a documentação. É possível também que
os diálogos entre fotografia, cinema e artes visuais propiciados pelos projetos expositivos de
Love e Andujar, tenham assumido sentidos divergentes às concepções artísticas do diretor do
museu. A hibridização das categorias tradicionais da arte parece ser refutada por Bardi que
continuamente tenta circunscrever as propostas audiovisuais dos artistas no campo da história
ou da antropologia, ao contrário do que poderíamos imaginar de um museu de arte.
165
Figura 52: Foto integrante do catálogo Grande São Paulo/76 (organizado por Claudia Andujar)430. Fonte: Centro
de Pesquisa do MASP.
430
Não foi possível identificar a autoria da imagem, no entanto, vale notar a impressão com as bordas do
negativo.
166
Capítulo 03
167
3.1 - Os livros de Claudia Andujar e Amazônia de George Love e Claudia Andujar
No ano de 1978, Claudia Andujar publicou três livros: Yanomami: frente ao eterno; Amazônia,
e Mitopoemas Yãnomam. Enquanto Amazônia tornou-se representativo da parceria artística
entre ela e George Love, Mitopoemas Yãnomam contou com o suporte de Pietro Maria Bardi.
O diretor do MASP teve ainda papel fundamental na tentativa de livrar Andujar da perseguição
política por parte do governo militar. Existem algumas cartas enviadas por Claudia Andujar
para Pietro Maria Bardi, entre 1974 e 1977431, nas quais ela relata o cotidiano na missão, das
pesquisas sobre a cosmovisão indígena através de desenhos aos surtos de malária e as muitas
mortes que reduziram violentamente o número de pessoas nas aldeias432. Em diversas
oportunidades Claudia menciona os trabalhos com os livros, deixando evidente seu desejo em
publicar o que vinha pesquisando, motivada pela urgência das questões que se agravavam
quanto à sobrevivência da população indígena.
Desde a exposição Hileia Amazônica, encontramos cartas e pedidos de orçamento que versam
sobre a publicação de um livro de fotografias de autoria de Claudia e George sobre a Amazônia.
A compilação de algumas das primeiras imagens captadas por Andujar entre os Yanomami
para a apresentação do audiovisual O homem da hileia, em 1972, teria servido de estímulo para
a vontade de organizar o trabalho de forma impressa. No Arquivo MASP, há um dossiê com
diferentes orçamentos, enviados entre 1973 e 1974, para a publicação de um livro que se
chamaria Amazônia433. O formato e número de páginas sofrem alterações de acordo com cada
novo orçamento.
Em 15 de maio de 1973434, Claudia Andujar escreve à Brunner, quem editaria o livro, a fim de
resolver o “impasse com o livro”. Na carta, após debater longamente com George Love, propõe
soluções gráficas com a utilização dos fotolitos existentes. Seriam impressas entre 24 e 48
imagens, com dimensões de 30 centímetros de altura por 45 centímetros de largura,
centralizadas em uma folha de papel couchê de 66 centímetros de altura e 48 centímetros de
431
Detectamos uma lacuna no envio de correspondências ao diretor do MASP no ano de 1975, provavelmente
devido à proximidade que estavam naquele ano, no qual fundaram o Departamento de Fotografia do museu.
432
Segundo o antropólogo Bruce Albert, entre dezembro de 1976 e fevereiro de 1977, uma epidemia de
sarampo dizimou a população que habitava o alto Catrimani.
433
Arquivo Histórico do MASP. Pasta Publicação do livro Amazônia de Claudia Andujar e George Love, 1973.
434
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Gráficos Brunner Ltda. São Paulo, 15 de maio de
1973. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Publicação do livro Amazônia de Claudia Andujar e George Love,
1973.
168
largura e gramatura entre 300 e 400 gramas por metro quadrado. O acabamento poderia ser
feito em formato de pasta e sem a necessidade de trazer uma foto na capa. Brunner envia em
resposta, no dia 21 de maio435, um novo orçamento para impressão de 144 páginas a 4 cores,
para as fotografias, e 40 páginas em 2 cores, reservadas ao texto, em papel couchê com
gramatura entre 150 e 180 gramas por metro quadrado. “Encadernados com uma gravura em 4
cores colada na frente da capa”. Ou seja, o impasse estava longe de ser resolvido.
O esboço feito por Andujar (Figura 53) tem formato semelhante ao apresentado no livro
Yanomami: frente ao eterno e incluiria ainda textos de Bardi e de Paulo Vanzolini, que
colaboraram com o livro Mitopoemas Yãnomam. Amazônia, por sua vez, é elaborado em
parceria com o mesmo designer, Wesley Duke Lee, e editor, Ragestein Rocha que Yanomami:
frente ao eterno. Tais dados levaram-nos a questionar se, com o adensamento do trabalho de
Andujar ao longo dos anos seguintes, esta possível raiz do livro Amazônia não teria se
ramificado nos três livros publicados no ano de 1978. Sabemos da impossibilidade de uma
resposta a esta pergunta, no entanto, fazê-la nos ajuda a ampliar a compreensão sobre o
contexto no qual foram publicadas as três obras.
Figura 53: Esboço de formato do livro. Detalhe da carta enviada por Claudia Andujar para o gráfico Brunner,
1973 Fonte: Arquivo Histórico do MASP, Pasta da Publicação do livro Amazônia, 1973.
Ainda em maio de 1973436, Pietro contatou uma editora italiana para sondar os valores e efetuar
possíveis diminuições nos custos de produção do livro. Em 09 de agosto, ele retoma a conversa,
visto os entraves para a publicação em São Paulo naquele momento. Segundo ele, “por dois
motivos: o alto custo e o desentendimento entre os autores (Claudia e George Love) e o gráfico
435
Orçamento livro Amazônia. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Publicação do livro Amazônia de Claudia
Andujar e George Love, 1973.
436
BARDI, Pietro [Correspondência]. Destinatário: Ferrauto (Editora Rizzoli). São Paulo, 17 de maio de 1973.
Arquivo Histórico do MASP. Pasta Publicação do livro Amazônia de Claudia Andujar e George Love, 1973.
169
e editor (Brunner)”437. Não foram localizadas respostas para os pedidos de Bardi e, como
sabemos, a publicação se concretizaria somente alguns anos depois.
Enquanto isso, Andujar continuava desenvolvendo seu trabalho com os Yanomami na região
do rio Catrimani e, nos momentos em que se encontrava na cidade, revelava os filmes, imprimia
cópias e ensinava fotografia. Claudia escreveu para Bardi com certa regularidade durante os
períodos em que esteve na floresta. Em 10 de maio de 1974, a artista relata o andamento do
projeto de desenhos dos mitos e da cosmologia Yanomami, bem como das dificuldades técnicas
de captação de imagens das festas e rituais devido à baixíssima luminosidade. Em suas
palavras, um trabalho “muito difícil, mas muito interessante”438.
437
“Per due motivi: il primo è il costo che qui è alto; il secondo è un non intendimento tra glio autori (Claudia e
George Love) e lo stampatore e editore (Brunner)” (Tradução da autora). BARDI, Pietro [Correspondência].
Destinatário: Ferrauto (Editora Rizzoli). São Paulo, 09 de agosto de 1973. Arquivo Histórico do MASP. Pasta
Publicação do livro Amazônia de Claudia Andujar e George Love, 1973.
438
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 10
de maio de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
439
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 10
de maio de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
170
Figura 54: Claudia Andujar e George Love em 1974. Fonte: Reprodução do catálogo da exposição A
vulnerabilidade do ser.
O que aconteceu foi que em 74 o governo resolveu construir uma estrada que ia
construir uma estrada que atravessar a terra Yanomami. Era o segundo grande projeto
de estrada na Amazônia. O primeiro era obviamente a Transamazônica, essa se
chamava Perimetral Norte. Eu estava lá quando isso aconteceu. Eu vi tudo, participei
de tudo, nessa construção. Eu fiquei muito horrorizada com o que aconteceu com a
construção. Porque realmente eram índios que tinham pouco contato. E para eles isso
em primeiro lugar representou a morte, a morte física. Era gente que vinha ou do
estado do Amazonas ou do Nordeste que precisavam trabalhar. Então se colocaram
lá a cortar as árvores, abrir o caminho para a estrada. Era gente pobre, miseráveis na
verdade que estavam à mercê dessa coluna política do Brasil. Então eles chegaram
com doenças [...]. Lá eu fiquei muito tocada por tudo isso. Foi depois disso que a
FUNAI me afastou. Eles nunca me deram uma razão. Eu perguntei: “o que eu fiz?”.
Depois ficou óbvio que eles achavam que eu estava documentando tudo para denegrir
o Brasil [...]. Mas durante a época da ditadura não dava para usar esse material. Eu
440
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 01
de setembro de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
441
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 03
de dezembro de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
171
fiquei com ele guardado [...]. Em São Paulo eu revelava o filme e comecei a fazer o
arquivo.442
Faz três meses que estamos na luta, e com a passagem do tempo o material mitológico
que o Ir. Carlos e eu recolhemos através dos desenhos e as gravações tem um valor
cultural para o Brasil e o mundo importante. (...) Nós recolhemos um pouco mais de
cem desenhos com a ajuda destes Índios (dois especificamente), deram uma descrição
dos desenhos um tipo de legenda-mito. As gravações foram feitas pelo Ir. Carlos em
Yanomami. Depois foi feita a transcrição literal em português e depois a interpretação
para uma linguagem mais fácil de entender para o leitor. Ontem acabamos a terceira
versão, a versão literária. Agora queremos fazer um tipo de introdução ao trabalho
que fala da cultura do Yanomam em relação aos mitos. Depois em São Paulo vai
precisar de alguém que escreve bem em português para corrigir tudo. Talvez o Mário
Chamie mesmo queira fazer isso, como a linguagem dos Índios é um pouco especial
e muitas vezes poética.445
Neste trecho percebemos, quatro anos antes da publicação do livro, a preocupação de Andujar
em manter a integridade dos depoimentos coletados sobre a cosmovisão Yanomami, para que
seu sentido não se perca, nem sua poética. Desse modo, justifica-se o envolvimento do poeta e
crítico literário Mário Chamie desde o início do projeto.
Com intuito de amenizar as limitações técnicas da fotografia noturna ou com baixa iluminação,
Claudia decide levar para a floresta equipamentos de iluminação que a auxiliassem nesta tarefa.
A bolsa FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) recém recebida
ajudaria a aprofundar os interesses fotográficos despertados pelos primeiros resultados da
pesquisa sobre a mitologia Yanomami através dos desenhos, que originou o livro Mitopoemas
Yanomãm.
442
MAUAD, Ana Maria. Imagens possíveis Fotografia e memória em Claudia Andujar. Revista Eco-Pós, v. 15,
n. 1, 2012, p. 136. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/1196/1135 acesso em
20/05/2020.
443
O missionário leigo Carlo Zacquini trabalha com os indígenas Yanomami da região do Rio Catrimani desde
os anos 1960, ele e Andujar se conheceram ainda no ano de 1971, na primeira visita dela à missão. Ele ainda
vive na região e continua seu trabalho até hoje.
444
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 03
de dezembro de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
445
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 03
de dezembro de 1974. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
172
Em junho de 1976, parte de São Paulo em seu Fusca preto com destino à missão Catrimani446,
contando com Carlo Zacquini como companheiro de viagem (Figura 55). Ao chegar a Boa
Vista, Andujar escreveu para Bardi contando sobre a aventura de atravessar o Brasil em 11 dias
viajando de carro, por estradas muitas vezes difíceis447. Além de equipamentos fotográficos
com os quais pretendia suprir a necessidade de iluminação nas fotografias noturnas, levaram
no Fusca, chamado pelos indígenas de Watupari448, grande quantidade de papéis e canetas
hidrográficas. O entrelaçamento entre os projetos sugere que, na medida em que compreendia
o modo Yanomami de perceber o mundo, Claudia sentia-se cada vez mais instigada a traduzi-
lo em suas imagens.
446
As imagens captadas por Andujar no interior do Fusca durante o trajeto da viagem, de São Paulo à Boa
Vista, deu origem à série intitulada posteriormente de Voo do Watupari, exposta em 2013 na Galeria Vermelho.
Exposição na Galeria Vermelho o Voo de Watupari, 2013. Disponível em:
https://galeriavermelho.com.br/exposicoes/o-voo-de-watupari/ acesso em 25/08/2018.
447
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Boa Vista, Roraima, 22 de junhoo
de 1976. Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
448
NOGUEIRA, Thyago. Op. cit. 2018, p. 200.
449
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Fundação John Simon Guggenheim. São Paulo, 25
de novembro de 1976. Arquivo Histórico do MASP. Pasta Claudia Andujar, 1962.
450
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 15
de março de 1977. Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
451
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 08
de abril de 1977. Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
173
sei se isto é possível”452. É por volta deste período que Andujar conhece Davi Kopenawa
Yanomami, com quem voltaria a ter contato apenas nos anos 1980.
Figura 55: Claudia Andujar, série Através do Fusca com Carlo Zacquini ao fundo, 1976. Fonte: Website da
Galeria Vermelho, SP.
A dúvida manifestada por Andujar aludia à perseguição política do governo militar, que via
como suspeita a atuação de estrangeiros em territórios indígenas, principalmente na região da
Amazônia. Em meados de 1977 a artista é expulsa da terra Yanomami e enquadrada pelo
governo militar na Lei de Segurança Nacional. Conseguiria voltar somente em agosto de 1978,
contando com a ajuda do diretor do MASP453. Claudia aproveitou esse tempo em São Paulo
para trabalhar na publicação dos três livros e, simultaneamente, sistematizar a luta política pela
causa Yanomami de forma coletiva e organizada.
Na primavera de 1978, a Práxis Artes Gráficas Ltda. imprimiu 1.500 exemplares do livro
Yanomami - Frente ao Eterno: uma vivência entre os índios Yãnomam de Claudia Andujar
452
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. Missão Catrimani, Roraima, 08
de abril de 1977. Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
453
BARDI, Pietro Maria [Telegrama]. Destinatário: General Ismarth de Araújo Oliveira. São Paulo, 06 de
outubro de 1977. BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: General Ismarth de Araújo Oliveira.
São Paulo, 04 de agosto de 1978. Arquivo Histórico do MASP. Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
174
(Figura 56). A publicação inaugurou o programa editorial Memória Social da Práxis, cujos
títulos da série tratavam a respeito de temas da vida social brasileira “sem pressa e sem a
preocupação de esgotar os temas”454. O design gráfico elaborado por Wesley Duke Lee
intercalou as imagens com pequenos relatos sobre a mitologia Yanomami, sem a intenção de
vigorarem como legendas, no entanto notamos forte vínculo entre texto e imagem em alguns
casos.
Figura 56: Livro Yanomami - Frente ao eterno, 1978. Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, USP.
O livro apresenta 38 fotografias em preto e branco que retratam detalhes dos corpos, na maioria
de mulheres e crianças Yanomami, com seus adornos e pinturas corporais. Em alto contraste
entre luz e sombra, captados com os focos de luz naturais advindos de pequenas aberturas no
teto das malocas, são retratos de pessoas com as quais Andujar estabelece uma relação. Não há
tensão entre fotógrafa e os fotografados, ao contrário, as trocas de olhares profundos tornam
visíveis a confiança e a curiosidade entre ambos (Figura 57). Ao retratar os indígenas
individualmente enfatizando seus detalhes, Andujar sugere que há algo de particular em cada
um, esforçando-se assim em não os representar de forma genérica.
454
ANDUJAR, Claudia. Editorial. Yanomami - Frente ao Eterno: uma vivência entre os índios Yãnomam de
Claudia Andujar. São Paulo: Editora Práxis, 1978, s/n.
175
Figura 57: Livro Yanomami - Frente ao eterno, 1978. Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, USP.
Há também três desenhos: dois são acompanhados de narrações sobre a percepção de mundo
dos Yanomami, e um representa os grafismos das pinturas corporais457, nos quais notamos a
reverberação das pesquisas que deram origem à Mitopoemas Yanomãm. A autoria dos relatos
é atribuída a Hiko Wakathautheri e dos desenhos a Sinika Opiktheri458.
455
ANDUJAR, Claudia. Op. cit. 1978, s/n.
456
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Editora
Companhia das Letras, 2019, p. 77.
457
ANDUJAR, Claudia. Op. cit. 1978, s/n.
458
A lua Poripo e as estrelas. In: ANDUJAR, Claudia. Yanomami - Frente ao Eterno: uma vivência entre os
índios Yãnomam de Claudia Andujar. São Paulo: Editora Práxis, 1978.
176
No texto de introdução, Andujar demonstra sua angústia com a tragédia causada pelo contato
dos Yanomamis com os brancos, o consequente genocídio sofrido por eles e a impotência que
sentia diante de tamanha tragédia. Ao mesmo tempo, sela por escrito o compromisso de vida
estabelecido com a causa indígena, oferecendo seu trabalho como contribuição.
Hoje, quando vejo meu trabalho fotográfico dos Yãnomam, sinto uma profunda
tristeza. Ele já está marcado no tempo.
A minha tentativa tinha sido a de colocar esse homem frente ao eterno, numa
dimensão atemporal, criando um símbolo de sua vivência, que eu, solidária, havia
compartilhado e sofrido. Mas os acontecimentos tornaram esta tentativa tristemente
histórica e contingente; e pouco posso fazer para modificar isto, pelo menos, pouco
demais…
Este povo estará condenado a viver no futuro apenas na memória de alguns que o
amavam e em melancólicos pedaços de papel? Hoje, sinto que essa vida que captei,
esses gestos que segurei com minha mente, olhos e câmera, estão se esfumando. Por
isso, sempre fico emocionada frente a estas imagens que agora pertencem ao passado.
Elas tem uma magia toda especial, cruelmente grandiosa. Mesmo assim, me pergunto
com que direito procurei eternizar um momento, parar o tempo? Respondo que não
foi só por amor a um povo, mas a todos os homens cuja vida, esforços, liberdade,
alegria e sofrimento preocupam-me e tocam-me profundamente. De fato, essa procura
partiu de mim, de meu próprio sofrimento e vida, mas me ultrapassou e marcou o
destino de um povo, como o dos Yanomami, com o qual me identifiquei e cuja luta
virou minha luta. Então, por menor que seja minha contribuição, a essa luta pouco
grata, estou oferecendo o que tenho de mais precioso, meu trabalho.459
459
ANDUJAR, Claudia. Op. cit. 1978, s/n.
177
Figura 58: Claudia Andujar, Yanomami - Frente ao eterno, 1978. Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
O livro veicula ainda textos dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas460 e de Darcy Ribeiro,
um dos grandes incentivadores do trabalho de Andujar durante toda sua trajetória. Além de tê-
la incentivado a fotografar povos indígenas desde a década de 1950, Ribeiro foi quem a
apresentou ao diretor da editora Práxis, José Regastein Rocha. A Práxis editou significativos
livros de fotografia no período, entre os quais Amazônia, de Claudia e George Love, tornou-se
um dos mais emblemáticos da história da editora e dos livros de fotografia produzidos no
Brasil.
*
O livro Mitopoemas Yanomãm (Figura 59) resultou das pesquisas que Claudia Andujar vinha
conduzindo sobre a mitologia Yanomami, através de desenhos e relatos coletados dos
indígenas, no qual contava com o importante auxílio de Carlo Zacquini. A inclinação mais
antropológica deste estudo justifica o fato de ter sido financiado pela FAPESP. Publicado pela
Olivetti461 do Brasil, o livro contou com uma equipe de muitas pessoas. A coordenação, edição
460
Cláudio e Orlando Villas Boas são considerados importantes sertanistas e indigenistas brasileiros com
trabalhos de contribuição significativa para a causa e a luta indígena, como em projetos de demarcação de
territórios. No entanto, uma revisão crítica da atuação destes profissionais, de uma maneira geral, reconhece que
a interlocução mediada por eles foi relevante para a reivindicação de direitos por parte dos povos indígenas, mas
ao mesmo tempo exerceu papel fundamental na expansão do contato entre indígenas e os brancos. Políticas que,
ao longo da história, frequentemente se mostraram como portas de entrada para muitas violências contra as
populações indígenas.
461
A empresa italiana Olivetti colaborou em diversos momentos ao longo da história do MASP, patrocinando
pelo menos três exposições: Coletiva Olivetti, de 1966; Desenho industrial italiano, de 1975; e Os artistas e a
Olivetti, de 1976. Ainda nos anos 1950, a exposição Vitrine das formas trazia entre seus objetos uma máquina
178
e adaptação literária ficou por conta de Mário Chamie, o projeto gráfico foi elaborado por
Emilie Chamie, a interpretação e tradução dos depoimentos dos indígenas para o português foi
feita pelos missionários Carlo Zacquini e Giovanni Battista Saffirio. O texto ainda foi traduzido
para o italiano por Pietro Maria Bardi e para o inglês por Michael Potter, e o glossário foi
sistematizado por Paulo Vanzolini, Carlo Zacquini e João Murça Pires.
Ainda que o intuito dos livros seja diverso, a tragédia a que Andujar se refere no texto de
Yanomami - Frente ao eterno pode ser percebida ainda nos créditos iniciais de Mitopoemas
Yanomãm. A narração dos mitos e execução dos desenhos é atribuída a três indígenas que têm
seus nomes publicados: Koromami Waica, Mamokè Rorowè e Kreptip Wakatautheri. Ao lado
dos dois primeiros nomes vemos um sinal gráfico em formato de cruz que indica o falecimento
de ambos. Dado espantoso tendo em vista o curto espaço de tempo entre o início do projeto,
em 1976, e a publicação do livro, em 1978.
Figura 59: Capa do livro Mitopoemas Yãnomam. Olivetti do Brasil, 1978. Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e
José Mindlin, USP.
de escrever da Olivetti, conforme visto no primeiro capítulo desta dissertação. Segundo a pesquisadora Stela
Politano, Pietro Maria Bardi e o presidente da empresa Adriano Olivetti cultivavam uma amizade desde os anos
1930. POLITANO, Stela. Exposição didática e vitrine das formas: a didática do Museu de Arte de São Paulo.
2010. Dissertação (Mestrado). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2010, p. 93.
179
O texto de apresentação do livro aponta para as particularidades em relação aos mitos que se
pode obter dependendo de quem o informa.
(...) Essa vez, por enquanto, estou fotografando pouquíssimo - estou observando,
fazendo fichas com observações, gravando mitos, cantos, etc. O Carlo faz a
transcrição e tradução. A língua Ñanomam é difícil e mesmo ele que convive com
eles fazem anos tem dificuldade com as traduções. Especialmente porque a linguagem
dos contos, sessões de xamanismo, diálogos cantados usando metáforas, e táo
diferente da língua diária de pedir remédios e falar sobre a roça ou caça. As vezes em
frente das fichas me sinto como em frente de um jogo de xadrez.
Tem um livro excelente que foi publicado esse ano escrito pelo antropólogo francês
Jacques Lizot: Le cercle des deux. Lizot trabalhou na Venezuela. Embora que os
Ñanomam são diferentes lá e a língua é um dialeto diferente, a raiz é a mesma.463
O antropólogo Jacques Lizot, mencionado por Claudia, foi orientando de Claude Lévi-Strauss
e, antes de publicar o livro sobre os Yanomami, viveu cerca de seis anos entre eles. A escassa
a literatura que vinha sendo produzida sobre os Yanomami na época os classificava como
ferozes e agressivos464, estereótipo ao qual o trabalho de Lizot se contrapõe. O antropólogo
britânico Stephen Hugh-Jones, em resenha sobre o livro de Lizot, atribui essa mudança de
462
Apresentação. In: ANDUJAR, Claudia. Mitopoemas Yãnomam. São Paulo: Olivetti do Brasil, 1978, s/p.
463
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. 15 de março de 1977. Arquivo
Histórico do MASP. Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
464
Podemos citar ao menos dois livros publicados na década de 1960, que reiteram a natureza belicosa dos
Yanomami. Yanoáma: dal racconto di una donna rapita dagli Indi, publicado em 1965, pelo biólogo e
antropólogo italiano Ettore Biocca, no qual o autor relata o caso de uma “menina branca” sequestrada pelos
Yanomami após um ataque à fazenda em que vivia. O outro, Yanomamo: The Fierce People, foi escrito pelo
antropólogo estadunidense Napoleon Chagnon e publicado em 1968. Ambos livros foram aceitos pela
comunidade científica euro-estadunidense. O xamã Davi Kopenawa em seu livro A queda do céu, menciona os
estudos dos dois antropólogos. “Por enquanto, os brancos continuam mentindo a nosso respeito, dizendo: “Os
Yanomami são ferozes. Só pensam em fazer guerra e roubar mulheres. São perigosos!”. Tais palavras são nossas
inimigas e nós as odiamos”. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Op. cit., 2019, p. 77.
180
perspectiva ao seu profundo envolvimento com os indígenas e por ele “deixar que falassem por
si mesmos”465. Lizot apresenta em seu livro o significado da palavra ‘yanomami’, cuja
designação refere-se, de uma maneira geral, à própria condição humana em relação ao mundo
que os cerca; ou simplesmente “gente”466. Segundo o autor, “para um Yanomami, tudo o que
não pertence ao seu próprio mundo sócio-cultural é obrigatoriamente estrangeiro, nabë
(sic)”467.
Neste sentido, Claudia Andujar evidencia sua busca por uma metodologia de trabalho mais
qualificada e condizente com suas próprias inclinações. Ao compararmos os dois trechos
destacados é possível identificar similaridade entre os discursos. Pela carta de Andujar,
compreendemos a complexidade envolvida para a realização da pesquisa. Mesmo ela
afirmando não ser antropóloga e de nunca ter sido sua intenção fazer uma etnologia stricto
sensu, conforme ressaltado anteriormente neste capítulo, faz-se necessário lembrar aqui de sua
formação em Ciências Humanas quando ainda vivia em Nova York. A investigação a que se
propõe parece ser tributária destes caminhos que percorreu.
465
HUGH-JONES, Stephen. Jacques Lizot. Le cercle des deux. Edition du Seiul. Paris. 1976. In the collection
Recherches Antropologique. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/45259075 acesso em 07/10/2022.
466
LIZOT, Jacques. O círculo dos fogos: feitos e ditos dos índios Yanomami. Martins Fontes, 1988, p. 03.
467
Conforme veremos no terceiro capítulo, a grafia correta utilizada pelos indígenas é napë e não “nabë”
conforme indica o autor. Ibid., p. 03.
468
BARBOSA, Andréa. Antropologia e imagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
469
Ibid., p. 09.
181
também fotógrafo, publicava seus textos com muitas imagens470, uma quebra de protocolo para
os padrões da disciplina na época, predominantemente escrita. Flaherty, cineasta amador e
viajante, com sua “câmera participante”, diferente de filmagens unicamente com função de
registro, envolvia-se nos eventos e procurava refletir a perspectiva de seus retratados.
A introdução do livro Mitopoemas Yãnomam é assinada por Pietro Maria Bardi. Em um texto
intitulado O desenho dos mitos e poemas da memória, o diretor do MASP atribui à atenção
despendida pela imprensa ao tema dos povos originários no final dos anos 1970, o interesse em
conhecer o cotidiano dos indígenas do Brasil. Ao mencionar as pesquisas de Jacques Lizot,
notamos que Bardi seguiu a recomendação de leitura de Claudia para escrever seu texto.
Segundo ele, o livro traz contribuições por se tratarem de “narrações” e “expressões gráficas”471
fornecidas diretamente pelos indígenas e, novamente, cita os nomes dos três autores dos
desenhos. Segundo ele, os indígenas “narram os seus mitos valendo-se da sua biblioteca que é
a memória herdada”472. Nestas partes do texto, Bardi parece ecoar o discurso de Claudia, em
clara referência ao livro de Lizot.
Em um pequeno trecho, Bardi evidencia sua concepção acerca da estabilidade pela qual definia
as expressões artísticas: “a quem se dedica aos problemas da linguagem e expressão, em que
se visa fatos definíveis como arte, é atribuído o costumeiro julgamento estético”473. Para
comentar a plasticidade dos desenhos, o diretor do MASP recorre a um tom paternalista ao se
referir aos autores indígenas, cuja “espontaneidade [é] comparável à ingenuidade das
crianças”474. Em seguida, se utiliza de palavras do repertório cristão como “bíblia”, “dilúvio”,
“milagre” e “arca de Noé” para comentar a mitologia indígena. E encerra seu texto com
adjetivos superlativos e compara o livro Mitopoemas Yãnomam como “uma autêntica produção
Dadá”, mencionando também o movimento antropofágico brasileiro dos anos 1920.
Estas últimas afirmações são, no mínimo, problemáticas e demasiado amplas para o escopo
desta dissertação. No entanto, vale comentar que tais questões, no que se refere ao campo da
arte especificamente, aludem a processos mais complexos que revelam a apropriação de
470
Ibid., p. 10.
471
BARDI, Pietro Maria Bardi. O desenho dos mitos e poemas da memória. In: ANDUJAR, Claudia.
Mitopoemas Yãnomam. São Paulo: Olivetti do Brasil, 1978, s/p.
472
Ibid., s/p.
473
Ibid., s/p.
474
Ibid., s/p.
182
elementos de culturas originárias por movimentos de vanguarda artística europeus, bem como
ao que viria a ser classificado como “arte primitiva”475.
475
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 42.
183
Figura 60: Começo do mundo 1 e 2, página interna do livro Mitopoemas Yãnomam. Fonte: Coleção Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin, USP.
A leitura ritmada do poema e a sequência de imagens suscitada a cada verso nos sugerem a
cadência de um filme. Na imagem fixa do desenho observamos seres humanos ligados ao céu,
de acordo com a menção no poema. A palavra céu é repetida diversas vezes, de rachado à
escorado e suspenso, longe suspenso, e depois rachado novamente. Nublou, o mato ficou fundo
e a folha pequena, mas ainda há água ao alto. A sequência nos dá a ideia de que se trata de
algum evento desastroso.
Foi com a publicação do livro de Davi Kopenawa Yanomami, A queda do céu - palavras de
um xamã yanomami, em 2015476, que os mitopoemas e o trabalho de Andujar encontraram seu
interlocutor privilegiado. O xamã e líder Yanomami, em parceria com o antropólogo Bruce
Albert, conta em detalhes sobre a percepção de mundo e a organização social mostrada pelos
desenhos de Mitopoemas Yãnomam. Segundo Albert, a originalidade do depoimento do líder
yanomami “alimentou uma espécie de contra-antropologia histórica do mundo branco”477. Pelo
476
Publicado pela primeira vez na França pela coleção Terre Humaine da editora Plon de Paris, em 2009, sob o
título La Chute du Ciel: paroles d’un chaman yanomami. O livro levou cinco anos para ser traduzido e
publicado no Brasil, além disso foram mais de dez anos de transcrições dos depoimentos gravados até que
Kopenawa e Albert chegassem em sua forma final, conforme relata o próprio Albert ao final do livro.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Editora Companhia
das Letras, 2019.
477
Ibid., p. 542.
184
livro de Kopenawa, descobrimos que o conjunto inicial refere-se ao mito representado em seu
próprio título. O autor assim relata:
Naquela época, ainda havia grandes xamãs entre nós, pois muitos de nossos maiores
ainda estavam vivos. Então, vários deles começaram a trabalhar juntos para segurar
a abóbada celeste. No tempo antigo, seus pais e avós haviam ensinado esse trabalho
a eles, que por isso foram capazes de impedir mais essa queda. Assim, depois de
algum tempo tudo se acalmou. Mas estou certo de que uma vez mais, o céu tinha
mesmo ameaçado se quebrar acima de nós. Sei que isso já ocorreu, muito longe da
floresta, lá onde a abóbada celeste se aproxima das bordas da terra. Os habitantes das
regiões distantes foram exterminados, porque não souberam segurar o céu.478
O xamã conta em seu livro que nós, sociedade branca, somos o povo que “sonha com as suas
mercadorias venenosas e suas vãs palavras traçadas em peles de papel”479, e que,
consequentemente, segundo ele, não sabe segurar o céu.
Após o desenho inicial, encadeam-se coloridas narrativas poéticas sobre a criação do mundo,
a primeira mulher, as relações com os espíritos xapiri, com os animais e as plantas. Os brancos
ou napepe aparecem apenas com “o fim do mundo”, representado nos desenhos por uma
ausência de imagens (Figura 61).
Figura 61: O fim do mundo, página interna do livro Mitopoemas Yãnomam. Fonte: Coleção Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin, USP.
478
Ibid., p. 194.
479
Ibid., p. 13.
185
Além dos desenhos, Mitopoemas Yãnomam ainda apresenta imagens fotográficas de Claudia
Andujar impressas em folhas transparentes de tamanho A4 e intercaladas ao longo do livro. As
sete imagens dialogam com os poemas e desenhos junto dos quais aparecem, interagindo por
meio da transparência, ora revelando, ora ocultando o conteúdo da próxima página (Figura
62). As fotografias assim colocadas assemelham-se a grandes fotolitos, reforçando ainda mais
o aspecto gráfico do livro.
Figura 62: O céu da noite, página interna do livro Mitopoemas Yãnomam. Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana
Guita e José Mindlin, USP.
Kopenawa relata ainda a importância das imagens para a cosmovisão de seu povo. Para os
Yanomami são as imagens de cada um que são levadas pelos xapiri para o mundo dos sonhos
quando estão sob o efeito de yãkoana. Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “A
queda do céu é uma sessão xamânica, um tratado (no duplo sentido) político e um compêndio
de filosofia yanomami, a qual - como talvez se possa dizer de toda filosofia amazônica - e
essencialmente um onirismo especulativo, em que a imagem tem toda força do conceito”480.
Tal entendimento nos ajuda a entender os fundamentos da relação estabelecida entre Davi
480
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Prefácio - O recado da mata. In: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A
queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Editora Companhia das Letras, 2019.
186
Kopenawa e Claudia Andujar, baseada em uma “aliança afetiva”481, em favor da sobrevivência
Yanomami.
Amazônia é hoje, de certo, um dos livros de fotografia brasileiros mais cultuados de todos os
tempos e considerado como referência incontornável para a fotografia praticada na América
Latina482. No entanto, o livro permaneceu durante muitos anos em uma quase obscuridade.
Fotografado por Claudia Andujar e George Love, foi publicado em 1978, também pela editora
Práxis. A dupla editor e designer gráfico de Yanomami - Frente ao eterno se repete em
Amazônia, Regastein Rocha e Wesley Duke Lee, respectivamente. Ademais, as contribuições
de George Love como editor483 foram determinantes para a força plástica da obra, atuando na
unidade visual da sequência fotográfica. Além disso, a autoria das imagens aéreas é atribuída
a ele.
O livro foi envolto por uma luva em tecido ocre, lembrando a cor de um tronco de árvore, com
o título grafado em letras maiúsculas separado em duas linhas “AMA”-“ZÔNIA”. A capa, de
mesmo tecido da caixa, apresenta uma pequena fotografia em cores adulteradas, provavelmente
captada com filme infravermelho e bastante sensível à luz, parece fotografia noturna cuja
inversão de polaridade das cores cobriu a pele do Yanomami recostado em sua rede de verde
(Figura 63).
481
CESARINO, Pedro de Niemeyer. As Alianças Afetivas - Entrevista com Ailton Krenak, por Pedro Cesarino.
In: VOLZ, Jochen et al. (ed.). Incerteza Viva. 32a Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São
Paulo, p. 169-89, 2016.
482
FERNÁNDEZ, Horácio. Fotolivros latino-americanos. São Paulo, Cosac & Naify, 2011, p. 07.
483
SILVA, Vitor Marcelino. Op. cit., 2022, p. 157.
187
Figura 63: Capa do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin,
USP.
Abertura da publicação conta com três folhas em branco e na última há uma citação de
Humboldt como epígrafe: “Nesta bacia drenada pelo rio por excelência, mais cedo ou mais
tarde se há de concentrar a civilização do globo”484. O conteúdo da passagem nos remete à
ideia de adentrar em uma espécie de oásis. Não foi possível constatar se este trecho já constava
no projeto original da publicação, no entanto, hoje sabemos que o texto do poeta amazonense
Thiago de Mello, escrito especialmente para a publicação, sofreu censura e o livro foi impedido
de circular485. O texto de Mello chegou a ser publicado em algumas provas de impressão
levadas por Regastein Rocha para a aprovação dos militares, que vetaram a publicação486.
O tom de denúncia aparece como possível causa da censura sofrida pelo livro. Segundo o
pesquisador Vitor Marcelino da Silva, foram censuradas também as imagens de George Love
484
ANDUJAR, Claudia; LOVE, George. Amazônia, São Paulo: Práxis, 1978.
485
O poema completo de Thiago de Mello está publicado no blog do Instituto Moreira Salles. Disponível em:
https://blogdoims.com.br/amazonia-patria-das-aguas/ acesso em: 15/03/2021.
486
NOGUEIRA, Thyago. Op. cit. 2018, p. 206.
188
que mostravam queimadas e a devastação da região487. Há alguns sinais da censura sofrida pelo
livro em sua forma final, como os espaços em branco que aparecem nas laterais das fotos em
alinhamento horizontal, para a nossa percepção de hoje parecem apenas uma mudança nos
sentidos que as fotos vinham sendo impressas (Figura 64). Em sua tese de doutorado, Silva
nos conta da forte repressão sofrida pela Práxis e sua equipe, principalmente após a publicação
de Amazônia, que levou ao fechamento definitivo da editora488.
Figura 64: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
A versão que conhecemos, apenas com as imagens, foi impressa e passou a ser distribuída em
sebos e livrarias de maneira discreta. O autor ressalta ainda o cuidado gráfico despendido por
Rocha, que buscava sempre consultar “outras editoras para aprimorar seus processos de
impressão, especialmente a suíça Skira e estadunidense Aperture”489. Neste sentido,
compreendemos que os fotógrafos e o editor compartilhavam algumas de suas referências.
Amazônia se destaca pela qualidade gráfica com relação não apenas a outros livros de fotografia
do período, mas também aos atuais.
A mesma foto da capa foi reproduzida em preto e branco antes de começarem as imagens do
livro propriamente dito. A mudança de papel funciona como um sinal gráfico de que estamos
entrando na viagem fotográfica proposta por Claudia Andujar e George Love. Aparece a
primeira ponta de filme com um efeito de queimado em amarelo e branco (Figura 65), como
487
SILVA, Vitor Marcelino. Op. cit., 2022, p. 158.
488
Ibid., p. 89.
489
Ibid., p. 158.
189
feixes de luz característicos de bordas veladas dos filmes coloridos, e pequenos sinais
esverdeados da bitola de encaixe do negativo na câmera.
Figura 65: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
As duas próximas páginas são de um escuro profundo, em uma delas há apenas uma pequena
área mais clara que se assemelha a uma impressão digital. Ao nos aproximarmos, vemos a
impressão digital transformar-se em textura de água vista de cima e coberta por um feixe de
luz roxa e pequenos borrões à direita do quadro. As imagens são fortemente experimentais e
inserem pedaços de sobras do processo fotográfico na sequência das imagens do livro.
Figura 66: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
A primeira parte das imagens consistem em fotografias aéreas, onde nos é apresentado um
sobrevôo pela floresta com suas cores e texturas até irmos paulatinamente nos aproximando
190
dos rios, do chão e do igarapé. São as imagens de George que nos introduzem à floresta. Não
sem antes desestabilizar nossas noções de cor e densidade, exibindo um céu azul e roxo com
uma lua luminosa atravessada por um fio de nuvens e outra lua rosa em quarto crescente na
página seguinte. O quadro de filme roxo com três laterais escurecidas indica os limites da
superfície sensível do filme com a ponta direita queimada em rosa claro. O rosa claro na borda
esquerda e roxo com borrões da próxima página indicam a continuidade visual da sequência
(Figura 66).
Figura 67: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Nos aproximamos de águas com texturas marcadas e espuma rosa (Figura 67). Água e luz. A
floresta e seus caminhos nos são apresentados em preto e branco ou em tom quase sépia, do
alto. Há uma mudança de luminosidade. O amanhecer do dia revela texturas do rio sinuoso
envolto pela floresta (Figura 68). Ainda ao longe vemos os desenhos dos igarapés cobertos
por nuvens. As águas do rio refletem o céu e a sensação que temos é de imensidão, que ainda
é multiplicada pelo espelhamento da imagem nas duas páginas (Figura 69). Águas luminosas
revelam formas fractais.
191
Figura 68: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 69: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Novas pontas de filme aparecem como que demarcando passagens, anunciam que estamos perto
do chão. Na página ao lado há uma pequena folha vista de muito perto, as cores alteradas
tingiram-na de vermelho (Figura 70). A câmera parece submergir do leito do rio, estamos no
igarapé. As baixas velocidades dão a sensação de movimento entre água, folhas e peixes de
muitas cores (Figura 71).
192
Figura 70: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 71: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Após esta longa sequência de vistas áreas, paisagens, fauna e flora, aparecem os primeiros seres
humanos. Na segunda parte do livro são apresentadas as fotografias de Claudia Andujar. Vemos
uma mãe com sua criança presa ao dorso por um cipó vista de longe (Figura 72). A
aproximação é gradual, as imagens ainda são captadas à distância. As cenas mostram crianças
brincando na mata, a coleta de frutas, o fogo sendo aceso e as brincadeiras (Figura 73). Em
seguida, um close frontal de uma criança cuidadosamente adornada com penas, colares e o rosto
pintado. Seu olhar penetra fundo no olho da lente, não há tensão ou medo (Figura 74). A jovem
em página dupla em poses que revelam movimentos em sequência, o zoom da segunda imagem
nos lembra uma cena de cinema (Figura 75).
193
Figura 72: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 73: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 74: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
194
Figura 75: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Um escuro profundo nos transporta para dentro da maloca. Uma iluminação pontual mostra
apenas um pequeno pedaço do nariz, a boca e o queixo de uma pessoa, enquanto uma mão fura
sua pele com um graveto (Figura 76). Pela imagem anterior, entendemos tratar-se dos orifícios
feitos para receberem adornos e plumas. No livro Yanomami - Frente ao eterno há uma imagem
semelhante a esta, na qual a legenda diz tratar-se de um rito de passagem de “menina-moça”,
no entanto, segundo apurado por Silva trata-se de um hábito corriqueiro e não um ritual490. A
borda do filme indica que entraremos em uma nova sequência.
Figura 76: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
O amarelo intenso que ocupa quase uma página inteira contrasta com a escuridão da imagem
anterior (Figura 77). O rastro de luzes ao fundo da imagem indica movimento, as pessoas
retratadas parecem estar cantando e dançando. Entendemos tratar-se de um ritual. Aqui
entendemos a impossibilidade de compreendermos o conteúdo das fotos ou até mesmo as
490
SILVA, Vitor Marcelino. Op. cit., 2022, p. 178.
195
poéticas de composição e montagem para retratar o ritual reahu sem as palavras do xamã
yanomami. De acordo com Davi Kopenawa, o reahu é uma grande festa na qual os Yanomami,
após ingerirem yãkoana, fazem dançar os xapiri491.
A imagem de Omama disse a nossos antepassados: “Vocês viverão nesta floresta que
criei. Comam os frutos de suas árvores e cacem seus animais. Abram roças para
plantar bananeiras, mandioca e cana-de-açúcar. Deem grandes festas reahu! 29
Convidem uns aos outros, de diferentes casas, cantem e ofereçam muito alimento aos
seus convidados!”492
Na cosmovisão Yanomami, foi Omama quem criou o mundo, o sol, o céu, os rios, as plantas,
os bichos, as palavras e os seres humanos493. Os espíritos xapiri também foram criados por
Omama para proteger os Yanomami, para evitar que os maus espíritos devorassem suas
imagens e os levassem à morte. Omama tinha um irmão mau, Yoasi, que, por sua vez, era
criador de coisas más. A introdução da morte é creditada a Yoasi, “também por isso às vezes
chamamos os brancos de Yoasi thëri, gente de Yoasi. Suas mercadorias, suas máquinas e suas
epidemias, que não param de nos trazer a morte, também são, para nós, rastros do irmão mau
de Omama”494.
Figura 77: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
A velocidade das imagens se acelera e o ritmo torna-se ainda mais cinematográfico, marcado
pela introdução de pontas de filme e outros elementos do processo fotográfico, bem como pela
491
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Editora
Companhia das Letras, 2019, p. 78.
492
Ibid., p. 76.
493
Ibid., p. 81
494
Ibid., p. 83.
196
sensação de movimento provocada pelas imagens. Neste ponto é instigante observar como as
fotos mesmo mostrando as cenas do ritual, ainda assim preservam o seu mistério não o
revelando por completo. O corte do enquadramento parece evitar a exposição do transe e sua
representação literal (Figura 78). Andujar se utiliza de recursos e poéticas próprias do fazer
fotográfico para retratar o que havia aprendido sobre a cultura Yanomami. Kopenawa nos conta
que “a imagem dos xapiri é muito reluzente”495. Os efeitos das luzes tremidas em longa
exposição parecem transmitir um vislumbre de como seriam os xapiri, nos dá a ver algo da
dimensão do invisível (Figura 79).
Figura 78: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 79: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
495
Ibid., p. 112.
197
Conforme descreve Kopenawa, os xapiri levam as imagens dos yanomami para o mundo dos
sonhos após a ingestão de yãkoana, antecedida por uma pequena morte (Figura 80). Em
algumas passagens, o xamã rememora as primeiras vezes que tomou a substância:
Faziam-me cheirar um pouco, duas ou três vezes. Aí, a força da yãkoana me pegava
e em seguida me fazia morrer. Eu rolava e me debatia no chão, como um fantasma.
Não via mais nada à minha volta, nem a casa, nem seus moradores. Gemia e chamava
minha mãe: “Napaaa! Napaaa!”. Minha pele permanecia estirada no chão, enquanto
os xapiri pegavam minha imagem e a levavam para longe, muito ligeiros. Eu voava
com eles até as costas do céu, onde vivem os mortos, ou para o mundo subterrâneo
dos ancestrais aõpatari. No final, me traziam de volta ao lugar onde jazia minha pele
e eu recobrava consciência.496
As imagens seguintes de Amazônia parecem vir de encontro ao relato de Davi. Segundo Albert,
o reahu consiste em uma grande festa comunitária, mas também é, ao mesmo tempo, uma
cerimônia na qual são firmadas alianças políticas e um ritual funerário497, o que justifica a
imagem de uma urna funerária logo após a sequência do transe (Figura 81). Com tal colocação
Albert nos permite perceber a dimensão da confiança alcançada por Andujar entre os
Yanomami, a ponto de retratar de maneira tão íntima o seu mais importante rito.
Figura 80: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
496
Ibid., p. 98.
497
Ibid, p. 613.
198
Figura 81: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
498
NOGUEIRA, Thyago. Op. cit., p. 300.
499
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Op. cit., 2019, p. 76-77.
199
Figura 82: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 83: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
Figura 84: Página interna do livro Amazônia, 1978. Fonte: Fonte: Coleção Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, USP.
A sequência apresentada coloca para dentro do livro as sobras dos filmes fotográficos, as pontas
dos filmes estão presentes em diversos momentos do livro e marcam a aceleração do ritmo das
imagens. As experimentações que George vinha fazendo enquanto editor na revista Novidades
200
Fotoptica, mostradas anteriormente, parece ter atingido seu ápice em Amazônia. Sobre as
inspirações para o livro, George Love diz:
“Na verdade, o livro surgiu das convicções sobre a natureza da fotografia e sobre a
experiência na região, numa tentativa de conciliar ideias desses dois universos. A
Amazônia era o tema, mas o objetivo era mostrar que uma foto não é uma
representação fiel do assunto. o livro foi construído para traduzir esta tese, de que
aquilo, que a fotografia mostra é uma impressão da realidade, apenas a minha
impressão. O que você vê é a foto da floresta, não a própria. não é o céu que você vê,
é o filme. Não é um livro da Amazônia, é um livro de filmes. O livro nunca foi
entendido. Também, ele foi simplesmente banido, na época áurea da censura. Nunca
chegou ao público.”500
Notamos que George coloca mais uma vez a fotografia na chave da expressão de uma
experiência subjetiva, de um traço, uma impressão. Seu discurso se caracteriza como o que
Philippe Dubois nomeia de “fotografia como traço do real”501, cujo “ponto de partida é,
portanto, a natureza técnica do processo fotográfico, o princípio elementar da impressão
luminosa regida pelas leis da física e da química”502. Dubois relaciona esse tipo de percepção
da fotografia ao fotograma, no qual a imagem resulta “uma composição apenas de sombra e de
luz puramente plástica”. Nesta perspectiva, é possível aproximar o procedimento de inclusão
de preços velados e pontas de filme de tal conceituação.
A publicação do livro Amazônia sugere uma tentativa de operar uma inversão dos discursos
ufanistas associados às primeiras apresentações das imagens dos Yanomami no MASP, o
enredo contado pelo livro, entretanto ainda não estava completo, e nem poderia. No final da
década de 1970 a censura ainda atuava com vigor, conforme vimos, o que impedia denúncias
mais contundentes por parte dos artistas.
*
Em 1979, fundou com Carlo Zacquini e o antropólogo Bruce Albert a Comissão para Criação
do Parque Yanomami (CCPY), abandonando a carreira como fotógrafa profissional para
dedicar-se à luta política pelos direitos indígenas. Um impresso da CCPY de 23 de julho de
1979, no qual Claudia assina como responsável, faz uma espécie de convocatória à participação
da classe artística e intelectual, reportando o projeto para criação de um “Parque Indígena
Yanomami” e a gravidade da situação em que se encontrava a população.
500
Depoimento de George Love. In: De Boni, Zé. Verde Lente: fotógrafos brasileiros e a natureza. São Paulo:
Empresa das Arte, 1994, p. 36.
501
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus Editora, 2008, p. 45.
502
Ibid., p. 50.
201
No momento, a situação dos yanomami no Brasil é particularmente preocupante pois
é uma das últimas nações indígenas do Brasil e encontra-se desde 1974 gravemente
ameaçados pela agressiva e desordenada expansão dos planos de desenvolvimento da
Amazônia Brasileira.
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão federal de assistência aos indígenas
no Brasil, nos últimos dois anos, declarou de ocupação indígena vinte e uma áreas
descontínuas. São áreas que permitem a penetração de frentes de colonização, a
aceleração do cerco, a invasão progressiva e a depredação do habitat ecológico. Essa
medida é absolutamente inadequada, uma vez que do ponto de vista da legislação
indigenista brasileira, desrespeita a totalidade sócio-econômica e cultural das
comunidades Yanomami, comprometendo, dessa forma, sua coesão étnica e
sobrevivência física.
A criação de um Parque Indígena Yanomami é, face ao exposto, a única medida
viável para garantir aos índios Yanomami um território uno e suficientemente vasto
que lhes permita sua sobrevivência física e cultural. Deve-se levar em conta também
o fato de apresentar a área a ser ocupada pelos indígenas condições tais, que tornam
altamente recomendável a sua proteção do ponto de vista ecológico. Essa área foi,
inclusive, objeto de estudos visando à criação de Parques Nacionais, Reservas
Florestais e Estações Ecológicas.503
Ao final do documento, que, por seu formato, possivelmente foi enviado para diversos
destinatários, a CCPY encoraja a quem se sensibilizasse com a causa à escrever para o
Presidente da República, General Figueiredo, ao Ministro do Interior, Coronel Mário
Andreazza, e ao presidente da FUNAI, Ademar Ribeiro da Silva, em defesa dos direitos dos
indígenas sobre seu território.
Alguns meses antes, em abril, o diretor do MASP escreve ao arquiteto e paisagista Roberto
Burle Marx requisitando sua participação na movimentação política em torno da questão.
Podemos supor que não tenha sido o único artista a quem Bardi escreveu divulgando o projeto,
e assim compreendemos que o engajamento de Andujar mobilizou o diretor a utilizar seus
contatos para a divulgação da CCPY. As imagens da artista circularam apenas nos meios
específicos de defesa dos direitos indígenas e a favor da demarcação de suas terras, entre o
final da década de 1970 até o final da década de 1990, quando Claudia volta assiduamente ao
circuito artístico institucional trabalhando desde seu arquivo pessoal.
George Love, por sua vez, volta a organizar mostras no MASP já no ano seguinte, 1979. Ele
expõe no museu em pelo menos outros cinco eventos, dos quais trataremos no próximo item.
3.2 - As outras exposições de George Love no MASP e o livro São Paulo: Anotações
George Love expôs no MASP em outras duas mostras coletivas e três individuais. Em setembro
503
Comissão pela Criação do Parque Yanomami [Convocatória]. 23 de julho de 1979. Arquivo do Masp.
Arquivo OA. Dossiê 08 - Andujar, Claudia.
202
1979, organizou504 a exposição coletiva Paisagem Brasileira, na qual também expuseram João
Farkas, Carlo Zacquini e Edna Mae Barone. As tratativas começam a acontecer em maio do
mesmo ano e previam a participação de Regina Vater, com um filme em Super 8 milímetros
sobre os quatro elementos - fogo, terra, água e ar505 -, uma palestra com o fotógrafo americano
Syl Labrot506, ex-companheiro de George na Heliographers Association que expunha no
mesmo momento no museu, e ainda uma seção de fotos de paisagens brasileiras tiradas por
satélites americanos.
Um release para imprensa informa que o projeto se tratava de “uma mostra de fotografias
divididas em quatro tempos” e apresentou trabalhos de quatro fotógrafos que se revezaram em
mostras curtas de pouco mais de dez dias de duração cada um.
Entre 04 e 16 de setembro, George Love apresentou a série Saint Anthony, João Farkas exibiu
o trabalho A linha do Horizonte de 18 a 30 de setembro, de 02 a 14 de outubro foi a vez de
Carlo Zacquini mostrar suas fotografias com o tema Terra de Roraima e Edna Mae
Waddington expôs a série Através da Janela entre 16 e 18 de outubro, fechando a programação
da mostra. A realização contou com parceria da Fotoptica para revelação dos filmes e
impressões508, e com a Kodak na doação de filmes para os fotógrafos participantes do projeto.
No dossiê da exposição, além dos manuscritos que esboçam as ideias iniciais da exposição,
encontramos descrições mais aprofundadas apenas dos trabalhos de George Love e João
Farkas.
504
A organização é creditada a George Love na matéria “Pré-estréia da semana”, publicada pelo Jornal da Tarde
de 17 de setembro de 1979, bem como no folheto de divulgação da mostra A linha do Horizonte de João Farkas.
Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de Fotografias Paisagem Brasileira, 1979.
505
Manuscrito, 30 de maio de 1979. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de Fotografias Paisagem
Brasileira, 1979.
506
O livro de fotografias de Syl Labrot, Pleasure Beach, faz parte do acervo bibliográfico do Centro de
Pesquisa do MASP. Há uma correspondência de Bardi agradecendo o consulado estadunidense pela doação. É
possível conjecturar que George Love tenha sido intermediário entre Labrot e o MASP.
507
[Release para imprensa]. Sem data. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de Fotografias
Paisagem Brasileira, 1979.
508
O manuscrito datado de 07 de junho de 1979 previa a impressão de um pequeno catálogo que não foi
localizado e provavelmente não aconteceu. O único impresso da pasta é o folheto de divulgação da exposição A
linha do Horizonte de João Farkas. Manuscrito. 07 de junho de 1979. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da
Exposição de Fotografias Paisagem Brasileira, 1979.
203
direta à foz de Santo Antonio, no rio Jari, entre o Amapá e o Amazonas, O trabalho
é dedicado a este local, como idéia-símbolo da presença nunca revelada, pois
nenhuma imagem da foz aparece na mostra. É uma proposta de experimentação
gráfica que na sua forma final será um livro encadernado em apenas 20 exemplares,
um dos quais se encontra no Masp.509
Figura 85: Folheto de divulgação da exposição Horizontes, de João Farkas. Fonte: Centro de Pesquisa do
MASP. Arquivo Histórico. Pasta da exposição Paisagem Brasileira, 1979.
Uma matéria escrita por Moracy de Oliveira e publicada pelo Jornal da Tarde em 21 de junho
de 1979, divulgava as exposições de fotografia do MASP entre as quais estava prevista A
509
[Release para imprensa]. Sem data. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de Fotografias
Paisagem Brasileira, 1979.
510
[Release para imprensa]. 17 de setembro de 1979. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de
Fotografias Paisagem Brasileira, 1979.
204
Paisagem Brasileira. O texto da reportagem atribui ao museu papel relevante na mudança de
status pela qual atravessava a fotografia no meio artístico.
Os projetores por controle de fusão foram instalados no fundo da sala expositiva do primeiro
andar do museu e as imagens projetadas em uma tela cuja superfície dividia o espaço do chão
511
OLIVEIRA, Moracy. Desde ontem, a fotografia está saindo um pouco mais do anonimato. Jornal da Tarde,
21 de junho de 1979 (grifo nosso). Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de Fotografias “Paisagem
Brasileira”, 1979.
512
[Release para imprensa]. 05 de janeiro de 1980. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Diários de
Kafka de George Love, 1980.
205
ao teto com uma largura entre 11 e 13 metros. Na entrada da exposição estava prevista a
exibição de um retrato de Franz Kafka “possivelmente projetado ou visto através de video-
tape”513. Novamente, à exemplo de sua primeira exposição no MASP, podemos observar as
inspirações literárias de Love para a criação visual, comprovando sua predileção pelo universo
da literatura fantástica.
Da mesma maneira, George reitera o seu interesse por diferentes meios da imagem técnica,
dessa vez apontando para o vídeo. Segundo Philippe Dubois, o vídeo é por excelência uma
mídia de passagem, histórica e esteticamente, o cinema experimental e a videoarte são
mediadores entre os dois universos, habitando um “entre-lugar” entre o cinema e as artes
visuais514.
Uma matéria do Jornal da Tarde publicada quando a exposição ainda estava na etapa de
planejamento, e em concomitância com a realização da mostra anterior A Paisagem Brasileira,
anunciava a volta de George Love ao circuito artístico e os diversos projetos que pretendia
realizar além da série fundamentada nos escritos de Kafka.
O texto de Moracy de Oliveira sugere que o artista teria atravessado um hiato sem expor suas
imagens, no qual dedicou-se a trabalhos gráficos em grandes empresas. Disposto a reconquistar
um espaço na fotografia que se fazia na cidade, pretendia lançar um livro teórico sobre
fotografia: “iniciado como um ensaio sobre a crítica fotográfica, acabou transformando-se num
longo estudo sobre a percepção humana tendo a fotografia como ponto de partida. Será um
volume só de textos e muito disposto a discutir alguns temas pouco veiculados no Brasil”515.
Um livro de fotografias de autoria de George Love, São Paulo: anotações, seria publicado
apenas alguns anos mais tarde com o patrocínio da Eletropaulo, seus estudos teóricos
permanecem inéditos, assim como muito de sua produção fotográfica e audiovisual.
513
[Release para imprensa]. 05 de janeiro de 1980. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Diários de
Kafka de George Love, 1980.
514
DUBOIS, Philippe. Op. cit., 2009, p. 186.
515
OLIVEIRA, Moracy. Novas pesquisas e projetos. Na volta de George Love. Jornal da Tarde, 26 de julho de
1979. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Diários de Kafka de George Love, 1980.
206
na cidade desde a instalação da The São Paulo Trainway, Light & Power Company Limited,
em 1899 até 1940, e foi denominada “São Paulo, Registros 1899-1940”. A segunda parte da
mostra, possivelmente de menores dimensões, exibia imagens de autoria de George Love sobre
a cidade nos dias atuais.
Figura 86: Capa do livro São Paulo: Registros, com fotografias do arquivo da Eletropaulo, 1982. Fonte:
Biblioteca de Fotografia do IMS.
516
Na era dos bondes - Os arquivos secretos de uma São Paulo em mutação. Revista Isto É, 21 de abril de 1982.
Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias Eletropaulo - São Paulo registros e anotações,
1982.
517
BRIL, Stefania. São Paulo, no Masp. Obrigatório. O Estado de São Paulo, 23 de abril de 1982. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias Eletropaulo - São Paulo registros e anotações, 1982.
518
A pesquisadora Patrícia Yamamoto traça um panorama das críticas e textos historiográficos voltados para a
afirmação da fotografia no circuito de arte paulistano na década de 1970, no qual se inserem os artigos
publicados por Stefania Bril no jornal O Estado de S. Paulo. YAMAMOTO, Patricia Hitomi. Circuito em
transformação: O Estado de São Paulo e a cultura fotográfica paulistana nos anos 1970. (Dissertação
Mestrado) PGEHA USP, 2018.
207
abril de 1982 descreveu visita à exposição, esclarecendo questões acerca das imagens expostas
e sua montagem.
O que o espectador vê é a imagem do passado vestida pela cor de hoje. São fotos de
tonalidade azul, magenta. Testemunhas que pararam no tempo. Vidas que
ressuscitaram, deixando fluir o tempo dentro de sua matéria.
As etapas do trabalho são bem traçadas. São negativos e transparências. Imagens
positivas obtidas por contato - os negativos chegam ao formato 24 x 30 cm.
Rachaduras - vidro e emulsão quebrados -, retoques antigos, fita durex de hoje. Nada
é escondido, camuflado. A tela para a leitura dos microfilmes (Nakamura) convida o
público a participar - usar a técnica de hoje para desvendar o passado.
A montagem da exposição - imagens prensadas sobre as chapas de vidro, colocadas
na posição vertical e horizontal - induz o espectador a duas percepções simultâneas.
Ele folheia as imagens colocadas próximas, ao seu alcance imediato. O espectador
sonda as imagens a distância, filme parado que testemunha o presente (pela técnica)
e leva ao passado (pelo conteúdo). E, de repente, a imagem adquire movimento,
torna-se tridimensional. É mais uma vez o resultado da criatividade de George Love
que prensa as transparências positiva e negativa nas faces opostas da placa de vidro,
provocando uma visão estereoscópica.519
O artigo sugere a manipulação das imagens antigas do arquivo através da microfilmagem e das
conhecidas técnicas de laboratório, recortes e reproduções, aplicadas por George em
exposições anteriores. No entanto, nesta exposição o artista se destaca como curador, atuando
tanto na seleção das imagens quanto em sua forma de apresentação. Já a seção dedicada às
imagens da atualidade, de acordo com Bril, exprimiam:
519
BRIL, Stefania. São Paulo, no MASP. Obrigatório. O Estado de São Paulo, 23 de abril de 1982. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias Eletropaulo - São Paulo registros e anotações, 1982.
520
BRIL, Stefania. São Paulo, no MASP. Obrigatório. O Estado de São Paulo, 23 de abril de 1982. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias Eletropaulo - São Paulo registros e anotações, 1982.
208
fotográfico, as pontas de filme, foi descrita pelo diretor do museu, ainda no início da década
de 1970, como a tentativa de “fixar uma centelha do tempo cósmico que flui”, conforme
apontado no início deste capítulo. Descobrimos também que houve a exibição de imagens de
paisagens naturais alteradas por intervenção humana em conjunto com as fotografias captadas
na cidade de São Paulo, gesto no qual subentende-se a ideia de consequências ambientais mais
profundas do modo urbano de organização da vida.
Figura 87: Capa do livro São Paulo: Anotações, de George Love, 1982. Fonte: Biblioteca de Fotografia do IMS.
A partir das seções apresentadas na mostra foram editados dois livros com patrocínio da
Eletropaulo: São Paulo, Registros 1899-1940 (Figura 86) e São Paulo, Anotações (Figura
87). Uma matéria veiculada pelo Jornal da Tarde de 13 de abril de 1982, trazia comentários do
editor da Raízes Artes Gráficas, Regastein Rocha521, nos quais fica patente a participação de
George também na edição das imagens do livro das fotografias do arquivo da Eletropaulo.
“São Paulo, Registros 1899-1940 reúne 110 fotos, originalmente branco e preto, mas
que no livro aparecem em quatro tonalidades. (...) ao invés de se utilizar as antigas
reproduções existentes, bastante esmaecidas, preferiu-se realizar novas cópias dos
negativos de vidro, com filmes em cores. Dessa maneira, todas as nuances de cores
existentes nos negativos, resultantes da ação do tempo, foram registradas. E os
fotolitos foram feitos a partir desse material, dando ao livro um aspecto bastante
original. Há fotos inclusive que registram as trincas das matrizes, o que pode dar ao
leitor a impressão de estar com a própria chapa de vidro em mãos.522
521
Nota-se a recorrência do nome de Regastein Rocha como editor dos livros tanto de Claudia Andujar como de
George Love.
522
São Paulo, imagens inéditas. Jornal da Tarde, 13 de abril de 1982. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da
Exposição de fotografias Eletropaulo - São Paulo registros e anotações, 1982.
209
Os procedimentos descritos coincidem com aqueles utilizados por Love na composição de
imagens ao longo de toda sua carreira e, como descrito acima, na organização da mostra. O
fotógrafo, no entanto, não aparece nos créditos desta publicação. Até onde conseguimos apurar,
São Paulo, Anotações, foi o único livro de fotografia solo publicado por George Love ainda
em vida. O fotolivro Alma & luz: sobre a bacia Amazônica, foi publicado apenas
postumamente, após a repentina morte do fotógrafo, em 1995. Em São Paulo, Anotações foram
publicadas fotografias de autoria de Love, captadas entre 1966 e 1982. O conjunto das imagens,
coloridas e vibrantes, não tem a intenção de contar uma história e tampouco existe uma
sequência definida entre elas. Como o título mesmo sugere, constituem-se de registros quase
aleatórios em uma espécie de caderno de anotações, cuja unidade é dada pelo próprio caderno.
Ao menos três das fotografias publicadas no livro pertencem à Coleção Pirelli/MASP de
Fotografia523 (Figuras 88, 89 e 90).
Figura 88: George Love, São Paulo: Anotações, 1982, p. 125. Fonte: Biblioteca de Fotografia do IMS.
523
O site da Coleção Pirelli/MASP de Fotografia, que divulgava as imagens e fotógrafos da coleção, não está
mais disponível online, dificultando o acesso às fotografias pertencentes ao seu acervo.
210
Figura 89: George Love, São Paulo: Anotações, 1982, p. 111. Fonte: Biblioteca de Fotografia do IMS.
Figura 90: George Love, São Paulo: Anotações, 1982, p. 53. Fonte: Biblioteca de Fotografia do IMS.
Em 1984, George Love realizou a exposição denominada de Metade do mínimo, sua última
colaboração em mostras do MASP. Nos documentos do Arquivo Histórico do MASP,
identificamos três etapas que compuseram a exposição. A primeira ocorreu entre 18 de
fevereiro e 18 de março e consistiu em um ciclo de palestras sobre a produção de fotografias
211
de baixo custo524. O objetivo era resgatar os princípios fundamentais da fotografia
possibilitando a expressão e criação de maneiras alternativas de captação de imagens, tal como
a máquina “buraco de agulha”, a pinhole525. De 29 de agosto a 09 setembro526, foi realizada
uma exposição, que apresentou as pesquisas realizadas por Love sobre produções de baixo
durante três meses e exibiu fotos que transmitiam o resultado. Uma nova etapa expositiva foi
realizada entre 19 a 28 de outubro527, e tratava da fotografia como informática. Segundo Love,
“o meio mais acessível ao homem para se informar sobre as coisas de forma muito sintética e
muito rica em dados. Por isso, podemos dizer que a foto é altamente informática.”
Após um longo hiato sem organizar exposições no MASP, Claudia Andujar, então como
representante da CCPY, propõe a realização da mostra Genocídio do Yanomami, Morte do
524
Metade da metade [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias
Metade do mínimo, 1984.
525
PINHOLE dispositivo de captação direta, sem câmera.
526
Metade do mínimo [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias
Metade do mínimo, 1984.
527
Metade do mínimo [Folheto de divulgação]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição de fotografias
Metade do mínimo, 1984.
528
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004, p. 172.
529
MASP. Coleção Pirelli de Fotografia, n. 02, 1992, p. 40 (catálogo de exposição). Logo após esta edição da
Coleção Pirelli MASP, George Love retorna ao Brasil. Não foi possível identificar suas atividades entre 1992
(ou 1993), época em de sua volta, e 1995 ano de seu falecimento, por fugirem do escopo e do recorte temporal
desta pesquisa. Sabemos, no entanto, que obras de sua autoria em diapositivo foram doadas para o MASP por
ele próprio em 1993 e estão alocadas no Arquivo de Referência, na pasta que leva seu nome.
212
Brasil, em 1989 (Figura 91). O contexto político nestes anos finais da década de 1980 era
completamente diferente daquele instaurado durante as apresentações das primeiras exposições
de Andujar no museu, e em particular ao da exposição Hileia Amazônica, na qual foram
veiculadas as primeiras imagens dos Yanomami na instituição. O impacto do cenário de
abertura política e redemocratização, além da participação de pessoas de origem indígena em
sua organização, tiveram reverberações significativas no discurso transmitido pela exposição.
Figura 91: Vista da entrada da exposição Genocídio do Yanomami, morte do Brasil, 1989. Fonte: Website da
Comissão Pró-Yanomami.
530
Claudia Andujar assina a correspondência como coordenadora da CCPY, ao lado de Abel de Barros Lina
como procurador. Abel era casado com a antropóloga Carmen Junqueira, que o envolveu na defesa da causa
indígena. Ele foi um dos fundadores da CCPY, prestando serviços administrativos, e teve papel decisivo em
articulações políticas com o senador Severo Gomes, que se tornou importante aliado e defensor da demarcação
das terras Yanomami. Disponível em: http://www.proyanomami.org.br/frame1/geral.htm#abel acesso em:
22/08/2022.
531
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. 15 de setembro de 1988. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil, 1989.
213
painéis com fotografias, mapas e desenhos, acompanhados por legendas descritivas que se
subdividiriam em outras dez seções:
No que diz respeito aos direitos indígenas, a Constituição de 1988 estabelece marcos
inovadores para as relações entre Estado, sociedade brasileira e povos originários. Constata-se
o abandono da perspectiva assimilacionista, de uma população fadada ao desaparecimento, e a
definição dos direitos indígenas em relação às suas terras como direitos originários. Antes da
Constituição de 1988 a legislação vigente era a lei 6.001, conhecida como “Estatuto do índio”,
de 1973, ou seja, do período mais repressivo do governo militar. Segundo o Instituto
Socioambiental, o Estatuto seguia as diretrizes do velho Código Civil brasileiro, de 1916, no
qual os indígenas são considerados “relativamente incapazes”533 e, assim sendo, deveriam ser
tutelados pelo órgão indigenista estatal (o Serviço de Proteção ao Índio - SPI, entre 1910 e
532
ANDUJAR, Claudia [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. 15 de setembro de 1988. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da Exposição Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil, 1989.
533
Sobre o histórico das leis indigenistas consultamos o website do Instituto Socioambiental (ISA). Disponível
em: https://pib.socioambiental.org/pt/Estatuto_do_%C3%8Dndio acesso em: 22/08/2022.
214
1967, e depois a Fundação Nacional do Índio - FUNAI) até sua completa integração.
A inclusão do capítulo específico no qual estão expressos os direitos constitucionais dos povos
originários, foi uma importante conquista do movimento indígena que vinha se organizando,
conforme afirma Ailton Krenak, no “bojo de um movimento social mais amplo, de lutas pelas
eleições diretas e pela democracia”534. Os anos 1980 viram nascer as primeiras organizações
por direitos indígenas formada por pessoas indígenas. Uma das principais foi a União das
Nações Indígenas (UNI), da qual Krenak era representante no momento em que profere seu
emocionante discurso na Assembleia Constituinte de 1987, em defesa da emenda em favor dos
direitos indígenas proposta pela UNI. A fala de Krenak trouxe resultados positivos para a
aprovação da entrada do texto sobre os direitos indígenas na nova constituição.
O povo indígena Yanomami, o maior das Américas que ainda mantém praticamente
intactas as tradições culturais de seus antepassados, vive na Amazônia, na fronteira
do Brasil com a Venezuela, numa área de 9 milhões de hectares de florestas tropicais,
lagos e montanhas que é uma das maiores reservas ecológicas do mundo.
Isso tudo está agora ameaçado de desaparecer. Nos últimos dois anos a região vem
sendo invadida ilegalmente por milhares de garimpeiros que, na procura por ouro,
destroem a floresta envenenam os rios, levando doença e morte aos índios.535
534
VIVAN, Danilo. Ailton Krenak: os frutos do discurso que comoveu o país. Disponível em:
https://believe.earth/pt-br/ailton-krenak-os-frutos-do-discurso-que-comoveu-o-pais/ acesso em: 22/08/2022.
535
Comissão para Criação do Parque Yanomami [Release para imprensa]. Arquivo Histórico do MASP. Pasta
da Exposição Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil, 1989.
536
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Claudia Andujar (CCPY). 17 de setembro de 1988.
Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil, 1989.
215
a confecção das telas537 e para o aluguel de dois projetores Ektagraphic AF-2 e um aparelho de
controle de fusão538, ambos para a projeção do audiovisual elaborado por Andujar (Figura 92).
Pela única foto que conseguimos mapear do audiovisual apresentado (Figura 93), podemos
notar que os procedimentos de espelhamento das imagens mobilizados na composição de
Amazônia também consistiram em recursos poéticos para esta criação. Através dela é possível
vislumbrar as montagens desenvolvidas por ela e George Love no início da década de 1970.
Além disso, notamos que a imagem retratada na foto do audiovisual é muito semelhante com
a do cartaz do audiovisual O homem da hileia. Em entrevista de 2015, ao comentar sobre o
audiovisual desta mostra, Claudia diz o seguinte: “Não sei se teria feito esse Genocídio do
Yanomami sem conhecer George ou alguém parecido”539, deixando nítida a influência das
soluções expográficas de Love na montagem daquela exposição.
Figura 93: Esboço da montagem do audiovisual Genocídio do Yanomami, morte do Brasil encontrado no
arquivo de Claudia Andujar. Fonte: Canal Youtube do Instituto Moreira Salles, Arquivo Claudia Andujar.
Um release para imprensa divulgado pelo MASP em março de 1989, informa que o audiovisual
537
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Jean Pierre Lapage (Plavinil Plásticos). 02 de
dezembro de 1988. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil,
1989.
538
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: Geraldo Giovanni Lorenzo Jr. (Fotóptica). 10 de
março de 1989. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil,
1989.
539
NOGUEIRA, Thyago. Op. cit. 2015, p. 245.
216
se baseava em vinte anos de trabalho de Claudia Andujar entre os Yanomami. Este dado nos
permite concluir que a artista trabalhou a partir do arquivo fotográfico constituído durante sua
trajetória. O mesmo que afirma em seus depoimentos mais recentes que era constituído por
imagens que não podiam ser mostradas no período ditatorial. Assim, é possível afirmar que é
a partir da década de 1980, e mais intesamente após a redemocratização do país, que Claudia
passa a elaborar um trabalho de memória de seu convívio com os Yanomami, de testemunho e
denúncia das violências sofridas por este povo. Apuramos ainda que a instalação do
audiovisual ocupou uma área de quarenta metros por quinze, ao fundo da sala, na qual os dois
projetores multiplicavam as imagens projetadas em quatro telas “através de um jogo de
espelhos”540 (Figura 94). Os trinta minutos de duração exibiam uma sucessão ininterrupta de
imagens acompanhadas pela sonoplastia elaborada por Marlui Miranda, “que mixou músicas
orientais e minimalistas com o material sonoro que Claudia Andujar colheu entre os
Yanomami”541.
Mais uma vez, é possível notar a ressonância dos audiovisuais realizados por ela e George
Love nos anos 1970, desde as técnicas escolhidas para a montagem até as músicas orientais
utilizadas para construir a ambientação. Marlui, no entanto, trouxe suas próprias contribuições
para a composição de Genocídio do Yanomami, morte do Brasil, através das pesquisas sonoras
que vinha realizado com povos originários e a confluência com a pesquisa de Claudia. Além
disso, os intervalos entre as exibições do audiovisual eram preenchidos com a audição do
depoimento de Davi Kopenawa, que nos últimos dez anos havia despontado com liderança
Yanomami, sendo premiado por suas contribuições em defesa de seu povo, do seu território e
do meio ambiente pela ONU em 1988, e o homenageado da mostra da CCPY no MASP.
540
MASP [Release para imprensa]. Março de 1989. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição
Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil, 1989.
541
MASP [Release para imprensa]. Março de 1989. Arquivo Histórico do MASP. Pasta da Exposição
Genocídio do Yanomami, Morte do Brasil, 1989.
217
Figura 94: Projeção do audiovisual Genocídio do Yanomami, morte do Brasil. Fonte: Canal Youtube do
Instituto Moreira Salles, Arquivo Claudia Andujar.
Os pajés que trabalham pra proteger mim estão muito preocupados. Porque sou filho
único para defender povo Yanomami. Então pajés tão fazendo trabalho pra não
acontecer pra mim o que aconteceu com Chico Mendes. Tem os guerreiros que estão
ao lado de mim, cuidando (...). Conheço vocês, falo a língua de vocês, não sou contra
os garimpeiros. Sou contra a garimpagem porque deixa buraco, estraga rio e igarapé.
Os Yanomami não fazem isso, cortar terra, cortar árvore, queimar floresta. Nós não
ser inimigo da natureza. Somos amigos da natureza porque vivemos lá na selva. Ela
é que cuida da nossa saúde. Lá não faz calor porque tem árvore alta. Aqui não tem
pau alto, por isso vocês têm que ficar comprando ventilador. Omami deu a terra pra
542
Índio protesta ao receber Prêmio Global 500. O Globo, 01 de fevereiro de 1989. Arquivo do Instituto
Socioambiental. Disponível em:
https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_noticia/25781_20130916_154309.pdf acesso em
02/07/2022.
218
gente viver nela, não pra vender. Branco vende, vai pra outro lugar. Índio não faz
isso. Não estou satisfeito com os brancos porque os brancos me deram este prêmio.
Estou e não estou. Por que os meus parentes estão morrendo. Antes não acontecia
isso, os Yanomami não sabiam que os brancos iam fazer mal pra gente. Agora os
peixes estão sofrendo, os rios tão acabando. Os brancos também tão sofrendo lá. Índio
e branco, branco pobre, branco rico. Porque a doença não tem medo, ela mata
qualquer um, poder rico, pode ser brabo, pode ser grande”543.
Figura 95: Claudia Andujar, Boas Novas, rio Jericó - RR, 1981. Fonte: Reprodução do catálogo da exposição
Genocídio do Yanomami, morte do Brasil. Centro de Pesquisa do MASP.
A inclusão das imagens do conflito e da devastação causadas pela contato com a sociedade
branca, em somatória com a participação de indígenas e de apoiadores da demarcação de seus
territórios, fazem com que a exposição e o audiovisual Genocídio do Yanomami, morte do
Brasil surjam como uma espécie de contranarrativa em relação à exposição Hileia Amazônica
e ao audiovisual O homem da hileia. O contexto dos anos mais duros da ditadura militar, a
cooptação das imagens em favor de discursos que se alinhavam com o regime e o consequente
silenciamento da população retratada, são radicalmente modificados na exposição de 1989. O
543
KOPENAWA, Davi. Sou índio mais feliz. In: Comissão pela Criação do Parque Yanomami - CCPY.
Genocídio do Yanomami, morte do Brasil. São Paulo: MASP/Raízes, 1989, p. 22-23 (catálogo de exposição).
219
audiovisual, ao invés de aprisionar os sujeitos indígenas a um tempo pretérito, os projeta no
tempo presente enquanto agentes da própria história.
Conforme vimos, as propostas desenvolvidas por Claudia Andujar e George Love no início da
década de 1970 dialogam com as práticas experimentais da arte contemporânea que
começavam a ampliar seu espaço no circuito das exposições. Podemos traçar um paralelo
também com as buscas poéticas de outros artistas brasileiros que estavam investigando
linguagens visuais baseadas nas novas tecnologias fílmicas disponíveis na época, conforme
apontado no primeiro capítulo desta dissertação. Se muitos artistas das décadas de 1960 e 1970
utilizaram-se da fotografia como meio expressivo sem o intuito de afirmar sua especificidade,
podemos imaginar o caminho inverso no caso dos audiovisuais de George Love e Claudia
Andujar. Ainda que tenham partido de pesquisas acerca das especificidades do filme e de
equipamentos fotográficos, as práticas com as novas tecnologias levaram a dupla a criações
artísticas que borravam as fronteiras entre as linguagens tradicionais. Os projetores
funcionaram como dispositivos tecnológicos em favor de poéticas visuais que investigavam as
potencialidades destes novos meios da imagem técnica.
Acerca da parceria artística estabelecida entre o casal, identificamos nas reflexões de Jacques
Leenhardt categorias que nos auxiliam na sua compreensão. O autor estabelece quatro tipos de
parcerias e duas delas nos parecem particularmente úteis para pensar a relação analisada nesta
dissertação. A primeira é intitulada “da busca da identidade própria à parceria artística”544,
exemplificada pelo caso de Ulay e Marina Abramovic. Segundo Leenhardt, a parceria entre
eles se estabelece por uma busca identitária cujo trabalho colaborativo manifesta o desejo de
colocar em xeque a rigidez dos códigos morais e papéis sociais impostos aos sujeitos. Já na
segunda, há uma superação da questão identitária e o vínculo se dá pela formação de um time
operacional, o que ele chama de uma “dupla funcional”545, cujo protótipo seria a atuação da
dupla Christo e Jeanne-Claude, com uma clara divisão entre as funções de cada um nas criações
conjuntas e implica na presença ativa dos dois.
544
LEENHARDT, Jacques. Tipos de parcerias entre artistas e a questão da autoria. In: ROUCHOU, Joëlle et
al. (Ed.). Criações compartilhadas: artes, literatura e ciências sociais. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda, 2014,
p. 205.
545
Ibid., p. 206.
220
Neste sentido, após o longo caminho de investigação das trajetórias individuais e das
experiências compartilhadas entre Claudia Andujar e George Love, realizado para esta
dissertação, concluímos que a parceria que estabeleceram transita entre as duas categorias
citadas acima. O vínculo inicial parece ser guiado por uma busca identitária impulsionada pela
vontade de transformação da realidade, que os levam à criação coletiva como forma de ação
direta sem, no entanto, chegarem ao amálgama de Ulay e Marina Abramovic. Já no momento
em que entram para o circuito artístico as funções assumidas por cada um deles aparentam ficar
cada vez mais definidas em termos de atuação individual mesmo que continuassem atuando
como uma dupla. Tanto que, mesmo após a separação do casal, ainda conseguem manejar sua
última criação conjunta provavelmente por este pragmatismo na divisão do trabalho. A
assimetria com relação ao reconhecimento artístico de cada um dos parceiros da dupla também
remete ao casal Ulay e Abramovic, em que ela é uma artista amplamente consagrada e ele é
conhecido apenas em círculos restritos.
Leenhardt nos lembra que os artistas dos anos 1960 e 1970 fazem parte de uma geração nascida
com a Segunda Guerra Mundial, dado relevante para a atuação coletiva. O autor ainda oferece
contribuições importantes para a compreensão deste fenômeno, que valem a pena serem
compartilhadas. Segundo ele:
Pudemos ainda, ao longo do capítulo, notar que a análise dos livros nos dá bases para
compreender a condição “entre imagens”547 dos experimentalismos de Claudia e George, que
durante a década de 1970 investigaram diversos meios de produção e circulação de fotografias.
Enquanto as tratativas das exposições nos fornecem informações textuais, é nas revistas e nos
livros que encontramos as imagens e as composições que vinham desenvolvendo
materializadas. A recuperação de suas atividades no Laboratório de Fotografia, que culminou
na fundação do Departamento de Fotografia do MASP, foi fundamental para compreendermos
suas referências e as produções da época com as quais estavam dialogando.
546
Ibid., p. 211.
547
BELLOUR, Raymond. Entre imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Editora Papirus, 1997, p. 14.
221
O diretor do MASP oferece respaldo institucional para o avanço da carreira de ambos, em
especial para a de Claudia. Bardi ainda faz uso de sua rede de contatos para viabilizar projetos
que extrapolam o âmbito da instituição, como na publicação do livro Mitopoemas Yãnomam,
de Claudia Andujar. No caso de Andujar, houve até mesmo uma intervenção política para a
concessão de autorização para que a artista conseguisse retornar ao território Yanomami.
George também recebeu apoio institucional de Bardi no que diz respeito à abertura para a
organização de ao menos quatro exposições no MASP, entre o final de 1970 e início de 1980.
Pietro Maria Bardi é certamente uma figura ambígua que centralizou as operações do museu
em torno de si durante um longo período, deixando sua marca na gestão institucional e nas
políticas culturais do museu. Tão ambíguas quanto a sua figura são suas concepções sobre
fotografia como tivemos oportunidade de constatar ao longo dessa pesquisa.
222
Considerações finais: sobre museus de arte, fotografia, arquivo e memória
O objetivo destas considerações é refletir sobre o papel do Arquivo do MASP enquanto local
de destino final para as fotografias adquiridas para a instituição no período da gestão de Pietro
Maria Bardi (1947-1989). Após a análise das exposições de fotografia no MASP, centrada no
estudo de caso da atuação de Claudia Andujar e George Love junto ao museu nas décadas de
1970 e 1980, pudemos constatar que o diretor Pietro Maria Bardi conduzia as operações de
modo a centralizar as decisões sob seu comando. Como consequência, as atividades e eventos
eram fortemente baseados em suas concepções, e devem ser vistos dentro de um projeto mais
amplo sobre a arte produzida no Brasil. Tais características se refletem no Arquivo e nos
documentos acumulados ao longo de sua gestão, dos quais tornou-se o produtor majoritário.
Durante os mais de quarenta anos nos quais esteve à frente do MASP, desenvolveu algumas
iniciativas, além das exposições, com o objetivo de adquirir fotografias para a instituição. As
trocas de cartas, pedidos de doação, convocatórias para exposições e muitos outros registros
depositados no Arquivo Histórico, analisados ao longo desta dissertação, apontavam para o
Arquivo Fotográfico enquanto um local de destino anterior à organização de uma coleção de
fotografias.
Conforme apontamos no início desta dissertação, a Coleção Pirelli MASP de Fotografia foi a
iniciativa mais sistemática de estabelecer uma política de aquisição de fotografias para o acervo
223
do museu. Iniciada em 1991, durante a gestão de Fábio Magalhães, foram realizadas 19 edições,
de 1991 a 2012, que contemplaram exposições anuais acompanhadas da publicação de
catálogo, que resultaram em um acervo de 1.234 fotografias de 297 autores diferentes548. De
acordo com estudos de Ricardo Mendes sobre sua constituição, ela é também a primeira
coleção de fotografia que apresenta uma efetiva continuidade em um museu de arte no país549.
Mendes, indica algumas realizações anteriores de instituições de São Paulo e do Rio de Janeiro,
que tiveram a intenção de colecionar fotografias, dentre as quais inclui as exposições do MAC
USP, a I Trienal de Fotografia no MAM SP, que resultaram na incorporação de fotografias ao
acervo das instituições. O autor cita ainda a criação, no MAM RJ, de uma coleção sob guarda
do departamento de fotografia, vídeo e novas tecnologias, que vigorou entre 1983 e 1986,
acumulando um acervo que ainda permanece no museu550.
A seleção das fotografias destinadas a integrar a Coleção Pirelli MASP ficava por conta de um
Conselho Deliberativo. O discurso de seus membros justifica a formação da coleção enquanto
instrumento de preservação da memória da fotografia brasileira551. Mendes aponta os textos
dos catálogos como importantes vias para a apreciação da coleção e das fotografias
selecionadas, e que consistiriam nas “únicas fontes documentais à disposição, que permitem
identificar prioridades e programas”552, na falta de um regulamento ou estatuto. O autor destaca
a prevalência na autoria dos textos dos conselheiros Boris Kossoy e Rubens Fernandes Junior.
548
MASP (ed.). MASP FCCB: Coleção Museu de Arte de São Paulo Foto Cine Clube Bandeirante. São Paulo.
MASP, 2016.
549
MENDES, Ricardo. Reflexos do Brasil: uma leitura inicial sobre a Coleção Pirelli/MASP de Fotografia.
Jornada de Estudos: Representações do Brasil: da viagem moderna às coleções fotográficas. São Paulo: Museu
Paulista da USP, 2004, p. 04. SOARES, Carolina Coelho. Coleção Pirelli MASP de Fotografia: fragmentos de
uma memória. 2006. Dissertação (Mestrado em Artes). Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006, p. 154.
550
Ibid, p. 04.
551
FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Fotografia brasileira contemporânea: influências e repercussões. In:
Coleção Pirelli MASP de Fotografia. São Paulo: MASP, 1992. Catálogo de exposição.
552
MENDES, Ricardo. Op. cit. 2004, p. 06.
553
KOSSOY, Boris. Memória da fotografia: o nascimento de uma coleção. In: Coleção Pirelli MASP de
Fotografia. São Paulo: MASP, 1991, p. 06 (catálogo de exposição).
224
As imagens informam e emocionam. Seus conteúdos, associados aos documentos que
em torno deles gravitam, restabelecem o espírito da cultura de uma época, seja ela
próxima ou distante no tempo. Daí a necessidade da Iconografia, daí a importância
da memória fotográfica – na sua infinita abrangência temática – metodicamente
preservada. Assim se forma também a Memória da Fotografia.554
No trecho destacado o autor afirma que a fotografia como documento é capaz de reconstituir o
“espírito da cultura de uma época”, afirmação que ecoa alguns dos discursos de Pietro Maria
Bardi, por exemplo, sobre as fotografias da exposição A Família Brasileira, para citar um caso
já abordado nesta dissertação. É importante destacar que Kossoy teve relevante participação na
organização de mostras no MASP durante a década de 1970. Em 1972, lançou o livro de
fotografias Viagem ao Fantástico no museu, no ano seguinte promoveu a exposição História
da fotografia no Brasil555, além de atuar em outras mostras históricas ao longo da década. No
catálogo comemorativo dos trinta anos do museu, está creditada a Kossoy a direção do
Departamento de Fotografia556.
Ao mesmo tempo em que reitera a ideia de memória defendida por Kossoy na primeira edição,
notamos no texto de Fernandes Júnior a tentativa de definir fundamentos para a coleção,
enfatizando o seu tratamento museológico. Esclarece também os critérios do Conselho
Deliberativo quanto ao entendimento da fotografia por seu viés documental e de expressão
autoral. Compreensão esta que também se aproxima das assertivas utilizadas por Bardi para
qualificar as produções de fotógrafos que expuseram no museu.
Nesse sentido, a recorrência de nomes de fotógrafos que já haviam realizado mostras no MASP
anteriormente, durante a gestão de Pietro Maria Bardi, é evidente na primeira edição da Coleção
Pirelli MASP de Fotografia. Dos dezoito selecionados, oito realizaram individuais no MASP
entre 1970 e 1980. São eles: Claudia Andujar, Maureen Bisilliat, Cristiano Mascaro, Walter
554
Ibid., p.6
555
Arquivo Histórico do MASP. Pasta da exposição História da Fotografia no Brasil, 1973.
556
Não foram encontrados registros sobre o funcionamento do Departamento de Fotografia nos anos
posteriores.
557
FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Op. cit., 1992, p. 06.
225
Firmo, Otto Stupakoff, Claudio Edinger, Sebastião Salgado e Mário Cravo Neto. George Love
e Geraldo de Barros constam na segunda edição da coleção.
O autor nos alerta ainda para a impossibilidade de confundirmos a memória com suas
referências objetivas, tampouco pode-se entendê-la como substância “redutível a um pacote de
recordações, já previsto e acabado. Ao inverso, ele é um processo permanente de construção e
reconstrução, um trabalho”559. Assim, tentar conferir estabilidade à memória, ainda segundo o
autor, é um indício de sua própria mutabilidade e fluidez.
A pesquisadora Carolina Soares, em sua dissertação de mestrado sobre a Coleção Pirelli MASP
de Fotografia, levantou ainda uma série de exposições coletivas, entre as quais Grande São
Paulo/76, cujos expositores foram contemplados em alguma das edições da coleção. As outras
duas mostras foram O homem brasileiro e suas raízes culturais e o Tempo do olhar - panorama
da fotografia brasileira atual560. A primeira foi realizada em 1980 como parte integrante da
programação mais abrangente em homenagem aos cem anos da Kodak, a MASP Kodak -
Fotografia arte e uso que ocupou todos os espaços do museu e contou com financiamento da
filial da empresa no Brasil. A segunda, de 1983, foi organizada em parceria com o Museu
Nacional de Belas Artes (MNBA) e patrocínio do Jornal do Brasil. Além de contarem com
patrocinadores ligados aos meios de comunicação, as duas exposições tiveram em comum,
ainda, o fato de que suas fotografias foram selecionadas por meio de convocatórias, tal como a
GSP/76.
558
DE MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no
campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 34, p. 9-23, 1992, p. 10.
559
Ibid., p. 10 (grifo do autor).
560
SOARES, Carolina Coelho. Op. cit., p. 175-176.
226
encontrada na pasta da exposição, um grupo de onze fotógrafos do Rio de Janeiro manifestaram
a discordância com alguns requisitos para participação.
Os fotógrafos protestaram vinculando suas participações no evento à alteração dos itens acima
mencionados, por colocar, segundo eles, “o trabalho fotográfico totalmente fora do controle do
seu autor”562, levando à desvalorização do trabalho do fotógrafo. Os autores aproveitaram para
protestar contra os altos preços, a baixa qualidade dos materiais fotográficos aos quais tinham
acesso no período, e a situação praticamente de monopólio da Kodak no mercado nacional pela
ausência de concorrentes.
5º - Todo material exposto poderá ter caráter de doação ao MASP, caso o autor assim
concorde, para composição de um acervo fotográfico;
6º - Caberá à Comissão de Seleção a escolha das fotos que irão compôr a exposição.
Todos os trabalhos, exceto aqueles que forem doados, deverão ser retirados no MASP
561
Como os autores apenas assinam a carta sem os seus nomes por extenso não foi possível identificá-los. Carta
aberta ao diretor do MASP [Correspondência]. Destinatário: Pietro Maria Bardi. s/d. Arquivo Histórico do
MASP. Pasta da exposição O homem brasileiro e suas raízes culturais, 1980.
562
Ibid., s/p.
563
CECATO, José Roberto [Correspondência]. Destinatário: Luiz Hossaka. 15 de julho de 1980. Arquivo
Histórico do MASP. Pasta da exposição O homem brasileiro e suas raízes culturais, 1980.
227
de 10 de outubro a 10 de novembro de 1980. Fora deste prazo o MASP não se
responsabilizará pelo material.
Hossaka esclarece ainda que a Comissão de Seleção seria formada por Alberto Beuttenmuller,
chefe de redação do Jornal do Brasil, pelos críticos Stefania Bril e Moracy R. de Oliveira, e
por Walter Luiz Caira564, além de ser presidida pelo diretor da instituição Pietro Maria Bardi.
Notamos que ao longo da década de 1980, o Departamento de Fotografia fundado na década
anterior não registra mais atividades. Em contrapartida, Bardi recorreu a parcerias com jornais
e empresas da área das comunicações para patrocínio e realização de mostras fotográficas.
Além das convocatórias para exposições, que tinham como objetivo compor um acervo de
fotografias para o MASP, praticadas entre as décadas de 1970 e 1980. Bardi utilizou-se de
pedidos diretos de doação, conforme apontam as correspondências alocadas nas pastas dos
cursos de fotografia no Arquivo Histórico. Em uma delas, de 19 de julho de 1979, Bardi
agradece a United States International Communication Agency pela doação de uma serigrafia
e três cibaprints de autoria de Syl Labrot, além do livro “Pleasure Beach”, também de autoria
do fotógrafo. O diretor do MASP diz considerar que “o conjunto representa um material
documentário sobre a obra do artista e os novos caminhos que ele abriu para a fotografia”568.
É curioso constatar a insistência de Bardi em analisar fotografias de diferentes vertentes na
chave do documento ou do documental. A produção de Syl Labrot, tendo em vista seu livro
564
Não foi possível identificar Walter Luiz Caira.
565
CAMARGO, Mônica Junqueira de; MENDES, Ricardo. Fotografia: cultura e fotografia paulistana no
século XX, 139- 154. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 139.
566
Ibid., 138.
567
Ibid., p. 140.
568
BARDI, Pietro Maria [Correspondência]. Destinatário: United States International Communications
Agency. 15 de julho de 1979. Arquivo Histórico do MASP. Pasta do Curso de Fotografia, 1973.
228
Pleasure Beach, era marcada por experimentações gráficas e fotográficas e pelo uso de cores
saturadas, o que o levou a encontrar maneiras alternativas de impressão569.
Em 1989, Pietro Maria Bardi publicou o livro Em torno da fotografia no Brasil, cujas
ambiguidades estão expressas já em sua capa, que mostra desde uma imagem tecnológica e
feita por computação gráfica e uma foto do século XIX. De início, Bardi pontua que sua
motivação foi de comunicar uma mistura “de encontros, práticas, sugestões, colocando de lado
a erudição”573. Desse modo, justifica a justaposição de imagens e intenções tão distintas quanto
569
SILVA, Vitor Marcelino. Op. cit., p. 117.
570
CHEVRIER, Jean-François. Documentary, document, testimony… In: GIERSTBERG, Frits. et. al.
Documentary now! Contemporary strategies in photography, film and the visual arts. Rotterdam: NAi
Publishers, 2005, p. 47.
571
Ibid., p. 48.
572
FOGLE, Douglas. The last picture show: artists using photography, 1960-1982. Minneapolis: Walker Art
Center, 2003.
573
BARDI, Pietro Maria. Em torno da fotografia no Brasil. São Paulo: Banco Sudameris Brasil, 1987.
229
as encontradas no livro. Em algumas das fotografias nele contidas, consta a legenda “Arquivo
MASP”, em outros momentos o autor indica em seu texto que a imagem publicada encontra-
se “preservada no Arquivo do Masp e merece ser divulgada”574. Pietro Maria Bardi, em vários
momentos faz referência à imprensa e às revistas ilustradas como veículos privilegiados para a
fotografia, reflexos de seus próprios interesses como jornalista autodidata.
Assim, a Biblioteca do MASP foi inaugurada em 1977, com a doação da biblioteca particular
de Pietro e Lina Bo Bardi, em comemoração ao trigésimo aniversário do museu577. O Centro
de Documentação foi criado em 1990578, na gestão de Fábio Magalhães, outro momento de
importantes mudanças organizacionais na instituição. Durante os anos 1990, são desenvolvidos
574
Ibid., p. 51.
575
COSTA, Ivani Di Grazia. Biblioteca e Centro de Documentação do Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand (MASP): Relato de uma experiência. In: MAGALHÃES, Ana Gonçalves et al. II Seminário
Internacional Arquivos de Museus e Pesquisa: tecnologia, informação e acesso. São Paulo: Grupo de Trabalho
Arquivos de Museus e Pesquisa, 2011, p. 128.
576
O MASP é um museu particular de interesse público, sua gestão é executada por um Conselho Executivo
privado que, no entanto, gere prédio e acervo públicos, considerados patrimônios históricos e artísticos,
tombados pelo IPHAN (processos nº 1495-T-02 e 0809-T-68). O museu recebe ainda patrocínios incentivados e
premiações de leis de incentivo, como a Lei Rouanet e o Proac, por exemplo, consistindo em investimento de
verba pública para a execução de sua programação.
577
A pesquisadora Maria Luiza Zanatta de Souza desenvolveu estudos sobre as coleções bibliográficas
abrigadas pelo Centro de Pesquisa. SOUZA, Maria Luiza Zanatta de. Apontamento Sobre a Coleção de Livros
Raros da Biblioteca e Centro de Pesquisas do MASP. Encontro de História da Arte, n. 13, p. 639-646, 2018.
578
COSTA, Ivani Di Grazia. Op. cit., 2011, p. 128.
230
diversos projetos para informatização da biblioteca579, preservação do arquivo fotográfico,
contando com parcerias de outras instituições e transpondo desafios como a falta de verba e
mão-de-obra580. O projeto de organização do Arquivo Histórico aconteceu entre 2003 e 2004,
e o banco de dados implantado naquele momento, que funciona a partir da plataforma Access,
é o mesmo utilizado para consulta até hoje.
Ainda em 1977, também como marco dos trinta anos da instituição, o Laboratório de
Comunicações Visuais (Figura 97) abarcou o espaço onde funcionava o Laboratório de
Fotografia no início da década. Em entrevista à autora, Ivani Di Grazia Costa, que coordenou
o departamento de 1991 a 2018581, relatou que no final dos anos 1990, montou uma reserva
técnica para receber o Arquivo Fotográfico, que viria a ser destruída por uma grande reforma
ocorrida no MASP entre o final dos anos 1990 e começo dos 2000582. Quanto ao espaço da
antiga reserva, Costa esclareceu que ela se localizava “em uma sala onde funcionava o
laboratório de fotografia, com o Boris, o George Love, esse pessoal… Tanto é que era toda
azulejada e tinha pia também”. O fato de os dois núcleos terem sido instalados de maneira
interligada reforçou a plausibilidade da hipótese sobre a assimilação da fotografia pela via do
Arquivo, durante a gestão de Pietro Maria Bardi, levantada no início desta pesquisa.
579
Ibid., p. 128.
580
Ivani Di Grazia Costa, em entrevista gentilmente cedida à autora, nos forneceu detalhes dos projetos
propostos e executados pelo núcleo em parceria com órgãos como a FAPESP, o Itaú Cultural, a extinta
Fundação Vitae, entre outros, e relatou os desafios da gestão do núcleo frente à invisibilidade na estrutura
organizacional da instituição.
581
A entrevista com Ivani Di Grazia Costa foi realizada através da plataforma digital Google Meets, em 22 de
julho de 2021, na qual gentilmente discorreu sobre sua experiência profissional na Biblioteca e Centro de
Documentação do MASP. Ivani começou a trabalhar no museu como estagiária em 1981, assumindo a
coordenação do departamento entre 1990 e 1991, quando Fábio Magalhães implementou um novo sistema de
gestão no museu.
582
Trata-se da mesma reforma que substituiu os pisos de pedra originais do edifício.
231
Figura 97: Fotografia da entrada da Biblioteca e do Laboratório de Comunicações Visuais, 1977. Fonte:
Reprodução catálogo MASP 30 Anos. Coleção particular da autora.
Seguindo estes vestígios, nos voltamos para a investigação das fotografias alocadas no Arquivo
Fotográfico do museu583. Como método de análise, partimos das informações textuais
levantadas sobre as exposições de fotografia, principalmente do assunto abordado em cada
mostra, a fim de compreender se tratava-se de uma fotografia que poderia ter sido exposta ou
consistia em uma vista da exposição, documento fotográfico característico de arquivos de
museus. Como resultado deste levantamento preliminar, encontramos cerca de 380 fotografias
possivelmente procedentes de exposições de fotografia realizadas pelo MASP, entre 1947 e
1989, das quais 133 são provenientes da exposição Grande São Paulo/76. No entanto, para
atribuir as procedências exatas das fotos e as devidas autorias seria preciso ainda uma
investigação mais profunda, que contemplasse o exame das informações contidas nos versos
583
A pandemia da Covid-19 que abateu o mundo em 2020, também interrompeu a pesquisa que a autora vinha
realizando junto aos Arquivos do museu, de cruzamento dos dados levantados entre os diferentes conjuntos do
acervo arquivístico da instituição. Esta verificação inicial não teria sido possível sem a colaboração da equipe do
Centro de Pesquisa do MASP, que enviou arquivos digitalizados das fotografias contidas nas pastas do Arquivo
Fotográfico via e-mail para a autora. Assim como o envio dos arquivos digitais só foi possível porque haviam
reproduções digitais das fotografias disponíveis, resultado do trabalho de arquivistas e documentalista da equipe
do Centro de Pesquisa do MASP.
232
de cada uma, por exemplo, entre outras ações que não foram possíveis tendo em vista o
fechamento do museu devido à pandemia de Covid-19. Vale, todavia, registrar mais estas pistas
que podem nos ajudar a aprofundar a intrincada história dos acervos do MASP.
As interações entre o fotográfico e o arquivo são investigadas por Ruth Rosengarten no livro
Between Memory and Document: The Archival Turn in Contemporary Art584, no qual ela
compreende o arquivo enquanto lugar privilegiado de acumulação e organização objetiva do
conhecimento histórico, e ao mesmo tempo da memória pessoal. A autora questiona a
neutralidade dos arquivos pois, segundo ela, os sistemas de organização de registros e
documentos carregam consigo valores dos estados, instituições ou simplesmente da
subjetividade dos indivíduos que os produzem e abrigam, que conferem uma ordem específica
aos fatos e eventos.
Tal posicionamento parece ter ressonância com a análise empreendida por Rosalind Krauss em
Os espaços discursivos da fotografia585, no qual a autora interpela o deslocamento de
fotografias de arquivo para o campo do discurso estético. Este trânsito, de acordo com Krauss,
vinculou fotografias produzidas no século XIX, a princípio feitas para análises topográficas, às
categorias privilegiadas da arte moderna como autor, obra e gênero e, consequentemente, fez
com que adentrassem os espaços de exposição de arte. Se pensarmos que este conjunto de
fotografias originárias das exposições do MASP, fez o caminho contrário daquele descrito por
Rosalind Krauss, ou seja, migraram dos espaços de exposição ao arquivo, é possível apontar
para a diluição das categorias de autor, obra e gênero em meio à grande massa documental do
Arquivo. O resultado desse processo não é de pouca relevância, tendo em vista que promoveu
o apagamento da fotografia na história da constituição da coleção de obras de arte do MASP.
A partir de 2015, o MASP estabeleceu como premissa o olhar crítico para a constituição de sua
coleção de obras de arte, o qual é fundamentalmente baseado nas chamadas obras-primas da
história da arte ocidental e, em certa medida, vem tentando problematizá-lo. O museu adotou
grandes ciclos de exposições temáticas cujo intuito seria oferecer contrapontos às narrativas
oficiais da história da arte hegemônica. Para tanto, foram realizados seminários e publicações,
respectivamente anteriores e concomitantes às exposições, que tinham como objetivo embasar
as revisões historiográficas aplicadas nas mostras, e abrir o campo para novas narrativas. No
584
ROSENGARTEN, Ruth. Between Memory and Document: The Archival Turn in Contemporary Art. Lisboa:
Museu Coleção Berardo. Digital book, 2012, p. 1-43.
585
KRAUSS, Rosalind. Os espaços discursivos da fotografia. In: KRAUSS, Rosalind. O fotográfico.
Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 40-59.
233
ano de 2018, em parceria com a Afterall - centro de estudos e publicações da University of the
Arts de Londres, dedicado à arte contemporânea e à história das exposições -, o MASP realizou
o primeiro seminário sobre o tema arte e descolonização que se desdobrou em uma coletânea
de artigos586.
Em seu livro Along the Archival Arain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense, a
antropóloga Ann Laura Stoler, a partir da análise da coleção arquivística da Dutch Colonial
Archives, faz apontamentos sobre a acessibilidade ou inacessibilidade dos documentos de
arquivo e assinala que a “inacessibilidade tem mais a ver com os princípios que organizam a
586
A coletânea contou ao todo com 19 artigos publicados entre 2019 e 2020. Disponível em:
https://masp.org.br/arte-e-descolonizacao acesso em: 13/07/2020.
587
COCOTLE, Brenda Caro. Nós prometemos descolonizar o museu: uma revisão crítica da política museal
contemporânea. São Paulo: MASP Afterall, p. 1-11, 2019. Disponível em:
https://assets.masp.org.br/uploads/temp/temp-X87a1s0ahKuQghS3VJ4D.pdf acesso em 13/07/2020.
234
governança”588 do que por documentos mal conservados, instalações ruins ou arquivistas
incompetentes. Segundo a autora, o ponto chave para compreendermos o senso e a razão
colonial que dá ordem às coisas é “acertar as contas com o passado”589. Neste sentido, convoca
as instituições à ação no tempo presente para lidar com as contradições do passado.
Ao chegarmos no final desta dissertação nos compete fazer um balanço da pesquisa realizada.
Não foram poucos os desafios devido à complexidade dos processos suscitados pela
assimilação da fotografia em museus de arte, tendo em vista a escassez de estudos acerca de
suas implicações em nosso contexto. Neste sentido, este texto é resultado de meu esforço e de
minhas limitações em sua compreensão. Ao mesmo tempo, é fruto de minhas inquietações
acerca do tema, que conecta museus de arte, fotografia, arquivo e memória.
A pandemia de Covid-19 que abateu o mundo em março de 2020, também teve consequências
para esta dissertação. O fechamento de museus, bibliotecas, arquivos acarretou tanto na perda
de contato com a fonte principal da pesquisa quanto o acesso à bibliografia utilizada como
referencial teórico. Diante deste cenário, foram necessárias estratégias para a finalização da
pesquisa e da dissertação. O aproveitamento dos dados levantados no Arquivo Histórico do
MASP está expresso neste texto. Recorremos ainda a textos digitalizados e a websites oficiais
que mostraram-se de suma importância no contexto do isolamento necessário para o
enfrentamento da pandemia. Destaco ainda as trocas fundamentais do grupo de estudos
formado pela Profa. Dra. Helouise Costa durante o ano de 2020, integrado por seus orientandos
de mestrado e doutorado. Destaco ainda a colaboração da equipe do Centro de Pesquisa do
MASP com o envio de arquivos digitais e a entrevista gentilmente cedida por Ivani Di Grazia
Costa.
588
STOLER, Ann Laura. Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense,
Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 09.
589
Ibid., p. 09.
235
realização de 56 exposições e eventos voltados à fotografia, e 102 ao longo dos anos 1980.
Fotógrafos profissionais, entre os quais os advindos do campo do fotojornalismo, tiveram lugar
assegurado na programação do museu. As atividades editoriais dos seus fundadores apontam
para uma chave importante para o entendimento da complexa relação do MASP com a
fotografia.
Quanto à atuação de Claudia Andujar e George Love no MASP no início dos anos 1970, a
bibliografia indicava tratar-se de um período importante e bastante citado na carreira de ambos,
no entanto, pouco se sabia da real dimensão das contribuições de ambos com o museu e para a
formação de novas gerações de fotógrafos. A recuperação das exposições e atividades das quais
participaram, seja como artistas, curadores ou professores, foi possível apenas através da
investigação minuciosa dos vestígios encontrados no Arquivo do MASP e a recombinação de
suas informações, pulverizadas entre pastas não necessariamente vinculadas a elas. A
divulgação mais ampla das imagens produzidas por Claudia na época, também nos ajudou a
compreender as pesquisas e buscas poéticas compartilhadas entre ela e George Love. As
investigações com novos filmes e equipamentos de exibição de fotografias, mobilizaram
236
técnicas que convergem os campos do fotográfico, do cinema e das artes visuais, o que os
alinha às premissas da arte contemporânea, bem como apontam para um momento de inflexão
para a condição da arte como fotografia. Durante os seis anos que estiveram casados
oficialmente, Claudia e George parecem ter amadurecido suas produções conjuntamente,
mesmo mantendo abordagens diversas. Compartilharam referências e a compreensão do fazer
artístico como busca de si.
Ao mesmo tempo, percebemos que este tipo de prática artística híbrida mobilizada pelos
audiovisuais de imagens fixas em sincronia com som esteve na maioria das vezes circunscrita
a propostas didáticas ou históricas no MASP. Os discursos veiculados nas exposições,
alinhados a ideais ufanistas e autoritários, fizeram com que os audiovisuais reforçassem
estereótipos acerca da população indígena e das noções de família. A adaptabilidade da
linguagem fotográfica a discursos aos quais é submetida atribuiu às imagens significados que
só começaram a ser revertidos anos depois com a publicação de Amazônia. No entanto, o vigor
da censura não permitiu que o livro circulasse com o texto que denunciava a situação de
exploração do território. Compreender o livro em um panorama ampliado das criações
conjuntas de Love e Andujar, nos permite vislumbrar os tipos de imagens que estiveram
presentes em seus audiovisuais e também nos dá acesso aos contextos sociais e políticos em
que circularam.
Se nas primeiras exposições, Andujar e Love, a princípio, ocuparam espaços diferentes dentro
do museu, notamos que a cada nova proposta passam a trabalhar como uma dupla,
corroborando com nossa hipótese. O audiovisual elaborado para a exposição A Família
Brasileira teve colaboração de Maureen Bisilliat, parceira da dupla também na revista
Realidade. As informações da imprensa da época nos permitiram concluir que o trio trabalhou
em laboratório as fotografias coletadas para a mostra por meio da utilização de filtros e recortes.
Além disso, sincronizaram as imagens com sons de uma conversa quase incompreensível. A
sobreposição dessas novas camadas parece refletir as declarações de George Love sobre o seu
intuito de materializar uma crítica ao sistema patriarcal. Já no audiovisual O homem da Hileia,
observamos a atuação conjunta da dupla nas tomadas de decisão sobre a montagem, ainda que
desempenhassem diferentes funções. Enquanto a autoria das imagens e a sequência do
audiovisual é realizada por Andujar, a ambientação com os sons e a parte mais tecnológica da
montagem ficam por conta de Love. Neste sentido, parece oportuno retomarmos as afirmações
de Christopher Phillips ao refletir sobre os estudos de design de exposições de Hebert Bayer
que se mostraram “facilmente adaptáveis a ambientes e fins muito diferentes” ao serem
237
aplicados pelo MoMA. Podemos concluir que processo semelhante ocorreu com os
audiovisuais de Love e Andujar, de forma mais contundente em O homem da Hileia.
Por meio da justaposição dos registros do Arquivo do MASP sobre os cursos organizados por
Claudia e George, foi possível identificar de forma mais aprofundada as suas referências e as
produções com as quais estavam dialogando. Por mais que suas pesquisas tenham chegado em
lugares de hibridação entre práticas artísticas, neste ponto é relevante ressaltar o pertencimento
de ambos ao campo do fotográfico. Eles divulgaram produções de fotógrafos, em sua maioria
estadunidenses, que lhes serviram de inspiração e com os quais em alguns casos conviveram,
visto os trânsitos da dupla entre São Paulo e Nova York. Nomes como Robert Frank, Nathan
Lyon, Syl Labrot, Minor White, Eugene Smith, Paul Caponigro, Henri Cartier-Bresson revelam
as suas referências com forte valorização da expressão autoral, atenção especial para produções
abstratas e experimentais, além de manterem-se vinculados a um viés mais documental.
Após o término do relacionamento amoroso, Claudia e George ainda atuaram como uma dupla
artística na elaboração do livro de fotografias Amazônia. A divisão de funções e as visões
complementares podem ser identificadas na autoria das imagens e nos papéis desempenhados
por ambos. O livro é fortemente marcado pelos experimentalismos visuais característicos das
238
edições de Love, assim como os recursos de espelhamento e utilização de sobras do processo
fotográfico dentro das sequências visuais. Ao passo que o apuro técnico na captação de imagens
em baixa velocidade e as sobreposições de camadas, fazem com que as imagens de Andujar
reflitam as pesquisas que vinha desenvolvendo sobre a cosmovisão Yanomami e revelem
instâncias da ordem do invisível. A publicação do livro consiste em um marco não apenas por
tratar-se de uma das poucas evidências que levam a assinatura dos dois em conjunto, mas
porque determina o fim de suas colaborações artísticas.
O estudo de caso da dupla, Claudia Andujar e George Love, revela uma assimilação assimétrica
de suas contribuições para a fotografia brasileira no contexto atual. Muitos fatores parecem
contribuir para tal situação. Acreditamos que o primeiro deles se deve ao fato de Andujar ter
atingido longevidade suficiente para trabalhar artisticamente suas imagens a partir do arquivo
pessoal que constituiu ao longo de sua trajetória. A fatalidade da morte prematura de George
Love e a localização de seu arquivo pessoal na University of North Carolina em Charlotte são
fatores que também contribuem para a condição de quase desconhecimento de sua produção,
ao menos em círculos sociais mais amplos. George é reconhecido como fotojornalista arrojado
nos meios especializados, no entanto, suas contribuições no campo das artes visuais são pouco
abordadas. Foi, em grande medida, a fim de recuperá-las e estimular seu enquadramento nesta
chave que atuamos.
As fontes consultadas foram esclarecedoras das instâncias de legitimação pelas quais a obra de
Claudia Andujar passou durante sua vida. Após frequentar o circuito de arte entre as décadas
239
de 1960 e 1970, período no qual notamos uma intensa mobilização por parte dela em prol do
reconhecimento artístico de sua produção, o fato de ter abandonado a carreira artística fez com
que suas imagens voltassem a circular para um público mais amplo apenas tardiamente.
Identificamos esse processo principalmente a partir da XXIV Bienal Internacional de São
Paulo, em 1998, e mais assiduamente a partir de 2003, quando recebeu prêmio para organização
de seu arquivo pessoal. No catálogo da mostra A vulnerabilidade do ser realizada pela
Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2005, o curador Diógenes Moura intitula seu texto de
O dia em que Claudia Andujar abriu sua gaveta, em referência ao longo período que a artista
não mostrava seu arquivo. As imagens de Andujar participaram de muitas mostras nacionais e
internacionais. Sua última exposição Claudia Andujar - A luta Yanomami, encerrou em maio
de 2022 sua itinerância por cinco países europeus. O audiovisual Genocídio do Yanomami,
morte do Brasil foi remontado como parte integrante da mostra.
Por fim, cabe-nos comentar acerca da representação de povos indígenas no cenário atual e suas
interações com as artes visuais. A exposição Claudia Andujar - A luta Yanomami, foi
inaugurada pelo Instituto Moreira Salles de São Paulo em dezembro de 2018, poucos meses
após a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da república. Na mostra, como fio condutor da
narrativa, foi apresentado um paralelo entre a trajetória de Claudia e o histórico das lutas
indígenas por direito e reconhecimento de suas culturas e demarcação de seus territórios. De
fato, Andujar é figura importante neste processo, reconhecida pelas lideranças, haja vista o aval
de Davi Kopenawa para a exibição das imagens dos Yanomami. Esta autorização não é de
pouca importância, já que pela tradição de seu povo os vestígios de uma pessoa morta devem
ser destruídos. Segundo seus relatos, Kopenawa acredita nas imagens como meio de
interlocução com a sociedade branca, e entendemos o significado mais profundo deste
pensamento apenas através de seu livro A queda do céu. As imagens permeiam a cosmovisão
Yanomami, cada ser vivo tem seu duplo, ou sua imagem, correspondente aos nossos espíritos.
O xamã autoriza a circulação da imagem de seus parentes falecidos com o intuito de defender
os que permanecem vivos e as gerações futuras.
No contexto das criações artísticas nos nossos dias, observamos a vigorosa entrada de artistas
de origem indígena no circuito de arte contemporânea, com intuito específico de fazer da arte
instrumento de luta política. Tal ferramenta tem se mostrado essencial para conscientização de
setores mais amplos da sociedade acerca das violências empreendidas contra os povos
240
originários desde os primórdios do processo de colonização, e incentivadas pelo atual governo.
Em 2021, a curadora Naine Terena publicou um artigo na revista Zum590 intitulado Arte ativista,
no qual analisa a construção de debates políticos através da arte como forma de “defender
direitos e oferecer outras visões de mundo”591.
590
A revista Zum é vinculada ao núcleo de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles. No website
da revista é possível acessar parte dos artigos e ensaios por ela veiculados. Disponível em:
https://revistazum.com.br/ 12/01/2022.
591
TERENA, Naine. Arte ativista. Zum, nº 19, dezembro de 2020, p. 52.
592
Ibid., p. 54.
593
O projeto teve origem como um experimento elaborado pelo antropólogo Vincent Carelli em seu trabalho na
ONG Centro de Trabalho Indigenista (CIMI). Disponível em:
http://www.videonasaldeias.org.br/2009/vna.php?p=1 15/10/2022.
594
TERENA, Naine. Op. cit. 2020, p. 52.
595
Ibid., p. 52.
241
arquivos e museus de arte ainda operam baseados nas categorias estanques como autoria e
gênero, bem como constroem seus acervos a partir da posse legal, seja através de compra ou
doação. Neste ano de 2022, Claudia completou 91 anos e não deixará herdeiros legais. O que
inevitavelmente nos leva a questionar: para onde irão as imagens596 dos Yanomami? O que será
de suas memórias? Ou ainda, em uma produção como a sua é possível atribuir a autoria em
suas premissas tradicionais, isto é, como criação individual?597 Se nos dias atuais entendemos
as narrativas como arenas de disputa, assim também o são as memórias.
Ailton Krenak, em um dos eventos realizados pela itinerância da exposição Claudia Andujar -
A luta Yanomami no Rio de Janeiro, abriu sua palestra relatando uma conversa com Davi
Kopenawa na qual refletiam sobre o pensamento dos brancos. Segundo Krenak, Kopenawa
teria indagado não saber por que os brancos escrevem tantos livros, ao que ele respondeu: “deve
ser porque o pensamento deles é cheio de esquecimentos”598. Sobre a produção de Andujar,
Krenak salienta que suas fotografias refletem a maneira profunda com a qual Claudia opera a
câmera, já que esta “não é neutra”. Ao final, direciona sua fala à sociedade branca de maneira
geral convocando-nos a um compromisso com o tempo presente, para assim podermos estar
“diante de uma exposição como essa nos sentido contemporâneos dessa arte e não procurando
uma exposição de arte contemporânea”. Ao levarmos em consideração que entre as fotografias
expostas figuram imagens, muitas delas inéditas, que retratam as consequências do contato e o
genocídio perpetrado contra os Yanomami, é possível compreender a responsabilização à qual
Krenak nos impele a assumir.
Quanto ao Arquivo do MASP, as perguntas que formulamos no início desta pesquisa deram
origem a novas perguntas que ainda aguardam respostas, porém acreditamos que o
levantamento realizado para esta dissertação em busca do fotográfico, atravessando a coleção
de obras de arte e o arquivo a fim de estabelecer pontes entre suas informações, tenha
596
Utilizo a palavra imagem aqui no sentido atribuído por Davi Kopenawa.
597
Algumas semanas antes da entrega da versão corrigida desta dissertação, foi oficializada a transferência para
guarda permanente de seu arquivo pessoal para o Instituto Moreira Salles. O IMS vem desenvolvendo um
trabalho no sentido de aproximar a obra de Claudia a uma autoria coletiva, compartilhada com os Yanomami. A
última montagem da exposição Claudia Andujar - A luta Yanomami, realizada entre fevereiro e abril de 2023,
no centro cultural novairoquino The Shed, contou com a participação de obras cujas autorias são assinadas por
artistas Yanomami.
598
Roda de conversa realizada em 31 de agosto de 2019, com Renata Tupinambá e Ailton Krenak. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=bAJi-J-BCn8&ab_channel=imoreirasalles acesso em: 12/01/2022.
242
colaborado para o entendimento preliminar das particularidades do complexo processo de
assimilação da fotografia empreendido pela instituição. Salientamos, por fim, as
potencialidades do Arquivo Histórico do museu para novas recombinações por outras
perspectivas que possibilitem novos entendimentos e a construção de novas memórias sobre o
processo de assimilação da fotografia pelos museus de arte no Brasil.
243
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252
ANEXO
Ano Atividade
Exposição Amazônia
Curso de Fotografia
Curso de Fotografia
253
Exposição de fotos de Madalena Schwartz
Curso de Fotografia
Departamento de Fotografia
254
1980 Exposição de fotografias "Ilustrações para os diários de Kafka" de George Love
255
Exposição de fotografias: Marcio Scavone
256
Exposição "20 anos do Jornal da Tarde"
1987 Exposição "Society bits - fotografias mixadas com imagens de computação gráfica" de José Henrique Losa
Exposição de fotografias "Luz, câmera, Amsterdã " de Jacob Olie, Cas Oorthuys, Sergio Zalis
Exposição de fotografias comemorativas do centenário da morte de Vincent van Gogh de Paul Huf
257