Ética, Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Ética, direitos humanos e meio ambiente:


reflexões e pistas para uma educação
cidadã responsável e pacífica

Paulo César Nodari


Cleide Calgaro
Luiz Síveres
(Org.)

Ética, direitos humanos e meio ambiente 1


FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

Presidente:
Ambrósio Luiz Bonalume

Vice-Presidente:
Nelson Fábio Sbabo

UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

Reitor:
Evaldo Antonio Kuiava

Vice-Reitor e Pró-Reitor de Inovação e


Desenvolvimento Tecnológico:
Odacir Deonisio Graciolli

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação:


Nilda Stecanela

Pró-Reitor Acadêmico:
Marcelo Rossato

Diretor Administrativo:
Cesar Augusto Bernardi

Chefe de Gabinete:
Gelson Leonardo Rech

Coordenador da Educs:
Renato Henrichs

CONSELHO EDITORIAL DA EDUCS

Adir Ubaldo Rech (UCS)


Asdrubal Falavigna (UCS)
Cesar Augusto Bernardi (UCS)
Jayme Paviani (UCS)
Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS)
Marcia Maria Cappellano dos Santos (UCS)
Nilda Stecanela (UCS)
Paulo César Nodari (UCS) – presidente
Tânia Maris de Azevedo (UCS)

Ética, direitos humanos e meio ambiente 2


Ética, direitos humanos e meio ambiente:
reflexões e pistas para uma educação
cidadã responsável e pacífica

Organizadores
Paulo César Nodari
Possui graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade de Caxias do Sul (1991), graduação
em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1994), mestrado em Filosofia pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1998) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (2004), com período sanduíche na Universidade de Tübingen, Alemanha. Atualmente é professor
Adjunto III na Universidade de Caxias do Sul. Foi professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Caxias do Sul (PPGED-UCS). É professor no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Filosofia da
Universidade de Caxias do Sul (PPGFIL-UCS). É professor no Programa (Mestrado e Doutorado) de Pós-Graduação
em Direito da Universidade de Caxias do Sul (PPGDIR-UCS). Tem experiência nos seguintes temas: ética, liberdade,
direitos humanos, paz, antropologia, educação. De 02/2011 a 07/2011, Pós-Doutoramento, em Filosofia, em Bonn
(Alemanha).

Cleide Calgaro
Doutora em Ciências Sociais na linha de pesquisa “Atores Sociais, Políticas Públicas, Cidadania” (2013) pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Pós-Doutora em Filosofia (2015) e Pós-Doutoranda em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestra em Direito na linha de pesquisa “Direito
Ambiental e Biodireito” (2006) e Mestra em Filosofia na linha de pesquisa “Problemas Interdisciplinares de Ética”
(2015) ambos pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Bacharela em Direito (2001) e Bacharela em Filosofia pela
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Professora e pesquisadora no Mestrado e na Graduação em Direito da
Universidade de Caxias do Sul. É vice-líder do Grupo de Pesquisa “Metamorfose Jurídica”, vinculado ao Centro de
Ciências Jurídicas e Mestrado em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Também atua no Observatório
Cultura de Paz, Direitos Humanos e Meio Ambiente na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em convênio com a
Universidade Católica de Brasília (UCB) e no CEDEUAM UNISALENTO – Centro Didattico Euroamericano sulle
Politiche Costituzionali na Università del Salento-Itália. Desenvolve pesquisa a partir de um viés interdisciplinar nas
áreas de Direito, Ciências Sociais e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Direitos Fundamentais;
Democracia; Socioambientalismo; Meio Ambiente; Relação de Consumo; Hiperconsumo; Filosofia Política e Social.

Luiz Síveres
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paran. Especialista em Aprendizagem cooperativa e
tecnologias educacionais pela Universidade Católica de Brasília. Especialista em Psicoterapia Junguiana pela
Faculdade de Saúde de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília. Doutor em
Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e Pós-Doutorado em Educação: Psicologia da Educação
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor dos livros: Encontros e diálogos: pedagogia da presença,
proximidade e partida (2015); Universidade - Torre ou Sino? (2006); A dimensão humana do processo educacional
(2001); Organizador dos livros: Diálogo - Um princípio pedagógico (2016); A extensão universitária como princípio
de aprendizagem (2013); Processos de aprendizagem na extensão universitária (2012); Avaliação na educação
superior - distintos olhares (2007). Co-organizador dos livros: A formação psicossocial do professor - As
representações sociais no contexto educacional (2015); Há esperança, outro mundo é possível (2011);
Transcendendo fronteiras (2011); Ensaios sobre a justiça social (2009). Foi Pró-Reitor de Extensão, de Pesquisa e
Pós-Graduação e atualmente é Coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade
Católica de Brasília. Líder do Grupo de Pesquisa no CNPq: Comunidade Escolar - Encontros e Diálogos Educativos
(http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6922185706456896). Este grupo está vinculado à Linha de Pesquisa:
Dinâmica Curricular. Ensino e aprendizagem, por meio dos projetos de pesquisa: Pedagogia da presença,
proximidade e partida; Avaliação participativa na comunidade escolar: entre a regulação e a emancipação.

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© dos organizadores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Universidade de Caxias do Sul
UCS – BICE – Processamento Técnico

E84 Ética, direitos humanos e meio ambiente [recurso eletrônico] : reflexões


e pistas para uma educação cidadã responsável e pacífica / org.
Paulo César Nodari, Cleide Calgaro, Luiz Síveres. – Caxias do Sul, RS:
Educs, 2017.
Dados eletrônicos (1 arquivo).

ISBN 978-85-7061-853-5
Apresenta bibliografia.
Modo de acesso: World Wide Web.

1. Ética. 2. Direitos humanos. 3. Direitos fundamentais. 4. Meio


ambiente. 5. Cidadania. 6. Política pública. I. Nodari, Paulo César. II.
Calgaro, Cleide. III. Síveres, Luiz.
CDU 2.ed.: 17

Índice para o catálogo sistemático:

1. Ética 17
2. Direitos humanos 342.7
3. Direitos fundamentais 342.7
4. Meio ambiente 502
5. Cidadania 342.71
6. Política pública 304.4

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária


Paula Fernanda Fedatto Leal – CRB 10/2291

Direitos reservados à:

EDUCS – Editora da Universidade de Caxias do Sul


Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 – Bairro Petrópolis – CEP 95070-560 – Caxias do Sul – RS – Brasil
Ou: Caixa Postal 1352 – CEP 95020-972– Caxias do Sul – RS – Brasil
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Home Page: www.ucs.br – E-mail: educs@ucs.br

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Sumário

Apresentação ................................................................................................................ 7

Prefácio ............................................................................................................................ 9
Derecho, ética, medio ambiente
Juan Carlos Mansur Garda

1 O paradigma tecnocrático e a justiça intergeracional ........................... 12


Cristian Fabiani – Paulo César Nodari

2 Juventude: entre o preço do consumo e o valor do compromisso ...... 32


Luiz Síveres – Idalberto José das Neves Júnior

3 Leituras filosóficas da Laudato Si’ .................................................................. 51


Agemir Bavaresco

4 Cotas femininas nos parlamentos: uma discussão sobre o papel da


mulher na política e no mercado .................................................................... 67
Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia – Rochelle Cardoso Barth

5 A sociedade de consumo e a banalização do mal: a participação social


como instrumento de mudanças socioambientais ................................... 84
Agostinho Oli Koppe Pereira – Sandrine Araujo Santos – Henrique
Mioranza Koppe Pereira

6 O mercado e a virtude.......................................................................................108
Carlos Roberto Sabbi

7 A mediação como instrumento de promoção da cultura de paz na


solução dos conflitos socioambientais .......................................................124
Cristiane Velasque – Diego Coimbra

8 O direito fundamental à água e os conflitos ambientais no plano


internacional: um estudo de caso a partir do represamento do rio
Nilo na Etiópia e seus desdobramentos socioambientais ....................144
Giovani Orso Borile – Cleide Calgaro – Clauderson Piazzetta

9 Políticas públicas e gestão ambiental integrada: o papel do poder


público e do sistema político na preservação ambiental .....................159
Jamile Brunie Biehl – Luciana Scur

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10 Quem precisa de paz? um debate sobre ética, moral e direitos
humanos ............................................................................................................180
Eduardo de Quadros Bueno – Julice Salvagni

11 Plano Diretor e áreas institucionais: questão de bem comum .......196


Master Plan and institutional areas: common good question
Larissa Comin – Nivaldo Comin

12 Direitos humanos e cultura de paz no meio ambiente carcerário


brasileiro ...........................................................................................................211
Magno Federici Gomes – Cidângelo Lemos Galvão Penna

13 Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino: visões de ética, direito e


política medieval .............................................................................................236
Mateus Salvadori – Gabriel Guilherme Frigo

14 O “controle penal” sob o olhar da cultura associada à justiça


restaurativa ......................................................................................................271
Mauro Gaglietti – Jaime Roberto Amaral dos Santos

15 A fiscalização da cota de aprendizes em prol do direito humano à


educação e do combate à violência e a exploração do trabalho
infantil ................................................................................................................297
Tadeu Matos Guterres Martins – Cheila Aparecida Oliveira

16 Ética e psicanálise: o sofrimento do homem moderno e o apelo a


uma nova ética ..................................................................................................321
Camila Scheifler Lang

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Apresentação

Este livro, coletânea, que se apresenta à comunidade científica com o


título: Ética, direitos humanos e meio ambiente: reflexões e pistas para
uma educação cidadã responsável e pacífica, possui vínculo direto com as
pesquisas que estão sendo desenvolvidas no Núcleo de Inovação e
Desenvolvimento (NID): Observatório de Cultura de Paz, Direitos Humanos e
Meio Ambiente, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), e no Programa de
Pós-Graduação em Direito (Mestrado), da Universidade de Caxias do Sul
(PPGDIR-UCS), nas linhas de pesquisa: “Ética e direitos humanos”,
“Cidadania, meio ambiente e sustentabilidade”, do NID, e “Direito Ambiental e
Novos Direitos”, do PPGDIR.
O escopo desta publicação é apresentar à comunidade científica
estudos, ensaios teóricos, debates conceituais sobre o estado da arte
referente à temática estudada na pesquisa referida, possibilitando reflexões
acerca de diversos temas, tais como: ética, meio ambiente e direitos
humanos, novos direitos e cultura de paz. O livro não tem o intento, primeiro,
de apresentar resultados conclusivos de pesquisas, dado que muitas das
quais não se encontram ainda em estágio de conclusão. Trata-se, antes e
muito mais, de apresentar reflexões e argumentos sobre a temática de
pesquisadores renomados de toda a sociedade brasileira e internacional. O
grupo de pesquisadores sentiu a necessidade de juntar, numa obra, opiniões
e entendimentos de pesquisadores, de distintas instituições nacionais e
internacionais, sobre o tema pesquisado, possibilitando, assim, a ampliação
das discussões sobre questões de ética, cultura da paz, meio ambiente e
direitos humanos, perfazendo, por sua vez, uma análise multidisciplinar, ao
buscar juntar áreas, tais como: Direito, Sociologia, Filosofia, Educação, entre
outras.
Destaca-se, ainda, nesta obra, a contribuição de tantas pessoas
envolvidas na pesquisa destes temas afins, tanto de discentes de bolsas de
iniciação científica, quanto de mestrandos, mestres, doutorandos, doutores e
pós-doutores. Esse é um momento muito especial e importante, uma vez que
o conhecimento pesquisado é socializado à comunidade acadêmica e

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científica, a fim de que as reflexões envolvidas no tema de investigação seja
contributo para a comunidade acadêmica e científica.
Conforme se poderá notar, respectivamente, tanto pelos títulos dos
capítulos, como pelo conteúdo desenvolvido nas reflexões, todas as
contribuições estão articuladas em torno do tema central: ética, meio
ambiente e direitos humanos, e buscam cotejamento com o Direito, a
Filosofia, a Sociologia e a Educação, buscando, por meio de pontos comuns, a
saber: ética, meio ambiente, direitos humanos, cultura de paz, a revisão
crítica não só da bibliografia, como também da postura social do cidadão
enquanto ser pertencente a uma sociedade que busca o rompimento com
paradigmas sociais vigentes que corrompem a sociedade, já de bem longa
data. Pauta-se a busca de uma sociedade que seja mais justa, solidária e
fraterna, visando, por conseguinte, a paz e a cooperação entre os povos.
Espera-se, com a presente obra, oferecer à comunidade acadêmica e
científica material crítico sobre o tema da pesquisa. Material esse que,
segundo nosso parecer, pode ser muito adequado para abrir novos
horizontes à discussão e ao debate filosófico, jurídico, social, educacional,
capaz de oferecer análise crítica para o fomento e o desenvolvimento de
reflexões, atitudes, condutas e normas capazes de apresentar a convivência e
a harmonização dos interesses e conflitos entre os povos na busca e na
efetivação da paz, de uma ética e moral pautadas na construção de uma
sociedade mais justa, responsável e cidadã.

Organizadores

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Prefácio
Derecho, ética, medio ambiente

Juan Carlos Mansur Garda*


(ITAM)

El siglo XXI necesita de la creatividad e inteligencia de comunidades


orientadas en valores morales y trascendentes que sepan hacer frente y
resolver los problemas que ha heredado de los siglos que le preceden. Ante
un complejo siglo XX, que se vio empañado por la pérdida de sentido y el
abandono de toda ideología, tras ver sucumbir los sueños de la Modernidad,
nos encontramos hoy día en la necesidad de dar a luz los valores de los que
está preñada la humanidad, que nos permitan vivir en un mundo mejor. De
ahí la necesidad de reencontrar un orden y ensayar propuestas que permitan
resolver los problemas que tanto nos aquejan. Así, ante el derrumbe en el
siglo XX de los metarelatos y de la fe en el “progreso” científico, tecnológico y
económico y del abandono a la creencia del Estado como rector ideal, garante
de la libertad y del bienestar de la humanidad, nos encontramos en un siglo
que manifiesta una vuelta a la toma de conciencia de los valores y del respeto
a las personas y también a la naturaleza. De alguna manera en el siglo XXI
asistimos a un momento en que la humanidad busca reencontrar un camino
de esperanza y sentido.
Ante un mundo que parece estar regido cada vez más por un sistema
político y económico centrados (a niveles a veces casi obsesivos) en el
crecimiento económico, levantan la voz intelectuales de todos los campos de
estudio, para denunciar la carencia de valores que rigen las actuales formas
de organización en los procesos de producción y los valores que deben seguir
los Estados, la economía y la sociedad para lograr un mundo más feliz, y
buscan mediante sus planteamientos teóricos y acciones prácticas, liberar a
la población mundial de la explotación. Frente a una sociedad que parece

*Doutor em Filosofia. Professor e pesquisador no Instituto Tecnológico Autónomo de México


(ITAM).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 9


seducida por la aparición del nuevo ídolo llamado “consumismo” y de la
enajenación del actual ritmo de vida y de trabajo que conduce a los seres
humanos a una “rapidación”, surgen novedosas y fundamentadas propuestas
filosóficas, económicas, políticas y tecnológicas que buscan liberar al sujeto
del yugo de la “eficiencia” y proponer una recuperación de la persona más
allá de la propaganda que le ofrece la economía del consumo y de la
obsolescencia programada que han acrecentado el nivel de explotación de la
tierra a niveles nunca antes vistos.
Así pues, el optimismo que busca expresarse en estas líneas, no es un
optimismo ingenuo que trata de cerrar los ojos ante la magnitud de
problemas que vivimos hoy día, antes bien busca hacer frente a los
problemas con la esperanza de encontrar soluciones reales, pues si en algo
resulta atractivo este siglo frente a la casi inminente crisis global que
presenciamos hoy día, es porque, tanto la devastación ecológica, los cambios
atribuidos al calentamiento global, así como la explotación de la humanidad,
producto de nuestros sistemas políticos y económicos, han motivado un
interés creciente en todas las esferas del saber y de la acción a frenar los
modelos actuales de desarrollo. No podría ser de otra manera, los problemas
que afrontamos hoy día en las esferas de la economía, la política y la ecología
son de tal complejidad que necesitan de la investigación interdisciplinar para
lograr su solución. Esta problemática obliga a pensar de una manera
profunda en la persona, la sociedad y sus medios de producción, pero
también a comprender la naturaleza y la forma como nos relacionamos con
ella y a repensar la forma como se plantea la felicidad y los máximos ideales
del ser humano.
Pensar en los derechos y deberes de las personas involucra
necesariamente un cuidado del medio ambiente en que vivimos por ello,
dentro de los discursos del siglo XXI surgen ideas como el cooperativismo y
formas de producción que respeten a la persona y al medio ambiente, se
proponen economías del “decrecimiento”, y se ejercen normas
internacionales de protección a los trabajadores y también al medio
ambiente, detrás de todas ellas hay una noción en boga, a saber, la “ética del
cuidado”. Por esto, para poder llegar a formular las soluciones que aquejan al
siglo XXI es necesario pensar en una transformación de la persona desde la

Ética, direitos humanos e meio ambiente 10


concepción de sí mismo y sus actividades, que le permitan entenderse y vivir
de otra forma en el mundo y su medio ambiente. Frente a una visión de
explotación tanto de los seres humanos como de la naturaleza, se busca una
ética del respeto, del cuidado y de recuperar el sentido de la persona. En un
mundo donde la verdad queda supeditada a la manipulación, donde el bien es
subordinado al provecho y donde la búsqueda paciente de la belleza se
denigra para dejarse llevar por la rápida seducción narcisita que anula el
sentido simbólico del mundo y de la persona, han levantado la voz un número
igualmente importante de habitantes de este planeta que saben que toda
búsqueda de la verdad conlleva una vida auténtica y coherente, que
comprenden que el ejercicio del bien sólo se entiende desde la caridad y de la
exigencia de sus derechos y del cumplimiento de sus deberes, y que se
esmeran por lograr el auténtico embellecimiento y ennoblecimiento de la
persona en armonía con el embellecimiento y el ennoblecimiento del mundo
que lo rodea.
Es aquí donde resulta necesaria la intervención de la Filosofía, de la
Ética y de una legislación apropiada frente a este crecimiento desmesurado y
por momentos acéfalo de la economía, la ciencia y la tecnología, que permitan
orientarlas a su vocación originaria, a saber: contribuir al saber y a lograr los
más altos fines de las comunidades, pues un crecimiento científico, técnico y
económico debe ir acompañado de una orientación social y moral, de la
justicia y el compromiso social que abonen al bien común y la paz entre los
seres humanos, no únicamente para el hombre, sino para el ambiente natural
en el que se desarrolla, sólo así es posible orientar al ser humano a su
correcta forma de estar en el mundo, de habitarlo.

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1
O paradigma tecnocrático e a justiça intergeracional
Cristian Fabiani*
Paulo César Nodari**

Em maio de 2015, o Papa Francisco apresentou ao mundo a Carta


Encíclica intitulada: Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum. Nela, o Papa
inicia recordando um dos problemas mais prementes e impactantes da
atualidade, a saber, o problema ecológico. Francisco vai muito além da
apresentação do problema enquanto tal, denunciando, por sua vez, tantas
outras dificuldades ligadas ao problema ecológico, tais como: o avanço
tecnológico, a crise antropológica e a cultura do descarte reinante, sobretudo,
nos últimos dois quarteis do século XX, e, neste primeiro do século XXI. Nesse
sentido, a Carta Encíclica inicia apresentando o grande regente da vida humana
na atualidade, a saber, o paradigma tecnocrático. Trata-se de uma dimensão tão
paradigmática, a ponto de permear a vida do ser humano de tal forma que, por
vezes ou quase sempre, ele não se dá conta de tal situação e até, por assim
dizer, cria uma dependência, a ponto de ele chegar a agir sem a percepção e
reflexão acerca da repercussão das dependências, dos aprisionamentos e,
porventura, às vezes, até dos possíveis danos que reverberam em sua vida.
Situados no contexto e na perspectiva em que o documento papal
procura assentar-se, a pergunta a ser posta sobre a mesa para discussão é
acerca das condições de vida dos seres vivos na Casa Comum, no Planeta Terra,
tanto dos seres humanos, como também dos demais seres vivos. Ou seja, em
última instância, trata-se de pensar as possibilidades da permanência da vida

* Acadêmico do curso de Filosofia da UCS.


**Possui graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade de Caxias do
Sul (1991), graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (1994), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1998) e
doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2004),
com período sanduíche na Universidade de Tübingen, Alemanha. Atualmente, é professor
adjunto III na Universidade de Caxias do Sul. Foi professor no Programa de Pós-Graduação
em Educação, da Universidade de Caxias do Sul (PPGED-UCS). É professor no Programa de
Pós-Graduação (Mestrado) em Filosofia, da Universidade de Caxias do Sul (PPGFIL-UCS). É
professor no Programa (Mestrado e Doutorado) de Pós-Graduação em Direito, da
Universidade de Caxias do Sul (PPGDIR-UCS). Tem experiência nos seguintes temas: ética,
liberdade, direitos humanos, paz, antropologia, educação. De 2/2011 a 7/2011, Pós-
Doutoramento, em Filosofia, em Bonn (Alemanha).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 12


das atuais e das futuras gerações. Para tanto, o intento desta reflexão não é
analisar, detalhadamente, o conteúdo da Carta Encíclica. Quer-se, na verdade,
refletir acerca de alguns pontos que tangem o conjunto de questões
condizentes ao problema intergeracional. A reflexão seguirá três momentos de
análise: primeiro, aborda-se o paradigma tecnocrático, segundo, o problema
antropológico e, por fim, a questão jurídica e de responsabilidade sobre as
futuras gerações. Os principais referenciais teóricos, além da Carta Encíclica do
Papa Francisco, são Hans Jonas, Romano Guardini e Edith Brown Weiss.

O paradigma tecnocrático

A tecnocracia é um sistema de organização política que se desenrolou no


setor governamental, baseado na supremacia dos técnicos ou tecnocratas. Tal
sistema está presente em praticamente todos os países e de forma, muito
provavelmente, irreversível, e isso, porque, por sim ou por não, tal modo
organizacional permeia todas as formas de relação e conexão no atual
contexto internacional de economia de mercado, dominado e acompanhado
pela ideia voraz da globalização do poder, de posse e de consumo, ocasionando
uma total transformação de ordem política, econômica, social e cultural no
mundo. A respeito do paradigma tecnocrático poder-se-ia (ousar) afirmar que
ele percebe e visualiza cada ser humano como um efetivo consumidor e
usufruidor dos produtos pensados e produzidos para habilitar potenciais
individuais, que se encaixem e se insiram na lógica desenfreada do consumo,
sem levá-los a pensar nas razões e necessidades do consumo, nem nas
consequências do consumo sem limites e parâmetros e, tampouco, se os
beneficiados são todos ou apenas os assim denominados de inclusos no
processo.
Nessa perspectiva, Jonas, no primeiro capítulo do ensaio, O princípio
responsabilidade, apresenta a tecnologia como a vocação da humanidade. Ele
explana a ideia de que a técnica ultrapassou os objetivos que ela mesma havia
se proposto a assumir desde a Antiguidade. A técnica acompanhou a espécie
humana no transcorrer do tempo, mas, por mais paradoxal que pareça, a
humanidade enquanto tal não conseguiu acompanhar a técnica, ocasionando
processos díspares entre o poder da técnica, fruto da inteligência e ambição

Ética, direitos humanos e meio ambiente 13


humanas, e a ética da cultura, na perspectiva do acatamento e da acomodação
das invenções e inovações da tecnologia, nos diferentes e singulares ambientes
das sociedades humanas, de forma, inclusive, a desconcertar e desestruturar a
própria subjetividade humana, incutindo nela, de forma persuadida, a crença de
que a sua vocação também passa por um processo de superação, pois não se
sabe, exatamente, o que é necessário, o que é supérfluo. E, por consequência,
disso emerge na vida do ser humano a lógica do fazer sobrepondo-se à lógica
do ser. Jonas afirma acerca dessa concepção: “[...] o triunfo do homo faber
sobre o seu objeto externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo na
constituição interna do homo sapiens, do qual ele outrora costumava ser uma
parte servil.”1
A mudança apresenta a realidade do homem inserido no paradigma
tecnocrático. Pois, doravante, para que o homo sapiens tenha sucesso é
necessário que o homo faber tome o lugar central e primário em sua vida. Essa
tese faz com que o ser humano permaneça condicionado ao desenvolvimento
da técnica, que, por assim dizer, direcionará não apenas o seu presente, mas,
também, e sobremaneira, o seu futuro. Em sintonia com Jonas, o Papa
Francisco chama a atenção para um dos grandes problemas da humanidade, na
atualidade, subjacente ao paradigma tecnocrático. O ponto nevrálgico do afã do
excesso de poder, posto na qualidade do progresso tecnológico, pode vir a
transformar a técnica em ameaça e risco já às gerações atuais e muito mais às
futuras gerações. Ou seja, da tensão do arcabouço tecnocrático atual, como
também das possibilidades vindouras, emerge uma das preocupações fulcrais,
a saber, do problema da autonomia da técnica com relação à ética. Em outras
palavras, vislumbra-se um abismo quase intransponível entre as
possibilidades da técnica perante sua eficiência e rapidez e as lentas e múltiplas
reflexões éticas. A reflexão ética, nos dias atuais, marcada,
predominantemente, pela cientificização e tecnicização, não consegue
acompanhar o processo avançado das descobertas e possibilidades das novas
tecnologias e da ciência. Então, para melhor compreender a tensão e o abismo
supracitados, é urgente situar e localizar a técnica e a ciência nos parâmetros
atuais. A técnica

1 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2006. p. 43, grifos do autor.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 14


[...] é um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade
do homem. Nela exprime-se o domínio do espírito sobre a matéria. [...] A
técnica permite dominar a matéria, reduzir os riscos, poupar a fadiga,
melhorar suas condições de vida. Dá resposta à própria vocação do
trabalho humano: na técnica considerada como obra do gênio pessoal, o
homem reconhece-se a si mesmo e realiza a própria humanidade. A
técnica é o aspecto objetivo do agir humano, cuja origem e razão de ser
estão no elemento subjetivo: o homem que atua. Por isso aquela nunca é
simplesmente técnica; mas manifesta o homem e as suas aspirações ao
desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual
superação de certos condicionamentos materiais.2

O desenvolvimento tecnológico, considerado como poder de atuação, pode


induzir à ideia de autossuficiência da própria técnica. Segundo Guardini, a
ciência, enquanto captação racional do real, e a técnica, enquanto conjunto de
possibilidades, oportunizadas pela ciência, proporcionam à existência um
caráter novo, isto é, “o caráter do poder e do domínio em um sentido agudo”.3
Ou seja, o ser humano procura, a partir de sua inteligência, explicar os fatos e
atingir uma opinião fundamentada sem dependências de razões e verdades
prontas e absolutas, valorizando, sobretudo, o acontecimento enquanto
científico, técnico e empírico. Nessa perspectiva, “a técnica apresenta-se com
uma fisionomia ambígua”,4 podendo, ao mesmo tempo, ou ser propulsora da
vida e da humanidade ou destruidora do ser humano e de sua subjetividade, e,
quando tomada na perspectiva de “poder pelo poder”, isto é, no afã de
dominação, ela pode ser compreendida como “elemento de liberdade absoluta”,5
prescindindo de tudo, inclusive, dos limites aos quais poderiam estar impostos.
O ser humano pode estar adentrando uma cultura de horizonte
tecnocrático, utilitarista e de mentalidade tecnicista, não conseguindo ir além do
factível, e, por conseguinte, encerrando-se no imanente tangível. O paradigma
tecnocrático é tão dominante que se insere na cultura dos povos, de tal modo
que se torna, muito provavelmente, nos dias atuais, o elemento mais
determinante da multiplicidade cultural, capaz de fomentar mudanças muito

2 PAPA BENTO XVI. Encíclica Caritas in Veritate. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 126-127.
3 GUARDINI, Romano. El poder: un intento de orientacion. Madrid: Ediciones Guadarrama,
1963a. p. 68, tradução nossa.
4 PAPA BENTO XVI, op. cit., p. 127.
5 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 15


significativas no interior de cada uma das culturas. Deveras, o paradigma
tecnocrático procura incluir, com as mais variadas possibilidades, aquilo que
está ao seu alcance, sem esquecer-se de nada, permitindo “dominar mais
eficazmente a realidade fática, com a possibilidade de reforçar as exclusões
daqueles que não dominam este sistema”.6
Grosso modo, a economia mundial atual está baseada na lógica do lucro,
orientando-se, fundamentalmente, pelos interesses privados e para a lógica de
poder que possui muitos efeitos desagregadores à vida na “cidade do homem”.7
Nessa acepção de economia, cresce a compreensão da mesma como
autossuficiente e quase que exclusivamente focada no hiperconsumo,
tornando-se, por assim dizer, autônoma e independente das situações em que
se encontram as respectivas sociedades, e, por conseguinte, os seus membros.
Nesse modelo formatado de economia, trata-se, tanto quanto possível, de
repelir todo o tipo de influências e reflexões de caráter ético que se lhe possa
atribuir, impelindo o ser humano a usufruir de produtos criados enquanto
necessidade de produção e consumo dos que, incluídos no processo, se
encontram e lutam para não sair e para não serem excluídos do ciclo
determinado. Entretanto, esse modelo traz como uma de suas constatações mais
eloqüentes: a pouca consideração e compreensão do bem comum, porque este
é base para o desenvolvimento mais justo dos povos, tanto na dimensão ética,
quanto nas dimensões econômica e política, ainda que, segundo o Papa
Francisco, as exigências do bem comum derivem das condições sociais de cada
época e estão estreitamente conexas com o respeito e com a promoção
integral da pessoa e dos seus direitos fundamentais.8
Nessa perspectiva, o mercado, em si, rege-se pela justiça comutativa,
regulando as relações de trocas. Entretanto, se não forem consideradas a justiça
distributiva e a justiça social, dentro de um contexto político e social, que
valorize a solidariedade recíproca, o mercado “não consegue gerar a coesão
social de que necessita para bem funcionar.”9 Nesse sentido, é importante
recordar que a finalidade originária da economia “[...] consiste em gerenciar a

6 BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária. São Paulo: Ática, 1994. p. 19.
7 PAPA BENTO XVI, op. cit., 2009,p. 9.
8 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013, cap.

IV.
9 PAPA BENTO XVI, op. cit., 2009, p. 61.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 16


carência, e assegurar a satisfação de necessidades quantitativas vitais, em
propiciar os bens qualitativos e em realizar os desejos de cada um em
solidariedade com os desejos dos outros”.10 Com outras palavras, a lógica da
economia de mercado não pode ser deixada desconectada do bem comum, sob
o risco de consagrar uma humanidade cada vez mais desigual e injusta, pois
poderá dar-se a efetivação de uma sociedade alicerçada sobre os incluídos e os
excluídos. Logo, “[...] a atividade econômica não pode resolver todos os
problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há de
ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar
também, sobretudo, a comunidade política”.11
É pois urgente trabalhar não apenas com uma lógica positivista, mas
acrescer ao conceito de economia, dentre outros, os princípios da ética social,
os valores culturais da multiculturalidade das diferentes culturas,12 libertando-
as do estado de subculturas, procurando reduzir as correntes extremistas e
radicais que impedem as políticas de diálogo inclusivo e, além do mais, elevam
o abismo entre os denominados incluídos e os excluídos da economia de
mercado. Assim sendo, não obstante as dificuldades, a economia não pode ser
compreendida como algo ruim. A economia e suas implicações auxiliam o ser
humano a gerir o seu progresso, a formar um verdadeiro humanismo: “[...] de
per si o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar da prepotência do forte
sobre o débil. A sociedade não tem que se proteger do mercado como se o
desenvolvimento implicasse ipso facto a morte das relações autenticamente
humanas.”13
Trata-se, pois, de perceber que, sobremaneira, no decorrer do
desenvolvimento e progresso da sociedade moderna e contemporânea, o
mercado é meio pelo qual as relações humanas tomam forma e podem auxiliar
e modelar as configurações multiculturais, podendo ou não ocasionar o que se
poderia denominar de giro econômico. Compreende-se, assim, que o
paradigma tecnocrático, com o qual se iniciou a presente reflexão, permeia,
nos dias atuais, a vida de todos os seres humanos, tanto crianças, como jovens

10 BOFF, 1994, p. 21.


11 PAPA BENTO XVI, op. cit., 2009, p. 62, grifos do autor.
12 LOEWE, Daniel. Multiculturalismo e direitos culturais. Caxias do Sul: Educs, 2013.
13 PAPA BENTO XVI, 2009, p. 62, grifos do autor.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 17


e velhos, em praticamente todos os âmbitos e trâmites da sociedade,
exercendo, por conseguinte, seu domínio nas relações sociais, culturais,
políticas e econômicas da vida humana. Entrementes, ainda que a tarefa seja
difícil e complexa, talvez, nos prognósticos hodiernos, inglória, tão somente o
próprio ser humano pode estabelecer limites e oferecer a si mesmo, enquanto
humanidade, linhas e diretrizes para o desenvolvimento do aparato
tecnocrático à vida do ser humano na Terra.

O sujeito e a antropologia

O problema antropológico que se manifesta, no contexto do paradigma


tecnocrático, é o possível paradoxo que se apresenta entre, por um lado, as
vantagens e facilidade que esse paradigma pode oferecer e facilitar, mas, por
“ironia do destino”, por outro lado, a iminente deterioração da qualidade de vida
humana, tanto no âmbito físico como também no âmbito mental e espiritual,
ocasionando o que se pode denominar de uma espécie de crise antropológica.
Mas o que, de fato, teria ocasionado tal crise? Há teóricos que afirmam não ser
recente a crise do ser humano. A crise, para alguns, constitui-se desde há
muito, ou seja, desde que o ser humano é constituído enquanto ser humano.
Outros legitimam dar-se a crise no contexto bíblico do Gênesis, primeiro
capítulo. Afirma-se que o ser humano deve dominar a terra e o mar. E nessa
lógica de dominação está implicada a compreensão da natureza como domínio
e não como convivência e administração. O ser humano sente-se dono de tudo,
não mais impingido e constrangido por limites, ou seja, percebe-se podendo
desfrutar e beneficiar-se de tudo, sem dar-se conta de ser mais um e, muito
provavelmente, o mais responsável dentre os seres vivos. Bem, outros ainda
defendem a tese de que o início da chamada crise antropológica se dá com o
desenvolvimento do paradigma do antropocentrismo ou, então, do chamado
paradigma da consciência, ou ainda da subjetividade, especialmente, no
decorrer e no final do período renascentista e no período moderno, mais
especificamente, na modernidade enquanto projeto inacabado. Outros colocam
como referência importante o período da Revolução Industrial. Bem, o mais
importante, aqui, não é afirmar ser este ou aquele, exclusivamente, o
argumento e a causa principal para o início e o desenvolvimento da crise

Ética, direitos humanos e meio ambiente 18


antropológica, fonte da crise ecológica dos dias atuais, nas palavras do Papa
Francisco, na Encíclica, Laudato Si’.
A questão relevante é que, com a chegada da técnica na sociedade ou,
então, como Jonas salienta no subtítulo de seu livro: “ensaio de uma ética para
uma civilização tecnológica”,14 a antropologia ganha novo caráter, a saber,
muito mais instrumentalista e reducionista. O curioso é que essa chamada
crise existencial humana, nos dias atuais, vem acompanhada com algo novo e
diferente, jamais vivenciado como nos moldes e nas configurações hodiernas,
a saber, o poderoso aparato tecnológico que produz um caminho de progresso
cumulativo e, muito provavelmente, irreversível, segundo Jonas, ocasionando,
no que tange às relações humanas, fortes mudanças e questionamentos acerca
da própria garantia ou não da inviolabilidade da vida humana. E é, justamente,
dentro desse paradigma complexo do mundo contemporâneo que está inserido
o ser humano, apresentando-lhe constantemente dificuldades de encontrar-se,
seja consigo mesmo, seja com relação aos outros, ou ainda, com relação aos
demais seres vivos e com o mundo.
Diante dessa situação, segundo Guardini, para compreender o ser
humano enquanto tal é necessário entender o mundo em que ele está inserido
e, para tanto, é urgente assumir a reflexão sob três aspectos: a natureza, o
sujeito e a cultura. O ser humano enquanto tal não se sente mais submisso a
alguém ou a algo, seja Deus, seja a natureza, seja o transcendente. Ele se sente
livre mediante tudo o que percebe que possua uma forma maior que a sua.
Segundo Guardini, com o Renascimento, floresce, paulatina e
progressivamente, em sua consciência, uma regra, tornando-se, inclusive,
absoluta: ele precisa sentir-se e estar livre. O ser humano é capaz de separar-
se de tudo e pode chegar até a contrariar-se se algo lhe for anteposto e imposto
e que esteja fora de sua livre vontade. Trata-se, aqui, do que Guardini identifica
como sujeito, que se caracteriza pela personalidade. O ser humano
compreender-se como personalidade significa-lhe um novo nascimento que
vem por conta de sua autêntica e espontânea humanidade, que carrega em si a
existência. Afirma Guardini: “[...] a personalidade traz em si a lei da sua própria
existência. Exige ser compreendida a partir de si mesma e justifica a sua ação

14 JONAS, op. cit., 2006.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 19


pela sua própria força criadora. [...] A existência autêntica é aquela em que o
homem vive e age tendo a sua personalidade como fundamento último.”15
O ponto-chave da relação com a modernidade é que o ser humano, nessas
condições, se torna senhor de si mesmo e encerra-se no que se pode
denominar, de seu mundo, e sem muitas possibilidades, ou melhor, anseios de
abertura ao diálogo. Com esse fenômeno, a cultura sofre uma grande
transformação, na perspectiva em que ela procura transformar a existência da
natureza como obra sua. Segundo Guardini, é, exatamente, na Idade Moderna,
que
[...] nasce a técnica, conjunto de processos que permitem ao homem
prosseguir os seus fins. A ciência, a política, a economia, a arte, a
pedagogia, afastam-se cada vez mais conscientemente dos vínculos da Fé e
também de uma ética que impõe obrigações, e criam a sua autonomia a
partir da sua essência. Enquanto cada um destes domínios particulares se
fundamenta em si próprio, todos estão em princípio numa relação comum
que se constrói a partir deles e que ao mesmo tempo os suporta. É a
cultura, enquanto conjunto da obra do homem independente de Deus e da
sua Revelação.16

Ainda segundo Guardini, tem-se, por assim dizer, o entendimento de que


a cultura pode vir a tornar-se algo divinizado, isto é, trata-se da divinização do
ser humano. A técnica e a cientificidade empírica substituíram a fé no Deus da
Revelação, quanto muito se credita crédito racional na fé natural. O sujeito
torna-se senhor de si mesmo, transformando-se em um ser autossuficiente,
autorizando e legitimando, por sua vez, a técnica e a ciência. Por conseguinte,
também a economia, enquanto produtos da arte cultural criativa do homo
faber, como áreas afins, autônomas e autossuficientes, deixando-as blindadas
contra a sensibilidade, a fragilidade e a vulnerabilidade humanas. Como se
fossem, paradoxalmente falando, por um lado, obras da criatividade humana, e,
por outro lado, as armadilhas do próprio ser humano, enquanto vulnerável e
frágil. Justamente, por isso, deve-se impermeabilizá-las contra toda ameaça de
sensibilidade e atenção ao ser humano mais frágil, pobre e vulnerável. Cria-se,
assim, uma cultura do poder pelo poder, oferecendo ao próprio sujeito e autor
da obra uma espécie de “ignorância e imbecilidade” de conhecer, de fato, o

15 GUARDINI, Romano. O mundo e a pessoa. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1963b. p. 20.
16 GUARDINI, Romano. O fim da Idade Moderna. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 42-43.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 20


limite e o âmbito das consequências do “poder de poder”. Segundo Guardini,17 a
ciência moderna torna-se uma espécie de apologética do homem, senhor de si
mesmo e do mundo.
Entretanto, segundo Guardini, em confronto com a religião, a Idade
Moderna por aceitar tão somente o que a ciência prova com seus métodos, a fé
no Deus da Revelação não é mais aceita e Deus perde, por conseguinte, o seu
lugar. Mas, por ironia, quando Deus perde o seu lugar, a consequência mais
nefasta é a que vem, intrinsecamente, conecta: a de que o ser humano também
o perde. Quanto mais se perdem a busca e a capacidade de raciocinar sobre
Deus, mais se perdem a busca e a capacidade de encontrar o lugar do ser
humano no mundo. “Deus perde o seu lugar e com ele o homem perde o seu.”18
A perda do lugar de Deus desestrutura o ser humano e, por consequência, tudo
o que está no seu entorno. Análoga e metaforicamente, poder-se-ia afirmar
que as mesmas questões que a Idade Moderna propôs sistematizar a Deus, tais
como: onde está Deus agora, qual é o lugar de Deus, dentre outras, são,
inteiramente, aplicáveis ao ser humano: onde está o homem agora, qual é o
seu lugar, ou então, qual é a sua posição no cosmos, como se perguntou, por
exemplo, Scheler.19 E isso não é tudo, mas apenas uma parcela, pois, conforme
Guardini, a Idade Moderna esforçou-se muito para dar ao ser humano a
autonomia, mas esta não lhe deu espaço para ser o que o ser humano é, de
fato, ou seja, causou um movimento oposto à busca de si mesmo, afastando-o,
cada vez mais do centro de si mesmo, isto é, “do centro do Ser”.20 E, se não
bastasse, por um lado, tal processo provocou o esvaziamento da categoria de
ser humano, deixando-se obcecar e cegar pela elevação de sua categoria de “ser
criado” à condição de criador, a ponto de, nos dias atuais, perceber-se, dentre
outros, de acordo com Habermas, uma espécie de um novo encantamento por
parte do ser humano, agora, não mais com a natureza externa, mas com sua
própria “natureza interior”.21
Sem entrar mais especifica e detalhadamente nesta seara complexa,
basta, por ora, afirmar com o Papa Francisco que o ser humano corre o risco

17 Idem.
18 Ibidem, p. 44.
19 SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
20 GUARDINI, op. cit., 2000, p. 45.
21 HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 21


de sentir-se analisado e interpretado apenas a partir de elementos do plano
científico-demonstrativo, perdendo, por consequência, uma visão mais integral
de sua própria constituição. Isto é, o ser humano pode sentir-se perdendo a
motivação profunda que o impulsionava a partilhar com os outros a sua
experiência pessoal, seus afetos, e a sua individualidade, ou seja, acaba,
paulatinamente, sentindo-se perdido em sua “identidade” enquanto ser.22 Esse
aspecto, já há muito presente na cultura humana, com acento agudo, a partir,
sobremaneira, do período moderno, é muito bem articulado e tenaz de forma a
dar a impressão de ser parte intrínseca da cultura humana, capaz, inclusive, de
ludibriar, e, em muitos casos, obliterar a angústia produzida pelo
questionamento acerca do ser, dando-lhe, por sua vez, outra conotação, a saber,
a do “poder pelo poder”. E isso é mais delicado, quando o crescente poder do ser
humano, particularmente sobre a técnica, leva-o a uma “utilização falsa desse
poder, tanto no sentido de má como no sentido de destruidora”,23 uma vez que,
afinal de contas, o ser humano pode fazer uso do poder como ele quiser, porque
não há uma moral universal e leis universais que o limitem. Ter o poder em
mãos significa “ser senhor do que existe”,24 e isso não quer dizer que ele tenha
a capacidade de administrá-lo como poderia, ou então, deveria. Ademais, o
“homem da Idade Moderna não está preparado para assumir o crescimento
ilimitado do poder.”25
Nesse sentido, para exercer a responsabilidade e garantir a
inviolabilidade da vida, necessariamente, o poder que está “nas mãos” do ser
humano precisaria tornar-se uma questão moral. Afinal, ele possui poder de
escolha e quanto maior a sua liberdade, também, pode tornar-se maior, tanto a
possibilidade de fracasso como a responsabilidade pelas consequências e os
resultados da escolha e da ação. Logo, nessa escolha, quando feita de forma
consciente, precisam estar inclusos os motivos e a previsão de quaisquer
ações propostas, tornando, assim, um agir racional, direcionando-o para um
fim, isto é, para o bem comum de todos, podendo-se, então, afirmar ser
condizente à ação do ser humano apropriar-se e utilizar a técnica como

22 PAPA FRANCISCO. Encíclica Laudato Si’. São Paulo: Paulus; Loyola, 2015. p. 32.
23 GUARDINI, op. cit., 2000, p. 74.
24 Idem.
25 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 22


processo de crescimento e desenvolvimento integral e humano, estabelecendo
uma relação de solidariedade e comprometimento com o outro, na garantia dos
recursos naturais e culturais.

A justiça intergeracional

O conceito formal de justiça intergeracional é bastante recente. Porém,


muito provavelmente, poder-se-ia remontar a estudos passados e haveria
argumentos para afirmar ser um conceito mais antigo. Não é a presente
preocupação buscar as raízes ou possíveis raízes de tal conceito. Grosso modo,
pode-se sublinhar ser um tipo de preocupação, que busca refletir, proteger e
promover a vida de todas as espécies de seres vivos, ganhando força,
sobretudo, com o problema do esgotamento dos recursos que não são
renováveis, no Planeta Terra. Ela está presente e prevista, de início, em acordos
e em convenções internacionais, como é o caso da Declaração da Conferência
de Estocolmo, em 1972. Talvez, se possa afirmar que, nos primórdios de tal
discussão, a terminologia aproxima-se mais da justiça equitativa entre as
gerações do que da justiça intergeracional, englobando, por sua vez, desde os
elementos essenciais da natureza e dos recursos renováveis, como também os
recursos não renováveis até os recursos culturais e sociais.
Contudo, antes de aprofundar seus princípios, é imprescindível
compreender o que é a natureza e o lugar do homem inserido nela. Guardini
explica que, na configuração da Idade Moderna, a natureza refere-se a tudo
aquilo que não possui intervenção do humano. Pode-se aplicar esse conceito
ao conjunto das leis, dos dados, das essências. É um “conjunto experimentado
como pressuposto da existência”.26 Porém, na compressão da totalidade do ser,
a natureza constitui-se, também, como o lugar do ser humano, isto é, ela se
torna a referência norteadora do homem. E, por isso, ela possui um valor
importantíssimo para a vida:

O conceito de natureza exprime, pois, qualquer coisa de supremo que é


impossível transcender. O que a partir dele se pode deduzir, é entendido
como definitivo. O que se pode fundamentar nos seus critérios está
justificado. Isto não significa que a Natureza como tal possa ser

26 GUARDINI, op. cit., 2000, p. 38.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 23


compreendida; ela tem muito mais o caráter misterioso de causa primeira
e fim último.27

A natureza vê-se que não está encerrada em si mesma. Ela possui uma
espécie de caráter sagrado, “algo de santo e religioso”.28 A esse caráter,
justamente, por ser e conter algo sagrado, não existe nele tempo. Logo, dela não
se precipita nem passado nem futuro. Tudo nela já é e já está, e, por sua vez, o
homem nasce nela, pertence a ela, sendo-lhe, por isso, um dos seus
integrantes, mas ele não consegue ter a capacidade do conhecimento do todo
que ela implica, sendo habilitado para chegar apenas a uma parte limitada da
mesma. Mesmo com o processo deflagrado com o chamado desencantamento
da Natureza, considerado e detalhado, especialmente, na Idade Moderna, cujo
nome associado, mais forte e conhecidamente, é o de Max Weber, a natureza
enquanto tal guarda sempre, segundo Guardini, essa espécie de caráter
sagrado, uma vez que a crise ecológica está associada à própria crise do ser
humano como tal. E, em sendo assim, o cuidado com a natureza é
consequentemente cuidado de si e cuidado da humanidade. Por isso, o ser
humano possui a missão inadiável de cuidar da natureza e de procurar
melhores condições de vida para a geração presente e também para as
gerações vindouras, sendo-lhe, portanto, um dever ético promover e trabalhar
por condições de vida para todos. Percebe-se, entretanto, sem muitas
dificuldades, que as atitudes e as políticas governamentais adotadas, em nossos
dias, não estão alicerçadas em uma perspectiva de sustentabilidade, pensada e
planejada a longos prazos. As políticas e intervenções governamentais, quando
elas ocorrem, são promulgadas, infelizmente, alicerçadas, na maioria das
vezes, sobre políticas e atitudes pouco respeitosas da cultura multicultural dos
povos, e pouco pensadas como “Ideia de Humanidade”, remetendo-se, quase
sempre, a um curto período de tempo, comprometendo, por conseguinte, o
patrimônio natural e cultural das futuras gerações.
As próximas gerações do Planeta Terra têm o direito de receber os
recursos naturais, culturais e humanos não inferiores àqueles por nós
recebidos. Evidentemente, alguém poderia perguntar se a geração atual

27 Idem.
28 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 24


recebeu todos os recursos que havia no passado. Entretanto, como vimos
acima, a consciência da crise ecológica, conectada diretamente à crise
antropológica, assumiu um acento agudo, especialmente, nos últimos dois
séculos, sobremaneira, meados do século passado. E somente há pouco o ser
humano percebeu, de fato, que possui muito poder em suas mãos, poder,
inclusive, de alterar, de forma irreversível, as condições de vida do Planeta. De
acordo com Weiss, pela primeira vez na história da humanidade, o ser humano
tem consciência de que precisa preocupar-se com o cuidado e a sobrevivência
de todo Planeta Terra, a fim de tentar prevenir tanto quanto possível novos
desastres ambientais. Afirma Weiss:

Pela primeira vez, como membros da espécie humana, devemos nos


preocupar pela condição do patrimônio natural e cultural que temos de
transmitir para as futuras gerações, assim, como também por nossos
próprios direitos de acesso a desfrutar do legado recebido das gerações
passadas.29

E isso porque cada geração recebe um legado das gerações passadas, com
a finalidade de utilizá-lo de acordo com suas necessidades e entregá-lo às
próximas gerações, adaptando-o conforme as necessidades apresentadas que
cada período exigir. Essa responsabilidade que está implicada no receber e no
entregar o legado é de suma importância, ainda que tenha recebido tal
consciência, por parte da espécie humana, há não muito tempo. Porém, o que
é pior, nem todos têm a dimensão e a consciência das causas e das
consequências dos estragos e danos já acontecidos e da iminência de outros
que estão por acontecer, sejam eles ecológicos, econômicos, sociais, culturais
ou políticos, não gerando, por conseguinte, consciência pelo já acontecido, nem
preocupação pelo advir dos acontecimentos inconsequentes e, tampouco,
responsabilidade pela mudança de concepção e de atitudes educacionais.
É de se considerar, também, de acordo com Weiss, que o próprio direito
internacional não esteve preocupado com a dimensão da temporalidade com
relação à equidade intergeracional, dificultando o trabalho de conscientização

29WEISS, Edith Brown. Um mundo justo para las futuras generaciones. Derecho Internacional,
patrimônio común y equidade intergeneracional. Tokio; New York; Paris: United Nations
University Press; Madrid; Barcelona; México: Ediciones Mundi-Prensa, 1999. p. 39, tradução
nossa.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 25


do ser humano enquanto espécie humana. Os danos emergentes do problema
concentram-se, de acordo com Weiss, em três perspectivas:
(A) o esgotamento dos recursos para as futuras gerações.30 O consumo
demasiado, pela atual geração, dos “recursos de boa qualidade”, que são assim
chamados por se encontrarem num estado de melhor conservação e em áreas
de fácil acesso, mesmo não havendo a necessidade do consumo em massa para
sua sobrevivência, são mais valorizados, gerando assim uma protelação ou
mesmo um descarte dos recursos de “inferior qualidade”;
(B) a deterioração da qualidade dos recursos para as gerações futuras.31
Quando o homem utiliza o ambiente natural como um recurso gratuito,
recebido de seus antepassados como um bem público, sem ter sido adquirido
por seus bens econômicos, o homem possui a tendência de não compreender
o devido valor desse ambiente e não lhe oferece a importância necessária. Isso
comprometerá o cuidado do homem com os recursos existentes, implicando às
futuras gerações uma utilização mais débil e frágil e em menor escala dos
mesmos;
(C) o acesso ao uso e benefício dos recursos recebidos das gerações
passadas.32 Cada geração tem por direito usar e beneficiar-se dos recursos do
Planeta. Todavia, a exploração escancarada de recursos e a pobreza atual,
resultante das disparidades econômicas, compromete o uso equitativo dos
direitos entre os membros das gerações. O efeito causado é a concentração de
maior riqueza em um pequeno grupo de pessoas e grupos de investimento.
Talvez, se possa afirmar que nunca como hoje na História houve tanta
circulação de mercadorias, tanta facilidade de mobilidade humana por parte de
quem tem dinheiro e poder, mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente, nunca
como nos dias atuais, houve tanta concentração de riqueza, controle e
vigilância monitorizada por todas as partes e países.
A partir dos elementos supracitados, Weiss trabalha para aprimorar o
conceito de justiça intergeracional ou também chamada de teoria da equidade
das gerações, explanando que, primeiramente, faz-se “necessário promover o

30 WEISS, op. cit., p. 42.


31 Ibidem, p. 44.
32 Ibidem, p. 48.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 26


bem-estar e a prosperidade de todas as gerações”.33 Esse é o propósito
primordial da teoria da justiça intergeracional, que resultará nos princípios
básicos para a viabilização da conservação e do acesso integral dos recursos
naturais e culturais para as futuras gerações:
(A) princípio da conservação de opções.34 Implica a manutenção da
diversidade dos recursos do Planeta e a preservação do seu status quo,
conservando a diversidade de uso dos recursos naturais e culturais. O direito
vale para todas as gerações de usufruírem os mais diversos recursos
existentes. Contudo, quando não é dedicada a atenção precisa a esse princípio,
esse direito é ferido;
(B) princípio da conservação de qualidade.35 É a conservação do legado
recebido. A qualidade dos recursos planetários não deve ser transmitida às
futuras gerações em condições inferiores pela geração atual recebida. Na
transmissão, os recursos devem permanecer de forma inalterada, salvo as
modificações naturais;
(C) princípio da conservação de acesso.36 Os membros de todas as
gerações possuem o direito de uma proporção equitativa de acesso aos
recursos. É princípio de justiça e critério de igualdade que implica o direito e o
dever de cada pessoa e do Estado de conservação e de uso dos recursos,
limitando a aplicação do patrimônio.
Trata-se, por conseguinte, que as constituições assegurem o direito das
gerações e também os princípios básicos e que eles não sejam simplesmente
compreendidos como objetos de direitos individuais. Ainda que o benefício,
resultante da aplicação dos princípios, seja experimentado de forma muito
mais individual que coletiva, a sua efetivação se estende a todas as gerações.
Nesse sentido, o direito das gerações possui um caráter moral mais alargado
que as próprias obrigações legais da teoria, podendo-se afirmar ser
equivalente aos demais direitos do ser humano, visto sua importância e seu
reconhecimento. No entanto, não é demais salientar que as obrigações morais
não implicam, necessariamente, obrigações e observância de caráter legal. As

33 Ibidem, p. 68.
34 WEISS, op. cit., p. 72.
35 Idem.
36 Ibidem, p. 73.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 27


normas morais, por assim dizer, existem de forma independente da possível
sanção legal, sendo, justamente, por isso, que elas recebem uma força maior
pela tradição cultural. Ou seja:

As normas morais devem ser consideradas muito importantes de serem


mantidas, uma vez que de outro modo, não passam de um costume ou
tradição. Porém ao contrário, uma norma que é legalmente obrigatória
pode ser revogada, ser for ou não considerada importante. Como as
normas morais evoluem ao longo do tempo em forma de costume e
tradição, são imunes a mudanças bruscas, diferenciando-se das normas
legais.37

A moral é uma das principais fontes mantenedoras e propulsoras da


transmissão intergeracional de recursos físicos e culturais, uma vez que estes
dependem, em boa medida, da mesma, para que eles sejam preservados e
assegurados, sobretudo os recursos culturais, os quais resultam em um
importante papel, buscando incluir, além das disposições culturais mais
comuns da humanidade, os registros artísticos, intelectuais, históricos e
sociais. Segundo Weiss, eles:

[...] proporcionam um sentido de continuada comunhão com o passado,


com uma rica base de recursos sobre a qual, se construiu e permanecem
suas sociedades, com o conhecimento necessário para viver e colocá-los a
uma boa utilização nos sistemas naturais e nas obras artísticas.38

A diversidade cultural transmitida à atual geração resulta em uma


heterogeneidade cultural que aprimora e torna mais bela a cultura em si. O
desenvolvimento e o progresso da técnica, quando tomada unilateralmente na
perspectiva do “poder pelo poder” e não do bem comum de toda humanidade,
ela, de maneira paradoxal, pode vir, inclusive, a incitar uma forma de vida
voltada ao individualismo, favorecendo, por sua vez, uma cultura mais
homogeneizada, e, por vezes, dada ao medo e à negação da beleza da
multiculturalidade. Aqui, mais do que nunca, as mais diversas forças e vozes
culturais precisam unir-se, a fim de despertar, no pensamento e na ação do ser
humano, a beleza da valorização e preservação dos recursos, dos valores e das

37 Ibidem, p. 125, tradução nossa.


38 WEISS, op. cit., p. 259, tradução nossa.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 28


riquezas, tanto naturais quando culturais, salvaguardando, por conseguinte, o
legado às futuras gerações. Além disso, é preciso, também, contribuir, para que
haja condições de o ordenamento jurídico, tanto quanto possível, nas
constituições e legislações, incluir o direito de representação das futuras
gerações para a preservação e utilização, tanto dos recursos renováveis, como,
também, dos recursos não renováveis, sem, contudo, o impedimento e o
detrimento da qualidade de vida da atual geração.

Considerações finais

Do ponto de vista do direito internacional, o Planeta é uma pequena parte


específica, determinada do espaço global que é único e comum e, por isso, esse
patrimônio pertence a todos os seres existentes nele, desde o seu princípio até
o seu fim. Isso significa que toda a comunidade possui o direito de usufruir dos
seus recursos e, para tanto, também possui o dever de cuidá-lo e conservá-lo
para transmiti-lo aos vindouros. Porém, com as fortes crises agudizada,
principalmente, no século passado, o progresso científico e tecnológico gerou
graves problemas estruturais, sociais e humanos resultantes, especialmente, a
partir do novo paradigma que possui uma ânsia pelo poder, pelo domínio e pelo
lucro, favorecendo os métodos que não condizem com o progresso da vida do
Planeta, manipulando, por assim dizer, a realidade circundante. O paradigma é
o tecnocrático, uma das causas principais dos graves problemas atuais, pois
confere à técnica um papel que não lhe é próprio. Ao seu lado, também,
encontra-se presente o paradigma econômico, que desfocou a prossecução do
bem comum em benefício dos bens privados e unidimensionais. Nesse
contexto, o ser humano, enquanto pertencente ao Planeta Terra, contribuiu
para chegar à crise atual. Ele não soube viver sua liberdade. Encerrado em sua
crise existencial, gerada pelo antropocentrismo moderno exacerbado, ele,
muitas vezes, encerrou-se em si mesmo. A consequência de tal crise não
permitiu que o ser humano aprendesse, paulatina e progressivamente, a viver
e a conviver em seu Planeta Terra, desrespeitando-o e embrutecendo-o, por
conseguinte.
O clamor pela sobrevivência, pela convivência e pela justiça no Planeta
coloca o ser humano na urgência de assumir uma atitude de revolução no modo

Ética, direitos humanos e meio ambiente 29


de pensar e agir, assumindo uma nova postura e atitude ética, alicerçada na
responsabilidade solidária pelo presente e pelo futuro do ser humano e do
Planeta. Faz-se necessário compreender a realidade com um novo olhar, que
exige o avançar em direção a uma visão e a uma compreensão capaz de
empreender e efetivar uma vida sustentável para todos os seres vivos. Para
tanto, exige-se do ser humano a legitimação de princípios e valores que
sustentem às novas gerações os recursos naturais, culturais e humanos não
inferiores àqueles por nós recebidos e proporcionar, por sua vez, à atual
geração o acesso razoável ao referido legado.
Segundo Guardini, nesse sentido, é imprescindível implementar políticas
voltadas para a preservação e para a garantia dos recursos naturais. O ser
humano carece da limitação e da utilização correta do poder que lhe é peculiar.
Assim, conforme Guardini,39 as virtudes basilares que constituem o ser
humano são, fundamentalmente, três. A primeira delas é a seriedade desejosa
da verdade que, no fundo, se converte na responsabilidade incutida no ser
humano para o progresso da humanidade. A segunda é a virtude da coragem,
que impele o ser humano a agir em favor da verdade. A terceira é a ascese,
porque somente ela poderá fazer o ser humano confrontar-se consigo mesmo,
interrogando-o, desmitificando-o, fazendo-o desejar a justiça e a verdade como
regras de conduta de vida. Assim, o ser humano encontra uma nova
caracterização do poder e uma nova mentalidade cultural. É fundamental, pois,
proporcionar à humanidade uma nova interpretação dos direitos humanos e
da integridade ecológica, procurando a construção de um novo mundo, na
relação de mundo e pessoa, necessidade e liberdade, natureza e técnica com um
objetivo único: agir de modo que todo ser humano busque de forma iminente e
conjunta a verdade e a sabedoria, aliando o objetivo e a prática para uma
humanidade a serviço da verdade, da justiça e da paz para si e para os seus
semelhantes, sejam os agora presentes ou os vindouros.

39 GUARDINI, op. cit., 2000.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 30


Referências

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University Press; Madrid; Barcelona; México: Ediciones Mundi-Prensa, 1999.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 31


2
Juventude: entre o preço do consumo e o valor do
compromisso

Luiz Síveres*
Idalberto José das Neves Júnior**

Introdução

A dinâmica do mundo contemporâneo pode ser percebida por uma


diversidade de forças culturais, que atuam de forma interconectada,
objetivando desenvolver projetos pessoais ou sociais em âmbito regional,
nacional ou internacional. Dentre as distintas energias, não pode ser
desconsiderada a capacidade dinamizadora da juventude, que se posiciona de
forma positiva em uma manifestação de esperança, para mudar algumas
dinâmicas sociais; um empenho de solidariedade, para promover vivências e
experiências de desenvolvimento, bem como a disposição para se envolver
em causas humanitárias, em projetos comunitários ou em movimentos
ambientais.
É necessário, no entanto, entender o fenômeno juvenil, vinculado a
centenas de tendências, mas de modo preferencial à dinâmica do consumo,
do qual ele é tanto sujeito quanto objeto, ou seja, ele pode considerar-se
autárquico e autônomo, por um lado, enquanto ele decide por sua própria
conta, mas, por outro, ele é também fruto de uma geração e de uma lógica de
mercado globalizado. Neste sentido, se por um lado os jovens constituem-se
* Graduado em Filosofia pela Pontifica Universidade Católica do Paraná. Especialista em
Aprendizagem cooperativa e tecnologias educacionais pela Universidade Católica de Brasília.
Especialista em Psicoterapia Junguiana pela Faculdade de Saúde de São Paulo. Mestre em
Educação pela Universidade Católica de Brasília. Doutor em Desenvolvimento Sustentável
pela Universidade de Brasília e Pós-Doutor em Educação: Psicologia da Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professor e coordenador no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília. E-mail:
luiz.siveres@catolica.edu.br. Telefone: +55 61 34487174.
** Doutorando em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Mestre em Gestão

do Conhecimento e Tecnologia da Informação pela UCB. Especialista em Aprendizagem


Cooperativa e Tecnologias Educacionais pela UCB. Gerente de Divisão da Diretoria de
Controladoria do Banco do Brasil. Coordenador dos cursos de Graduação de Ciências
Contábeis, Gestão Pública e Gestão Financeira da UCB e do MBA Contabilidade Pública da
UCB. Professor na UCB. Contador. E-mail: jneves@ucb.br. Telefone: +55 61 33569000.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 32


consumidores vorazes de tudo, sem respeitar, por sua vez, a presença do
outro enquanto outro, mas como alguém a ser manipulado segundo
interesses, por outro lado, eles podem facilmente ser reféns da máquina
consumista, tornando-se, por conseguinte, objetos de consumo. Esta
característica tem se tornado majoritária no contexto atual, principalmente
dentro de uma cultura globalizada, que, no horizonte das relações pessoais,
tem se revelado cada vez mais individualizada, fragmentada e monopolizada.
A percepção desta realidade exige, ao menos, uma reflexão e um
posicionamento mais crítico e criativo, no sentido de perceber os interesses
subjacentes a esse fenômeno e a potencialidade que a humanidade tem para
indicar outras oportunidades, para que os jovens possam construir seu
projeto de vida no horizonte da felicidade, não apenas pautado no consumo,
mas incorporando valores éticos. Além da experiência de valores, como
igualdade, fraternidade e liberdade, propostos como matriz conceitual dos
últimos séculos, outros valores preconizam a relevância da retomada da
ética, em caráter de responsabilidade solidária,1 tanto em nível pessoal como
comunitário, bem como universal, uma vez que todos somos cidadãos do
mundo.2
A responsabilidade que se impõe à experiência humana atual confere ao
ser humano o dever de assumir a responsabilidade perante o futuro da
humanidade. Por esse motivo, o conceito de responsabilidade na ética da
responsabilidade vai além da ética individual, de modo a fundamentar uma
ética da civilização tecnológica. Para tanto, é preciso ter presente, entre
outros aspectos, que eu não posso me arriscar a algo, sem levar em conta os
interesses dos outros, de que não tenho a permissão de pôr em risco a
totalidade dos interesses dos outros, de que o aperfeiçoamento e a melhoria
não justificam apostas totais, de que a humanidade não tem o direito ao
suicídio da espécie e de que a existência do ser humano não pode ser objeto
de aposta.3 Segundo Jonas, sob a ótica da responsabilidade, a prudência
torna-se o cerne do nosso agir moral.4

1 JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica.

Rio de Janeiro: Ed. da PUC/Rio, 2006.


2 CORTINA, A. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo: Loyola, 2005.
3 JONAS, op. cit., p. 83-88.
4 Ibidem, p. 87-88.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 33


Por esta razão, a proposição de um projeto mais ético para a vivência da
juventude, que deseja uma vida mais realizada, precisaria realizar os jovens
enquanto seres com suas características tanto as específicas, tais como a
herança genética familiar, como as comuns a todos os outros jovens,
enquanto situado em um contexto sociocultural e aberto aos muitos
horizontes que lhe são possíveis. Por isso, esta reflexão pretende apresentar
alguns traços do perfil das juventudes, alguns mecanismos da cultura do
consumismo e sugerir algumas proposições éticas para a vida pessoal e
social, possibilitando fazer a travessia do preço do consumo para o valor do
compromisso.

Perfil das juventudes

Ao se tratar do tema da juventude e das juventudes, é oportuno, de


início, considerar que não existe um conceito uniforme para definir essa
experiência existencial e relacional. Por isso, mais do que compreender a
juventude como um período da vida biológica, um fenômeno cultural ou um
agrupamento social, é necessário ter presente, de acordo com Gomes,5 que as
juventudes são manifestações extremamente diversificadas, extrapolando
qualquer tentativa de enquadramento conceitual. Portanto, ao invés de
referendar um conceito, é mais interessante compreender a juventude como
uma potencialidade pessoal e cultural, um desafio para o seu reconhecimento
e sua inclusão, em um projeto de compromisso local e global.
Neste sentido, mais do que criar uma nomenclatura que defina a
juventude é mais adequado indicar as principais potencialidades e os
desafios que caracterizam as juventudes no mundo contemporâneo. Estas
podem estar mais concentradas em algum lugar e estar ausentes noutros;
podem ser mais fortes em alguns momentos e enfraquecidas noutros; podem
influenciar alguns procedimentos sociais e deteriorar outros. Esta dinâmica
depende, portanto, do seu espaço cultural e das suas possibilidades de
manifestação pessoal e social.

5 GOMES, C. A. (Org.). Juventudes: possibilidades e limites. Brasília: Unesco; UCB, 2011.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 34


Sob a inspiração dessa característica das juventudes, várias
manifestações poderiam ser elencadas, mas, para atender ao objetivo desta
reflexão, entre outros, os aspectos seguintes podem colaborar com a
compreensão do tema. Uma primeira potencialidade a ser lembrada é a
confiança que os jovens têm na vida. Existe, portanto, um vigor inerente a
essa condição humana que é manifesta, no contexto atual, pelo cuidado com o
corpo, seja pela sua performance ou pela sua estética. Assim, ainda que não de
concepção unânime, um dos modos de as juventudes contemporâneas
manifestarem a sua vitalidade se dá, principalmente, pelo cuidado com o
corpo.
Outra potencialidade que caracteriza as juventudes é a capacidade de
criar conexões, cultivar conectividades, estar sintonizadas com os
movimentos históricos, culturais e sociais. Tal manifestação tem um respaldo
significativo nas juventudes e se caracteriza, inclusive, como expressão da
sua identidade. Assim, as energias juvenis estariam direcionadas para esta
capacidade de inter-relação com uma diversidade de sujeitos sociais ou
culturais, aspecto característico do fenômeno juvenil.
Ainda outra potencialidade é a capacidade de sonhar, de projetar
utopias ou de participar, segundo Freire,6 de projetos que antecipem o
“inédito viável”. As juventudes caracterizam-se por projetos que estão
inacabados e que buscam, portanto, alguma forma de complementaridade.
Por isso é característico do fenômeno juvenil apontar, constantemente, para
novos horizontes de realização pessoal ou de promoção social.
A percepção dessas fisionomias e de alguns cenários perceptíveis na
atualidade precisaria estar situada dentro de um contexto que se revela cada
dia mais desafiador. Dentre os diversos desafios encontra-se a experiência do
vazio existencial, que, no entendimento de Lipovetsky e Serroy, aumenta
cotidianamente, multiplicando-se os “comportamentos inebriantes para
escapar à noite de um mundo sem valor, ao abismo da falta de objetivo e de
sentido”.7 Esta tendência do esvaziamento existencial foi fortalecida,

6 FREIRE, A. M. A. Inédito viável. In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (Org.). Dicionário

Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 231-234.


7 LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São

Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 31.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 35


principalmente, pelo abandono de valores superiores como o voluntariado, a
espiritualidade ou a compaixão, mas também pela facilidade de realizar
projetos imediatistas e instantâneos.
Esta tendência está demarcando fortemente a realidade atual, contanto
que, segundo Lipovetsky,8 não se apontem mais possibilidades de mudança
para o futuro, mas apenas oportunidades para se realizar no presente, daí a
disposição de todos quererem se preservar jovens. Mas esta realidade está
provocando, segundo o autor, um grande vazio existencial, embora um vazio
sem grandes tragédias, porque o mesmo está sendo preenchido por um
volume enorme de possibilidades de comunicação e pela agilidade das
tecnologias de comunicação. Portanto, é uma relação controversa entre o
vazio existencial e o repleto material que, geralmente, é virtual como no caso
da conectividade das redes sociais.
Apesar dessa experiência do vazio estar diretamente vinculada ao
sujeito, este fenômeno é resultado de um modelo social, porque, de acordo
com Castoriadis, “os homens só podem existir na sociedade e pela
sociedade”.9 Essa sociedade, porém, está sendo dominada pela
preponderância do imaginário capitalista, seja pela primazia da dimensão
econômica, pela preferência de uma racionalidade produtiva ou pelo
privilégio de mecanismos que buscam promover o consumo. Em uma
palavra, trata-se da lógica da economia de mercado, que exclui quem não se
dobra à convenção prevalente do capital.
Se, por um lado, esse modelo está trazendo alguns benefícios materiais
para alguns grupos, por outro, ele está revelando um protótipo que está
destruindo a existência cultural e a experiência social. Para dar um
ordenamento a este aspecto, Castoriadis sugere o desenvolvimento da
dimensão imaginária, que seria “a capacidade de formar um mundo e de dar
um sentido, uma significação a este mundo e a si mesmo, ao que fazemos”.10
Apesar das contradições estarem presentes no cotidiano, principalmente
entre os jovens, é recomendável sugerir a importância da criação de sentido

8 LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP:

Manole, 2005.
9 CASTORIADIS, C. Uma sociedade à deriva. Entrevistas e debates 1984-1997. Aparecida, SP:

Ideias & Letras, 2006. p. 63.


10 CASTORIADIS, C. Janela sobre o caos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009. p. 51.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 36


para as pessoas e para a sociedade, a despeito de um movimento que
promove o não sentido da História.
Além deste aporte, é necessário compreender, ainda, a realidade atual
demarcada pelas tecnologias, que, segundo Bauman,11 são um contributo à
humanidade, mas que exigem uma fragmentação cada vez maior do próprio
ser humano, dos processos ou até da compreensão de um mundo entendido
como pós-moderno. Tal realidade é suportada, principalmente, por uma
moral que se tornou defasada, em relação aos novos desafios postos pela
cultura atual.
Tal percepção pode ser ampliada com a reflexão de Jonas, ao
compreender a ética com uma tonalidade antropocêntrica. “Desaparecem as
delimitações de proximidade e simultaneidade, rompidas pelo crescimento
espacial e o prolongamento temporal das consequências de causa e efeito,
postas em movimento pela práxis técnica mesmo quando empreendidas para
fins próximos”.12 De acordo com o autor, quanto mais a técnica vai se
tornando cumulativa, mais a ética vai se diluindo entre os procedimentos
tecnológicos contemporâneos.
Por esta razão o grande desafio experimentado, de modo especial, pelos
jovens é a percepção de que eles são os grandes agentes do consumo, mas ao
mesmo tempo, são as maiores vítimas desta dinâmica econômico-social. Na
proposta de Bauman, que entende a sociedade como um conjunto global de
consumidores, é possível confirmar que “somos pressionados a consumir
mais, e, nesse percurso, nós mesmos nos tornamos produtos nos mercados
de consumo e de trabalho”.13 Este cenário revela, uma vez mais, a incoerência
entre os humanos, no sentido de serem vorazes consumidores, mas também
pacientes frágeis, que podem ser consumidos a todo instante e de todas as
formas.
Tal ponto de vista não se esgota em relações interpessoais, mas tem
como suporte um sistema que promove um juízo de valor sobre o qual outros
conhecimentos não podem expressar seu entendimento. Este fato é

11 BAUMAN, S. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.


12 JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: Editora da PUC/Rio, 2006. p. 40.
13 BAUMAN, S. A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p.

65.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 37


percebido por Hinkelammert, ao afirmar que “a teoria econômica burguesa
não leva em conta necessidades, leva em conta preferências; com isso, a
perspectiva integral da realidade se desintegrou”.14 Considerando, portanto,
que não foram levados em consideração o conjunto das necessidades
humanas, mas apenas as preferências individuais ou grupais, desencadeou-se
um fracionamento civilizacional, principalmente entre culturas e grupos
econômicos.
Assim, as potencialidades indicadas e os desafios informados
constituem apenas um extrato resumido da multiplicidade de manifestações
que caracterizam as juventudes do contexto atual. Muitas outras sugestões
poderiam ser feitas para revelar a riqueza e o empobrecimento da dinâmica
juvenil do mundo contemporâneo, mas neste contexto está sendo proposta
uma reflexão sobre o preço do consumo pago pelos jovens, para viver e
sobreviver.

Preço do consumo

O perfil das juventudes, seja pelas suas potencialidades ou pelos seus


desafios, conforme reflexão anterior, contribui por um lado com a vitalidade
das juventudes, por outro, marcam os grandes desequilíbrios demarcados
pela experiência juvenil, que incide sobre sua própria vida e sobre o conjunto
da sociedade, principalmente neste momento histórico da civilização
humana.
Dentre os principais desequilíbrios que são expressos pela juventude e
por aqueles que os influenciam diretamente, poderíamos relembrar a
situação de intolerância crescente na realidade atual, o desemprego
estrutural e conjuntural, o acesso e a permanência na escola, o desamparo
das políticas públicas e o desencanto pela vida e pela história.
Tais aspectos, em vez de revelar a vitalidade da juventude, colaboram
para desencadear um processo que interrompe ou deteriora a vida das
juventudes. Portanto, a energia pela vida que dá certa identidade às
juventudes está perdendo sua força diante das ameaças à vida, seja pelo

14 HINKELAMMERT, F. Mercado versus direitos humanos. São Paulo: Paulus, 2014. p. 115.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 38


empobrecimento de multidões de jovens, pela interrupção violenta de vidas
ou pela atrofia das relações sociais por causa do individualismo.
A multiplicidade de conectividades que os jovens inauguram,
cotidianamente, revela, também, a fragilidade dessas relações, e as
tecnologias midiáticas estão se transformando no referencial teórico e
prático da conduta juvenil. Tal enquadramento motiva a juventude a
multiplicar relações ocasionais, forjando, assim, uma cadeia crescente de
contatos, contribuindo com a superficialidade das relações familiares,
religiosas, profissionais ou afetivas. Além da diversidade de relações, elas não
são assumidas de forma responsável para compor um projeto de vida que
tenha um sentido para a própria existência humana.
A energia que potencializa, ainda, as juventudes para o desejo ou para a
utopia perde sua dinamicidade, também, à medida que os sonhos são
marcados pela sonolência entorpecida das drogas, pelas viagens suicidas dos
vícios ou pelas afinidades afetivas frustradas. Dessa forma, as energias que
deveriam impulsionar a realização humana são interrompidas pela satisfação
imediata ou pela busca desenfreada de experiências ocasionais.
Estas características, dentre tantas outras, precisam estar
contextualizadas num mundo descrito por Lipovetsky e Serroy15 como
hipermoderno, caracterizado por quatro polos estruturantes:
hipercapitalismo considerado a grande força da globalização financeira,
hipertecnicização compreendida pela influência da diversidade e
universalidade das tecnologias, hiperindividualismo caracterizado pela
supremacia do ego, e o hiperconsumo entendido como a energia exponencial
do hedonismo mercantil. Essas disposições estariam dando suporte, segundo
os autores, para o fortalecimento de uma sociedade desorientada como
expressão de uma cultura-mundo ou de um mundo-cultura.
Na dinâmica deste contexto, poder-se-ia encontrar, também, as
categorias da desregulamentação, da privatização e da individualização,
aspectos considerados por Bauman como os sustentáculos para uma vida
boa. Tais elementos seriam, segundo o autor, o suporte da realização pessoal,
porque foram feitos na medida da felicidade dos consumidores e, portanto,

15LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São


Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 39


“voltados, como todas as alegrias de consumo, para prazeres individuais,
solitários, mesmo quando apreciados em conjunto”.16 O consumo se tornou,
no projeto de uma sociedade líquida e descartável, a energia
desestabilizadora dos valores da solidariedade e responsabilidade, e continua
fortalecendo a dinâmica egoísta e individualista, aspectos que exigem, cada
vez mais, o despertar do desejo consumista.
Para deixar ardente este desejo é indispensável dispor de recursos
necessários que possam viabilizar, no cotidiano, esta aspiração. Tal
disposição está sendo atendida, principalmente, pela globalização econômica,
fato que marcou profundamente, segundo Badiou,17 o século passado, porque
foi caracterizado pelo triunfo do capitalismo e do mercado mundial. Neste
contexto o lucro foi o elemento central e tal dinâmica continua refletindo
sobre a realidade atual.
Esta realidade é compreendida por Beck pela articulação entre a
produção social de riqueza é a produção social de riscos. Segundo o autor,
“aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez
sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção,
definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos.”18
Assim, a característica para a produção de riqueza está fortemente vinculada
aos riscos econômicos, sociais e tecnológicos.
Como somos herdeiros deste modelo, apesar da lucratividade,
continuamos segundo Badiou,19 uma civilização marcada pelo
desmoronamento dos valores e das instituições, bem como demarcada pela
barbárie e destruição. Segundo o autor, ao entender que a sociedade atual
não tem projetos mais humanitários, prevalece a busca pelo lucro a qualquer
preço, principalmente para atender a preferência e a ansiedade pelo
consumo.
Com base na apresentação dos desafios mencionados, principalmente
daqueles que incidem sobre a vida da juventude, por meio de um hedonismo
mercantil; do atendimento dos prazeres individualistas, bem como a

16 BAUMAN, op. cit., 2011, p. 34.


17 BADIOU, A. O Século. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2007.
18 BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34,

2011. p. 23.
19 BADIOU, op. cit., 2007.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 40


exigência da lucratividade, para poder consumir mais, torna-se oportuno
recomendar algumas mudanças nesta lógica e investir esforços para a
construção da dignidade humana.
Portanto, com o desejo de promover este projeto, Bauman propõe
“impor desafios difíceis de confrontar de perto, objetivos bem além do nosso
alcance, padrões de excelência que pareçam distantes de nossa capacidade
para alcançá-los”.20 Para dar consistência a este procedimento, é
recomendado apontar para horizontes de sentido, indicar projetos plenos de
significado, e sugerir o valor da ética num “mundo de consumidores”. E tal
tarefa não é reserva de luxo para alguns senão para todos, pois, segundo Boff:
“A crise atual, com as severas ameaças que globalmente pesam sobre todos,
coloca como urgente e impostergável a questão da responsabilidade coletiva
dos seres humanos.”21 Para responder a esta proposta, além de inúmeras
possibilidades, pretende-se dar um encaminhamento ao valor do
compromisso com base no princípio da ética.

O valor do compromisso

Após ter refletido sobre alguns traços da fisionomia das juventudes e


indicados alguns desafios dos jovens no mundo contemporâneo, é
indispensável sugerir algumas potencialidades éticas. Partindo do princípio
de que não são as estruturas, mas os projetos que podem mobilizar as
juventudes, torna-se desejável indicar a ética como uma possibilidade a ser
vivenciada, para criar e cultivar o valor do compromisso. Nesse sentido,
segundo La Taille,22 “falar em moral é falar em deveres, e falar em ética é falar
em busca de uma ‘vida boa’ ou, se quiserem, de uma vida que ‘vale a pena ser
vivida’”. Com o objetivo de se aproximar desta proposta, está sendo sugerido
que, no cotidiano das juventudes, se possa vivenciar a autenticidade, ou pelo
desejo de experimentar as diversas formas relacionais, ou por meio de um

20 BAUMAN, op. cit., 2011, p. 24.


21 BOFF, L. O cuidado necessário. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 21.
22 LA TAILLE, Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

p. 30.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 41


procedimento de religação, e um processo de envolvimento para atuar na
transformação social e no desenvolvimento cultural.
Na dinâmica desta proposição, é recomendado ter consciência de que a
técnica e a ciência tornaram-se universais e, neste caso, a tecnologia está
dando à atividade humana, pela primeira vez na História, um raio e alcance
planetários. A técnica permite a comunicação simultânea de todos os
acontecimentos do planeta e, diante disso, os homens se encontram frente ao
desafio de assumir, em escala mundial, o dever da responsabilidade de suas
ações ou o dever de assumir a responsabilidade do agir humano.
Porém, ante este compromisso, vê-se crescer o desequilíbrio entre o
poder de dominação técnica da realidade e os critérios morais para uma ação
universal. Assiste-se, assim, a um desequilíbrio entre o homo faber e o homo
sapiens e, para enfrentar este desafio da situação atual, as morais
fundamentadas no sujeito não têm condições de enfrentá-lo, porque se
mostram incapazes e não conseguem assegurar um equilíbrio entre as
responsabilidades morais e a crescente evolução técnica.
O abismo crescente entre valores e interesses, seja em nível individual,
familiar, político nacional e internacional, mostra a imensa desproporção
entre os limites das preocupações individuais e a amplidão das
consequências do agir humano. À luz desse desafio, pela primeira vez, nossa
civilização coloca cada ser humano e cada nação diante da problemática de
uma ética comum. A partir disso, é urgente a proposição de uma ética da
responsabilidade solidária, capaz de afrontar os desafios emergentes e de
assegurar aos homens a capacidade de governar os poderes que efetivamente
possuem.
Diante destas circunstâncias, que se revelam desfavoráveis à
proposição de valores, principalmente para a juventude, torna-se um desafio
ainda maior sugerir a ética como um valor necessário e recomendado para
vivenciar uma vida com dignidade. Com base nesta disposição, é aconselhado
retomar uma proposta de Giddens, ao afirmar que “longe de vermos o
desaparecimento de valores universais, talvez esta seja a primeira vez na
história da humanidade em que esses valores apresentam um verdadeiro

Ética, direitos humanos e meio ambiente 42


ponto de apoio”.23 Tais pontos de apoio podem ser buscados em distintos
princípios, mas aqui está se sugerindo a proposta ética pautada na
autenticidade (Charles Taylor), na religação (Edgar Morin) e na sociabilidade
(Manfredo Araújo de Oliveira).
Assim, a ética da autenticidade tem por base a contribuição de Taylor,24
que pela relação entre a identidade e a diversidade ou entre a singularidade e
a comunidade, busca uma formação dialógica de si mesmo e dos outros por
meio de um saber estar e um saber ser mais autêntico, através da
individualidade, da solidariedade e da liberdade. Esta proposição tem como
pressuposto uma análise da modernidade, contextualizada a partir do século
XVII, período considerado como o início de uma decadência moral e
resultado, dentre muitas outras, de três maleitas. De acordo com Taylor,25
estas deficiências são identificadas pela primazia da razão instrumental, pela
perda de sentido associada à perda de valores e pela fragilização da liberdade
política.
Tais tendências buscam revelar um procedimento que se esforça por
apresentar e vivenciar, conforme Taylor,26 um modelo de individualismo
demarcado pela dimensão autocentrada e expressa na figura mitológica de
Narciso, pelo tecnicismo que procura inserir a tecnologia em todos os meios
para se atingir a todos os fins, bem como, pelo desinteresse pela causa
comum ou a renúncia a um empenho sociopolítico. Estas realidades, embora
compreendidas de forma singular, formam um círculo vicioso manifestado
pelo atomismo, instrumentalismo e conformismo, respectivamente.
Com o objetivo de superar este procedimento, que confere um grau de
inautenticidade à pessoa e à sociedade, recomenda-se fortalecer um processo
virtuoso, proposto por Taylor27 por meio da ética da autenticidade. Para isto
o autor busca inspiração em Rousseau, que propunha o conceito de
autodeterminação, bem como em Santo Agostinho, que sugeria uma
consciência reflexiva para estabelecer uma interação entre os homens e Deus.

23 GIDDENS, A. Para além da esquerda e da direita. O futuro da política radical. São Paulo:

Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 286.


24 TAYLOR, C. A ética da autenticidade. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2009.
25 Idem.
26 Idem.
27 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 43


Tais sugestões configuram a articulação entre a energia interior com as
potencialidades exteriores ou entre a dinâmica da imanência e da
transcendência.
Com base neste movimento dialógico, Taylor afirma que “a
autenticidade implica criação e construção, originalidade e criatividade, bem
como criticidade e oposição às regras sociais estabelecidas, mas requer
também, abertura a horizontes de sentido e uma definição de si mesmo feita
por meio do diálogo”.28 Esta relação entre o sentido e o significado, entre o
diálogo e o dialógico e entre o individual e social poderia potencializar uma
ética da autenticidade.
Tal sugestão pode ser direcionada, de modo particular, para a
juventude porque a proposta de Taylor sugere que “a autenticidade implica a
originalidade, exige a revolta contra a convenção”.29 Essas disposições da
originalidade e da diversidade, ou do ser-em-si e do ser-para-o-outro se
constituem valores que expressam o compromisso dos jovens pela vida
pessoal e pela vivência social e poder-se-ia lembrar que, na
contemporaneidade, o ser humano não está pronto e acabado, mas em
processo continuado de construção. Para referendar tal procedimento, Silva30
afirmam que “o sujeito não é uma entidade pronta e acabada, porque a
subjetividade não é um dom metafísico, mas algo a ser realizado, assim
também a intersubjetividade torna-se real quando a construímos no processo
existencial, social e histórico, em meio a toda sorte de obstáculos e
decepções”.31 A contribuição destes teóricos confirma a necessidade de
compreender os valores muito mais no seu processo de criação do que pelo
seguimento de normas preestabelecidas.
Na sequência, a ética da religação tem como pressuposto a contribuição
de Morin (2005), que articula o subjetivo e objetivo, a poesia e sabedoria, o
comunitário e cívico entre as instâncias do indivíduo-sociedade-espécie. A
partir dessa proposição, o entendimento de mundo do autor está vinculado,
por um lado, à fragmentação do ser humano, dos sistemas sociais e da

28 Ibidem, p. 75.
29 Ibidem, p. 74.
30 SILVA, F. Leopoldo e. O Outro. São Paulo: M. Fontes, 2012. p. 41.
31 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 44


formação das espécies e, por outro, a uma exigência de regeneração destas
dinâmicas no contexto de uma realidade complexa.
No conjunto de elementos que precisam ser regenerados está o ser
humano que, conforme Morin (2005), estaria sendo dominado pela ciência.
Assim, o homem, ao se considerar criador das ciências, estaria se tornando
criatura das invenções e, em vez de ser o sujeito das técnicas, estaria sendo
transformado em objeto das tecnologias. A humanidade estaria sendo, de
acordo com o autor, refém de uma ciência amoral e de uma política imoral,
levando a humanidade a uma tragédia planetária.
Esta realidade faz parte da condição humana, manifestada pelo
egocentrismo e pelo altruísmo, pela separação e religação. Em conformidade
com Morin, a ética altruísta “é uma ética da religação que exige manter a
abertura ao outro, salvaguardar o sentimento de identidade comum,
consolidar e tonificar a compreensão do outro”. (2005, p. 103). Portanto,
apesar da civilização atual fortalecer a dinâmica da separação, é desejável
propor a ética da religação, que seria um imperativo para vivenciar a
integração com o outro, com a natureza e com o transcendente.
O altruísmo, conforme proposta de Zingano, caracteriza-se pelo
descentramento do eu, porque “os agentes passam a levar em consideração os
interesses dos outros como tais, de modo que o ‘tu’ e o ‘ele’ são incorporados
à cena moral antes ocupada inteiramente pelo ‘eu’”. (2013, p. 15-16). Em
conformidade com a proposta do autor, o altruísmo é revelador de um ato
moral porque consegue reconhecer as pessoas como sujeitos constituídos
com a mesma dignidade humana.
Diante deste cenário, a religação ética, de acordo com Morin, seria uma
“religação com o outro, religação com uma comunidade, religação com uma
sociedade e, no limite, religação com a espécie humana”.32 Este
procedimento, em conformidade com o autor, poderia ser potencializado por
meio de uma experiência relacional no contexto de uma comunidade, que
levaria a sociedade a sugerir aos indivíduos uma ética da solidariedade e da
responsabilidade.

32 MORIN, E. O método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 21.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 45


A responsabilidade estaria vinculada, tanto ao momento presente, mas,
principalmente ao futuro da humanidade e do Planeta. Neste sentido, Jonas
afirma que “a responsabilidade humana se torna pela primeira vez cósmica
(pois não sabemos se o universo produziu anteriormente uma coisa igual)”,
principalmente porque “foi preciso que se tornasse visível a ameaça do todo,
os reais princípios de sua destruição, para nos fazer descobrir (ou
redescobrir) nossa solidariedade com ele: uma ideia embaraçosa”.33 Diante
desse desafio, a ética da responsabilidade estaria indicando para a
solidariedade, assim como o exercício da solidariedade estaria sendo
sustentada pelo compromisso com valores.
Estes valores seriam os pressupostos de uma ética da religação, na qual
todos os seres, todos os sistemas e todos os processos estariam envolvidos,
concordando com Morin de que “A ética é religação e a religação é ética”.34
Esta sugestão levaria os jovens a se empenharem para confirmar as inúmeras
conexões que estabelecem cotidianamente, mas em afirmar novos vínculos
com as pessoas, com os fenômenos e com o planeta.
O valor do compromisso, por meio de uma ética da religação, deveria
articular o pensar bem e fazer o bem, e o valor indicado por Morin,35 para
estabelecer esta relação entre o refletir e o agir seria o amor. Para estabelecer
esta vinculação, os jovens poderiam se dispor a retomar a sabedoria e a
poesia, na vinculação consigo mesmo, com os outros e com a natureza,
evitando o amor possessivo e promovendo o amor da hospitalidade, do
perdão, do reconhecimento, da paixão e do cuidado, porque, em
conformidade com Boff,36 “[...] o cuidado nos faz seres verdadeiramente
éticos que assumem responsabilidade pelo bem-viver humano e ambiental,
solidário [...]” e, de modo especial, com as gerações contemporâneas e as
vindouras.
Na complementaridade desta reflexão, a ética da sociabilidade tem
como inspiração a sugestiva proposta de Oliveira,37 que compreende a

33 JONAS, H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São


Paulo: Paulus, 2013. p. 56-57.
34 MORIN, op. cit., 2005, p. 39.
35 Idem.
36 BOFF, op. cit., 2012, p. 264.
37 OLIVEIRA, M. A. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 46


civilização atual pela sua tendência de cientificidade, no qual os problemas
humanos são resolvidos mais pelas ciências do homem e menos pelos
procedimentos éticos. Tal processo busca desenvolver, por sua vez, uma ética
pautada numa disposição de recursos predefinidos, apresentando-se mais
palatável àqueles que se aproximam dela como usuários de preceitos morais
e não como sujeitos éticos.
Apesar deste procedimento predominante, o ser humano é percebido,
segundo Oliveira,38 como um ser essencialmente aberto e, portanto, um ser
transcendente. Mas esta disposição exige um esforço humano, no sentido de
ir construindo a história pessoal e social, proporcionando, assim, a
historicidade como um elemento essencial da própria condição humana.
Esta proposta não se esgota num entendimento conceitual, mas exige
um procedimento operacional, e tal atitude não pode reforçar a facticidade
humana, mas precisa cooperar, conforme Oliveira,39 com uma práxis
transformadora, inserida num processo que efetiva a própria essência da
humanidade numa ambiência política.
Por esta razão, desde a experiência originária dos gregos, a
sociabilidade é vista, de acordo com Oliveira, “como algo constitutivo da
essência humana, de tal modo que o homem, como ser essencialmente
político, só na “comunidade política” (pólis) pode encontrar sua auto-
efetivação”.40 Esta proposição leva a considerar o ser humano, mais do que
um ser de necessidade, um ser de comunidade ou ser da sociabilidade.
A ética como sociabilidade seria, de acordo com Oliveira,41 um
procedimento que buscaria satisfazer as carências humanas por meio da
fruição dos bens, mas seria, principalmente, um processo transparente que
contribuiria com a construção de uma “vida boa”, revelando a essência da
condição humana no mundo da política.
Portanto, o valor do compromisso com uma ética, com base na proposta
de uma ética da autenticidade, da religação e da sociabilidade, poderia
contribuir com um projeto inovador para a juventude, no sentido de romper

38 Idem.
39 Idem.
40 Ibidem, p. 21.
41 OLIVEIRA, op. cit., 1993.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 47


com uma dinâmica alienadora e de um movimento homogêneo, promovendo
sujeitos conscientes que poderiam edificar a própria história e a história da
Humanidade pautada em princípios de solidariedade, de responsabilidade e
de justiça, objetivando construir uma civilização interativa, reflexiva e
transformadora.

Considerações finais

Ao considerar o percurso realizado e percebendo alguns traços do perfil


das juventudes, indicando alguns desafios do “mundo de consumidores” e
sugerindo alguns encaminhamentos éticos, algumas questões permanecem
em aberto. Um destes questionamentos é proposto por Nodari,42 na medida
em que reconhece os grandes avanços da ciência e da técnica, mas como estas
conquistas dariam conta daquilo que a humanidade deveria fazer como
procedimento ético?
Nesta proposição estaria contemplado um encaminhamento, no sentido
da humanidade vincular a ciência à consciência e a técnica à ética. Numa
circularidade mais próxima da juventude seria recomendado, segundo
Síveres,43 vincular a singularidade à convivência, a informação à
compreensão e o bem-estar ao bem viver. Objetivando potencializar tal
projeto, como as condições sociais, econômicas, políticas, religiosas e
culturais poderiam contribuir para que a juventude pudesse participar de um
processo que indicaria para o horizonte da felicidade?
Numa disposição do sujeito juvenil e diante das diversas formas para
cultivar a vida, seria possível um compromisso ético que contemplasse o
respeito aos semelhantes e uma acolhida das individualidades? Perante a
diversidade de conectividades vivenciadas pela juventude, qual compromisso
ético poderia ser cultivado para alimentar amizades que colaborassem com o
crescimento pessoal, profissional ou espiritual? Para desencadear um
processo de mudança cultural, em relação às utopias, seria sugestiva a
participação em projetos sociais, em ações comunitárias ou em programas

42NODARI, P. C. Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2010.
43SÍVERES, L. Os processos de aprendizagem na formação e profissionalização docente.
Inter-Ação. Revista da Faculdade de Educação, Goiânia: FE/PPGE/UFG, UFG, v. 38, n. 3, p. 649-
661, set./dez. 2013.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 48


políticos, mas como motivar os jovens para que promovam a transformação
social por meio destas sugestões?
Os questionamentos acima indicados são apenas algumas
possibilidades, para que os jovens possam pautar sua conduta em princípios
éticos, aspecto que poderia contribuir, também, para desenvolver projetos
que favorecessem relações mais solidárias; consolidar iniciativas de
instituições que seriam mais responsáveis; interagir com projetos que
buscassem promover sujeitos mais solidários, bem como reconhecer e
fortalecer experiências que apontassem possibilidades de vida digna para a
juventude.
Dentre as diversas possibilidades, foi propósito desta reflexão indicar o
valor da ética, destacando-se a importância de uma ética pautada na
autenticidade do sujeito e da sua interação com os outros, de uma ética da
religação envolvendo o indivíduo, a sociedade e a espécie, bem como uma
ética da sociabilidade, que contemplasse a dinâmica de transformação social,
mas compreendidos mais no horizonte da sua proposição do que no
atendimento de algumas recomendações.
Na possibilidade desses valores proclamados serem também
vivenciados, acredita-se que seria possível passar da tendência majoritária
do preço do consumo para o valor do compromisso. Assim, a juventude e as
juventudes poderiam ser protagonistas de um projeto humanitário que
pudesse refletir, em todas as suas relações e correlações, uma luz que iria
iluminar o caminho da humanidade neste seu peregrinar histórico.
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Ética, direitos humanos e meio ambiente 50


3
Leituras filosóficas da Laudato Si’

Agemir Bavaresco*

Introdução

Leituras filosóficas da Laudato Si’1 apresentam a estrutura do


documento do Papa Francisco, demonstrando sua abordagem
interdisciplinar articulando a política, a economia, a ecologia, a teologia e a
ética. Em primeiro lugar, os cenários do planeta são caracterizados,
analisando os níveis ambientais e o debate teológico-epistemológico
emergente. Depois disso, a crise ecológica é diagnosticada, tendo suas raízes
e causas na tecnologia e no antropocentrismo. Em seguida, torna-se explícita
a proposta de uma ecologia integral, na qual tudo está relacionado e
interligado. Finalmente, considerando o contexto de sociedades plurais e os
diagnósticos da crise ambiental, o documento sugere uma ética
interdisciplinar para resolver os problemas do Planeta.
Cabe salientar que há quatro princípios que atravessam todo o
documento, sendo o referencial para compreender o diagnóstico da realidade
e a proposta de ação para a agenda internacional-ambiental: o tempo é
superior ao espaço, a unidade prevalece sobre o conflito, a realidade é mais
importante do que a idéia, e o todo é superior à parte. Estes princípios são as
bases filosóficas que compõem o quadro teórico da leitura filosófica da
Laudato Si’.

Cenários do planeta

A carta encíclica Laudato Si’ começa fazendo um diagnóstico da situação


do planeta que é denominada “nossa casa”. A primeira constatação é a
aceleração das mudanças que implica um contraste entre o tempo lento da

* Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Brasil. CV:

http://lattes.cnpq.br/6597683266934574
1 Este capítulo de livro já foi publicado em formato de artigo no periódico em

Teocomunicação, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 24-38, jan./abr. 2016.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 51


evolução biológica e o tempo intensificado das ações humanas (LS, 18).2 Não
se trata de recolher informações catastrofistas ou apocalípticas para
satisfazer curiosidades, mas para engajar cada um e as sociedades em busca
de transformações. Vejamos os níveis dos cenários apresentados:
a) nível macro – clima e água: envolve a poluição, mudanças climáticas e
os resíduos que se vinculam a uma cultura do descarte, “que afeta tanto os
seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em
lixo”. (LS, 22). O clima como bem comum da humanidade é um sistema de
equilíbrio complexo. “As mudanças climáticas são um problema global com
graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas,
constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade” (LS,
25). A questão da água disponível piora constantemente e cresce a tendência
à privatização deste recurso escasso, “tornando-se uma mercadoria sujeita às
leis do mercado” (LS, 30), por grandes empresas mundiais, transformando-se
uma das principais causas de conflitos;
b) nível meso – biodiversidade: os recursos da Terra são depredados,
desaparecem milhares de espécies vegetais e animais e ocorre o
desequilíbrio dos ecossistemas. O cuidado da biodiversidade implica
preservar áreas em variedade de espécies importantes para o ecossistema
mundial, como os “pulmões do planeta repletos de biodiversidade, que são a
Amazônia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os
glaciares” (LS, 37), “os oceanos que tem a maior parte da vasta variedade dos
seres vivos, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos que nutre grande parte da
população mundial”. (LS, 40);
c) nível micro – ser humano: a deterioração da qualidade de vida
humana e a degradação social são constatadas no crescimento descontrolado
de muitas cidades, que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido ao
caos urbano. As mudanças globais mostram que o crescimento não significou
um verdadeiro progresso integral, uma melhoria na qualidade de vida, mas
uma degradação social acompanhada de rupturas culturais. As mediações do
mundo digital e da internet “exige um esforço para que esses meios se
traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade”. (LS, 47). As

2 As citações da Carta Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, daqui para frente serão
abreviadas por LS e seguidas do número do parágrafo correspondente.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 52


desigualdades planetárias refletem-se no ambiente humano e no ambiente
natural. Há uma mútua implicação entre degradação ambiental e degradação
humana e social que atinge e exclui sobretudo os pobres da terra. “A
desigualdade não afeta apenas os indivíduos, mas países inteiros, e obriga a
pensar em uma ética das relações internacionais” (LS, 51), revigorando a
“consciência de que somos uma única família humana”, em que não há mais
fronteiras e barreiras políticas ou sociais “que permitam isolar-nos, pois não
há mais espaço para a globalização da indiferença”. (LS, 52).
Face a estes cenários do planeta, constata-se o imobilismo e a “fraqueza
da reação política internacional”: “A submissão da política à tecnologia e à
economia demonstra-se na falência das cúpulas mundiais sobre o meio
ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o
interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a
informação para não ver afetados os seus projetos”. (LS, 54). Há, porém,
sobre estes cenários duas posições teórico-práticas que se opõem: De um
lado, “alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os
problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações
técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo”. De outro,
afirma-se que “o ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só
pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém
reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo tipo de intervenção”.
(LS, 60). Entende o documento papal que se pode identificar possíveis
cenários futuros, promovendo o “debate honesto entre os cientistas,
respeitando a diversidade de opiniões”. (LS, 61).

Teologia e epistemologias
O documento reconhece, inicialmente, que a teoria da criação é
rejeitada em alguns campos da política e da pesquisa científica, pois a
consideram irrelevante e irracional para tratar da ecologia integral e do
gênero humano; porém, “a ciência e a religião, que fornecem diferentes
abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para
ambas”. (LS, 62):
a) criação e antropologia: o documento comenta as narrativas da
criação do livro do Gênesis que usa uma linguagem simbólica e critica a

Ética, direitos humanos e meio ambiente 53


distorção do uso do verbo “dominar” a terra (Gn 1,28), entendido como
“exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser
humano como dominador e devastador”, porém, “esta não é uma
interpretação correta da Bíblia”. Deve-se rejeitar a hermenêutica como
“domínio absoluto sobre todas as criaturas” e “ler os textos bíblicos no seu
contexto como convite a “cultivar e guardar” o jardim do mundo” (Gn 2,15;
LS, 67). Assim, a Bíblia não legitima um “antropocentrismo despótico”, nem a
Igreja propõe um “antropocentrismo desordenado” “de forma simplista em
que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser
humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível
dispor delas à nossa vontade”, mas reconhece “nas outras criaturas a
“prioridade do ser sobre o ser úteis” (LS, 69);
b) caos, acaso e evolução: de um lado, “o mundo procede, não do caos
nem do acaso, mas de uma decisão, de uma opção livre, expressa na palavra
criadora, não como resultado de uma onipotência arbitrária, de uma
demonstração de força ou de um desejo de autoafirmação, mas de um ato de
amor”. (LS, 77). De outro, “o pensamento judaico-cristão desmitificou a
natureza, sem deixar de admirá-la pelo seu esplendor e imensidão, já não lhe
atribui um caráter divino” (LS, 78), porém, disso decorre ainda mais a
responsabilidade de proteger a natureza, acabando com o “mito moderno do
progresso material ilimitado”. (LS, 78).
O documento reconhece que há uma teleologia imanente “inscrita nas
coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado” (LS,
80), o que supõe “também processos evolutivos”, porém, o ser humano
“implica uma novidade que não se explica cabalmente pela evolução de
outros sistemas abertos”. (LS, 81). Mesmo assim, formamos uma unidade
com todos os seres do universo, uma comunhão universal que “significa
igualar todos os seres vivos e tirar do ser humano aquele seu valor peculiar
que, simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade”. (LS, 90).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 54


Diagnósticos da crise ecológica: tecnologia e antropocentrismo

O diagnóstico identifica dois problemas como sendo “a raiz humana da


crise ecológica”: o paradigma tecnocrático e o antropocentrismo
desordenado:
a) paradigma tecnocrático: a tecnologia é um misto de criatividade e
poder, “um produto estupendo da criatividade humana”, sendo “a
transformação da natureza para fins úteis uma característica do gênero
humano e a técnica exprime uma gradual superação de certos
condicionamentos materiais. A tecnologia deu remédio a inúmeros males,
que afligiam e limitavam o ser humano. Não podemos deixar de apreciar e
agradecer os progressos alcançados especialmente na medicina, engenharia e
comunicações”. (LS, 102).
Porém, a “globalização do paradigma tecnocrático” usado de forma
homogênea e unidimensional segundo uma lógica em que o sujeito se
apropria do objeto pelo método científico, torna a natureza algo meramente
manipulável, a partir da ideia de um “crescimento infinito ou ilimitado,
supondo a mentira da disponibilidade infinito dos bens do planeta, do
pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos
a serem utilizados”. (LS, 106). Os produtos da técnica, afirma o documento,
“não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os
estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de
determinados grupos de poder”. (LS, 107). “Além disso, o paradigma
tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a
política”. (LS, 109). De um lado, “a ciência e a tecnologia não são neutras, mas
podem desde o início até o fim de um processo, envolver diferentes intenções
e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras”; de outro,
“ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a
marcha para olhar a realidade de outra forma, recolher os avanços positivos
e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objetivos
arrasados por um desenfreamento megalômano”. (LS, 114);
b) antropocentrismo desordenado: constata-se uma crise do
antropocentrismo moderno colocando a “razão técnica acima da realidade” e
promovendo um “sonho prometeico de domínio sobre o mundo”. (LS, 116).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 55


De um lado, “não há ecologia sem uma adequada antropologia”, porque
“quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros,
que provém de jogos do acaso ou de um determinismo físico, corre-se o risco
de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade”. De outro, “um
antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído
por um ‘biocentrismo’, porque isto implicaria introduzir um novo
desequilíbrio”. (LS, 118).
O antropocentrismo desordenado conduz ao relativismo prático, que o
documento o compreende assim: “Quando o ser humano se coloca no centro,
acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o
mais se torna relativo que, juntamente com a onipresença do paradigma
tecnocrático e a adoração do poder humano sem limites, se desenvolva nos
indivíduos este relativismo no qual tudo o que não serve aos próprios
interesses imediatos se torna irrelevante, o que provoca ao mesmo tempo a
degradação ambiental e a degradação social”. (LS, 122).
A cultura do relativismo tem a mesma lógica relativista que trata o
outro como mero objeto, daqueles que dizem “deixemos que as forças
invisíveis do mercado regulem a economia, porque os seus efeitos sobre a
sociedade e a natureza são danos inevitáveis”. Trata-se da lógica que afirma
“que não há verdades objetivas nem princípios estáveis”, mas apenas a
satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, ou seja, “é a
mesma lógica do ‘usa e joga fora’ que produz tantos resíduos, só pelo desejo
desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade”. (LS,
123).
O antropocentrismo desordenado manifesta-se, também, na inovação
biológica, a partir da pesquisa da intervenção humana sobre o “mundo
vegetal e animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela
biotecnologia, a fim de aproveitar as possibilidades presentes na realidade
material”. (LS, 132), porém, “é difícil emitir um juízo geral sobre o
desenvolvimento de organismos modificados geneticamente (OMGs),
vegetais ou animais, para fins medicinais ou agropecuários, porque podem
ser muito diferentes entre si e requerer distintas considerações”. (LS, 133).
Enfim, o documento aponta a contradição de alguns movimentos
ecológicos que defendem a integridade do meio ambiente, e “com razão,

Ética, direitos humanos e meio ambiente 56


reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas não
aplicam estes mesmos princípios à vida humana”. Porém, “muitas vezes
justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências
com embriões humanos vivos”, esquecendo-se de que há “o valor inalienável
do ser humano, independentemente do seu grau de desenvolvimento”. Por
isso, “quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por
considerar legítima qualquer prática”, ou seja, “a técnica separada da ética
dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder”. (LS, 136).

Ecologia integral: tudo relacionado, tudo interligado

A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio


ambiente. O conceito de ecologia é qualificado de integral, isto é, “tudo está
intimamente relacionado”. Por isso, os problemas também requerem que se
leve em conta todos os aspectos da crise mundial (LS, 137). A ecologia
integral engloba a dimensão ambiental, econômica, social e cultural, pois
“tudo está interligado”, portanto, “é fundamental buscar soluções integrais
que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os
sistemas sociais”. (LS, 139). Pode-se afirmar que a ecologia integral se
fundamenta em alguns princípios tais como:
a) o todo é superior à parte: o meio ambiente implica a relação entre a
natureza, seus ecossistemas e a sociedade. Há uma interação entre os
ecossistemas e os diferentes mundos sociais, o que “demonstra mais uma vez
que o todo é superior à parte” (LS, 141), pois “tudo está relacionado, então o
estado de saúde das instituições tem consequências no ambiente e na
qualidade de vida humana: Toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica
provoca danos ambientais”. (LS, 142);
Junto com o patrimônio natural, há o patrimônio histórico, artístico e
cultural, ou seja, trata-se de uma ecologia cultural que “faz parte da
identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade
habitável”, assumindo “a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas,
dos atores sociais e locais a partir de sua própria cultura”. (LS, 144).
b) princípio da ecologia cotidiana: a ecologia integral parte do mais
imediato, isto é, “da qualidade da vida humana, o espaço onde as pessoas

Ética, direitos humanos e meio ambiente 57


transcorrem a sua existência”, pois “os ambientes onde vivemos influem
sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir”: Em “nosso quarto, na
nossa casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente
para exprimir a nossa identidade”. O princípio da ecologia cotidiana organiza
o ambiente “e quando este aparece desordenado, caótico ou cheio de
poluição visual e acústica, o excesso de estímulos põe à prova as nossas
tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz”. (LS, 147). A
capacidade criativa e a “generosidade de pessoas e grupos” superam as
limitações do ambiente, “modificando os efeitos adversos dos
condicionamentos e aprendendo a orientar a sua existência no meio da
desordem e precariedade”. (LS, 148). As contradições da vida cotidiana,
sobretudo urbana, em que os ambientes favorecem a integração e também o
“aparecimento de comportamentos desumanos e a manipulação das pessoas
por organizações criminosas”, mesmos assim os habitantes “são capazes de
tecer laços de convivência e de enraizamento”, isto é, o “sentimento de estar
em casa, dentro da cidade que nos envolve e une”. (LS, 149; 151);
c) princípio do bem comum: a ecologia integral é inseparável do
princípio do bem comum, pois ele é central para a ética social. O bem comum
é “o conjunto das condições da vida social que permite, tanto aos grupos
como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente, o desenvolvimento
integral” (LS, 156), aplicando o princípio de subsidiariedade, envolvendo
“toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de
defender e promover o bem comum”. (LS, 157);
d) princípio intergeracional: o conceito de bem comum engloba
igualmente as gerações futuras, o “destino comum do qual não podem ser
excluídos aqueles que virão depois de nós”, isto é, o desenvolvimento
sustentável vincula a solidariedade intergeracional. “Quando pensamos na
situação em que se deixa o planeta às gerações futuras, entramos noutra
lógica: a do dom gratuito, que recebemos e comunicamos”. Isto implica
superar um critério apenas utilitarista de eficiência e produtividade, ou seja,
“o ambiente situa-se na lógica da recepção. É um empréstimo que cada
geração recebe e deve transmitir à geração seguinte”. (LS, 159).
Os quatro princípios que compõem a ecologia integral parte,
primeiramente, da ideia do todo da natureza que articula as partes do meio

Ética, direitos humanos e meio ambiente 58


ambiente, ecossistemas e povos; depois, evoca-se o princípio do cotidiano da
ecologia humana no viver imediato do dia a dia, sentir e agir das
organizações familiares, comunitárias e sociedades; em seguida, enuncia-se o
princípio do bem comum com as atribuições das mediações que sabe
articular a capacidade de autonomia do princípio subsidiário com a gestão do
Estado; enfim, o princípio intergeracional enuncia a contradição entre a
lógica da gratuidade e a lógica utilitarista, que encontra a superação no
conceito de desenvolvimento sustentável e solidário entre as presentes e
futuras gerações. Subjaz a estes quatro princípios, um desafio ético para as
relações internacionais, a política, a economia, as religiões, as ciências e os
movimentos ecológicos.

Ética interdisciplinar

O documento enuncia linhas de ação face aos cenários de degradação


ambiental e humana e o diagnóstico dos problemas e as causas da destruição
do planeta. As orientações éticas são interdisciplinares, pois englobam desde
as relações internacionais e nacionais, passando pela política e economia até
o diálogo entre religiões e ciências: “Precisamos de uma política que pense
com visão ampla e leve em frente uma reformulação integral, abrangendo em
um diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise”. (LS, 197):
a) relações internacionais de interdependência: as teorias das relações
internacionais opõem-se, a grosso modo, em dois polos: realismo e
liberalismo com suas variações internas. Sem desconhecer o peso destas
teorias, o documento constata a interdependência entre os Estados, pois os
problemas e as soluções precisam de uma perspectiva global: “A
interdependência obriga-nos a pensar em um único mundo, em um projeto
comum”. Os movimentos ecológicos e as muitas organizações da sociedade
civil têm um longo caminho e um histórico de contribuições na agenda
pública internacional, a fim de estabelecer ações a longo prazo em relação ao
planeta. Porém, as cúpulas mundiais sobre o meio ambiente não
corresponderam às expectativas dos movimentos ecológicos e das
organizações da sociedade, “porque não alcançaram acordos ambientais
globais realmente eficazes”. (LS, 166);

Ética, direitos humanos e meio ambiente 59


b) políticas nacionais e locais: o tempo é superior ao espaço: os
governos vivem uma contradição: de um lado, a pressão por resultados
imediatos exigidos pelo crescimento a curto prazo e o desejo consumista das
populações; e, de outro, os desafios de introduzir uma agenda ambiental com
visão ampla, a partir do princípio de que “o tempo é superior ao espaço”. Ou
seja, somos mais fecundos quando geramos processos ao invés de dominar
espaços de poder, pois “a grandeza política mostra-se quando, em momentos
difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem
comum a longo prazo”. (LS, 178). Por isso, os cidadãos e os governos
precisam garantir a continuidade na implementação de políticas ambientais,
porque os resultados requerem muito tempo e implica assumir
responsabilidades que “não correspondem à lógica eficientista e imediatista
atual da economia e da política”. (LS, 181);
No que diz respeito aos processos de tomada de decisões sobre o
impacto ambiental dos empreendimentos e projetos de desenvolvimento,
requer-se transparência em que a “rentabilidade não pode ser o único
critério a ter em conta”. Porém, “isto não implica opor-se a toda e qualquer
inovação tecnológica que permita melhorar a qualidade de vida de uma
população”. (LS, 187). O documento reconhece que há problemas sobre o
meio ambiente, em que é difícil chegar a um consenso. Por isso, “a Igreja não
pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas
convida a um debate honesto e transparente, para que as necessidades
particulares ou as ideologias não lesem o bem comum”. (LS, 187).
c) política e economia: a unidade é superior ao conflito: o documento
posiciona-se em relação a estas duas disciplinas, afirmando que “a política
não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e
ao paradigma eficientista da tecnocracia”. (LS, 189);
A partir desta afirmação, descrevem-se as contradições e critica-se a
economia de mercado, no que diz respeito ao meio ambiente. A proteção
ambiental não se assegura apenas com base no “cálculo financeiro de custos e
benefícios”; além disso, “o ambiente é um dos bens que os mecanismos de
mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente”. Cabe
“evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os
problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas

Ética, direitos humanos e meio ambiente 60


ou dos indivíduos”. O documento pergunta: “Será realista esperar que quem
está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os
efeitos ambientais que deixará às próximas gerações?” Constata-se que,
“dentro do esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da
natureza, nos seus tempos de degradação e regeneração, e na complexidade
dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela intervenção
humana”. Conclui-se que “quando se fala de biodiversidade, no máximo
pensa-se nela como um reservatório de recursos econômicos que poderia ser
explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas”. (LS,
190). Face a estas críticas, imediatamente a reação é que se “pretende parar,
irracionalmente o progresso e o desenvolvimento humano”. Porém, “trata-se
de abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implicam frenar a
criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta
energia por novos canais” (LS, 191) e novos conceitos de sustentabilidade,
tais como:
(1) desenvolvimento sustentável: a condição para que apareçam novos
modelos de progresso, é “converter o modelo de desenvolvimento global”,
isto é, “redefinir o progresso”, pois “um desenvolvimento tecnológico e
econômico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida
integralmente superior, não se pode considerar progresso”. (LS, 194); (2)
crescimento sustentável: muitas vezes o discurso do crescimento sustentável
é usado para justificar e “absorver valores do discurso ecologista, dentro da
lógica da finança e da tecnocracia”. (LS, 194); (3) responsabilidade social e
ambiental das empresas não pode se reduzir a “uma série de ações de
publicidade e imagem”. (LS, 194).
Enfim, o “princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de
todas as outras considerações, é uma distorção conceitual da economia:
desde que aumente a produção pouco interessa que isso se consiga à custa
dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente”. (LS, 195).
O papel da política orienta-se pelo princípio da subsidiariedade, “que dá
liberdade para o desenvolvimento das capacidades presentes a todos os
níveis, mas simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a
quem tem mais poder”. Constata-se que alguns setores econômicos têm mais
poder do que os próprios Estados. Por isso, “não se pode justificar uma

Ética, direitos humanos e meio ambiente 61


economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para
governar os vários aspectos da crise atual” (LS, 196), em que é necessária
uma “visão ampla e um diálogo interdisciplinar” para superar a crise.
Tanto a política como a economia têm responsabilidades pela
degradação ambiental, pois “uns se preocupam apenas com o ganho
econômico e os outros estão obcecados apenas por conservar ou aumentar o
poder”. O resultado disso são as “guerras ou acordos espúrios, onde o que
menos interessa às duas partes é preservar o meio ambiente e cuidar dos
mais fracos”. Conclui-se que o princípio da “unidade é superior ao conflito”
(LS, 198), que a unidade entre a política e a economia é mais vantajosa para
todos do que o conflito reducionista de apenas buscar o ganho econômico ou
de apenas conservar e aumentar o poder político.
d) religiões, ciências e movimentos ecológicos: a realidade é superior à
ideia: o documento critica, de um lado, a pretensão reducionista das ciências
empíricas, pois elas não “explicam completamente a vida, a essência íntima
de todas as criaturas e o conjunto da realidade”, porque “isto seria
ultrapassar indevidamente os seus confins metodológicos limitados” (LS,
199). De outro, lembra que “os textos religiosos clássicos podem oferecer um
significado para todas as épocas”, questionando: “Será razoável e inteligente
relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto de uma
crença religiosa?” (LS, 199).
A respeito dos princípios éticos reconhece o documento que eles não
podem ser reduzidos ao “modo puramente abstrato, desligados de todo o
contexto”. O “fato de aparecerem com uma linguagem religiosa não lhes tira
valor algum no debate público”, antes, os princípios éticos podem ser
traduzidos na esfera pública e explicitados em muitas linguagens “incluindo a
religiosa”. (LS, 199).
Conclui-se que são necessários quatro níveis de diálogo: 1) diálogo
inter-religioso, pois “a maior parte dos habitantes do planeta declara-se
crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo entre si,
visando ao cuidado da natureza”; 2) diálogo entre as próprias ciências,
“porque cada uma costuma fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e
a especialização tende a converter-se em isolamentos e absolutização do
próprio saber”; 3) diálogo “aberto e respeitador dos diferentes movimentos

Ética, direitos humanos e meio ambiente 62


ecológicos”, pois “entre os quais não faltam as lutas ideológicas”; 4) diálogo
em vista do bem comum, a fim de enfrentar a “gravidade da crise ecológica,
lembrando sempre que a realidade é superior à ideia”. (LS, 201).

Conclusão

Como conclusão deste trabalho, apresentamos os quatro princípios que


atravessam e estruturam a Laudato Si’: teleológico e metodológico,
epistemológico e sistemático. Estes princípios já foram explicitados na
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium,3 e na Carta Encíclica são retomados
para fundamentar e compreender a natureza e os problemas ambientais do
planeta, como foram enunciados ao longo do trabalho:
1º) primazia do tempo/plenitude em relação ao espaço/limitado: o
primeiro princípio da realidade coloca a tensão entre dois polos: a plenitude
e o limite. A plenitude liga-se ao tempo, enquanto o limite relaciona-se ao
espaço. A vontade quer apropriar-se de todo o tempo, porém, o espaço é
limitado. A tensão que todo o cidadão vive é entre a vontade de plenitude
infinita e o espaço limitado e finito das circunstâncias existenciais. Porém, há
a “utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai”. Ora, é esta
teleologia que aponta para frente, que afirma a primazia do tempo sobre o
espaço. (EG, 222);4
2º) primazia da unidade/diferença em relação ao
conflito/fragmentação: o segundo princípio trata da polaridade entre
unidade e conflito, reconhecendo que o conflito é inerente às relações
humanas, ou seja, a contradição é constitutiva dos processos sociopolíticos.
Porém, o conflito não é o fim dos processos, mas é “a unidade profunda da
realidade”, que dá sentido às ações. Fixar-se apenas no conflito leva a perder
a perspectiva da história, reduzindo a realidade a um mosaico fragmentado.
(EG, 226);
3º) primazia da realidade/objetividade em relação à
ideia/formalismo: aqui, temos também uma tensão bipolar entre realidade

3 As citações da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium de Francisco, daqui para frente


serão abreviadas por EG e seguidas do número do parágrafo correspondente.
4 Esta parte conclusiva é a reprodução de parte do artigo de Agemir Bavaresco e Raphael C.

Pinto. Sociedades plurais, religião e princípios bipolares. Sol Nascente, v. 7, p. 10-26, 2014.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 63


e ideia, objetividade e nominalismo formal. Francisco acentua vários
problemas decorrentes de fixar-se apenas na ideia, levando a “ocultar a
realidade”, vivendo no “reino só da palavra, da imagem, do sofisma”:
“Purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos
declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos
anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem
sabedoria”. (EG, 231). É importante notar que, para cada problema
proveniente de uma visão epistemológica dualista da realidade, há uma
qualificação crítica que explicita a separação entre os polos da relação.
Então, a proposta de Francisco é dar primazia à realidade em relação à
ideia, embora sejam dois polos do mesmo fato de conhecimento. Trata-se de
reconhecer a ideia já dada na realidade. Francisco serve-se de um argumento
teológico, para afirmar que o critério da realidade se legitima no fato da
encarnação de Deus. Por um lado, reconhecer que a Palavra de Deus já está
presente na História e, de outro, a Palavra sempre precisa encarnar-se de
novo, constitui-se na dinâmica que mantém os dois polos em tensão: ideia e
realidade. Embora, sob o ponto de vista epistemológico, o ponto de partida
seja a realidade, evitando “permanecer na pura ideia e degenerar em
intimismos e gnosticismos que não dão fruto”. (EA, 233).
Depois de enunciar o princípio teleológico que mantém a tensão entre
tempo e espaço, do princípio metodológico da unidade e do conflito, do
princípio epistemológico da realidade e da ideia, agora, conclui-se com o
princípio sistemático da relação entre o todo e as partes;
4º) primazia do todo em relação à parte: neste último princípio
bipolar, a tensão dá-se entre o global e o local. Da mesma forma que nos
anteriores, inicialmente, apontam-se os problemas decorrentes de fixar-se
apenas num dos lados dos extremos: cabe “prestar atenção à dimensão global
para não cair numa mesquinha cotidianidade” e ao mesmo tempo, não perder
de vista o local, ou seja, “caminhar com os pés na terra”. (EG, 234). De um
lado, os cidadãos não devem viver num “universalismo abstrato e
globalizante”, de outro, eles não podem transformar-se num “museu
folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir sempre as mesmas
coisas”. (EG, 234). Então, os cidadãos têm uma visão holística do seu mundo,

Ética, direitos humanos e meio ambiente 64


sabendo integrar o todo e as partes numa visão de unidade global e
autonomia local.
Para Francisco, o modelo de representação da primazia do todo em
relação à parte não é a esfera, pois esta é uma representação uniforme, em
que “cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um
ponto e o outro”. (EG, 236). Melhor é o modelo do poliedro, “que reflete a
confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade”, isto é, a
ação em todos os níveis reúne no poliedro o melhor de cada cidadão,
incorporando projetos, potencialidades, culturas, incluindo a face peculiar da
parte no todo. (EG, 236).
O fim é o todo: a conclusão deste princípio afirma que “o todo é superior
à parte” (EG, 237). O primeiro princípio enunciava a finalidade imanente a
toda a realidade que é atingir, pacientemente, o tempo da plenitude, na
impaciência do espaço limitado da história de cada época. Este princípio
vincula-se, agora, ao quarto princípio que tem como horizonte alcançar a
totalidade. Trata-se de um todo que incorpora todos os cidadãos e todas as
dimensões da natureza e da humanidade. Cabe concluir que há uma
complementaridade inclusiva entre os quatro princípios: teleológico e
metodológico, epistemológico e sistemático. Portanto, (1) o princípio
teleológico mantém a tensão entre tempo e espaço, isto é, as políticas
nacionais e locais, os governos e os cidadãos devem garantir a continuidade e
a implementação de políticas ambientais, pois os resultados requerem tempo
e responsabilidades que nem sempre correspondem à lógica da economia de
mercado; (2) o princípio metodológico da unidade e do conflito mostra que o
processo de construção da unidade entre a política e a economia é melhor
para o desenvolvimento sustentável do que o conflito de apenas buscar o
ganho econômico ou de apenas conservar e aumentar o Poder Político; (3) o
princípio epistemológico da realidade e da ideia convida ao diálogo entre os
diferentes atores sociais, políticos e econômicos, superando ideologias em
vista do bem comum, sabendo que a realidade é superior à idéia; (4) o
princípio sistemático da relação entre o todo e as partes propõe uma ecologia
integral em que o meio ambiente implica a relação entre a natureza, seus
ecossistemas e a sociedade, numa interação entre os ecossistemas e os
diferentes mundos sociais, pois tudo está relacionado e interligado.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 65


Referências

FRANCISCO. A alegria do Evangelho. Paulinas: São Paulo, 2013.

FRANCISCO. Laudato Si’. Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas,
2015.

WOLHFART, João. Hegel e Laudato Si’: a relação absoluta. 2015. No prelo.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 66


4
Cotas femininas nos parlamentos: uma discussão sobre o
papel da mulher na política e no mercado

Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia*


Rochelle Cardoso Barth**

Introdução

O ordenamento jurídico brasileiro alberga a reivindicação de igualdade


entre mulheres e homens – a Constituição de 1988 foi a primeira norma a
estabelecer o tratamento isonômico universal entre homens e mulheres no
Brasil (art. 5o, I e art. 226, §5o – CR/88); antes disso, toda a história do Direito
no Brasil, mesmo já sob as “luzes liberais”, mantinha diferenciações entre
homens e mulheres que colocavam estas em posição de inferioridade.1 Sabe-
se, contudo, que as práticas sociais ainda não refletem a igualdade
estabelecida juridicamente – ainda tão recente –, pois a sociedade brasileira é
androcêntrica. Isto é, ela estabelece a igualdade entre as mulheres e homens
de forma expressa, mas inibe na vida prática uma real equalização através da
imposição de papéis de gênero, e da ainda débil assunção de políticas

* Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto na UFOP e IBMEC-BH. Bolsista de

Produtividade da Capes. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito “Novos Direitos,


Novos Sujeitos”, da UFOP. E-mail: alexprocesso@gmail.com
** Procuradora do Estado de Minas Gerais. Mestranda em Teoria do Direito pela PUC Minas.

Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (2008).


Bacharel em Direito pela UFMG (2001). Graduanda em Filosofia pela UFMG. E-mail:
rochellecardosobarth@gmail.com
1 Vale citar, e.g., que o Código Civil de 1916 estipulava que o homem era o chefe da relação

conjugal; que era ele quem definia o domicílio do casal; que a mulher se tornava
relativamente incapaz ao se casar e que o casamento poderia ser dissolvido por nulidade em
até 10 dias, se a mulher não fosse virgem. Quanto ao penúltimo item, a mulher casada apenas
deixou de ser relativamente incapaz em 1962. Quanto aos demais – inclusive a norma sobre
este curioso caso de “prescrição” –, foi apenas com a Constituição de 1988, que tais
disposições foram banidas. Oito anos antes da nova Constituição, o TJRS confirmou a
anulação de um casamento, entre outras razões, porque provado que a mulher não era
virgem (TJRS, Reexame Necessário 34.837, 2a Câm. Cív., Rel. Ruy Ruben Ruschel, j.
14/5/1980).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 67


públicas de suporte à mulher.2 O trabalho feminino, fundamental para que a
mulher possa auferir renda, não é modelado para a trabalhadora mãe, que
dispõe de escassos recursos para a compatibilização do trabalho com a
maternidade.3 Uma das formas de combate à desigualdade é a efetiva
representação da mulher no Parlamento, de modo a permitir a modelação
das instituições pela mulher, e também para a mulher. Contudo, apenas em
2009, devido à alteração legislativa da Lei 9.504/1997, que ficou conhecida
como “Lei das Eleições”, tornou-se obrigatório o preenchimento mínimo das
candidaturas por um sexo em trinta por cento (art. 10, §3o). De acordo com
os dados coletados pela União Interparlamentar,4 a participação feminina no
Congresso Federal aumentou menos de três pontos percentuais entre os anos
de 1997 e 2015. No ranqueamento desse mesmo órgão, o Brasil ocupa a 154ª
posição em representação feminina no Legislativo, atrás de países como
Arábia Saudita, Somália e Afeganistão. Para que haja uma transição entre a
igualdade formal e simbólica e a igualdade material entre os sexos, é

2 “Locke, ao conceituar separadamente os dois domínios [público e privado] distinguindo-


lhes as formas de poder, deixou intacto o patriarcalismo na família, preocupando-se apenas
com sua incidência na esfera pública, como modelo de relação política. A discussão do
contratualismo aponta que a separação entre público e privado acentuou a exclusão das
mulheres, pela especialização por gênero entre atividades não-remuneradas e remuneradas,
necessárias à manutenção das famílias. Outra observação destaca que os acordos de
casamento, nas sociedades anglo-saxãs, representaram, até há bem pouco tempo, o direito do
marido à sexualidade da mulher, quando este o quisesse, mesmo em momentos que o desejo
da mulher não lhe fosse recíproco, permanecendo o acesso à sexualidade feminina sujeito ao
arbítrio masculino. Mais recentemente, a crítica aos contratos de casamentos se estendeu
para os de separação. Em casos da dissolução do vínculo contratual, na América do Norte, as
mulheres sairiam perdedoras no arranjo, uma vez que seus rendimentos seriam
proporcionalmente mais reduzidos que os dos homens, particularmente nos casos de
detenção da guarda dos filhos, o que explicaria, pelo menos em parte, o fenômeno da
feminilização da pobreza”. (AGUIAR, Neuma. Cidadania, concubinato e patriarcado: relações
de gênero e direitos civis na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. In: PANDOLFI, Dulce et
al. (Org.). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999. p.
189).
3 Nos primeiros anos da Revolução Russa, esse debate percorreu intensamente as discussões.

O papel da mulher, tanto na esfera pública quanto privada, teve ali uma série de
experimentações que na Europa Ocidental e EUA apenas se concretizariam muitos anos
depois, como o direito ao aborto e o divórcio com pensão, a participação nos coletivos de
deliberação e também outras proposições que visavam retirar da mulher o fardo das tarefas
domésticas, como a criação de restaurantes e lavanderias coletivas. (GOLDMAN, Wendy.
Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social soviéticas, 1917-1936. São Paulo:
Boitempo, 2014.
4 Dados retirados do ranking da União Interparlamentar, 2015. Disponível em:

<http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm>.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 68


necessária a adoção de ação afirmativa, com a previsão de cotas para as
mulheres nos assentos dos parlamentos. Essa ação estaria em franca
consonância com os objetivos (art. 1o, V e art. 3o, I, III e IV) e princípios
constitucionais (acima elencados), e é instrumento necessário para que a
igualdade prescrita se torne eficaz.

O trabalho feminino

No Brasil, a mulher deixa de ser relativamente incapaz apenas em 1962,


com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada. Contudo, dentre outras
prescrições, essa lei determinava que fosse o marido o chefe da sociedade
conjugal. Foram necessários mais 26 anos para que a Constituição Federal
consagrasse a igualdade entre mulheres e homens.
Quanto ao trabalho feminino, as exigências trabalhistas não são
adequadas às necessidades da mulher, não se incorporam à sua realidade.
Importantes aspectos do trabalho são moldados às necessidades
estritamente masculinas. Na medida em as mulheres ocuparam novos
espaços, o serviço doméstico e o cuidado com os filhos permaneceram sob
sua responsabilidade, o que faz com que à mulher seja imposta dupla/tripla
jornada de trabalho.
Uma normatividade que prescreve a igualdade não é suficiente. Os
meios para que a igualdade se efetive precisam estar disponíveis e usar a
igualdade formal para propor uma igualdade substantiva é subverter por
completo o viés igualitário da Constituição Federal. Na instância da vida
prática, a realidade é desigual, e não combatemos desigualdade com a sua
reprodução cega.
De outro lado, as políticas meramente compensatórias típicas do Estado
de Bem-Estar se mostraram também problemáticas ao agravar o já
mencionado problema da “feminilização da pobreza” existente ao tempo do
Estado Liberal.5 Isso porque aquele paradigma ainda tinha como pressuposto
que havia um padrão – o homem – a que as mulheres deveriam alcançar e,
para isso, se investia de políticas de igualdade, muitas vezes sem a devida

5Ver HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: ensaios de teoria política. São Paulo: Loyola,
2002. p. 296.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 69


consulta às interessadas sobre a adequação da medida; ao contrário, a
decisão era um tema para experts.
Percebe-se que a sociedade parece ser ainda incapaz de reconhecer a
inadequação das prioridades estatais para as necessidades de grande parte
da sua população. No caso brasileiro, mais da metade da população é
composta por mulheres. E para o atendimento de todo esse contingente, no
que diz respeito à educação e ao trabalho, não há adequado investimento no
número disponível de creches, no apoio para as estudantes-mãe, na fixação
de horário integral nas escolas, na adequação da licença paternidade.
As mulheres têm hoje acesso ao emprego, à educação, a cargos públicos,
à carreira militar. Mas esse acesso, conquanto fundamental para a construção
da igualdade, carece de suporte de políticas públicas, para que não se onere
sobremaneira a mulher, nem dê à sociedade a perigosa ilusão de que a
desigualdade está equacionada.
O que os tempos atuais reclamam é que, em primeiro lugar, as políticas
sejam o resultado de debates e formação de consensos/compromissos, nos
quais os/as afetados/as possam participar na formulação das mesmas. Em
segundo lugar, considerar que não há padrões e que em uma visão horizontal
da divisão do trabalho doméstico com o profissional, ao invés, por exemplo,
de se “proteger as mulheres” (e/ou seus filhos) com maior licença-gestante
para elas, uma forma de não tornar o trabalho feminino mais caro – e, logo,
aumentar o desemprego/subsalários das mulheres – é que o tempo pós-parto
com o recém-nascido seja um tempo “do casal” que irá decidir, em conjunto,
como dividi-lo, como ocorre na Suécia.6 Uma vez que a reprodução social é
um ônus com o qual toda a sociedade tem de arcar, se a legislação não coloca
os holofotes apenas sobre a mulher, então, o estigma sobre ela pode vir a ser
banido.
A igualdade não pode estar apenas no acesso – mesmo na competição
neutra, muitas vezes as funções predefinidas fazem com que os homens
sejam mais adequados a elas. Como observa Kymlicka:

6 FARIA, Carlos A. Pimenta de. Entre marido e mulher, o Estado mete a colher:

reconfigurando a divisão do trabalho doméstico na Suécia. Revista Brasileira de Ciências


Sociais, v. 17, n. 48, p. 173-231, fev. 2002.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 70


Essa incompatibilidade que os homens geraram entre a criação dos filhos
e o trabalho remunerado tem resultados profundamente desiguais para
as mulheres. O resultado não é apenas que as posições mais valorizadas
da sociedade são ocupadas por homens, enquanto as mulheres
encontram-se desproporcionalmente concentradas no trabalho de meio
período e com salário mais baixo, mas também que muitas mulheres
tornam-se economicamente dependentes dos homens. Quando a maior
parte da “renda familiar” vem do trabalho remunerado do homem, a
mulher, que faz o trabalho doméstico não remunerado, torna-se
dependente dele para acesso aos recursos. [...] as responsabilidades pelo
cuidado dos filhos é, ela própria, uma profunda fonte de desigualdade
sexual, uma fonte que surgiu da maneira como os homens estruturam
historicamente a economia para que se adequasse aos seus interesses.7

A lei não garante, por si só, a isonomia. As conquistas recentes das


mulheres são ainda incompletas. Se em alguns casos o acesso a posições não
é mais limitado a um gênero, a própria modelagem do trabalho nasceu na
desigualdade, de maneira que relações e instituições foram construídas por
homens e adequadas aos seus interesses, a partir do pressuposto de que os
homens teriam suas mulheres em casa, a cargo do trabalho doméstico,
deixando-os livres para atenderem as demandas profissionais. Em uma
estrutura moldada por homens, esses serão sempre mais adequados para
ocupá-la, o que só se alterará quando as mulheres forem também as
definidoras das estruturas sociais. Depreende-se, então, que a questão não se
trata de “trazer as mulheres ao mesmo status dos homens”, mas, sim, de
redefinir estruturas e conceitos postos, de tal forma que o trabalho da mulher
possa se dar em uma nova perspectiva – em que, por exemplo, elas não
tenham que ser “punidas” por tentarem combinar a vida doméstica e
profissional, já que uma e outra são modeladas de tal forma que se possa
obter “sucesso e realização” em ambas. É preciso repisar que funções
domésticas não pertencem “naturalmente” às mulheres; que devem ser
criadas estruturas sociais/familiares (e quiçá jurídicas), que distribuam esse
ônus de forma a não prejudicar a mulher no mercado de trabalho. O mesmo
se diga do cuidado dos filhos, uma vez que a reprodução social é algo que
deve ser suportado por toda a sociedade, não só pela mulher – e nem só pelo
casal –, já que é de interesse de toda a sociedade que se produzam novas
gerações.

7 KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: M. Fontes, 2006. p. 309.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 71


A adoção do Estado Democrático de Direito, como quer o art. 1º da
nossa Constituição trouxe consigo um influxo de valores que foram
positivados na forma de fundamentos, princípios e objetivos que permeiam
nossa República. Tais princípios não se limitam a influenciar o momento pré-
jurídico, mas se enraizaram no plano constitucional. E é nesse sentido que o
ordenamento jurídico brasileiro acolhe as mulheres. Um dos objetivos da
República Federativa, conforme prevê a Constituição Federal, em seu art. 3º,
é “a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação” (grifo nosso). Em seu art.
5º, a Constituição prescreve que todos são iguais perante a lei, e que
mulheres e homens são iguais em direitos e obrigações, nos seus próprios
termos. No seu art. 7º, inciso XXX, estatuiu “a proibição de diferença de
salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de
sexo, idade, cor ou estado civil”. Não obstante, existe uma clivagem entre os
planos jurídicos e o das práticas sociais, e são essas práticas que revelam a
real condição da mulher no País.
Aproximando-nos da casuística, existe algo, no mínimo perturbador,
quando diante dos dados que engolfam essa igualdade que se mantém apenas
no plano formal. Veja-se que foi preciso a aprovação de leis – ver Lei
9.029/95 e Lei 9.799/99 – que proibissem a exigência de atestados de
gravidez e esterilização para admissão/permanência no trabalho para
mulheres, sujeitando os infratores à pena nalguns casos.8
O fenômeno jurídico é múltiplo, mas o ordenamento é um só. O direito é
orgânico, sistêmico, permitindo-nos cortes apenas metodológicos para a
melhor apreensão das partes. Para tanto, foi tradicionalmente segmentado
em “ramos”, ensejando autonomizações artificiais, tendo em vista a unidade
do direito. Não podemos deixar de constatar que essa separação é
facilitadora do estudo jurídico, desde que tenhamos sempre em mente a
noção de sistema. A análise, portanto, de qualquer instituto jurídico deve
sempre ser feita à luz da Constituição, no sentido Texto Constitucional, para a

8Cite-se também que o Brasil ratificou a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher” (1979) e que atualmente vale no Brasil como norma
supralegal sem algumas das reservas que, originalmente, o País havia imposto, conforme o
Decreto 4.377/02. Vale destacar alguns dos artigos da Convenção, que se relacionam
diretamente com o que aqui se discute: arts. 3o a 16. Ver também: Decreto 4.316/2002.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 72


legislação infraconstitucional. Daí que não é preciso grandes esforços
teóricos para se chegar à conclusão de que, embora na ponta do sistema
esteja a prescrição de igualdade, que por sua natureza constitucional
conforma todo o ordenamento, a modelagem de instituições como o trabalho,
elaborado por regras que vem de uma longa construção (e conquista)
histórica, a estrutura do direito vem sendo arquitetada há muito por uma
visão predominantemente masculina de mundo, de necessidades e clamores
de uma voz unívoca, e, no caso específico do trabalho, tendo por pano de
fundo um cenário de liberdade para a dedicação ao labor fora de casa, já que
o trabalho doméstico, desvalorizado e não remunerado, estaria a cargo da
mulher.
Quem participou da engenharia dos modelos institucionais, e para
quem foram criadas as instituições é ponto central desta análise.
Um exemplo alarmante no Brasil é a atual discussão acerca de uma
nova reforma da previdência social. Dentre os dispositivos legais a serem
alterados, está a controversa proposta de equiparação das idades mínimas
para homens e mulheres se aposentarem, ou, alternativamente, a redução da
diferença entre elas.
Esse sistema aparentemente igualitário, em vista da maior expectativa
de vida das mulheres – embora a diferença entre a média de homens e
mulheres esteja reduzindo, conforme dados do IBGE9 – traduzir-se-ia em
uma subversão dos dados concretos, que apontam que a mulher cumpre uma
dupla, quando não tripla jornada de trabalho, pois, via de regra, não apenas
trabalha fora de casa, o que lhe garante algum proveito econômico para seu
sustento e o de sua família, como é a responsável pelos cuidados com os
filhos e com a casa. A mulher que trabalha fora acumula suas funções com o
trabalho doméstico, tratando-se, este último, de função subvalorizada e sem
remuneração.
As mulheres estão em desvantagem sistêmica no tocante ao trabalho, ao
acesso ao desenvolvimento e no que tange ao acúmulo de funções. Igualar as

9Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2013 – Breve análise da mortalidade nos
períodos 2012-2013 e 1980-2013. Disponível em:
<ftp://ftp.ibge.gov.br/Tabuas_Completas_de_Mortalidade/Tabuas_Completas_de_Mortalidad
e_2013/notastecnicas.pdf>.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 73


idades para a aposentadoria, neste cenário, é desconsiderar a enorme
desigualdade de gênero e promover a perpetuação da desigualdade material;
a menos que, como já dito acima, sejam reestruturadas todas as definições de
mercado de trabalho, família e ônus decorrentes, o que, salvo melhor juízo,
demandaria um conjunto de ações e planejamento que não podem ser feitos
por uma mera alteração legislativa isolada.
Considerando que, historicamente, a mulher não é representada por
pares na elaboração de políticas públicas voltadas para seu trabalho, para a
maternidade e para a sua aposentadoria; considerando que a ausência de
representatividade culmina na reprodução de um modelo de trabalho
masculino; considerando ainda que, culturalmente, as mulheres são
responsáveis pelos cuidados com a prole e com a casa, restando à maioria das
mulheres o trabalho dobrado, dentro e fora de casa, quando não triplicado,
quando a mulher tenta somar a essa rotina de trabalho, a tentativa de se
qualificar para conseguir melhores postos, a proposta de equiparação das
idades mínimas para a aposentadoria ou a redução da sua diferença
desconsidera por completo a realidade das mulheres brasileiras, ferindo de
morte a igualdade material.
Vale lembrar que o exercício de poder amplamente masculino não
coaduna com a prescrição constitucional de isonomia. Se o poder não é
exercido por aquelas que representam a maior parte da população, o que isso
revela da democracia brasileira?
Conquanto degradante, a razão da mulher é dada – obnublada, em um
enquadramento social opaco e limitado. Até os usos da linguagem revelam a
reiteração de práticas sexistas. As afirmações corriqueiras como “ele me
ajuda com a casa” ou “ele me ajuda com o bebê” são indicativas da dócil
aceitação de uma responsabilidade que lhe é “natural” – afinal, não há ajuda
de si mesmo em tarefa própria. Assim, passivamente aceitam-se os encargos
“naturalmente” femininos, o que resulta na sua dupla jornada de trabalho.

O capital sexual

A maioria dos cargos e funções exige um período de jornada


incompatível com horários escolares. Frequentemente apela-se para um

Ética, direitos humanos e meio ambiente 74


familiar ou um vizinho para o cuidado dos filhos durante a jornada de
trabalho e do período de deslocamento. Mas nem sempre a mulher tem uma
rede privada de apoio, e é necessário um pequeno pagamento para deixar a
criança com pessoas – por vezes – despreparadas para a função. Se a renda
da família for insuficiente para cobrir custos de berçário, de escola que
ofereça horário estendido ou com a contratação de funcionário que fique a
cargo dos filhos, frequentemente a escolha da família é pela permanência da
mulher em casa para cuidar desta função, bem como do trabalho doméstico,
já que além de socialmente aceitável, ainda são raros os casos em que a renda
auferida pela mulher seja maior do que a do marido. A escolha pela
permanência da mulher em casa torna-se, portanto, “natural”. Isso não
apenas interrompe a carreira da mulher, como afeta drasticamente seu
padrão de vida em caso de divórcio. Na ausência de uma rede de proteção
pública da maternidade e da infância, a mulher frequentemente sai da
dependência de uma figura masculina para outra: do pai para o marido. Esse
cenário ainda colabora para a manutenção de investimento no “capital”
sexual da mulher – ela precisa ser sexualmente atraente para conquistar um
marido economicamente bem-sucedido que lhe dê proteção. Esses fatores
colaboram para a pobreza e dependência, resultando na conformação de
identidades femininas bem delineadas culturalmente. As mulheres são
estimuladas a serem atraentes, a obedecerem normas de beleza e de
comportamento, e hoje em dia de uma forma, embora nada sutil, perniciosa:
sob o invólucro de revelação de uma essência feminina, atrelada a uma
promessa de felicidade. Nas palavras de Chanter:
As mulheres são constantemente exortadas a revelar sua feminilidade, a
não se vestirem de maneira masculina, a não esconderem suas silhuetas,
a não usarem moda demasiadamente jovem ou antiga, roupas apertadas
ou folgadas, a vestirem-se de modo sexy e não desalinhado, para mostrar
apenas a quantidade certa dos seios, a não mostrarem muito as pernas,
mas o suficiente, a cobrirem as partes do corpo que demonstram sinais
de envelhecimento e a fazer o melhor com aquelas partes do corpo que
ainda demonstram sinais de juventude. As mulheres são estimuladas a
usarem salto alto, são treinadas para que apliquem maquiagem do jeito
certo, são destruídas emocionalmente, com frequência a ponto de
chegarem às lágrimas, até que percebam o quanto estiveram erradas e
estejam prontas para serem novamente iluminadas, reconstruídas e
ganharem nova forma, como receptáculos coniventes da moda, em cujos
corpos é inscrita a mensagem da sexualidade patriarcal, heterossexual e

Ética, direitos humanos e meio ambiente 75


normativa. Seja a mulher que você é! Permita que seu interior surja!
Desenvolva sua sexualidade feminina e verdadeira! [...] Adapte-se às
expectativas da sociedade.10

O “investimento” no capital sexual pela mulher ainda é uma forma de


empobrecimento e de manutenção da sua dependência. Fatores diversos
como a reprodução em massa pela mídia de padrões comportamentais,
expectativas familiares, cobranças sociais e um mercado que produz uma
onipresente propaganda de produtos para consumidoras que tentam se
adequar aos padrões de beleza e feminilidade forjam desejos e preservam
uma forte demanda representativa da aceitação dócil do papel de mulher.
Acerca da liberação da mulher, Bourdieu pondera:
Aos que objetariam que inúmeras mulheres romperam atualmente com
as normas e formas tradicionais daquela contenção, apontando sua atual
exibição controlada do corpo como um sinal de “liberação”, basta
mostrar que este uso do próprio corpo continua, de forma bastante
evidente, subordinado ao ponto de vista masculino (como bem se vê no
uso que a publicidade faz da mulher, ainda hoje, na França, após meio
século de feminismo): o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e
recusado, manifesta a disponibilidade simbólica que, como
demonstraram inúmeros trabalhos feministas, convém à mulher, e que
combina um poder de atração e de sedução conhecido por todos, homens
ou mulheres, e adequado a honrar os homens de quem ela depende ou
aos quais está ligada, com um dever de recusa seletiva que acrescenta, ao
efeito de “consumo ostentatório”, o preço da exclusividade.11

Uma sociedade na qual a mulher recebe salários menores, em que o


aborto é proibido, em que as políticas públicas não priorizam o trabalho
feminino e onde não há nenhum tipo de compensação pelo trabalho
doméstico é uma sociedade reprodutora da condição inferior da mulher e da
sua subalternização.

A representação feminina

No tocante à vida política, a partir de 1932 a mulher passa a ter direito


ao voto. No entanto, as mulheres não atingem hoje 10% de representação na

10CHANTER, Tina. Gênero: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 68.
11BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p.
40.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 76


Câmara dos Deputados. O Brasil ocupa uma das últimas colocações no
ranking mundial de presença feminina no Parlamento – 154ª posição, com
enorme defasagem em comparação aos países da América do Sul e atrás de
países como Arábia Saudita, Somália, Síria, Iraque e Afeganistão.12 A
legislação eleitoral, de fato, prevê que, pelo menos 30% das candidaturas
devem ser de um dos gêneros, contudo, não obriga os partidos a fazerem
qualquer investimento nas candidaturas de mulheres. Ao contrário, a norma
eleitoral não prevê qualquer sanção para os partidos que não cumprirem a
“cota” e, mesmo quando cumprida, é comum que candidatas mulheres fiquem
com “zero” votos, o que demonstra que foram colocadas ali apenas “para
cumprir tabela”.13
Recheada de candidatas fantasmas, a Lei de cotas virou um roteiro de
ficção. Tanto que surtiu efeito quase zero no resultado das eleições para
as Câmaras municipais. Em 2008, pré-cota, as mulheres eram 22% das
candidatas e foram eleitas para 12,5% das vagas. Após a cota, o balanço
das urnas foi parecido: 13,3% de eleitas, em 2012; 13,5%, em 2016. [...] A
maioria dos partidos recorre às fantasmas. Nas eleições de 2016, 35
siglas concorreram a vereador. Em mais da metade delas, acima de 10%
das candidatas não tiveram voto. No topo, está o PRTB, com 15%. Nem o
Partido da Mulher Brasileira apareceu melhor na foto – tem 11%. Os
únicos que não tiveram mulheres com voto zero são também os que
menos apresentaram candidaturas, PCO e NOVO.14

É importante assinalar, sem embargo, que há diferença entre os


partidos quanto à participação de mulheres em seus Diretórios Nacionais e
Executivas Nacionais. Enquanto o DEM é dos com maior representação na
Câmara dos Deputados, aquele com menor participação de mulheres – dos 49

12 Dados retirados do ranking da União Interparlamentar, 2015. Disponível em:


<http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm>.
13 Há um número significativo de homens e mulheres com “zero votos”; no entanto esse

número é muito mais entre as mulheres. Nas eleições municipais de 2016, quase 15 mil
candidatas a vereadora não tiveram nenhum voto, o que corresponde a 10% das candidatas;
entre os homens candidatos sem voto o índice foi de 0,6%. JORNAL NACIONAL. Quase 15 mil
candidatas a vereadora não tiveram nenhum voto. 27.10.2016. Disponível em:
<http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/10/quase-15-mil-candidatas-
vereadora-nao-tiveram-nenhum-voto.html>; e: ROSSI, Amanda; MAZOTTE, Natália. Partidos
recorrem a candidatas “fantasmas” para preencher cota de 30% para mulheres. Gênero e
Número – Narrativas pela equidade, [s/d]. Disponível em:
<http://www.generonumero.media/partidos-recorrem-candidatas-fantasmas-para-
preencher-cota-de-30-para-mulheres/>.
14 ROSSI; MAZOTTE op. cit.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 77


membros a Executiva apenas possui duas mulheres e, no Diretório Nacional,
elas são menos de 5% –, o PT possui os maiores números no Diretório
Nacional (46%) e na Executiva (32%). Vale lembrar que o PT possui cota de
mulheres para tais posições desde 1991.15
O voto feminino produziu efeito pouco mais do que simbólico, não
resultando em acesso aos espaços de tomada de decisão. A ampliação da
presença feminina nos parlamentos não se concretizou. Conquanto uma
parlamentar não necessariamente represente uma mulher, é historicamente
perceptível que a manutenção de parlamentos compostos essencialmente por
homens não modificará, como de fato não modificou até o presente momento,
a condição das mulheres. A desigualdade enraizada, inclusive no corpo
político, é espelho da posição social feminina de subalternidade, daí a
premente necessidade da presença significativa das mulheres na arena
política. A política de reserva de vagas para candidaturas não é eficaz, na
medida em que não determina o investimento real em candidatas para as
vagas disputadas.
Além da cota, a lei geral dos partidos, a lei do Fundo Partidário (Lei
9.096/95) foi alterada em 2009, para que fosse incluído no art. 44 o inciso V
que dispõe que pelo menos 5% do valor recebido pelos partidos deve ser
destinado à “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da
participação política das mulheres conforme percentual que será fixado pelo
órgão nacional de direção partidária”. Em 2015, esse inciso foi alterado e
agora dispõe que os recursos deverão ser gastos: “V – na criação e
manutenção de programas de promoção e difusão da participação política
das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo
partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de
pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV,
conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção
partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total”. Percebe-se
que tal valor é muito baixo e que tem produzido nenhum ou pouquíssimos
resultados, por tudo o que aqui já foi exposto.

15 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 78


Ocupar o Parlamento significa obter as condições de construção de uma
igualdade substantiva. Cotas nos assentos dos parlamentos é política
afirmativo-constitucional que tem o poder de viabilizar uma pauta concreta
de políticas públicas para a igualdade. As condições paritárias para as
mulheres ainda dependem de medidas de proteção que só serão alcançadas
pela priorização de demandas na política. Nas palavras de Sabadell:
A análise feminista desvendou que os princípios constitucionais que
legitimam o discurso jurídico padecem de eficácia social, já que em todos
os níveis da atividade jurídica (legislação, doutrina, aplicação do direito)
podem ser identificados elementos que (re)produzem a discriminação da
mulher, contrariando as promessas de liberdade e igualdade.16

Uma questão que precisa ser resolvida é que a presença de mulheres no


Parlamento não é condição sine qua non para que haja políticas para as
mesmas. No entanto, a representação parlamentar tem na identidade um
componente muito importante. Claro que é possível que um negro, por
exemplo, seja eleito e seja contra políticas de cotas e outras ações afirmativas
para superação da discriminação histórica; contudo, é mais provável que ele
assuma para si tal agenda ao se candidatar e busque votos, justamente, por
causa da mesma.
O reconhecimento da diversidade é essencial numa sociedade complexa
e plural como a nossa: uma sociedade na qual a diversidade não é mais
vista como um “mal a ser eliminado”, mas, ao contrário, é uma virtude a
ser preservada (se e na medida ditadas pelos que representam tal
diversidade). Em sociedades pós-tradicionais, pós-metafísicas [...],
surgem novas subjetividades, que fazem surgir novas (?) reivindicações
e que, por sua vez, criam novas agremiações, paralelas (e até em
competição) com os mecanismos tradicionais de representação
(partidos, sindicatos, etc.) [...]. Serão esses grupos (e não a Administração
burocrática estatal) que, por compartilharem experiências similares de
discriminação e opressão estrutural, terão melhores condições de
interpretar suas próprias situações e de suas relações com outros grupos
[...].17

16 SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do
direito. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013. p. 220.
17 BAHIA, Alexandre Melo Franco. Igualdade: 3 dimensões, 3 desafios. In: CLÈVE, Clèmerson

M.; FREIRE, Alexandre (Org.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica
e contribuições. São Paulo: RT, 2014. p. 81.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 79


Young,18 em sua complexa teoria sobre a representação, mostra que
esta é mais do que mera “identidade” entre governante e governados, uma
vez que estes não podem “falar como” o representante, já que é impossível
que uma pessoa some as pluralidades de interesses – por vezes conflitantes –
que qualquer pessoa soma em sua experiência de vida (mulher, negra,
favelada, umbandista, etc.). Por isso a autora trabalha com a ideia derridiana
de “diférance” para falar em representação não como identidade, mas como
um “relacionamento diferenciado” (de autorizações e prestações de contas)
ao longo do tempo e do espaço de relação entre representante e
representados. Para a autora, quando uma pessoa “se sente representada”
isso significa uma soma de interesses, opiniões e perspectivas. Para nós aqui
interessam as últimas: o modo como pessoas são posicionadas em estruturas
de grupos sociais – sem que, contudo, uma só estrutura determine suas
identidades. Segundo ela,
a diferenciação de grupos propicia recursos para um público
democrático comunicativo que visa estabelecer a justiça, uma vez que
pessoas diferentemente posicionadas têm diferentes experiências,
histórias e compreensões sociais, derivadas daquele posicionamento. [...]
Conforme suas posições sociais, as pessoas estão sintonizadas com
determinados tipos de significados e relacionamentos sociais, com os
quais outras pessoas estão menos sintonizadas.19

Seguindo tal ideia, pessoas que estão mais “próximas” do grupo têm
pontos de vista mais similares sobre ele do que quem está distante. Isso não
quer dizer que duas pessoas que compartilham uma mesma perspectiva
tenham as mesmas posições, já que cada uma está voltada a diferentes
aspectos que toma como relevantes; contudo, compartilhar a mesma
perspectiva lhes dá uma “afinidade com o modo como a outra descreve o que
experiencia, uma afinidade que as pessoas posicionadas diferentemente não
experienciam”, e, mais à frente, “os indivíduos são mais bem representados
quando os organismos de representação são plurais e quando os indivíduos

18 YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova, n. 67, p. 139-

190, 2006.
19 Ibidem, p. 162.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 80


têm relacionamentos plurais com os representantes, tanto nas associações
civis quanto nas organizações políticas”, defende Young.20
E como isso se mostra nos parlamentos mundo afora? Segundo Young:
“[p]oucos negariam que os membros de grupos sociais estruturais menos
privilegiados estão sub-representados na maioria das democracias
contemporâneas”.21 Garantir a participação desses grupos excluídos é
importante por várias razões, como evitar sua apatia política, diante de um
cenário político com o qual não estabelecem qualquer relação de
pertencimento; amplia o espectro da discussão, desnaturaliza políticas – até
então – tidas como neutras/universais, já que tomadas por quem
historicamente está no poder; combate a discriminação sistemática, tanto
política quanto social. Tudo isso quer dizer que somente uma pessoa com os
atributos descritivos do grupo possa representá-lo? Não, necessariamente,
diz Young, mas, nesse caso, será “preciso que ela esteja situada em relações
sociais similares às daquela pessoa que possui os atributos descritivos”.22

Conclusão

Ao abandonar um modelo de pensamento androcêntrico, de um


machismo virulento comprometedor de mudanças sociais, um novo filtro,
uma nova luz se projeta sobre o direito, conduzindo-nos a uma nova
perspectiva, a uma interpretação renovada e remodelada por fundantes
princípios fornecedores da nova tônica dominante – a tônica isonômica, que
mesclada à proteção individual, dá-nos a nova direção do modelo a se
implantar e cujas diretrizes e balizas estão todas fundadas em nossa lei
maior.
Teóricos homens em um passado recente defenderam a existência de
um fundamento biológico para o confinamento da mulher à família, e para a
sujeição legal das mulheres aos seus maridos. Mulheres foram consideradas
aptas para a economia doméstica, e inaptas para a vida política e para as
atividades fora do lar. Mesmo Mill, que endossava a afirmação da capacidade

20 Ibidem, p. 163, 173.


21 Ibidem, p. 169.
22 YOUNG, op. cit., p. 178.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 81


feminina de realizar qualquer empreendimento que lhe aprouvesse, entendia
ser da responsabilidade da mulher, por consentimento, o trabalho doméstico.
Não obstante as conquistas femininas na contemporaneidade, estamos
muito distantes, em todo o mundo, de uma igualdade real, principalmente se
considerarmos uma igualdade que reconheça a diversidade. Conquanto
degradante, a razão da mulher é dada – obnublada, em um enquadramento
social opaco e limitado, reforçado até mesmo pelos usos da linguagem.
Articulando o caráter igualitário da Constituição com as atuais
estruturas de trabalho, bem como com a inexpressiva representação
feminina no parlamento brasileiro, podemos afirmar a imperiosa necessidade
de se empreender esforços para a adoção de políticas públicas, inclusive e
especialmente a cota para mulheres nos assentos dos parlamentos, como
uma medida instrumental para uma efetiva representação democrática. Um
grupo que representa mais de metade da população precisa ser adicionado
ao hoje restrito clube dos atores políticos do País. À identidade e memória da
mulher, construída historicamente e, exatamente por isso, também
juridicamente, precisa ser adicionada a possibilidade, não apenas simbólica,
mas concreta, da atuação política e da experiência do aberto. O aberto da
identidade, construído através das possibilidades, também jurídicas e
políticas de seu próprio país.

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 83


5
A sociedade de consumo e a banalização do mal: a
participação social como instrumento de mudanças
socioambientais

Agostinho Oli Koppe Pereira*


Sandrine Araujo Santos**
Henrique Mioranza Koppe Pereira***

Introdução

A ideia inicial, que ensejou a elaboração do presente artigo, se deu pela


intenção de compreender se havia proximidades entre o que foi definido
como mal banal, por Arendt, e a sociedade de consumo.
O cenário desses fatos é a modernidade que, ao longo de suas
mudanças, foi palco para o nascimento de uma sociedade que, priorizando
seu crescimento econômico, viu, no incentivo à produção de bens e serviços,
uma possibilidade de alavancar progresso material sempre traduzido em
números econômicos.
Cumpre mencionar que o incentivo à produção ensejou a ampliação do
espaço para novas descobertas da ciência, entendida como chave capaz de
resolver qualquer desafio que se antepusesse aos ideais da modernidade.
Por outro lado, já no início deste trabalho, deixa-se gravado que,
juntamente com essas descobertas aumentaram-se também os riscos
ecológicos, sejam eles relacionados com a questão energética ou alimentar,

* Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Pós-Doutorando
em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor e pesquisador no Programa de Pós-
Graduação – Mestrado e Doutorado – e na Graduação em Direito da Universidade de Caxias
do Sul (UCS). Coordenador do Grupo de Pesquisa Metamorfose Jurídica. CV:
<http://lattes.cnpq.br/5863337218571012>. E-mail: Agostinho.koppe@gmail.com
** Mestranda em Direito. Área de Concentração: direito ambiental e sociedade, no Programa

de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS/RS). Bolsista/taxista


Capes. E-mail: sandrinesantos85@gmail.com.
*** Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz. Mestre em Direito pela Universidade

do Vale do Rio dos Sinos. Professor e pesquisador colaborador no Grupo de Pesquisa


Metamorfose Jurídica da Universidade de Caxias do Sul.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 84


entre outras modalidades, constituindo a sociedade que, autores como Beck,1
convencionaram chamar de Sociedade de Risco.
Nesse contexto, estão inseridos os cidadãos, ora reconhecidos apenas
como consumidores, que passam a buscar sua realização pessoal na aquisição
de bens de consumo, induzidos por agressivas políticas de marketing, e
aparentemente anestesiados e isolados para consumir e ignorar os reflexos
de seu consumo sobre o meio ambiente e sobre sua liberdade.
Assim, o presente artigo verifica se existem semelhanças desta
circunstância com o chamado mal banal, que pela definição de Arendt, ao
descrever o julgamento de Eichmann em Jerusalém, mostra-se diante de uma
ausência de reflexão pelo idealizador do ato, que age automaticamente ao se
ver responsável pelo cumprimento de um dever.
Outro aspecto a ser discutido e assinalado é a força do poder econômico
– fundamento e suporte do capitalismo e, por isso mesmo, com quem guarda
relação de causa e efeito – como um sistema fechado, capaz de afastar o
envolvimento dos cidadãos dos espaços democráticos, mantendo-os apenas
como instrumento de circulação de valores pela aquisição de bens e serviços.
Por fim, quer se enaltecer a necessidade de se incentivar a participação
popular (utilizamos popular ou social?) dos cidadãos, como forma de
aproximá-los dos processos decisórios relevantes em conjunto com o Poder
Público.
O método utilizado nesta pesquisa foi o analítico, com base em pesquisa
bibliográfica e documental, com vistas a fundamentar a relação entre os
temas propostos.

A modernidade e a formação da sociedade de consumo

Pretende-se, neste tópico, compreender, ainda que em linhas gerais, as


diferentes fases vividas na modernidade, que permitiram caracterizar a
sociedade moderna como “sociedade de consumo”.
O importante neste aspecto é observar a interferência da ideia de
consumo nas concepções individuais e se este processo seria capaz de trazer

1 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2011.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 85


melhorias consideráveis na concepção do indivíduo enquanto cidadão e na
preservação ambiental, sendo que pelos caminhos percorridos tais hipóteses
se contradizem.

Modernidade e as fases do consumo

Para iniciar a reflexão acerca da sociedade de consumo, importa


observar o que Giddens esclarece, na obra As consequências da modernidade,
quando traz o questionamento sobre o que é modernidade. Responde citado
autor que modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização
social que emergiram na Europa, a partir do século XVII, e que anteriormente,
se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.2 Além disso,
avaliando esta nova fase, Giddens observa que é necessário “capturar a
natureza das descontinuidades”3 do “desenvolvimento social moderno”, para
que se compreenda o sentido da modernidade e suas consequências para a
sociedade.4
Ao lado dessa compreensão introdutória de Giddens, menciona-se a
posição de Beck, que permite compreender que a Modernidade foi marcada
por duas fases, sendo a primeira representada pela Sociedade Industrial e a
segunda pela Sociedade de Risco.5 Embora essa posição de Beck demonstre
sua visão eurocentrista (alemã), em meados de 1986, esse raciocínio inicial
permitiu estabelecer uma localização espacial e temporal do início desse
ciclo, que pode intervir em toda a relação de produção e consumo
subsequentes.
Na sequência da Revolução Industrial, a modernidade se firma e com
ela o modelo de Estado Moderno permeado por desafios sociais, políticos,
econômicos e ambientais. Esse caminho abre espaço para o consumo

2 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. de Raul Fiker. São Paulo: Ed. da
Unesp, 1991. p. 11.
3 Na citada obra, na p. 14, Giddens menciona como exemplos dessa descontinuidade a

transição entre sociedades tribais e a emergência de estados agrários, os quais não são
objeto de seu interesse, o que permite notar que seu interesse está voltado aos modos de
vida que a modernidade produziu desvencilhados dos tipos tradicionais.
4 Ibid., p. 13.
5 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2011. Na visão exposta por Beck, na

sociedade industrial eram produzidas e distribuídas riquezas, enquanto na sociedade de


risco eram produzidos e distribuídos riscos, caracterizando as duas fases mencionadas.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 86


desenfreado, intrínseco ao modelo capitalista, que, ao longo dos anos, deu
espaço ao “ter” em detrimento do “ser”.6 Dentro desta lógica, para
incrementar a manutenção desse sistema, passaram a ter espaço as
necessidades e as vontades criadas para incentivar o consumo e passar a
ideia de que a felicidade dependia de novas aquisições e satisfações
materiais.
Por esta razão, tem-se a modernidade como o berço do capitalismo, que
proporcionou a “implantação de ideologias compatíveis com o novo estado
de ser”7. E, para cumprir esse objetivo, introduziram-se o marketing e a
publicidade, fomentados pelos meios de comunicação, como estimuladores
do consumo, capazes de orientar a escolha dos cidadãos, já entendidos como
consumidores, na aquisição de produtos e serviços.8
Considerada desta forma, essa força introduzida na modernidade
constitui-se uma retirada gradual da liberdade do cidadão, que “apenas
apresenta-se simbolicamente num contexto ilusório, como miragem
concebida na fome e na sede de um deserto programado”.9 Este cenário
traduz-se nas palavras de Lipovetsky ao dizer que “uma nova modernidade
nasceu: ela coincide com a ‘civilização do desejo’ que foi construída ao longo
da segunda metade do século XX”.10
Lipovetsky assinala que a sociedade viveu, de 1880 até a Segunda
Guerra Mundial, o Ciclo I da era do consumo de massa. A primeira fase foi
marcada pela presença dos mercados locais que se expandiram, ao longo dos
anos, de mercados locais para grandes mercados nacionais, hoje cada vez
mais vigorosos com a globalização. Esse consumo de massa foi possibilitado

6 PEREIRA, Agostinho O. K.; CALGARO, Cleide. Desenvolvimento sustentável e o


consumocentrismo: o paradoxo da modernidade. In: PEREIRA, Agostinho O. K.; CALGARO,
Cleide; PEREIRA, Henrique M. K (Org.). O consumo na sociedade moderna [recurso
eletrônico]:conseqüências jurídicas e ambientais. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016. p. 43.
7 PEREIRA, Agostinho O. K.; CALGARO, Cleide. A modernidade e o hiperconsumismo: políticas

públicas para um consumo ambientalmente sustentável. In: PEREIRA, Agostinho O. K; HORN,


Luiz. F. D. R. (Org.). Relações de consumo: políticas públicas. Caxias do Sul, RS: Plenum, 2015.
p. 17.
8 Ibidem, p. 16.
9 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São

Paulo: Cia. das Letras, 2007.


10 LIPOVETSKY, op. cit., p. 11.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 87


pelo incremento da produção, através das máquinas de fabricação contínua,
que facilitavam a produção e reduziam os custos.11
Além do aprimoramento da produção industrial em série, o
“capitalismo de consumo” faz uma mudança cultural que passou a permear a
educação dos consumidores – envolvidos pelo “espírito visionário de
empreendedores criativos, a ‘mão visível dos gestores”12 – incentivados a
consumir, a adquirir. A essa etapa do consumo, Lipovetsky referiu como “um
projeto de democratização do acesso aos bens mercantis”, visto que os
produtos passaram a ser acessíveis às massas.13
A segunda fase, como esclarece Lipovestky, fica conhecida como
“sociedade da abundância”, visto que nela, por volta de 1950 – analisando
aqui os ditos países de primeiro mundo –, já se notava um crescimento
econômico, da produtividade e da regulação fordista da economia, que fez
crescer também os salários, logo o consumo dos trabalhadores,
intensificando o consumo massivo.14
Essa intensificação do consumo passou a ser característica permanente
da sociedade, mantendo-se atualmente, em nível global, caracterizando-a
como sociedade de consumo.15 Nas palavras de Horn e Vergani,

11 LIPOVETSKY, op. cit., p. 27. O autor relata a produção: “No fim dos anos 1880, nos Estados
Unidos, uma máquina já podia fabricar 120 mil cigarros por dia: trinta dessas máquinas
bastavam para saturar o mercado nacional. Máquinas automáticas permitiam que 75
operários produzissem todos os dias 2 milhões de caixas de fósforos. A Procter&Gamble
fabricava 200 mil sabonetes Yvoy por dia. Máquinas desse tipo apareciam igualmente na
produção do material de limpeza, dos cereais matinais, dos rolos fotográficos, das sopas, do
leite e outros produtos embalados. Assim, as técnicas de fabricação com processo contínuo
permitiriam produzir em enormes séries mercadorias padronizadas que, embaladas em
pequenas quantidades e com nome de marca, puderam ser distribuídas em escala nacional, a
preço unitário muito baixo. A expansão da produção em grande escala é também estimulada
pela reestruturação das fábricas em função dos princípios da ‘organização científica do
trabalho’. Foi no setor do automóvel que estes receberam sua aplicação mais ampla. Graças à
linha de montagem móvel, o tempo de trabalho necessário à montagem de um chassi do
modelo T da Ford passou de doze horas e 28 minutos, em 1910, para uma hora e 33 minutos,
em 1914.”
12 Ibidem., p. 28.
13 Idem.
14 Ibidem, p. 32.
15 HORN, Luiz F. D. R.; VERGANI, Vanessa. O consumismo como o lado perverso do consumo:

principais malefícios àsociedade contemporânea. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN,
Luiz Fernando Del Rio. Relações de consumo: consumismo. Caxias do Sul, RS: Educs, 2010. p.
142.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 88


a sociedade global de consumo, seja ela radical, seja pós-moderna, rege-
se pelo padrão da desregulamentação, da liberalização, da flexibilidade,
da fluidez crescente, do consumo incessante e, ao mesmo tempo
frustrante, como a servir de senha para estar e ser aceito no seio social,
tudo sinalizando e computando o mal-estar da própria civilização
contemporânea.16

Todavia, com a intensificação dos debates mundiais acerca da


necessidade de frear o consumismo,17 como um dos desafios da preservação
ambiental, parte da sociedade passa a preocupar-se com a escassez dos
recursos utilizados para a produção, que se esgotam rapidamente e causam a
devastação do meio ambiente, trazendo consequências nefastas tanto para o
ser humano quanto para o ecossistema como um todo.
Compreende-se, assim, que o momento atual passa a ser concebido
como uma nova fase, uma fase pós-moderna, em que a relatividade faz opção
ao absolutismo e permite a discussão para a superação dos desafios mais
preocupantes.18
Nesse sentido, embora tendo ciência de que o progresso não se
estabelece como linha contínua, pois neste mesmo momento, alguns vivem
na pré-história, outros vivem na modernidade, outros, ainda, talvez já
estejam na pós-modernidade, esta última coloca-se como espaço de avaliação
dos paradigmas dominantes de esgotamento dos recursos, onde se
“possibilitará a incrementação de novas regras para o ‘jogo’ da vida”, em prol
destas e das futuras gerações.19

Reflexo do consumo e as escolhas individuais

Inicialmente, o incentivo ao consumo era visto como uma necessidade,


não atrelada ao crescimento econômico, mas ao crescimento populacional, na
lógica de que os ricos podiam manter seu padrão de luxo e os pobres
adquirirem apenas o essencial para sobrevivência. O acesso à democratização

16 Ibidem, p. 142.
17 Há que se considerar a diferença entre consumo e consumismo. O primeiro compreende as
necessidades básicas vitais. O segundo, as necessidades criadas, aquisições de bens
supérfluos na qualidade vital.
18 PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO, Cleide (Org.). Direito ambiental e biodireito: da

modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2008. p. 30.


19 Ibidem, p. 33.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 89


do conforto não era considerado via a ser proporcionada a todos os
indivíduos. Notou-se, todavia, nos anos finais do século XVII, que o aumento
do consumo poderia trazer crescimento à economia.20
Chega-se, assim, a uma nova fase da sociedade moderna de consumo, a
terceira fase (pós 1960), “das necessidades e orquestrada por uma lógica
desinstitucionalizada, subjetiva, emocional”, na qual passam-se a priorizar
gostos e critérios individuais, considerando que alguns indivíduos passam a
estar mais atentos para melhores ofertas, afastando-se dos habitus de classes.
Nessa fase, passa-se a compreender não apenas o consumo, mas o
hiperconsumo.21 Hiperconsumo que, se por um lado busca satisfazer
necessidades reais, existentes, por outro cria necessidades ilusórias, pela
ideia de que se traduz na busca de uma felicidade heterônoma e fugaz.
Ensina Lipovetsky que, nessa terceira fase de hiperconsumo, ampliam-
se as motivações pessoais para satisfações “emocionais e corporais,
sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e distrativas”, para
satisfação de um desejo do indivíduo, no intuito de criar sua independência e
felicidade. Assim, diz Lipovetsky que “o consumo ‘para si’ suplantou o
consumo ‘para o outro’, em sintonia com o irresistível movimento de
individualização das expectativas, dos gostos e dos comportamentos”.22
Seguindo este movimento, os novos eletrônicos, tais como celulares,
microcomputadores, notebooks ou tablets, televisores, entre outros
intensificam essa individualização do espaço, do tempo e dos objetivos.23
Detentor, cada consumidor, do seu objeto, passa a regular seu tempo
isoladamente. Desta forma, além do hiperconsumismo, tem-se também o
hiperindividualismo.
Um exemplo disso é que, até no início dos anos 2000, o aparelho celular
ainda era usado com certo receio, diante da suspeita de que seu uso poderia
aumentar a incidência de câncer. Passados pouco mais de quinze anos, o

20 BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin (Org.). Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Ed.
da FGV, 2006. p. 34.
21 LIPOVETSKY, op. cit., p. 41.
22 Ibidem, p. 41-42.
23 Ibidem, p. 105. Complementa o autor que objetos, tais como: “a secretária eletrônica, o

congelador, o microondas, o vídeogravador têm em comum permitir que os indivíduos


construam de maneira autônoma seu próprio espaço-tempo”.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 90


aparelho tornou-se uma ferramenta praticamente essencial para a maioria
das pessoas, que utilizam-no à semelhança do uso de um computador.
Diante deste contexto, o individualismo é mencionado como um dos
problemas da pós-modernidade também pelo Papa Francisco, em sua
Encíclica Laudato Si’. O documento ressalta que a sociedade passa, hoje, por
uma “deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica”,
somando-se a isso o egoísmo visto como a raiz de muitos problemas sociais.
Exalta ainda o Pontífice que, “além disso esta falta de capacidade para pensar
seriamente nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de
alargar o horizonte das nossas preocupações e pensar naqueles que
permanecem excluídos do desenvolvimento”.24 Através de tal reflexão, pode-
se afirmar, com precisão, que os ideais inicias da modernidade não foram
alcançados como um todo, porque se está longe de proporcionar à
humanidade, como um todo, os benefícios do propalado desenvolvimento:
sociais, econômicos, ambientais, entre outros.
Neste sentido, reforça-se a necessidade de que o consumo seja meio de
alcance das necessidades básicas e não das necessidades criadas, que
exaurem a natureza tratando-a apenas como um mercado. Atentar para esse
quesito é um dos critérios a serem observados para o alcance da
sustentabilidade para todos. 25 Do contrário, como se vislumbra atualmente,
o consumo cada vez mais incentivado para abarcar a demanda de produção,
acaba sobrecarregando os ciclos ecológicos e constituindo-se como espaço
para aumento da exclusão.

Meio ambiente e risco ecológico

à medida que a modernidade avançava, novas tecnologias eram


desenvolvidas e novos produtos estavam a elas agregados.

24 CARTA ENCÍCLICA. LAUDATO SI’. DO SANTO PADRE FRANCISCO. Sobre o cuidado da casa
comum. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/sites/default/files/download/editais/texto_integral_enciclica_laudat
o_si.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2016.
25 CALGARO, Cleide. Desenvolvimento sustentável e consumo: a busca do equilíbrio entre o

homem e o meio ambiente. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN, Luiz Fernando Del Rio
(Org.). Relações de consumo: meio ambiente. Caxias do Sul, RS: Educs, 2009. p. 66.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 91


Com o avanço da técnica, da ciência, avançaram também os problemas
ambientais e, por consequência, intensificaram-se riscos, que passaram a ser
vistos como incontroláveis e permanentes na sociedade.

Dos reflexos socioambientais


Até há pouco, a preocupação com os recursos naturais era ínfima,
tendo tomado maiores proporções quando irromperam alertas para sua
escassez, o que traz preocupação, posto que os seres humanos dependem de
tais recursos para a manutenção de sua vida na Terra.26
A partir da década de 1970, com as Conferências mundiais,27 o meio
ambiente entrou definitivamente para o cenário dos debates, que
indubitavelmente são interdisciplinares, visto que a preservação dos
recursos naturais depende da união de forças tanto do direito, quanto da
biologia, da engenharia, da sociologia, da filosofia, entre outras.
Mas a inserção da preocupação com a preservação ambiental não se
deu apenas pelos seus valores intrínsecos, mas por serem essenciais para a
manutenção do mercado. E é aí que se encontra o grande dilema, pois é
justamente da voracidade do sistema econômico, que a natureza vem sendo
tratada como mercadoria.28
Outro viés que precisa ser considerado é que, nos últimos séculos,
desenvolveu-se um peculiar apego à técnica e à ciência, considerando-se que,
a partir destas, aliadas ao crescimento econômico, a humanidade seria capaz
de proporcionar vida com qualidade no planeta. Entretanto, o que a realidade
permite concluir, hoje, é que o cenário de desigualdade social mundial tem se
asseverado permanentemente.29 Além disso, em determinadas temáticas, à

26 PEREIRA, Agostinho O. K.; CALGARO, Cleide; GIRON, Jerônimo. Direito ambiental,


sustentabilidade e pós-modernidade: os paradigmas da reconstrução. In: PEREIRA,
Agostinho O. K; CALGARO, Cleide (Org.). Direito ambiental e biodireito: da modernidade à
pós-modernidade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2008., p. 15.
27 Citam-se aqui a Conferência de Estocolmo em 1972, as Convenções do Rio de 1992 e 2012,

entre outros importantes eventos mundiais acerca das mudanças climáticas, proteção da
camada de ozônio, dos mananciais, das florestas, etc.
28 PEREIRA; CALGARO; GIRON, op. cit., p. 17.
29 Permite observar essa triste realidade, a matéria intitulada “A desigualdade social chega a

níveis alarmantes: a concentração de riqueza no mundo é hoje semelhante à da Inglaterra de


Charles Dickens ou da França de Victor Hugo, veiculada no Carta Capital. Disponível em:

Ética, direitos humanos e meio ambiente 92


medida que a técnica e a ciência avançam, como já se disse, estão avançando
também os riscos ecológicos e a degradação ambiental, posto que a longo
prazo o resultado desse avanço ainda é desconhecido.
Desta forma, convém observar que o modelo atual de circulação de
produção não é capaz de pensar na sustentabilidade e de

limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o


seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento,
reutilizando e reciclando-os. A resolução desta questão seria uma
maneira de contrastar a cultura do descarte que acaba por danificar o
planeta inteiro, mas nota-se que os progressos neste sentido são ainda
muito escassos.30

O contexto nos remete ao que o Pontífice Francisco menciona como


“ecologia superficial” que consolida uma “alegre irresponsabilidade”. Tal
situação descreve-se quando, deparando-se com uma crise que demanda
decisões acertadas, a sociedade é tentada a julgar que o pior não vai
acontecer. É o que acontece se o indivíduo observa, ou é levado a observar,
apenas a superfície, ignorando a poluição e a degradação, o que o faz pensar
que a natureza a tudo resistirá. Este é um comportamento evasivo, capaz de
manter a sociedade na sua zona de conforto, sem maiores preocupações com
produção, consumo, poluição e degradação.31
Há que se notar então que a industrialização, o consumo e a própria
ciência podem ser considerados responsáveis pela degradação ambiental. O
impacto no ambiente se dá pela agressão e extinção de espécies, tanto
animais quanto vegetais, pela exploração das águas e minérios32

<http://www.cartacapital.com.br/revista/873/no-mundo-de-os-miseraveis-5584.html>.
Acesso em: 20 jul. 2016.
30 CARTA ENCÍCLICA, op. cit., p. 20.
31 Ibidem, p. 20.
32 Acerca da degradação oriunda da exploração de minério, diversos pequenos acidentes já

foram registrados, mas não se pode deixar de citar aqui a tragédia ocorrida em Mariana,
Minas Gerais, em novembro de 2015, descrita como uma das maiores tragédias ambientais
na atualidade. Dados sobre a catástrofe estão descritos em EL PAÍS. Tsunami de lama tóxica, o
maior desastre ambiental do Brasil Barragem de mineradora faz estragos no rio Doce e põe em
risco todo um ecossistema. Disponível em:
<http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/politica/1451479172_ 309602.html>. Acesso
em: 20 jul. 2016.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 93


permanentemente, fatores estes que corroboram as mudanças climáticas e os
impactos negativos ao meio ambiente.
Um exemplo atrelado à questão do consumo contemporâneo diz
respeito à produção e à ingestão de alimentos transgênicos. O mercado vem
transformando a produção de alimentos em um monopólio e procurando
evitar o acesso dos consumidores a informações, como é o caso do Projeto de
Lei 4.148/2008,33 aprovado pela Câmara dos Deputados, que visava
desobrigar a rotulagem dos produtos, produzidos a partir de matéria
transgênica. Além disso, o consumidor que deseja consumir produtos
orgânicos, hoje, encontra dificuldades na aquisição de produtos legítimos e se
os encontra, o custou ainda é considerado alto.
Na mesma esteira, considera-se, ainda, na questão alimentícia, a
utilização de agroquímicos, que merece preocupação.34 Esclarece Castillo e
Graff que,

no obstante ello, el uso intensivo y muchas veces indiscriminado de


agroquímicos vienen provocando incontables daños ambientales –
algunos de caráter permanente –, además de exponer a los trabajadores
rurales a intoxicaciones agudas o crônicas, siendo muchos de ellos
penalizados con el óbito o con el desarrollo de enfermedades
degenerativas (especialmente algunos tipos de câncer y enfermedades
del sistema nervioso). También existe el peligro de los resíduos químicos
que permanecen en los alimentos, exponiendo la salud de los
consumidores, siendo tema recurrente en el análisis de problemas de
salud pública.35

Estes são apenas modelos dos desafios atuais e, diante desse cenário,
reforça-se a necessidade de reduzir o consumo, de fazer reuso do que for

33 Trata-se do projeto de Lei 4.148, de 2008, de autoria do Deputado Heinze, que tramita
como PLC 34/2015. O projeto aguarda votação no Senado, conforme informa o Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.idec.org.br>.
34 De acordo com matéria disponibilizada no site do Planalto (Governo Federal), intitulada

“Estudos apontam relação entre o consumo de agrotóxicos e o câncer”, demonstra-se um


cenário alarmante, já que o consumo de agrotóxicos no país cresceu em 190% nos últimos
dez anos. Disponível em:
<http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/noticias/2016/estudos-apontam-
relacao-entre-o-consumo-de-agrotoxicos-e-o-cancer>. Acesso em: 20 jul. 2016.
35 CASTILLO, Armando M.; GRAFF, Laíse. La presión del consumo sobre el médio ambiente:

alimentos, producción agrícola y seguridad alimentaria. In: PEREIRA, Agostinho O. K.; HORN,
Luiz. F. D. R. (Org.). Relações de consumo: políticas públicas. Caxias do Sul, RS: Plenum, 2015.
p. 232.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 94


possível, de reparar aquilo que for danificado, de reciclar os resíduos
possíveis e de rejeitar aquilo que nos é imposto forçosamente para
consumo.36

Da sociedade de risco na sociedade de consumo


Tendo presente as condições que são oferecidas ao cidadão atualmente,
é possível observar a proximidade da sociedade contemporânea com o risco.
No contexto global, para Beck, “o risco é ambivalência. Estar em risco é
a maneira de ser e de governar no mundo da modernidade; estar em risco
global é a condição humana no início do século XXI”.37 A partir desta
disposição, permite-se perceber que a convivência com o risco passou a ser
uma condição humana para Beck, ou seja, em um mundo globalizado, a
medida que se caminha para o progresso, também se caminha ao encontro do
desconhecido, com o qual se precisa conviver.
A situação acima mencionada, acerca da utilização de agrotóxicos, estar
relacionada à incidência de cânceres nos seres humanos permite
compreender este cenário. A pretexto de obter melhores produções e
garantir a produção de alimentos em nível mundial, muitos governos,38 como
é o caso do brasileiro, permitem a utilização de transgênicos e agrotóxicos
em larga escala, mesmo diante da incerteza,39 a longo prazo, da incidência de
doenças severas oriundas da utilização destes organismos.
Nestes termos, a reflexão que Douglas e Wildavsky propõem em sua
obra Risco e cultura, é pertinente neste contexto. Questionam os autores, se é
necessário conhecer os riscos enfrentados agora ou no futuro e estes

36 BOFF, Leonardo. A grande transformação: na economia, na política e na ecologia.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 171.
37 BECK, Ulrich. Momento cosmopolita da sociedade de risco. Trad. de Germana Barata e

Rodrigo Cunha. Revista ComCiência, Campinas, n. 104, 2008.


38 Cabe mencionar um exemplo que apresenta outro cenário, como é o caso da Dinamarca

que pretende, até 2020, atingir a meta de 100% de agricultura orgânica na produção de
alimentos. Dinamarca: o primeiro país que, por lei, só terá agricultura orgânica, conforme
notícia veiculada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Disponível em:
<http://www.idec.org.br/em-acao/noticia-do-consumidor/dinamarca-o-primeiro-pais-que-
por-lei-so-tera-agricultura-organica>. Acesso em: 24 jun. 2016.
39 Aqui reside grande celeuma envolvendo o risco, pois parte da comunidade científica já

admite a relação dos transgênicos/agrotóxicos com doenças severas, e parte permanece


afirmando a inexistência de estudos sólidos.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 95


respondem que não, mas que o agir deveria ocorrer, sim, como se houvesse
conhecimento do risco. Esclarecem ainda que a maioria das pessoas não
consegue estar ciente de tudo a todo tempo.40 Essa proposição remete a
adoção de uma atitude precaucional, em especial dos Estados, responsáveis
pela segurança dos indivíduos. Assim, “o risco deveria ser entendido como
um produto do conhecimento que se tem do futuro e um consenso quanto às
perspectivas mais desejadas – o que nos possibilitaria relativizar os
problemas”.41
Observando posição complementar, traz-se o risco, novamente na visão
de Beck. Em sua Teoria da Sociedade de Risco, aqui trazida em linhas gerais,
Beck defende que, na sociedade industrial, a lógica de produção era de
riquezas, enquanto em uma nova fase, descrita então como sociedade de
riscos, a lógica de produção é dos riscos.42 Para melhor compreensão,
esclarece Beck

Não se trata mais, portanto, ou não se trata mais exclusivamente de uma


utilização econômica da natureza para libertar as pessoas de sujeições
tradicionais, mas também e sobretudo de problemas decorrentes do
próprio desenvolvimento técnico-econômico. O processo de
modernização torna-se ‘reflexivo’, convertendo-se para si mesmo em
tema e problema.43

Pode-se perceber da lição de Beck que abandona-se a ideia de produção


de riqueza através da exploração da natureza para melhoria da carência
material, mas ganha espaço uma nova preocupação advinda do avanço
técnico e científico que, de solução, passa a ser visto também como causa do
problema, fazendo com que, por este descontrole, os riscos atinjam a
sociedade como um todo, independentemente de quem os produziu,
constituindo-se no chamado efeito bumerangue.44
Beck menciona que, ao contrário das riquezas, os riscos parecem irreais
e reais ao mesmo tempo. Isso porque, já em 1986, o autor coloca como efeitos

40 DOUGLAS, Mary; WILDAVSKY, Aaron B. Risco e cultura: um ensaio sobre a seleção de riscos
tecnológicos e ambientais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 1.
41 Ibidem, p. 5.
42 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 15.
43 Idem.
44 Ibidem, p. 44.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 96


reais a poluição e/ou morte de rios, destruição das florestas, o surgimento de
novas doenças, entre outros males e como irreal o fato de que “a verdadeira
força social do argumento do risco reside nas ameaças projetadas no
futuro”.45
Assim, percebe-se que os riscos contemplam situações futuras, mas que
estão na iminência de ocorrer, que podem acontecer por contaminação
nuclear, deficiência alimentar, escassez da água, catástrofes naturais como
vendavais, desmoronamentos, entre tantos outros, aos quais a sociedade se
encontra propensa.
Diante deste cenário, resta a reflexão: A sociedade tem opções de
consumo consciente ou é ouvida na tomada de decisões acerca da adoção
desses processos que refletem diretamente na produção de energia e
produtos que lhe são oferecidos? Com o modo como se caminha atualmente,
em que a liberdade de escolha do indivíduo se torna cada vez mais ausente,
parecemos estar vivendo em um sistema que se assemelha a um
totalitarismo, cujo apego à produção em prol do lucro vem ignorando a
proteção vital do meio ambiente e dos seres que nele habitam.

Do sistema capitalista à banalização do mal

Não há como analisar a sociedade de consumo e o incentivo à prática


consumista, sem considerar a influência do sistema capitalista nesse
processo, posto que um alimenta o outro.
Esse sistema vem promovendo o isolamento do indivíduo, que busca
apenas sua satisfação pessoal e afasta-se da sua responsabilidade enquanto
comunidade, contribuindo para a proliferação do mal banal, como se verá a
seguir.

Banalidade do mal e consumo inconsciente


Mediante as circunstâncias aqui já expostas, percebe-se que o indivíduo
está cada vez mais submisso aos bens que o mercado lhe impõe como
indispensáveis à sua subsistência. Por esta razão, propõe-se uma ponderação
desta condição com a representação do mal banal, descrito por Arendt, após

45 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 97


analisar o Regime Totalitário que se edificou durante a Segunda Guerra
Mundial, bem como após o acompanhamento do julgamento de Eichmann,46
em Jerusalém no ano de 1961.
Arendt traz a ideia de que o mal banal ganha espaço na presença de
deficiências políticas, sociais e econômicas, que afastam os indivíduos do
envolvimento em sua comunidade. Essa apatia pelo envolver-se se traduz em
isolamento, que é descrito por Arendt: “P isolamento é aquele impasse no
qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem
em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída”.47
O isolamento assim pode refletir-se na ausência de reflexão e de
pensamento, tarefas humanas, constituindo-se em um ambiente propício
para a proliferação do mal banal. Arendt conduz a esta consequência após
acompanhar o julgamento de Eichmann, momento de reviver um cenário de
horrores, em que ela descreve que “foi como se naqueles últimos minutos
estivesse resumindo a lição que este longo percurso de maldade nos ensinou
– a lição da temível banalidade do mal que desafia as palavras e os
pensamentos”.48
Arendt passou a descrever então que Eichmann era um indivíduo
normal, “o filho déclassé de uma sólida família de classe média”,49
considerado “uma pessoa mediana, ‘normal’, nem burra, nem doutrinada,
nem cínica”, o que conduziu seus julgadores a desacreditarem de sua
incapacidade de distinguir o certo do errado. Foi observando a conduta de
Eichmann por outro ângulo que Arendt o viu como um exímio cumpridor de
ordens, posto que a ideologia/regime do qual estava a serviço lhe exigia
lealdade total e, por isso, o mesmo ignorava questões de consciência.50
Esta posição de Arendt lhe rendeu diversas críticas. Todavia, há que se
ressaltar que merece guarida nos dilemas atuais a fala de Arendt ao dizer que
o “mal radical surgiu em relação ao um sistema no qual todos se tornaram

46 Eichmann foi responsável pela deportação de centenas de milhares de judeus para campos
de concentração, encaminhados para execução durante a Segunda Guerra Mundial.
47 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 527.
48ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo:

Companhia das Letras, 1999. p. 274.


49 ARENDT, Hannah. Eichmann emJerusalém. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo:

Companhia das Letras, 1999. p. 43.


50 ARENDT, op. cit., 1999, p. 38.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 98


supérfluos”.51 Fazer uma aproximação desta situação com o contexto atual
pode ser considerada um descomedimento, porém, ao observar as políticas
adotadas pelo mercado de produção em massa, imposição de durabilidade de
produtos, bem como a imposição de produtos, cuja segurança em saúde não
seja comprovada, parece remeter os indivíduos à condição de supérfluos, por
Arendt mencionada.
Esses indivíduos estão sendo conduzidos, na atualidade, a agir sem a
devida reflexão acerca da preservação ambiental, vivendo alienadamente do
poder de escolha de suas necessidades, posto que o mercado, identificado nas
grandes corporações, já sabe o que será consumido nos próximos anos.
Assim, os consumidores são conduzidos, automaticamente, para suas
escolhas, sem avaliar se sua conduta é capaz de trazer prejuízos
socioambientais, ou não, pois são levados a satisfazer seus desejos
individuais em prol de uma felicidade cada vez mais efêmera.
Neste contexto, as corporações ganham força através de seus apelos de
marketing, capazes de “criar hábitos nos consumidores a tal ponto que se crie
neles uma necessidade imperiosa de consumir”. A criação desses desejos de
consumo reflete-se diretamente na engrenagem de produção e distribuição
de bens e serviços, em sua maioria supérfluos, que definem “uma sociedade
insatisfeita e vazia porque nada a sacia”.52
A modernidade se estabeleceu sobre premissas baseadas na
prevalência da razão científica, da técnica, da economia e do Estado
Moderno,53 firmando-se no discurso racionalista e capitalista que
“possibilitou a dominação e a destruição da autonomia do indivíduo
ocidental, exatamente da maneira como Hegel explanou: uma dominação
heterônoma que é interiorizada pelo indivíduo, passando a ser escravo do
sistema e oprimido por si mesmo”.54
Arendt aduz ainda que “através do distanciamento da realidade mais o
desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos

51 ARENDT, op. cit., 1989, p. 510.


52 BOFF, op. cit., p. 169-170.
53 PEREIRA, Agostinho O. K.; PEREIRA, Henrique M. K.; A modernidade e a questão da vida.

In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO, Cleide (Org.). Direito ambiental e biodireito: da
modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2008. p. 232.
54 Ibidem, p. 234.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 99


juntos”.55 Assim, seu legado nos permite entender que, para evitar a
proliferação do mal banal, os indivíduos precisam estar envolvidos pelos
valores da vida e da comunidade que os cercam, tornando-os pertencentes
àquele meio e como atores responsáveis pelo bem comum.
A título exemplificativo, merece ainda um alerta, por lembrar das
atrocidades vivenciadas no Regime Totalitário, a questão da privatização da
água, presente na atualidade, por ser um bem essencial para a manutenção
da vida. A privatização desse bem permite observar como a valorização da
vida e a superação da desigualdade tornaram-se, para alguns, uma
banalidade no presente.

Dos reflexos do capitalismo na democracia


Por trás de toda essa questão, encontra-se a manipulação orquestrada
pelo poder econômico, capaz de promover a submissão dos indivíduos às
suas determinações para o consumo, em especial no que se refere às
inovações tecnológicas fabricadas com prazo de validade, política conhecida
como obsolescência programada.
Como descreve Harvey, a sociedade americana atribui sua paz ao
consumismo.56 Este é o pretexto para uma acumulação cada vez maior de
poder e de garantia do consumo de seus produtos. O autor descreve ainda:

Os Estados Unidos são uma sociedade imigrante extraordinariamente


multicultural movida por um inflexível individualismo competitivo que
revoluciona de modo perpétuo a vida social, econômica e política. Essas
forças tornam a democracia cronicamente instável, difícil, se não
impossível de controlar, exceto por meio da corrupção do poder
financeiro.57

Tem-se assim que o incentivo ao consumismo é uma regra de ouro para


os norte-americanos e que os mantém entre as grandes potências do
capitalismo avançado.58

55 ARENDT, op. cit., 1989, p. 311.


56 HARVEY, David. O novo imperialismo. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012.
57 Ibidem, p. 22, grifo nosso.
58 Ibidem, p. 187.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 100


Porém, para se observar uma liberdade de escolha aos indivíduos e
demonstrar uma preocupação com os recursos naturais, o Estado deveria
direcionar os projetos de expansão visando o bem-estar público.59
Como menciona Hannigan, embora o poder esteja em todo lugar, as
relações de poder não são simétricas e democráticas.60 Complementa o autor
com a lição de Foucault:

Focault faz uma distinção importante entre poder e dominação. A última


se refere a relações assimétricas de poder na qual a parte subordinada
tem poucas oportunidades de exercitar sua vontade. Enquanto que as
relações de poder são sempre instáveis e reversíveis, a dominação indica
que as relações são menos fluídas e menos abertas para negociação.61

Ao se transportar essa leitura para a atualidade, nota-se que a


dominação permanece forte e presente no capitalismo, interferindo nas
políticas do Estado, que se inclina aos interesses do capital, para fomentar o
crescimento econômico e nos processos de escolha dos indivíduos. Neste
aspecto, sobe a participação do Estado, novamente Hannigan menciona
Foucault:
Em tais casos, Foucault acredita que o poder é exercido não tanto através
da força nua e da coerção física, mas através da habilidade de moldar o
processo de socialização. Isto é muito mais eficaz porque reduz a
resistência enquanto internaliza o consentimento. É neste ponto que o
discurso se torna importante.62

Percebe-se assim que o poder é estruturado e mantido mediante a


concordância do Estado, que cede às pressões das corporações, para
introduzir novos produtos e instrumentos no mercado, ainda que estes sejam
capazes de expor a população a riscos. Dentro deste contexto, os indivíduos
são trabalhados para não apresentarem resistência e induzidos a auxiliar
neste processo, sendo consumidores destes bens.

59 Ibidem, p. 68
60 HANNIGAN, Jonh A. Sociologia ambiental: a formação de uma perspectiva social. Lisboa:
Instituto Piaget, 1995. p. 85.
61 HANNIGAN, op. cit., p. 85.
62 HANNIGAN, op. cit., p. 86.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 101


Do consumidor afasta-se qualquer escolha subjetiva, ou seja, sua
subjetividade, posto que ele se encontra pressionado pela “subjetividade
heterônoma moderna”, capaz de convencê-lo ao que vestir, pensar, como
agir, viver, desejar e – o essencial, consumir.63
Por isto, assiste razão o apelo de que toda e qualquer medida de
proteção dos recursos naturais requer mudanças significativas na produção e
no consumo de recursos, nas estruturas de poder e nos estilos de vida como
meio para se atingir um progresso legítimo. Esse progresso, que inicialmente
é humano, precisa ser permeado pela moral e pela consciência de que o
homem não é um ser isolado no universo.64
Como bem ressaltam Pereira e Calgaro, não há que se negar que o
progresso traz consigo desenvolvimento e qualidade de vida, mas traz
também aumento de riscos e doenças, mostrando como de um lado alarga-se
o período de vida e de outro pode-se estar antecipando a destruição da
humanidade.65
Nota-se contraditório alardear-se parcialmente como uma sociedade
evoluída, que vive na pós-modernidade, mas que se encontra presa ao capital,
ao consumo exacerbado e ao poder deles oriundo.66
Todo este cenário, embora preocupante, precisa despertar para a
criação e adoção de medidas sociais e jurídicas capazes de deslindar e
reordenar a proteção do consumidor, cidadão, e dos recursos naturais.
Para tanto, a introdução de uma nova racionalidade é vislumbrada
como medida reformadora dessa problemática. Importa destacar que a
construção dessa racionalidade, que introduza a sustentabilidade na cadeia
produtiva e de consumo, tem como condição um repensar das questões

63 PEREIRA, Agostinho O. K.; PEREIRA, Henrique M. K.; A modernidade e a questão da vida.


In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO, Cleide (Org.). Direito ambiental e biodireito: da
modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2008. p. 232.
64 CARTA ENCÍCLICA, op. cit., p. 7.
65 PEREIRA, Agostinho O. K.; CALGARO, Cleide. A modernidade e o hiperconsumismo:

políticas públicas para um consumo ambientalmente sustentável. In: PEREIRA, Agostinho O.


K; HORN, Luiz. F. D. R. (Org.). Relações de consumo: políticas públicas. Caxias do Sul, RS:
Plenum, 2015. p. 15.
66 PEREIRA, Agostinho O. K.; CALGARO, Cleide; GIRON, Jerônimo. Direito ambiental,

sustentabilidade e pós-modernidade: os paradigmas da reconstrução. In: PEREIRA,


Agostinho O. K; CALGARO, Cleide (Org.). Direito ambiental e biodireito: da modernidade à
pós-modernidade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2008. p. 27.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 102


econômicas, tecnológicas e políticas, que determinam os padrões hoje
adotados.67
Além disso, trabalhar a questão da participação popular ou social (?),
como forma de envolvimento do indivíduo, pode apresentar-se não só como
um resgate da cidadania, mas como um instrumento para a construção de
novas alternativas baseadas na democracia.
Os espaços democráticos podem não apresentar a solução para todas as
demandas, mas, se valorizados, podem trazer um saldo positivo no
envolvimento comunitário e no exercício da liberdade do indivíduo,
dependendo da forma como é exercido.68
Importa salientar o que descreve Sen acerca da discussão pública e
participação social:

[...] O uso de prerrogativas democráticas – tanto as liberdades políticas


como os direitos civis – é parte crucial do exercício da própria
elaboração de políticas econômicas, em acréscimo a outros papéis que
essas prerrogativas possam ter. Em uma abordagem orientada para a
liberdade, as liberdades participativas não podem deixar de ser centrais
para a análise de políticas públicas. 69

Para Sen, o êxito do governo democrático depende da avaliação de suas


três virtudes, destacadas como: (1) sua importância intrínseca; (2) suas
contribuições instrumentais, e (3) seu papel construtivo na criação de valores
e normas.70 Essa avaliação demonstra que a participação democrática
depende de permanente vigilância para o êxito da manifestação da liberdade
dos indivíduos e da construção do bem comum.
Colocado desta forma, permite-se vislumbrar nos espaços democráticos
um instrumento para a realização dos direitos e deveres preceituados pelo
art. 225 da Constituição Federal de 1988,71 tanto pelos cidadãos, quanto pelo

67 LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. Trad. de Sandra Valenzuela. São Paulo: Cortez
2001. p. 61.
68 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010. p.

204.
69 SEN, op. cit., p. 149.
70 SEN, op. cit., p. 207.
71 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso

comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à


coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 103


Poder Público, que detém o dever de tomar suas decisões em prol dos
interesses da sociedade e não apenas no interesse do capital.

Conclusões

Pela análise do panorama atual da sociedade de consumo, tem-se que os


indivíduos, a ela pertencentes, têm buscado atingir apenas sua felicidade
efêmera, mediada pelas suas aquisições individuais.
Essa conduta vem provocando um isolamento dos indivíduos, que,
nessa busca interminável dos seus anseios, vêm sendo manipulados pelo
marketing e pelas novas tecnológicas que se colocam como única alternativa
para o pertencimento àquela sociedade.
Tal conduta afasta os cidadãos do real sentido da vida em sociedade,
que é o da colaboração mútua, através da participação social que se constitui
um instrumento de liberdade e construção do bem comum. O isolamento e a
busca da satisfação individual corroboram a banalização do mal, traduzida na
degradação socioambiental e, consequentemente, na aceitação
indiscriminada do risco ecológico em prol do desenvolvimento, o que permite
aduzir que a sociedade de consumo absorve a sociedade de risco.
Os cidadãos, titulados apenas como consumidores, vêm, de certa forma,
proliferando esse mal banal, posto que, a exemplo do que Hannah Arendt
descreveu sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, estes
consumidores têm se mostrado inócuos e irreflexivos, tornando-se apenas
um potencial adquirente, pronto a servir e alimentar o sistema capitalista,
como se estivessem cumprindo um dever.
Constituem-se os consumidores uma peça-chave do sistema capitalista
que, ao invés de promover a igualdade social, vem promovendo a
desigualdade em níveis alarmantes e delineando uma geração que, mesmo
conectada, não tem se mostrado capaz, em sua maioria, de abrir mão do
consumismo e de envolver-se nas suas comunidades, para pleitear seu

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 104


espaço nos processos decisório-democráticos, no que se refere a um
consumo consciente e a uma proteção ambiental efetiva.
Por fim, a participação popular caracterizaria um envolvimento dos
cidadãos com sua comunidade e fortaleceria seu pertencimento a esta,
fazendo com que se sintam responsáveis pela proteção de sua liberdade e dos
recursos naturais, a fim de que sejam vistos, não apenas como potenciais
consumidores, mas como defensores do consumo consciente e da utilização
racional dos recursos naturais, em prol da manutenção da vida, ou seja,
verdadeiros cidadãos.

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 107


6
O mercado e a virtude*

Carlos Roberto Sabbi**

Introdução

Atualmente, mais do que em qualquer outro momento, pode-se concluir


que a vida das pessoas e das organizações seria muito melhor, se o nível
ético1 estivesse num patamar mais elevado. Fosse assim, estar-se-ia mais
próximo da felicidade, os resultados seriam melhores, além de conter uma
qualidade mais apurada.
Apenas como um exercício de imaginação – não que isso seja objeto
deste trabalho –, considere, mesmo que utopicamente, desembarcar num
outro mundo onde a cultura2 fosse a de dar (utopia imaginada) ao invés a de
ter (a nossa realidade). Talvez o sofrimento humano fosse outro e até num
nível semelhante, mas compreenda o quadro proposto, em que os
movimentos seriam todos de aproximação. Paradoxalmente, em nossa
realidade, a maior parte dos atos humanos levam ao distanciamento entre as
pessoas, em decorrência da predominância do egoísmo.3 Talvez o ser
humano devesse ter a capacidade de vivenciar um amor em nível superior,
capaz de expandi-lo para todos os demais seres vivos.
Será que, nessa fantasia proposta, o próprio sentimento de egoísmo não
se esvaziaria?
Será que a predominância do dar não levaria a atitudes de extrema
gentileza?
* A essência deste artigo é um excerto produzido a partir da dissertação de mestrado em
Educação, deste autor, aprovada em 2012, pela Universidade de Caxias do Sul.
** Bacharel em Administração de Empresas. Especialista em Gestão de Pessoas e Formação

Holística de Base, com aperfeiçoamento em Consultoria Empresarial e Gestão Pública. Mestre


em Educação e Doutorando em Educação pela UCS. E-mail: crsabbi@gmail.com.
1 Nível ético como padrão de comportamento, especialmente de atitudes.
2 Conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, etc. que

distinguem um grupo social; forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais,
morais, espirituais (de um lugar ou período específico); civilização. (Dicionário Houaiss,
2009).
3 No sentido da existência da preocupação apenas com o eu; a predominância do desejo

permanente de querer levar vantagem em tudo, em detrimento dos demais valores.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 108


E, será que a qualidade de vida não seria caprichosamente tênue e
virtuosa, levando as pessoas a um nível de sensibilidade mais apurada;
provocando uma evolução mais acelerada do intelecto; produzindo
resultados organizacionais mais efetivos e proporcionando um padrão de
bem-estar e de felicidade maiores?
Pela cultura predominante, o que se está tratando, mais propriamente
propondo, é algo demasiadamente fantasioso e utópico, claro. Porém, sob a
ótica do cientista, ou mesmo do filósofo, a(s) possibilidade(s) em qualquer
nível deve(m) ser questionada(s) e pesquisada(s), pois não fosse assim o
conhecimento não avançaria.
Pois bem, de volta à realidade, o que é possível produzir é aperfeiçoar a
nossa cultura através da introdução da faculdade dos valores verdadeiros,4
em todos os espaços da vida. Exatamente nesse ponto se confrontará com o
mercado, que como será visto é o grande vilão desse estado de coisas.
O propósito que será levado neste texto, enfim, é aprofundar a
investigação, sob uma ótica da História e Filosofia da Educação, sobre a
necessidade de introduzir a virtude na cultura pessoal e organizacional de
nosso país e de todo o mundo.
Primeiramente, buscar-se-á em dados históricos e estatísticos a
compreensão do mercado, desde seu nascedouro, até os dias atuais.
Muito além de uma pesquisa teórica, a intenção maior é procurar, nas
questões básicas da Filosofia, a chave para que este trabalho possa
demonstrar, primeiramente, a necessidade e, em segundo, mas não menos
importante ponto, a significância que pode se introduzir na cultura dos
cidadãos e das organizações, através da virtude.5
A conseqüência, ao se inserir um espaço maior para a virtude, nessa
nova cultura, certamente qualificará e dará excelência ao homem,6 ao cidadão

4 Entende-se por valores verdadeiros o conjunto de atributos da virtude (notas de rodapé ns.
7 e 10) e a excelência do homem (nota de rodapé n. 8-B).
5 A virtude de um homem é o que o faz humano, ou antes, é o poder específico que tem o

homem de afirmar sua excelência própria, isto é, sua humanidade (no sentido normativo da
palavra). (COMTE-SPONVILLE, 1999).
6 A) Quanto ao bem, ele só existe na pluralidade irredutível das boas ações, que excedem

todos os livros, e das boas disposições, também elas plurais, mas sem dúvida menos
numerosas, que a tradição designa pelo nome de virtudes, isto é (este é o sentido em grego

Ética, direitos humanos e meio ambiente 109


e às organizações. O desafio, entretanto, passa por uma reordenação, uma
colocação justa e perfeita do que realmente importa ao ser humano, em sua
lista de prioridades para a vida. É o que será visto na sequência.

O contexto atual

Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta,


mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser
apenas objeto, mas sujeito também da história.
(Paulo Freire)

Estamos inseridos num universo de labirintos conceituais a respeito do


que deve, merece e possa ser feito e, o contrário também é verdadeiro, é
lógico. Tudo isso a respeito do que é ou não merecedor de crédito para nos
levar à condição de sucesso.
Sucesso pressupõe êxito, triunfo, resultado bom. Nada contra essa
definição de sucesso. Mas quais são os objetivos? O que o ser humano almeja,
ou o que ele mais deseja?
Para responder a essas indagações, não é necessária nenhuma pesquisa,
pois a evidência é tão grande e óbvia, por consequência, que resta dizer que
seja qual for a resposta, ela estará ligada a questões materiais ou de poder.
A grande massa populacional é objeto de manobra dos poderosos, dos
grandes capitalistas ou, em última e talvez melhor análise, do mercado. Isso é
plenamente compreensível sob a ótica da razão e compreensão da lógica do
processo de poder e das relações econômico-financeiras.
Portanto, sendo inevitável, a crítica desses processos sempre será
relativa, até porque, mesmo sendo objeto de manobra, é comum identificar-
se, em grupos pesquisados, que a maioria dos seus pais, na idade deles,
estava em condições financeiras e com qualidade de vida, de forma geral,

da palavra arete, que os latinos traduziram por virtus), de excelências. (COMTE-SPONVILLE,


1999).
B) A excelência do homem deve ser entendida como uma condição especial de caráter que,
por sua vez, é um conjunto de traços psicológicos e/ou morais que caracterizam o indivíduo.
Além disso, contém a virtude, a conformidade com o bem, a excelência moral ou de conduta,
atitudes corretas e desejáveis, a maestria pessoal e profissional, a gentileza, a continência
amorosa, a compaixão e todos os sentimentos espirituais.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 110


pior. Assim, é possível concluir que, se as condições melhoraram, todos estão
se beneficiando de algum progresso.
Porém, por outro lado, isso não exime a possibilidade de crítica aos
poderosos, até porque é óbvio que eles também estão numa condição muito
melhor e se beneficiando de forma proporcional ainda maior.
Saliente-se que, aqui, não será espaço para crítica ao trabalhador,
patrão, ao grande capitalista ou de qualquer outro, poderoso ou não, até
porque tudo faz parte do conjunto de elementos que a sociedade construiu, e
todos têm seus méritos e culpas. A análise é apenas um processo de
construção da demonstração do conjunto desses processos, que nos
conduzem para o poder ou para o financeiro, isto é, para lugar nenhum em
termos de virtude,7 em detrimento aos valores verdadeiros, em prejuízo
daquilo que o homem realmente deseja para si – a felicidade.
Portanto, somos enganados por nós, pelo contexto e pelo mercado e, se
os poderosos têm muito comando sobre tudo isso, a conclusão da
manipulação por parte desses, por decorrência, é patente.
Outra dedução, após essa breve análise, é de que vivemos, portanto,
uma ilusão. É o engano de querer bens materiais ou poder e pensar que isso
nos trará felicidade.
Confúcio já dissera 550 a.C. a 479 a.C., compilação de Kuijie Zhou,8 que a
riqueza e alta posição são como nuvens efêmeras.
Embora existam inúmeras outras afirmativas tradicionais de grandes
pensadores da História da humanidade sobre a importância da virtude, as
pessoas não têm dado ouvidos, pois se ouvissem há que se imaginar um
padrão comportamental diferenciado do atual e a competitividade que se
vive não geraria esse estresse avassalador no ser humano. Além disso, se
dessem ouvidos, é até possível imaginar que a própria competitividade não
existiria e se existisse não seria nesse nível elevado.

7 A virtude é toda e qualquer boa atitude, mas nessa linha de definição ampla, o
entendimento e a direção do que se deseja conceituar sobre virtude, é no sentido de que ela é
uma palavra que guarda o sentimento de coisas boas e do que há de mais valor na acepção
pura e simples da palavra, ou seja, sem mancha ou nódoa; imaculado, limpo. Puro, do latim
Purus, no Dicionário Houaiss, 2009 diz ser algo que transmite paz, enlevo, sublimidade;
tranquilo, suave, mavios. Nota do autor.
8 ZHOU, Kuijie (Org.). Confúcio: aprendendo a viver com Confúcio: como o sábio chinês ajuda a

enfrentar os desafios da vida moderna. Rio de Janeiro: Agir, 2009. p. 22.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 111


As virtudes cardeais platônicas que são a coragem, a temperança, a
sabedoria e a justiça não têm sido usadas pelo ser humano a favor da sua
espécie. A inteligência cognitiva tem produzido maravilhas nos mais variados
campos da ciência, mas não conseguiu traduzir a palavra desses mestres, ao
menos até hoje, no plano efetivo, no nível prático. Não seria o caso da falta de
desenvolvimento de uma inteligência espiritual ou emocional? O fato é que o
comportamento humano pouco tem evoluído desde os primórdios, mesmo
que isso seja um paradoxo ao desenvolvimento tecnológico e científico.
Tzu-Chang, um dos discípulos de Confúcio (551-479 a.C.), disse que se
um homem não consegue se agarrar à virtude com todas as suas forças nem
acreditar no caminho com todo o coração, como se pode dizer que ele tem
alguma coisa, ou que não tem nada? É, de fato, uma afirmativa de que o ser
humano vive completamente alienado do que realmente importa à vida, ou
seja, o conjunto de valores ao qual se pode denominar de virtude.

A Ética no contexto atual


Desde os primórdios, o homem pensa e teoriza a ética. Porém ela
sempre ocupou espaços reservados e nunca se popularizou. Entre a Idade
Média e a Moderna, o italiano Nicolau Maquiavel (VIROLI, 2002) rompe com
a moral cristã, que impõe os valores espirituais como superiores aos
políticos. Defende a adoção de uma moral própria, em relação ao Estado. O
que importa são os resultados, e não a ação política em si.
Muito embora se reconheça a importância e profundidade do
pensamento inovador de então, de Maquiavel, é inconcebível a
predominância dessas ideias9 nos dias atuais, em nome do resultado em
detrimento à integridade dos valores fundamentais da vida – à virtude. Os
tempos são outros, e a importância dos valores morais parece que está
retornando seu tempo de inocência e pureza.
A perspectiva evolutiva da humanidade pode ser aprimorada, desde
que o gosto pela filosofia e, em especial, a importância das questões sob a
ótica da ética ocupem um espaço mais generoso no pensamento individual e

9 Ideias – como, por exemplo, a de que os fins justificam os meios, salvo se os fins sejam

éticos, o que pressupõe que os meios também o sejam, o que anula a afirmativa por si
própria.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 112


global. Porém, uma reflexão mais profunda do que a ética em, em realidade
sobre a virtude, torna-se fundamental, desde os primeiros anos de vida do
ser humano, de forma que o prisma de uma vida plenamente material seja
gradativamente modificado, para ao menos a predominância de padrões de
equilíbrio entre o ter e o ser. Somente dessa forma poder-se-á fomentar uma
nova cultura, onde efetivamente o ser humano poderá encontrar-se com
resultados empresariais somados com resultados evolutivos pessoais
efetivos.
Mas, pelo que já foi dito e, não sendo assim – um mundo de
predominância das virtudes –, atualmente o ser humano vive a plenitude do
conflito e efetivamente ele não é feliz, o que pode ser constatado
notadamente, entre outros aspectos, pelo elevado índice de tentativas e
sucessos de ações suicidas – como, por exemplo, a situação dos bancários,
que a cada 20 dias um comete suicídio10 –, numa clara demonstração de uma
desordem emocional.

10 Em média, entre 1993 a 2005, pelo menos um bancário cometeu suicídio a cada 20 dias,
estimando-se uma ocorrência diária de tentativa (não consumada) durante todo o período,
conforme comprovou Marcelo Augusto Finazzi Santos, 2009 – Dissertação – Patologia da
solidão, Universidade de Brasília.
Suicídio mata mais que violência urbana e guerras, diz OMS: Quase 1 milhão de pessoas
põem fim à própria vida todos os anos, mais do que as pessoas que morrem em assassinatos
ou vítimas de guerra. Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostram que ocorre
um suicídio em alguma parte do planeta a cada 40 segundos. As estatísticas são mais altas
nos países bálticos e na Europa Oriental, onde cerca de 40 pessoas a cada 100 mil se matam a
cada ano. “Suicídio é um importante problema de saúde pública e representa 1,5% do custo
total das doenças para a sociedade”, disse José Bertolote, especialista em saúde mental da
OMS. A maioria dos suicídios é praticada por homens, mas as mulheres tentam mais tirar a
própria vida. Estima-se que de 10 milhões a 20 milhões de pessoas tentem suicídio a cada
ano. A região com menor incidência de suicídios é a América Latina. Segundo dados da OMS,
a incidência de suicídios no Brasil, em 1995, foi de 6,6 por 100 mil entre homens e 1,8 em
cada 100 mil no caso das mulheres. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u35062.shtml>. Acesso em: 26 maio 2010.
Cerca de 780 mil. E o número não para de crescer – a taxa de suicídios cresceu 60% nos
últimos 50 anos. Até o fim de 2007, a média de suicídios ao redor do planeta pode chegar à
incrível marca de uma morte a cada 30 segundos. E pior: estima-se que, para cada pessoa
que comete suicídio, existem pelo menos outras 20 que tentaram, mas não conseguiram
consumar o ato. Esses números levaram a Organização Mundial da Saúde a criar diversas
ações, como o dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, que acontece em 10 de setembro. O
objetivo é conscientizar pessoas e governos sobre a importância do tratamento de doenças
mentais e problemas psicológicos. Apesar de a maioria dos suicidas pertencer à faixa etária
acima dos 60 anos, é na faixa de 15 a 34 que os números mais impressionam, figurando como
a terceira maior causa de mortes. Entre as principais causas que levam uma pessoa a acabar
com a própria vida estão problemas como depressão, abuso de drogas e situações temporais

Ética, direitos humanos e meio ambiente 113


A cultura predominante com o mercado
Como se chegou até aqui, como se explica esse nível acentuado de
competitividade, o que se pode prever para o futuro é o que está
demonstrado, a seguir, através de dados concretos que os gráficos e os
quadros demonstram, ao construirem a imagem do momento atual da
humanidade, pois a economia de mercado predomina na maior parte do
planeta:
Gráfico 1 – população residente no Brasil – 1900/2000

Fonte: sinopse preliminar do censo demográfico 2000.11

Esse é o ponto inicial da origem do problema em análise, como


poderemos entender melhor na sequência, o qual dará o ponto de partida
para a compreensão mais abrangente de toda essa questão, que nada mais é
do que a problemática básica da ausência da virtude.

que despertam forte carga emocional, como o fim de um relacionamento amoroso ou a perda
de um emprego. No Brasil, o número de suicídios é bem menor do que a média mundial, mas
ainda assim o número não pode ser desprezado: dados do Ministério da Saúde relativos a
2002 contabilizam 7.719 suicídios durante os 12 meses do ano. Número aparentemente alto,
mas pequeno quando comparado aos “campeões”, como os Estados Unidos, onde cerca de 32
mil pessoas se suicidam por ano. Disponível em: <http://bit.ly/afNyd8>. Acesso em: 27 maio
2010.
Número de suicídios aumenta no Brasil: No resultado da pesquisa com os registros de
suicídios entre 1994 e 2004, soaram como alarmantes o crescimento de 3,4 para 4,5 mortes
por 100 mil habitantes no período, além dos 25 suicídios por 100 mil habitantes registrados
entre a população com mais de 60 anos. Entre os estados, o Rio Grande do Sul é o que tem a
maior taxa, 9,88 para 100 mil. O Paraná aparece na sexta posição deste ranking, mas Curitiba
é a terceira capital em que mais ocorreram suicídios de mulheres em 2004. Disponível em:
<http://bit.ly/bBzJz3>. Acesso em: 27 maio 2010.
11 Rio de Janeiro, IBGE, v. 7, 2001.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 114


Quadro 1 – População residente no Brasil

Fonte: IBGE (2000).

Com o Gráfico 1 e o Quadro 1 foi possível identificar o crescimento


populacional. Agora é preciso identificar o percentual de crescimento das
empresas; também pode ser observado, no Quadro 2 e no Gráfico 2, os quais
apresentam essa analogia, em relação às indústrias.

Quadro 2 – Número de estabelecimentos industriais

Fonte: IBGE (2000).

Analisando o crescimento do número de estabelecimentos comerciais,


conforme o Quadro 2, bem como o Gráfico 2, constata-se uma evolução de
38,30 vezes, comparativamente à quantidade inicial, obtida sete anos após o
período de evolução populacional mostrada no Quadro 1 e no Gráfico 1.
Sem considerar que dá para presumir que a quantidade de
organizações empresariais, em todos os demais ramos, cresceu muito mais
do que isso, e que boa parte inexistia naquela época. Apenas com esses dados
relativos à indústria, conclui-se que, desde a Revolução Industrial até os dias
atuais, uma enorme transformação ocorreu. No início, as poucas empresas
tinham todo um universo de clientes à sua disposição. Hoje, a situação
inverteu-se, e, em decorrência, se está chegando a um nível fantástico de
competitividade.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 115


Gráfico 2 – Percentual de crescimento das indústrias em relação à população

Fonte: IBGE (2000).

Se fosse colocada essa situação num gráfico, haveria a representação


em forma de um X, sendo que uma “perna” representa o crescimento das
empresas, e a outra, o decréscimo proporcional do universo de
consumidores, conforme se pode observar no Gráfico 3.
Gráfico 3 – Evolução proporcional das empresas em relação aos consumidores

Fonte: Projeção gráfica da evolução das empresas, em relação aos consumidores realizada
pelo autor.

Não se tem os dados atuais, mas o Brasil deve ter alcançado, em 2015,
uma empresa para cada 24 habitantes, segundo pesquisa realizada pelo
Sebrae/SP, ou muito próximo disso. De acordo com o estudo, a previsão é que

Ética, direitos humanos e meio ambiente 116


o País atingisse 9 milhões de companhias em 2015, com uma população de
cerca de duzentos e dez milhões de habitantes.
Segundo o levantamento, com o resultado, o Brasil se aproximará dos
índices europeus registrados em 2000, quando Alemanha, França, Reino
Unido e Itália apresentavam, respectivamente, 23, 24, 23 e 14 habitantes por
empresa. A par desse crescimento de empresas em relação aos consumidores
e a consequente competitividade, exige-se cada vez mais do trabalhador:
mais criatividade, mais competência e, sobretudo, mais tempo.
Nessa conjuntura, imaginando o crescimento daquele gráfico do “X”
(Gráfico 3), transportando para um deslocamento da linha de
competitividade atual para uma futura, verifica-se um aumento substancial
desse nível de concorrência, conforme ilustra o Gráfico 4. Todos esses dados
são corroborados pelo Gráfico 5, que demonstra a continuidade desse
fantástico crescimento desproporcional de um número cada vez maior de
empresas, em relação à população – clientes.
A grande pergunta que se faz, observando-se a linha pontilhada
vermelha, no Gráfico 4, a qual explica e representa o atual momento de
altíssima competitividade brasileira, mas que se sabe é a realidade mundial –
mesmo que por dedução –, é: quanto tempo ainda o homem suportará essa
pressão originária de tal situação?

Gráfico 4 – Projeção da competitividade

Fonte: Projeção gráfica da evolução da competitividade realizada pelo autor.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 117


A linha pontilhada em preto no Gráfico 4 projeta a situação para o
futuro. Até onde conseguiremos ir sem que movimentos comportamentais e
de mercado se modifiquem? Portanto, esse é o legítimo “X” da questão, que,
por si, justifica a presente pesquisa. Afinal de contas, quanto espaço existe
para aumentar essa violência mercadológica que recai diretamente no
homem, ocasionando uma pressão psicológica sem precedentes, e que acaba
provocando consequências nefastas e fatais em sua saúde física e mental?

Gráfico 5 – Total de MPEs (Indústria, Comércio e Serviços)

Nota: Os dados de 2010 e 2015 são estimativas com base em expansão de 5,1% a.a. no total
de MPEs.
Fonte: Elaboração Observatório das MPEs, a partir da RAIS e projeções populacionais do
IBGE.

Na luta pela sobrevivência, nessa inter-relação de circunstâncias que


acompanham a situação exposta, entende-se a origem de tantas ações ilegais,
imorais e desprovidas de virtude, que fazem parte da nossa rotina. Se tantos
escândalos ocorrem, quanta barbárie contra os bons costumes ainda devem
acontecer sem que eles venham à tona? Porém, também não é difícil deduzir
que, muito além desse contexto que explica o atual comportamento antiético,
esse quadro já vem precedido de uma carente evolução comportamental, pela
falta de valores de caráter e na cultura do ser humano.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 118


O contexto futuro

A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.


(Maurice Merleau-Ponty)

O que se pode esperar para o futuro diante do quadro atual,


especialmente pelo estado crescente da competitividade? Quanto à
importância da competitividade, dá para presumir que ela esteja consignada
na maioria das pessoas, até pelos exemplos fracassados de economias
puramente socialistas, sem a presença da economia de mercado, em que os
países afundaram, literalmente. Também há que se reconhecer que, em
essência, as pessoas são diferentes e que a busca pela dignidade e condições
básicas de vida devem ser predicados de qualquer sociedade, mas
reconhecendo e aceitando que as pessoas sempre serão diferentes.
É muito difícil se abordar essa questão, exatamente no momento em
que se vive a maior desigualdade de todos os tempos. O fato é que a economia
mundial tenta se reequilibrar, depois de momentos difíceis, mas o fator mais
nevrálgico não só continua, mas tende a piorar, que é o da desigualdade
social. A propósito disso, a OXFAM12 divulgou um novo relatório13 em Davos,
o qual aponta para o aumento da desigualdade extrema. Ele se dá conta de
que apenas oito homens possuem a mesma riqueza que os 3,6 bilhões de
pessoas que compõem a metade mais pobre da humanidade. Não é só isso, o
documento “Uma economia humana para os 99%” mostra que a diferença
entre ricos e pobres cresce a cada nova edição do estudo, numa velocidade
muito maior do que se previa inicialmente. Os 50% mais pobres da população
mundial detêm menos de 0,25% da riqueza global líquida. Nesse grupo, cerca
de 3 bilhões de pessoas vivem abaixo da “linha ética de pobreza” definida
pela riqueza que permitiria que as pessoas tivessem uma expectativa de vida
normal, de pouco mais de 70 anos.

12 A Oxford Committee for Famine Relief (Comitê de Oxford de Combate à Fome) – Oxfam
International é uma confederação de 17 organizações e mais de 3.000 parceiros, que atua em
mais de 100 países, na busca de soluções para o problema da pobreza e da injustiça, através
de campanhas, programas de desenvolvimento e ações emergenciais.
13 Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/noticias/8-homens-tem-mesma-riqueza-
quemetade-
mais-pobre-do-mundo>. Acesso em: 19 jan. 2017.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 119


A questão maior, entretanto, vai muito além desse quadro, pois
vivenciando nessa cultura onde os valores verdadeiros parecem estar
obscurecidos, como mudar radicalmente toda essa forma de vida? O que seria
preciso acontecer, ou seja, ser feito para que os rumos sejam redefinidos para
alcançar um padrão mais próximo da paz e da felicidade?
Como se constata na maioria dos problemas da humanidade, as
soluções acabam passando necessariamente pela Educação. Este não é um
caso diferente, pois, notadamente, as pessoas carecem de uma compreensão
plena da importância do que seja virtude.14 Nos processos educativos, se
recebe a informação, momento que passa a existir um entendimento sobre o
assunto. Mas, somente após a decodificação completa da informação e a
reflexão sobre isso, é que se forma o conhecimento, ou seja, a compreensão.
Além disso, inúmeras teorias defendem que o aprendizado verdadeiro ocorre
coletivamente. Martins diz que a compreensão da personalidade, a partir da
visão vygotskiana, acontece no domínio “[...] da própria vida e de uma forma
global, e determina a apreensão de seu desenvolvimento em circunstâncias
objetivas, isto é, como resultado da atividade subjetiva condicionada por
condições objetivas”. O autor diz ainda que a personalidade de cada indivíduo
não é produzida por ele isoladamente, mas, sim, resultado da atividade
social.15
Por sua vez, Vigotski16 diz que somente o aprendizado adequadamente
organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários
processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de
acontecer. Diz, ainda, que o aprendizado é um aspecto necessário e universal
do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente
organizadas e especificamente humanas.
Portanto, ao se identificar, por um lado, tudo o que pode significar para
as pessoas a prática e a criação de uma cultura da virtude e, de outro lado, a
importância dos processos de aprendizagem, frente ao quadro atual de um

14 Segundo o dicionário Abbarnano, 2007, p. 1003, este termo designa uma capacidade

qualquer ou excelência, seja qual for a coisa ou o ser a que pertença. Seus significados
específicos podem ser reduzidos a três: 1º capacidade ou potência em geral; 2º capacidade
ou potência do homem; 3º capacidade ou potência moral do homem.
15 MARTINS, 2004a, p. 85.
16 VYGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991. p. 101.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 120


desprezo dos principais valores da vida, ao menos em termos práticos, a
conclusão de que a solução passa pela Educação fica mais claro.
Assim, o contexto deste assunto para um ponto futuro poderá ser
aprimorado, se os processos educativos, formais ou informais, porém
adequados, incorporarem tudo o que realmente importa para a vida. Isso é
uma proposta revolucionária, porque, hoje, ela afrontaria com o mercado e
com seu status quo de forma absoluta.
Não se trata de contestar o mercado sob todos os seus aspectos. Talvez,
se devesse encarar como uma proposta de aprimorar esse mesmo mercado,
incorporando e resgatando os valores verdadeiros, o respeito e a dignidade
do ser humano e a prática da tolerância e compaixão. Buscar, ainda, um
padrão de desenvolvimento, não que torne todas as pessoas iguais, pois isso
também seria uma afronta à própria natura, mas um nível mínimo de
condições de vida para cada ser vivo.
Desenvolver esse processo, sem as consequências de um embate,
conciliando interesses e alcançando o nível cultural da virtude, é o desafio
que se impõe às pessoas de bem e que se preocupam com a paz e a felicidade
do ser humano.

Conclusões

Conclui-se que, em algum ponto do futuro, uma revolução com ou sem


sangue deverá acontecer, dada a proximidade cada vez maior de um colapso
entre a capacidade de produção – considerando-se a saúde física e mental – e
o constante aumento do nível de exigência que o mercado vem
proporcionando.
Dessa forma, é consequente e natural, então, imaginar a explosão de
uma revolução extraordinária no mercado. Como isso se dará seria uma
pretensão enorme querer projetar ou adivinhar. Mas, a partir desses fatos,
dados estatísticos e históricos, passa-se imediatamente a uma reflexão
filosófica, com a incógnita de como tudo poderá se acomodar. Não parece
existir outro caminho que não seja o da saturação do atual sistema
predominante, naquilo que se conhece como o mercado. Assim, o que poderá
advir diante deste cenário, seja o que for, é algo suficientemente instigante e

Ética, direitos humanos e meio ambiente 121


desafiador, seja para filósofos, seja para cientistas. Outra conclusão decorrente
desse fato é a de que estamos, pois, na véspera de um momento histórico.
Independentemente das soluções a serem tomadas e dos caminhos que
essa evolução – ou revolução – deva seguir, não dá para imaginar outra saída
que não seja uma transformação comportamental17 e, por consequência,
cultural, para atuar exatamente neste ponto: o da competitividade. Alvo de
inúmeras críticas, essa mesma competitividade, entretanto, ainda ninguém
conseguiu substituí-la como elemento de produtividade e desenvolvimento,
talvez pelas próprias características distintas do ser humano. Essas
diferenças naturais entre os seres, postas em competição, geram crescimento,
porém produzem inúmeros malefícios às pessoas e, como foi visto, isso,
inevitavelmente, está com os dias contados.
O ser humano terá que desistir da competitividade ou conseguirá
adequá-la aos padrões aceitáveis dos quais o ser humano necessita, para que
haja a predominância de uma harmonia maior entre potenciais verdadeiros,
interesses e necessidades? Dá para imaginar as pessoas abdicarem do
desenvolvimento, já que é o que aconteceria sem a competitividade? Ou
alguém ainda acredita na possibilidade de crescimento e progresso, sem a
competitividade, mesmo com todos os exemplos fracassados impostos por
regimes socialistas puros? E, se acredita nessa possibilidade, qual seria a
fórmula?
Seja como for, no momento em que essa rivalidade mercadológica
atingir os extremos, mais do que nunca será preciso inserir a ética como uma
nova e profunda cultura nessa nova conjuntura. Será necessário introduzir na
história da Educação e da Filosofia um novo marco, através da inserção da
virtude como um valor presente, ocupando um espaço bem maior no dia a dia
das pessoas.
Naturalmente, essa é uma das medidas necessárias, entre tantas outras,
como uma nova forma de produzir e distribuir a riqueza material, para tornar
possível a construção de um futuro, que, inevitavelmente, pelos motivos
expostos, tornará a vida viável e melhor para a humanidade.

17 Aqui não há nenhuma afirmativa de que o comportamento será mais polido, que conterá
uma dose maior de virtude. Apenas há uma dedução óbvia sobre os fatos e dados de que
alguma mudança ocorrerá.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 122


Faz sentido, portanto, problematizar esse ponto e navegar pelos
conceitos teóricos dos especialistas em comportamento e, particularmente,
da história da educação e da filosofia, para objetivar construir uma solução
não somente pontual, mas derradeira para o verdadeiro desenvolvimento
moral e comportamental de um novo ser humano, de uma nova época, mais
próxima da felicidade18 e através do autodomínio.19
O ser humano, enfim, terá que se aprimorar, de tal forma, que os
conflitos que hoje o assombram, desapareçam, ao menos em boa parte de
tudo aquilo que o envolve no modelo de vida atual.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: M. Fontes, 2007.

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ZHOU, Kuijie (Org.). Confúcio: aprendendo a viver com Confúcio: como o sábio chinês ajuda a
enfrentar os desafios da vida moderna. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

18 Segundo Kant, “a felicidade é a ideia de um estado de pleno gozo ao qual o homem quer se

adequar tornando esta ideia objetiva sob condições empíricas”. (SOUZA, 2009).
19 O autodomínio e a liberdade são as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é

o artífice da sua própria felicidade ou infelicidade. Da obra Fundamentos filosóficos da


educação de Otto Leopoldo Winck; Ivo José Triches; Cláudio Joaquim Rezende et al. (2009).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 123


7
A mediação como instrumento de promoção da cultura de paz
na solução dos conflitos socioambientais

Cristiane Velasque*
Diego Coimbra**

Introdução

A História da humanidade é uma história de conflitos. Desde os


primórdios da civilização, o dissenso é a mola propulsora dos atos sociais. A
inquietação da conformidade, os interesses e as contradições do pensamento
humano foram capazes de gerar inúmeros conflitos que proporcionaram, de
um lado, a transformação e o aperfeiçoamento do homem, enquanto ser
social e, de outro, degradação humana e ambiental de toda ordem.
A crise socioambiental produzida por um modelo insustentável de
desenvolvimento, que remodelou significativamente as relações do homem
com a natureza, é caracterizada pela manifestação massiva de conflitos
sociais, que têm por objeto elementos e recursos do ecossistema. A
degradação ambiental e os demais riscos ecológicos operam no âmbito das
relações sociais, afetando negativamente o bem-estar social e coletivo.
Com a finalidade de promover a tutela da dignidade humana e a
qualidade ambiental ante os riscos oferecidos pela matriz desenvolvimentista
vigente, o Estado de Direito tem a missão de conjugar esforços, no sentido de
conter o avanço da degradação socioambiental. Essa tarefa passa,
necessariamente, pelo restabelecimento da relação pacífica entre os homens
e deste com o meio que os cerca. O tratamento adequado dos conflitos
socioambientais é aquele que resgata valores sociais perdidos, através do
diálogo, da conscientização e do sentimento de pertencimento.
Ocorre que os tribunais se transformaram em verdadeiras arenas, onde
as partes apresentam suas pretensões conflitivas, para que o Estado decida

* Advogada. Mestranda em Direito (Bolsista Capes) pela Universidade de Caxias do Sul.

Especialista em direito público pela Fundação da Escola Superior do Ministério Público.


** Advogado. Mestrando em Direito (Bolsista Capes) pela Universidade de Caxias do Sul.

Pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisa interdisciplinar em sustentabilidade, da


Universidade de Caxias do Sul.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 124


quem ganha e quem perde. Esse ambiente competitivo é remanso da coação e
da violência e, portanto, inadequado ao tratamento de conflitos
socioambientais e ao propósito do reestabelecimento das relações sociais e
da consciência ecológica.
A par da crise da jurisdição ante a ineficiência dos métodos judiciais
tradicionais na resolução de conflitos, a mediação surge como alternativa que
promove o debate direto entre as partes, trazendo os atores sociais para o
palco das discussões que dizem respeito aos seus próprios interesses,
considerada toda a gama de subjetividades que o conflito, como fenômeno
social, comporta, possibilitando, ainda, a conscientização das partes quanto
às consequências de suas pretensões, em sentido pedagógico. Nesse passo, a
mediação constitui-se em um instrumento fundamental para a promoção da
cultura de paz, em que a coação, a violência e a competição são substituídos
pela conscientização e cooperação entre as partes.

Da natureza do conflito ao conflito com a natureza

Admitindo-se que o conflito é parte inerente da trajetória humana, quer


do projeto de sociabilidade dos homens, quer das diferentes relações que
estes estabelecem com seu entorno, é possível compreender que a busca pela
paz está largamente mais relacionada com as soluções dos conflitos da
humanidade e, com a forma como estas se dão, do que com as infrutíferas
tentativas de construir um mundo isento de qualquer relação conflituosa.
Embora o modelo de sociedade vigente tenha seus contornos definidos
pelos ideais de democracia, de convivência das diferenças, da igualdade de
direitos, de preservação do meio natural, etc., a realidade sobre a qual essas
noções tomam forma é absolutamente plural,1 o que sugere que o dissenso e
o confronto entre distintas visões de mundo, justificativas e interesses são
características ínsitas da organização humana, que tem no conflito um de
seus pilares. A ideia da naturalidade social desses antagonismos aponta

1 HERCULANO, Selene. Lá como cá: conflito, injustiça e racismo ambiental, I Seminário

Cearense contra o Racismo Ambiental, Fortaleza, 2006. Disponível em:


<http://sinop.unemat.br/site_antigo>. Acesso em: 12 jan. 2017.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 125


menos no sentido da aniquilação dos conflitos do que na direção do
tratamento destes, através do gerenciamento e da negociação.
Desde que se noticia a vida em sociedade, as interações sociais
estabelecidas entre indivíduos e grupos humanos de qualquer povo podem
ser consideradas a partir do binômio cooperação x conflito, vale dizer
“qualquer grupo social, qualquer sociedade histórica pode ser definida em
qualquer momento de acordo com as formas de conflito e de cooperação
entre os diversos atores que nela surgem”.2 A cooperação é resultado de
modelos ideais de interatividade, impulsionados pela ausência de resistência
a um interesse, traduzindo-se no pleno reconhecimento da legitimidade do
outro, para atuar no tecido social, conforme suas aspirações. O conflito, por
sua vez, se afigura na negação da cooperação. É a resistência oposta a uma
pretensão individual ou coletiva, que obsta o agir, caracterizada pela
exteriorização do anseio de um opositor.
Contudo, a humanidade e suas diversas formas de organização não são
atores isolados no estudo dos conflitos. Antes mesmo do surgimento das
primeiras aglomerações familiares e tribais organizadas, o homem
estabeleceu relações com a natureza e, passados milhões de anos, essa
interação se mantém, ainda que tenha sofrido profundas transformações ao
longo do tempo. Se na pré-história, a cooperação da natureza se dava no
provimento de alimentos, materiais para caça, abrigo e aquecimento, e o
conflito nas intempéries que forçaram o homem a se organizar em
comunidades, a fim de resisti-las, nos dias atuais a resistência da natureza foi
quase totalmente subjugada no afã do desenvolvimento humano, cabendo a
esta o fornecimento exaustivo de recursos que colocam em xeque a própria
sobrevivência do homem e das demais espécies.
No contexto do desenvolvimento, a origem do conflito está relacionada
aos pressupostos de territorialização humana, que se traduzem no
aperfeiçoamento e na utilização de técnicas de dominação, quer da natureza,
quer de outros homens ou grupos humanos. Desse modo, um conflito
ambiental pode ser observado como uma estirpe particular de conflito social,

2BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad.


de Carmen C. Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis
Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Ed. da UnB, 1998. p. 225. v. 1.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 126


que se dá através de disputas entre grupos sociais. O objeto comporta
elementos do ecossistema, tais como a utilização do solo e dos recursos
naturais e a apropriação, exploração e controle de espécies da fauna e da
flora. “São aqueles conflitos sociais que têm elementos da natureza como
objeto e que expressam as relações de tensão entre interesses
coletivos/espaços públicos versus interesses privados/tentativa de
apropriação de espaços públicos”.3
Sendo o meio ambiente um bem coletivo e, portanto, um espaço
público, é neste recinto que os atores sociais disputam seus interesses e
promovem relações de conflito, a fim de alcançar seus objetivos
socioeconômicos, na esteira do progresso e do desenvolvimento. Essas
disputas se caracterizam pela oposição de interesses coletivos e privados,
cujos interesses orbitam um núcleo central composto pelo controle dos
recursos naturais e pelo uso do meio ambiente comum.
Little observa que os conflitos socioambientais se estabelecem entre
grupos sociais distintos, que apresentam divergências entre si, no que se
refere às formas de interação com seus respectivos meios social e natural,
pois cada agente social possui uma forma específica de adaptação, de
ideologia e de modo de vida, que ora confronta as visões de mundo dos
demais grupos, o que revela a dimensão social e cultural do conflito
ambiental.4
No mesmo sentido, Acselrad assevera que os conflitos ambientais são
aqueles que envolvem grupos sociais com modos distintos de apropriação,
uso e significação do território, surgindo quando determinado grupo social
tem ameaçada a continuidade de suas formas particulares de apropriação por
externalidades provocadas pelas atividades de outros grupos.5 Para além da
dimensão social, os conflitos ambientais comportam as dimensões política e
jurídica, pois se referem à dominação dos espaços que abrigam recursos

3 CARVALHO, Isabel et al. (Coord.). Conflitos sociais e meio ambiente. Rio de Janeiro: Ibase,
1995. p. 7.
4 LITTLE, Paul E. Os conflitos socioambientais: um campo de estudo e de ação política. In:

BURSZTYN, Marcel (Org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais.


Rio de Janeiro: Geramond, 2001. p. 13.
5 ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: _____.

Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 28.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 127


naturais reivindicados por diferentes grupos, que objetivam diferentes
formas de apropriação (moradia, exploração econômica, subsistência
familiar, etc.).
Essas concepções reforçam a ideia de que o conflito está arraigado no
processo de desenvolvimento das sociedades. Mas, se os conflitos
socioambientais podem ser tomados como corolário da própria organização
humana, o mesmo se pode dizer acerca da violência. No curso da História,
inúmeros conflitos sociais ou ambientais se transformaram em ícones da
degradação ambiental e humana. Milhões de mortes humanas, através de
guerras, e a destruição e extinção de milhares de espécies naturais e
comunidades tradicionais estigmatizaram a noção de conflito. A solução de
um conflito, contudo, não se dá através de atos de violência ou demonstração
de poder, mas do consenso, que só é possível na construção e promoção da
cultura de paz entre os homens, e destes com as demais espécies e o meio no
qual estão inseridos.
Mas dizer não à violência não se trata de negá-la. Mas de assumir todas
as suas medidas e de avaliar, em toda sua dimensão, o que ela representa
para a própria existência humana. O homem é um ser que carrega em si
mesmo a potencialidade da violência, o ser capaz de cometer as maiores
crueldades contra seus semelhantes, mas também o único ser jurídico, cujos
atos estão sujeitos à justificação, não só por parte dos demais, mas de si
próprio6. Uma vez justificada, a violência se converte em um mecanismo que
se autopromove e que se espraia no meio social. Assim, a adoção de uma
postura voltada para os valores da não violência demanda, necessariamente,
a mitigação de todos os conceitos e instrumentos racionais oferecidos, ao
longo dos séculos, pelas ideologias dominantes, no intuito de justificar a
violência humana, em todas as suas formas, vale dizer, pôr abaixo as armas
no conflito e lançar mão de métodos de resolução não violentos.
Contudo, a responsabilidade pacificadora não é um dever integral do
Estado. Este tampouco a poderia suportar. Entretanto, é preciso que este
assuma o encargo de proporcionar os mecanismos de composição pacífica,
tão caros à resposta não violenta para os antagonismos sociais, baseados na

6 MULLER, Jean-Marie. La no violencia como filosofía y como estrategía. Disponível em:


<http://www.non-violence-mp.org/muller>. Acesso em: 25 jan. 2017.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 128


desconstrução do modo de pensar disjuntivo, e que promovam a elevação de
valores como participação, inclusão social, diálogo, democracia,
comprometimento e cidadania.

O desserviço prestado à cultura de paz pelos métodos judiciais de


resolução de conflitos

O sistema jurídico, enquanto instrumento regulador, representa um


significativo avanço para a organização das sociedades de Estado,
gerenciando o monopólio da força, a fim de conter o uso da violência por
parte de seus jurisdicionados, ele também impõe obstáculos intransponíveis
à apreciação do conflito enquanto fenômeno social.
A gigantesca malha normativa que descreve condutas submetidas à
sanção, estabelece um marco entre ações permitidas e proibidas. Quando
pretensões incompatíveis se opõem aos olhos do Direito, cabe a este decidir a
qual dos agentes cabe o direito e a obrigação.7 Em outras palavras, quem
ganha e quem perde. Essa dicotomia simplista não só está aquém da
complexidade das demandas da modernidade, como carrega em seu seio a
conflituosidade. O feito se extingue, o conflito persiste.
É facilmente constatável que os mecanismos institucionais, clássicos e
disponíveis para a resolução de conflitos, não estão à altura dos desafios
postos pela realidade social, quer no aspecto quantitativo (celeridade
processual e redução do número de processos aguardando decisão), quer no
aspecto qualitativo (pacificação social e composição justa do caso concreto).
Essa constatação aponta para o que a doutrina tem denominado “crise de
jurisdição”.
Morais e Spengler discorrem acerca das diferentes dimensões da crise
de jurisdição, elencando quatro aspectos críticos que se intercomunicam,
quais sejam: a crise estrutural, a crise objetiva ou pragmática, a crise
subjetiva ou tecnológica e a crise paradigmática. Por crise estrutural
entendem aquela que diz respeito ao financiamento da máquina judiciária, os
custos requeridos para o bom desempenho das atividades jurídico-estatais. A

7ENTELMAN, Remo F. Teoria de conflictos: hacia um nuevo paradigma. Barcelona: Gedisa,


2002. p. 49.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 129


crise objetiva ou pragmática refere-se a aspectos práticos da atividade
jurídica, que abarcam desde a linguagem técnico-forense até a burocracia
institucionalizada, que contribui para a morosidade dos processos. A crise
subjetiva ou tecnológica está vinculada à incapacidade tecnológica dos
operadores jurídicos lidarem com as novas realidades fáticas, que exigem não
apenas a criação de novos instrumentos legais, mas a reformulação das
mentalidades para além do positivismo jurídico. A crise paradigmática diz
respeito aos métodos e conteúdos utilizados pelo direito, na busca de um
tratamento pacífico para os conflitos.8
O aspecto paradigmático da crise de jurisdição destaca uma das mais
importantes funções do direito na sociedade: a pacificação social.
Paradoxalmente, o sistema jurídico constitui, per si, um método violento de
solução de controvérsias, isso porque a utilização ou ameaça do uso da força
é uma ferramenta sempre posta à disposição do Estado-juiz.
Nesse ponto, cumpre destacar que, em sentido amplo, o conceito de paz
se opõe não diretamente à guerra, mas à violência, em todas as suas formas.
A guerra é uma forma de violência, o desmatamento é outra, o desalojamento
de comunidades indígenas de seus assentamentos tradicionais também é, a
remoção forçada de moradores em imóveis que não cumprem sua função
social é mais um exemplo de violência. E exemplos não faltam. A violência
está em todo lugar, e o Judiciário é uma entre tantas outras arenas pelo
mundo, muito embora tenha como função precípua a pacificação dos
conflitos sociais e ambientais.
A tarefa de definir um conceito central e hermético para o termo paz é
tão trabalhosa quanto pouco pragmática. No entanto, qualquer concepção
razoavelmente responsável acerca da expressão dificilmente passará ao largo
da noção de um processo holístico, que requer a existência de condições
estruturais bem definidas, como a ausência de violência física e psicológica, a
satisfação das necessidades básicas humanas, estruturas representativas, a
partilha do poder e a promoção e proteção dos direitos humanos e

8 MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e


arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 78 et
seq.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 130


fundamentais.9 Não se trata, portanto, de um conceito estático ou de uma
fórmula com limites bem delineados, mas de um entendimento ampliado, de
caráter cultural, diretamente orientado a valores.
Para as Nações Unidas, a cultura de paz pode ser definida como: “[...] um
conjunto de valores, atitudes, formas de comportamento e modos de vida que
rejeitam a violência e a previnem ao enfrentar as suas causas mais profundas
para resolver problemas através do diálogo e da negociação entre indivíduos,
grupos e nações”.10
O tratamento dos conflitos através da negociação entre as partes é uma
prática que promove a cultura de paz, na medida em que propicia o diálogo
entre as partes, mitigando a sensação do conflito e da ideia de vitória e
derrota, dentro de um processo, estando em um plano diametralmente
oposto à concepção da lide judicial, em que dois atores sociais levam suas
pretensões a um agente superior (Estado), que terá a missão de aplicar a lei e,
por fim, definir o sucumbente do feito.
O desenvolvimento de práticas discursivas e narrativas de mediação de
conflitos tem seus fundamentos na teoria da ação comunicativa, de
Habermas, para quem “sob as condições de uma compreensão pós-metafísica
do mundo, só tem legitimidade o direito que surge da formação discursiva da
opinião e da vontade de cidadãos que possuem os mesmos direitos”.11 Desse
modo, a institucionalização de procedimentos discursivos, que propiciem o
exercício da participação ativa do cidadão nas esferas de decisão, é
imperiosa. Os atores sociais não são meros clientes à espera do Estado-juiz,
mas protagonistas da própria ordem jurídica e social, razão pela qual os
direitos e deveres não devem se limitar a decisões tomadas em nível
institucional.
As expressões mais simplórias do desserviço prestado à resolução dos
conflitos em sede judicial se traduzem em termos forenses de uso
corriqueiro, tais como vitória ou derrota processual, parte sucumbida ou

9 WIBERG, Håkan. Investigação para a paz: passado, presente e futuro. Revista Crítica de
Ciências Sociais, p. 21-42, 2005.
10 NAÇÕES UNIDAS (1998). Resolution A/RES/52/13: Culture of Peace. Disponível em:

<www3.unesco.org/iycp/uk>. Acesso em: 17 jan. 2017.


11 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Trad. de

Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 146. v. II.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 131


sucumbente, condenado, ganhador ou perdedor da ação, etc. Esses jargões
estão todos relacionados a uma cultura competitiva e, portanto, conflitiva,
promotora da aversão, da hostilidade mútua, da incomunicabilidade, dos
estigmas e dos vícios de litiogiosidade, ao passo que o caminho para uma
cultura de paz reside, precisamente, na resistência aos impulsos violentos,
inerentes ao ser social, e na transformação da competição em cooperação.
A ideia de cooperação é a base para a resolução construtiva dos
conflitos sociais e ambientais, uma vez que “reaproxima as partes envolvidas,
gera afeto, possibilita uma comunicação eficaz, traz mecanismos
extrajudiciais de resolução e alcança decisões construídas pelas partes, bem
como consequentes mudanças de comportamento”.12 Nesse contexto, a noção
de conflito se desprende dos estigmas da violência e se converte em uma
oportunidade de transformação, a partir da transmissão de valores entre os
envolvidos, em um ambiente cooperativo.
Diante da crise, aprofundada pelas novas realidades socioambientais,
formas alternativas de composição de conflito têm sido implementadas,
reforçando a ideia de que o acesso à justiça não se confunde com o acesso ao
Judiciário.
[...] abrem-se os olhos agora, todavia, para todas as modalidades de
soluções não jurisdicionais dos conflitos, tratadas como meios
alternativos de pacificação social. Vai ganhando corpo a consciência de
que, se o que importa é pacificar torna-se irrelevante que a pacificação
venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficientes. Por
outro lado, cresce também a percepção de que o Estado tem falhado
muito na sua missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o
exercício da jurisdição e através das formas do processo civil, penal ou
trabalhista.13

Nesse contexto, a mediação, enquanto ferramenta de disseminação da


cultura de paz, se justifica, na medida em que, através do diálogo entre as
partes envolvidas, possibilita o descortinamento dos reais motivos do
conflito central, bem como das controvérsias e emoções periféricas
envolvidas. Propicia a percepção das partes acerca de seus propósitos,

12 LIMA, Fernanda; VAZ, Vânia. Mediação: o caminho para a disseminação de uma cultura de
paz. Disponível em: <https://aplicacao.mpmg.mp.br>. Acesso em: 16 jan. 2017.
13 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido

Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 25.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 132


objetivos e consequências que essas pretensões representam para si, para
seu grupo social e para o meio ambiente. Todas essas nuanças não cabem nas
páginas de um processo, tampouco poderiam ser compreendidas por
operadores do direito, alheios à totalidade das circunstâncias envolvidas no
fenômeno conflitivo.

A mediação ambiental como alternativa pacífica

A mediação é uma das formas de condução pacífica de conflitos,


especialmente importante quando há ruídos de comunicação entre as partes
e elas não conseguem ou não querem dialogar. É técnica que ajuda as partes a
olharem para os interesses de cada um, para os interesses mútuos e para
além de seus interesses, ensina Granja.14
No processo de mediação, dá-se prioridade à restauração da harmonia,
utilizando-se um método conciliatório. E, mais, visa não apenas encerrar o
conflito em debate, mas também a “pacificação dos conflitos entre as
partes”.15
A mediação, segundo Tartuce,
[...] consiste no meio consensual de abordagem de controvérsias em que
terceiro imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos
para propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos
meandros da situação controvertida, protagonizar saídas produtivas
para impasses que os envolvem. 16

O Novo Código de Processo Civil17 destaca previsão sobre a atuação do


mediador ao atuar de modo preferencial nos casos em que houver vínculo
anterior entre as partes, e auxiliar os interessados a compreenderem as
questões e os interesses em conflito, para que possam, mediante o
restabelecimento da comunicação, identificar soluções consensuais com a
finalidade de gerar benefícios mútuos.

14 GRANJA, Sandra Inês Baraglio. Manual de mediação de conflitos socioambientais. Org. de

Gina Rizpah Besen; ilust. de Libero Malavoglia. São Paulo: 5 Elementos, 2012. p. 32.
15 MORAIS; SPENGLER, op., cit., p. 135.
16 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p.

173.
17 Lei 13.105/2015, art. 165, §3º.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 133


De tal modo, a Lei de Mediação18 considera a mediação atividade
técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido
ou aceito pelas partes, tem o objetivo de auxiliá-las e estimulá-las a
perceberem ou desenvolverem soluções consensuais para o conflito.
Ressalta-se que o objeto deste instrumento diz respeito a problemas
referentes a questões do cotidiano, como conflito entre membros de
instituições de ensino e lazer, problemas familiares e vizinhos, além de
problemas ambientais. Estas situações são as principais matérias que se
utilizam da mediação.19 Ademais, tem por objetivo promover a paz social, de
modo a viabilizar o restabelecimento não apenas da comunicação, mas
também a prevenção e o tratamento dos conflitos como mecanismo de
inclusão social.
Atualmente, com o advento do novo Código de Processo Civil (Lei
13.105/2015), integrando a mediação como uma importante forma de
resolução de conflitos, e sua normatização por intermédio da Lei de Mediação
(13.140/2015), o legislador procurou normatizar e uniformizar os princípios
que regem a mediação, de modo a facilitar a sua aplicação.
O novo Código de Processo Civil disciplina de maneira geral, em seu art.
166, caput, os princípios informadores da conciliação e da mediação judicial,
a saber: independência, imparcialidade, autonomia da vontade,
confidencialidade, oralidade, informalidade e decisão informada.
Na mesma esteira, a Lei de Mediação (13.140/2015) cuidou de
normatizar em linhas gerais a mediação judicial e extrajudicial, tendo como
um dos seus objetivos centrais instituir os princípios basilares da mediação,
tais como: imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade,
informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso,
confidencialidade e a boa-fé.
Santos entende que, de todos os princípios informadores da mediação,
o seu caráter privativo ou confidencial talvez seja o mais importante,
principalmente em situações em que pessoas físicas ou jurídicas buscam a

18 Lei 13.140/2015, art. 1º, parágrafo único.


19 MORAIS; SPENGLER, pp., cit., p. 137.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 134


não exposição pública do teor de um conflito.20 Em linhas gerais, o princípio
da confidencialidade é a garantia conferida às partes envolvidas de que as
informações, de qualquer natureza, passadas ao mediador, não serão
repassadas a terceiros alheios ao processo.
O princípio da oralidade significa que os atos nas sessões de mediação
devem primar pelo uso da oralidade. Desse modo, a oralidade na mediação
judicial é norteada por três objetivos, quais sejam: conferir celeridade ao
processo, fortalecer a informalidade dos atos e promover a confidencialidade,
registrando-se possível o menos possível.21
O princípio da informalidade traduz que a mediação, por ser um
procedimento simples e flexível, não deve ser exercida com um rigor técnico
excessivo. Assim, o mediador e as partes têm ampla liberdade para
estabelecer a dinâmica da mediação.
Os princípios da decisão informada e da busca do consenso indicam que
o mediador, como agente condutor dos mediados e imbuído de contemplar
que as mesmas cheguem a um consenso e, consequentemente, assegurar o
melhor resultado para o conflito, tem a missão de esclarecer e informar todas
as nuanças que poderão ocorrer, no decorrer do procedimento.
Nesse ponto, cumpre destacar que a noção de consenso, na acepção da
teoria da ação comunicativa de Habermas, na qual estão embasados os
elementos orientadores para os instrumentos discursivos de resolução de
conflitos, é entendida como um acordo, que se estabelece por meio de um
exercício racional de argumentação não coercitiva, que sempre pressupõe no
processo comunicativo a compreensão, a verdade, a sinceridade e a justiça.22
Habermas propôs um modelo ideal de ação comunicativa e de democracia
deliberativa, no qual os atores sociais interagem através da linguagem,
organizam-se em sociedade e procuram o consenso de forma não coercitiva.
Nesse sentido, Trevisol esclarece:

20 SANTOS, Ricardo Goretti. Manual de mediação de conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2012. p. 154.
21 MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; SOARES, Irineu Carvalho de Oliveira. Princípios

procedimentais da mediação no novo Código de Processo Civil. In: _____. A mediação no novo
código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 113.
22 HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalidade

social. Trad. de Paulo Astor Soethe. São Paulo. WMF M. Fontes, 2012. v. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 135


Ao ventilar a linguagem, enquanto ato de entendimento e consenso
humano sobre questões pertinentes (ética, política, direito, moral,
estética, poder) inicia-se o abandono do paradigma monológico da razão
kantiana, fundada no discernimento pessoal, para um paradigma do
entendimento mútuo mediado intersubjetivamente pela linguagem.23

Mas, o Princípio da autonomia da vontade pode ser compreendido


como o princípio fundamental da mediação.24 É também denominado
princípio da autodeterminação ou princípio da liberdade. Segundo Tartuce,
por tal diretriz, os mediados têm o poder de definir e protagonizar o
encaminhamento da controvérsia, o que inclui desde a opção pela adoção do
método compositivo até a responsabilidade pelo resultado final.25 Assim,
ninguém poderá ser compelido a permanecer em procedimento de mediação
(§2º do art. 2º da Lei de Mediação), bem como não é admitido que mediador
opine sobre o caso, ou constranja as partes, impondo resultados.
Os princípios da independência e da imparcialidade dizem respeito à
figura do mediador. Ambos refletem como o mediador deve se portar na
condução do procedimento. A imparcialidade do mediador se refere à
posição equidistante deste, em relação às partes, proporcionando aos
mediandos a percepção de que nenhuma parte está sendo favorecida ou
privilegiada, o que é fundamental para assegurar a confiança entre os atores
do conflito. Por seu turno, independência se traduz na conduta isenta do
mediador, que deve estar livre de qualquer tipo de influência ou pressão, seja
das partes, de terceiros, do sistema ou da própria situação que envolve a
mediação.
Já o princípio da boa-fé compreende o comportamento ético,
transparente e honesto dos participantes, ensejando a visão do objeto
litigioso, direcionado a assegurar a eficácia da negociação.

23 TREVISOL, Marcio G. Ação comunicativa e pedagogia: alguns apontamentos sobre educação


e mídia. V CINFE, Congresso Internacional de Filosofia e Educação, Caxias do Sul-RS,
maio/2010. Disponível em: <www.ucs.br/ucs/tplcinfe/eventos/cinfe/artigos>. Acesso em:
25 jan. 2017.
24 BACAL, Eduardo Braga; CARNEIRO, Cristiane Dias. A mediação e os provimentos

jurisdicionais de urgência no novo CPC. In: MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; SOARES,
Irineu Carvalho de Oliveira. A mediação no novo código de processo. Rio de Janeiro: Forense,
2015. p. 255.
25 TARTUCE, op. cit., p. 211.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 136


O novo aparato legislativo acerta em normatizar o instituto da
mediação, na medida em que os parâmetros e os valores éticos do instituto
são padronizados, assim como a atuação dos mediadores, contribuindo para
a aceitação social de uma forma não violenta de resolução de conflitos,
proporcionando aos envolvidos mais segurança na atividade de mediação.
Enquanto instrumento pacífico de composição de conflitos, a mediação
possui claras vantagens em relação aos métodos judiciais tradicionais, pois
contribui para a paz social e para a construção e manutenção de relações
harmoniosas entre as pessoas. Destaca Bacellar26 que a verdadeira justiça
será concretizada, se os conflitos forem solucionados mediante o consenso,
de modo a resolver todas as questões que envolvam o relacionamento dos
interessados. Inclusive, a mediação possui vantagem em relação aos demais
métodos, visto que permite, caso as partes concordem, a continuidade da
relação em uma perspectiva de futuro, sem comprometer o relacionamento
entre as partes.
Nesta perspectiva, “o método se insere por inteiro na noção de justiça
coexistencial, sendo totalmente coerente com o estímulo à cultura de paz”.27
A finalidade deste instrumento consiste no restabelecimento da
comunicação, possível preservação do relacionamento entre as partes;
possível prevenção de conflitos, inclusão social, além da pacificação social.28
De tal modo a pacificação “revela-se uma tarefa alcançável desde que as
técnicas da mediação sejam bem empregadas junto as pessoas interessadas
em seu alcance e engajadas em atuar para obtê-la”. Contudo, a solução
imposta por um terceiro na litigiosidade, a situação entre as partes pode até
mesmo se agravar, distanciando-se da efetiva paz entre as partes. Nesta linha,
[...] a verdadeira Justiça só se alcança quando os casos se solucionarem
mediante consenso que resolva não só o problema em discussão, mas
também todas as questões que envolvam o relacionamento entre os
interessados”. Com a implementação de um ‘modelo medicional’ de

26 BACELLAR, Roberto Portugal. A mediação no contexto dos modelos consensuais de


resolução de conflitos. Revista Cidadania e Justiça, O Direito no Século XXI. Rio de Janeiro:
Associação dos Magistrados Brasileiros, ano 4, n. 8, 2000.
27 TARTUCE, Fernanda. Op., cit., p. 176.
28 Ibidem, p. 217 et seq.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 137


resolução de conflitos, o Estado estará mais próximo da conquista da
pacificação social e da harmonia entre as pessoas. 29

Nesta perspectiva, a mediação de conflitos socioambientais é


indispensável na construção de sociedades sustentáveis. O conflito
socioambiental é fruto de jogo de interesses; portanto, a sua resolução
depende da capacidade de estabelecer diálogos entre as partes envolvidas. A
mediação é essencial para a educação da sustentabilidade, visto que cultiva
princípios de cultura da paz e propõe o diálogo dos envolvidos para a
resolução da divergência.30

A mediação ambiental como instrumento de promoção da paz nas


relações entre o homem e a natureza

A crise ecológica é uma crise ética, cultural de valores; assim “[...] não
podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio
ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais”.31 Desta
forma, é necessário o restabelecimento do vínculo do homem em relação à
natureza, mas também do homem com o próprio homem.
É imprescindível a tomada de consciência global da crise ambiental
contemporânea, sob pena de se esgotarem os recursos naturais. Nesse
aspecto, Leite32 explica: “somente com a mudança para a responsabilização
solidária e participativa dos Estados e dos cidadãos, com os ideais de
preservação ecológica, é que será possível encontrar solução para a crise
ambiental”.
A mediação, portanto, é um mecanismo que visa – por meio do diálogo –
restabelecer, além da relação do homem com a natureza, a relação do homem
com o ser humano. E mais, serve de auxílio na superação da crise
socioambiental (não apenas ambiental, mas também social),33 até porque o

29 Ibidem, p. 226.
30 GRANJA, op. cit., p. 52.
31 FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. Brasília:

Edições CNBB, 2015. p. 75.


32 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e estado. In: CANOTILHO, José Joaquim

Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. 4. ed.
rev. Rio de Janeiro: Saraiva, 2011. p. 181.
33 “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa

crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para

Ética, direitos humanos e meio ambiente 138


meio ambiente integra a relação entre a natureza e a sociedade que nele
habita.
Inclusive, a mediação é um mecanismo alternativo de resolução de
conflitos, especialmente dos conflitos socioambientais, por ser uma técnica
que não se resume nos propósitos imediatos da resolução de conflitos e da
pacificação social, mas tem por escopo atender aos apelos da compreensão
mútua, da comunicação e da dignidade humana.34
Além do mais, é imperioso fortalecer a conscientização de que a própria
existência da humanidade depende de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado: “Todos nós dependemos de uma biosfera para conservarmos a
nossa vida. Mesmo assim, cada comunidade, cada país luta pela sua
sobrevivência e pela prosperidade quase sem levar em consideração o
impacto que causa sobre os demais”, consoante dispõe o Relatório Nosso
Futuro Comum.35
A mediação, a comunicação e o diálogo podem contribuir para a
conscientização dos direitos e deveres dos envolvidos em conflitos
socioambientais e para a construção de um consenso.
Com efeito, a mediação exige do mediador habilidades, técnicas e
valores à luz da Comunicação Construtiva – denominada de comunicação não
violenta, pacifista, positiva, entre outras – a qual se constitui em
[...] um conjunto de habilidades que contribui para gerar confiança,
empatia e colaboração no trato de inevitáveis conflitos da convivência
humana, pela validação de sentimentos a partir do reconhecimento
afetivo da essencialidade e legitimidade do outro, enquanto co-
construtor e co-inovador dos padrões relacionais que podem ajudar na
identificação das necessidades vitais a serem contempladas em cada
situação.36

combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da


natureza”. (FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum.
Brasília: Edições CNBB, 2015, p. 88).
34 TORRES, Claudia Vechi. A mediação como mecanismo de resolução de conflitos

socioambientais. 2006. Monografia – Universidade de Brasília, Centro de Desenvolvimento


Sustentável, UnB, 2006. Disponível em: <http://bdm.unb.br/bitstream>. Acesso em: 10 jan.
2017.
35 NAÇÕES UNIDAS. Nosso Futuro Comum. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1988. p. 29.


36 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. Rio de

Janeiro: Forense, 2015. p. 151.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 139


Vasconcelos acredita que os elementos desta Comunicação Construtiva
“poderiam ser vistos como elementos de linguagem para o desenvolvimento
de uma cultura de paz”,37 de modo a efetivar a ética da tolerância e de
responsabilidade, na promoção da cultura de paz, além de colaborar para o
desenvolvimento sustentável da sociedade contemporânea.
Contudo, Santos38 questiona sobre a efetividade da mediação como via
alternativa de facilitação do acesso à justiça no Brasil ante os obstáculos de
natureza informativo-educacional, político-legislativa e jurídico-cultural.
Morais e Spengler39 descrevem algumas críticas existentes sobre o
tema, como a falta de segurança e a ausência de previsibilidade no
procedimento. Porém, acreditam que a mediação é o melhor caminho para
“superar o imaginário do normativismo jurídico, esfumaçando a busca pela
segurança, previsibilidade e certezas jurídicas para cumprir com objetivos
inerentes à autonomia à cidadania, à democracia e aos Direitos Humanos”.
Apesar da incidência de certos entraves no processo de mediação, se
[...] adequadamente conduzido fornece às partes os instrumentos que
necessitam para adotar uma postura mais construtiva, que evite assim
novas judicializações de conflitos sobre a mesma questão, trazendo a
construção do consenso para os espaços democráticos onde ela deve ser
naturalmente desenvolvida.40

Com isso, a atuação de mediadores é apta a gerar a construção de


consenso, ao menos parcial, até mesmo quanto conflitos complexos que há
anos aguardam uma solução. Ademais, “ao lidarmos construtivamente com os
conflitos sociais, abrimos porta para um diálogo apreciativo de alternativas
importantes ao processo de mudança”.41
A partir de tais considerações, é primordial a efetivação da mediação,
no que tange aos conflitos socioambientais. Com isso, revigora-se a
consciência de que a própria sobrevivência da humanidade depende de um

37 Idem, p. 152.
38 SANTOS, Ricardo Goretti. Manual de mediação de conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2012. p. 23.
39 MORAIS; SPENGLER, op. cit., p. 156.
40 SOUZA, Luciane Moessa de. Mediação de conflitos coletivos: a aplicação dos meios

consensuais à solução de controvérsias que envolvem políticas públicas de Direitos


Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 235.
41 VASCONCELOS, op. cit., p. 149.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 140


meio ambiente equilibrado, bem como restaura-se o vínculo do homem em
relação à natureza e do homem em relação ao próprio homem, de modo a
possibilitar alternativas para mudanças à luz da cultura de paz.

Considerações finais

Cumpre destacar que inúmeros conflitos sociais ou ambientais


ocasionaram degradação ambiental e humana. Com isso, é necessário que o
Estado assuma o encargo de proporcionar mecanismos de composição
pacífica e que promovam a elevação de valores como participação, inclusão
social, diálogo, democracia, comprometimento e cidadania.
Diante da crise socioambiental atual, formas alternativas de composição
de conflito têm sido implementadas, reforçando a ideia de que o acesso à
justiça não se confunde com o acesso ao Judiciário, na busca da pacificação
social.
A mediação cultiva princípios de cultura de paz e propõe o diálogo dos
envolvidos para a resolução da divergência. O conflito socioambiental possui
jogo de interesses, razão pela qual a sua resolução requer diálogos entre as
partes envolvidas, o que se afigura primordial para a busca da
sustentabilidade.
A crise socioambiental (ambiental e social) contemporânea exige o
restabelecimento do vínculo do homem com a natureza e do homem com o
próprio homem, bem como a conscientização de que a própria sobrevivência
da humanidade depende de um meio ambiente equilibrado. Portanto, a
aplicação da mediação – com a construção do consenso – em conflitos
socioambientais possui a capacidade de alcançar tais metas, de modo a
possibilitar alternativas de mudanças sob a ótica da cultura de paz.

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 143


8
O direito fundamental à água e os conflitos ambientais no
plano internacional: um estudo de caso a partir do
represamento do rio Nilo na Etiópia e seus desdobramentos
socioambientais

Giovani Orso Borile *


Cleide Calgaro**
Clauderson Piazzetta***

Introdução

O presente estudo elabora um breve exame sobre os conflitos


ambientais envolvendo a perspectiva da água como um Direito Fundamental
de todo ser humano, abordando-se a questão dos conflitos emergentes
concernentes à matéria ambiental, com um enfoque especial na problemática
do represamento do rio Nilo no continente africano, e seus desdobramentos.
Procura-se através do método analítico abordar a conjuntura atual
acerca da problemática existente no rio Nilo, devido à construção de uma
barragem pela Etiópia em desfavor do Egito e Sudão, trazendo-se a constante
discussão acerca dos impactos sociais e ambientais protagonizados pelos
empreendimentos hidrelétricos, que tanto são discutidos na modernidade.
Projetos e construções que trazem consigo inúmeras discussões e críticas
devido aos incontáveis reflexos e resultados que os permeiam.

* Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Integrante do Grupo de


Pesquisa Metamorfose Jurídica. CV: http://lattes.cnpq.br/9063196599611399. E-mail:
goborile@ucs.br
** Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Pós-

Doutora em Filosofia e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Mestra em Direito e em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Atualmente é professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação – Mestrado e
Doutorado – e na Graduação em Direito, da Universidade de Caxias do Sul. Pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Metamorfose Jurídica. CV: http://lattes.cnpq.br/8547639191475261. E-
mail: ccalgaro1@hotmail.com
*** Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Integrante do Grupo de

Pesquisa ALFAJUS. CV: http://lattes.cnpq.br/0828656428128246. E-mail:


claudersonpiazzetta@hotmail.com

Ética, direitos humanos e meio ambiente 144


Dessa forma, discute-se a questão do Direito Fundamental à água e sua
violação concretizada pela construção de uma obra de grandes proporções,
que dificultará e até mesmo impossibilitará a utilização adequada dos
recursos hídricos pelas comunidades ribeirinhas que dependem unicamente
do rio para o seu desenvolvimento agrícola.
Por fim, demonstram-se os principais impactos trazidos pela
implantação desse empreendimento em solo africano, além de analisar a
conjuntura atual, que permeia a questão de modo a visibilizar a real
necessidade de adoção de medidas efetivas para a solução e o deslinde
efetivo da problemática ora apresentada, considerando-se, portanto, a
necessidade de um aprofundamento cada vez maior no estudo da temática
ambiental, em face dos constantes conflitos que hoje se apresentam.

O direito fundamental à água e o represamento do rio Nilo:


conflitos ambientais no plano internacional

Inicialmente, há de se mencionar que a água se constitui em um fator


imprescindível à existência de toda humanidade, sendo uma grande
viabilizadora da vida em toda a sua complexidade, de modo que fixou-se o
entendimento de que a água tornou-se uma garantia essencial para a
perpetuação da vida no planeta – seja ela animal ou vegetal.
O reconhecimento da água como um Direito Fundamental de todo ser
humano é algo que denota claramente a conotação e o novo sentido que as
questões ambientais têm tomado na atualidade, de modo que o meio
ambiente adquiriu novo status perante a sociedade moderna contemporânea
e, portanto, galgou uma série de direitos e garantias, a partir dessa nova
dimensão.
Ao analisarem-se os Direitos Fundamentais, têm-se o direito à vida
como grande corolário e ainda a garantia de todo cidadão a um meio
ambiente equilibrado, sabendo-se que a água integra o meio ambiente em sua
plenitude; desse modo, a partir da análise de que a água constitui-se em vida
pura, bem como que o ambiente sadio tornou-se uma garantia de todo
cidadão, é plausível o entendimento de que a água se constitui um Direito

Ética, direitos humanos e meio ambiente 145


Fundamental de todo indivíduo, de maneira que medidas assecuratórias são
imprescindíveis como meio de garantia do referido direito.
A água, sem dúvidas, integra o meio ambiente e desse modo deve ser
considerada um direito de toda a comunidade global, como condição
essencial ao desenvolvimento internacional, à continuidade e existência dos
povos, devendo-se considerar os inúmeros aspectos que permeiam a questão,
tais como: escassez, poluição, caráter econômico e eventuais conflitos
ambientais e disputas. Com relação ao caráter essencial desse recurso e às
suas características, ressaltam Kunde e Menegon:

A água é o bem mais precioso do milênio; neste século será equivalente


ao petróleo no século XX, inclusive em valores, pois 97% da água
existente no Planeta é salgada, sendo que não serve para alimentação ou
mesmo para uso industrial. Apenas 3% é de água doce, sendo que 2%
são de fontes subterrâneas. Como recurso ambiental, a água é
indissociável dos demais elementos (solo, ar, atmosfera, flora e fauna)
que compõem o meio ambiente natural e sua presença garante a
continuidade da vida. O valor econômico da água tornou-se notório,
inclusive em consenso internacional, em face da disponibilidade da
crescente demanda e dos altos índices de poluição.1

Desse modo, a partir do caráter de imprescindibilidade que a água


possui na atualidade, é necessário demonstrar o paralelo de ligação entre os
Direitos Fundamentais e sua correlação com a questão dos recursos hídricos,
como um mantimento crucial a todo ser humano, confirmando-se, assim, seu
caráter de essencialidade.
Outrossim, como informa Flores:

O direito a água é direito fundamental por excelência e, portanto, o ente


estatal deverá com o apoio da sociedade criar meios necessários para
garantir água potável para todos. [...] Isso porque a água é essencial à
sobrevivência dos seres bióticos, portanto, direito fundamental
universal. Nessa órbita, reconhecer a água como direito fundamental
consiste em atribuir ao Estado, numa atuação conjunta com a sociedade,
a tutela efetiva da água. De modo que ente estatal deverá garantir um
mínimo de água potável aos cidadãos, em respeito ao princípio da

1 KUNDE, Bárbara; MENEGON, Vivia. Água: outorga e acepções constitucionais. Revista


Faculdade de Direito, Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, n. 14, p. 79-93, 2004.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 146


dignidade da pessoa humana, inclusive exigi-lo por meio de processos
judiciais.2

Não há dúvida de que o reconhecimento efetivo do direito à água, como


fundamental, é imprescindível para uma plena viabilização das discussões
envolvendo o tema hídrico, a partir da necessidade de reconsideração das
questões como meio de solução das problemáticas emergentes, como bem
assevera Ferreira:

A importância da água para a vida, saúde, bem estar e desenvolvimento


humano é inquestionável, e, assim sendo, toda pessoa deveria contar
com o fornecimento suficiente, fisicamente acessível e a um custo
acessível, de uma água salubre e de qualidade aceitável para as
utilizações pessoais e domésticas de cada um, assegurado por lei e
fiscalizado pela sociedade, de tal ponto que todos pudessem usufruir
desta substância indispensável à vida [...] viabilizando o acesso ao direito
à água e resguardando-o como direito humano. É preciso ainda que se
estimule a preservação, o gerenciamento e a racionalização da água,
fonte de vida do planeta, impedindo desta forma que o mundo caia num
quadro sombrio de exploração, consumo e supervaloração econômica.
[...] Nesse contexto, podemos, então, enunciar com clareza: o acesso
universal à água potável é um direito humano, fundamental de todos; o
abastecimento humano é o mais importante dos usos das águas e como
tal deve ser considerado pelos sistemas de gestão dos recursos hídricos.3

Portanto, o Direito Fundamental à água constitui-se um direito de toda


a comunidade global, materializado pelo estudo e pela adoção de medidas,
para que todo e qualquer cidadão, que necessite dos recursos hídricos, como
forma de sobrevivência, tenha o devido acesso como forma de “sobrevivência
da espécie humana”, como bem menciona Milaré.4 E, como afirma Machado
“negar água ao ser humano é negar-lhe o direito à vida; ou em outras
palavras, é condená-lo à morte”.5 É importante salientar que a água é um bem

2 FLORES, Karen Müller. O reconhecimento da água como direito fundamental e suas


implicações. RFD- Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, v. 1, n. 19, jun./dez.
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4 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 9. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2014. p. 224.
5 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos hídricos: direito brasileiro e internacional. São

Paulo: Malheiros, 2002. p.13.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 147


de uso comum, tendo que ser desprovida de valor econômico, pois se a
mesma é um direito fundamental não pode ser cobrada, sob pena de ser uma
mercadoria. E, sendo uma mercadoria, o acesso a ela se dá a quem tem capital
econômico para comprá-la. Com isso, devido às desigualdades sociais e a
pobreza existente na sociedade global, nem todos terão acesso à água.
Assim sendo, é importante elevar a água como direito fundamental,
pois, ao ser elevada a esse status, se terá, segundo Antunes, “um importante
marco na construção de uma sociedade democrática e participativa e
socialmente solidária”.6 Desse modo, a água garante a dignidade da pessoa
humana, a vida e principalmente o mínimo existencial para as pessoas que
vivem em sociedade. Quando se dimensiona a água de forma econômica, a
mesma se torna um fator de exclusão e de rompimento de direitos
fundamentais. Quando a mesma se torna um direito fundamental, ela vem a
ser irrenunciável e inalienável.7
Agora, diante de uma análise prévia da configuração da água como um
direito essencial de todo indivíduo, faz-se uma explanação da problemática
emergente na sociedade global.
Ocorre que o rio Nilo Azul, na Etiópia, tem figurado como sede das
obras de um projeto de proporções gigantescas e que restou permeado de
discussões e conflitos políticos. A obra denominada de a Grande Represa do
Renascimento Etíope, com conclusão prevista para o ano de 2017, tornou-se o
foco de inúmeras contradições e desentendimentos no plano político-
internacional, visto que os três principais países envolvidos: Etiópia, Egito e
Sudão, estão em uma disputa pelas águas represadas do rio Nilo.
O projeto possui uma estimativa de custo entre cinco a seis bilhões de
dólares e, segundo seus idealizadores, poderá gerar cerca de seis gigawatts
de energia, o que viabilizaria, inclusive, a possibilidade de a Etiópia exportar
eletricidade para seus vizinhos, países da África Oriental, demonstrando-se,
portanto, o viés puramente econômico da obra sem, contudo, estabelecer-se

6ANTUNES. Paulo de Bessa. Direito ambiental. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 48.
7 IRIGARAY, Carlos Teodoro Hugueney. Água: um direito fundamental ou uma mercadoria?
In: BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). Congresso Internacional de Direito Ambiental: direito,
água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 398. v. 1.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 148


uma averiguação coesa acerca da violação de direitos essenciais dos povos
limítrofes tão intrinsecamente ligados ao abastecimento de água.8
Há de se mencionar que, em torno de 84% da água presente no Nilo se
origina na Etiópia, de modo que o Nilo Azul e o Nilo Branco são os principais
afluentes que formam o grande Nilo, que rega boa parte do Continente
Africano. O fluxo existente no rio Nilo nada mais é do que uma roleta
climática que vivencia uma série de períodos antagônicos representados
pelas cheias e pela completa abundância de água, em contraponto aos
períodos de seca prolongada.9 Um modelo disso é o que se tem no Pantanal
brasileiro, onde percebe-se períodos de cheia e de estiagem; contudo, deve-se
ressaltar que, no rio Nilo, ocorrem extremos que se iniciam com a estação
chuvosa, finalizando-se em um cenário semidesértico, quando novamente
ocorre a retomada do ciclo, conforme o clima predeterminado.
Assim, em face desse roteiro natural em que o rio Nilo está inserido e
diante de suas características ecossistêmicas, é facilmente inteligível a
concepção dos riscos provenientes do represamento do rio que passa,
obrigatoriamente, por períodos de estiagem severos, quando as zonas
periféricas e adjacentes ao rio sofrem diretamente com as secas, de maneira
que toda a população que se beneficia do grande rio Nilo passa a ser atingida
pelo represamento do rio pela Etiópia. O Egito, que fica do lado posterior à
obra, seguindo o curso do rio, tem grande parte da população localizada na
zona rural e, portanto, inteiramente dependente dos recursos hídricos. Sofre
assim abalos significativos em sua economia, fundada basicamente no setor
primário, ligado à agricultura e ao extrativismo.10
Um rio como o Nilo é de relevância inquestionável para toda a
comunidade internacional que dele se utiliza, em face de seus 6.671 km de
extensão, que tendem a despejar quase 60 bilhões de metros cúbicos por ano
em território egípcio, de modo que a retenção desse recurso, sem dúvidas,

8 GUBIN, Anastasia. Hidroelétrica etíope desvia águas do Nilo, gerando preocupações no


Egito e Sudão. Epoch Times, New York, 29 maio 2013. Disponível em:
<https://www.epochtimes.com.br/hidroeletrica-etiope-desvia-aguas-do-nilo-gerando-
preocupacoes-no-egito-e-sudao/#.WJpp9PkrLIV>. Acesso em: 10 fev. 2017.
9 SANMARTÍN, Joaquín; SERRANO, José Miguel. Historia antigua del Próximo Oriente:

Mesopotamia e Egipto. Madrid: Akal, 2006. p. 190.


10 GRIMAL, Nicolás. Historia del antiguo Egipto. Trad. de Blanca García Fernández-Albalat y

Pedro López Barja de Quiroga. Madrid: Akal, 2004. p. 16.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 149


acarretaria um grande déficit na economia do Egito e dos demais países que
se utilizam das águas do Nilo.
Ocorre que o Egito retira agora praticamente toda a água do rio Nilo, o
que equivale em torno de 700 metros cúbicos per capita por ano, sendo que o
projeto que agora beira a conclusão já se tornou alvo de inúmeras discussões
no plano internacional e viabilizará, indubitavelmente, o surgimento de
conflitos socioambientais e econômicos de grande monta.
A problemática se consolida principalmente pelos fatores geográficos e
climáticos que são característicos do território,11 de modo que as chuvas na
Etiópia, que alimentarão a referida represa se dão basicamente durante três
meses; desse modo, ao armazenar a água e impedir seu fluxo que já é
estabelecido pelos processos ecológicos, há o risco de fomentar um
desequilíbrio crescente dos ecossistemas posteriores à construção da
barragem. Outrossim, a agricultura egípcia intimamente ligada ao curso do
rio corre sérios riscos pelo abastecimento deficiente dos recursos hídricos.
Há de se mencionar que a vasta quantidade de energia elétrica
produzida e o provável auferimento de lucro se concretizará a duras penas
no que tange aos processos ecológicos e aspectos socioeconômicos, uma vez
que o meio ambiente é lesado ao surgimento da grande usina e o
deslocamento das tribos e inviabilização do labor agrícola fomentará
inúmeros prejuízos aos países vizinhos.
Pode-se mencionar que o Sudão não será tão abruptamente atingido
pelo projeto, devido à possibilidade de o mesmo utilizar-se do fluxo mais
estável de água, vindo da barragem para seu desenvolvimento agrícola, dado
que parte do país tem acesso também à parte inundada ou cheia do rio. Isso
proporciona um aumento na sua produtividade agrícola, o que não ocorrerá
com o Egito, que estará mais distante da barragem e, consequentemente, terá
para si a região posterior à hidrelétrica. Portanto, ficará com a parte seca do
rio, de modo que a barragem reterá dois terços da água que fluíra pelo curso
antigo para a nação egípcia, o que, inevitavelmente, gerará prejuízos
econômicos com reflexos em toda aquela comunidade.

11 DESPLANCQUES, Sophie. Egito antigo. Trad. de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009. p.
5.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 150


A obra, não obstante seus reflexos econômicos e comerciais positivos
para o país que a conclui, trará inúmeros reflexos para toda a comunidade
que depende do rio Nilo para sua sobrevivência, uma vez que toda a
sociedade egípcia espera do rio Nilo o seu sustento e a vida desde os períodos
faraônicos, dado que toda a população estabeleceu-se ao longo do curso do
rio por longas eras, devido às benesses oferecidas pelo mesmo. Todavia, a
cultura, a economia e o desenvolvimento dessas sociedades vêem-se
acometidos de grandes riscos pela conclusão de um projeto de grande vulto,
que tenderá a destruir inúmeros ecossistemas. As inundações afogarão
ecossistemas e lesarão a biodiversidade, bem como comunidades e
civilizações que dependem exclusivamente do leito do rio como forma e fonte
de vida.
A conclusão da usina hidrelétrica o Grande Renascimento trará consigo
diversos desdobramentos no plano ambiental, econômico e social, de modo
que analisa-se adiante quais as perspectivas e os produtos, na conclusão
desse grande projeto da engenharia, que trará muitas complicações no plano
político-internacional, devido aos grandes reflexos perpetrados pelo
empreendimento.

Desdobramentos socioambientais e reflexos políticos a partir da


conjuntura internacional

A construção da barragem trará consequências para toda a comunidade


que se utiliza do grande rio Nilo, de modo que os conflitos ambientais se
multiplicam em face ao soerguimento de riscos e danos às populações que
dependem exclusivamente do grande aqueduto para sustento agrícola e
familiar.12 Outrossim, há menção à violência pelo Egito, caso não haja acordo
na distribuição da água para todos os envolvidos, sendo que a violência
poderá tornar-se meio de resolução do conflito, o que não é de modo algum
viável, quando se busca no mundo atual cada vez mais a inserção de uma

12 ALMEIDA, Lutiane Queiroz de. Vulnerabilidades socioambientais de rios urbanos. 2010. 311

f. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Pontifícia


Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, 2010. Disponível em:
<http://pct.capes.gov.br/teses/2010/33004137004P0/TES.PDF>. Acesso em: 10 fev. 2017.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 151


cultura de não violência, devendo haver a adoção de medidas efetivas na
resolução dos conflitos, na seara ambiental.13
Bem salienta Vainer, no tocante aos impactos produzidos pelas usinas
hidrelétricas:

A literatura tem abordado sob os mais diversos pontos de vista os


chamados impactos sociais e/ou ambientais dos grandes
empreendimentos hidrelétricos. Quase sempre realizados em regiões
periféricas, eles têm imposto às populações das áreas onde se implantam
rápidas e profundas alterações nos meios e modos de vida:
deslocamento compulsório de milhares ou dezenas de milhares de
pessoas, desestruturas, rupturas das teias de relações sociais, afluxo de
populações que pressionam na qualidade da água, no curso e regime dos
rios com graves consequências tanto para as condições sanitárias quanto
para as atividades econômicas (pesca, agricultura de vazante) etc. Ao
invés de funcionarem como focos difusores da modernidade e do
progresso, como prometem coloridos prospectos e vídeos
propagandísticos, o reordenamento territorial resultante da construção
destes grandes aproveitamentos hidrelétricos tem sido acompanhado
pela multiplicação de carências de toda ordem.14

Pode-se mencionar que, quando se trata de recursos essenciais à vida


tem grande importância que se atente para as consequências e proporções15
que a questão pode tomar. Principalmente, no caso do Egito e de demais
países que estão intrinsecamente ligados à água, como forma de subsistência
e manutenção da vida,16 devendo-se procurar meios de resolução da
problemática. É realmente difícil, ao saber-se que a obra está às portas da
conclusão e que os danos são iminentes e certos, em se tratando de bens
ambientais e da manutenção da vida. O Egito e demais países posteriores à

13 ERLICH, Haggai; CASCÃO, Ana Elisa. O conflito do Nilo. Lisboa: Instituto Marquês de Valle
Flôr, 2013. p. 8.
14 VAINER, Carlos. B. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento Regional. Rio de

Janeiro: CEDI, 1990. p. 184.


15 ZACARELI, Murilo Alves; GARCIA, Tatiana de Souza Leite. Recursos hídricos

transfronteiriços e relações internacionais: o caso da bacia do rio Nilo. Anais do VI Encontro


Nacional da ANPPAS. Belém/PA – Brasil, 2012. p. 3. Disponível em: <http://www.
anppas.org.br/encontro6/anais/ARQUIVOS/GT15-144-522-20120628212658.pdf>. Acesso
em: 10 fev. 2017.
16 RIBEIRO, Wagner da Costa. Geografia política da água. São Paulo: Annablume, 2008. p. 43.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 152


obra veem-se lesionados pelo projeto e apontam o uso da violência como
meio de resolução da questão.17
Os impactos às comunidades ribeirinhas se multiplicam em face da
finalização das obras, como alerta Mendes:

É importante salientar que, nem sempre, as barragens e usinas


hidrelétricas atingem o seu objetivo principal, produzindo, às vezes,
menos energia elétrica do que havia sido projetado e com a função de
barrar a água geralmente se torna muito onerosa e sua conclusão leva
muito mais tempo que o previsto no projeto inicial. Além disso, cabe
ressaltar que as empresas, até mesmo as estatais, iniciam novos projetos
antes mesmo que estejam devidamente equacionados e resolvidos os
problemas sociais e ambientais de barragens já construídas. Nesse
contexto, enfatiza-se que a construção de usinas hidrelétricas traz muitas
consequências negativas para as regiões atingidas, tais como: famílias de
agricultores expulsas para as cidades, abandonando as atividades
agrícolas; comunidades inteiras destruídas; propriedades rurais
desestruturadas e pequenos estabelecimentos comerciais inviabilizados
pela perda de seus consumidores. No que tange às indenizações pelos
danos causados pelas barragens, as empresas levam em consideração
unicamente os aspectos materiais, prescindindo da valoração do
trabalho investido no trato com a terra, dos valores afetivos e simbólicos,
ou seja, da dimensão cultural, das condições sociais e históricas das
populações locais, enfim, das peculiaridades existentes e da
complexidade das relações sociais.18

Sabe-se que os etíopes realizam as obras de construção da represa


munidos de armas e com guarda reforçada,19 labutam pela conclusão de uma
obra que gera inúmeras incertezas ao cenário político africano,20 o que para

17 PERRY, Tom; MACDONALD, Alastair. Retórica belicosa do Egito esquenta debate sobre
barragem etíope no Nilo. Portal R7. 10 jul. 2013. Disponível em:
<http://noticias.r7.com/internacional/retorica-belicosa-do-egito-esquenta-debate-sobre-
barragem-etiope-no-nilo-10062013>. Acesso em: 10 fev. 2017.
18 MENDES, Noeli Aparecida Serafim. As usinas hidrelétricas e seus impactos: os aspectos

socioambientais e econômicos do reassentamento rural de Rosana: Euclides da Cunha


Paulista. 2005. 222 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em
Geografia. Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, SP, 2005. p. 46. Disponível
em: <http://www2.fct.unesp.br/pos/geo/dis_teses/05/05_noeli.pdf>. Acesso em: 10 fev.
2017.
19 MAASHO, Aaron. Etiópia rejeita “guerra psicológica” do Egito sobre barragem no rio Nilo.

Reuters, 13 jun. 2013. Disponível em:


<http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRSPE95A07S20130611>. Acesso em: 10 fev.
2017.
20 RAPOSO, Lumena. Etiópia emite dívida mas avisa que há risco de guerra, tensão política e

fome. Diário de Notícias, Lisboa, 6 dez. 2014. Disponível em:

Ética, direitos humanos e meio ambiente 153


uns representa a renascença e o soerguimento, para outros tornou-se o caos,
a escassez e a desgraça, dados os muitos problemas futuros àqueles que se
encontram no lado desfavorável das águas do Nilo.
Como claramente demonstra Mendes,
desta maneira, os impactos sociais e ambientais provocados pela
construção desses lagos são irreversíveis e, mesmo com a tentativa de
amenizá-los, através do reassentamento das famílias e da transferência
de parte da fauna, essas alternativas não são suficientes para evitar as
grandes perdas. Eles podem ocorrer sob as formas de extinção de
plantas específicas de determinadas áreas afetadas pelo lago e pela não
retirada da madeira existente, gerando a falta de oxigênio na água,
matando peixes e destruindo o ecossistema. Outro problema é o da
proliferação de peixes de água parada, que não tem aceitação comercial,
comprometendo a sobrevivência dos pescadores. Desse modo, as
interferências na dinâmica ambiental de áreas inundadas são imensas.21

Diante do exposto, em dezenas de declarações, o governo egípcio


proferiu ameaças22 ao governo etíope pela construção da referida obra
recheada de dissabores e contradições, uma vez que sua construção
ameaçava o desenvolvimento egípcio23 e colocava seu povo à mercê da
miséria fomentando o surgimento de conflitos regionais crescentes e
contínuos.24 Dde maneira que o posicionamento do governo egípcio tornou-
se uma guerra psicológica em seu discurso por ações militares25 contra a

<http://www.dn.pt/globo/interior/etiopia-emite-divida-mas-avisa-que-ha-risco-de-guerra-
tensao-politica-e-fome-4280890.html>. Acesso em: 10 fev. 2017.
21 MENDES, op. cit., p. 47.
22 FERREIRA, Leonídio Paulo. Não toquem no meu Nilo, grita o Egito aos etíopes. Diário de

Notícias, Lisboa. 24 jun. 2013. Disponível em: <http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-


dn/leonidio-paulo-ferreira/interior/nao-toquem-no-meu-nilo-grita-o-egito-aos-etiopes-
3286447.html>. Acesso em: 10 fev. 2017.
23 CASTRO, Douglas de. Tratamento jurídico internacional da água e desenvolvimento

sustentável. 2009. 256 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito.


Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 185. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2135/tde-03062011-110124/pt-br.php>.
Acesso em: 10 fev. 2017.
24 VERÍSSIMO, Cláudia Filipa de Sousa. Conflitos emergentes na gestão da água. 2010. 134 f.

Dissertação (Mestrado em Engenharia e Gestão da Água) – Faculdade de Ciências e


Tecnologia. Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010. p. 48. Disponível em:
<https://run.unl.pt/bitstream/10362/4898/1/Verissimo_2010.pdf>. Acesso em: 10 fev.
2017.
25 TATEMOTO, Leticia Caroline Barche. Poder e conflito em bacias hidrográficas

internacionais. 2011. 119 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Programa


de Pós-Graduação em Relações Internacionais. Pontifícia Universidade Católica de Minas

Ética, direitos humanos e meio ambiente 154


barragem gigante que o governo etíope está construindo no rio Nilo, sendo
que a Etiópia, em oposição, afirmou que independentemente da vontade e
disposição contrária do vizinho, iria defender-se e continuar com as obras.
Outrossim, os inúmeros reflexos desse empreendimento necessitam de
uma análise acurada, como forma de garantir o melhor deslinde da
problemática, de maneira que os diversos riscos e produtos oriundos da
instalação desse projeto demandam disposições diplomáticas efetivas, como
meio de solução e resolução dos problemas possíveis e previsíveis que
permeiam a questão em todos os seus desdobramentos ambientais, sociais e
econômicos. A referida situação demonstra quais os tipos e níveis de
problemas com os quais irá se deparar a modernidade: questões complexas
com um viés ambiental; o meio e ao humano se torna o cerne das grandes
questões.

Conclusões

Diante do exposto, pode-se averiguar o quão complexas são as questões


ambientais e os conflitos que permeiam a matéria, sendo imprescindível o
estudo da problemática referente à água, como um direito fundamental,
principalmente na esfera internacional.
Definitivamente, a situação necessita da adoção de instrumentos
diplomáticos efetivos para a solução da questão; outrossim, é mister realizar-
se planos e grupos de trabalho que envolvam os três países – Egito, Etiópia e
Sudão – incluídos na questão, de modo a viabilizar-se a discussão entre os
envolvidos como meio de solução pacífica do conflito.
De modo que o aparecimento de conflitos violentos é previsível diante
de questões tão complexas que envolvam temas como: território, economia e
desenvolvimento interno prejudicado, demandando, indiscutivelmente, a
adoção de medidas específicas de resolução da problemática.
Assim, conclui-se que, em face da complexidade da questão, induz-se a
sociedade a refletir cada vez mais acerca da problemática e dos conflitos

Gerais, Belo Horizonte, 2011. p. 67. Disponível em:


<http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/RelInternac_TatemotoLC_1.pdf>. Acesso em: 10
fev. 2017.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 155


ambientais existentes no planeta, de modo a adotarem-se instrumentos
plenos para o benefício da coletividade e preservação do meio ambiente.
Portanto, é preciso a adoção de alguns pontos que podem ser
fundamentais, para que haja a minimização dos reflexos socioambientais, tais
como: uma democracia participativa, em que as pessoas se sintam
pertencentes ao local em que estão inseridas e possam participar das
tomadas de decisão. Outro fator importante é a cooperação social entre os
países envolvidos na questão, visto que todos terão benesses e prejuízos que
precisam ser equacionados, pois, como dito acima, a água não pode ser
tratada como mercadoria, com valor econômico, sob pena da excluir parcela
da população, que não possui o poder aquisitivo de compra. A solidariedade
para a preservação do meio ambiente e das populações também é crucial,
visto que não se pode cair no paradoxo de crescimento, sob um planeta que
possui recursos finitos como a água potável, por exemplo.
Portanto, repete-se que a água não deve ter valor econômico nem se
permitir que a gestão da mesma seja privada, sob pena de transformá-la em
mercadoria e, com isso, a mesma deixe de ser um direito fundamental –
inalienável e irrenunciável – de toda a humanidade. Por isso, ao se
reconhecer a água como um direito fundamental, permite-se que o Estado e a
sociedade possam atuar de forma conjunta e tutelar sua proteção,
possibilitando que todos tenham acesso e não sejam excluídos de algo
essencial à vida. Pois, quando todos deterem acesso à água e a mesma é
tutelada pelo Estado, há de se garantir diversos preceitos constitucionais
como: dignidade humana, direito à vida e mínimo existencial são efetivados
às pessoas, garantindo de forma plena a democracia e a solidariedade social.
Também ao se inserir a água como um direito fundamental e catalogá-
la, nas Constituições dos países, permitir-se-á que as pessoas possam buscar
judicialmente a tutela efetiva desse direito.
É importante salientar que a água é um bem finito e precisa ser
preservado. Não pode ser comercializada nem virar mercadoria de troca
econômica, internacional e social. A água é um direito de toda a humanidade.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 156


Referências

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 158


9
Políticas públicas e gestão ambiental integrada: o papel do
Poder Público e do sistema político na preservação ambiental

Jamile Brunie Biehl*


Luciana Scur**

Introdução

O Poder Público dispõe, em nosso ordenamento jurídico vigente, de


diversos instrumentos que visam à tutela e preservação do meio ambiente,
tanto para as presentes quanto às futuras gerações. Neste contexto, as
diretrizes devem ser aplicadas com vistas a observar as reais tensões
ambientais de cada município, evitando que normas sejam ineficazes,
exigindo-se, para tanto, uma gestão integrada pelos Órgãos Públicos –
Legislativo, Executivo e Judiciário – e, notadamente, da competência
municipal, para garantir a efetividade da sustentabilidade urbana, aliada ao
crescimento econômico, objetivando solucionar problemas decorrentes do
intenso processo de urbanização, que associam desordem social à
degradação ambiental.
As transformações promovidas pelas atividades humanas em ambientes
naturais trazem problemas ambientais em vários compartimentos e escalas.
A supressão de cobertura vegetal, as alterações de corpos hídricos e
entornos, o aumento da impermeabilização do solo e a ocupação de áreas de
maior declividade são práticas comuns ao processo de urbanização e que
interferem, significativamente, nos processos naturais, desencadeando
impactos e riscos emergentes. Essa situação se agrava, quando aliada à baixa
capacidade de resposta do Poder Público em efetivamente resguardar essas
áreas, geralmente, constituídas por ambientes legalmente protegidos e
dotados de elevada fragilidade ambiental.

* Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Pós-Graduada


em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera LFG. Pós-Graduanda pelo Grupo
Educacional Verbo Jurídico. Juíza Leiga e Advogada. E-mail: jamilebiehl@gmail.com.
** Doutora em Biologia Ambiental pela Universidad de Leon, Espanha. Professora e

pesquisadora, na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: lscur@ucs.br.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 159


O Sistema Jurídico vigente, em seus mais diversos níveis de atuação,
dispõe de vários instrumentos que impõem ao Poder Público medidas que
visam à gestão ambiental integrada com o escopo de tutelar as Áreas de
Preservação Permanente. No entanto, devido à inflação legislativa, que
ocorre a cada novo ano, muitas medidas previstas tornam-se ineficazes e não
garantem a efetiva tutela das áreas que necessitam desta proteção, dentro
dos municípios, estados e até mesmo em nível nacional.
Diversas são as causas que culminam nesta ineficácia e, notadamente,
no descompasso entre a realidade e possibilidade de concretização das
medidas de proteção. Apesar das normas serem tecnicamente corretas,
elaboradas em conformidade com todos os processos normativos previstos e
observados os preceitos mais básicos da nossa Constituição, em muitos casos,
determinados interesses escusos, de parte da sociedade que detém o poder,
se sobressaem perante a efetiva pretensão do Poder Público em proteger as
áreas de interesse comum da comunidade.
Os Códigos Municipais do Meio Ambiente definem áreas a serem
especialmente preservadas dentro dos municípios e medidas que visam
ordenar o pleno desenvolvimento das cidades e propriedades com a proteção
ambiental. O presente texto, dessa forma, traça algumas linhas sobre a
aplicação das regras gerais de proteção ao meio ambiente, aliadas a
democracia participativa e à participação popular, como instrumento de
construção de cidades sustentáveis, nas quais as necessidades básicas de
recursos de suas populações sejam atendidas, sem degradar ou exaurir o
capital natural que fornece estes recursos.

A gestão ambiental como instrumento do Poder Público, com


vistas a efetivar um Estado de Direito Ambiental: a aplicação de
Políticas Públicas nos municípios, como meio de efetivação da
sustentabilidade nos municípios

Conforme dispõe o Conama, por meio da Resolução 306/2002,1 de 5 de


julho de 2002, a gestão ambiental é definida como a “condução, direção e

3Resolução Conama 306/2002: “Estabelece os requisitos mínimos e o termo de referência


para realização de auditorias ambientais”. Data da legislação: 5/7/2002 – Publicação DOU
138, de 19/07/2002, p. 75-76 . Correlações: · Art. 4° e Anexo II alterados pela Resolução

Ética, direitos humanos e meio ambiente 160


controle do uso dos recursos naturais, dos riscos ambientais e das emissões
para o meio ambiente, por intermédio da implementação do sistema de
gestão ambiental”. Neste sentido, a correta gestão dos instrumentos vigentes
e positivados, aliada à adequação com a realidade de cada local é medida que
se impõe, devendo diversos agentes multidisciplinares estar envolvidos, com
vistas a garantir a não exaustão dos recursos naturais, mas, sim, efetivar a
qualidade de vida à população, visando o desenvolvimento sustentável do
planeta, acompanhando sempre as características locais de cada território,
com flexibilidade e coerência, adaptando-se ao já existente e às diferentes
realidades ali dispostas.2
Essa gestão é necessária, pois o território não é apenas o resultado de
uma superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de
sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a
população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo
que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas
materiais e espirituais e da vida sobre os quais ele influi. Quando se fala em
território, deve-se entender que se está falando em território usado, utilizado
por uma dada população.3
Com isso, o Poder Público possui, em verdade, um dever-poder no que
diz respeito à preservação ambiental de todo território nacional e até mesmo
estrangeiro, quando as consequências decorrem de atividades de sua
jurisdição, o que vem positivado nos mais diversos níveis do ordenamento
jurídico brasileiro, perante o qual vincula-se a garantir um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, conforme preconiza a Constituição Federal de
1988. Este dever-poder estatal diz respeito a uma atuação administrativa em
cumprir suas atividades, observar os princípios constitucionais de proteção
ambiental, fiscalização e intersecção em casos de irregulares e em defesa as
áreas de proteção ao meio ambiente.

Conama 381/06. Disponível em:


<http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=306>. Acesso em: 28 jun.
2016.
2 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Cidades sustentáveis, subsídios à elaboração da Agenda

21 brasileira. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, 2000. p. 68.


3 SANTOS, Milton. Por uma nova globalização: do pensamento único à consciência universal.

22. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 96-97.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 161


Sobre o dever-poder de preservação ambiental, por parte do Estado,
Marin e Lunelli entendem que, em decorrência do princípio
da indisponibilidade do bem ambiental, ficou estabelecido o princípio da
intervenção estatal obrigatória da defesa do meio ambiente, conforme
preconizado no art. 225 da Constituição Federal, o qual determina que o meio
ambiente deve ser protegido pelo Estado, com atuação conjunta dos entes
federados.4
Tendo em vista que o meio ambiente é visto sob uma ótima de
comunidade mundial, é imprescindível que a tutela seja alargada para uma
dimensão planetária. As medidas locais devem coadunar-se e harmonizar-se
sempre para os reflexos e as consequência de todo o ecossistema mundial,
percebendo-se a existência de uma nova concepção de cidadania em uma
dimensão planetária, reconhecendo a importância da educação ambiental nos
mais diversos níveis do conhecimento, e do papel do cidadão ativo e
consciente na repercussão da proteção ambiental.

Hoje, a cidadania apresenta outra dimensão. A questão de seu exercício


transcende a internacionalização e invade a planetarização. Isso se dá
pelo fato de a produção apresentar efeitos destrutivos em todo o planeta,
não mais se circunscrevendo aos parâmetros geopolíticos do
internacionalismo, mas avançando para a questão da própria
sobrevivência do planeta e da espécie humana. O que leva à necessidade
do ser humano conceituar-se de modo diferente. Não mais um cidadão
que domina a natureza para criar seu mundo, mas um ser da natureza
que cria seu mundo convivendo com ela. Esse cidadão planetário tem na
questão ambiental um dos problemas políticos e humanos mais sérios da
contemporaneidade. O ser humano chegou ao ponto de poder se destruir
enquanto espécie.5

A qualificação e consciência do cidadão de que está dentro de um meio


no qual interage com os ecossistemas, compondo-o e respeitando-o, nos
remete a um Estado de Direito Ambiental, perante o qual todas as ações,
medidas, tutelas, gestões públicas são orientadas e baseadas em um

4 MARIN, Jeferson Dytz; LUNELLI, Carlos Alberto. Processo ambiental, efetividade e as tutelas
de urgência. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, [S.l.], v. 7, n.
13/14, ago. 2011. ISSN 21798699. Disponível em:
<http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/17>. Acesso em: 4
jul. 2016.
5 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do meio ambiente e participação popular.

Brasília: Ibama, 1998. p. 46.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 162


reconhecimento e respeito à natureza e aos ecossistemas presentes,
orientadas por valores e princípios éticos de proteção as variadas formas de
vida humanas e não humanas. Para tanto, é imprescindível que, no cenário
político dos municípios, do estado e da Nação, sejam incorporadas as tensões
ambientais, os riscos sociais e latentes da sociedade contemporânea.

A qualificação de um Estado como Estado Ambiental aponta para duas


dimensões jurídicas-políticas particularmente relevantes. A primeira é a
obrigação de o Estado em cooperação com outros Estados e cidadãos ou
grupos da sociedade civil, promover políticas públicas (econômicas,
educativas, de ordenamento) pautadas pelas exigências da
sustentabilidade ecológica. A segunda relaciona-se com o dever de
adoção de comportamentos públicos e provados amigos do ambiente de
forma a dar expressão concreta à Assumpção da responsabilidade dos
poderes públicos perante as gerações futuras.6

A concepção e adoção do Estado de Direito Ambiental e por sua vez da


cidadania ambiental acaba por tutelar de forma primordial o direito à vida,
correspondente ao valor humano máximo dentro do nosso ordenamento
jurídico, o que desencadeia novos valores de proteção nacional e
internacional. Tanto é a importância desta consciência que a Constituição
Federal, em seu art. 1°, inciso III, dispõe expressamente que a dignidade da
pessoa humana7 é princípio fundamental superior, perante o qual todos os
fins devem ser primordialmente buscados, com vistas a tutelar este princípio,

6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos, Fundação


Mário Soares, Lisboa: Gradiva, n. 7, p. 44, 1998.
7 Barroso estabelece o conceito de dignidade da pessoa humana, considerando o mínimo

existencial e os elementos que o constituem como padrão mínimo para uma existência digna.
“Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados
ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos
fundamentais, envolvendo aspectos de direitos individuas, políticos e sociais. Seu núcleo
material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de
bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria
liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O
elenco de prestações que compõe o mínimo existencial comporta variação conforme a visão
subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda
mínima, saúde básica e educação fundamental. Há ainda, um elemento instrumental, que é o
acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos”. BARROSO, Luís
Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: Pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista do Ministério Público do Estado do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre: Metrópole, n. 46, p. 59, 2002.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 163


devendo ser este o ponto de partida e chegada em todas as ações estatais, do
Poder Público, em todas as esferas do poder.
Para garantir a efetividade da força normativa da Constituição, esta, em
sua concepção material, deve coadunar-se à realidade fática e social, que dá
origem a sua ordem jurídica, tanto pela adequação ao contexto histórico
vivenciado, quando da sua constituição, perante a qual legitimam-se a
incidência em sua ordem jurídica.

A constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela


não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo. Ela não pode
ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia
da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa
realidade. A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de
uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e
conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os
limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre
ser (Sein) e dever ser (Sollen).8

É imprescindível, pois, a interpretação sistemática do direito, com


vistas a observar os valores mais básicos de uma sociedade, adequando-se às
realidades fáticas e históricas de cada geração, ponderando e harmonizando
os anseios e as necessidades dos cidadãos, sem descuidar-se da proteção ao
meio ambiente, com vistas a garantir um mínimo ético.
Neste contexto, Canotilho leciona que a Constituição Federal apresenta
um complexo sistema de repartição de competências, no que diz respeito à
preservação e tutela ambiental.9 Perante a qual cabe ao Estado assumir tanto
direitos e deveres fundamentais ambientais, bem como ocorre com o
indivíduo e a coletividade. Ou seja, não basta apenas a interpretação dos
princípios do direito urbanístico, direito ambiental e preceitos normativos. É
imprescindível observar os instrumentos que o Poder Público municipal e
estadual (competente para a execução da política urbana conforme art. 182,
caput, CF) deverão utilizar para enfrentar os problemas de desigualdade
social e territorial das cidades, causado pelo crescimento econômico, social e

8 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: S. Antônio Fabris, 1991. p. 24.
9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional

ambiental brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 396.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 164


urbanístico acelerado.10 Vem cumprir sua função social, quando atende as
exigências fundamentais de ordenação dos municípios, expressas em leis.
Atendendo às necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, justiça
social e desenvolvimento das atividades econômicas, com base nas diretrizes
urbanísticas.11 Garante acima de tudo a tutela das áreas verdes nos
municípios, já que a desordem social e degradação ambiental estão
intimamente ligadas.
Para construir um meio ambiente sustentável, aliadas, a tutela do meio
ambiente, a gestão ambiental e a utilização de políticas públicas apresentam-
se como ferramentas de planejamento dos municípios, bem como
instrumento planejador do próprio desenvolvimento socioeconômico de
determinado espaço artificial / natural, o qual não pode ser desvinculado do
desenvolvimento sustentável das cidades. A cidade depende do uso dos bens
ambientais para sua sustentabilidade, e o meio ambiente, da sustentabilidade
do seu uso pela cidade. A busca pelo progresso, hoje, traduz a ideia de
desenvolvimento econômico, proteção da natureza e justiça social nas
cidades, o qual é perfeitamente ajustável aos fins almejados pelo Plano
Diretor. Concludente é o entendimento de Leal sobre o tema:

O planejamento de um Município deve obedecer às metas e diretrizes


dos planos da região envolvente, do Estado ou da União, o que deve vir
esboçado em sua legislação particular, notadamente em sua Lei
Orgânica, principalmente pelo fato de que a Constituição Federal de
1988 não estabeleceu qualquer prazo para a elaboração do Plano Diretor
nos Municípios, restringindo-se a exigi-lo nas cidades com mais de
20.000 habitantes. Diante disto, tal tarefa deve ser suprida pela Lei
Orgânica, que deve dispor sobre ele no que diz respeito ao prazo para a
sua elaboração e aprovação, quorum e mecanismos de participação
popular.12

No que se refere à legislação, a gestão ambiental e as políticas públicas


possuem a função de buscar a internalização das externalidades, através de

10 SARAIVA, Hemily Samila da Silva. Direito urbanístico e desenvolvimento sustentável.


Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3926, 1º abr. 2014. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/27336>. Acesso em: 6 jul. 2016.
11 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2000, op. cit., p. 64.
12 LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do

espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 159-160.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 165


normas jurídicas. O Plano Diretor de uma cidade busca organizar as
atividades desenvolvidas na sociedade, maximizando-as ao máximo, evitando
que elas interfiram umas nas outras. O Código do Meio Ambiente ocupa-se de
tutelar com prioridade as áreas verdes / áreas de proteção permanente nos
municípios. Assim, selecionar certa região para ali se instalarem as indústrias
reduz os custos sociais, do mesmo modo que as exigências legais que as
empresas potencialmente poluidoras devem cumprir, para instalarem-se e
operarem,13 resguardando áreas de proteção permanente, áreas de interesse
local, etc., como meio de concretização da gestão ambiental e crescimento
ordenado dos municípios. Leal explica tal dispositivo:

O âmbito de sustentabilidade das cidades precisa ser medido em face dos


direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Constitucional
vigente e do espaço físico e social em que eles podem se dar, a saber,
notadamente, no âmbito das cidades (democráticas de direito). Isto
implica reconhecer que mesmo o Estatuto da Cidade, enquanto
diretriz/princípios gerais da ordenação deste espaço está totalmente
vinculado à força normativa da constituição.14

As políticas públicas neste processo são imprescindíveis e, conforme


conceito dado por Bucci, são “processo ou conjunto de processos que culmina
na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses
públicos reconhecidos pelo direito”.15 Dentro de um raciocínio, conforme o
Estado Ambiental de Direito, as políticas públicas seriam as ferramentas
aptas a garantir a efetivação da mudança de comportamento socioambiental
dentro das cidades. Neste sentido,

toda política ambiental deve procurar equilibrar e compatibilizar as


necessidades de industrialização e desenvolvimento, com as de proteção,
restauração e melhora do ambiente. Trata-se, na verdade, de optar por
um desenvolvimento econômico qualitativo, único, capaz de propiciar
uma real elevação da qualidade de vida e bem-estar social.16

13 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: RT,
2001. p. 158.
14 LEAL, op. cit., p. 94-95.
15 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva,

2002. p. 264.
16 PRADO, Luiz Regis. A tutela constitucional do ambiente no Brasil. Revista dos Tribunais,

São Paulo, v. 675, ano 81, p. 82, jan. 1992.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 166


Assim sendo, as políticas públicas constituem-se instrumentos da ação
governamental, ou seja, como destaca Bucci, “são programas de ação
governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as
atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e
politicamente determinados”,17 das quais buscam a concretização de
determinados objetivos e regras, possuindo em termos finalistas um
componente prático em seus ideias para efetivar as normas jurídicas.
As políticas publicas utilizadas, notadamente aquelas que dizem
respeito à tutela ambiental, devem coadunar as realidades locais, com
respeito ao bem-estar da comunidade, visando equilibrar a necessidade de
crescimento industrial e econômico da região, com a garantia da sadia
qualidade de vida e direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
tanto para as futuras como às presentes gerações.18 Este processo requer
ponderação e avaliação das necessidades locais, não permitindo que se opere
um simbolismo jurídico pela falta de eficácia legislativa, observando, para
tanto, os princípios administrativos inerentes às atividades do Poder Público,
qual seja, aqueles previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal, que
dispõe: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência.”19

A competência municipal na gestão municipal e sua eficácia: o


papel do município e da participação popular para a preservação
do meio ambiente

A Constituição Federal, em seu art. 225, dispõe que fica assegurada a


todo indivíduo a manutenção de um meio ambiente ecologicamente
17 BUCCI, 2002, op. cit., p. 241.
18 PRADO, Luiz Regis. A tutela constitucional do ambiente no Brasil. Revista dos Tribunais,
São Paulo, v. 675, ano 81, p. 82, jan. 1992.
19 BRASIL. Emenda Constitucional 19 de 4 de julho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre

princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de


despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras
providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm. Acesso em:
27 jun. 2016.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 167


equilibrado, conferindo para tanto ao Poder Publico e à coletividade o dever
de sua defesa e preservação, a fim de garantir estas condições à presente e às
futuras gerações. Deste modo, compete exclusivamente ao município, nos
termos do art. 30 da Constituição Federal, promover o planejamento e a
gestão adequada do meio ambiente urbano, orientado pelos arts. 225 e 182.20
Assim posto, a norma constitucional sabidamente dotou o município de
autonomia como ente federativo para o qual ficou assegurado
constitucionalmente suas fontes de receitas e competências tributárias,
jurídicas e políticas.21
Restou, neste contexto a competência do município para legislar sobre
assuntos de interesse local, bem como a competência comum e suplementar
deste ente federado para, juntamente com a União, o estado e o Distrito
Federal, promover políticas e planos urbanísticos, programas de construções
de moradias, melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico,
bem como ficou fixado o Plano Diretor como instrumento básico da política
de desenvolvimento e expansão urbana.22 Esta autonomia é dotada de
inteligência e eficácia, já que é justamente no plano municipal que se tem
maior contato com as deficiências e necessidades de cada território.
O Estatuto da Cidade regulamentou os arts. 182 e 193 e estabeleceu as
diretrizes gerais da política urbana, que visa ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, mediante a
“garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
às futuras gerações”.23 Aliados a competência do Município para assuntos
locais, representam um importante instrumento para a sustentabilidade.
Portanto, as disposições jurídicas pertinentes ao ordenamento das
cidades privilegiam o pacto federativo ao definir as competências da União,

20 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.
58.
21 JARDIM, Zélia Leocádia da Trindade. Regulamentação da política urbana e garantia do

direito à cidade. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (Coord.). Direito da cidade:
novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007. p. 99.
22 BRASIL. Constituição de 1988. Arts. 23, 29, 30 e 182.
23 BRASIL. Lei 10.257 do ano de 2001, art. 2º.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 168


dos estados e dos municípios no campo normativo e executivo das políticas
públicas urbanísticas, assim como os princípios fundamentais que
consolidam a política urbana, com a finalidade de assegurar o direito à
cidade.24
Com isso, a efetivação da gestão ambiental municipal ainda
regulamenta atividades industriais e organiza as cidades em setores, com o
escopo de assegurar a qualidade de vida saudável a seus habitantes e
notadamente a tutela das Áreas de Preservação Permanente, bem como ainda
dispõe de um rol de instrumentos urbanísticos que o município irá dispor
para ordenar o desenvolvimento das políticas urbanas. Para tanto busca
concretizar o desenvolvimento sustentável, que traz embutida a ideia de
eficácia econômica, eficácia social e ambiental. Isso “significa melhoria da
qualidade de vida das populações atuais sem comprometer as possibilidades
das próximas gerações [...]”.25
A real efetivação de uma política de desenvolvimento sustentável, sem
dúvida, se dá no âmbito municipal inicialmente, visto que ali se tem uma
melhor visualização e o controle das dificuldades e potencialidades de cada
local. O planejamento do desenvolvimento dos municípios é imprescindível,
para corrigir as distorções de crescimento, desigualdades e possíveis efeitos
negativos sobre o meio ambiente. Medidas como oferta de equipamentos
urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos
interesses e às necessidades da população local, assim como a ordenação e o
controle do uso do solo, são algumas das diretrizes que instrumentam e
permitem a operacionalização do Estado Ambiental de Direito.26 Conforme
dispõem com maestria Rigo e Quinto apud Fernandes,
a Constituição Federal garantiu competência ao Município para agir no
controle da urbanização, e o Estatuto das Cidades regulamentou os
instrumentos constitucionais previstos para essa intervenção, como
também criou um rol mais amplo de instrumentos. Tais instrumentos
podem e devem ser usados pelos Municípios a fim de que os processos
de uso, desenvolvimento e ocupação do solo urbano, sejam satisfatórios

24 JARDIM, op. cit., p. 98.


25 MONTIBELLER FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável: meio ambiente e
custos sociais no moderno sistema produtor de mercadorias. 2. ed. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2004. p. 19.
26 SILVA, 1997, op. cit., p. 58.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 169


e para que as cidades brasileiras possam oferecer melhores condições de
vida para a população, oferecendo condições de regularização fundiária
às cidades ilegais e inibindo o uso da propriedade para fins
especulativos, o que causa exclusão social e mau ordenamento espacial.27

A democracia participativa, que é complementar à democracia


representativa, requer esforço social, mas representa uma ferramenta a mais
de atuação social da população, nos instrumentos decisórios locais. Mesmo
que seja ainda pouco utilizada, a plena participação da comunidade nas
decisões políticas e, da gestão democrática da cidade, coloca à disposição da
população e das associações representativas dos vários segmentos
comunitários os meios necessários para uma efetiva participação, de modo a
garantir-se o pleno exercício da cidadania e proteção das áreas verdes e de
interesse local.
Por meio da audiência do Poder Público Municipal e da população
interessada, torna-se possível a participação popular nos processos de
implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente
negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a
segurança da população, sendo com isso reconhecida a importância
fundamental do exercício da cidadania, na consecução de políticas públicas
socioambientais desenvolvimentistas.28 Finalizando tal entendimento,
Miranda e Miranda asseveram:
O orçamento participativo, ao abrir a gestão dos recursos públicos para a
população, e tornar possível a transferência dos investimentos
administrativos para locais de maior carência, também é um
instrumento fundamental para o desenvolvimento de uma cidade
sustentável, promovendo uma verdadeira desconcentração dos recursos
públicos.29

Com isso, é notório que para uma eficaz gestão ambiental pelo Poder
Público, é indispensável a participação de toda a população em seu processo,
medida que possibilita ainda que planos e projetos urbanísticos sejam

27 SANTIN, Janaína Rigo; MATTIA, Ricardo Quinto. Direito urbanístico e Estatutos das

Cidades. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo: RT, ano 30, n. 63, p. 49, 2007.
28 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2000, op. cit., p. 79.
29 MIRANDA, Sandro Ari Andrade de; MIRANDA, Luciana Leal de Matos de. Democracia e

desenvolvimento sustentável nas cidades brasileiras. Debatendo a Agenda 21, o Orçamento


Participativo e os Planos Diretores. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2920, s/p., 30 jun.
2011.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 170


elaborados por especialistas de diversas matérias, não podendo unicamente
ser discutido pela sociedade, ou por profissionais de um único e determinado
ramo especificamente.
Conforme o Princípio da Informação dispõe, a ausência de informações
acerca de questões ambientais, que afetam ou dizem respeito à determinada
comunidade, são fatores determinantes para a degradação, eis que é
imprescindível que haja à disposição da população instrumentos condizentes
com a realidade de cada local, a fim de garantir a tutela específica da região.
Os instrumentos infraconstitucionais de tutela ao meio ambiente são de
singular importância, eis que valorizam as realidades locais onde estão
previstos.
Em que pese diversos instrumentos existirem em nível nacional e
internacional, a inserção de Código de Meio Ambiente, dentro de um referido
município, é meio de valorizar o estudo das realidades locais, para a ação
integral de mudanças significativas de posturas e atitudes na prática
cotidiana. Portanto, esta participação da população não deve ficar restrita ao
processo de elaboração da Lei do Plano Diretor, mas, sim, abranger todo o
seu processo de implementação, como, por exemplo, vários instrumentos de
política urbana: estudo de impacto de vizinhança, estudo de impacto
ambiental, planejamento orçamentário, entre outros.30
A política de desenvolvimento socioambiental que se busca com a
gestão ambiental adequada deve possuir como prioridade as necessidades
mais essenciais das populações pobres das cidades, com vistas a não gerar
conflitos de normas com a Constituição Federal e, assim, gerar uma
harmonização quanto à busca e ao sistema de proteção dos direitos humanos
e à tutela do meio ambiente, com vistas à efetivação do desenvolvimento
sustentável.31 Neste contexto, afirma Leal:

O desenvolvimento na cidade somente poderá ser considerado


sustentável se estiver voltado para a eliminação da pobreza e redução
das desigualdades sociais, devendo, para tanto, adotarem-se políticas
que priorizem os segmentos pobres da população. Do contrário, estará

30 SARAIVA, Hemily Samila da Silva. Direito urbanístico e desenvolvimento sustentável. Jus

Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3926, 1º abr. 2014. Disponível em:


<http://jus.com.br/artigos/27336>. Acesso em: 6 jul. 2016.
31 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2000, op. cit., p. 45.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 171


ela em pleno conflito com as normas constitucionais, com o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos (aqui compreendidos
como direitos fundamentais) e com principio internacional do
desenvolvimento sustentável.32

Deste modo, neste processo de desenvolvimento sustentável, com vistas


à minimização dos impactos socioeconômicos de diferentes regiões, o
planejamento é imprescindível. As consequências de uma urbanização sem
planejamento são inúmeras e conhecidas. Se ausentes surgem os mais
diversos problemas de ocupação urbana e rural, levando ao caos cidades,
decorrente da ocupação desordenada.33
A inexistência de planejamento para a implementação de políticas
públicas ocasiona a falta de efetividade na proteção ambiental, e de todos os
instrumentos infralegais previstos. Na realidade, historicamente planejou-se
sempre apenas os grandes empreendimentos e os grandes centros, ocupados
pelos habitantes mais elitizados de determinada cidade, ignorando os
aspectos sociais e ambientais, que são alicerces do direito urbanístico
sustentável. A consequência é produção de miséria, degradação do meio
ambiente, e criação de grandes periferias sem saneamento básico e
infraestrutura. Nesse pensamento, reforça Dias:

As políticas públicas são realizadas aleatoriamente e o plano diretor,


instituído primordial para se traçar as diretrizes e regras para a
implementação de políticas de desenvolvimento e expansão urbana,
ainda não ganhou a relevância necessária nos Municípios brasileiros. [...]
os administradores municipais ainda não tomaram consciência sobre a
importância da existência e da efetividade do plano diretor para o
cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade.34

Todas as técnicas destinadas a fazerem o diagnóstico da realidade, o


prognóstico, definir princípios e diretrizes devem ser traduzidas em normas
de direito, no Plano Diretor, visto que nada acontece na administração
pública que não esteja previsto em lei. Deste modo, a lei é o principal

32 LEAL, op. cit., p. 164.


33 RECH, Adir U.; RECH, Adivandro. Direito urbanístico. Caxias do Sul: Educs, 2015. p. 81.
34 DIAS, Daniella S. A efetividade do direito urbanístico após vinte anos da promulgação da

Constituição brasileira. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 47, n. 186, p. 83-84,
abr./jun. 2010.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 172


instrumento de planejamento da gestão pública utilizando-se do Código de
Meio Ambiente para a tutela ambiental.35
Habermas, em discurso dispõe que ocorre a divisão de poderes no
Estado, decorrentes da diferenciação de funções, restando ao Legislativo as
fundamentações e os votos de programas gerais necessários ao
desenvolvimento da sadia qualidade de vida do cidadão; o Judiciário, com
base em todo ordenamento jurídico, fica incumbido de resolver os problemas
de ação, e à administração pública, deve formular leis que necessitem de
efetivação no ordenamento jurídico.36 Ao Estado compete ser responsável
pelo bem comum da sociedade, pela justiça e pela ordem, pela administração
dos interesses e, acima de tudo, pela priorização da proteção a vida em suas
mais diversas formas. O Estado vem a ser o responsável pela execução das
leis e políticas públicas criadas.37
A harmonização, a hierarquização, o respeito e a eficácia, no
cumprimento das competências, aliados a uma educação ambiental
consistente têm suma importância em todos os níveis de aprendizado, para
que toda a população tenha consciência de que os recursos naturais são
esgotáveis e a falta de planejamento urbano e socioambiental acarreta
escassez e impossibilita a qualidade de vida dos moradores. Neste processo,
há um reconhecimento de valores e clarificações de conceitos, objetivando o
desenvolvimento das habilidades e modificando as atitudes em relação ao
meio, para entender e apreciar as inter-relações entre os seres humanos, suas
culturas, seus meios biofísicos e as cidades construídas. Deve este processo
educacional, portanto, estar direcionado para a cidadania ativa, considerando
seu sentido de pertencimento e corresponsabilidade que, por meio da ação
coletiva e organizada, busca a compreensão e a superação das causas
estruturais e conjunturais dos problemas ambientais, dentro dos espaços
urbanos.38 Esta, notadamente representa uma tarefa política, pois “envolve

35 RECH & RECH, 2015, op. cit., p. 82.


36 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. de Fábio
Bueno Seibenechler, 1997, p. 232. v. I.
37 DIAS, Reinaldo; MATOS, Fernanda. Políticas públicas: princípios, propósitos e processos.

São Paulo: Atlas, 2012. p. 4-5.


38 SORRENTINO, Marcos et al. Educação ambiental como política pública. Educação e

Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 285-299, 2005.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 173


uma capacidade renovada do exercício do poder, no intuito de formular e
cumprir uma agenda ambiental integrada, segura e intertemporalmente
confiável”.
Salienta-se ainda a importância da participação do Ministério Público
nas políticas de desenvolvimento socioambiental. Conforme dispõe Miner,
em seus ensinamentos,

o Estatuto da Cidade, em seu corpo, menciona o Ministério Público uma


única vez, ao fazer referência às ações de usucapião, o que não significa
que seja esse o único papel da Instituição frente às inovações trazidas
pela Lei. Ao contrário, a concepção que permeia o Estatuto da Cidade
reclama a intervenção do Ministério Público em absolutamente todo o
processo de implementação das políticas de desenvolvimento urbano.39

Corroborando o entendimento, Dias diz que o “Estatuto da Cidade


apresenta o Ministério Público como ator indispensável no processo de
planejamento e crescimento dos espaços urbanos”.40 Ou seja, o Promotor de
Justiça será agente determinante para a consecução de uma nova gestão
socioambiental e urbanística. Conforme afirma Miner (apud MELLO):

De forma sintética, podemos afirmar que a obrigatoriedade da


participação do Ministério Público nos instrumentos de política urbana
decorre de quatro fatores principais, previstos na própria Lei 10.257/01:
A) as normas urbanísticas ali tratadas são de ordem pública;
B) tais comandos normativos versam sobre interesse social indisponível;
C) regem-se pelo princípio da participação democrática;
D) a ordem urbanística, direito difuso, passa a integrar expressamente o
rol da ação civil pública.41

Neste contexto, as diversas possibilidades de atuação do Ministério


Público, nas políticas urbanas, torna imprescindível a criação de Promotorias
de Justiça de Habitação e Urbanismo, que possibilitem a fiscalização
constante e necessária do Estatuto das Cidades, dos Planos Diretores e do

39 MINER, Cynthia Regina de Lima Passos. O papel do Ministério Público na implementação

do Estatuto da Cidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 64, 1º abr. 2003. Disponível
em: <http://jus.com.br/artigos/3966>. Acesso em: 27 jul. 2016.
40 DIAS, op. cit., 2010, p. 85.
41 MINER, op. cit., 2003, s/p.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 174


Código do Meio Ambiente, havendo, assim, um redimensionamento de suas
atividades, e efetiva atuação em cada município.42
Desse modo, as diretrizes gerais da política urbana, estabelecidas no
Estatuto da Cidade como normas gerais de direito urbanístico, são, em
especial para os municípios, as normas balizadoras e indutoras da aplicação
dos instrumentos de política urbana regulamentados na lei, observados os
princípios constitucionais ambientais, com o disposto no Código de Meio
Ambiente. A prática do planejamento sustentável nos municípios, mais do
que estabelecer modelos ideais de funcionamento das atividades, possui uma
função de correção dos desequilíbrios das ordens causadas pela urbanização,
sendo um importante instrumento de transformação social.
A população, que já se encontra majoritariamente instalada nos
municípios, deve cada vez mais ter acesso a uma vida digna, através da
concretização de políticas publicas, em um meio ambiente equilibrado. Trata-
se com isso de assegurar condições dignas de vida a todos os cidadãos,
buscando um desenvolvimento sustentável, a partir destes espaços
geológicos. Com isso, deve haver uma democratização nas escolhas
prioritárias de cada sociedade, bem como a participação democrática de toda
a população, no processo de gestão sustentável, dentro do meio ambiente
urbano.
Ao município, possuidor de autonomia e responsabilidade para a gestão
dos assuntos locais, compete, juntamente com os gestores locais, executar a
política de desenvolvimento socioambiental, fazendo cumprir a legislação e
as diretrizes que ordenam o pleno desenvolvimento das funções sociais do
município, garantindo o bem-estar de seus moradores, tendo como norte o
desenvolvimento sustentável.
É perceptível ainda que, como modelo de ação governamental, as
políticas públicas se mostram cada vez mais integralizadoras da vontade
popular, na medida em que permitem rediscutir padrões a serem fixados e
metas a serem seguidas, num ambiente verdadeiramente democrático,
garantidor de procedimentos representativos da sociedade civil e de sua
vontade.

42 DIAS, op. cit., 2010, p. 86.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 175


Considerações finais

Na busca da construção de cidades sustentáveis, é necessária a revisão,


a reformulação e a reestruturação dos instrumentos de planejamento urbano,
os quais, por sua vez, para atenderem a esse novo paradigma, devem ser
transversais, dinâmicos e inter-relacionados com os vários fenômenos que
compõem a realidade urbana: o social, o ambiental, o econômico, o cultural e
o político. O município, pronto a enfrentar seu tempo, a partir do seu espaço,
cria e recria uma cultura com a cara do seu tempo e do seu espaço e de
acordo ou em oposição aos “donos do tempo”, que são também os donos do
espaço.43 Nesse sentido, sendo o Plano Diretor observado com o Código de
Meio Ambiente, concebido como a base legal do ordenamento urbano /
ambiental, é um instrumento potencialmente capaz de integrar a dimensão
ambiental, no âmbito da gestão socioambiental, em virtude de seu caráter
estratégico, participativo e indutor/diretivo do próprio princípio da função
social da propriedade.
Para que isso efetivamente ocorra na prática, deve haver um
comprometimento constante e efetivo, tanto no âmbito político quanto no
jurídico e executivo. O Estado deve utilizar-se de sua força normativa para
garantir a defesa ambiental e efetivação dos princípios constitucionais
ambientais, fiscalizando, acima de tudo, as atividades potencialmente
causadoras de danos ao meio ambiente, de modo a protegê-lo de forma
intergeracional e duradoura. É garantir às futuras gerações as mesmas
condições de qualidade de vida às quais tivemos acesso, com vistas à
observância do principio da justiça transgeracional.
As políticas ambientais, voltadas à gestão ambiental dos instrumentos
de proteção ao meio ambiente vigentes, são primordiais à proteção da sadia
qualidade de vida da população, devendo haver sempre, e cada vez mais, um
efetivo comprometimento da administração pública e até mesmo dos
cidadãos, por todos os instrumentos acima dispostos, principalmente no
âmbito municipal. Aí é possível, com maior precisão e sensibilidade, detectar
e combater as deficiências de cada espaço com eficácia.

43 SANTOS, op. cit., 2012, p. 132.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 176


A manutenção adequada de todos os instrumentos já existentes são
meios efetivos de garantir que se corrijam as distorções de crescimento e
suas consequências nos diferentes compartimentos ambientais.
Segundo Marin e Lunelli, o desafio da proteção ambiental, do cuidado
com o ambiente, que constitui pressuposto de existência digna da condição
humana, motiva a adoção de medidas de efetiva proteção em todo o mundo.44
A participação popular em audiências públicas, a utilização do Código
de Meio Ambiente, o Estatuto das Cidades, os Planos Direitos, a fiscalização
estatal, os serviços públicos adequados às necessidades locais, o controle de
uso do solo, a estipulação das áreas de preservação permanente, a educação
ambiental, entre outros, certamente são meios que permitem a
sustentabilidade dos municípios, e o consequente desenvolvimento
sustentável do planeta,45 em contrapartida aos demais fatores reais de poder
existentes.

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44 MARIN, Jeferson Dytz; LUNELLI, Carlos Alberto. Processo ambiental, efetividade e as


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jul. 2016.
45 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 179


10
Quem precisa de paz? Um debate sobre ética, moral e direitos
humanos

Eduardo de Quadros Bueno*


Julice Salvagni**

Introdução

Quem é que não quer a paz mundial? A maioria dos discursos


proferidos no senso comum, sejam eles individuais, sejam coletivos,
defendem e vislumbram uma sociedade harmoniosa e serena. É difícil
encontrar alguém que, em sã consciência, defenda publicamente a
propagação explícita da violência, da guerra e do conflito, como sua narrativa
fundante. Contudo, especialmente em tempos em que a comunicação tem se
intensificado nas redes sociais, estes discursos de ódio tem tido espaço e
ganhando coletivos, muitas vezes envoltos pela máscara do anonimato. O que
chama a atenção é que estas narrativas continuam sendo, na opinião de
muitos que as proferem, como eram antes de haver redes sociais, pelo
argumento de certa justiça que as justifique. Ora, será possível justificar a
violência para combater esta mesma violência?
A ética enquanto princípio ajuda a elucidar a difusão de certas lacunas
acerca da própria concepção da cultura da paz, especialmente quando esta é
permeada erroneamente pelo uso da violência ou da segregação, para
constituir-se enquanto tal. Ou seja, há quem defenda a cultura da paz por
meio de determinados eixos teóricos, que buscam “os direitos humanos para
humanos direitos” distanciando-se, assim, de uma concepção social e
democrática do bem-estar humano, podendo facilmente transformar esta
mesma bandeira que nasce para ser unificadora em um estandarte da
exclusão e estatização de certos grupos. Ainda, neste mesmo sentido, a
proliferação de soluções ‘mágicas’ e altamente violentas, que sugerem

* Especialista em Gestão Empresarial, Direito e Processo do Trabalho. Bacharel em Ciências


Jurídicas e Sociais. Bacharelando em Letras. Advogado. E-mail: ebueno@senalba-rs.com.br.
** Doutora em Sociologia. Mestra em Ciências Sociais. Especialista em Gestão Empreendedora

e Psicóloga. E-mail: julicesalvagni@gmail.com.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 180


inclusive o extermínio dos que são apontados como únicos responsáveis pela
insegurança mundial, tampouco vem a ser indicativo de um caminho efetivo
em direção à educação para a paz. Ao contrário, desvelar as propriedades
circunstanciais, em um debate sobre os direitos humanos, cuja margem de
compressão passa a ser colocada de modo dúbio ou até mesmo a ponto de
ignorar as próprias esferas jurídico-legais, torna-se central para a
possibilidade de fortalecer futuras ações efetivas cunhadas na educação para
a paz.
A cultura da paz “comporta não apenas uma mudança no modo como a
chamada ‘alta cultura’ lida com a realidade mas, mais que isso, uma mudança
na maneira como o senso comum aborda as relações sociais”.1 Assim, mesmo
que o conceito possibilite uma gama vasta de diferentes endossamentos
teóricos, é importante destacar um entendimento que perpassa qualquer
divergência analítica, que é o de que a “paz começa onde termina a vontade
de extermínio”.2 Esta máxima permite a compreensão de um posicionamento
acadêmico e político, que se propõe a combater as formas de aniquilamento
humano não só sob a sua literalidade, presente nos formatos que vão da
violência física ao genocídio de uma população inteira, por exemplo, como
também no que tange ao não reconhecimento da identidade do outro, o que é
representativo de uma agressão simbólica.
Neste sentido, pensar na difusão de uma cultura baseada em questionar
os padrões binário de diferenciação, que colocam uma distinção entre bons e
os maus em uma lógica calcada em pressupostos moralistas e não fundados,
sob o ponto de vista ético das diferenças, embasa e sustenta historicamente
os moldes das injustiças sociais. Logo, a análise ética das representações
acerca das proposições do Direito, no descortinamento de suas entrelinhas,
apresenta-se como uma possibilidade de conceituar sociologicamente o
efeito de uma sociedade que é marcada historicamente pela desigualdade,
por vezes até mesmo sustentada e justificada pelas formas jurídicas.

1 PUREZA, José Manuel. Estudos sobre a paz e cultura da paz. In: ____. Instituto da Defesa
Nacional. Nação e defesa: prevenção de conflitos e cultura da paz. Lisboa: Europress, 2000. p.
36.
2 PELIZZOLI, Marcelo. Paz e conflito: visão sistêmico-fenomenológica. In: PELIZZOLI, Marcelo.

Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Ed. da UFPE, 2010. p. 30.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 181


Para se estudar o fenômeno da injustiça, é importante destacar
premissas que compõem o debate acerca da construção da justiça,
identificando criticamente suas lacunas, pontuando suas possibilidades
interpretativas. Injustiça, neste ínterim, é qualquer lugar na cultura que
coloca o sujeito na condição desigual, seja do ponto de vista jurídico, político,
social, seja do econômico. Convém destacar que, portanto, “entre uma justiça
e uma subjetividade, um elo efetivo é a mediação”.3 Este sentido da mediação,
por sua vez, pode ser visto como uma prática cunhada nos princípios da ética
e possível de ser difundida por meio da educação, em seu entendimento mais
abrangente, fazendo jus à Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A ética enquanto princípio

Todo e qualquer sistema jurídico organizado tem, na sua raiz


gnosiológica e nas várias facetas de sua organização, a ideia concebida pelo
instituto dos princípios. Assim entendidas, são as normas mestras a
conduzirem o convívio em comunidade, inspiradoras básicas de qualquer
ordenamento jurídico que almeje fomentar a cultura de paz
Direito, em sentido jurídico, é tudo aquilo que as pessoas, que convivem
em qualquer comunidade, reciprocamente reconhecem como norma e regra
de viver em comum. Diante das vicissitudes fáticas, há uma gama enorme de
princípios a comandarem a atividade jurídica, empenhada, desde os
primórdios do positivismo, em adaptar a lei às milhares de circunstâncias da
realidade.
Nesta esfera jurídica, quando da aplicação da lei, podem surgir diversas
lacunas e problemas em seu aproveitamento prático, frente à inexistência
tipificadora de determinada circunstância levada à baila ao Direito. Diante de
tal fato, é imprescindível o papel aplicado das normas principiológicas,
porquanto entendidas como comandos mais amplos e adaptados às
circunstâncias fáticas do cotidiano, contribuindo a uma maior amplitude
aplicativa do ordenamento jurídico ao efetivo aplicador do Direito.

3REBOUÇAS, Gabriela Mais. Justiça, mediação e subjetividade: o que esperamos de nós


mesmos? In: PELIZZOLI, Marcelo. Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Ed. da UFPE,
2010. p. 34.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 182


Em termos panorâmicos, é possível destacar que um princípio
simplesmente não afasta outro, mas o complementa de maneira a estabelecer
combinações capazes de preservar o núcleo essencial de cada princípio. Não
raras são, às vezes, em que é imprescindível combinar normas
principiológicas entre si ou, até mesmo, com regras legislativamente forjadas.
Tal circunstância ocorre em vista de que a realidade fática e a
sistemática jurídica têm absoluta complexidade, razão pela qual há o
impedimento técnico de se estabelecer concretizações de entendimentos
jurídicos, fazendo-se uso de normas exclusivas e independentes das demais,
como se um sistema jurídico não existisse. É evidente, contudo, como prelo
fundamental, na construção do ordenamento jurídico e, especialmente, na
aplicação de um raciocínio principiológico coeso e justo, como fonte
inspiradora da norma, a presença inarredável de conceitos éticos básicos,
pilares do sistema jurídico, imprescindíveis para a busca da paz social.
Esta compreensão teorética pode ser observada nas relações sociais
dentre o que diz respeito, por exemplo, à crítica leviana que é estendida aos
movimentos de direitos humanos, que sofrem represália por lutarem em prol
da segurança e de dignidade dos sujeitos submissos ao sistema carcerário. O
que vem a ser pontuado, como desejável pelos que se intitulam “cidadãos de
bem”, é a vigência da pena de morte para acusados de determinados crimes
considerados graves, como uma ilusória solução aos problemas de conflito
social. O que se apresenta neste caso, contudo, é a inobservância da pena de
morte, não só como prática inconstitucional, como também cláusula pétrea
de direitos no Brasil. Assim, o discurso pela paz periga apontar, inclusive,
para a destruição moral do outro, como forma de autoafirmação por meio do
extermínio do outro ou da sua dignidade.4
Nesta operacionalização em encontrar a solução mais justa e equitativa
entre o problema apresentado pelo conteúdo empírico e a aplicação das
normas principiológicas, fica inseparável, para a busca daquilo que parece
ser certo ou errado, justo ou injusto, a racionalidade em termos éticos. Isso
ocorre, pois, em termos simplistas: a razão é posta antes do acontecimento
fenomênico ocorrer.

4PELIZZOLI, Marcelo. Paz e conflito: visão sistêmico-fenomenológica. In: PELIZZOLI,


Marcelo. Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Ed. da UFPE, 2010.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 183


Porquanto, quando se fala em aplicação prática de padrões éticos para a
busca da paz social ou, em outros termos, em princípio da eticidade, se está
diante de uma situação mais complexa e exigente, em termos de presença
volitiva humana, nas decisões judiciais. Há uma importante implicatura ética,
nas interpretações e aplicações jurídicas, a ser dada aos acontecimentos
fáticos e celeumas jurídicos levados a cabo aos aplicadores do Direito.
Por concepção, a palavra paz, que comumente está associada à
tranquilidade e à ausência de guerras ou violência, é aliada ao dever de um
ideal das relações humanas, onde ela seria elemento necessário para se viver
em harmonia, elevando os níveis do bem-estar de toda a sociedade. A paz,
portanto, é um desejo perene e premissa para o desenvolvimento humano.
Está na educação pela paz a capacidade de transformação das realidades
sociais, bem como a mediação dos conflitos.5
Neste sentido, a apropriação pelo direito de uma ética, que tenha como
premissa a educação pela paz, significa indicar o direcionamento de condutas
que elevem esta prerrogativa pacifista e não ainda mais violenta, como
costuma ser. Pensar na cultura de paz, portanto, é elevar a bandeira dos
direitos humanos, para conceber práticas que tenham a função de gerar
relações sociais harmoniosas e não severamente punitivas, que impliquem na
reprodução da violência em nome de certa justiça, por exemplo.

A ética e a moral enquanto conceito

A ética é, antes de tudo, uma ciência, inclinada a analisar,


preponderantemente, a moral. Assim a define Vázquez: “Ética é a ciência do
comportamento moral dos homens em sociedade”.6 A função da ética é a
mesma de todas as teorias universais: explicar, esclarecer ou investigar uma
determinada realidade, buscando elaborar os conceitos correspondentes.
Neste empreendimento, inclui-se a ciência ética, tendo como seu objeto o

5 VALLE, Victor. Considerações sobre a educação para a paz e segurança humana. In:
MARTINS, José (Org.). Educação para a paz e direitos humanos. Brasília: Presidência da
República, Secretaria-Geral, 2008.
6 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 12.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 184


“conjunto de regras de comportamento e formas de vida através das quais
tende o homem a realizar o valor do bem”.7
Neste diapasão, esclarece-se que há uma enorme diferença entre ética e
moral, enquanto ética é ciência, moral é simples objeto da ciência. Os
problemas éticos caracterizam-se por sua generalidade, e distinguem-se dos
problemas morais, que se apresentam nas situações concretas. “[...] enquanto
conhecimento científico, a ética deve aspirar à racionalidade e objetividade
mais completas e, ao mesmo tempo, deve proporcionar conhecimentos
sistemáticos, metódicos e, no limite do possível, comprováveis”.8

A ética é “desconstrutora e fundadora, enunciadora de princípios ou de


fundamentos últimos”.9 Tal ciência é responsável por descobrir e aclarar as
normas, em especial, jurídicas, alicerçando-se em valores-base reconhecidos
pelo ordenamento jurídico e cultivados pela sociedade durante períodos
históricos.
A norma, por sua vez, exprime um dever, dirigindo-se a indivíduos
capazes de cumpri-lo ou desrespeitá-lo. As normas “não valem enquanto são
eficazes, senão na medida em que expressam um dever ser”.10

A validez dos preceitos reitores da ação humana não está condicionada


por sua eficácia, nem pode ser destruída pelo fato de que sejam
infringidos. A norma que é violada segue sendo norma, e o imperativo
que nos manda ser sinceros conserva sua obrigatoriedade apesar dos
mendazes e dos hipócritas. Por isso se diz que as exceções à eficácia de
uma norma não são exceções à sua validez.11

Enfim, a ética enraíza-se à concepção de norma, sua destinação e


matéria, e com a ideia de moral, considerada como objeto da própria ciência
ética. Assim, a ética possui um caráter científico, com o rigorismo de sua
coerência e a fundamentação de suas proposições científicas, efetuando uma
abordagem dos problemas morais, almejando, como fim último, agir de modo

7 MAYNÉZ, Eduardo García. El derecho natural en la época de Sócrates. Trad. do autor.


México: Editoral Jus, 1939. p. 12. Tradução do autor.
8 VÁZQUEZ, op. cit., p. 13.
9 NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 3. ed., rev. e atual., São Paulo: RT, 2001. p. 37.
10 MÁYNEZ, op. cit., p. 22.
11 Ibidem, p. 23.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 185


a patrocinar a cultura de paz. Já a moral carece de uma arbitrariedade
perante aquilo que cada sujeito, por meio dos seus processos de socialização,
entendem como sendo práticas vinculadas binariamente pelas definições de
bem ou mal.
Esta inobservância da compreensão conceitual das diferentes
concepções de moral e ética produzem, empiricamente, a defesa por modelos
considerados desejáveis a si mesmo, que ignoram as trajetórias singulares de
discernimento, no sentido das práticas, atribuindo recorrentemente ao outro
o estereótipo de delinquência, mesmo em ocorrências de um mesmo crime e
sendo conivente com outros de tamanha ou maior proporção. Na prática,
muitos são os apelos coletivos que, respaldados pela busca da “justiça”,
fundam ditaduras ou linchamentos, gerando um zelo cego que é exaltado em
nome da vinculação ao próprio grupo que lhes confere esta identidade.12

A Ética e o Direito

A Ética e o Direito guardam entre si íntimo laço de comunicação.


Ambos, em última análise, procuram regular e entender o comportamento
moral do homem em sociedade. Como tal, ressalta-se, os dois procuram
disciplinar a relação entre os homens por meio de normas imperativas.
Outrossim, ambos procuram atender a mesma necessidade social.
Entretanto, a equivalência de ambos não é absoluta, pois, no âmbito
moral, há um foco interior, a norma moral depende do íntimo da consciência
individual, enquanto que a norma jurídica é exterior e foca-se na
independência da consciência. Para o Direito, basta que o agente cumpra a
norma jurídica, tendo ele discernimento ou não do seu agir; já para a moral
isto é inadmissível.
Ademais, a coercibilidade13 da norma moral é interna, ou seja, seu
descumprimento agride a consciência do agente que não a cumpre

12 PELIZZOLI, Marcelo. Paz e conflito: visão sistêmico-fenomenológica. In: PELIZZOLI,

Marcelo. Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Ed. da UFPE, 2010.


13 Para Maria Helena Diniz tal característica deve ser analisada sob um prisma imperativo

“no sentido de que sua finalidade primordial é dirigir direta ou indiretamente o


comportamento dos indivíduos, das comunidades, dos governantes, dos funcionários no seio
do Estado e do mesmo Estado na ordem internacional. Ela prescreve como deve ser a

Ética, direitos humanos e meio ambiente 186


(“remorso”); todavia para a norma jurídica há uma punibilidade externa,
quando se verifica o não cumprimento do tipo normativo. Isto significa que,
na esfera do Direito, o descumprimento de norma pode aplacar a aplicação de
sanções de ordem patrimonial e restritiva de liberdade, de modo geral.
Outrossim, o Direito possui um domínio menor de atuação do que a
ética (norma moral), ou seja, o mundo do justo está contido pelo da moral.
Assim, toda infração jurídica também pode ser encarada como infração
moral, mas nem toda transgressão moral é também jurídica. Esse ponto é
relevante, inclusive, para discorrer sobre condutas outrora consideradas sem
moral e que, com o passar do tempo, foram incorporadas pelo Direito.
Uma amostra disso são os assédios e as violências simbólicas, cuja
definição legal ganha mais complexidade de distinção, se comparada à
violência física, por exemplo. Contudo, é sabido que esta relação entre a
moral e o Direito tem uma linha tênue e também interpretativa, ou seja,
cunhada em fatores subjetivos de compreensão da figura do jurista, que
transforma este direito em prática.
No que tange à luta pelos direitos humanos, são recorrentes as
denúncias, no âmbito das relações internacionais, de países dominantes que
sujeitam os periféricos a viverem como simples degraus, para que as grandes
nações alcancem o maior número possível de riquezas ou o maior grau de
poder e domínio sobre o mundo.14 Esta é uma prática recorrente, que, por
exemplo, se convalida na exploração do trabalho alheio, à cuja intervenção o
Direito não está apto, ao menos por ora, a alcançar. Aliás, como é recorrente
em muitos países imperialistas, as instâncias de proteção do trabalhador
podem não existir ou não alcançar os formatos de precarização do trabalho, o
que tem uma implicação moral, mas não é arrolada por uma base legal de
Estado.
Outra marcante diferença circunscreve-se no fato de que o Direito é
estatal, a moral pode sê-lo ou não. A justiça não só impõe deveres, mas
estabelece um direito correspectivo, estabelecendo dois aspectos analíticos

conduta de cada um. É um comando voltado para a conduta humana”. (DINIZ, Maria Helena.
A ciência jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 105).
14 SIVIERO, Iltomar. Hannah Arendt: pluralidade e universalidade dos direitos humanos. In:

CARBONARI, Paulo César. Sentido filosófico dos direitos humanos: leituras do pensando
contemporâneo. Passo Fundo: Ifibe, 2006.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 187


da mesma coisa; a moral, de outra banda, manifesta-se como um processo
unilateral.

Prescreve a alguém um dado dever diante de outrem, mas este dever não
tem por termo correspectivo o direito ou a pretensão ativa do outro. O
imperativo – ama a teu próximo como a ti mesmo – se dirige
unilateralmente a mim e me intima um dever que, adimplido, deriva em
vantagem para meu próximo; mas não é dado ao meu próximo pretender
de mim este amor no sentido de que tal expectativa tenha ingressado em
seu patrimônio e se traduza em direito seu.15

Essa intrínseca relação entre a Ética e o Direito, apesar das sutis


diferenças, resulta em implicações de normas éticas inseridas nas normas
jurídicas positivadas. É salutar a existência de normas jurídicas de cunho
moral no Código Civil, por exemplo; muitos dos conceitos aí abrigados e tidos
como civilista são nitidamente éticos. Assim, é possível observar a ideia
conceitual de boa-fé, presente em diversos artigos do Código,16 bem como o
juízo de bons costumes, o estado de casado, a fidelidade conjugal, a má-fé,
dentre outros.
Como observado, o espírito moral permeia toda a extensão do Código
Civil, em especial, o Direito de Família e o Direito Obrigacional. Quanto à tal
circunstância, Beviláqua ensina:

Em três situações diversas se encontram o Direito e a moral [...] O Direito


coincide com a moral, reprovando, por motivos semelhantes senão
idênticos, um determinado ato [...] O Direito ordena o que ordena a

15 PETRONE, Igino. Filosofia del diritto con l’aggiunta di vari saggi su etica, diritto e sociologia.
A cura di Giorgio Del Vecchio. Milano: Giuffrè, 1950. p. 38. Trad. do autor.
16 Convém demonstrar alguns dos artigos que apontam para tal circunstância:

Art. 1.257/CC. O disposto no artigo antecedente aplica-se ao caso de não pertencerem as


sementes, plantas ou materiais a quem de boa-fé os empregou em solo alheio.
Art. 1.268/CC. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade,
exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for
transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o
alienante se afigurar dono.
Art. 1.561/CC. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os
cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia
da sentença anulatória.
Art. 1.817/CC. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé,
e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de
exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe
perdas e danos.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 188


moral, porém são diversos os estímulos a que obedecem; eis a segunda
situação. Ambos exigem que satisfaçamos os nossos compromissos, por
exemplo. Mas o Direito se coloca no terreno do interesse, para assim
estatuir, vendo, na inobservância do prometido, uma lesão ao direito da
pessoa, que nele confiou, e um prejuízo aos interesses mais elevados da
sociedade. A moral chega ao mesmo resultado por outro caminho. O
simples dever de veracidade nos imporia o cumprimento da promessa
honesta, ainda que não houvesse interesse a fraudar, nem apropriação
de bem ou de trabalho alheio. Na terceira situação, finalmente, o Direito
e a moral se acham em desacordo, porque aquele sanciona obrigações
que esta condena, como são as que nascem dos pactos usurários. Outras
vezes será que a moral mantenha a sua sanção a obrigações, que o
Direito não reconhece mais, como são as que incorreram em prescrição.
As conveniências e a utilidade social aconselham a prescrição que,
realmente, encontra espaço em todas as legislações; perante a moral,
porém as obrigações jamais prescrevem.17

Os fundamentos éticos, enfim, têm incomensurável importância para o


ramo jurídico, presentes, até mesmo, legislados em corpus, cabendo aos
operadores do Direito a fiel aplicação naquilo que lhe é fundamental, em
busca de uma efetiva paz social.

A construção legislativa contemporânea

A atual construção legislativa possui uma grande preocupação


ideológica com questões de cunho fundamental, como: igualdade,
contemporaneidade, dignidade, sociabilidade, operabilidade e outros
diversos conceitos basilares do ordenamento jurídico, inspirados em padrões
éticos, tudo em prol da operacionalização de uma paz social.
Há a preocupação de resgate do sentido de sociedade, escrito por
Larenz,18 como representativo de uma relação jurídica baseada em um
contrato, pelo qual várias pessoas estariam obrigadas entre si à consecução
de um fim comum a todas elas, para o qual constituem uma comunidade sem
capacidade jurídica e sem organização corporativa.
Outrossim, a atual concepção legal atribui à sociedade uma técnica
legislativa e jurídica que possua unidade valorativa e conceitual, permitindo à

17 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1931. p.

25-26.
18 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. de José Lamego. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 189


doutrina e aos operadores do Direito integrá-las no sistema jurídico,
entendido em uma concepção aberta. O atual Código Civil, por exemplo, “está
permeado de princípios jurídicos cuja formulação exige uma compreensão
dinâmica e prospectiva da história, da ciência e das fontes do Direito”.19
As novidades recebidas por uma legislação são resultado de um longo
processo de maturação e de seleção, consolidado em princípios éticos, cujo
resultado é a consagração legal. Quando se fala em ética como meio próprio
para patrocinar a cultura de paz, em prol da defesa do homem, enquanto
agente de direitos, é inseparável a construção de elementos legislativos como
resultado de um processo histórico de experimentação, revelador de uma
dimensão dinâmica e temporal do Direito, que é parte da construção de uma
dimensão cultural. Desta forma, a cultura “é o paradigma central de toda
experiência fundada em atos de conhecimento, base para edificação de
qualquer ciência, inclusive a ciência jurídica.20
Não há como separar valor de norma, uma vez que as normas
correspondem a atos de decisão e de escolha entre os valores da experiência
humana, adotando uma busca constante da relação entre o que é a realidade
e o pensamento a respeito da própria realidade.
A referida concepção nega a possibilidade de secção absoluta do
conhecimento e a construção de um sistema puramente lógico, razão pela
qual a ética, ou melhor dizendo, o princípio da eticidade é fonte primordial
para confortar a norma, para buscar a paz social.
A eticidade da norma traz consigo a inserção de modelos jurídicos
abertos, que consistem em pontos de mobilidade, que se adaptam a uma série
de situações não previstas abstratamente, mas que podem ser adequadas no
caso concreto. Trata-se do “reconhecimento da relação bipolar e dialética
entre a realidade e o Direito, a força que a moral social, o poder social
possuem e os feitos que provocam sobre o Direito”.21
A ética, enquanto fonte inspiradora da cultura de paz, perfectibilizada
pela utilização de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos

19 MARTINS-COSTA, Judith H.; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo código

civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 3.


20 Ibidem, p. 4.
21 Ibidem, p. 63.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 190


indeterminados, possui o papel de aumentar o poder do juiz, no suprimento
das lacunas presentes no ordenamento jurídico, nos casos de deficiência ou
falta de ajuste da norma à especificidade do caso concreto.
Sobre tal concepção surge a viabilidade de tanto o legislador quanto o
jurista fazerem uso da liberdade, para atuarem e definirem exatamente o
conteúdo da norma, preservando a sistemática, mas, ao mesmo tempo,
abrindo caminho para a aplicação tópica do Direito. Brota a possibilidade de
se construir um sistema caracterizado como um eixo central e como um
sistema aberto, permitindo a constante incorporação – e solução – de novos
problemas, seja por via da construção jurisprudencial, seja pela humildade de
deixar ao legislador, no futuro, a tarefa de progressivamente complementá-la.

Estas janelas, bem denominadas por Irti de “concetti do collegamento”


com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais, técnica
legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no
ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos ainda não
expressos legislativamente, de standards, arquétipos exemplares de
comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente
(e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia
privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego
jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim,
constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização
e permanente ressistematização no ordenamento positivo.22

A eticidade é a unidade do querer no seu conceito e do querer do


indivíduo no seu espírito. O momento em que se aplica a eticidade, é o
instante em que o querer do sujeito se realiza nos fins concretos, operando,
desse modo, a mediação entre o subjetivo e o objetivo. Não obstante, “[...]
Hegel se propõe a fazer uma ciência filosófica do Direito e não uma ciência do
Direito. Pretende expor as estruturas concretas do Direito tendo por base um
princípio de organização que representa o fio condutor da reconstrução”.23
O conceito próprio de Direito se realiza quando se está diante da
eticidade, que, por sua vez, trata da mediação social da liberdade, ou seja, das
relações objetivas, da dimensão supra-individual. Existe a extração de seu
material das relações existentes e se mostra sua ligação com as noções

22 MARTINS-COSTA, Judith H. A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002. p. 118.
23 WEBER, Thadeu. A eticidade hegeliana. Veritas, v. 40, n. 157, p. 1, mar. 1995.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 191


pessoais ou com princípios, pensamentos, propósitos, impulsos, sentimentos,
etc., que estão disponíveis em toda a parte e posicionados no íntimo do
operador do Direito.
A eticidade, assim, sob a perspectiva hegeliana, trata das determinações
objetivas da liberdade e não pode ser confundida com as vontades
particulares imediatas. Nada mais é que um modo universal de atuar,
tratando de um desdobramento da liberdade nas instituições sociais.
Contudo, essa perspectiva não é aplicada à prática nas instituições, haja vista
a soberania do Poder Judiciário, que sendo constituído, pelo menos do ponto
de vista da realidade brasileira, em sua maioria pela elite da população,
espalda em muitos momentos os interesses do seu próprio grupo social.
Contudo, para Hegel, a essência da razão utilizada na construção ética
da comunidade é a liberdade, e o objetivo final da história é a sua realização,
sua autorrealização.24 A História vai se definindo, então, como o progresso da
liberdade na consciência do espírito humano; não basta usufruir da
liberdade, é preciso também saber, ter consciência dela. Em razão disso, a
educação pela paz em direitos humanos tem se apresentado como uma
ferramenta de emancipação das massas, no que diz respeito à compreensão
dos seus direitos, inclusive sob o prisma das desigualdades sociais, ou seja,
das diferenças como pilar para a construção do princípio de igualdade.
Inserido neste contexto, o direito encontra sua origem e
desenvolvimento na própria experiência humana e, como tal, ciente dessa
contínua aprendizagem, é que a ética nasce para captar esses ensinamentos
advindos da experiência, e abrindo o sistema jurídico a novas realidades em
prol da busca pela paz social, cada vez mais inspirada na perfectibilização dos
direitos humanos.

Conclusões

Não é esgotável o tema da cultura de paz no debate que cerca os


direitos humanos. Conceber o filosoficamente ético e contrapô-lo com ideias
morais faz surgir a possibilidade de clarificar as dimensões dos discursos do

24HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: M. Fontes,
2003.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 192


senso comum, a ponto de deixar transparecer as incoerências dos discursos
movediços, que faleciam à compreensão da ética, desviando a
intencionalidade das práticas para um campo de julgamento moral. Esta
proposição é percebida em diferentes momentos das sociedades, em que a
violência foi imperativo fundante de uma demagoga pregação de segurança
ao desenvolvimento humano. Se é verdade que a violência real ou simbólica
deve ser combativa, é tão urgente afirmar que a propagação de outra
violência não poderia se apresentar como uma saída.
A educação pela paz, que é cunhada aos movimentos de direitos
humanos, vem como proposta à inclusão de medidas punitivas que não
impliquem a reprodução de formas coercitivas ou indignas, quanto mais as
que são reproduzidas pelo próprio Estado legitimado por instâncias legais. O
não silêncio, quando instaurado nesta seara discursiva, pode ser indicativo de
que as injustiças reproduzir-se-ão nas diferentes instâncias da sociedade, sob
formas de penalizações indevidas, vinganças ou repúdio da alteridade. Sendo
assim, é necessário considerar que a cultura de paz se torna vital enquanto
medida de proteção das camadas sociais mais vulneráveis ao acesso de
direitos, uma vez que, ao dominante, a violência não só serve como
justificativa, mas também como aliada no momento de exercer a coerção.
Na atualidade, como resposta a determinadas manifestações violentas,
é adotada, por exemplo, a lógica de um sistema carcerário punitivo, cuja
direção é seletiva e nunca correcional. Assim, as construções sociológicas do
que é crime e quem é o criminoso assumem diferentes representações, de
acordo com os Estados embasados por suas leis e, especialmente, pela forma
como as práticas punitivas destas leis são operacionalizadas.
No Brasil, por exemplo, facilmente se observa a impunidade frente à
corrupção e ao desvio do dinheiro público, seja por parte de políticos, seja do
grande empresariado. Por outro lado, grupos de jovens militantes, que se
manifestam de forma contrária a esta lógica criminosa do “colarinho branco”
não raro são tratados como delinquentes, denunciando a intencionalidade de
marginalização dos movimentos sociais, bem como a seletividade das
instituições jurídicas. Esta margem aberta entre o que é ou não crime e,
especialmente, vindo de quem uma ação deve ser mais ou menos punida, é
representativa de um debate ético.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 193


O sistema penal não é para todos, apesar de nos princípios não haver
distinções. Há um filtro, ou seja, há um modelo simbólico definido e
socialmente aceito que direciona o ímpeto punitivo para determinados
agentes sociais, que são considerados uma afronta social, não
necessariamente pela natureza dos seus crimes, mas pelo grupo social a que
pertençam. Assim, os direitos humanos ajudam a provocar o tencionamento
de verdades inerentes à ética do direito. O primeiro questionamento pode ser
o da pertinência do próprio sistema jurídico vigente, que é reinventado para
compor um modelo mais efetivo. Ainda, problematiza-se também toda a
lógica do sistema carcerário, dando destaque à naturalização da ocorrência
de certos delitos pelo próprio estado, que, com uma justificava de castigo,
reproduz uma ação violenta. A realidade dos presídios brasileiros tem
acumulado cenas de descaso e precarização da condição humana que, por
esta via analítica, mostra-se como inaceitável, especialmente enquanto
conduta de um Estado, distanciando-se de uma cultura de paz. Por fim, é
necessário pensar em desvelar estes modelos simbólicos dos alvos destas
punições do sistema jurídico, predeterminados de maneira vertical, que
condenem previamente determinadas classes, raças, etnias e grupos sociais.
Associação de valores morais, e não éticos, em prol do castigo, da
vingança ou penitência do outro, diferente de mim, revestem falsamente
discursos que pregam por justiça. Como é ser efetivamente justo? A quem
interessa a paz? E a quem não interessa? Esse sistema consensual que
seletivamente atribui a culpa pela violência a um sujeito do direito, que é um
sujeito abstrato, ao reproduzir uma ética de injustiça, é o ponto central a ser
abordado criticamente, como pauta da educação pela cultura de paz.

Referências

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 195


11
Plano Diretor e áreas institucionais: questão de bem comum

Larissa Comin*
Nivaldo Comin**

Introdução

O presente artigo tem como tema elucidar brevemente o Plano Diretor,


as áreas institucionais e o bem comum, de modo a demonstrar o conceito e os
objetivos de cada um perante a questão urbana.
Ao longo do texto, serão abordados dados históricos sobre cada
assunto, demonstrando a evolução das cidades e suas consequências aos
seres humanos. Procurar-se-á, ainda, abordar a evolução constitucional
brasileira, relatando como e quando se deu o início, a preocupação social
perante as consequências ambientais causadas pelo homem ao longo dos
anos.
O artigo foi elaborado a partir de recursos bibliográficos, e está dividido
em três capítulos: o primeiro demonstra a evolução e migração do homem ao
ambiente urbano, com ênfase no surgimento do urbanismo e do direito
urbanístico e sua estruturação.
Em um segundo momento, procura-se o conceito, a constituição e a
aplicação do Plano Diretor e das áreas institucionais, e no terceiro e último
momento, busca-se o conceito filosófico e prático de Bem Comum,
demonstrando sua ligação objetiva e observando que o Plano Diretor e as
áreas institucionais de alguma forma contribuem para a realização deste bem
comum social.

* Acadêmica do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e bolsista de


Iniciação Científica BIC/UCS (2016-2017). E-mail: lari.comin@hotmail.com.
** Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul. Especialista em Direito

Público pela Universidade de Caxias do Sul e Escola Superior de Magistratura Federal


(Esmafe). Graduado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Graduado em
Administração de Empresas, pela Universidade de Caxias do Sul. E-mail:
n.comin@terra.com.br.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 196


O direito urbanístico

A evolução da sociedade urbana e o direito urbanístico


Quando se fala em ambiente urbano, logo se lembra das cidades, que
surgiram das tribos, que tiveram origem a partir do conjunto de frátrias,
constituídas por diversas famílias no mundo antigo. Na visão de Maluf,1 neste
mundo antigo, cidade e urbe não eram sinônimos, pois a cidade se tratava de
uma organização religiosa e política de famílias e tribos, e a urbe era somente
o local de união ou domicílio desta sociedade.
Humbert2 traz dados históricos sobre o fenômeno urbano no mundo,
denominando-o de fenômeno hodierno, tendo início na Revolução Industrial
e ganhando corpo na segunda metade do século XX. Deste modo, ao findar as
grandes guerras, o êxodo rural acentuou-se e viver nas grandes cidades
passou a ser objetivo da população rural, que via nas indústrias uma
oportunidade de crescimento profissional e financeiro.
No Brasil não foi diferente, pois, segundo dados do IBGE, a porcentagem
da população urbana brasileira, em 1940, era de 32%, já o último senso, feito
no ano de 2010, apurou que 84% da população brasileira vive em áreas
urbanas.
Sendo assim, observando a evolução ao longo da História, o Brasil no
último século deixou de ser uma nação rural para se transformar em uma
nação eminentemente urbana, situação que trouxe consequências sociais,
econômicas, políticas e jurídicas, passando a exigir maior preocupação com o
ordenamento das cidades.
Assim, o crescimento urbano na percepção de Di Sarno,3 exigia uma
disciplina jurídica que parametrizasse a questão relacionada às cidades, pois,
no século XIX, constatou-se que existiam somente normas que versavam
sobre a questão sanitária e estética, sem dúvida, insuficientes diante da
dimensão migratória.

1 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Limitações urbanas do direito de

propriedade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 71-72.


2 HUMBERT, Georges Louis Hage. Direito urbanístico e função socioambiental da propriedade

imóvel urbana. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 21.


3 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Barueri: Manole, 2004.

p. 8.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 197


Assim, diante do problema do processo de urbanização que causava
incômodos em relação à ocupação do solo, de infraestrutura, de mobilidade,
de ordenamento de espaço habitável dentro das cidades, de modo a conflitar
com o bem-estar das pessoas, acredita-se que o direito urbanístico
necessitava avançar e preencher esta lacuna existente no ordenamento
jurídico, tornando-se, assim, um dos ramos do Direito mais importantes para
a sociedade, pois suas regras atingem diretamente toda e qualquer população
urbana.
Ao constatar a evolução normativa em nosso País, vê-se que, até a
Constituição de 1988, o Brasil sequer previa um tipo de política direcionada
ao desenvolvimento urbano. Então, foi somente a partir da atual Constituição
Federal que se firmou a competência da União para estabelecer as diretrizes
voltadas ao desenvolvimento urbano, pois só no art. 21, inciso XX, é que
surgiu a previsão.
Apesar da preocupação iminente, na redação da Constituição brasileira
de 1988, somente treze anos depois da sua promulgação é que houve a
efetiva regulamentação constitucional quanto à política de desenvolvimento
urbano. Tal se deu com o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, que objetivou
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes, exigindo dos municípios outro instrumento
legal denominado Plano Diretor.
Surgiu, assim, o Urbanismo, podendo ser definido a partir da concepção
de Di Sarno4 como uma ciência, uma técnica e até uma arte, que tem por
objetivo a organização do espaço urbano, proporcionando o bem-estar
coletivo, através da legislação, do planejamento e da execução de obras
públicas, de modo a ocorrer o bom funcionamento das funções urbanas de
habitação, trabalho, recreação e circulação no espaço urbano.
Meirelles5 fundamenta que o urbanismo seria um conjunto de medidas
estatais para organizar os espaços habitáveis, de modo a proporcionar
melhores condições de vida ao homem na comunidade.
Então, em sentido estrito, entende-se urbanismo como uma ação de
projetar e ordenar as cidades; já em sentido amplo pode ser tanto um

4 Ibidem, p. 7.
5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 16.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 198


conjunto de práticas ou políticas públicas quanto uma forma ideológica, que
visa reproduzir as condições gerais do modo de produção capitalista.
Em relação ao direito urbanístico, constata-se, através de um apanhado
histórico, que a Constituição do Império nada dispôs sobre regras relativas ao
assunto, somente prevendo, via decreto, a existência de Câmaras em cada
vila, com competência para regrar normas urbanísticas.
Assim, de maneira geral, nas Constituições anteriores a de 1988, pouco
ou nada se previa quanto ao direito urbanístico, somente estabelecendo-se a
competência da União para desenvolver o plano nacional de viação férrea e o
de estradas de rodagem, sendo que, aos municípios era atribuída
competência para tratar de assuntos de interesse local.
Portanto, somente a partir da Constituição de 1988 o direito
urbanístico foi tratado como disciplina jurídica, embora estivesse em
construção nas constituições anteriores.

A estruturação do direito urbanístico


Ao ler autores como Mukai6 e Rech e Rech,7 entende-se que o direito
urbanístico é ramo do direito público, objetivando a organização e
sistematização das normas de natureza compulsória e cogente, mediante
princípios e diretrizes ordenadoras dos espaços habitáveis ou não,
garantindo a sustentabilidade econômica e social, almejando como resultado
final a qualidade de vida ao ser humano.
Silva8 observa o direito urbanístico sob dois aspectos: no primeiro
aspecto, o autor o designa como direito urbanístico objetivo; é considerado
como um conjunto de normas que objetiva organizar os espaços habitáveis,
propiciando melhores condições ao homem de viver em comunidade. No
segundo aspecto, que o autor designa direito urbanístico como ciência, é o
ramo do direito público, que tem por objeto expor, interpretar e sistematizar
normas e princípios que disciplinam os espaços habitáveis.

6 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. p. 19.
7 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para a construção
de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 37.
8 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 38.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 199


Resumidamente, cabe ainda citar os princípios de direito urbanístico
específicos, tratados por Rech e Rech,9 que seriam: o princípio do urbanismo
como função pública, o princípio da conformação da propriedade urbana e
rural, o princípio da afetação e mais-valia, o princípio da justa distribuição e o
princípio da sustentabilidade. Sendo assim, os princípios elencados estariam
interligados a um só objetivo, ou seja, auxiliar a preservação ambiental tanto
nas áreas urbanas quanto rurais.
Para Silva,10 a Constituição Federal de 1988 trouxe atenção ao direito
urbanístico, com diversos dispositivos para o desenvolvimento urbano e a
preservação ambiental, a partir dos arts. 21, incisos IX e XX; 23 incisos III, IV,
VII; 24, incisos VII e VIII; 30, inciso VII; 182 e 225/CF.
Em matéria de direito urbanístico, o ordenamento brasileiro estabelece
que a competência legislativa seja estendida a todos os entes estatais, sendo a
União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, tratando-se então de
uma competência concorrente.
Com isso, Rech11 acredita que a competência material para legislar
sobre a matéria é dos municípios, de modo a respeitar as normas
urbanísticas editadas pela União e os estados, desde que não seja violado o
princípio de interesse local, ameaçando e desrespeitando os direitos
fundamentais de uma cidade sustentável.
O direito urbanístico traça regras que vão além de outros assuntos,
como, por exemplo, de que maneira se deve alterar uma paisagem, um
ecossistema, um ambiente, entre outros, observando que a sociedade
adquiriu uma certa dose de consciência, de modo a observar as regras
urbanísticas, quando da realização de empreendimentos, valorizando
medidas menos agressivas ao meio ambiente.
Mas não se pode confundir a proteção ambiental como um dos objetos
do direito urbanístico, pois isto se trata de matéria do direito ambiental, que

9 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para a construção
de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 69-79.
10 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 38.
11 RECH, Adir Ubaldo. Zoneamento de locais e áreas de interesse turístico: utilização

econômica de preservação ambiental. In: _____. Direito e economia verde: natureza jurídica e
aplicações práticas do pagamento de serviços ambientais, como instrumento de ocupações
sustentáveis. Caxias do Sul: Educs, 2011. p. 60.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 200


engloba um conjunto de normas que disciplinam a qualidade do meio
ambiente, através de instrumentos como o zoneamento ambiental e estudo
prévio de impacto de vizinhança. O direito urbanístico possui institutos
próprios, tais como planejamento urbanístico e parcelamento do solo urbano,
visando organizar espaços habitáveis, tendo como resultado propiciar vida
digna ao homem.

Áreas institucionais e o Plano Diretor, no direito urbanístico

O Plano Diretor como ferramenta de organização do meio urbano


O Plano Diretor, segundo entendimento de Meirelles,12 seria um
complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento
global e constante do município, sob o aspecto físico, social, econômico e
administrativo desejado pela comunidade. Meirelles acreditava na
supremacia desta lei, pois seria ela a definidora das prioridades do governo
local para o benefício do bem-estar social.
Assim, como foi citado anteriormente, o Plano Diretor é instrumento do
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). Disposto em seu art. 40, trata-se de
um instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana,
através de sua aprovação em lei municipal.
Desse modo, o Plano Diretor deverá ser aprovado na forma de Lei
Complementar, estendendo-se a todo território municipal,
independentemente se forem áreas urbanas ou rurais, devendo haver ampla
participação da população em todas as suas etapas de construção pela via das
audiências públicas, com posterior aprovação da Câmara de Vereadores e
sanção do prefeito municipal. Esta participação popular é de extrema
relevância, já que permite que a própria sociedade auxilie na construção da
futura lei, impedindo alterações pela via de emendas no momento da
aprovação pelo Legislativo.
Rech13 ainda pondera que um Plano Diretor deve ser eficiente como
política pública, obrigando o gestor a observá-lo; caso contrário, os
problemas continuarão a ser vivenciados. O autor ensina que são necessários

12 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir: pressupostos urbanísticos estéticos. 7. ed.

São Paulo: Malheiros, 1996. p. 99.


13 RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos nas cidades. Caxias do Sul: Educs, 2007. p. 37.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 201


princípios que organizem e indiquem caminhos; caso contrário, haverá
desorganização. Sem projeto de cidade consolidado no ordenamento jurídico
local, a cada quatro anos os prefeitos continuarão improvisando seus
próprios projetos, sendo jamais concluídos por falta de continuidade.
Silva14 subdivide os objetivos do Plano Diretor em dois: os objetivos
gerais, que seriam aqueles que servem para instrumentar uma estratégia de
mudança, no sentido de obter melhoria na qualidade de vida da comunidade
local; os objetivos específicos, ou seja, aqueles concretos como a
reurbanização de um bairro, a abertura e o alargamento de uma via, entre
outros.
Ainda em relação aos princípios vistos como essenciais por Rech e
Rech, pode-se perceber que estes devem contemplar primordialmente o ser
15

humano, o coletivo, nas suas diversas necessidades de bem-viver, como


espaços públicos de lazer e convivência, o saneamento para alcançar saúde e
bem-estar social, as vias de circulação para a qualidade do transporte urbano,
sempre primando pelo interesse público. O Plano Diretor sempre deve privar
pelo equilíbrio e a sustentabilidade e, além de seus princípios, também deve
conter diretrizes.
Rech e Rech16 diferenciam os princípios de diretrizes, considerando os
primeiros como valores permanentes aplicados em caso de conflitos entre
normas municipais, já as diretrizes são normas superiores que direcionam o
tipo de desenvolvimento a ser perseguido pelo município.
O Plano Diretor traz como princípios: o de desenvolvimento
sustentável, o da prevenção e precaução, o da função socioambiental da
propriedade, o da educação ambiental e o do respeito à identidade, à cultura
e aos interesses da sociedade.
No entendimento de quase todos os autores consultados, o Plano
Diretor deve estar acima das demais leis municipais que tratam da matéria,
devendo estas emoldarem-se segundo os princípios e as diretrizes daquele,
de modo a caminhar para a mesma direção.

14 SILVA, Carlos Henrique Dantas da. Plano diretor: teoria e prática. São Paulo: Saraiva, 2008,

p. 138.
15 RECH. Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para a construção

de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 89.
16 Ibidem, p. 98.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 202


Com isso, em primeiro momento deve-se dar atenção ao plano
plurianual, à lei de diretrizes orçamentárias e ao orçamento anual. O plano
plurianual é elaborado pelo administrador em seu primeiro ano de mandato,
para traçar as ações do período de quatro anos, devendo seguir o Plano
Diretor quando versar sobre obras urbanas. Da mesma forma, devem
caminhar as formulações das Leis de Diretrizes Orçamentárias e do
Orçamento Anual.
Assim, na visão de Rech e Rech,17 o Plano Diretor não pode ficar
esquecido em uma gaveta, sob pena de responsabilização do gestor, já que,
com o advento do Estatuto da Cidade, passou a ser parte do planejamento do
município, devendo ter prioridade.
Outro instrumento a ser adequado ao Plano Diretor é o Código de Obras
que para Rech e Rech18 é um instrumento fundamental, pois estabelece
normas sobre como devem ser construídas casas e prédios, assegurando a
população a viver com dignidade e bem-estar.
Há, ainda, o Código de Posturas, que regula a vida nas cidades, evitando
abusos, como som alto, coleta de lixo, limpeza nas vias, entre outros. É
importante também a Lei de Parcelamento do Solo, que obedece a Lei Federal
6.766/79, sendo a principal forma de parcelamento, por meio dos
loteamentos, sempre obedecendo as diretrizes do Plano Diretor.
Sendo assim, além dos instrumentos legais elencados acima, não resta
dúvida de que a educação do cidadão é ainda mais essencial para a efetivação
do Plano Diretor, pois como bem ensinam Rech e Rech,19 “o projeto de cidade
não será realidade se não estiver na alma do povo”.

Áreas institucionais e sua importância para um ambiente sustentável


Sob uma visão ampla, pode-se dizer que o meio ambiente abrange toda
a natureza original e artificial, assim como bens culturais correlatos, pois foi
basicamente este o entendimento do legislador que elaborou a Lei Federal
6.938/81 em seu art. 3°, dispondo que o meio ambiente é a interação do

17 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para a construção
de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 207-
208.
18 Ibidem, p. 209-212.
19 Ibidem, p. 234.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 203


conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais, que propiciam o
desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.
As áreas institucionais, pela Lei Federal 6.766/79, são glebas que o
empreendedor de um loteamento deve doar ao município, para que ali sejam
instalados equipamentos públicos e comunitários, como praças, áreas verdes,
construção de escolas, unidades de saúde e repartições públicas.
Já na concepção do Plano Diretor, essas áreas são glebas
estrategicamente demarcadas no entorno de um centro urbano, quando da
fase do prognóstico da cidade, que, segundo Rech e Rech,20 é momento de
definir as “diretrizes do projeto do município”, como áreas de interesse
público.
Silva21 relata que, na Antiguidade, as áreas verdes se destinavam ao
deleite de imperadores e sacerdotes, além de lugares para passeio e
conversação das pessoas na Grécia. Os romanos também apreciavam, pois
para eles as áreas verdes eram artigos de luxo reservados aos mais ricos.
Mais tarde, na Idade Média, o autor explica que estas áreas eram
dispostas no interior de quadras, sendo após absorvidas pelas edificações. No
renascimento, segundo Silva, as áreas verdes se transformaram em gigantes
cenografias, evoluindo no romantismo. Ainda22 ressalta que a política urbana,
a partir do Texto Constitucional, deve ter como objetivo fundamental o
desenvolvimento das funções sociais da cidade, de modo a garantir o bem-
estar de seus habitantes, construindo e ordenando um meio ambiente
equilibrado e saudável, a partir da garantia e previsão nas cidades de
recursos naturais urbanos, dentro dos quais se enquadram as áreas verdes.
Deste modo, entende-se que as áreas institucionais exercem papel
extremamente importante para o bem-estar da sociedade urbana, pois
permitem contato direto com a natureza e proporcionam espaços de lazer
para as pessoas que vivem diariamente no conturbado ambiente urbano.

20 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para a construção
de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 264.
21 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 272-

273.
22 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

226-227.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 204


A partir do comando geral disposto na Lei Federal 6.766/79, é o Plano
Diretor que deve determinar o índice de áreas institucionais destinadas à
implantação de espaços verdes e de áreas naturais para o município, hipótese
que nem sempre tem sido respeitada.
Ainda sobre as áreas verdes, Guzzo23 acredita que exercem função
ecológica nas cidades, trazendo benefícios tais como: a purificação do ar,
combatendo os gases tóxicos através de mecanismos fotossintéticos; a
melhoria do macroclima da cidade, de modo a evitar que raios solares
incidam diretamente sobre as pessoas; a redução da velocidade do vento; o
favorecimento da infiltração de água no solo, provocando evapotranspiração
mais lenta, e abrigo à fauna, causando maior variedade de espécies, entre
outros benefícios.
Silva24 sustenta que, além da função recreativa e higiênica, as áreas
verdes também possuem finalidade de equilíbrio psicológico, resgatando a
tranquilidade e a recomposição de temperamento e colorindo o ambiente
urbano quando bem distribuídas.
Então, se torna evidente que as áreas institucionais, destinadas a
cultuar ambientes verdes, possuem extraordinário potencial de proporcionar
à população urbana a tão prometida qualidade ambiental, disposta em nossa
Constituição Federal, em seu art. 227.

Plano Diretor e áreas institucionais: questão de bem comum

Compreendendo o bem comum


Inicialmente, é necessário entender o que é bem, e para isso Di
Lorenzo25 busca o conceito de Aristóteles, que explica Bem como algo a que
todas as coisas tendem, e para o filósofo o Bem propriamente humano é o
fim.

23 GUZZO, Perci. Disponível em:

<www.mp.ba.gov.br/atuação/ceama/material/doutrinas/arborização/a_cidade.pdf>. Acesso
em: 18 dez. 2012.
24 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 306.
25 DI LORENZO, Wambert Gomes. Teoria de estado e solidariedade: da dignidade da pessoa

humana aos seus princípios corolários. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 68.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 205


Di Lorenzo26 ainda transmite que Aristóteles acreditava que a felicidade
era o primeiro princípio orientador de toda a ação humana, pois tratava-se de
um estado de autossuficiência, que torna a vida carente de nada. Mas o
filósofo não entendia como autossuficiente algo obtido para um homem só,
ou seja, um misantropo, mas sim aquele suficiente obtido pela vida
comunitária resultante da natureza social da pessoa.
Sendo assim, para que haja a realização da autossuficiência da pessoa
consigo mesma (endógeno) e da pessoa com seu meio (exógeno), no
entendimento do professor estes bens humanos só ocorrem na vida em
comunidade.
Visto isso, Di Lorenzo27 também, esclarece que não podemos confundir
Bem Comum como bens das pessoas individualmente ou um estado de
beatitude coletiva, pois este não é o bem do todo, mas de todos. Além disso,
ele acredita que o Bem Comum resulta na dignidade, unidade e igualdade, de
modo que isso requer um esforço comum para a realização e manutenção
desta vida social.
Di Lorenzo28 transmite que Chalmeta diz ser o Bem Comum um bem
humano que constitui fim comum a todos os membros da sociedade,
resultando num conjunto de condições para um desempenho satisfatório da
atividade política. O autor e professor ainda cita Maritain, que acreditava que
o Bem Comum não era somente o bem-estar público, pois para ele este era
por natureza a boa-vida na multidão; para Maritain, no plano político
primeiramente o bem universal é o bem-estar.
Visto isso, o Bem Comum constitui-se de bens individuais e comuns a
todas as pessoas, sem que estas necessitem ter os mesmos valores e
objetivos. Di Lorenzo29 distingue os três níveis de Bem Comum,
denominados: político ou universal, social, e doméstico, de modo que em
cada nível estão os bens básicos necessários para atingir a dignidade, e seu
acesso é regido pelo princípio da subsidiariedade, que possui complemento

26 Ibidem, p. 69.
27 DI LORENZO, Wambert Gomes. Teoria de estado e solidariedade: da dignidade da pessoa
humana aos seus princípios corolários. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 70.
28 Ibidem, p. 71.
29 Ibidem, p. 77.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 206


no princípio da solidariedade, e é do conceito clássico de amizade que a
solidariedade retira seu conteúdo.
Di Lorenzo30 ainda cita os argumentos de Aristóteles sobre esta
solidariedade. Para ele, os homens desejam viver em comum, pelo fato de
haver uma utilidade, pois esta vida em comum favoreceria o bem-estar,
sendo o fim da comunidade entre si. Aristóteles também ressalta que os
homens se reúnem e mantêm a comunidade política pelo simples viver, de
modo a ser um elemento muito valioso.
Deste modo, Di Lorenzo31 acredita que a democracia personalista seria
o único meio capaz de propiciar a realização do Bem Comum, pois ela coloca
a pessoa humana como causa, meio e fim daquela comunidade política. Ele
acredita que a democracia personalista resulta de um composto necessário
de pluralismo e deliberação. Sendo assim, o professor ainda cita as palavras
de Arendt, quando a mesma afirma já ser a própria democracia baseada na
pluralidade de homens.
Maritain32 afirma que a vida política é simultaneamente personalista e
comunitária, pois para ele estas duas palavras se comtemplam e se exigem
mutuamente. Assim, comunidade pode ser entendida como um conjunto de
pessoas e grupos, com o objetivo de realizar o bem comum.

O bem comum como fim do Plano Diretor e das áreas institucionais


A partir do artigo científico “Meio ambiente e bem comum”, de Di
Lorenzo,33 o autor cita Maritain, e afirma ser o Estado o instrumento do bem
comum, trazendo sua teoria instrumentalista sinteticamente.
O autor ainda traz à tona uma tríplex natura de bem comum, sendo ela:
teleológica (telos), dada a existência da sociedade política e sendo este o
único fato desta existência, no sentido de mediática (médio); por ser um meio
para a realização da dignidade da pessoa humana, através da vida social e,

30 DI LORENZO, Wambert Gomes. Teoria de estado e solidariedade: da dignidade da pessoa

humana aos seus princípios corolários.Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 78.


31 Ibidem, p. 91.
32 MARITAIN, Jacques. La persona y el bien común. Buenos Aires: Club de Lectores, 1981, p.

71.
33 DI LORENZO, Wambert Gomes. Meio ambiente e bem comum: entre um direito e dever

fundamental. Revista Internacional de Direito Ambiental, v. III, n. 9, p. 329, set./dez. 2014.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 207


por último, no sentido real (res), pois o bem comum é um conjunto de coisas
necessárias, de bens essencias à vida, e que, segundo o professor,
corresponderiam aos direitos fundamentais consagrados.
Di Lorenzo,34 em seu artigo traz o meio ambiente como o bem comum
mais rudimentar, pois ele explica que já na Roma clássica havia a consciência
de que alguns bens tinham destinação universal.
Esta consciência, ao longo dos anos, exigiu o controle sob regulação do
Estado para as atividades potencialmente nocivas ao meio ambiente. Exigiu,
ainda, políticas públicas preventivas e o controle dos efeitos de novas
tecnologias.35
Sendo assim, o suporte e os objetivos trazidos pelo Plano Diretor e as
áreas institucionais, sem dúvida, contribuem para a realização deste bem
comum nos centros urbanos, pois são dois instrumentos, gerados a partir do
direito urbanístico, que, como foi dito inicialmente, trata-se de uma ciência e
um ramo do direito público, com o objetivo de expor, interpretar e
sistematizar normas e princípios que disciplinam os espaços habitáveis, para
o alcance do bem-estar e da dignidade social.
Mas, apesar deste suporte trazido pelo direto urbanístico e em seguida
pelo Plano Diretor e as áreas institucionais, além de toda a tutela abrangida
por nossa Constituição Federal, na ideia de Di Lorenzo36 as normas em
matéria ambiental, em regra, são meramente punitivas e inexequíveis na
maior parte dos casos. Assim, o mesmo acredita que estas normas devem
assumir um caráter pedagógico, amadurecendo o senso de responsabilidade,
fomentando a mudança de mentalidade e o estilo de vida.
Conforme o pensamento de Di Lorenzo,37 além deste instrumento e
proteção, deve haver primeiramente a consciência de um dever fundamental
de todas as pessoas, como credoras de um meio ambiente equilibrado. Para o
professor, a sustentabilidade da atividade humana como tal é certamente um
desafio de bem comum universal, pois ele afirma o pensamento de Arendt,
quando ela diz que o homem inevitavelmente destrói para produzir.

34 DI LORENZO, Wambert Gomes. Meio ambiente e bem comum: entre um direito e dever

fundamental. Revista Internacional de Direito Ambiental, v. III, n. 9, p. 330, set./dez. 2014.


35 Ibidem, p. 329.
36 Idem.
37 Ibidem, p. 332.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 208


Vejamos que a urbanização traz consigo enormes passivos ambientais,
além de afastar o homem do salutar contato com o ambiente natural e impor-
lhe a convivência com a poluição atmosférica, visual, sonora; com os
congestionamentos, as inundações, e todas as consequências de uma
aglomeração urbana.
Mudar esta realidade talvez seja impossível, mas a melhora está ao
nosso alcance, dependendo tão somente de planejamento que permita
determinar a forma como deve ocorrer a ocupação do solo urbano. E, se
pensamos em tomar essa direção, um dos instrumentos dos quais não se
pode abrir mão é o ordenamento legal das áreas institucionais, destinadas à
preservação do verde, como uma verdadeira forma de alcance do bem
comum.

Conclusão

Ao longo do presente artigo, pôde-se constatar a importância do Plano


Diretor e das áreas institucionais, pois, se formulados e aplicados de forma
correta pelos municípios, os mesmos são capazes de atingir muitos benefícios
frente ao ambiente urbano, contribuindo para o alcance da tão sonhada
sustentabilidade.
Percebe-se que, ao longo da História, a preocupação ambiental sempre
foi constante, mas o planejamento e a tomada de medidas sempre foram
tímidas, pois, como foi abordado, mesmo que a consciência ambiental tenha
sido efetivada pelo legislador, em alguns artigos da Constituição de 1988,
somente treze anos depois, com a Lei Federal 10.257/2001, ou seja, o
Estatuto da Cidade, é que surgiram instrumentos realmente capazes de
regular o crescimento urbano e tecnológico de forma moderada e
sustentável.
Em relação ao bem comum, tornou-se claro que este visa o bem-estar
do coletivo, e o responsável a proporcionar isto não é somente o Estado e
seus governantes, mas sim todos os que vivem em comunidade, pois o
Estado, conforme Maritain, é somente instrumento de bem comum.
Foi possível perceber, também, que de alguma forma o Plano Diretor e
as áreas institucionais ajudam a proporcionar este bem comum, pois, apesar

Ética, direitos humanos e meio ambiente 209


das regras e dos benefícios dos quais dispõem os dois primeiros, da mesma
forma como o bem comum, eles não se realizam sozinhos. Como foi trazido
na afirmação de Rech, o projeto de cidade não se realiza sem estar na alma do
povo, visto que a consciência em preservar também é suficiente e primordial.

Referências

DI LORENZO, Wambert Gomes. Meio ambiente e bem comum: entre um direito e dever
fundamental. Revista Internacional de Direito Ambiental, v. III, n. 9, p. 329, set./dez. 2014.

DI LORENZO, Wambert Gomes. Teoria de estado e solidariedade: da dignidade da pessoa


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<www.mp.ba.gov.br/atuação/ceama/material/doutrinas/arborização/a_cidade.pdf>. Acesso
em: 18 dez. 2012.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 210


12
Direitos humanos e cultura de paz no meio ambiente
carcerário brasileiro*

Magno Federici Gomes**


Cidângelo Lemos Galvão Penna***

Introdução

É notório o estado degradante do meio ambiente carcerário nacional e,


por efeito, da ineficácia da polícia sanitária nos presídios, sendo que o
próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu a falência do sistema
prisional brasileiro, na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 347 (ADPF).
Nesse viés, este trabalho se justifica para apontar e analisar as
principais causas da ineficácia da polícia sanitária no meio ambiente
carcerário brasileiro, bem como a identificação de possíveis soluções para
essa inefetividade, inclusive, com a análise do Direito Comparado,
especificamente em relação aos países que possuem baixo índice de
reincidência de presos, como a Suécia e a Noruega.
Inicialmente, abordam-se os conceitos de poder de polícia e de polícia
sanitária. Após, examinam-se a definição e as perspectivas sobre o meio
ambiente carcerário, para que, em seguida, sejam analisadas as principais

* Trabalho financiado pelo Edital 5/2016 (Projeto FIP 2016/11.173-S2) do FIP/PUC Minas,
resultante dos Grupos de Pesquisas (CNPq): Regulação Ambiental da Atividade Econômica
Sustentável (Rega) e Cedis (FCT-PT).
** Pós-doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova de Lisboa-Portugal. Pós-

Doutor em Direito Civil e Processual Civil. Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual,
pela Universidad de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas. Professor no
Mestrado Acadêmico em Direito Ambiental e Sustentabilidade na Escola Superior Dom
Helder Câmara. Professor Adjunto da PUC Minas e professor titular licenciado na Faculdade
de Direito Arnaldo Janssen. Advogado-sócio no Escritório Raffaele & Federici Advocacia
Associada. Integrante dos grupos de pesquisa: Regulação Ambiental da Atividade Econômica
Sustentável (Rega)/CNPQ-BRA e Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e
Sociedade (Cedis)/FCT-PT. Orcid: <http://orcid.org/0000-0002-4711-5310>. Currículo
Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1638327245727283>. E-mail: federici@pucminas.br
*** Mestrando em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogado.

Servidor Público Federal (Analista Técnico-Administrativo).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 211


causas da ineficácia da polícia sanitária, na esfera do sistema carcerário
brasileiro.
Posteriormente, foram apresentadas propostas de soluções, como
presídios construídos sob a forma de parcerias público-privadas (PPPs), as
associações de proteção e assistência ao condenado (APACs) e as celas
individuais.
No final, objetiva-se analisar a viabilidade das propostas de soluções
apresentadas para que se obtenha a eficácia da polícia sanitária no meio
ambiente carcerário brasileiro.
Utilizou-se, no presente trabalho teórico-documental o método técnico-
jurídico, sendo, ainda, empregadas, como fontes, a pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial. O marco teórico foi a obra escrita por Sarubbi e Rezende.1

A polícia sanitária

Antes de adentrar no conceito específico de polícia sanitária, é


necessária a definição do que seja Poder de Polícia. Nesse sentido, Bandeira
de Mello o conceitua:

A atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou


concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e
na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante
ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo fim de
conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados
no sistema normativo.2

No âmbito legislativo, a definição de Poder de Polícia está contida no


art. 78 do Código Tributário Nacional (CTN):

Art. 78 do CTN. [...] atividade da administração pública que, limitando ou


disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou
abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à
segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e
do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de

1 SARUBBI, Ary; REZENDE, Afonso Celso F. Sistema prisional na Europa: modelo para o
Brasil? Campinas: Peritas, 1997.
2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo:

Malheiros, 2006. p. 795.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 212


concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou
ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.3

Quanto ao objeto, Cretella Júnior destaca que o “poder de polícia que se


faz sentir não apenas sobre as coisas, sobre a propriedade privada, estende
também sua ação sobre as pessoas, limitando-lhes a liberdade por motivos de
saúde pública”.4
Dentro do âmbito do Poder de Polícia, encontra-se o conceito de polícia
sanitária. Como a própria denominação indica, trata-se de interferência
estatal, ainda que em potencial, com escopo de tutela da saúde, como bem
essencial ao interesse público.
No portal da Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina, aborda-se
a polícia sanitária sob a perspectiva histórica nos seguintes termos:

Pode-se afirmar que a vigilância sanitária originou-se na Europa dos


séculos XVII e XVIII e no Brasil dos séculos XVIII e XIX, com o surgimento
da noção de “polícia sanitária”, que tinha como função regulamentar o
exercício da profissão, combater o charlatanismo e exercer o
saneamento da cidade, fiscalizar as embarcações, os cemitérios e o
comércio de alimentos, com o objetivo de vigiar a cidade para evitar a
propagação das doenças.5

No âmbito normativo, a Constituição da República de 1988 (CR/1988)


prevê, ainda, a saúde como direito social (art. 6º), dedicando-se, inclusive,
uma seção própria para o tema no capítulo que trata da seguridade social.
Na esfera infraconstitucional, a Lei 8080/1990 regula as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde em todo o território nacional,
sendo que as ações e os serviços de saúde devem ser executados, segundo
referida lei, isolada ou conjuntamente por pessoas naturais ou jurídicas de
direito público ou privado.

3 BRASIL. Lei 5.172, de 25 out. 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui
normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, estados e municípios. Diário Oficial da
União, Brasília, 31 out. 1966, art. 78.
4 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Revista

Forense, 1999. p. 221.


5 SANTA CATARINA. Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina. Noções básicas sobre

vigilância sanitária. Saúde e cidadania, Santa Catarina, 2016, internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 213


Além disso, existem diversas normas estaduais e municipais sobre a
polícia sanitária, previstas em Códigos Sanitários. Por exemplo, a Lei
municipal 7.031/1996 normatiza procedimentos relativos à saúde em Belo
Horizonte.
Quanto à definição de polícia sanitária, Cretella Júnior menciona que
“chama-se polícia sanitária toda e qualquer limitação que se impõe à
liberdade humana por motivos de saúde pública”.6
Na esfera legislativa federal, o art. 6º, § 1º, da Lei 8.080/1990 conceitua
vigilância sanitária nos seguintes termos:

Art. 6º, § 1º, da Lei 8.080/1990. [...] § 1º. Entende-se por vigilância
sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir
riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do
meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de
serviços de interesse da saúde, abrangendo:
I – o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se
relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da
produção ao consumo; e
II – o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou
indiretamente com a saúde.7

Muita embora, como mencionado, a polícia sanitária se concretize em


uma quantidade considerável de normas, no momento, não se pode falar em
Direito Sanitário, uma vez que necessita, ainda, da utilização dos princípios
do direito administrativo.
No portal da Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina, ressalta-se
a existência de quatro dimensões da vigilância sanitária:

[...] Destacam-se quatro dimensões inerentes à prática de vigilância


sanitária:
a. A dimensão política: como uma prática de saúde coletiva, de vigilância
da saúde, instrumento de defesa do cidadão, no bojo do Estado e voltada
para responder por problemas, situa-se em campo de conflito de
interesses, pois prevenir ou eliminar riscos significa interferir no modo
de produção econômico-social. Essa é sua dimensão política, relacionada
ao propósito de transformação ou mudança desses processos em
benefício, a priori, da população. Contudo, os entraves serão maiores ou

6CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 221.


7BRASIL. Lei 8.080, de 19 set. 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 1990, art. 6º, § 1º.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 214


menores dependendo, de um lado, do grau de desenvolvimento
tecnológico dos setores produtores e prestadores, de suas consciências
sanitárias ou mercantilistas, e, de outro, da concreta atuação e
consciência dos consumidores.
b. A dimensão ideológica, que significa que a vigilância deverá responder
às necessidades determinadas pela população, mas enfrenta os atores
sociais com diferentes projetos e interesses.
c. A dimensão tecnológica, referente à necessidade de suporte de várias
áreas do conhecimento científico, métodos, técnicas, que requerem uma
clara fundamentação epidemiológica para seu exercício. Nessa dimensão
está incluída sua função de avaliadora de processos, de situações, de
eventos ou agravos, expressa através de julgamentos a partir da
observação ou cumprimento de normas e padrões técnicos e de uma
conseqüente tomada de decisão.
d. A dimensão jurídica, que a distingue das demais práticas coletivas de
saúde, conferindo-lhe importantes prerrogativas expressas pelo seu
papel de polícia e pela sua função normatizadora. A atuação da Vigilância
Sanitária tem implicações legais na proteção à saúde da população,
desde sua ação educativa e normativa, estabelecendo obrigatoriedades
ou recomendações, até seu papel de polícia, na aplicação de medidas que
podem representar algum tipo de punição. Assentada no Direito
Sanitário, sua atuação se faz no plano do jurídico, o que significa que
qualquer tomada de decisão afeta esse plano. Para isso suas ações devem
estar corretamente embasadas em leis. Torna-se imprescindível para
aquele que exerce a ação o conhecimento dos instrumentos processuais,
das atribuições legais e responsabilidades.8

Nessa linha de raciocínio, é relevante a classificação proposta Cretella


Júnior para divisão da polícia sanitária em profilática ou preventiva e, a
posteriori, repressiva.9 Por efeito, o fator determinante para definir a
existência de um ou outro tipo de polícia sanitária é a presença da patologia,
ou seja, se a doença já existe, o tipo de polícia sanitária a ser aplicado é a
repressiva, caso contrário, é a profilática.
Infere-se do exposto que a polícia sanitária é aplicada em diversos
segmentos (bromatologia, edilícia, moléstias contagiosas, mortuária), sendo
que, no presente artigo, analisa-se a polícia sanitária especificamente sobre o
meio ambiente carcerário.

8 SANTA CATARINA. Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina: noções básicas sobre
vigilância sanitária, 2016. Disponível em:
<http://portalses.saude.sc.gov.br/arquivos/sala_de_leitura/saude_e_cidadania/ed_08/02_0
1.html>. Acesso em: 3 out. 2016.
9 CRETELLA JUNIOR, op. cit.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 215


Meio ambiente carcerário

O meio ambiente, como bem difuso, é objeto de tutela tanto na esfera


nacional quanto internacional. No âmbito internacional, o meio ambiente
carcerário é tutelado essencialmente em tratados sobre direitos humanos e
sobre direitos humanitários.
Já no Brasil, a CR/1988 dedicou um capítulo específico para o meio
ambiente,10 sendo a primeira norma constitucional a tratar expressamente
do assunto, de modo que Silva salienta a sua natureza fundamental: “Assim, o
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado possui o
mesmo grau de vigência dos demais direitos fundamentais, devendo ser
respeitado por todos e, principalmente, garantido a todos, negros ou brancos,
pobres ou ricos, presos ou em liberdade”.11
Além da previsão constitucional, o meio ambiente carcerário é
abordado direta ou indiretamente em outros dispositivos normativos, tais
como a Lei 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais – LEP).
De modo em geral, o meio ambiente pode ser compreendido sob
diversos aspectos (bem difuso, direito fundamental, etc.). Como gênero
abarcaria as seguintes espécies: meio ambiente natural, meio ambiente
cultural, meio ambiente artificial, meio ambiente do trabalho.
Acrescente-se, ainda, a compreensão do meio ambiente misto que reúne
elementos das espécies de meio ambiente. Nesse sentido, Brito explana nos
seguintes termos:

Esta classe de meio ambiente, diferente das demais, não é abordada


enfaticamente na doutrina ou explicitamente no texto constitucional.
Apesar desse fato, aqui, há de afirmá-la como classe existente e
fundamental. Isto pela certeza de que, além dos meios natural, artificial e
cultural, existem meios ambientes peculiares que não se englobam,

10 Art. 225 da CR/1988. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da
União, Brasília, 5 out. 1988).
11 SILVA, Fábio Márcio Piló. A realidade do meio ambiente carcerário: uma análise da

capacidade de punir e (re)socializar do Estado brasileiro no século XXI. 2015. 131 f.


Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Dom Helder Câmara, Belo
Horizonte, Dom Helder Câmara, Belo Horizonte, p. 23.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 216


especificamente, nas classes já citadas, por conterem, em seu bojo,
características mistas, derivadas de todas as três.12

Segundo dados do “Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil”, a


população carcerária brasileira (computando-se, nesse cálculo, os presos em
prisão domiciliar) é de aproximadamente 711.463 presos, o que representa a
terceira colocação mundial de população carcerária.13
Referido número poderia ser consideravelmente maior se considerar-se
o déficit atual de vagas no sistema, que é de 210 mil, segundo os dados mais
recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Segundo Calmon, então
conselheiro do CNJ diz:

Considerando as prisões domiciliares, o déficit passa para 358 mil vagas.


Se contarmos o número de mandados de prisão em aberto, de acordo
com o Banco Nacional de Mandados de Prisão – 373.991 –, a nossa
população prisional saltaria para 1,089 milhão de pessoas.14

Essa considerável quantidade de presos revela consigo uma nefasta


realidade: as desumanas condições sanitárias do meio ambiente carcerário
brasileiro. Tal realidade motivou o ajuizamento da ADPF 347 pelo Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL).
O STF, em decisão de medida cautelar na ADPF 347, reconheceu a
gravidade da situação do sistema carcerário brasileiro. Nesse sentido:

SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA –


CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE
COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de
violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de
falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação
depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa

12 BRITO, Fernando de Azevedo Alves. A hodierna classificação do meio ambiente, o seu


remodelamento e a problemática sobre a existência ou a inexistência das classes do meio
ambiente do trabalho e do meio ambiente misto. Boletim Jurídico, Uberaba, p. 3, 2007.
13 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil.

Conselho Nacional de Justiça, Brasília, 2014c. Internet.


14 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Dados sobre nova população carcerária brasileira.

Conselho Nacional de Justiça, Brasília, 2014b. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 217


e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado
como “estado de coisas inconstitucional”.15

Além disso, no referido julgado, o STF determinou outras medidas como


a liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional e a necessidade da
realização de audiência de custódia, com a finalidade, inclusive, de obedecer
ao disposto nos arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Contudo, ainda que o STF tenha reconhecido a situação caótica do meio
ambiente carcerário nacional e determinado a liberação de verbas do FPN e a
obrigatoriedade da audiência de custódia, referidas medidas são insuficientes
para uma alteração radical do grave quadro apresentado pelo sistema
prisional brasileiro.
Conquanto se reconheça uma tendência mundial pela adoção de penas
alternativas à pena privativa de liberdade e que, com certeza, direta ou
indiretamente influi(rá) no modelo brasileiro, o direito penal brasileiro
adota, como regra, a pena privativa de liberdade.
Isso, inclusive, pode ser constatado através do recente entendimento
proferido pelo STF que permite a execução da pena após o acórdão proferido
pelas instâncias ordinárias. Leia-se:

STF admite execução da pena após condenação em segunda instância.


Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu
que o art. 283 do Código de Processo Penal (CPP)* não impede o início
da execução da pena após condenação em segunda instância e indeferiu
liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade
(ADCs) 43 e 44.
O Partido Nacional Ecológico (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), autores das ações, pediam a concessão da
medida cautelar para suspender a execução antecipada da pena de todos
os acórdãos prolatados em segunda instância. Alegaram que o
julgamento do Habeas Corpus (HC) 126292, em fevereiro deste ano, no
qual o STF entendeu possível a execução provisória da pena, vem
gerando grande controvérsia jurisprudencial acerca do princípio
constitucional da presunção de inocência, porque, mesmo sem força
vinculante, tribunais de todo o país “passaram a adotar idêntico
posicionamento, produzindo uma série de decisões que,
deliberadamente, ignoram o disposto no art. 283 do CPP”.

15BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental 347. Rel. min. Marco Aurélio, Brasília, 9 set. 2015. Diário de Justiça da
União, Brasília, 19 fev. 2016. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 218


O caso começou a ser analisado pelo Plenário em 1º de setembro,
quando o relator das duas ações, ministro Marco Aurélio, votou no
sentido da constitucionalidade do art. 283, concedendo a cautelar
pleiteada. Contudo, com a retomada do julgamento na sessão desta
quarta-feira (5), prevaleceu o entendimento de que a norma não veda o
início do cumprimento da pena após esgotadas as instâncias
ordinárias.16

Nesse diapasão, a tendência brasileira, ao contrário do que ocorre nos


países com maiores índices de recuperação dos presos, é continuar com uma
das maiores populações carcerárias do mundo.
Dessa forma, ressalta-se a relevância do tema sobre o acesso à saúde no
meio ambiente carcerário, sendo que, em seguida, examinar-se-á, dentre
outros dispositivos normativos, a Lei 7.210/1984, que é o Estatuto da
Execução Penal no País, especialmente sob a perspectiva normativa da
polícia sanitária nos presídios.17

Principais causas da inefetividade da polícia sanitária no meio


ambiente carcerário

Conforme o conceito legal apresentado pelo art. 78 do CTN, o poder de


polícia pressupõe, inclusive, a disciplina de direitos. Nesse sentido, o Estado é
responsável pela polícia sanitária no meio ambiente carcerário.
No entanto, é notório que o meio ambiente carcerário brasileiro não
possui mínimas condições sanitárias, e viola expressamente o fundamento
constitucional que prevê a dignidade humana. Diante disso, o próprio STF
reconheceu a situação de absoluta falência do sistema carcerário brasileiro,
na decisão proferida em ADPF 347.
São inúmeros e nefastos os motivos que resultam na inefetividade da
polícia sanitária. Neste capítulo, serão analisados os principais deles, quais
sejam: a superlotação, a violência e a assistência sanitária insuficiente.

16 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF admite execução da pena após condenação em

segunda instância. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 2016. Internet.


17 MENEZES, Bruno Seligman de; MENEZES, Cristiane Penning Pauli de. O acesso à saúde no

sistema penitenciário: a (in)observância da lei de execuções penais. Âmbito Jurídico, Rio


Grande, v. 17, n. 122, mar. 2014. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 219


A superlotação
O Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo.18
Contudo, a quantidade de presídios é demasiadamente insuficiente para
abrigar tantos presos, o que gera superlotação.
Para corroborar essa assertiva, Souza cita relatório mundial da
organização não governamental (ONG) de direitos humanos Human Rights
Watch, que aponta a existência de mais de 600 mil pessoas nos presídios
brasileiros, ou seja, número 61% maior que a sua capacidade.19
Segundo a Human Rights Watch, a quantidade excessiva de presos
resulta na impossibilidade de as autoridades manterem o controle, de
maneira que deixariam os presos vulneráveis à violência e às facções
criminosas.
A situação degradante das prisões brasileiras também é constatada por
relatórios elaborados pelo CNJ. Dados de 2014 do Ministério da Justiça
mostram que o número de pessoas presas no Brasil aumentou mais de 400%
em 20 anos.20
Enfatizando essa estatística, o Centro Internacional de Estudos
Penitenciários aponta que a média mundial de encarceramento é de 144
presos para cada 100 mil habitantes, enquanto que, no Brasil, o número de
presos sobe para 300 para cada 100 mil habitantes.21
A população carcerária total no País representa 563.526 presos (dos
quais se verifica um total de presos provisórios na faixa de 41%). No entanto,
a capacidade nos presídios somaria, segundo o referido diagnóstico, 357.219
presos, o que representa um elevado déficit de 206.307 vagas.22
É relevante destacar, ainda, que a quantidade de presos no País
aumenta consideravelmente se for somado o número de presos em prisão

18 BRASIL tem quarta população mundial do mundo. Uol Notícias, Brasília, 23 jun. 2015.
Internet.
19 SOUZA, Felipe. Relatório aponta violência policial e superlotação em presídios no Brasil.

Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jan. 2016. Internet.


20 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Cidadania nos presídios. Conselho Nacional de

Justiça, Brasília, 2016a. Internet.


21 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Cidadania nos presídios, 2016a. Internet.
22 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Dados sobre nova população carcerária brasileira,

2014b. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 220


domiciliar. Nesse caso, a população carcerária brasileira atingiria o elevado
número de 711.463 presos.
Portanto, a superlotação nos presídios brasileiros é um fato nefasto,
constatado há décadas, e que, indiscutivelmente, dificulta ao máximo (talvez
até seja a causa que impossibilite) a efetivação da polícia sanitária.

A violência
Além da superlotação, a violência no sistema prisional é outra causa da
inefetividade da polícia sanitária no meio ambiente carcerário. Nesse sentido,
a ONG Human Rights Watch aponta que a violência nos presídios tem
repercussão em toda sociedade. Por isso, César Munoz, pesquisador da
entidade, assevera que “as prisões são um foco de insegurança do lado de
fora”.23
São constatados vários tipos de violência dentro dos presídios, dentre
elas a violência física, a violência sexual, a violência moral. Nesse sentido, são
corriqueiramente divulgadas ondas de violência em estabelecimentos
prisionais, tal como a ocorrida no Complexo de Pedrinhas em São Luís
(Estado do Maranhão) que, inclusive, teve grande repercussão internacional.
Na ocasião, a então ministra da Secretaria de Direitos Humanos da
presidência da república, Maria do Rosário, emitiu nota, juntamente com a
ministra da Secretaria de Políticas para as mulheres da Presidência da
República, Eleonora Menicucci, em que se condenava a violência sexual
contra as mulheres e se postulava a condenação severa para os autores de
violações de mulheres e de meninas em presídios masculinos.24
Já em 22/9/2015, a onda de rebeliões no Complexo Prisional do
Curado, em Recife, resultou na solicitação de informações pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre a situação do referido
complexo.25

23 BRASIL. Empresa Brasileira de Comunicação. Violência dentro das prisões reflete na

sociedade, alerta ONG. Empresa Brasileira de Comunicação, Brasília, 20 out. 2015. Internet.
24 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. CNJ e ministra Maria do Rosário discutem onda de

violência em presídios do Maranhão. Conselho Nacional de Justiça, Brasília, 9 jan. 2014a.


Internet.
25 BRASIL terá que explicar à OEA onda de rebeliões em presídios de Pernambuco. G1,

Pernambuco, 22 set. 2015. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 221


Em 16/6/2016, foi noticiada a preocupação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos com a reiteração da violência nos
presídios cearenses.26
Contudo, no Brasil, a degradante situação do sistema prisional não é
apenas local ou regional, mas abrange o País inteiro, sendo que os cárceres
brasileiros teriam “códigos penais” criados pelos próprios presos.27
Nesse sentido, Kawaguti relata as piores prisões no Brasil, conforme a
opinião de magistrados, de promotores, de ativistas e de agentes
penitenciários: o Presídio Central de Porto Alegre (Rio Grande do Sul), o
complexo do Curado (Pernambuco), o presídio Urso Branco (Rondônia), a
Cadeia Pública Vidal Pessoa (Amazonas) e os Centros de Detenção Provisória
de São Paulo.28
A Casa de Detenção Doutor José Mário Alves (presídio Urso Branco, de
Rondônia) foi indicada como um exemplo do caos no sistema prisional
brasileiro em 2002. Naquela ocasião, referida prisão foi palco do segundo
maior massacre de detentos do País, sendo superada apenas pela tragédia
ocorrida no Carandiru.
Entre 2001 e 2002, no referido presídio, Kawaguti menciona que presos
jurados de morte foram retirados do isolamento e colocados com os demais
detentos, nos pavilhões, sendo que foram torturados e 27 deles
assassinados.29
Além do mais, o Complexo de Pedrinhas no Maranhão foi considerado
pelos especialistas como principal assunto do sistema penitenciário nacional,
após o registro de mais de 60 assassinatos, motins, rebeliões e decapitações
ocorridos num período de um ano.
Situação igualmente grave ocorreu no Presídio Central de Porto Alegre
(Rio Grande do Sul), onde presos estiveram algemados pelos corredores e
teriam sido vítimas de tortura, de agressões. Por efeito, Kawaguti relata que,

26 CIDH alerta sobre violência nos presídios do Ceará. Zero Hora, Brasília, 16 jun. 2016.
Internet.
27 PRESÍDIOS brasileiros têm “códigos penais” criados pelos próprios presos. O Globo,

Brasília, 02 nov. 2016. Internet.


28 KAWAGUTI, Luis. As seis piores prisões do Brasil. BBC, São Paulo, 20 jan. 2014. Internet.
29 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 222


em dezembro de 2013, a unidade foi alvo de notificação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA.30
Além disso, os CDPs (Centros de Detenção Provisória) representam
outro sinal do gravíssimo estado da superlotação carcerária. Nesse rumo,
situação mais grave ocorre no CDP Osasco 1, na Grande São Paulo, sendo que
em torno de 2.600 detentos ocupam espaço projetado para pouco mais de
750, conforme o sindicato de agentes penitenciários Sifuspesp.31
Acrescente-se, ainda, que, segundo D’Urso, o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP) realizou estudo denominado: “A visão do
Ministério Público sobre o Sistema Prisional brasileiro”.32 Na ocasião, foram
inspecionadas mais de 1.598 unidades prisionais no País, tendo sido
identificados graves problemas como a ausência de separação de presos
provisórios dos presos condenados em definitivo.
Outro problema apontado pelo referido estudo indica que, em quase
metade dos presídios, não existiria cama para todos os presos, sendo que,
para um quarto deles, não haveria sequer colchão.

A assistência sanitária insuficiente


A assistência sanitária insuficiente é outra causa de ineficácia da polícia
sanitária no meio ambiente carcerário nacional, muito embora a CR/1988
estabeleça, no seu art. 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, como
fundamento da República e, no seu art. 5º., XLIX, assegure aos presos o
direito à integridade física e moral.
Na esfera infraconstitucional, a Lei 7.210/1984 regula a execução penal
e, por efeito, o meio ambiente carcerário. Nela, estão previstas diversos tipos
de assistência ao preso e ao egresso. O art. 11 da referida lei dispõe:
Art. 11 da Lei 7.210/1984. A assistência será:
I – material;
II – à saúde;
III – jurídica;
IV – educacional;
V – social;

30 Idem.
31 Idem.
32 D’URSO, Luiz Flávio Filizzola. Violência e o sistema prisional. Migalhas, Brasília, 11 fev.

2014. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 223


VI – religiosa.33

O inciso II do referido art. 11 da Lei 7.210/1984 prevê expressamente a


assistência sanitária, sendo que a seção III regula especificamente o assunto
nos seguintes termos:
SEÇÃO III
Da Assistência à Saúde
Art. 14 da Lei 7.210/1984. A assistência à saúde do preso e do internado
de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico,
farmacêutico e odontológico.
§ 1º (Vetado).
§ 2º. Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para
prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro
local, mediante autorização da direção do estabelecimento.
§ 3o. Será assegurado acompanhamento médico à mulher,
principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-
nascido.34

Além do mais, a Portaria Interministerial 1.777 aprovou o Plano


Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, cujo escopo é prover atenção
integral à saúde da população prisional confinada em unidades masculinas e
femininas (inclusive, aquelas com finalidades psiquiátricas).
Mencionado ato infralegal estabelece, em seu art. 1º, § 2º, as
prioridades para o alcance desse escopo:

Art. 1º. da Portaria Interministerial nº 1.777/2003. [...] I I. a reforma e a


equipagem das unidades prisionais visando a estruturação de serviços
ambulatoriais que atendam às necessidades de atenção no nível básico,
mínimo da assistência no nível da média complexidade (conforme
Noas/MS em seu Anexo III – Grupo 7) e componentes das urgências e
emergências em saúde, em consonância com as especificidades do
Sistema Penitenciário Nacional;
II – a organização do sistema de informação de saúde da população
penitenciária;
III – a implantação de ações de promoção da saúde, em especial no
âmbito da
alimentação, atividades físicas, condições salubres de confinamento e
acesso a atividades laborais;
IV – a implementação de medidas de proteção específica, como a
vacinação contra hepatites, influenza, tétano;

33 BRASIL. Lei 7.210, de 11 jul. 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União,
Brasília, 13 jul. 1984, art. 11.
34 BRASIL. Lei 7.210, de 11 jul. 1984. Institui a Lei de Execução Penal, 1984, art. 14.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 224


V – a implantação de ações para a prevenção de tuberculose, hanseníase,
diabetes, hipertensão, hepatites, DST/Aids e dos agravos psicossociais
decorrentes do confinamento, bem como a distribuição de preservativos
e insumos para a redução de danos associados ao uso de drogas;
VI – a garantia do acesso da população penitenciária aos demais níveis
de atenção à saúde, através das referências, que deverão estar incluídas
na Programação Pactuada Integrada (PPI) estadual, mediante negociação
na Comissão Intergestores Bipartite (CIB).35

Conquanto a previsão normativa, é notória a insuficiência da assistência


sanitária. Nesse sentido, o CNJ, ao apresentar o projeto “Cidadania nos
presídios”, destaca:

Atualmente, os mais de 700.000 presos que se encontram cumprindo


penas no país em regime de encarceramento mais ou menos rígido fazem
do Brasil o país com a terceira maior população prisional, em termos
absolutos. E o modelo de encarceramento que praticamos, infelizmente,
alimenta um ciclo de violências que se projeta para toda a sociedade,
reforçado por uma ambiência degradante em estabelecimentos que
pouco ou minimamente estimulam qualquer proposta de transformação
daqueles que ali estão. O tratamento digno e com respeito de presos é
indício da civilização de uma sociedade e o primeiro passo que se dá na
tentativa de regenerar a vida daqueles que um dia haverão de estar entre
nós.36

Além disso, foi lançado pelo CNJ, em junho de 2016, o programa “Saúde
prisional”. Na ocasião, o então presidente do CNJ e do STF, ministro Ricardo
Lewandowski, mencionou que,
em um sistema superlotado com 600 mil pessoas, é claro que a higidez
física é extremamente precária e a situação de saúde é calamitosa, com
elevados índices de tuberculose, Aids e doenças sexualmente
transmissíveis que acabam refletindo na própria sociedade em função de
visitas intimas de familiares.37

Propostas de soluções

A degradante situação dos presídios brasileiros acarreta vários efeitos


prejudiciais. Nesse sentido, Silva e Gomes ponderam:

35 BRASIL. Portaria Interministerial 1.777/GM, de 9 set. 2003. Aprova o Plano Nacional de


Saúde no Sistema Penitenciário. Diário Oficial da União, Brasília, 11 set. 2003, art. 1º.
36 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Cidadania nos presídios, 2016a, internet.
37 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. CNJ lança “Saúde Prisional” para garantir assistência

básica aos presos. Conselho Nacional de Justiça, Brasília. 28 jun. 2016b, internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 225


Cabe, então, ressaltar que o dispêndio de recursos por parte do Estado
com os presos é tido como alto, mas o gasto com os fatores extra muros é
ainda maior, principalmente quando não se garante as condições
mínimas de higiene, saúde, infraestrutura e auxílio moral e material,
tanto aos que se encontra dentro quanto fora do cárcere. A reincidência
do preso trás gastos com novos processos e novo cárcere, ou seja, a
movimentação reiterada de toda a máquina estatal, sem se esquecer das
despesas com o meio ambiente e com a sociedade, que se apresenta
como vítima da incapacidade estatal de (re)socializar, uma das primeiras
funções da pena, nos termos da teoria preventiva especial, ao lado da
punição e da prevenção (temor).38

Em face dessa situação nefasta, há necessidade da busca por soluções


que, inclusive, devem ser buscadas no direito comparado, principalmente em
países com baixo índice de reincidência de presos, como, por exemplo, a
Suécia, a Noruega, a fim de que se efetive essencialmente o fundamento
constitucional da dignidade da pessoa humana.
Nesse rumo, Staffens e Santos apontam que a dignidade da pessoa
humana é expressa por meio de circunstâncias específicas, sendo que “[...]
algumas dessas condições concretas pode haver consenso, como dizer que a
dignidade humana não está sendo garantida para quem é humilhado ou
estigmatizado [...]”.39
Por efeito, os estabelecimentos prisionais edificados, sob a forma de
PPPs, as APACs e as celas individuais, são propostas a seguir examinadas.

Parcerias Público-Privadas (PPPs)


Os presídios construídos sob a forma de PPPs, cujo escopo essencial é
transferir a responsabilidade da administração dos presídios para as
empresas, remontam ao Direito inglês, sendo adotado em outros países como
“Irlanda, Portugal, Espanha e África do Sul como sistema de contraprestação

38 SILVA, Fábio Márcio Piló; GOMES, Magno Federici. Meio ambiente carcerário,

sustentabilidade e as parcerias público-privadas. Revista da Universidade Vale do Rio Verde,


Três Corações, v. 14, n. 2, p. 1.024, ago./dez. 2016.
39 STAFFEN, Márcio Ricardo; SANTOS, Rafael Padilha dos. O fundamento cultural da

dignidade da pessoa humana e sua convergência para o paradigma da sustentabilidade.


Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 13, n. 26, p. 276-277, maio/ago. 2016.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 226


pelo Poder Público ante a falta de disponibilidade de recursos financeiros e
aproveitamento da eficiência de gestão do setor privado”.40
No direito brasileiro, as PPPs foram implementadas pela Lei
11.079/2004. Referida lei instituiu normas gerais para licitação e contratação
de PPP, na esfera da Administração Pública. Nesse sentido, Di Pietro
menciona que “no caso do Brasil, representa uma alternativa indispensável
para o crescimento econômico, em face das enormes carências sociais e
econômicas do país, a serem supridas mediante a colaboração positiva do
setor público e privado”.41
Em Minas Gerais, a Lei Estadual 14.868/2003 regulou o programa
estadual de PPPs, em que se objetiva disciplinar e promover a efetivação de
PPPs na esfera da Administração Pública estadual.
O parágrafo único, do art. 1º da mencionada lei, dispõe que as PPPs
seriam contratos de colaboração, nos seguintes termos:

Art. 1º. da Lei Estadual nº 14.868/2003. [...] Parágrafo único. As


parcerias público-privadas de que trata esta Lei constituem contratos de
colaboração entre o Estado e o particular por meio dos quais, nos termos
estabelecidos em cada caso, o ente privado participa da implantação e do
desenvolvimento de obra, serviço ou empreendimento público, bem
como da exploração e da gestão das atividades deles decorrentes,
cabendo-lhe contribuir com recursos financeiros, materiais e humanos e
sendo remunerado segundo o seu desempenho na execução das
atividades contratadas.42

Além disso, o art. 2º da mesma lei estadual 14.868/2003 trata das


diretrizes do programa:

Art. 2º. da Lei Estadual nº 14.868/2003. O Programa observará as


seguintes diretrizes:
I – eficiência na execução das políticas públicas e no emprego dos
recursos públicos;
II – qualidade e continuidade na prestação dos serviços;
III – universalização do acesso a bens e serviços essenciais;

40 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,

franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8. ed. São Paulo: Atlas,
2011. p. 143.
41 Ibidem, p. 143-144.
42 MINAS GERAIS. Lei Estadual 14.868, de 16 dez. 2003. Diário do Executivo, Belo Horizonte,

17 dez. 2003, art. 1º, parágrafo único.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 227


IV – respeito aos direitos dos usuários e dos agentes privados
responsáveis pelo serviço;
V – garantia de sustentabilidade econômica da atividade;
VI – estímulo à competitividade na prestação de serviços;
VII – responsabilidade fiscal na celebração e execução de contratos;
VIII – indisponibilidade das funções reguladora, controladora e
fiscalizadora do Estado;
IX – publicidade e clareza na adoção de procedimentos e decisões;
X – remuneração do contratado vinculada ao seu desempenho;
XI – participação popular, mediante consulta pública.43

No âmbito internacional, Santos apresenta estatísticas sobre as PPPs:


Com relação ao sistema carcerário, existem cerca de 200 presídios
privados no mundo, sendo a metade deles nos Estados Unidos. O início
da experiência americana com a privatização de presídios se deu na
década de 1980. Hoje, esse modelo penitenciário atende 7% dos
condenados. Já na Inglaterra, 10% da população carcerária estão em
penitenciárias com administração terceirizada. Na Austrália, que é a
recordista mundial, esse percentual sobe para 17%. África do Sul,
Canadá, Bélgica e Chile também aderiram à privatização. Um
levantamento do governo australiano mostra que um preso em regime
privatizado pode custar menos que na cadeia, o custo cai de US$ 55 mil
para US$ 34 mil. Para os donos dos presídios, os números da
privatização nos Estados Unidos sugerem que o negócio não é ruim. O
valor de mercado da Correction Corporation of America, a maior
empresa do ramo, saltou de US$ 200 milhões para US$ 1 bilhão em cinco
anos.44

Por isso, a adoção das PPPs no sistema carcerário brasileiro resulta,


primordialmente, na expectativa de que as garantias fundamentais dos
presos sejam tuteladas.

Associação de Proteção e Assistência ao Condenado


Além das PPPs na construção e operacionalização dos presídios, outra
solução proposta é a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado
(APAC).
Para Ottoboni, a APAC pode ser conceituada como “um método de
valorização humana, portanto de evangelização, para oferecer ao condenado

43Ibidem, art. 2º.


44 SANTOS, Jorge Amaral dos. As parcerias público-privadas no sistema penitenciário
brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, v. 14, n. 2.269, set. 2009. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 228


condições de recuperar-se, logrando, dessa forma, o propósito de proteger a
sociedade e promover a justiça”.45
Sobre o referido método APAC, Ottoboni assevera, ainda, que seria
constituído por 12 pilares: a participação da comunidade na recuperação, o
trabalho, a religião, a assistência jurídica e à saúde, a valorização humana, a
família, o voluntariado e o curso para sua formação, o Centro de Reintegração
Social (CRS), o mérito e a jornada de libertação com Cristo.46
Sarubbi e Rezende, contudo, fazem as seguintes considerações sobre as
APACs:

Seus métodos de trabalho e atendimento psicológico ao reeducando tem


atraído a atenção de todo o globo, tendo sido implementada em vários
países, a exemplificar o Equador, Argentina, Escócia, Rússia e Coréia do
Sul. Os Estados Unidos (com alta taxa de reincidência e a maior em
encarceramento em todo o mundo), através da “Prision Fellowship
Internacional” e da “Confraternização Carcerária” daquele país, pelos
seus dirigentes, estudam a possibilidade de ali ser aplicado o
extraordinário sistema da APACs brasileira, a começar pelo Estado do
Alabama.47

Assim, o tratamento penal humanizado dispensado aos presos revela


ser um facilitador da reinserção social e redutor do índice de violência na
comarca em que se instalou a APAC. Isso contribui de forma relevante para
um ambiente de maior acolhimento social, reinserção e paz na sociedade.48
Ainda sobre as APACs, reportagem sobre uma unidade de Itaúna
(município do Estado de Minas Gerais) assevera que o índice de reincidência
seria de 10%: “Na Apac, são 165 recuperados. Eles só ficam nas celas para
dormir. Das 6h às 22h, estudam e desenvolvem várias atividades. “Eles lêem,
trabalham, cuidam da limpeza da casa, da alimentação e da padaria”, disse
Lídia Vilela, presidente da associação em Itaúna”.49

45 OTTOBONI, Mário. Vamos matar o criminoso?: método APAC. São Paulo: Paulinas, 2004. p.

29.
46 Idem.
47 SARUBBI, Ary; REZENDE, Afonso Celso F. Sistema prisional na Europa, 1997, p. 11-12.
48 OTTOBONI, op. cit.
49 APAC se destaca por trabalho de assistência a condenados em MG. Globo, Minas Gerais, 1º

jan. 2015, internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 229


A notícia, em comento, informa ainda que, no País, existiriam 43 Apacs.
Dessas unidades, 36 estão em Minas Gerais. “Nosso índice de reincidência
está em torno de 10% hoje em dia. O sistema convencional tem em torno de
80%”, acrescentou Saldanha, inspetor de metodologia da APAC de Itaúna.50

Celas individuais
Por fim, as celas individuais representam outra proposta de solução
para a ineficácia da polícia sanitária no meio ambiente carcerário, sendo que,
no plano normativo, a Lei 7.210/1984, que regula a Execução Penal no Brasil,
prevê celas individuais para os presos. Nesse sentido, o art. 88 dispõe, no
capítulo, que trata da penitenciária, que:

Art. 88 da Lei 7.210/1984. O condenado será alojado em cela individual


que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração,
insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).51

Um exemplo bem-sucedido de celas individuais pode ser encontrado


nas prisões norueguesas, consideradas modelo prisional:
Em algumas unidades prisionais da Noruega, o conceito de prisão
modelo é levado ao extremo. Características do sistema penitenciário
local, como prisões para poucos detentos, estímulo ao trabalho,
instalações carcerárias adequadas e projetos de ressocialização do
sentenciado, fazem algumas prisões chegarem a ser comparadas a
hotéis.52

Em decorrência desse modelo norueguês de unidade prisional, a taxa de


reincidência é reduzida, “usando esses modelos, autoridades do país dizem
que conseguem baixar as taxas de reincidência de presos no crime para 20%
em todo o sistema prisional. No Brasil, essa taxa de reincidência gira em
torno de 70%”.53

50 APAC se destaca por trabalho de assistência a condenados em MG, 2015. Internet.


51 BRASIL. Lei 7.210, de 11 jul. 1984. Institui a Lei de Execução Penal, 1984, art. 88.
52 PRISÃO na Noruega é comparada a Hotel. G1, Brasília, 21 mar. 2014. Internet.
53 PRISÃO na Noruega é comparada a Hotel, 2014. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 230


Outro exemplo bem sucedido de celas individuais pode ser encontrado
na Suécia. Lá, a política de reinserção social dos presos é tão significativa que
presídios são fechados por falta de detentos:
As recentes notícias sobre o fechamento de quatro prisões suecas
reabriram discussões sobre a forma como lidamos com nossos detentos.
Isto porque a falta de presos no país nórdico é atribuída principalmente
à forma de organização de seu sistema penitenciário, que conta com
investimentos na reabilitação dos prisioneiros; adoção de penas mais
leves em delitos relacionados a drogas; e revisões judiciais que optam
por penas alternativas em alguns casos, como liberdade vigiada. Em
situação semelhante, a Holanda já havia anunciado em 2012 a
necessidade de fechar oito prisões e demitir mais de mil funcionários –
pelo mesmo motivo: suas celas estavam praticamente vazias. O que tem
a nos dizer estes países?54

As celas individuais possibilitam vários benefícios aos presos, como


maior conscientização da responsabilidade pessoal e, ainda, permitem maior
tutela de seus direitos fundamentais, especialmente, sua integridade física.

Considerações finais

Inicialmente, abordou-se a polícia sanitária, sendo que,


preliminarmente, buscou-se definir poder de polícia mediante conceitos
doutrinários e legais, para que, em seguida, fosse examinada a acepção de
polícia sanitária.
Logo depois, analisou-se o meio ambiente carcerário. De início, antes da
abordagem específica do meio ambiente carcerário, tratou-se do meio
ambiente como bem difuso, que encontra inovadora previsão no art. 225 da
CR/1988. Após, apresentou-se a compreensão do meio ambiente misto e
explanou-se sobre o meio ambiente carcerário brasileiro, sendo que a sua
degradação restou demonstrada através, por exemplo, da decisão proferida
pelo STF na ADPF 347, em que se reconheceu a absoluta falência do sistema
prisional.
Após, foram identificadas e abordadas as principais causas da
inefetividade no meio ambiente carcerário nacional: a superlotação, a

54HESPANHOL, Cibelih. Prisões suecas: aqui se reabilitam seres humanos. Outras palavras,
São Paulo, 8 jan. 2014. Internet.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 231


violência e a assistência sanitária insuficiente. Nesse sentido, a população
carcerária no Brasil representa a quarta maior do mundo, o que demonstra a
gravidade da superlotação no país. A violência, por sua vez, foi asseverada,
por exemplo, por meio de várias notícias que são veiculadas nos meios de
comunicação, em relatórios de organizações não governamentais. Quanto à
ineficácia da assistência sanitária, restou identificada por meio de dados como
os do CNJ que, inclusive, tem promovido iniciativas em busca de soluções para
o sistema prisional brasileiro como o programa “saúde prisional”.
Para resolução desses problemas, foram apresentadas propostas tais
como a construção de presídios sob o modelo de PPPs, APACs e celas
individuais. Na ocasião, foram abordados, inclusive, os exemplos bem-
sucedidos ocorridos na Suécia e na Noruega, em que a taxa de reincidência
dos presos é extremamente baixa, sendo que alguns presídios foram
fechados, tal o nível de humanização da política de execução penal ocorrida
nesses países nórdicos.
É necessário ressaltar, além disso, a tendência mundial para que sejam
adotadas, prioritariamente, medidas alternativas à pena privativa de
liberdade, de maneira que a prisão constitua medida excepcionalíssima.
Por fim, conclui-se que as propostas de soluções apresentadas são
viáveis e suficientes para que se obtenha a eficácia da polícia sanitária no
meio ambiente carcerário brasileiro e uma cultura de paz no sistema
prisional, sendo relevante destacar, ainda, que algumas propostas como as
APACs e os presídios no modelo de PPPs já estão sendo gradualmente
implementadas no Brasil.
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SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO
MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS
INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente
de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e
cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e
orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como “estado de
coisas inconstitucional”. Rel. Min. Marco Aurélio, Brasília, 09 set. 2015. Diário de Justiça da
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Ética, direitos humanos e meio ambiente 235


13
Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino:
visões de ética, direito e política medieval

Mateus Salvadori*
Gabriel Guilherme Frigo**

Introdução

O presente estudo fundamenta-se no pensamento ético e político de


dois importantes pensadores medievais, a saber, Agostinho de Hipona e
Tomás de Aquino. A escolha destes pensadores não quer colocá-los em
oposição, nem contrapor suas teorias. Nessa perspectiva, não nos deteremos
na análise, no estrito senso, das suas divergências e convergências teóricas.
Por outro lado, da mesma maneira, não pretendemos verificar os pontos de
influência de um em outro, no caso do primeiro no segundo; entrementes,
pretendemos apresentar suas conjecturas.
Antes disso, restringir-nos-emos em abordar o pensamento ético do
hiponense e o pensamento político do aquinate. Nesta abordagem,
trataremos da ética agostiniana como sendo um pensamento ético que tem
em vista a felicidade ultraterrena, isto é, a beatitude. Esta só conseguimos
alcançar – após a morte, na vida futura – se vivermos virtuosamente nesta
vida, uma vez que consiste na contemplação do próprio Deus, fonte de toda a
felicidade.
A política tomasiana, da mesma maneia, tem como fim último a
contemplatio facis Deo, id est, a beatitude. Contudo, para o aquinate, a política
não possui somente um fim último; todavia, possui um fim próximo que é, a
saber, o bem comum. Destarte, para alcançarmos o fim último temos que
buscar, nesta vida, o bem comum. Isto é, tratar de política é tratar das
relações do “outro” com o “eu”, e do “eu” com o “outro”. Sendo assim, não há
vida política entre os seres que não estabelecem relações. Donde, para Santo
* Graduado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (2005). Mestrado em Filosofia

pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010) e doutorado em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente é graduando
em Direito (2012) e professor de Filosofia na Universidade de Caxias do Sul.
** Graduando do curso de Filosofia, na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail:

gabrielfrigo@live.com.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 236


Tomás, a vida política do cidadão na Civitas é fruto das relações, na medida
do possível, eqüidistantes, que buscam suprir falhas e necessidades.

Agostinho: ética da felicidade ultraterrena

O escopo desta parte do texto consiste em analisar a moral na visão


agostiniana. Sabendo que a moral medieval encontra-se na relação individual
e comunitária de cada um com Deus, é notório que Santo Agostinho orienta
sua reflexão buscando afastar-se dos prazeres sensíveis, das paixões e
daquilo que pertence ao mundo natural – que afasta-nos de Deus – para,
assim, guiar-se com as verdades eternas e imutáveis que radicam, em última
instância, em Deus. O homem, segundo o bispo de Hipona, deve agir pelo
desejo da felicidade ultraterrena e não a terrestre, ou seja, de sua união com
Deus após a morte. Esta é a base em que ele irá erigir toda a sua reflexão
acerca da moral.

Livre-arbítrio e mal
O fato de o livre-arbítrio existir, incontestavelmente, é um bem. O
grande debate, porém, em torno dessa questão é a forma como o homem o
utiliza: ou para o bem, ou para o mal. O autor assinala que, se alguém usar o
livre-arbítrio para pecar cai sobre si o castigo, da parte de Deus.1 Em toda a
sua filosofia, Agostinho defende a superioridade da alma sobre o corpo. A
alma foi criada por Deus para orientar o corpo à prática do bem. Não
obstante, devido à existência do livre-arbítrio, o ser humano que utiliza-o mal
conduz a submissão da alma ao corpo.
O único caminho do perdão, para o pecador, é através da graça divina
que o reconcilia consigo, uma vez que a desigualdade entre Criador e criatura
é imensurável e só o Criador pode salvar/reconciliar a criatura. Todavia, nem
todas as pessoas são dignas de receber a graça, mas somente aquelas que se
colocam no caminho da salvação, isto é, aquelas que buscam a salvação – não
como um troféu; todavia, por amarem o Amor, id est, amarem a Deus.
Agostinho acreditava que o homem, depois do pecado original, foi

1AGOSTINHO. O livre arbítrio. 2. ed. Trad. do original latino com introdução e notas por
Antônio Soares Pinheiro. Braga: Editorial Franciscana Montariol, 1990. p. 79.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 237


amaldiçoado com a morte. Mas Deus, em Jesus Cristo, reconciliou a
humanidade consigo. E Deus, de forma a priori, portanto, já sabe quais serão
salvos da condenação eterna. Desta forma, devemos levar uma vida de
maneira a buscar a salvação, não excluindo a possibilidade de não queremos
a salvação, de negarmos a Deus. Para Agostinho, o ser humano, por possuir o
livre-arbítrio, tem a possibilidade de escolher não reconciliar-se com Deus.
Só que Deus já tem conhecimento prévio de todas as nossas
possibilidades, antes mesmo de as vivermos. Logo, tudo é conhecido por
Deus, o que não significa que Este nos tolhe o livre-arbítrio; ao contrário<
deixa-nos a escolha de todas as possibilidades. Nas palavras do bispo de
Hipona, “Deus é presciente, ou seja, prevê todas as coisas futuras, e nós de
modo nenhum pecaremos por instrição. Quem dissesse que um fato poderia
acontecer de modo diferente do que infalivelmente previra antes, tentaria
destruir a presciência divina, com a mais insensata piedade”.2
Como podemos pecar, questiona Agostinho, por vontade e não por
instrição, sendo Deus presciente de todos os acontecimentos futuros?3 Sem a
vontade livre, o homem não poderia agir virtuosamente. Como fazer o bem a
outrem se já estamos de maneira a priori direcionados para agir de tal forma?
Assim, para Agostinho, se o homem fosse privado do livre-arbítrio da
vontade, não poderia existir a bondade, com a qual a mesma justiça se
enaltece, ao condenar os pecados e a dignificar as boas ações.4 O ato da
vontade está em nosso poder.
Compreende-se que Deus é onisciente, portanto tem conhecimento de
tudo o que foi feito, do que é feito e do que será feito. Entrementes não
significa que Ele intervém diretamente nas ações particulares do ser humano.
Sendo assim, Deus deixa que o ser humano aja segundo sua própria
deliberação. Logo, mesmo conhecendo previamente as nossas volições
futuras, não se conclui daí que se queira alguma coisa sem ser por vontade
livre. Quando o homem vier a ser venturoso, não o será contra a vontade, mas
sim querendo-o livremente. Contudo, a nossa vontade, estando em nosso
poder, é livre para nós, pois não seria livre se não estivesse em nosso poder.

2 Ibidem, p. 69.
3 Ibidem, p. 172.
4 Ibidem, p. 80.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 238


Donde se segue que Deus é presciente de todos os acontecimentos futuros e
que, apesar disso, nós queremos aquilo que queremos sem que, de alguma
forma, seja tolhido o nosso consentimento. Segundo o bispo de Hipona:

Todo o ser racional, dotado desde a origem com o livre arbítrio da


vontade, se se mantém na fruição do bem supremo e imutável, sem
dúvida que merece louvor; e todo o ser racional que se esforça por lá se
manter, também este merece louvor. Pelo contrário, o que não se
mantém nessa fruição, e não quer fazer por não se manter, merece
censura enquanto aí não se encontra, e enquanto não faz por aí se
encontrar.5

Já as ações causadas por ignorância, isto é, sem o uso da razão, não são
consideradas, propriamente, pecados;, todavia, devem ser consideradas
objetos de correção. São também merecedores de improvação os atos
praticados inevitavelmente, quando o homem quer proceder bem e não pode,
não consegue, ou ainda é impedido. “Para toda alma que peca são punitivos
estes dois fatores, a ignorância e a penosidade. Por efeito da ignorância, a
alma é rebaixada pelo erro; por efeito da penosidade, é atormentada pelo
sofrimento”.6
Deus criou o homem bom e dotado de liberdade; contudo, além de
mostrar a sua bondade teve que mostrar a sua justiça punindo-o – quando
usou, o homem, a sua liberdade para ações más –, e a sua misericórdia
salvando-o. Os que pecam deveriam bater na porta da misericórdia de Deus.7
Não há dúvida de que o agir reto desenvolve-se na aproximação de Deus e
também que é unicamente através do livre-arbítrio que temos a condição de
possibilidade para pecarmos ou não pecarmos. É por ele que escolhemos
entre ações moralmente boas, o inversamente, ações moralmente más.
Assim:

Visto que ninguém é superior às leis do Criador, não é permitido à alma


deixar de restituir aquilo de que é devedora. Ou, pois, restitui bem
daquilo que recebeu, ou restitui perdendo aquilo de que não quis usar
bem. Logo, não restitui praticando a justiça, restituirá padecendo o
infortúnio, pois num e outro caso se faz ouvir essa palavra – dívida.

5 Ibidem, p. 215.
6 Ibidem, p. 233.
7 Ibidem, p. 170.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 239


Realmente, o que se disse poderia ser expresso desta maneira: se não
restituir fazendo o que deve, restituirá padecendo o que deve.8

A vontade livre – dada por Deus – é um bem,9 pois ela é condição de


moralidade. Portanto, se, porventura, o agir humano não fosse livre, ninguém
poderia puni-lo ou aprová-lo. Somente onde há a liberdade é que se pode
falar de bem ou de mal. Para Agostinho, pecar é quando nosso espírito
abandona os bens superiores e dirige-se aos inferiores10 de forma
desordenada. Nenhuma outra realidade, a não ser o livre-arbítrio, torna a
mente escrava da iniância.11
A reflexão a respeito do mal sempre ocupou Agostinho. Ele parte de
uma certeza: a causa do mal não é Deus, pois “de Deus procedem todas as
coisas existentes, e que, apesar disso, Deus não é autor do mal”.12 Donde
resulta que Deus não é o autor do mal porque é o Sumo Bem, isto é, é o Bem
por excelência. E do Bem só pode provir o bem e a bondade. Nessa
perspectiva, tudo que é criado por Àquele que é Bom deve ser criado bom.
Disso deduz-se que a causa do mal não provém de Deus, mas da própria
criatura, que foi criada essencialmente boa; contudo, que perverteu-se
querendo o que afastou-a de seu Criador. O mal permanece, contudo, sempre
sendo um mistério. E, deste modo, é forçoso que nunca cheguemos,
propriamente, a uma definição precisa, ou a uma plena “desvelação” de tal
mistério.
E, afinal, o que significa proceder mal? Será que são aqueles atos, pura e
simplesmente, que a lei proíbe? Então, se isso fosse verdadeiro, diz
Agostinho, os Apóstolos e os mártires foram condenados – por uma lei posta,
positivada – por praticarem atos moralmente maus? Sabemos que foram
condenados por serem seguidores de Jesus Cristo. Assim, pois, “se tudo o que
é condenado é mau, seria mau, no tempo de Jesus Cristo, crer e professar a
própria fé” em Cristo.13 Todavia, todos os atos maus não são maus por outra
razão, que não seja a de serem praticados por paixão, isto é, por condenável

8 Ibidem, p. 224.
9 Ibidem, p. 163.
10 Ibidem, p. 167.
11 Ibidem, p. 53.
12 Ibidem, p. 24.
13 Ibidem, p. 28.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 240


iniância. Salienta o bispo de Hipona, que “a iniância ou lascívia consiste no
amor das coisas que cada um pode perder contra a vontade”.14
Exemplificando:
Não será então justa a lei que dá autorização ao viandante de matar o
ladrão, para não ser matado por ele; ou a qualquer homem ou mulher,
antes de sofrer estupro, de infligir a morte, se puder, ao estuprador que
violentamente se lança para eles? Ora, ao soldado até por lei está
mandado que mate o inimigo, e se se abstém dessa morte, recebe o
castigo de quem comanda. Ousaremos, porventura, dizer que tais leis são
injustas, ou antes, nulas?15

Para Agostinho, se a lei não for justa, ela não é moralmente aceitável. As
leis que se promulgam para governar a sociedade civil permitem e deixam
impunes muitos atos que, todavia, serão julgados, posterioremente, pela
Providência divina. Dessa maneira, fica claro que o objetivo último de nosso
querer deve ser o próprio Deus. O mestre do Ocidente destaca que há dois
tipos de lei: a temporânea e a eterna. A temporânea é a lei que, embora justa,
pode legitimamente ser mudada ao longo do tempo. Já a lei eterna, à qual se
deve sempre obedecer, é a razão pela qual os bons merecem a vida venturosa
– beata vita – e os maus, a infortunada. “Sobre a lei temporânea, só é justo e
legítimo o que os homens para si tenham feito derivar da lei eterna”.16 O
autor é claro ao ressaltar que a causa do mal é a criatura. Portanto, percebe-
se que a lei temporânea, ou, como contemporaneamente chamamos de
positiva, é/deve ser uma participação na lei eterna, para que seja justa, uma
vez que aquela não deve negar nem contradizer esta, entrementes, em última
instância, deve afirmá-la. Segundo suas palavras:
A alma, deleitando-se com seu próprio poder, resvala do bem universal
para o seu interesse particular. A culpa é do orgulho que ama as divisões.
Soberba essa denominada início do pecado. Com efeito, se a alma
seguisse a Deus como governador da criatura, suas leis divinas poderiam
governá-la com sabedoria. Mas ela, desejando mais do que o universo,
quis submeter o mundo às suas leis particulares. E assim, ao ambicionar
muito, diminuiu-se. Por isso, se diz que a avareza é a raiz de todos os
males. Tudo o que o orgulho pretende fazer, levado pelo seu próprio

14 Ibidem, p. 32.
15 Ibidem, p. 33.
16 Ibidem, p. 40.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 241


interesse é contra as leis que governam o mundo, e é feito por meio do
corpo.17

Observa, ainda, que não podemos nos deixar manipular pelos bens inferiores,
mas visar, apenas, os que nos levam a Deus. Assim, destaca que
o ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotadas dum certo
atrativo. A vida neste mundo seduz por causa duma certa medida de
beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as
formosuras da vida terrena. Por isso, comete-se o pecado, porque pela
propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se
abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à
vossa verdade e à vossa lei.18

O santo de Hipona não chega a negar, propriamente, este mundo (das


coisas empíricas), uma vez que os bens deste mundo continuam sendo bens.
Todavia, bens inferiores se comparados os bens celestes. Há, entretanto, no
ser humano uma tendência em escolher os bens inferiores. Contudo, o ser
humano deve esforçar-se, usando-se de suas inteligência e vontade, para a
busca dos bens superiores, isto é, deve esforçar-se para buscar a Deus, o
Sumo Bem.
Agostinho é claro ao afirmar que através da instrução (que é um bem),
as coisas más jamais podem ser aprendidas como boas. Praticar um mal é
afastar-se da instrução. “Todo aquele que aprende usa da inteligência, e todo
aquele que usa da inteligência procede bem”.19 Pelo fato de Deus ter criado
somente o bem, o mal é uma ausência de Deus. Dessa forma, o mal não teria
existência autônoma, mas simplesmente seria algo que não é. O mal surge
com a desobediência do ser humano. A boa vontade, então, é a obediência de
Deus, e a má vontade é a ausência de Deus.

Boa vontade e caridade


A pessoa que possui boa vontade se rodeia de amor. Nas palavras de
Agostinho, “quem ama a sua boa vontade resiste de todos os modos e opõe-se
às iniâncias, dando-se-lhe justamente por essa razão o nome de

17 Idem, 1995, p. 379.


18 AGOSTINHO. Confissões. Trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e de Ambrósio de Pina, S.J. São
Paulo: Abril, 1973. p. 49.
19 Agostinho, op. cit., 1990, p. 23.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 242


temperante”20 e, também, a ninguém causará dano. Deste modo, a justiça
também não faltará a esta pessoa. Por conseguinte, “a vida venturosa é a que
não é infortunada”.21 Se amamos a boa vontade habitarão em nosso espírito
quatro virtudes – prudência, fortaleza, temperança, justiça –, cuja posse é o
mesmo que viver reta e dignamente. A alegria que nasce na consecução do
bem, quando ela sem agitação, serena e inalteravelmente eleva o espírito,
chama-se vida venturosa.22 Para Agostinho, os que são venturosos e que têm
de ser igualmente bons, não são venturosos por terem querido viver
venturosamente, porque isso querem-no também os maus, mas por terem
querido viver com retidão – sendo justos –, o que os maus não querem. Os
homens maus não querem, desta maneira, ser justos.
A sapiência consiste no conhecimento das supremas leis da moralidade,
unido ao perfeito exercício do conjunto das virtudes. Já a insciência, que é o
oposto da sapiência, caracteriza-se pela ignorância e falta de princípios
morais. Deve ser grande e justo o castigo contra aquele que, já colocado nas
alturas da sapiência, resolve escravizar-se à iniância. Desta forma, boa
vontade é “a vontade com que pretendemos viver reta e dignamente, e chegar
a mais alta sapiência”.23 Ainda, “ninguém é venturoso sem a sapiência”.24 Por
isso, “devemos aplicar-nos ao estudo da sapiência, e conceder que isto é uma
verdade.”25
Aquele que põe o seu amor em viver com retidão acaba amando algo
eterno e imutável, não amando o que é mutável e temporâneo, uma vez que a
retidão nos conduz à escolha certa, e por certo tomamos o que é, por si só,
bom. Nesta perspectiva, o eterno e o imutável são preferíveis ao temporâneo
e ao mutável – estes são imperfeitos, aqueles são perfeitos. Já os que amam a
má vontade acabam amando as riquezas, as honras, os prazeres, a beleza do
corpo e a todos os restantes bens inferiores. Os que são venturosos, pelo
amor dos bens eternos, atuam sob a lei eterna – amando os bens superiores;
em contraposição, sobre os infortunados age a lei temporânea. “Ordena,

20 Ibidem, p. 61.
21 Ibidem, p. 62.
22 Ibidem, p. 64.
23 Ibidem, p 56.
24 Ibidem, p. 117.
25 Ibidem, p. 121.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 243


portanto, a lei eterna que o amor seja desviado das coisas temporâneas, e que
o mesmo, purificado, seja dirigido para as coisas eternas”.26 Contudo,
sabemos que existem dois tipos de homens: os que seguem os bens eternos e
os que seguem (somente) os bens passageiros. Porém, depende da vontade o
que cada um escolhe para assumir. A reta vontade escolherá, guiada pela
razão, os bens mais elevados, por outro lado, a vontade pervertida escolherá,
guiada pelo desejo irracional, os bens inferiores. “Todos os pecados estão
incluídos em afastar alguém das realidades divinas e verdadeiramente
estáveis, voltando-se para as mutáveis e incertas.”27
Através da mente e da razão, cada um deve buscar uma vida venturosa:
o íntegro é melhor que o deformado; o eterno, que o venturoso. “O que se
designa como separação da verdade e da sapiência não é mais do que a
vontade pervertida, com que se ama os bens inferiores.”28 Por conseguinte:

Quantos aos que, em vez de ti, amam as obras que tu realizas,


assemelham-se aos homens que ao ouvir em algum sapiente de notável
eloquência, escutando com excessiva avidez a suavidade da sua voz e a
disposição das sílabas, devidamente colocadas, perdem de vista a
primazia dos pensamentos, de que essas palavras tinham vibrado como
sinais.29

A natureza do corpo é inferior a do espírito. A vontade livre, sem a qual


ninguém pode viver com retidão, é um bem, e divinamente concedido, e que
se deve condenar os que usam mal este bem. As virtudes, com as quais se
vive honestamente, são grandes bens; as perfeições de quaisquer corpos, sem
as quais se pode viver honestamente, são bens ínfimos; por sua vez, as
potencialidades do espírito, sem as quais não se pode viver honestamente,
são bens médios. Nenhum corpo é capaz de vencer um espírito dotado de
virtude. Contudo, se há alguma coisa mais nobre do que a mente racional e
sapiente, para Agostinho, isso só pode ser Deus.30 Nessa perspectiva, o
desejo/anseio de conhecer só é inferior ao desejo/anseio de conhecer o
próprio Deus, que é, para Agostinho, a Suma Verdade. E, portanto, o

26 Ibidem, p. 68.
27 Ibidem, p. 72.
28 Ibidem, p. 135.
29 Ibidem, p. 144.
30 Ibidem, p. 52.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 244


conhecimento mais elevado que podemos almejar, entrementes, ao mesmo
tempo, que nunca poderemos alcançar.
O caminho, mais seguro, que nos leva a Deus é a caridade. Assim, ela
consiste, como que, num peso interior que atrai a alma para Deus. Para
Agostinho, “a lei de Cristo é a caridade”.31 A Escritura Divina busca estimular
os sentimentos dos simples, como que passo a passo, à procura das coisas
superiores, no abandono das inferiores.
Na obra De Trinitate (Sobre a Trindade), Agostinho lembra que Deus,
para se oferecer como modelo de retorno ao homem decaído, esvaziou-se de
si mesmo, não alterando a sua divindade, mas assumindo a nossa
humanidade. E isto, Deus, que não precisava fazê-lo, fê-lo por amor ao ser
humano. “Quando se afirma que o homem é justo, afirma-se a respeito da
alma e não do corpo. A justiça da alma é certa formosura que faz as pessoas
parecerem belas, ainda que os corpos sejam por vezes disformes e
aleijados”.32 O verdadeiro amor é aderir à verdade, para viver na justiça.
Contudo, deve-se desprezar as coisas mortais por amor aos outros, amor que
nos faça desejar que eles vivam na justiça. Desse modo, “poderemos estar
dispostos a morrer quando necessário pelos irmãos, como o Senhor Jesus
Cristo nos ensinou com seu exemplo”.33 Segue-se, desta maneira, que aquele
que quer conhecer, em última análise, Deus, deve ter presente que, em
primeiro lugar, deve amar seus semelhantes, para assim, amar o seu Criador.
Vendo a Trindade, vê-se a caridade, id est, onde há realmente caridade
(amor) está presente a Trindade. A máxima “Deus é amor” está na base de
toda especulação de Agostinho sobre a Trindade, uma vez que resume aquilo
que é a essência de Deus. Dizendo de outra forma: é a prática do amor que
abre o verdadeiro acesso ao mistério da Trindade. E revela-se, destarte, a
admirável e feliz combinação lograda por Agostinho, entre a especulação
mais ousada e a piedade mais profunda. Ele nunca perdia de vista o aspecto
do mistério vivido na história, nas experiências humanas e na especulação. “O
que é o amor ou a caridade, tão louvada e exaltada pela Escritura, senão o

31 AGOSTINHO. A Trindade. Trad. do original latino e introd. de Agustinho Belmonte. Revisão


e notas complementares de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994. p. 30.
32 Ibidem, p. 273.
33 Ibidem, p. 277.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 245


amor do Bem?”34 Assim sendo, será considerada a intenção “[...] reta somente
quando procede da fé. Pois é a fé declarada que, de certo modo, inicia o
conhecimento”.35
O amor dirigido ao Criador não é concupiscência, mas caridade. Haverá
concupiscência ao se amar a criatura pela criatura, excluindo o Criador. Na
visão agostiniana, “ser intemperante é um vício condenável pela moral”.36
Prossegue dizendo:
Quando conhecemos a Deus, embora nos tornemos melhores do que
éramos antes de o conhecer, principalmente se esse conhecimento nos é
agradável e provoca o amor que lhe é devido, é um verbo e torna-se uma
semelhança de Deus. Entretanto, é uma semelhança inferior a Deus, pois
a alma é criatura e Deus, Criador.37

Agostinho ensina que o homem deve purificar a mente pela fé, abster-se
cada dia mais de pecar e orar com as lamentações dos santos desejos. “A Deus
devemos render, em todo tempo, nossos louvores e bendizê-lo, sem que haja
palavra alguma capaz de dá-lo a conhecer. Tenho muita consciência não só da
minha boa vontade, mas também de minha fraqueza.”38 Diz ainda que Deus se
irrita contra os maus e é amável com os bons. “A luz incomoda os olhos
doentios, mas é agradável aos sãos.”39 Assim, é proeminente para o homem
aderir a Deus, já que ele reprova todo aquele que dele se afasta.
Fica notório, nas suas obras, a importância de amar a Deus com todo o
nosso coração, com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e amar ao
próximo como a nós mesmos. Porém, o homem segue pecando e afastando-se
de Deus, exatamente por causa da sua condição humana que tende, muitas
vezes, por ser imperfeita, a bens inferiores, uma vez que a natureza humana
foi marcada pelo pecado original. Diz ainda:
É pela piedade humilde que se vai até Vós, purificando os nossos maus
hábitos. Por causa dela, mostrai-Vos indulgente para com os pecados
daqueles que os confessam e ouvi os gemidos dos cativos carregados de
ferros. Desse modo, soltai-nos dos grilhões por nós mesmos preparados,

34 Ibidem, p. 284.
35 Ibidem, p. 286.
36 Ibidem, p. 303.
37 Ibidem, p. 304.
38 Ibidem, p. 191.
39 Ibidem, p. 213.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 246


contando que jamais ergamos contra Vós os chifres duma falsa liberdade,
cobiçosos de possuir mais haveres, com risco de tudo perdermos
prejudicialmente, se amarmos mais o nosso egoísmo do que a Vós,
soberano Bem.40

Felicidade e iluminação
O desejo universal da felicidade é doutrina de capital importância em
Agostinho. Fundamentando nela toda a moral, volta a essa temática em
diversas de suas obras. Cícero e Sêneca, que exerceram tanta influência sobre
ele, já haviam abordado essa questão de maneiras variadas. Nem todos
conhecem a felicidade, salienta Agostinho, uma vez que a felicidade última
consiste em amar a Deus, e há os que não desejam amá-Lo. Por isso, há muita
variedade acerca do que é felicidade. Assim, diz ele que “se a felicidade é
gozar dos prazeres do corpo, é feliz quem deles goza; se reside nos bens da
alma, é feliz quem os possui; se em ambos, é feliz quem deles desfruta”.41
São infelizes os que não têm o que desejam ou, então, se o têm, essas
coisas são culposas. Portanto, não é feliz, senão aquele que possui tudo o que
quer e nada quer que seja mal. Bela e profunda definição agostiniana da vida
feliz. Aí estão as duas condições para uma vida feliz: possuir todo o bem
desejado e também ser, na verdade, algo de muito justo. Destaca que:
A fé é imprescindível nesta vida mortal, tão cheia de erros e tribulações.
É impossível encontrar bens, principalmente os que tornam os homens
bons e felizes, se não vierem de Deus para o homem e não aproximarem
o homem de seu Deus. Quando, porém, aquele que permanece bom e fiel
em meio às misérias desta vida, chegar à vida bem-aventurada, então
acontecerá o que agora não é possível de forma alguma, ou seja, o
homem viver como quer. Pois naquela felicidade, nada quererá de mal ou
nada desejará que lhe falte ou não faltará nada do que desejar. Tudo o
que amar estará lá presente e não desejará nada que esteja ausente.
Tudo o que ali existir será bom e o Deus supremo será o supremo Bem, e
ali estará para gozo de todos os que o amam. E eis o que será o maior
grau de felicidade: estará certo de que será assim por toda a
eternidade.42

Na doutrina agostiniana, a fórmula grega de desejo universal da raça


humana de ser feliz recebe um novo sentido: o desejo natural de beatitude.

40 Op. cit., 1973, p. 66.


41 Op. cit., 1995, p. 403.
42 Ibidem, p. 407.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 247


Deus confere ao ser humano uma inclinação natural para buscá-Lo e amá-Lo.
Contudo, o ser humano pode não fazê-lo negando seu Criador. “Se a
imortalidade não fosse um dom outorgado à criatura humana, ela não
procuraria a felicidade, pois sem a imortalidade não existe felicidade.”43 Em
outras palavras, todos desejamos/queremos a felicidade; todavia, como
supracitado, há bens inferiores e bens superiores. Os bens inferiores não dão
uma felicidade passageira, isto é, uma felicidade efêmera; por outro lado, os
bens superiores nos dão uma felicidade superior. E Deus o Sumo Bem é a
causa da beatitude, que é a máxima felicidade para o gênero humano, uma
vez que constitui-se como a contemplação do próprio Deus.
Não há dúvida de que todas as pessoas desejam ser felizes. Se o desejam
de fato, consequentemente, devem desejar também ser próximas d’Aquele
que é a felicidade, pois de outro modo não poderiam ser felizes. “Ninguém é
feliz se deseja alguma coisa que não pode possuir.”44 Não obstante, “só
podem ser felizes tendo a vida, e assim, não podem querer que pereça a vida.
Logo, querem ser imortais todos aqueles que são felizes ou desejam sê-lo”.45
E só o serem na presença de Deus. Salienta ainda:
É próprio de todos os homens quererem ser felizes, mas nem todos
possuem a fé para chegar à felicidade pela purificação do coração.
Acontece, entretanto, que esse caminho que nem todos desejam é o
verdadeiro caminho para a felicidade, a qual ninguém pode alcançar se
não o quiser. Não obstante, há muitos que se desesperam de ser mortais
e sem isso ninguém pode ser feliz, apesar de o desejar. Contudo,
quereriam ser imortais, se o pudessem, mas não acreditando que o
possam, não vivem de maneira a poder sê-lo. Portanto, a fé é necessária
para se alcançar a felicidade em relação a todos os bens da natureza
humana, ou seja, em relação à alma e ao corpo.46

Observa-se claramente que o grande ensinamento de Agostinho é que


os pecadores, se desejarem possuir a verdadeira felicidade, devem voltar-se
para Deus. Devem reconciliar-se com Ele e, dessa forma, alcançarem a
felicidade eterna. Todos pertencemos à plenitude de Deus. Não obstante, o
único caminho para a verdade e para a felicidade é através do “Mediador

43 Ibidem, p. 409.
44 Ibidem, p. 410.
45 Ibidem, p. 411.
46 Ibidem, p. 433.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 248


entre Deus e os homens, Jesus Cristo”.47 A suma felicidade somente é
encontrada pela via que conduz a Deus. E continua:
Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas só àquele que
desinteressadamente Vos servem: essa alegria sois Vós. A vida feliz
consiste em nos alegrarmos em Vós, de Vós e por Vós. Eis a vida feliz, e
não há outra. Os que julgam que existe outra apegam-se a uma alegria
que não é a verdadeira. Contudo, a sua vontade jamais se afastará de
alguma imagem de alegria.48

Conclui-se, portanto, que a vida feliz é aquela que provém da verdade,


ou seja, de Deus. Agostinho cita continuamente a importância que Deus tem
em sua vida. “Quando estiver unido a Vós com todo o meu ser, em parte
nenhuma sentirei dor e trabalho. A minha vida será, então, verdadeiramente
viva, porque estará toda cheia de Vós”.49 Devemos ajudar ao próximo não
somente nas coisas fáceis, mas também nas difíceis. E ressalta:
Esteja acima de tudo presente a fidelidade à revelação, para não se
pensar nada de falso e indigno da natureza do Criador, pois é para Ele
que nos dirigimos pelo caminho da devotividade. Deste modo, se
admitirmos a seu respeito algo diferente do que Ele é, o nosso
pensamento nos levará a caminhar na direção não da felicidade, mas da
falsidade.50

Após toda a investigação realizada, é necessário formular o seguinte


questionamento: Onde estarão as regras que possibilitam ao injusto
reconhecer o que é justo, e, assim sendo, descobrir que deve possuir aquilo
que ele mesmo não possui? Como o próprio Agostinho diz: “Onde hão de
estar escritas senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro é
que se baseia toda lei justa que é transcrita e se transfere para o coração do
homem que pratica a justiça.”51
Entrementes, aquele que não pratica a justiça, apesar de saber que deve
praticá-la, afasta-se daquela luz, pela qual, no entanto, é iluminado. Quanto a
quem não sabe como viver, peca com atenuantes, porque não é transgressor
de uma lei que lhe seja conhecida. Mas também ele é atingido pelo resplendor
47 Op. cit., 1973, p. 143.
48 Ibidem, p. 211.
49 Ibidem, p. 214.
50 Op. cit., 1990, p. 242.
51 Op. cit., 1994, p. 469.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 249


da verdade, que está presente em toda a parte se, quando for admoestado,
confessar a sua culpa. Segundo o filósofo, nós nos achamos sob a ação de
verdades eternas. Elas estão, de certo modo, impressas na alma. Iluminam e
influenciam a quem for capaz e disposto a recebê-las. Essa é a doutrina da
iluminação, desenvolvida por Agostinho, Plotino e Porfírio. Mas o bispo de
Hipona deu um sentido cristão a tal doutrina.
As verdades eternas e imutáveis do mundo das ideias radicam em Deus,
que é a Verdade. E nós somos capazes de compreender essas verdades
necessárias e imutáveis, embora sejamos de natureza temporal, contingentes
e mutáveis. Isso somente em virtude de um contato com Deus, que ilumina a
mente disposta a ser esclarecida e vivificada. Tal possibilidade se refere
apenas ao conhecimento místico. Diz Agostinho:
Naquela Verdade eterna, segundo a qual todas as coisas temporais foram
feitas, é que contemplamos com olhar da mente a forma que serve de
modelo a nosso ser, e conforme à qual fazemos tudo o que realizamos em
nós ou nos corpos, quando agimos segundo a verdadeira e reta razão.52

Estamos na raiz da teoria da iluminação. Todo conhecimento é


necessariamente conhecimento das verdades eternas do Verbo. Assim, temos
em nós conhecimento verdadeiro das coisas. Em suma, devemos buscar a
Verdade que provém de Deus, e Ele irá iluminar nossa alma, para que assim
possamos ganhar o saber que está além do saber das coisas naturais.
Em última análise, este texto sobre alguns princípios do agir ético em
Santo Agostinho de Hipona, buscou refletir a respeito das seguintes questões:
Como pode existir o mal se tudo vem de Deus? Na filosofia agostiniana, vê-se
que o mal é uma privação do bem. A sua causa não é Deus, mas a criatura que
pelo pecado perverteu-se. Como poderia ser aquele que é a causa de todas as
coisas a causa também do não ser? Quando o homem se afasta de um bem
imutável e se volta para um bem particular, inferior pela paixão desordenada,
peca, e nisto consiste o mal. Fazemos o mal pelo livre-arbítrio da vontade. E a
liberdade é um bem? Sem dúvida, diz Agostinho. Ela é um bem porque é a
condição da moralidade, pois se a ação humana não fosse livre, não poderia
ser aprovada nem desaprovada; seria simplesmente ação humana, nem

52 Ibidem, p. 299.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 250


moralmente boa nem moralmente má. Só onde há liberdade é que se pode
falar de bem e de mal. Com a existência do livre-arbítrio – onde cada um faz
as suas escolhas –, o mal seria o afastamento de Deus, e o bem o tender para
Deus. Assim, o mal surge da desobediência do homem. Pela existência do
livre-arbítrio, o homem acaba pecando, ou, direcionando as suas ações para a
busca de Deus. Através do pecado, ocorre a submissão do espírito à matéria,
ou seja, do eterno ao transitório, da essência à aparência. Não obstante, a
verdadeira liberdade estaria na conciliação entre os atos humanos com a
vontade de Deus. Em linhas gerais, a moral visa manter a reta ordem em
direção ao Sumo Bem, a Suma Bondade, id est, Deus. O mal, por outro lado, é o
desvio desta ordem.

Tomás de Aquino: a política do bem comum

Sabemos da vastidão física da obra de Santo Tomás de Aquino, filósofo e


teólogo medieval do século XIII, e, da mesma forma, sabemos que é vasto o
seu conteúdo conjectural. Aqui, deter-nos-emos na sua visão política a
respeito do Estado, da lei e da justiça legal. Assim sendo, ao tratarmos do
pensamento político de Tomás de Aquino, optamos por trabalhar, em
especial, três conceitos que são, a saber, a Civitas enquanto Comunitatis
Perfectae, o télos da lei que se constitui como sendo o bonum comunis e, por
fim, a justiça legal (ou geral) que procede da lei e é, por causa dela, uma
ordenação ao bonum comunis.
Para desdobrarmos cada um dos conceitos, são necessárias algumas
questões orientadoras e delimitadoras. A primeira é: em que medida
podemos considerar a cidade uma comunidade perfeita? Isto é, sabemos que
um Estado, por mais bem administrado que seja e por mais honesto que seja
o seu dirigente, conterá imperfeiçoes. Então, será que podemos afirmar, como
o Aquinate, sem cair em contradição, que a Civitas é uma comunitatis
perfectae? Disto segue-se uma segunda questão sobre como garantir que, na
Civitas, na hipótese – mais que real – de que ela seja desviada do se télos,
busque, mesmo assim, torná-lo fatível? Por fim, uma última questão que se
coloca é acerca das relações humanas. Isto é, sabemos que nossas relações
não são, na sua maioria das vezes, entre iguais. Todavia, o máximo é que

Ética, direitos humanos e meio ambiente 251


sejam entre semelhantes. Assim, há disparidade nas relações. Donde a
questão que se coloca é sobre a virtude da justiça; destarte, questionamo-nos
sobre se também a justiça é concernente ao bem comum? Disto resulta a
divisão da justiça em justiça geral ou legal e justiça particular (desta ainda
temos uma segunda divisão em justiça distributiva e justiça comutativa). Para
efeitos de delimitação e objetivo do estudo, abordaremos justiça legal como
sendo, eminentemente, a justiça do bem comum e, dentro da justiça
particular, trabalharemos, com mais propriedade, com a justiça distributiva,
uma vez que esta concentra-se em distribuir os bens justamente.

Estado a comunidade perfeita


Em Tomás de Aquino pensar no, e o Estado é pensar, antes de tudo, na,
e a comunidade. Este conceito tem um lugar, como que, especial no
desenvolvimento do pensamento político do aquinate. A comunidade não é
simplesmente uma agregação de pessoas dispostas em um mesmo ambiente,
mas que estão alheias umas às outras, não estabelecendo vínculos e/ou
relações. Entrementes é, antes de tudo, uma agregação de pessoas que têm
um télos comum, a busca da felicidade (beatituto). Destarte, aqueles que
vivem em comunidade fazem com que a comunidade exista para um fim, que
é um fim comum. Tanto é que chega-se a afirmar que a Civitas é a
“Comunidade Perfeita” (Comunitatis Perfectae), na medida em que seus
membros compartilham o mesmo objetivo para alcançarem a felicidade.53
Para seguirmos no desenvolvimento desta tese, antes abordaremos o
surgimento do Estado (poderíamos dizer, a sua causa inicial) e o seu télos (a
sua causa final). Uma primeira elucidação sobre qual é a visão de Estado que
tem Santo Tomás nos é necessária, uma vez que ele não pensa o Estado como
sendo a Pólis grega apresentada para ele nas obras do Estagirita. Por outro
lado, Estado é essencialmente, para ele, um pequena sociedade, uma
comunidade nos moldes das comunidades de seu tempo. Como afirma Wulf:

Lo Stato di cui parla Tommaso (província, regnum) non nè la piccola città


greca di Aristotele nè la nazione solidamente organizzata, ma una forma

53 Tomás compreende que entre os diferentes pode haver diferentes concepções de bem

queridas pelo sujeito particular; contudo, todas devem tender, em última análise, para o
Sumo Bem, que é a suprema felicidade.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 252


politica che corresponde bene, pare, ai principati feudali del suo tempo:
ducati, contee, repubbliche municipali ed anche ai grandi regni europei
in via di formazione.54

O livro I da obra De regimine principum ad regem Cypri55 (Do governo


dos príncipes ao rei de Cipro), ou simplesmente De Regno (Sobre o reino),
inicia expondo a origem e a finalidade da cidade e da província.56 Para o
doutor Angélico a Civitas tem como fator inicial a sobrevivência humana, isto
é, a sua origem está no fato de que os seres humanos não subsistem
isoladamente, não têm capacidades suficientes para conseguirem viver fora
de uma congregação social. Sendo assim, não somos átomos sociais; todavia
somos seres de, e em relação que não conseguem, por incapacidades
naturais, viver sem a comunidade. O ser humano está e necessita estar em
constante relação com outros seres humanos, na medida em que cada um
exerce alguma função social que outro não poderia e/ou não conseguiria
exercê-la. O doutor de Aquino, afirma que “é necessário ao homem viver em
sociedade, para que um seja ajudado por outro e pesquisem nas diversas
matérias, a saber uns na medicina, outro nisto, aqueloutro noutra coisa”.57
Assim sendo, vivemos em sociedade por aquilo que conceituaremos,
neste trabalho, como “cooperação social”. Santo Tomás não se utiliza,
propriamente, de tal conceito. Todavia, nós, como leitores do século XXI de
sua obra, podemos associá-lo a este conceito, na medida em que não
perdemos o significado da proposta do autor, mas damos-lhe novas
categorias que foram pelo tempo aperfeiçoadas e aprofundadas. Portanto,
para fins de elucidação, quando afirmamos que vivemos em sociedade por
cooperação social, não estamos afirmando que há uma teoria contratualista
de maneira explícita (da mesma forma que nos filósofos modernos como
Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e, até mesmo, dos filósofos contemporâneos

54 WULF, Maurizio de. Storia dela filosofia medievale: nuova versione italiana dalla 6ª
edizione francese di Vincenzo Miano (tradutor para o italiano). Firenze: Libreria Editrice
Fiorentina, 1945. p. 162. v. II.
55 Para as referência a obra, De regimine principum ad regem Cypri, usaremos como sigla: R.

P., l. x, c. x. Lê-se De regimine principum, livro x, capítulo x.


56 Pela extensão do trabalho e pela nossa proposta, optamos por não aprofundarmos na

distinção tomasiana entre Família, Civitas e Província. Sendo assim, usaremos os conceitos
de Cidade e Província como equivalentes ao termo Estado.
57 R. P., l. I, c. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 253


como Gauthier, Rawls, Scanlon, entre outros) na sua obra. Todavia, há fatores
naturais que nos fazem viver e formar uma comunidade, e isto é inegável a
partir da leitura da obra De regimine principum. Contudo, por outro lado,
como afirma Wulf, pode-se pensar em um contrato na perspectiva de que: “Il
popolo delega la sua sovranità con una specie di contrato, esenzialmente
revocabile, sia ad una (monarca) sia a più persone che ‘governano a nome
dela comunità’.” (2ª 2ae, q. 90, a. 3).58 Isto é, Santo Tomás não parte de um
estado inicial, mesmo que hipotético, de atomismo social na natureza e que
pela reunião dos indivíduos cria-se um estado social. Entrementes, ele parte
do estado social já estabelecido e regride a uma hipótese de que, se não
houvesse este estado social, não subsistiríamos isoladamente. Quiçá
podemos afirmar que há um certo contrato entre os cidadãos da Civitas, pelo
uso de sua razão, na perspectiva de que, percebendo suas incapacidades
naturais, usam sua sociabilidade para formarem uma comunidade de mútua
cooperação, e na qual uns colaboram com os outros naquilo que lhes for
acessível, possível e factível.59
Se há, como sobredito, fatores naturais que nos fazem formar uma
comunidade, é porque há algo de natural nos que formam a comunidade que,
como que, faze-os constituí-la. No horizonte do pensamento aristotélico,
afirmar-se-á que o ser humano é um ser social e, por conseguinte, um ser
político. E, sendo político, será, necessariamente, da mesma forma, um ser
social. “É, todavia, o homem, por natureza, animal social e político, vivendo
em multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela
natural necessidade.”60 Portanto, o Estado – mesmo que constituído por
cooperação social devido às incapacidades de subsistência – só é formado por
uma necessidade, não artificial; no entanto, pelo contrário, natural. Desta
forma, o Estado é necessário para que o ser humano possa viver, mas não só

58 WULF, op. cit., p. 162.


59 “La collettività è dunque per il bene dei membri, e non il membro è subordinato al bene
dela società, anche perchè la collettività non è una sostanza dotata di unità interna e naturale
di constituziona ma una riunione di individui che mettono in comune le loro varie attività,
realizando in questo modo l’unitas ordinis. Ne segue che la società non può attentare ai diritti
che l’individuo há per la sua natura die essere ragionevole”. Ibidem, p. 160.
60 R. P., l. I, c. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 254


viver, mas para que possa viver bem e, sendo assim, buscar o seu fim que é, a
saber, a beatitude (contemplatio facis Deo).
Realmente, às mais animálias preparou a natureza o alimento, a
vestimenta dos pelos, a defesa, tal como os dentes, os chifres, as unhas
ou, pelo menos, a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado
sem a preparação de nada disso pela (própria) natureza, e, em lugar de
tudo, coube-lhe a razão, pela qual pudesse grangear, com as próprias
mãos, todas essas coisas para o que é insuficiente um homem só. Por cuja
causa, não poderia um só homem levar suficientemente a vida por si.
Logo, é natural ao homem viver em sociedade de muitos.61

Podemos, assim, concluir que o Estado surge por dois motivos basilares,
que são: 1º) a natureza limitada do ser humano, isto é, não somos
autossuficientes, por isso precisamos de outrem para podermos viver e
sobreviver; 2º) a natureza social e política do ser humano, que nada mais é
do que a condição de possibilidade de nos relacionarmos com o “outro” que é
semelhante ao “eu”, interagindo e relacionando-se, e, dessa maneira,
formando uma comunidade que tem princípios de vida compartilhados, isto
é, comuns. Esta comunidade não é tida como simplesmente a união de
pessoas, mas é, antes de tudo, a união de pessoas tendo por télos a felicidade,
por isso mesmo que é a comunidade perfeita (comunitatis perfectae).
Nessa perspectiva, será perfeita a comunidade que buscar alcançar o
seu télos, que é duplo, id est, a Civitas tem dois fins: o fim próximo (primeiro)
e o fim final (último). Donde resulta que ela pode conduzir o ser humano
tanto ao seu “fim próximo” que é o bonum communis, bem da comunidade,
quanto ao seu “fim último”, que é a contemplatio facis Deo, beatitude. Sendo
assim, resulta claro que o Estado não possui um fim em si mesmo; entretanto,
é imprescindível como auxiliador do ser humano que busca alcançar o seu
télos. O Estado não é dispensável, uma vez que sem ele não há uma plena – ou
o mais próximo disto – realização humana. E a realização humana, da mesma
forma, não pode se dar sem um Estado que conduza as relações humanas de
maneira justa e ordenada. O ser humano tomasiano não é um ser a parte da
realidade, nem um átomo social, mas é alguém que está integrado e deve
buscar viver com seus semelhantes de maneira a que todos tenham

61 R. P., l. I, c. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 255


condições de ter uma vida digna. Em outras palavras, uma vida boa com as
condições de dignidade, para que isso seja exequível. Nessa perspectiva,
afirma Lima que, para Santo Tomás, o Estado
[...] tem o dever de intervir na vida econômica precisamente no sentido
de evitar o desequilíbrio social provocado pela concentração da
economia nas mãos do Poder Público, nas mãos da oligarquia econômica.
As riquezas mal distribuídas levam às ditaduras [...]. A regulamentação
racional da distribuição equitativa dos bens é portanto uma função
essencial dos Estados. [...] embora justificando a intervenção dos poderes
públicos, coloca sempre o fator moral individual no sentido da
autoregulação das paixões individuais pela educação e pela
subordinação do bem próprio ao bem comum.62

No entanto, em que medida isso faz com que a Civitas seja a Comunitatis
Perfectae? O argumento que segue-se é de dois axiomas que afirmam: 1º) o
todo é mais perfeito que as partes; 2º) o que é imperfeito tende à perfeição.
Então, portanto, se a Civitas se ordenar ao Sumo Bem (na perspectiva do fim
último) e ao bem comum (na perspectiva do fim próximo), será mais perfeita
do que os indivíduos ordenarem-se individualmente ao seu télos. Se,
portanto, o todo ordenar-se ao comum será mais perfeito que as partes
ordenando-se ao individual, e nisto está a perfeição de uma Civitas, que é o
todo dos cidadãos que nela vivem. Destarte, a união em vista de um fim que é
comum será comparada à virtude, porque “a virtude unida é mais eficaz para
realizar o efeito, do que a dispersa ou dividida. Em verdade, muitos
simultaneamente congregados arrastam o que divididamente por partes não
poderia ser arrastado por cada um”.63
Sendo assim, será perfeita a comunidade que se ordenar ao bem comum
de seus membros. Contudo, parece-nos que não podemos chamar de perfeita
a Civitas (Estado), porque, por vezes, ela nem sempre se ordena ao bem
comum, mas, muitas vezes, os seus governantes optam por privilegiar seus
bens (privados). Assim, tal tese não passaria de uma utopia? Nossa resposta,
a partir do aquinate, é negativa. Santo Tomás sabia que o ser humano tem
inclinações egoísticas, sabia, consequentemente, que podemos preferir o

62 LIMA, Alceu Amoroso. Alguns princípios sociais tomistas. A Ordem: Tomás de Aquino. Rio
de Janeiro, v. 71, n. 1, p. 37, abr./jun. 1974.
63 R. P., l. I, c. III.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 256


privado ao invés do comum. E, por causa disso, alerta que, se houver um
Estado que não orientar ao bem comum será injusto, ou pior, será um Estado
tirânico.
Se, pois, a multidão é ordenada pelo governante ao fim dela, o regime
será reto e justo [...]. Se, contudo, o governo se ordenar, não ao bem
comum da multidão, mas ao bem privado do regente, será injusto e
perverso o governo. Daí, ameaçar o Senhor tais governadores, por
Ezequiel, XXXIV, 2, dizendo: Ai dos pastores que a si-mesmos se
apascentavam (como procurando os seus próprios interesses):
porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores? Em
verdade, devem os pastores buscar o bem do rebanho e todos os
governantes o bem da multidão a eles sujeita.64

Se, pois, for injusto o governo o será por desviar-se e perverter-se do


seu fim. Se isto lhe apetecer não o será, por conseguinte, uma comunidade
perfeita, mas uma comunidade imperfeita e injusta. A perversão elucubrada
por Tomás de Aquino consiste, justamente, na perversão do fim do Estado;
sendo assim, quando desvia-se do bem comum será perverso, por haver “per-
vertido” a sua via. E, da mesma maneira, será injusto porque vai contra a
justiça que visa, de igual maneira o comum, uma vez que a justiça diz respeito
ao outro, à alteridade. Contudo, se o governo buscar o seu fim, que é o bem
comum, será um governo justo e uma comunidade perfeita, poderíamos
afirmar que seria uma comunidade perfectível – que tende a perfeição, ou
que está em um processo de perfectibilidade –, uma vez que ela não é
estática, não está pronta, mas sempre sendo “construída” e “reconstruída”.
Logo, não há contradição na concepção de Tomás de Aquino, uma vez que a
dificuldade da realização da teoria na prática de um Estado particular não
implica, necessariamente, sua impossibilidade de realização prática da teoria.
Assim sendo, podemos conceber a Civitas como sendo, de fato, a Comunitatis
perfectae, na medida em que é a comunidade dos membros que buscam a
perfeição das partes pelo todo.
Ademais, a comunidade pode vir a ser perfeita, isto é, pode tornar-se
perfeita. Se a comunidade perfeita é a que se ordena ao bem comum,
podemos fazer com que um Estado que não se ordena ao bem comum venha
a ordenar-se, tornando-se, por conseguinte, uma comunidade perfeita. Isto

64 R. P., l. I, c. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 257


pode ser possível pela coerção imposta através da lei. Partindo deste
princípio, a lei, para Tomás de Aquino, vai reger as ações dos cidadãos e
governantes de um Estado, para que disponham-se ao bem comum. Assim,
deliberando sobre o fim, deliberamos sobre os meios para alcançar o fim.65 A
lex será, assim sendo, um meio para que se alcance o fim do Estado; e o
Estado (que não é um fim em si mesmo) será um meio para alcançar o fim de
seus membros, da multituto.
A lei é, portanto, necessária ao Estado. E, um Estado sem lei facilmente
tenderá à injustiça e à tirania e, pois, à anarquia. Mas uma comunidade
perfeita que tende ao seu fim, o bem comum, tem leis que a regulam e a
orientam, ordenadamente, seus membros e governantes para o bem comum.

Lei ordenação ao bem comum


Se o Estado é consequência, poderíamos dizer, da mútua cooperação
entre os homens, tendo em vista o bem comum, poderíamos, numa atitude
ingênua e até ilusória, supor que esta congregação humana irá,
automaticamente, destinar-se à mútua cooperação social. E tal suposição
estaria corretíssima numa obra político-utópica, ou num plano da razão pura
e especulativa – nas quais não há e/ou não deve haver nem contradição nem
contrariedade na formulação de uma teoria. Mas a realidade mostra-nos o
contraditório. É contraditório porque não é a totalidade que se opõe ao bem
comum, mas são fragmentos, parcelas – mesmo que estas parcelas sejam em
maior número daquelas que visam o bem comum. Logo, há alguns que não
colaboram com o télos da Civitas, entrementes nela continuam vivendo e
convivendo. Põe-se um problema, que é, a saber, como fazer para que a
Civitas e a sua população – incluindo os que são responsáveis por governá-la
– ordenem-se ao seu, já mencionado, télos.
Existem duas possíveis soluções. A primeira, que não aparece na obra
do Angélico, mas que podemos cogitar, seria expulsar/banir da Civitas os que
não colaboram com o bem comum, para que assim vivam por seu próprio
sustento fora da sociedade civil. Ficando, dessa maneira, na Civitas somente
os que buscam a vida boa de todos, isto é, o bem comum. A segunda

65 R. P., l. I, c. II.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 258


possibilidade, que é desenvolvida pelo aquinate na Summa theologiae, é a da
Lex. Esta tem como função ordenar as ações humanas em vista do bem
comum. A lei é, portanto, uma coerção que tem por fim conduzir o ser
humano ao fim do Estado que é, ao mesmo tempo, o seu fim – o fim da
própria lei.
Para esta hipótese, focar-nos-emos no desenvolvimento daquilo que
chamamos “tratado sobre a lei”, que se encontra na Summa theologiae, mais
especificamente na Prima secundae (Iª IIª) da Questão XC até a Questão CVIII.
Não pensemos que a posição de tais questões é um ato arbitrário do escritor,
ao contrário. Elas são trabalhadas neste ponto por fazerem parte de uma
concatenação conceitual do desenvolvimento da obra, da mesma forma que a
obra não acaba com estas questões, mas segue outras que destas dependem,
como elas dependeram de outras para poderem ser desenvolvidas. De modo
geral, para a melhor compreensão do que segue, a obra é dividida em três
grandes partes. A Prima Pars trata de Deus e da Criação. A Secunda Pars trata
do ser humano. A Tercia Pars trata da redenção humana por Cristo. Além, a
Secunda Pars divide-se em Prima Secundae e Secunda Secundae. A Prima
Secundae trata das ações humanas em geral – nesta parte encontra-se o
tratado sobre a lei. A Secunda Secundae trata das ações humanas em
particular – por exemplo, das virtudes.66
Como vimos o télos da Civitas é a orientação do homem ao bem comum,
que é o mais perfeito dos bens alcançáveis e que conduz, por isso mesmo, ao
Sumo Bem. Mas esse é como claramente sabemos o fim do Estado. Então,
para que a lei? Isto é, já temos a comunidade. Já sabemos que sozinhos, na
natureza, não subsistiríamos e, por isso, por cooperação social nos unimos
em sociedade e, consequentemente, essa sociedade deve visar o bem de seus
membros, o bem comum. Nessa perspectiva, parece-nos que a lei não tem
função alguma. Ademais, por que precisamos de leis num Estado que ordena-

66 Para maior aprofundamento, em língua portuguesa, da divisão da Summa theologiae ver:

NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Um mestre no ofício: Tomás de Aquino. São Paulo:
Paulus, 2011. (Coleção: Como ler filosofia). Esta obra introdutória ao pensamento do
aquinate é dividida em duas partes. A primeira é uma breve biografia e contextualização do
filósofo medieval. A segunda apresenta ao leitor a divisão e estruturação da Summa
theologiae, detalhando as partes, as questões, os artigos e dando-nos, inclusive, pistas de
leitura. Para aqueles que se decidirem “aventurar-se” no pensamento tomasiano é uma obra
muito oportuna para um primeiro contato com o aquinate.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 259


se ao bem comum? Contudo, a lei é, exatamente, uma instrução. É instrução
de algo para algo, de alguém para alguma coisa, de um modo de agir. É,
precisamente, buscando a essência da lei que Tomás de Aquino iniciará o seu
discurso sobre ela. O tratado sobre a lei divide-se no estudo acerca das
quatro leis: Lex aeterna (Lei eterna), Lex naturalis (Lei natural), Lex humana
(Lei humana) e Lex divina (Lei divina) – esta divide-se em Lex vetus (Antiga
lei) e Lex nova (Nova lei); referente, respectivamente, ao Antigo e Novo
Testamentos. Para melhor compreendermos este processo no qual estão
inseridos os “tipos” de lei, citamos Eric Voegelin:
A ratio divina é chamada de lex aeterna. Por meio do processo de criação,
a lex aeterna é impressa na natureza do homem; os ditames da razão que
vivem no homem são chamados de lex naturalis. Como o homem é
imperfeito, ele possui a lex aeterna apenas em seus princípios gerais; a
adaptação e a elaboração para as contingências da existência humana
pelo próprio homem produz a lex humana. Se o homem fosse apenas um
ser natural, que encontra a realização de sua existência no desempenho
terreno, essa instrução seria suficiente. Uma vez que ele, todavia, se
oriente para a beatitude espiritual transcendental, foram necessárias
revelações especiais da lei divina no Antigo e no Novo Testamentos, e
estes são chamados de lex divina.67

Deter-nos-emos neste estudo em aprofundar um ponto que é anterior à


citada divisão, a saber, sobre se, na essência da lei – isto é, aquilo que todas as
leis devem ter de comum e sem o qual não seriam propriamente leis, e não
em cada um dos quatro tipos de lei –, está a sua ordenação ao bem comum?
A primeira questão do tratado é, justamente, De essentia legis (sobre a
essência da lei) Iª IIª q. XC, e a segunda questão é De legum diversitate (sobre
a diversidade das leis) Iª IIª q. XCI. A ordem das questões não se dá pelo
acaso, antes disso, faz parte da estrutura que nos remete a uma forma de
pensar. Isto porque a De essentia legis é uma questão que procura dar-nos um
conceito de lei, que deverá ser aplicado para todas as quatro formulações de
lei.
Assim sendo, no final da sua análise sobre o que é a lei, o aquinate
chegará à definição de que a lei “não é mais do que uma ordenação da razão

67VOEGELIN, Eric. A Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Introd. à
edição americana Peter Von Sivers. Trad. de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É
Realizações, 2012. p. 260. v. II. (Coleção filosofia atual).

Ética, direitos humanos e meio ambiente 260


para o bem comum promulgada pelo chefe da comunidade”68 e/ou pela
comunidade.69 Destarte, definiu-se a lei em quatro elementos: 1º) a lei é
racional; 2º) o fim próximo da lei é o bem comum; 3º) a lei deve ser
promulgada; 4º) é a comunidade e/ou seu representante (no caso da Lex
aeterna é Deus) que pode criar e promulgar a lei, isto é, legislar. Desta
dimensão, da essência da lei, delimitar-nos-emos a fazer a análise apenas no
que tange ao segundo ponto, o fim próximo da lei que é a coerção dos
cidadãos ao bem da comunidade.
O télos da lex é, portanto, como supracitado, o bonum commune. Isto é, a
lei deve ter como fim o bem da comunidade. Uma lei que ordenar ao privado
será injusta, porque a justiça diz respeito a outrem. Se ela se ordenar para um
bem privado, não terá força de lei, uma vez que será injusta por desvia-se do
seu fim. A lei que não visar o bem da comunidade não está correspondendo
ao seu télos e, portanto, perdeu a sua finalidade e validade, enfim, o seu
propósito de lei. Afirma Voegelin que “uma regra que é despropositada, ou
que não se volta ao bem comum, simplesmente não é uma lei”.70
A necessidade de a lei se ordenar ao bem comum é de suma
importância para a nossa análise, uma vez que, como vimos, o fim próximo do
Estado também deve ser a ordenação da multituto ao bem comum. Portanto,
esta tese – da lei – não só reforça a tese de que a Civitas deve promover o bem
comum, como assegura o cumprimento da finalidade desta, porque a lei tem
força de coerção dos que a ela estão submetidos, no caso de estarem
submetidos à jurisdição de um Estado. Se há leis, estas só existem porque
servem para reger os que a elas estão submetidos. Aqueles que não têm lei
não estão sob a tutela de um governo e, portanto, de igual maneira, não fazem
parte do seu regime. Mas, como vimos, a Civitas existe por uma convenção
social. Esta convenção existe por causa da nossa frágil condição, assim sendo,
os que dela participam fazem-no porque necessitam, mas com liberdade de
não fazê-lo; contudo, terão que subsistir fora da sociedade por suas próprias
competências. E, num Estado de muitos, deve haver algo que os conduza

68 S. Th. Iª IIª q. XC, a. IV.


69 A promulgação e criação da lei não se refere somente à lei humana; refere-se também às
outras leis: eterna, natural e divina. Cada qual a seu modo.
70 VOEGELIN, op. cit., p. 261.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 261


ordenadamente, para que não haja caos e dispersão da finalidade. Por isso
temos as leis que assumem função de coerção social. Deste modo, os que
colocam-se sob a regência de um Estado, colocam-se, ao mesmo tempo, sob a
coerção das lei deste Estado. Por conseguinte, podemos enunciar que “a lei,
própria, primária e principalmente, diz respeito à ordem para o bem comum.
Ora, ordenar para o bem comum é próprio de todo o povo ou de quem
governa em lugar dele”.71 Fica claro como a própria lei, que deve ser
formulada pelos que formam um Estado e/ou pelo designando, pelos
membros do Estado, para formulá-la. Deste modo, a lei deve ter em vista o
bem comum para que não haja injustiça entre as partes pertencentes à
Civitas.
Desta forma, chegamos a uma conclusão: a lei é necessária para os que
habitam um Estado; é necessária porque é uma coerção da multituto para que
o télos do Estado seja buscado de forma ordenada e regrada, não sendo,
destarte, um Estado caótico. Nessa perspectiva, afirma o aquinate que “[...] a
parte ordenando-se para o todo, como o imperfeito para o perfeito; e sendo
cada homem parte da comunidade perfeita, necessária e propriamente, há de
a lei dizer respeito à ordem para a felicidade comum”.72 A ordem, entende
Tomás, existe onde há um princípio que tende a um fim. Se, pois, em
comunidade há como causa inicial, o bem comum será o princípio da
comunidade e a ordem será, justamente, a tendência ao bem comum.
Pode-se, pois, afirmar que a lei como ordenação da razão73 deve,
necessariamente, e não acidentalmente, visar o comum da comunidade.
Nessa perspectiva, o princípio movedor e ordenador da lei é o bem, e é ao
bem que a lei deve se ordenar como fim, uma vez que a lei pertence aos
princípios da razão prática, e esta tem como princípio geral de ação buscar o
bem e evitar o mal. Por conseguinte, se a lei diz respeito ao homem, no
sentido de que ela ordena o ser humano nas suas ações, deve ela ordená-lo ao
bem, fazendo com que, da mesma forma, evite o mal. Mas o homem que vive
em comunidade deve ter, como fim não o seu bem, de maneira egoística,

71 S. Th. Iª IIª q. XC, a. III.


72 S. Th. Iª IIª q. XC, a. II.
73 S. Th. Iª IIª q. XC, a. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 262


entrementes deve ordenar o seu bem ao comum. Afirma o aquinate que “o
bem de um homem não é o fim último, mas se ordena ao bem comum”.74
O aquinate atribuirá o predicado de justo à ordenação da razão ao bem
comum, que pode ser denominada por lei. Assim sendo, justa será a lei que
diz respeito ao bem comum. Portanto, também à justiça pertence o bem
comum. Logo, o justo legal só é justo porque procede da lei e visa o outro.
Para haver justiça, é necessário que haja o outro. Nessa perspectiva, só
compreenderemos a justiça na relação com outrem, isso significa que não
pode haver alguém justo, se este alguém não estiver em sociedade, id est, em
comunidade. Deste modo, a justiça coloca-se junto com a lei, no Estado, para
o bem das pessoas do próprio Estado, da Civitas. Lei e justiça não são, todavia,
conceitos isolados e separados; entrementes encontram-se em profunda
união para que o ser humano possa viver bem em comunidade.

Justiça legal, a justiça do bem comum


Como sobredito, justiça e lei estão em profunda relação, tendo como
télos o bem viver do ser humano. Já sabemos que não conseguiríamos viver
isoladamente e, por conseqüência, formamos um Estado. Este tem como
finalidade o bem comum, e para que seja alcançado, temos como forma de
coerção a lei. A lei, como já exposto, deve visar o bem comum, para que
alcance o télos do Estado. Resta-nos saber se, de igual maneira, a justiça
também só será justa se for ordenada ao bem da comunidade?
A respeito do estudo sobre a justiça, ocupar-nos-emos das questões da
Prima secundae, sobre as virtudes, e da Secunda secundae, sobre a justiça, da
Summa theologiae. Partindo de tais elucubrações, buscaremos elucidar a
relação entre lei e justiça, e de igual maneira, a relação entre justiça e bem
comum.
Sabemos que o doutor de Aquino compreende a justiça como sendo
uma virtude. E, da mesma forma, sabemos que se adquire a virtude pelo
hábito, ou melhor, pelo hábito bom, uma vez que o hábito mau – ou hábito
pervertido – conduz ao vício. O hábito é um ato que condiz com a natureza do
agente; assim, o hábito bom deve ser racional, porque a natureza humana é

74 S. Th. Iª IIª q. XC, a. III, ad. III.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 263


racional. Destarte, a virtude, diferentemente do vício, é um hábito bom. “A
virtude humana torna bom o ato humano e o agente que o pratica, o que é
próprio da justiça. Pois os atos humanos são bons por se sujeitarem à regra
da razão, que os retifica. Por onde, a justiça, retificando as ações humanas, é
claro que as torna boas”.75 A justiça parece ser, deste modo, uma virtude
especial, isto é, na medida em que ela é retificadora dos atos humanos, ela
mesma torna-se uma virtude mais excelente. É mais excelente porque cabe a
ela, como virtude moral, ser diretiva dos atos humanos – que são atos morais
– ao bem. Logo, é diretiva das demais virtudes, na medida em que orienta
seus hábitos para os atos bons que serão os geradores das próprias virtudes.
“Todas as virtudes morais, que versam sobre as obras, convêm numa noção
geral de justiça, que se funda no devido a outrem” e continua Tomás: “[...]
todas as virtudes, como ela, que versam sobre as obras, participam de certo
modo da justiça”.76
Agora, resta-nos saber que tipo de virtude é a justiça. Faz-se a pergunta
sobre o que é a justiça? Qual a sua definição? Tomás definirá a justiça como
sendo “um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a
cada um o que lhe pertence”.77 De tal definição muitos pontos poderíamos
aprofundar e expandir; contudo, escaparão ao nosso escopo. Sendo assim,
tomaremos somente a última parte da definição, a saber, “justiça é dar a cada
qual aquilo que lhe pertence”. Disto, para um primeiro momento, extraímos
dois pontos: 1º) justiça se dá na relação com outrem (“a cada qual”, envolve
relação entre sujeitos de uma ação); 2º) justiça é também distribuição (“dar
conforme é devido”, distribuir conforme é preciso que seja distribuído).
Para a elucidação do primeiro ponto, parte-se do ideia de que o ser
humano, mesmo entre os iguais – em espécie –, é diferente nas suas relações.
Melhor dizendo, somos desiguais não em dignidade, mas nas relações, nas
potencialidades, nos carismas e dons, enfim naquilo que somos ou podemos
vir a ser enquanto entes particulares que compartilham uma mesma essência
– natureza. Isto não significa que somos de natureza diversa. Ao contrário,
temos a mesma natureza racional. Todavia, constituímo-nos de modos

75 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. III.


76 S. Th. Iª IIª q. LX, a. III.
77 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. I.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 264


diversos, porque agimos de modos diversos. Assim sendo, “[...] o próprio da
justiça é retificar os atos humanos, segundo dissemos, é necessário que essa
relação com outrem, que a justiça exige, diga respeito a agentes que podem
agir diversamente”.78 Logo, o justo será, em certa medida, aquilo que
estabelecerá alguma forma de igualdade entre as partes diversas, uma vez
que “[...] o nome de justiça implicando a igualdade, está em a natureza da
justiça ser relativa a outrem”.79
Portanto, a justiça que se dá só na relação com outrem é, em certa
medida, sanadora de um débito. Assim, pela diversidade dos agentes
necessitamos de uma certa virtude, que visa sanar as desigualdades que
entre eles se estabelecem, mesmo que não consiga sanar de modo pleno e
completo, mas apenas parcial e imperfeitamente. Logo: “Justiça propriamente
dita é uma virtude especial fundada em a noção de débito, suscetível de ser
satisfeito por equivalência.”80 Donde pode-se afirmar que a justiça é a virtude
social por excelência, na medida em que coloca-nos na relação com o outro,
de maneira equitativa, ou, ao menos, com a pretensão de sê-lo. Deste modo, a
equidade é um certo tipo de justiça que tem como finalidade diminuir as
disparidades existentes entre os indivíduos. As relações desiguais se dão de
diversos modos; contudo, sempre incluem alguma noção de débito ou dívida
com o outro, mesmo que tal noção de débito possa ser diversa. Nessa
perspectiva, “[...] umas vezes devemos ao nosso igual; outras, ao superior;
outras, a um inferior; umas vezes em virtude de um contrato, outras, de uma
promessa ou por um benefício recebido”.81 Assim sendo, fica claro, para
Tomás de Aquino, como são imperfeitos os nossos vínculos relacionais e
como, por causa disso, precisamos torná-los mais equitativos, isto é,
precisamos torná-los mais perfeitos. Porque “tudo o que é imperfeito tende a
perfeição”.82 De igual maneira, Alasdair MacIntyre, partindo da concepção de
justiça de Tomás de Aquino, também recorda-nos que entre a desigualdade
das nossas ações necessita de uma virtude que as coloque eqüidistantes,
propondo uma espécie de igualdade entre os sujeitos. Afirma ele: “Todo ser

78 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. II.


79 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. II.
80 S. Th. Iª IIª q. LX, a. III, ad. I.
81 S. Th. Iª IIª q. LX, a. III.
82 S. Th. Iª IIª q. XVI, a. IV.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 265


humano deve a todo outro ser humano e, de todas as virtudes, iustitia é a que
trata particularmente das relações com os outros.”83
Chegamos, pois, ao segundo ponto. A justiça entendida como
distribuição. Compreende-se a partir do pressuposto da desigualdade
relacional (e, ao mesmo tempo, social) e, por conseguinte, de uma espécie de
débito com outrem que precisamos, também, por causa da mútua cooperação
social estabelecer relações mais justas e, consequentemente, equidistantes.
Nessa perspectiva, a justiça entendida de modo geral estará para o bem
comum, como constituindo-se a virtude do bem comum, o bem da
comunidade.
A justiça, como já dissemos, ordena o homem nas suas relações com
outrem. O que pode ser de dois modos: com outrem singularmente
considerado; ou, com outrem, em geral, isto é, no sentido em que serve a
uma comunidade serve a todos os indivíduos nela contidos. Ora, de um
modo pode-se aplicar a justiça, na sua ideia própria. Pois, é manifesto
que todos os que fazem parte de uma comunidade, estão para esta como
a parte para o todo. Ora, por tudo o que é, a parte pertence ao todo; por
onde, qualquer bem da parte pertence ao todo; por onde, qualquer bem
da parte se ordena para o bem do todo. Portanto, assim sendo, o bem de
qualquer virtude, quer da que ordena o homem pra consigo mesmo, quer
o da que ordena a qualquer outra pessoa singular, é referível ao bem
comum, para o qual a justiça ordena.84

Eminentemente toma-se a justiça como a distribuidora do bem comum.


Isto é, justiça não é, propriamente e somente, igualdade, entrementes é, de
igual maneira, a busca da equidade que se dá pelo uso comum dos bens. Logo,
dar a cada qual aquilo que lhe é devido quer significar, em última instância,
na relação entre indivíduo e comunidade, dar a cada qual aquilo que ele
necessita para que possa ter uma vida boa, uma vida digna de ser vivida.
Assim sendo, a igualdade da justiça é uma igualdade que visa a
proporcionalidade, id est, uma igualdade proporcional. Como afirma o doutor
Angélico, “[...] se considera a igualdade, não quantitativa, mas,
proporcional”.85 Justiça e lei entram em profunda relação na perspectiva de
que, na essência da própria lei, há a ordenação racional do ser humano ao

83 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual racionalidade? Trad. de Marcelo Pimenta


Marques. São Paulo: Loyola, 1991. p. 217. (Coleção filosofia).
84 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. V.
85 S. Th. IIª IIª q. LXI, a. II.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 266


bem da comunidade da qual ele mesmo é partícipe. A justiça, compreendida
como virtude geral –ordenadora dos atos em geral –, é também entendida
pela sua relação com a lei, como sendo justiça legal. E, deste modo, “[...]
obedecendo-lhe, o homem procede de acordo com a lei, ordenadora de todos
os atos para o bem comum”.86 Segue, assim, que o cidadão bom, aquele que é
virtuoso, aquele que age conforme a virtude é o cidadão justo, e a sua virtude
enquanto membro do corpo social será, de modo eminente, a justiça legal ou
geral. Afirma Tomás que “[...] a virtude do bom cidadão é a justiça geral, que
nos ordena ao bem comum”.87
Destarte, Santo Tomás não nega a propriedade privada, superfaturando
e supervalorizando a propriedade comum. “Egli dirá allora che il bene
comune è lacondizione sine qua non del raggiungimento del bene
individuale”.88 Desta maneira, o justo uso da propriedade se dá pelo uso de
todos, sem que alguns sejam prejudicados pela falta de bens e outros
superabundem em bens que não são, estritamente, necessários para se ter
uma vida boa e digna, bens supérfluos. A proposta tomasiana de distribuição
de bens se dá em uma medida equitativa aritmética (justiça comutativa) e
geométrica (justiça distributiva), na medida em que todos devem ter, mas ter
conforme necessitam. Isso significa que ter de mais ou não ter é contra a
natureza própria do ser humano, que é, a saber, a razão. Portanto, a justiça
alicerça-se sobre a razão da equitativa distribuição da propriedade. Deve
haver um certo grau de equilíbrio racional entre as posses e quem as possui,
assim sendo, estabelece-se uma justa medida baseada na razão. Nisto
consiste a ordenação do bem privado ao comum, isto é, quando o privado
coloca-se – longe de egoísmos e egocentrismos – à disposição das coisas que
são comuns a todos os cidadãos.

A propriedade, portanto, é um direito relativo e não asoluto. Não um “jus


utendi et abutendi”, mas um direito limitado em si próprio pela sua
própria natureza, por seu próprio ideal. Já que o homem não vive em
estado ideal mas em estado real e social e, nessas condições, a existência
do direito de propriedade é necessária [...] para que o homem desenvolva
natural e racionalmente sua vida na realidade social efetiva, a

86 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. V.


87 S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. VI.
88 WULF, op. cit., p. 161.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 267


consequência lógica é que a distribuição racional da propriedade por
todos os homens deve ser o ideal concreto, hoc et nunc, da prática efetiva
do direito de apropriação. Toda concentração da propriedade que
prejudique essa distribuição racional da propriedade entre todos os
homens é portanto contrária à natureza da propriedade e à sua
legitimidade.89

Uma última distinção é necessária. Sabemos, pois, que há uma justiça


geral também chamada de legal, que ordena o ser humano ao bem comum.
Deve, da mesma forma, haver uma outra justiça chamada de particular, que
ordena o ser humano aos bens particulares. Assim, “[...] a justiça particular se
ordena a uma pessoa privada, que está para a comunidade como a parte, para
o todo”.90 Desta distinção, o aquinate faz uma segunda distinção entre justiça
comutativa e justiça distributiva. A justiça comutativa, basicamente, consiste
em ser a justiça dos particulares entre si, é ela que ordena as ações dos
particulares. Por outro lado, a justiça distributiva, como acima já verificamos,
é a justiça do todo e do particular, é aquela que regula a distribuição dos
bens; assim sendo, regula a relação do bem comum com os bens privados.
Segundo Tomás de Aquino, a justiça distributiva “[...] distribui os bens
comuns proporcionalmente”,91 isto é, conforme a necessidade do particular
que recebê-los-á.
A justa distribuição do comum para o privado não se baseia numa
aritmética distribucional, antes baseia-se numa geometria distribucional. Id
est, os indivíduos não recebem as “fatias do bolo” do mesmo tamanho, mas
recebem-nas conforme necessitam do alimento. Há moderação na
distribuição. Afirma o Angélico, sobre a proporcionalidade da justiça: na
justiça distributiva, que se dá na relação do todo com o particular, “[...] não se
considera a mediedade levando em conta a igualdade entre uma coisa e
outra, mas sim, a proporção entre as coisas e as pessoas; de modo que, assim
como uma pessoa excede a outra, assim também a coisa que lhe é dada
excede a que é dada a outra”.92

89 LIMA, op. cit., p. 35-36.


90 S. Th. IIª IIª q. LXI, a. I.
91 S. Th. IIª IIª q. LXI, a. I.
92 S. Th. IIª IIª q. LXI, a. II.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 268


Na justiça comutativa que se dá entre dois particulares proporcionais, o
justo será o igual aritmeticamente, isto é, será o igual em proporção de
igualdade. Donde, se tivermos, por exemplo, que dividir um bolo entre duas
pessoas que proporcionalmente têm as mesmas, ou semelhantes,
necessidades de alimentos, devemos dividi-lo, para não prejudicar nenhuma
das partes, em partes iguais. Donde, conclui-se que, na justiça comutativa,
[...] uma pessoa dá uma coisa à outra em troca daquilo que recebeu desta
última [...]. Por onde, é preciso que uma coisa seja igual à outra, de modo
que quem recebeu de outrem mais do que era seu, isso mesmo lhe
restitua. E então a igualdade se realiza por uma mediedade aritmética,
fundada num excesso quantitativo igual.93

Por fim, podemos afirmar que o pensamento político de Tomás de


Aquino não pretende colocar o ser humano isolado. Antes disso, ele pensa a
pessoa humana em ralação. Relação com os semelhantes e em relação com o
Criador. Por causa disso, formamos o Estado, que pela mútua cooperação
social coloca-nos como meta comum o bem de toda a comunidade. Contudo,
sabendo da fragilidade da natureza humana, que pode tender ao egoísmo,
coloca-se a lei como coerção, essencialmente, ao bem comum. E, concluindo,
temos que a própria justiça reside numa distribuição equitativa dos bens.
Assim, a justiça será justa na medida em que distribuir mais a quem tem
menos e, inversamente, menos à quem mais possui. Cria, assim sendo, um
Estado com membros equidistantes. O pensamento político de Tomás de
Aquino quer, portanto, colocar-nos distante do egoísmo social que isola-nos e
fecha-nos frente às situações de desigualdade, para abri-nos à comunhão e à
participação social em prol dos que sofrem.

Referências

AGOSTINHO. A Trindade. Trad. do original latino e introd. de Agustinho Belmonte. Revisão e


notas complementares de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994.

______. Confissões. Trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e de Ambrósio de Pina, S.J. São Paulo: Abril,
1973.

______. O livre arbítrio. 2. ed. Trad. do original latino com introdução e notas por Antônio
Soares Pinheiro. Braga: Editorial Franciscana Montariol, 1990.

93 S. Th. IIª IIª q. LXI, a. II.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 269


LIMA, Alceu Amoroso. Alguns princípios sociais tomistas. A Ordem: Tomás de Aquino. Rio de
Janeiro, v. 71, n. 1, p. 32-46, abr./jun. 1974.

NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Um mestre no ofício: Tomás de Aquino. São Paulo:
Paulus, 2011. (Coleção como ler filosofia).

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual racionalidade? Trad. de Marcelo Pimenta


Marques. São Paulo: Loyola, 1991. (Coleção filosofia).

TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Trad. de Alexandre Corrêa. Org. de Rovílio Costa e Luis
Alberto De Boni. 2. ed. Porto Alegre: EST, Sulina; Caxias do Sul: Educs, 1980.

______. Do governo dos príncipes: ao rei de Cipro. Trad. de Arlindo Veiga dos Santos. Prefácio
de Leonardo Van Acker. 2. ed. São Paulo: Editora Anchieta S/A, 1946.

VOEGELIN, Eric. A Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Introd. à
edição americana Peter Von Sivers. Trad. de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É
Realizações, 2012. v. II. (Coleção filosofia atual).

WULF, Maurizio de. Storia dela filosofia medievale: nuova versione italiana dalla 6ª edizione
francese di Vincenzo Miano (tradutor para o italiano). Firenze: Libreria Editrice Fiorentina,
1945. v. II.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 270


14
O “controle penal” sob o olhar da cultura associada à justiça
restaurativa*

Mauro Gaglietti**
Jaime Roberto Amaral dos Santos***

Considerações iniciais

Em termos teóricos e metodológicos, o pensamento complexo, diante


do parâmetro da superação do paradigma da punição, pode, ao que tudo
indica, conduzir o nosso olhar aos mecanismos em torno dos quais há a
facilitação do acesso à justiça. Como já assinalado por Cappelletti e Garth
(1988), o acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental,
crescentemente reconhecido, sendo, também, necessariamente, o ponto
central da moderna processualística. Assim, conceber o acesso à justiça
constitui-se um pressuposto básico por meio do qual há a ampliação e o
aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica. No
caso, questiona-se o seguinte: Como ampliar e aprofundar os objetivos e
métodos da moderna ciência jurídica apenas em si mesma, sem a
compreensão de que o objeto de qualquer ciência é apenas e nada mais do
que o objeto de uma ciência?
Nesses termos, trata-se aqui acerca do acesso à justiça, no âmbito da
justiça criminal. Para tanto, percorrem-se alguns aspectos que caracterizam a
história da teoria do crime e da penalidade, buscando-se as bases
epistemológicas da Justiça Comunitária e da Justiça Estatal. Tal percurso

* O conteúdo deste texto foi apresentado como roteiro de aula e de leituras orientadas à
disciplina de Ecologia Política em 2006 e 2007, no PPG em Direito da URI, em Santo Ângelo,
RS – Brasil, sendo, agora, restruturado neste formato, para constar desta publicação.
** Mauro Gaglietti é professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da URI (PPGD –

Doutorado e Mestrado em Direito). Professor na Escola Superior da Magistratura de


Tocantins (Esmat). Professor de Mediação na Graduação e Pós-Graduação, na Unoesc, FAI,
fema, fapas, URI, Faculdades João Paulo II. É Mediador na MEDIAR: Central de Mediação,
Conciliação e Arbitragem do Rio Grande do Sul. E-mail: maurogaglietti@bol.com.br
*** Jaime Roberto Amaral dos Santos é mestrando em Direito na URI – Campus Santo Ângelo –

Linha de pesquisa: Políticas de cidadania e resolução de conflitos. Bacharel em Direito pela


URI (2013). Policial Militar – Instrutor do Proerd. Santo Ângelo (RS) Brasil. E-mail:
jaime_ras@yahoo.com.br

Ética, direitos humanos e meio ambiente 271


associa-se à investigação de fatores contemporâneos, que retroalimentam os
diferentes paradigmas da justiça retributiva e da justiça restaurativa. Assim,
dá-se destaque à questão da produção de singularidades, para se pensar em
que medida as práticas e os discursos, existentes no âmbito das relações
humanas, produzem o modo de ser dos sujeitos, e como os modos de busca
da solução de conflito evidenciam, ou não, uma forma, previamente,
determinada. Nesse ponto, seguindo a inspiração de Deleuze e Guattari
(1997, p. 80), propomos um “aprender a desfazer, e a desfazer-se”, que,
segundo eles, é próprio da máquina de guerra, o não fazer do guerreiro,
desfazer o sujeito. Desse modo, percebe-se a existência de um espaço
“estriado do Estado”, que se caracteriza pela repetição, do eterno retorno ao
mesmo, por intermédio dos jogos de poder instituídos. O espaço liso fora do
Estado é o da produção da diferença. Constata-se, nesses termos, uma
resistência em produzir linhas de fuga, novos devires. Lança-se, desse modo,
um questionamento com a seguinte formulação: Quem sabe, a Justiça
Restaurativa possa propor outro olhar sobre a questão da resolução de
conflitos?
Para responder a questão posta, resta construir parâmetros conceituais
em torno dos quais se possa captar o pensamento complexo anunciado por
Morin (2006, p. 2-3, 129), segundo o qual “a complexidade é a união da
simplicidade com a complexidade; é a união dos processos de simplificação
que são seleção, hierarquização, separação, redução, com os outros
contraprocessos, que são a comunicação, que são a articulação do que foi
dissociado e distinguido; e é a maneira de escapar à alternação entre o
pensamento redutor que só vê os elementos e o pensamento globalizado que
só vê o todo”.
Outro aspecto a considerar, mas não tão distante do já anunciado,
refere-se à dogmática e à hermenêutica jurídicas, que têm por objeto o
sistema político-normativo e as instituições que o estabilizam
constitucionalmente. Como aplicá-las, satisfatoriamente, sem a agregação das
disciplinas que estudam a comunicação e a teoria dos conflitos, nas relações
interpessoais e interinstitucionais? Parece inviável contemplar a dimensão
empírica, o modal pragmático da aplicação do sistema normativo ao caso
concreto, sem considerar as ciências sociais aplicadas, a ciência da

Ética, direitos humanos e meio ambiente 272


comunicação e as teorias no âmbito da psicologia, e suas contribuições às
várias abordagens do conflito.
Dessa maneira, constata-se, tendo como parâmetros o esboço teórico
acima desenvolvido, que a organização judiciária deve acolher um
compartilhamento de saberes e poderes multidisciplinares, em sua aplicação
transdisciplinar. Neste sentido, os seres humanos enquanto seres concretos,
psíquicos, emocionais e corporais, intrinsecamente conflituosos, devem ser
trazidos a uma posição de corresponsabilidade colaborativa, sobretudo, se
levarmos em consideração que o atual monopólio do jurídico, na organização
judiciária, tem reduzido a complexidade dos conflitos ao litígio. Sugere-se,
nesse texto, que a abordagem institucional do conflito deve olhar na direção
de um sistema que contemple o Poder Judiciário como articulador de uma
ação multidisciplinar, ampliada, na medida em que se considera a
complexidade de todas as relações que envolvem uma vítima e um ofensor,
no sentido da dimensão cidadã e humana da justiça.
Nesses termos, os novos paradigmas em mediação e os valores das
práticas restaurativas operam olhares polivalentes, portanto, plurais, em
espaços necessariamente autônomos e apropriados para o diálogo entre
cidadãos livres e iguais que, por livre e espontânea vontade, com o apoio de
mediadores competentes e sensíveis, escolhidos ou aceitos, assumem, nas
reuniões individuais preparatórias e nos encontros ou círculos restaurativos,
suas responsabilidades. Em ambiente seguro e de confidencialidade,
reconhecem a realidade do conflito e as circunstâncias do outro, perdoam o
mal feito que resolvam perdoar, obtém a reparação em lugar de uma mera
punição do causador do dano, dialogam, restauram relações e vínculos
comunitários e produzem outras consequências de paz.
Para cumprir o roteiro apresentado, inicialmente, levantam-se elementos
relacionados ao advento da revolução jurídica, na passagem da justiça
comunitária para a justiça estatal. Nesse trânsito, consideram-se relevantes o
estabelecimento da justiça privada, posteriormente ao aparecimento da
noção de culpa, de crime, de castigo, e o vitorioso processo de monopólio do
processo judicial por parte do Estado. Além disso, ganha destaque a
discussão acerca do papel da lei canônica, do direito romano; as dimensões
da revolução jurídica e, finalmente, a mudança de paradigma assentado em

Ética, direitos humanos e meio ambiente 273


uma nova definição de crime associada à violação de pessoas e de
relacionamentos. Examinam-se, também, as práticas restaurativas,
enfatizando-se o lugar das vítimas, dos agressores e o sentido da punição. Por
fim, assinala-se que a lei penal, uma aquisição relativamente nova da
sociedade ocidental, funciona sob pressupostos que, em muitos aspectos,
estão em dissonância com os demais aspectos da vida. Desse modo, sugere-se
examinar em que medida a estrutura do direito civil poderia ser proposta
como uma alternativa para um conceito de justiça, que passe ao largo
daqueles pressupostos penais.

O controle penal e a sociedade da disciplina

Em nossa sociedade, a justiça é concebida, muitas vezes, como aplicação


da lei. Por decorrência, o crime é definido pela violação ou infração de uma
lei. Nessa perspectiva, o que define a ofensa e aciona o processo criminal é
alguém que cometeu um ato definido em lei como crime – e não a natureza do
dano ou do conflito em si mesmos.
A ênfase no ato de violar a norma de direito penal é o que permite que
tanto ofensa como culpa sejam definidas em termos estritamente legais.
Assinala-se que as questões familiares e comunitárias (éticas e sociais)
tornam-se secundárias e, em alguns casos, até irrelevantes. Desse modo, o
contexto do ato é desconsiderado, exceto na medida de suas implicações
legais. Isso quer dizer que os ofensores violam a lei do Estado e devem ser
punidos. Nesse caso, os agentes estatais chamam para si a responsabilidade
de conduzir o processo, e tudo isso a sociedade aceita como bastante natural
e inevitável. Por que isso ocorre?
Ao que parece, o sistema penal que hoje é conhecido não existia na
Europa medieval entre os séculos V e XV. Nenhuma legislação identificava
certos atos como crimes, mas eram atribuídas algumas punições a
determinados casos. Os processos não eram conduzidos por profissionais da
área jurídica, e as autoridades políticas e judiciais tinham um papel
reconhecido, porém limitado. Ainda que existissem várias cortes, no geral,
todas funcionavam de acordo com os pressupostos e parâmetros de uma

Ética, direitos humanos e meio ambiente 274


justiça mais ajustada à dinâmica das famílias e das comunidades. Recorria-se
a elas com considerável relutância.
Por volta do ano 1113, foi dado início a uma série de mudanças que, ao
longo dos séculos seguintes, lançaram os fundamentos para uma abordagem
drasticamente nova acerca do crime e da justiça. Essas mudanças levaram
séculos para amadurecer e enfrentaram a resistência feroz de muitos. O novo
modelo de justiça foi definitivamente implantado somente no século XIX. No
entanto, esse processo complexo de transformações, embora
demasiadamente longo e em geral ignorado pelos historiadores, constitui
uma “revolução jurídica”.1
Autoridades políticas de períodos anteriores haviam se sentido
obrigadas a moldar a “lei” segundo a estrutura das práticas e dos princípios
consuetudinários. No final da Idade Média, começaram a reclamar o direito
de fazer novas leis e derrogar as antigas. Assim, códigos legislativos formais,
escritos que incorporavam novos princípios começaram a substituir os
costumes. Nos séculos XVIII e XIX, um corpo legislativo especial foi criado
para tratar de certos danos e disputas chamados crimes.
Novos argumentos e procedimentos passaram a abrir as possibilidades
de intervenção e iniciativa estatal, em certos tipos de processo. No continente
europeu, começaram a aparecer procuradores de justiça associados ao
Estado. Na Inglaterra, por exemplo, juízes de paz saíram do seu papel reativo,
para assumir o comando de certos tipos de processos, inclusive recolhendo
as provas pertinentes.
Na Europa continental, o estilo das cortes mudou de acusatório para
inquisitório. Ali, a corte era responsável por iniciar as acusações, compilar
evidências e determinar o resultado – frequentemente em segredo. Ainda, na
Inglaterra, foi mantida uma estrutura acusatória, devido ao papel do júri e à
retenção da forma de acusação privada. Nesse mesmo contexto, também os
agentes do Estado substituíram o cidadão como autoridade orientadora nos
processos criminais.

1BERMAN, 1983. Mais recentemente, possui grande relevância, em termos de sistematização


de um novo enfoque à história do direito e à sociologia do direito, a obra do sociólogo
americano Howard Zehr (2005), cuja primeira edição data de 1990.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 275


Em tais casos, a natureza do resultado começou a mudar. A punição
passou a ter precedência sobre os acordos; as multas – recolhidas aos cofres
públicos – substituíam as indenizações às vítimas; a tortura tornou-se, além
de uma punição aceitável, uma ferramenta forense para descobrir a verdade.
Salienta-se, ainda, que, em meio a toda essa metamorfose, os interesses das
vítimas foram perdendo a importância que tinham nos séculos anteriores.
Desse modo, percebe-se que os funcionários e representantes do Estado
foram, gradativamente, se insinuando, até a tomada total dos processos
judiciais. De início, com as funções de investigação, paulatinamente, o Estado
tornou-se acusador. Por fim, reivindicou a propriedade sobre tais processos.
Assim, os advogados do Estado lançaram mão de uma variedade de recursos
e argumentos jurídicos, alguns velhos e outros novos, para justificar seu
envolvimento. Os procedimentos acusatórios haviam reconhecido que o
modo “comum” de iniciar o processo era pelas vítimas ou por seus familiares.
Algumas jurisdições deixavam espaço para certas denúncias
“extraordinárias” por parte da corte ou do Estado, em algumas situações
muito singulares. Como se verifica, o uso de tais recursos jurídicos foi
combinado com argumentos novos. A coroa passou a impor sua pretensão de
guardiã da paz. Bastou mais um pequeno passo para alegar que, quando a paz
fosse violada, o Estado seria a vítima. Não é de surpreender que o papel e as
pretensões das vítimas tenham se perdido nesse processo.
Na continuidade de tal percurso, entre 1470 e 1500, aproximadamente,
solidificaram-se as bases da justiça estatal na Europa, por intermédio de
novos códigos penais que inauguraram a descrição de certas transgressões e
a indicação das punições. Destaca-se que algumas dessas penas eram
extremamente severas, incluindo-se a tortura e a morte. As sanções
econômicas, por sua vez, também podiam ser impostas em muitas
circunstâncias. Assinala-se, assim, que houve uma ampliação das dimensões
estatais de certas ofensas mediante o aumento do poder do Estado.2
Dois outros fatores históricos contribuíram para a promoção dessa
tendência favorável a sanções punitivas administradas pelo Estado: a
Reforma Protestante no século XVI e a Revolução Francesa no século XVIII.

2Além das fontes citadas anteriormente, destacam-se, para esse caso concreto, as pesquisas
de Michael Ignatieff, 1981, p. 75-105 e de Jacques Ellul, 1969.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 276


No primeiro caso, Lutero, com base nos ideais calvinistas, defendia o papel do
Estado na administração de punições como agente de Deus, cuja imagem de
juiz punitivo enfatizava, com vistas a conferir ao Estado função de garantidor
da ordem moral. No segundo caso, o Iluminismo e a Revolução Francesa
consolidaram, de vez, a presença do Estado nos processos judiciais. Por volta
de 1790, o Estado já reclamava poder absoluto, que exercia de modo
incrivelmente arbitrário e abusivo. Torturas e penas quase inimagináveis
eram comuns – não apenas para os “criminosos” devidamente julgados e
condenados, mas também para suspeitos e inimigos políticos. Nesse período,
a coroa se declarava acima da lei, e esta era constituída de costumes e
princípios, lógica e arbitrariedade, interesses particulares e imperativos
públicos.
A Revolução Francesa foi concebida à base do pensamento iluminista,
de acordo com o qual a religião continha superstições ilógicas, portanto
irracionais, e defendiam a forma jurídica secular baseada na lei natural e nos
princípios e fundamentos da ciência. Assim, os revolucionários iluministas
tentaram implantar uma visão de mundo no qual a lei deveria estar acima
dos governos e possuir um conteúdo fundamentado em uma racionalidade.
Segundo eles, as leis deveriam refletir a vontade da sociedade em geral, e aos
governos caberia a atribuição maior de articular e administrar essas leis. A
nova lógica, então, era o contrato social com novas responsabilidades
estendidas para segmentos sociais bem mais amplos da população e voltado
para o direito. Constata-se que os pensadores iluministas, em sua maioria,
não eram democratas, mas tinham a visão de construir um governo como
representante dos interesses da sociedade em geral, e não de alguns grupos
ou da família real exclusivamente.
Dessa maneira, o pensamento iluminista e os desdobramentos práticos,
que se seguiram, reforçaram a tendência de definir as ofensas em termos de
violação da lei, ao invés de em virtude do dano real. Diante de danos mais
graves, a ênfase recaía cada vez mais sobre a esfera pública em detrimento da
privada. Se o Estado representasse a vontade geral, ficaria mais fácil justificar

Ética, direitos humanos e meio ambiente 277


sua definição do Estado-vítima e entregar-lhe o monopólio das intervenções
jurídicas. Mais importante, o Iluminismo trouxe consigo a nova física da dor.3

Quais são as bases paradigmáticas que fundamentam o processo penal?


Como evidenciado até aqui, os desenvolvimentos ocorridos nos séculos
XVIII e XIX foram importantes na formulação do modelo atual de justiça
retributiva. Assim, o Estado ganhou nova legitimidade e, também, novos
mecanismos para exercer o poder. O direito foi revestido de uma santidade
inédita, que tornou a transgressão algo mais repreensível, e suas
consequências, mais “merecidas”. Os reformadores, dessa maneira, não
questionaram a ideia de que, quando um mal é cometido, a dor deve ser
administrada. Ao contrário, proporcionaram novos fundamentos e
justificativas, instituindo as diretrizes racionais para a administração da dor e
os mecanismos para a aplicação das punições.
Essa nova física da dor foi sendo, então, administrada às portas
fechadas nas prisões pelo Estado,4 de modo que a pena de privação de
liberdade é que permitia graduar o tempo de punição segundo a gravidade da
ofensa. Depreende-se disso que as prisões constituíam um meio de dosar a
punição em unidades de tempo, oferecendo uma aparência de racionalidade e
mesmo de ciência à aplicação da dor.5
No início da Idade Moderna, as formas de punição visavam,
sobremaneira, ao corpo, muitas vezes fazendo uso de tecnologias que
causavam intenso sofrimento físico e psíquico aos encarcerados. Portanto, a
utilização moderna da prisão buscava atingir, principalmente, a alma.6 Isso se

3 YOUNG, Davi B. Young. Let us content ourselves with praising the work white drawing the
veil its principles: eighteenth-century reactions to Beccaria’s. On crime and punishment,
Justice Quarterly, v. 1, n. 2, p. 150-169, jun. 1984.
4 SPIERENBURG, P. The spectacle of suffering: executions and the evolution of repression.

Cambridge: Cambridge University Press, 1984.


5 FOUCAULT, 1977. Os quakers americanos, por exemplo, que defendiam a prisão, o faziam

na expectativa de incentivar o arrependimento e a conversão. Justificativas posteriores


caracterizavam as prisões como laboratórios para mudar comportamentos e padrões
mentais e para reformar personalidades. Muitas outras razões foram criadas para servir de
justificativas ao uso das prisões, a fim de infligir “dor dotada de propósito”.
6 FOUCAULT, 1975, 1996. O Sistema Pensilvânico ou Celular é o mais antigo e mais duro dos

sistemas. O Sistema Celular tinha como características o isolamento, a oração e a abstinência


de qualquer forma de vício, quais sejam, bebidas alcoólicas, cigarros, entre outros, além do
incentivo à religião. Eram princípios basilares para que os litigantes fossem conduzidos do

Ética, direitos humanos e meio ambiente 278


deu em virtude do poder do Estado, à medida que monopolizou todo o
procedimento judiciário de liquidação interindividual no inquérito e que
passou a exigir reparação por meio de mecanismos pecuniários concebidos
como multas e confiscos de bens. Tais recursos ampliaram a fortuna dos
soberanos do Estado à proporção que retiravam dos indivíduos o direito de
resolver, regular (ou não) seus litígios. O resultado disso é que as
comunidades passaram a se submeter a um poder exterior a ela – o poder se
exerce fazendo perguntas –, que se impõe como Poder Judiciário.
Assinala-se que, até o século XII, se desconhecia, por exemplo, uma ação
pública representando a sociedade. Na verdade, o que havia era uma luta
entre indivíduos, famílias ou grupos que poderia terminar numa transação
econômica ou em morte.7 Assim, na Idade Média europeia, a liquidação era
realizada entre indivíduos, grupos e famílias, sem haver a necessidade de

erro à virtude e à felicidade. Essa instituição aplicou o solitary confinement (confinamento


solitário), atualmente conhecido como “solitária”, aos presos, que, sendo muito perigosos,
ficavam em celas isoladas, enquanto os outros eram mantidos em celas comuns. A estes era
permitido trabalhar conjuntamente durante o dia, de qualquer maneira, sempre aplicando
um rigoroso controle do silêncio. O fundador da Colônia da Pensilvânia, Guilhermo Penn,
prescreveu o estabelecimento de leis inglesas a mando do Rei Carlos II, submetendo à
Assembleia Colonial da Pensilvânia o que se chamou de a “Grande Lei”, que objetivava a
atenuação da legislação penal inglesa, que se dava de duas maneiras: a atuação da lei cujos
princípios repudiam todo e qualquer ato violento, limitando a pena de morte apenas para o
homicídio, e substitui as penas corporais e mutilantes por penas privativas de liberdade e
trabalhos forçados. Em segundo lugar, melhora a situação das pessoas que se encontravam
privadas da liberdade de ir e vir, tendo como base negativa o que havia visto nas prisões
inglesas, onde a promiscuidade e a corrupção eram exorbitantes. Com a morte de Penn, a
Assembleia foi convencida pelo governador a introduzir a lei inglesa, porém o seu legado não
foi totalmente deixado de lado, servindo de base para o surgimento de associações
destinadas a suavizar as condições dos presos e reformar as prisões. Por influência destas,
em 1786, houve a modificação do Código Penal, e os trabalhos forçados foram abolidos. A
pena de morte passou a ser aplicada em poucos casos, criando-se um consenso que as penas
restritivas de liberdade deveriam contribuir para uma ressocialização dos condenados. A
primeira prisão norte-americana foi construída em 1776, recebendo o nome de Walnut
Street Jail. (Ver BITENCOURT, 2001).
7 Michel Foucault (1996) relata que, até o século XII, os litígios eram regulamentados pelo

jogo da prova. A verdade e as formas jurídicas é um conjunto de cinco conferências –


pronunciadas na PUC do Rio de Janeiro, em 1973, e mais tarde publicadas pela editora da
própria Universidade – que aborda a formação dos domínios de saber com fundamento em
práticas sociais que fizeram aparecer novos objetos, novos conhecimentos e novas formas de
sujeitos do conhecimento. Partindo-se de como os seres humanos arbitram os danos e as
responsabilidades na história do Ocidente – as práticas judiciárias –, a sociedade definiu
tipos de subjetividades – formas de saber, formas das pessoas se relacionarem e um modo de
se conceber e acreditar em uma verdade –, que deram origem a um certo saber humano que,
em muito, contribuiu para a construção da individualidade no século XIX.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 279


passar pelo Estado, por intermédio dos funcionários do Poder Judiciário. Essa
forma judiciária desapareceu, gradativamente, na medida em que a
circulação de bens era precária. Naquele período, os bens que mais
circulavam no comércio eram os adquiridos por intermédio de herança, dos
testamentos, do roubo, do furto, da ocupação de terras, de castelos, de
cidades, da contestação militar, das guerras, sempre no âmbito da
comunidade e extrajudicialmente. Ocorre que à medida que a contestação
judiciária assegurava a circulação de bens no comércio, o direito de controlar
tal contestação foi sendo confiscado pelos grupos mais ricos e poderosos das
localidades.
Percebe-se, com base no exposto, que o inquérito – que surge no século
XII na Europa em razão das transformações políticas e nas relações de poder
– reorganizou todas as práticas judiciárias na Idade Média, da época clássica
e da modernidade. Conclui-se, assim, que o procedimento do inquérito não é
resultante apenas do progresso da racionalidade,8 mas de toda uma nova
estrutura política que se tornou possível e necessária em termos de processo
no domínio do Judiciário. Portanto, o inquérito na Europa medieval é um
procedimento de governo, uma técnica de administração, na realidade, uma
maneira de se exercer o poder. A Igreja – única instituição que fazia uso das
técnicas do inquérito, durante o período da Inquisição – introduziu o
inquérito no Direito na Idade Média, substituindo o flagrante delito,9 cujo
status foi preservado, mediante a obtenção de pessoas dispostas a confirmar
que testemunharam uma dada situação, que estão a par e podem jurar sobre
um determinado delito praticado por um indivíduo. Desse modo, por
intermédio do depoimento de testemunhas consideradas justas, sérias,
representantes da comunidade, poder-se-ia averiguar o que realmente
aconteceu.

8 A palavra “processo” tem origem no latim procedere, “avançar, mover adiante”, de pro, “à
frente”, mais cedere, “ir”. Um processo, em qualquer assunto, implica um conjunto ordenado
de passos no tempo para se chegar a um objetivo. Portanto, é um método considerado
científico.
9 Situação jurídica em que o agente é preso quando está cometendo a infração penal ou acaba

de cometê-la. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto


não cessar a permanência.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 280


E é exatamente nesse contexto que surgem a noção de infração e a
figura do procurador – representante do rei, lesado pela simples forma de ter
havido um delito ou um crime, passando o dano a ser uma ofensa contra o
soberano, como representante do Estado. Em outros termos, a sociedade é
atingida, na medida em que se concebe que o dano é contra a ordem e a lei.
A experiência nos EUA, por exemplo, da justiça formal centrada no
Estado é um dos casos mais elucidativos de que se tem notícia.10 Relatos
sobre a justiça naquele país enfatizam o desenvolvimento precoce de formas
públicas e legalistas de justiça, situando sua origem no período pré-revolução
(antes de 1776). No entanto, estudos recentes revelaram que os
procuradores públicos tinham papéis bastante limitados, tendo em vista que
não gozavam de autonomia para iniciar ou encerrar um processo criminal até
a metade o final do século XIX e início do século XX. Em vez disso, outras
modalidades de justiça (incluindo mediação, arbitragem e procedimentos
cíveis) eram adotadas por um conjunto numericamente expressivo da
sociedade e persistiram, inclusive, depois de a justiça estatal triunfar. A
restituição, por exemplo, era uma modalidade muita utilizada, ao menos para
os crimes patrimoniais, e as vítimas eram parte ativa nos processos. Por fim,
o estabelecimento de procuradores públicos com amplos poderes e
discricionariedade e a disponibilidade de penitenciárias foram parte
importante nesse processo, ao longo do qual a justiça estatal tornou-se
hegemônica no mundo ocidental, em particular, nos Estados Unidos e na
Europa.11 Com efeito, a sociedade contemporânea tem seu espaço disciplinar
inaugurado12 com o advento de práticas penais que caracterizam a atual
organização social, as relações de poder subjacentes às referidas práticas, as
formas de saber, os tipos de conhecimento produzidos acerca do exposto,
bem como os tipos de sujeitos de conhecimento que emergem nessas
relações de poder.

10 GITTLER, Josephine. Expanding the role of the victim in a criminal action: an overview of
issues and problems. 11 PEPP. L. REV. 117, 1984.
11 CHRISTIE, Nils. Crime control as industry: towards GULAGS, Western Style. London:

Routledge, 1995.
12 FOUCAULT, 1996, p. 79-83, define a sociedade contemporânea como “sociedade

disciplinar”.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 281


No final do século XVIII e início do XIX, surgiu um fato histórico
contendo dois aspectos aparentemente contraditórios: a reorganização do
sistema judiciário e penal com singularidades em vários países do mundo. Na
Grã-Bretanha, por exemplo, as formas de justiça permaneceram
relativamente estáveis, ao passo que o conteúdo das leis, o conjunto de
condutas penalmente repreensíveis se modificaram profundamente. No
século XVIII, havia na Inglaterra, aproximadamente, 313 condutas capazes de
levar alguém à forca. Tal situação tornava o código penal inglês, naquele
período, como um dos mais sangrentos que a história das civilizações
conheceu. Essa situação foi profundamente modificada no começo do século
XIX, sem que as formas e instituições judiciárias inglesas se modificassem
profundamente.13
Na França, ao contrário, ocorreram modificações muito profundas nas
instituições penais, sem que o conteúdo da lei penal, entretanto, tenha se
modificado, a partir da reelaboração teórica em Beccaria, Bentham, Brissot,
Lepeletier de Saint-Fargeau e em legisladores do Código Penal francês da
época pós-Revolução de 1789. Assim, o sistema penal definido por esses
legisladores estava assentado no princípio fundamental de acordo com o qual
o crime/infração, no sentido penal do termo, não deveria mais estar
associado à falta de moral ou religiosa. Portanto, concebia-se, até aquele
momento, que a falta era uma infração à lei natural, à lei religiosa, à lei moral.
Então, passou-se a interpretar o crime/infração penal como um modo de
rompimento com a lei criada pelo lado legislativo do Poder Político. Nesses
termos, criou-se a seguinte definição: Para que haja infração penal é preciso
haver um Poder Político, uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente
formulada. Conclui-se, assim, que antes de a lei existir, não pode haver crime,
e as penalidades poderão ser utilizadas para as pessoas cuja conduta for
efetivamente definida, como repreensível pela lei. Em outras palavras, uma
lei penal passou a definir como repreensível o que é nocivo à sociedade,
definindo negativamente o que é útil a ela. Em vista disso, o crime é
considerado como um ato que danifica o conjunto social, caracterização que
define o criminoso como alguém que rompeu o “contrato social”. Ou seja, o

13 CHRISTIE, Nils. Limits to pain. Oxford: Martin Robertson, 1982.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 282


indivíduo que rompeu o pacto social passa a ser considerado um inimigo
interno.14
Diante de tal panorama, surge a necessidade de uma legislação penal
voltada apenas à permissão da reparação da perturbação causada à
sociedade. Assim, a lei penal deve reparar o mal ou impedir que males
semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social.
A prisão – não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do
século XVIII –, surgida no início do século XIX, como uma instituição de fato,
quase sem justificação teórica, foi se transformando em uma pena cada vez
mais comum, até generalizar-se no século XIX. A legislação penal também
sofreu uma inflexão ampla, no que concerne à função social. Ela não
procurará mais visar o que é socialmente útil; ao contrário, buscará ajustar-
se ao indivíduo. Podem-se citar, a título de ilustração, as grandes reformas da
legislação penal na França e em países europeus, entre 1825 e 1860, que
consistiram na organização do que se permite denominar “circunstâncias
atenuantes”: o fato de a aplicação rigorosa da lei, tal como se acha no Código,
poder ser modificada por determinação do juiz ou do júri e a depender do
indivíduo em julgamento. Desse modo, o princípio de uma lei universal
representando tão apenas os interesses sociais é consideravelmente falseado
pela utilização das circunstâncias atenuantes que vão assumindo relevância
cada vez maior. No século XIX, a penalidade tem como propósito menos a
defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das
atitudes e dos comportamentos dos indivíduos. Trata-se, pois, de algo muito
diferente do que havia teorizado Beccaria, um século antes, ao destacar que
não haveria punição sem uma lei explícita e sem um comportamento explícito
violando essa lei.15
Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade, em fins do
século XIX, foi a de que toda a penalidade passa a ser um controle, não tanto
sobre se o que as pessoas fizeram está em conformidade ou não com a lei,
mas no âmbito do que estão sujeitas a fazer, do que estão na iminência de

14FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.


15ROTHMAN, David J. The discovery of the asylum: social order and disorder in the New
Republic. Boston: Little; Brown, 1971. ROTHMAN, David J. Conscience and convenience: the
asylum and its alternative in progressive America. Boston: Little; Brown, 1980.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 283


fazer; ou seja, não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das
virtualidades de comportamento que elas representam. À justiça se atribui a
função de não mais punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas
virtualidades. Para tanto, o Judiciário precisou interligar várias instituições
em teia, que não estão abrigadas no Poder Judiciário, para desempenhar a
função do próprio Judiciário. O desdobramento dessa questão resume-se da
seguinte forma: a instituição penal não pode mais estar sujeita a um poder
autônomo, o Poder Judiciário. Chega-se, desse modo, ao que Montesquieu
formulou acerca da independência dos poderes no Judiciário, Executivo e
Legislativo: além da justiça, foi necessário buscar outras instituições ligadas
ao poder executivo, como foi o caso da polícia, e toda uma rede composta por
organizações de vigilância e correção – a polícia para a vigilância, as
instituições psicológicas e psiquiátricas para a correção no âmbito de
hospitais, asilos etc., instituições pedagógicas, como escolas, e assim por
diante.

Como se dá a expansão do Direito Penal?

Com a consolidação do pensamento de que a penalogia assume nítidas


funções de controle, especialmente à prevenção de delitos, não tanto
direcionada ao passado, mas, sim, ao futuro, pode-se referir que o marco
epocal atual oferece uma representação social expansivo-expressiva da
biopolítica do Direito Penal, que é consensual, convertendo-se, por isso, em
uma “rara unanimidade”. Vive-se numa sociedade do controle,16 na qual se
16 Conforme Deleuze, a sociedade atual, diferente da sociedade da disciplina de Michel
Foucault, caracteriza-se por estar submetida a um controle intensivo, para além das
instituições fechadas como a prisão e a fábrica. Diz com o tempo das câmeras de vigilância,
tornozeleiras eletrônicas, vedação do acesso de pessoas a determinados locais, agora
restritos ao público em geral. Em uma palavra, o controle é total e disseminado pela
sociedade. E tal mutação segue uma nova formatação do sistema capitalista, que se
transformou do industrial ao financeiro, deslocando-se, portanto, da fábrica à empresa. Daí
por que o controle deslizou das instituições fechadas, tomando conta da sociedade. Importa
notar que a sociedade do controle implica a superação da sociedade da disciplina, analisada
por Foucault, que, na sua genealogia do poder, afirmou que a fábrica e a prisão, como as
grandes instituições fechadas do século XVI ao XVIII, detinham a função primordial de
disciplinar corpos (formar corpos dóceis), adaptando-os ao sistema da fábrica, intensificando
o processo de industrialização, no que eram auxiliadas por outras instituições como a escola,
o hospital, a família etc. A modo de sintetizar, pode-se afirmar, seguindo o pensamento de
Foucault e Deleuze, que, na sociedade da disciplina, o controle dirigia-se ao corpo do

Ética, direitos humanos e meio ambiente 284


tem intensificado, como nunca, o recurso ao Direito Penal para combater a
criminalidade, que se intensifica. Há, efetivamente, uma guerra santa que
justifica políticas criminais de segurança coletiva, culminando no fato de que
lei e ordem e tolerância zero (versões pós-modernas do teste de “fidelidade ao
Direito”) se transformam em bens jurídicos. De outras, é sabido que o
fenômeno expansivo não é monocausal, tampouco decorre da produção
legislativa de um Estado totalitário; ao contrário, o movimento expansivo é
produto de diversas orientações e saberes que acabam convergindo no
denominador comum que deságua em uma verdadeira proposta securitária,
que, como refere Silva Sánchez, se integrou nesse novo consenso social sobre
o papel do direito penal. Assim, as premissas ideológicas (direito penal
simbólico) e os movimentos totalizantes de “lei e ordem” não desapareceram
do cenário social; ao contrário, passaram a se acomodar, “comodamente”,
nesse novo consenso.17
Dito de outro modo, a expansão do direito penal, que é característica
marcante das sociedades pós-modernas, está relacionada com “causas mais
profundas”, na precisa observação de Silva Sánchez, para quem a expansão
deita suas raízes no modelo social, notadamente a partir de novas
expectativas que as camadas sociais têm em relação ao papel conferido ao
direito penal. Isso culmina, no âmbito cultural, na formação de uma
verdadeira demanda social por mais proteção e segurança frente aos novos

desviado, buscando corrigi-lo, seguindo uma lógica inclusiva. Já, na sociedade do controle, a
atual, não se fala mais em disciplinar ou educar, mas, sim, em controlar grupos perigosos e
de risco. O controle, portanto, é atuarial e flexível, seguindo a lógica da empresa e o risco.
Consultar, a respeito do tema: (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas
prisões. 29. ed. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 117-195). Também, do
mesmo autor, A verdade e as formas jurídicas. 2. ed. Trad. de Roberto Cabral de Melo
Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999. p. 79-126. Igualmente, no trato
da sociedade do controle: (DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. de Peter Pal Pelbart. São
Paulo: 34, 2008. p. 209-226). Ver, de igual sorte, DE GIORGI, Alessandro. El gobierno de la
excedencia: postfordismo y control de la multitud. Trad. de José Ángel Brandariz García e
Hermán Bouvier. Madrid: Traficantes de sueños, 2006. p. 53 e ss. E, no que diz com a noção
da sociedade do controle nos termos da era digital, na qual o lugar e o tempo da punição são
simultâneos e intensos, pois o monitoramento eletrônico ampliou a capacidade do sistema
em controlar um número maior de pessoas, bem como de forma mais intensa, agora no
ambiente doméstico, produzindo conhecimento sobre elas. Consultar: JONES, Richard. Digital
rule: punishment, control and technology. Punishment and Society, London, v. 2, n. 1, janeiro-
2000. p. 5-22.
17 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas

sociedades pós-industriais. Trad. de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002. p. 25.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 285


riscos .18 Dessarte, o ponto de partida real para a análise do tema pouco tem a
ver com os movimentos de Law and order, que davam respaldo às políticas
criminais totalizantes da década de 70.19 A pedra de toque é a crescente
demanda social por proteção e segurança, facilmente detectada na sociedade
moderna, que vive sob os influxos sociológicos da sociedade do risco.20
Nesse passo, Silva Sánchez, dissertando sobre as causas da “crise de
crescimento”21 do direito penal, nas sociedades pós-industriais, confere
destaque à questão da aparição de novos interesses ou bens jurídicos,
especialmente aos bens atualmente escassos, como o meio ambiente ou bens
coletivos ou difusos, relacionando-os ao aparecimento de novos riscos e à
institucionalização da insegurança, que, de resto, não deixam de ser produtos da
sociedade do risco. Também, aponta o surgimento de uma sociedade de sujeitos
passivos, dependentes do Estado de bem-estar, que valorizam, de forma
essencial, a questão da segurança, o que implica a redução do risco permitido na
sociedade, havendo, inclusive, uma identificação maior com as vítimas. Esse fato
reforça o consenso punitivo, que, por fim, descansa no descrédito de outras
instâncias de proteção, preponderando a resposta penal. A própria globalização,
que intensificou o intercâmbio de pessoas e o comércio transfronteiriço, dando
azo a crimes transnacionais (tráfico de drogas, armas e pessoas, crimes

18 No mesmo sentido, é o pensamento de GARLAND, David. A cultura do controle: crime e

ordem social na sociedade contemporânea. Trad. de André Nascimento. Rio de Janeiro:


Revan, 2008, especialmente p. 41-128. Também, YOUNG, Jock. A sociedade excludente:
exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. de Renato Aguiar.
Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 15-90.
19 O enfoque do teorema da lei e ordem ou tolerância zero é dado por WACQUANT, Loïc. As

prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. Na sua abordagem,
Wacquant sinala que a globalização neoliberal imprimida, pioneiramente, pelos EUA e pela
Inglaterra, nos idos dos anos 80, reafirmou a onipotência do Leviatã no domínio restrito da
manutenção da ordem pública. Isso levou à substituição do Estado social pelo Estado-
penitência, tendo se convertido à ideologia do mercado. Em outras palavras, na lição de
Wacquant, o Estado, convertido ao credo mercadológico, relegou a questão da segurança à
dimensão criminal, procurando resolver a pobreza e a exclusão social pelo remédio punitivo, isto
é, penalizando a miséria. (Ver p. 7-75).
20 Ver BUSTOS RAMÍREZ, Juan J; HORMAZÁBEL MALARÉE, Hernán. Lecciones de derecho

penal: parte general. Madrid: Trotta, 2006. p. 22 e ss. Nesse passo, os autores, no trato das
tendências atuais do controle social, falam que o momento atual, de um Direito caraterizado
como Estado neoliberal de pensamento único, pois cada vez se criam mais delitos, com o
consequente aumento da população carcerária, apresenta-se como o único meio de controle
social dotado de eficiência e eficácia.
21 Ver SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. 2. ed.

Montevideo-Buenos Aires: IBDEF, 2010. p. 9 e ss.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 286


ambientais, terrorismo, crime organizado, etc.), por sua sorte, também fomentou
a expansão do controle penal rumo a um direito penal internacional.
Em suma, pode-se referir que a aventura securitária é produto da pós-
modernidade ou da modernidade tardia, que, no ambiente de relações
sociais, econômicas e culturais, trouxe consigo um conjunto de riscos,
complexidade e insegurança,22 bem como problemas do controle social, que
afetaram, sobremaneira, o direito penal23 que, agora, não mais discute os
efeitos da sanção penal, mas se vê envolto na missão de dispor de novas
formas de prevenção e minimização dos riscos, os quais, no cenário da pós-
modernidade, não param de crescer.24 Dito de outro modo, a pós-
modernidade e sua inerente complexidade trouxeram ao controle penal
desafios questionadores acerca da possibilidade de monitorar, de forma
efetiva, os novos riscos da sociedade pós-industrial.25
No limite, os anos 80/90 informam o surgimento de uma nova política
criminal, que tem suas raízes numa nova experiência do crime e da
insegurança objetiva e subjetiva, estruturada pelos arranjos sociais,

22 CALLEGARI, André Luís; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Sistema penal e política
criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 13 e ss. Para os autores, o processo de
expansão do direito penal tem a ver com a globalização e a contemporânea sociedade de
risco, que propiciam o surgimento de um sentimento generalizado de insegurança diante da
imprevisibilidade e da liquidez das relações sociais.
23 Ver FUENTES, Francisco Maldonado. Derecho penal excepcional y delincuencia:

reflexiones sobre la extensión y alcances de los nuevos modelos de legislación penal. In:
COLLAO, Luis Rodríguez (Org.) Delito, pena y proceso: livro homenaje a la memoria del
profesor Tito Solari Peralta. Santiago de Chile: Editorial Jurídica de Chile, 2008. p. 41-96.
24 Consultar, nesse particular, BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel. Itinerários de evolución del

sistema penal como mecanismo de control social en las sociedades contemporáneas. In:
FARALDO CABANA, Patricia (Dir.); BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel; PUENTE ABA, Luz María
(Coord.). Nuevos retos del derecho penal em la era de la globalización. Valência: Tirant lo
Blanch, 2004. p. 15-63. Informa Brandariz García, com acerto, no sentido de que o
incremento aparentemente descontrolado de todo tipo de riscos e sua construção midiática,
que tende a se focalizar na sensação de insegurança (centrada na criminalidade urbana:
furtos, roubos, sequestros etc.), desata um certo “pânico moral”, promove uma verdadeira
“criminalização da pobreza” (gestão policial da miséria), esquecendo-se de que esta muito
tem a ver com a reordenação mercantil das cidades. Em uma palavra, segundo o autor, face
ao surgimento da sociedade do risco, o controle e a vigilância são construídos socialmente
como obsessões. (Ver. p. 36-50).
25 Veja-se, nesse particular, CEPEDA, Ana Isabel Pérez. La seguridad como fundamento de la

deriva del derecho penal postmoderno. Madri: Iustel, 2007. p. 60 e ss, que adverte que a
globalização está unida à sociedade do risco, na medida em que fomenta uma
neocriminalização, já que há uma liberalização dos mercados e a utilização de um direito
penal neutro e formal para combater a conflituosidade social.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 287


econômicos e culturais singulares da pós-modernidade,26 que pode ser
entendida como a aproximação do mundo industrializado,27 com o emprego
da força material e a maquinaria da produção.28 E tal sinal da pós-
modernidade forjou um mundo em disparada (ou em descontrole),
promovendo um “desencaixe” das instituições sociais,29 constituindo, ainda,
conforme entendimento de Habermas,30 um projeto inacabado, polêmico e
multifacetado, que se apresenta com o desenvolvimento das sociedades
modernas, que, de resto, veem-se envoltas com a complexidade e o risco.
A modo de sintetizar, a pós-modernidade ou modernidade tardia,31 novo
padrão distintivo de relações econômicas e sociais, trouxe, no seu bojo, um
conjunto de riscos, inseguranças e problemas de controle social, reconfigurando,
dessa forma, as expectativas sociais com relação às políticas criminais de

26 GARLANT, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea.

Trad. de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 181 e ss. No pensamento de
Garlant, a mudança no controle do crime não decorre, primordialmente, de orientações
criminológicas, mas também, por forças históricas do neoliberalismo e pós-modernidade,
que transformaram as condições sociais e políticas sobre as quais se assentava o campo do
controle do crime.
27 GIDDENS, Antony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e

estética na ordem social moderna. Trad. de Magda Lopes. São Paulo: Universidade Estadual
Paulista, 1997.
28 Nesse sentido, ver JAMESON, Fredric. Uma modernidad singular: ensayo sobre la ontologia del

presente. Trad. de Horacio Pons. Barcelona: Gedisa, 2004. p. 22, quando a afirma que a
modernidade sempre teve algo a ver com a tecnologia e o progresso, referindo que “el único
significado semântico satisfactório de la modernidade está em su asociación com el capitalismo”.
29 Veja-se, nesse sentido, GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está

fazendo de nós. Trad. de Maria Luiza X de A. Borges. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. p.
18-23, quando refere que a globalização é um movimento revolucionário, que não se traduz
tão só em movimentos econômicos, mas que é política, tecnológica e cultural, tanto quanto
econômica, constituindo o pano de fundo das mudanças experimentadas pela modernidade.
Nesse particular, aduz Giddens: “É errado pensar que a globalização afeta unicamente os
grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas
ao que esta ‘lá fora’, afastado e muito distante do indivíduo. É também fenômeno que se dá
‘aqui dentro’, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas”. (p. 22).
30 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. de Ana Maria Bernardo et

al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. p. 11-14. Para Habermas, modernização relaciona-se “a um
feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente: à formação de capital e à
mobilização de recursos, ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da
produtividade do trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à
formação de identidades nacionais, à expansão de direitos de participação política, de formas
urbanas de vida e de formação escolar formal, refere-se à secularização de valores e normas,
etc.”
31 Ver BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. de Mauro Gama e de

Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 288


repressão à criminalidade, já que o caldo cultural pede o endurecimento da
resposta penal.32 Dizendo de outra maneira, o endurecimento da resposta penal
decorre de profundas mudanças vivenciadas pela sociedade moderna, uma vez
que é do lugar comum na literatura sociopolítica que está constituída pela
caracterização como uma sociedade do risco.33 E, com isso, se quer designar
como um conjunto de fenômenos produzidos no desenvolvimento da sociedade
industrial, cujo denominador comum é o debilitamento de certas instituições
tradicionais, o que gerou uma sensação intensa de insegurança nas pessoas. Com
efeito, a sociedade contemporânea sofre com a constante mudança e aceleração,
provocada sobremaneira pela economia globalizada de consumo e de
comunicação de massas, suscitando um insuperável paradoxo entre maior

32 Consultar MENDOZA BUERGO, Blanca. Gestion del riesgo y política criminal de seguridad
em la sociedad del riesgo. In: AGRA, Cnadido da; LUIS DOMÍNGUEZ, José; GARCÍA AMADO,
Juan Antonio, HEBBERECHT, Patrick; RECASENS, Amadeu. La seguridad em la sociedad del
riesgo: un debate abierto. Barcelona: Atelier, 2003. p. 67-89. Conforme Mendoza Buergo, a
pressão pela segurança pública submete o direito penal não somente a abarcar os riscos
modernos, produto das inovações tecnológicas, senão que contagia todo o sistema penal,
demarcando o surgimento, em diversos setores, de um afã preventivo total. Dessa maneira, o
controle penal se vê forçado a um processo de expansão contínuo. (Ver p. 81-83).
33 Os contornos da sociedade do risco, como produto da modernidade, quando relacionada com o

espaço da contingência (ato segundo o qual as possibilidades das novas experiências da vida
possam ser diferentes das anteriores, enganosas), são dados pelos sociólogos Luhmann e Beck.
Para Luhmann, o risco surge da tecnologia e de seu paradoxo, ou seja, da relação das possíveis
utilidades com os possíveis danos que são inerentes à tecnologia, notando que se começou a falar
do risco ao longo da transição da Idade Média até o início da modernidade. E, segundo Luhmann,
abaixo das condições atuais do mundo, não se pode fazer outra coisa senão se aventurar e correr
riscos, o que representa uma certa tendência das decisões modernas, que antecipa o futuro.
Dessarte, Luhmann entende que o risco é componente fundamental da sociedade moderna,
sendo que a discussão pública deve ser feita menos apaixonada e alarmista, asseverando que não
existe conduta livre de riscos. Consultar: LUHMANN, Niklas. Sociologia del riesgo. Trad. de Silvia
Pappe, Bruhilde Erker e Luis Felipe Segura. 3. ed. México: Universidade Iberoamericana, 2006. p.
57-131. De outro lado, Beck, com sua “modernidade reflexiva”, ensina que o risco é uma
autoconfrontação com os danos colaterais do processo de modernização experimentado pela
sociedade, criticando o processo de industrialização, que, segundo ele, se esgotou, surgindo uma
nova fase de (auto)destruição da criação da época industrial, potencializando a destruição da
natureza, a divisão internacional do trabalho, o desemprego e a fome. Assim, para Beck, a
sociedade do risco é, portanto, uma forma reflexiva, cujo desenvolvimento do ponto de vista
teórico-social e de diagóstico cultural de um estado da modernidade, que provoca ameaças à
sociedade mundial. (Ver BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Trad.
de Jorge Navarro. Barcelona: Paidós, 2006. p. 12-115). Também consultar: BECK, Ulrich.
Reivindicação da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anyhony;
BECK, Ulrich; LASCH, Scott (Org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem
social moderna. Trad. de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997. p. 11-71. Por fim, BECK, Ulrich. O
que é globalização? equívocos do global, respostas à globalização. Trad. de André Carone. São
Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 71-119.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 289


flexibilidade/liberdade e, em contrapartida, uma vulnerabilidade maior
(precariedade/instabilidade/incerteza).34 De efeito, nesse ambiente de sensação
(subjetiva) de insegurança,35 a questão da segurança se apodera do discurso
público, crescendo a ansiedade face à marginalidade que o processo tecnológico
causa. A consequência disso é que o paradigma preventivo passa a dominar o
discurso e a práxis jurídico-penal.
Daí o acerto da teoria social de Garlant quando assevera que a mutação do
Leviatã penal, ou “aventura securitária” das sociedades pós-industriais do século
XXI, somente pode ser compreendida nos contornos da sociologia do risco.36
Conforme Prittwitz, o teorema da sociedade do risco, com as graves mutações
que produziu na genética do controle penal, foi o que preparou o terreno para a
edificação do direito penal de exceção (direito penal do inimigo) ou a “Revolução
Policial”37/”Direito de Luta”,38 no âmbito do direito penal da sociedade do risco.

34 Consultar DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. Trad. de Guilherme Leite


Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 129-153.
35 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J.

Zahar, 2007. p. 11-33. Também, do mesmo autor: Comunidade: a busca por segurança no
mundo atual. Trad. de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
36 Ver, no trato da relação do direito penal e novos riscos tecnológicos nas sociedades pós-

industriais: GONZÁLES, Carlos J. Suarez. Derecho penal y riesgos tecnolóligos. In: ZAPATERO, Luiz
Arroyo; NEUMANN, Ulfrid; MARTIN, Adán Nieto (Org.). Crítica y justificación del derecho penal em
el cambio de siglo. Cuenca: Ediciones de la Univesidad de Castilla-La Macha, 2003. p. 289-297.
Com efeito, Gonzáles refuta os axiomas de Beck, referindo que resultam, provavelmente, falsos,
uma vez que os riscos, qualitativamente, têm diminuído pelos indicadores sociais de qualidade de
vida e desenvolvimento humano: longevidade, índices de mortalidade infantil, saúde, controle de
enfermidades. Para Gonzáles, os riscos sempre existiram. O problema atual não diz com um
incremento objetivo dos riscos, senão com um aumento da percepção dos riscos. O que se produz,
enfim, é um contágio do medo ao risco, o que é impulsionado pela mídia. (Consultar p. 294-295).
No mesmo sentido, PRITTWITZ, Cornelius. Sociedad del riesgo y derecho penal. In:
ZAPATERO, Luiz Arroyo; NEUMANN, Ulfrid; MARTIN, Adán Nieto. (Org.). Crítica y
justificación del derecho penal en el cambio de siglo. Trad. de Adán Nieto Martín e Eduardo
Demétrio Crespo. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilha-La Mancha, 2003. p. 259-
287. Prittwitz reputa de catastróficas as previsões de Beck, dizendo que suas observações
são mais políticas do que sociológicas, adotando, por outro lado, os ensinamentos de
Luhmann, que têm como “o real descubrimiento sociológico del riesgo tal como fue
sintetizado por Niklas Lumann en 1991”. O seu diagnóstico é o seguinte: “La política criminal
y teoria penal, pero sobre todo la dogmática jurídico-penal están influidas desde hace mucho
tiempo por el desarollo social en su conjunto de la, concebida de este modo, sociedad del
riesgo. La dogmática del riesgo en el sentido expuesto, así como la discusión sobre las
relaciones jurídico-penales a las nuevas fuentes de riesgo, constituye sólo una parte de la
investigación, que de hecho persigue conformar los cimientos de una teoría crítica del
moderno desarollo del Derecho Penal”. (Ibidem, p. 261).
37 PALIDDA, Salvatore. La revolución policial. In: PUENTE ABA, Luz María; BARBEITO,

Mónica Zapico; MORO, Luis Rodrigues (Org.). Criminalidad organizada, terrorismo e

Ética, direitos humanos e meio ambiente 290


Todavia, nesse estado da arte demarcado pela
excepcionalidade/emergência penal, cumpre que se assuma um distanciamento
em relação aos sentimentos de ódio recíproco entre o “eu” e o “outro”, geradores
de ressentimentos, interrogando a globalidade da violência que irrompe no
mundo, principalmente após os atentados de 11.9.2001, que trouxeram reflexos
à economia do controle penal, que restou aparelhado em termos bélicos,
consolidando o paradigma da guerra. Sob esse aspecto, é necessário que se
adote um pensamento complexo para poder compreender o tema da violência
mundial ( e a insegurança que desemboca no sistema penal), o que passa, sem
dúvida, pela contestação e destruição do modelo da globalização econômica.39
Ora, conforme Morin, o planeta vive um “estado de crise”, na medida em que o
mercado da concorrência (guiado pelo liberalismo, em que todos entram no
circuito das mercadorias), invadiu inclusive setores humanos, provocando
decadência e degradação.40 Nesse contexto de crise e decadência, na oportuna
observação de Morin, é preciso tornar o “planeta um bem socializável, que é
preciso acabar com as guerras e resolver as desigualdades mais graves”.41 Em
síntese, para uma compreensão e superação do pensamento totalizante da
repressão, como a única resposta para o enfrentamento da insegurança e
criminalidade, apresenta-se como necessária uma “religação dos saberes” ou
adoção de um pensamento sistêmicos que de conta da complexidade do tema.42

inmigración: retos contemporáneos de la política criminal. Trad. de José Ángel Brandariz


García e José Antonio Ramos Vázquez. Granada: Comares, 2008. p. 41-68. Para Palidda, a
“revolução policial” tem a ver com o recurso a práticas militares e o vocabulário da guerra
para gestionar a segurança, especialmente na “luta” contra a imigração clandestina, o
terrorismo, a delinquência violenta, etc.
38 DONINI, Massimo. Derecho penal de lucha: lo que el debate sobre el derecho penal del enemigo

no deve limitarse a exorcizar. Trad. de Pablo Guérez Tricarico. In: CANIO MELIÁ, Manuel;
POZUELO PÉREZ, Laura. Política criminal em vanguardia: inmigración clandestina, terrorismo,
criminalidad organizada. Navarra: Thomson Civitas, 2008. p. 29-75. No pensamento de Donini, o
conceito de Direito de Luta constitui-se em um conceito normativo, uma vez que foi incorporado
pelas legislações nacionais e internacionais, alterando a própria interpretação das regras e
aplicação do direito, impondo uma verdadeira mutação genética ao controle penal, que, de resto,
foi contaminado pela emergência e exceção, como, por exemplo, a “forma ilegítima de Direito
Penal do inimigo”. (Ver. p. 61 e ss).
39 BAUDRILLARD, Jean; MORIN, Edgar. A violência no mundo. Trad. de Leneide Duarte-Plon.

Rio de Janeiro: Anima, 2004. p. 63.


40 MORIN, op. cit, p. 61.
41 Ibidem, op. cit., p. 77.
42 Ver MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Trad. de Fávia

Nascimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002., p. 489-499. Para Morin, o

Ética, direitos humanos e meio ambiente 291


Com efeito, não se pode perder de vista que o mundo atual está
atravessado por sistemas complexos (economia, política, religião, sociedade,
cultura, etc.), que não resistem a uma abordagem puramente analítica (como
quer o sistema penal), já que, ignorando algum dele no equacionamento da
criminalidade/insegurança, se ignoram as denominadas “propriedades
emergentes” (Morin).43 Em uma palavra, a insegurança e o risco não podem ser
dissociados do sistema econômico e do sistema social, que se agudizaram na
pós-modernidade, culminando em levar o homem a uma condição inumana. Ora,
priorizar somente a resposta penal, descurando das “propriedades emergentes”
(pobreza, vulnerabilidade, excedência humana, etc.) somente intensifica o
processo de dor, sofrimento humano rumo à exclusão.44 Como diz Morin, é
preciso “civilizar a terra”, mesmo sabendo que a civilização não pode existir sem
um mínimo de barbárie, bem como fraternizar a humanidade, o que passa pelo
reconhecimento e pela compreensão do “outro”,45 mesmo que criminoso e/ou
desviante.

Considerações finais

Pelo exposto, no que se refere ao paradigma punitivo e restaurativo,


deve-se considerar a complexidade do paradigma de uma justiça dual, da
norma ao conflito, do conflito à norma, tendo a defesa do art. 5º da CF/1988
como referência – o princípio da defesa da dignidade humana –, sob pena da
falta de marginalização, pelo sistema oficial, do conteúdo transformador,
restaurativo e emancipatório dos meios transformativos ou restaurativos de
solução de controvérsias. Diante deste parâmetro, busca-se incorporar as
abordagens dialógicas ao Poder Judiciário, sobretudo àquelas associadas à
ação pedagógica desses meios de solução pacífica de controvérsias. Assim,
em regra, o juiz não deve mediar. Até mesmo a conciliação deve ser
conduzida por uma equipe multidisciplinar independente da atuação judicial.

conhecimento é uma “tradução” que estimula a reflexão, que, no seu entendimento, é o “que
mais faz falta” na atualidade.
43 MORIN, op. cit., p. 455.
44 Consultar MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Porto

Alegre: Sulina, 2001., p. 242-251.


45 MORIN, Edgar. A minha esquerda. Trad. de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi

Bosco. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 212.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 292


Será fundamental, no entanto, que os juízes tenham a compreensão de que o
julgamento é o mais poderoso e, ao mesmo tempo, o mais precário modo de
solucionar uma controvérsia. Na verdade, a sentença do magistrado não
resolve o conflito, apenas enseja o término de um processo, sendo que uma
das partes – por ficar contrariada – retornará, com um novo processo, ao
Judiciário.
É com esta visão que devem ser debatidos e aperfeiçoados tanto o
projeto de lei da mediação paraprocessual, que visa a suplementar o processo
civil com várias alternativas e oportunidades de encontro dialógico, quanto o
projeto de lei da mediação penal e outras práticas restaurativas, voltado à
adoção de núcleos de justiça restaurativa, num alargamento do processo
penal, relativamente às infrações de pequeno ou médio potencial ofensivo;
ambos em tramitação no Congresso Nacional.
Por fim, salienta-se que é verdade que é na ciência que estão os
princípios, os critérios técnicos, mas também é lícito afirmar que é no
sentimento do mundo, na troca de olhares, no reconhecimento e no perdão,
enfim, no amor, que se faz a humanidade e a ciência da humanidade. Como
assinalou Warat, ao longo de sua vasta obra para mediar, como para viver, é
preciso sentir o sentimento. O mediador não pode se preocupar em intervir
no conflito, transformá-lo. Ele tem que intervir sobre os sentimentos das
pessoas, ajudá-las a sentir seus sentimentos, renunciando à interpretação e
aos julgamentos. Os conflitos nunca desaparecem, se transformam; isso
porque, geralmente, tentamos intervir sobre o conflito e não sobre o
sentimento das pessoas. Por isso, é recomendável, na presença de um conflito
pessoal, intervir sobre si mesmo, transformar-se internamente; então, o
conflito se dissolverá (se todas as partes comprometidas fizerem a mesma
coisa). O mediador deve entender a diferença entre intervir no conflito e nos
sentimentos das partes. O mediador deve ajudar as partes, fazer com que
olhem a si mesmas e não ao conflito, como se ele fosse alguma coisa
absolutamente exterior a elas mesmas. Quando as pessoas interpretam
(interpretar é redefinir), escondem-se ou tentam dominar (ou ambas as
coisas). Quando as pessoas sentem sem interpretar, crescem. Os sentimentos
são sentidos em silêncio, no corpo vazio de pensamentos. As pessoas, em
geral, fogem do silêncio. Escondem-se no escândalo das palavras. Teatralizam

Ética, direitos humanos e meio ambiente 293


os sentimentos, para não senti-los. O sentimento sentido é sempre
aristocrático, precisa da elegância do silêncio. As coisas simples e vitais como
o amor são entendidos pelo silêncio que as expressam. A energia que está
sendo dirigida ao ciúme, à raiva, à dor tem que se tornar silêncio. A pessoa,
quando fica silenciosa, serena, atinge a paz interior, a não violência, a
amorosidade. Estamos a caminho de tornarmo-nos liberdade. Essa é,
segundo Warat, a meta da mediação.

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 296


15
A fiscalização da cota de aprendizes em prol do direito
humano à educação e do combate à violência e à exploração
do trabalho infantil*

Tadeu Matos Guterres Martins**


Cheila Aparecida Oliveira***

Introdução

A problemática do trabalho infantil representa um enorme desafio no


mundo atual. A Organização Internacional do Trabalho estabelece idade
mínima para início da atividade laboral por parte dos jovens, de forma que
todos os países signatários de suas convenções relativas ao tema devem
desenvolver políticas públicas, com o objetivo de cumpri-las. O Brasil, em
especial, apesar de ter avançado bastante nos últimos anos, no combate ao
trabalho infantil, ainda está longe de uma condição aceitável.
Surge, assim, o enorme desafio nacional de se buscarem formas
criativas, de baixo custo, viáveis e efetivas de se combater o trabalho infantil
e de se erradicar suas piores formas, descritas na denominada Lista TIP
(Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil).
Nesse contexto, o presente trabalho tratará do programa jovem
aprendiz e de como ele pode ser utilizado como ferramenta no combate ao
trabalho infantil. Enfatiza-se a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego,
por meio do trabalho dos Auditores Fiscais do Trabalho (AFT), como órgão

* O presente artigo foi elaborado a partir de monografia defendida na Imed, terceiro lugar na
4a edição do Prêmio “Aluno Pesquisador TCC”.
** Pós-graduado em Ensino de Ciências da Natureza pela Universidade Potiguar. Graduado

em Física pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado em Direito pela Imed e exerce o
cargo de Auditor Fiscal do Trabalho desde agosto de 2010.
*** Doutoranda em Direito pela Estácio de Sá (Unesa/RJ). Professora Adjunta II do Curso de

Direito da IMED. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) com bolsa
Capes. Especialista em Direito Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina
(Cesusc/Ipejur). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Luterana
do Brasil (Ulbra). Foi Bolsista da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Graduada
em 1º lugar com Láurea Universitária no Curso de Direito da Universidade de Passo Fundo
(UPF). E-mail: cheila.olive@hotmail.com.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 297


responsável tanto pelo combate ao trabalho infantil quanto pela fiscalização
do cumprimento da cota de aprendizes pelas empresas.
Tudo isso com o objetivo de demonstrar a real possibilidade de se
reduzir a quantidade de crianças e jovens laborando de forma ilegal, por
meio de uma intensa, planejada e inteligente fiscalização do cumprimento
das cotas de jovens aprendizes realizada pelo Ministério do Trabalho e
Emprego, no âmbito das empresas e equiparados que possuem essa
obrigação legal.

Trabalho infantil

O conceito de trabalho infantil pode ser abordado em linhas gerais


como sendo aquele labor realizado por crianças e adolescentes até a
determinada idade-limite, a partir da qual seu trabalho deixa de ser
considerado irregular. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)
estabeleceu, no artigo primeiro da Convenção Internacional 138,

Todo Membro, para o qual vigore a presente Convenção, compromete-se


a seguir uma política nacional que assegure a abolição efetiva do
trabalho de crianças e eleve, progressivamente, a idade mínima de
admissão ao emprego ou ao trabalho a um nível que torne possível aos
menores o seu desenvolvimento físico e mental mais completo.

Especificando esse entendimento, o parág. 3o do art. 2o da mesma


Convenção quantifica a idade mínima para o trabalho da seguinte forma: “A
idade mínima fixada em cumprimento do disposto no parágrafo 1 do
presente artigo não deverá ser inferior à idade em que cessa a obrigação
escolar, ou em todo caso, a quinze anos”.
Assim, todos os países signatários dessa Convenção se comprometem a
adotar idades iguais ou superiores ao estabelecido como idade mínima
exigida para o início da atividade laborativa para os jovens.
O Brasil incorporou ao seu ordenamento jurídico as convenções
internacionais que tinham como escopo a proteção laboral da criança e do
adolescente. O resultado desses decretos, que ratificaram tais convenções se
encontra estabelecido hoje na Constituição e na legislação
infraconstitucional.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 298


O conceito de trabalho infantil está inserido no art. 7o, inciso XXXIII da
Constituição Federal de 1988, o qual possui a seguinte redação, dada pela
Emenda Constitucional 20 de 1998:
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXXIII – proibição de
trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de
qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de
aprendiz, a partir de quatorze anos.

Sendo assim, pode-se chegar à conclusão de que, no Brasil, qualquer


trabalho é proibido para menores de 14 anos.
Na faixa etária de jovens entre 14 e 16 anos de idade, a única
possibilidade de realizar atividade laboral, salvo autorização judicial, é por
meio do programa jovem aprendiz. Excluindo esta hipótese, o trabalho para
essa faixa etária é proibido.
No tocante à última faixa etária, jovens de 16 a 18 anos, o trabalho é
liberado, porém com algumas restrições. Para que seja permitido o trabalho
desses jovens, é necessário que a atividade laborativa não seja noturna,
perigosa e/ou insalubre.

Causas do trabalho infantil


O trabalho infantil é, de fato, um problema complexo. Complexidade,
nesse contexto, não significa apenas que é um problema de difícil ou de
impossível solução. Pelo contrário, a complexidade dessa temática tem a ver
com a enorme quantidade de variáveis que compõem o cenário, que
proporciona a ocorrência do trabalho infantil. Nesse sentido, explica Costa:

Para elucidar os principais fatores que desencadeiam o trabalho infantil,


faz-se necessário analisar inúmeros aspectos, pois é um problema social
complexo, interligado a outros. Como principal causa do trabalho infantil
destaca-se a pobreza. Entre as demais estão o alto índice de desemprego,
a precariedade educacional no país, a baixa escolaridade dos pais. São,
portanto, aspectos econômicos, culturais, políticos que, de uma forma ou
outra, influenciam o modo de viver e pensar da sociedade. 1

1 COSTA, Marli Marlene Morais da; CASSOL, Sabrina. Alternativas basilares para a tão
almejada erradicação do trabalho infantil. In: COSTA, Marli Marlene Morais da; TERRA,
Rosane B. M. da R. Barcelos; RICHTER, Daniela (Org.). Direito, cidadania e políticas públicas
III: direito do cidadão e dever do Estado. Porto Alegre: UFRGS, 2008. p. 14.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 299


Ora, problemas complexos requerem soluções complexas. Um dos
grandes fatores que contribuem para a dificuldade da questão do labor
precoce são suas várias causas. Analisar essas causas ajuda a compreender o
tema e a iniciar de forma mais segura um processo de aplicação de possíveis
soluções, com a finalidade de se tentar erradicar o trabalho infantil do
território nacional.
Uma das mais conhecidas causas de trabalho infantil é a pobreza.
Famílias que não possuem renda suficiente para seu próprio sustento apelam
para a mão de obra de crianças e adolescentes, com o ensejo de resolver um
problema presente e urgente e, agindo assim, geram um ciclo vicioso de falta
de qualificação profissional e perpetuação das condições precárias de vida.
Sair desse ciclo não é fácil, pois somente com educação e qualificação
mínimas é que o futuro trabalhador adulto conseguirá assegurar uma renda
superior à de seus ascendentes. O trabalho precoce, na maioria das vezes,
impede essa qualificação.
Veronese e Custódio, ao discorrerem sobre a questão da pobreza como
causa do trabalho infantil, ressaltam o fato de que a necessidade de
complementação da renda familiar não pode ser o único fator considerado,
no processo que leva uma criança ao trabalho precocemente, até mesmo
porque o rendimento adicional que a criança proporciona à família não altera
de forma significativa à renda familiar total. Mesmo assim, afirmam:
As causas econômicas são apontadas frequentemente como um dos
principais fatores determinantes do trabalho infantil, incluindo o
trabalho infantil doméstico. A condição de pobreza e a baixa renda
familiar são um dos estímulos para o recurso ao trabalho da criança e do
adolescente, pois a busca pela sobrevivência exigiria a colaboração de
todos os membros do grupo familiar. 2

Em momentos de recessão no País, aumento da pobreza e do


desemprego, ocorre uma elevação da informalidade. Quando os adultos
perdem emprego, buscam o mercado informal para conseguir algum tipo de
renda e, como a prioridade das famílias é sobreviver, uma solução deve ser

2VERONESE, Josiane Rose Petry; CUSTÓDIO, André Viana. Trabalho infantil doméstico no
Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 88.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 300


imediata; deixam de lado projetos de médio e de longo prazo, como, por
exemplo, a educação das crianças. Assim, adolescentes e crianças acabam
deixando as salas de aula para auxiliar no sustento da família.
Em especial, o desemprego possui enorme e direta influência na
quantidade de jovens aprendizes. O art. 429 da CLT, com redação dada pela
Lei 10.097, de 2000, dispõe que “os estabelecimentos de qualquer natureza
são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de
Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no
mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em
cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional”. Ora,
se as empresas são obrigadas a matricular aprendizes equivalentes a um
percentual do número de empregados, é natural que a redução da quantidade
de empregos formais, no país, reduza o número de aprendizes matriculados
em cursos de Serviços Nacionais de Aprendizagem.
Dessa forma, o setor informal irá absorver essa mão de obra.
Justamente o setor das relações precárias de trabalho, que, além disso, para
menores de 18 anos é ilegal. No mundo real, o jovem aprendiz não busca
apenas o aprendizado. Ele geralmente necessita da renda oferecida em
contrapartida à atividade que desenvolve. A redução das vagas de aprendizes
não irá reduzir a necessidade dos jovens em receber uma remuneração.
Assim, eles serão induzidos a buscar na informalidade (ilegalidade) uma
alternativa de renda.
É importante citar mais uma, de diversas outras causas, muito comum e
relevante no atual contexto. O significado cultural e tradicional do trabalho
infantil.
No que tange à questão cultural, o Brasil possui um longo histórico não
apenas social, mas também legal, em relação ao descaso com a infância.
Sempre houve uma grave e significativa discrepância no tratamento entre as
crianças de classes economicamente privilegiadas e as provenientes de
famílias pobres.
Obviamente, o mais claro retrato dessa situação ocorria no período da
escravidão. Posteriormente, superado o período escravocrata, o problema do
menor marginalizado ou que não tinha onde ficar, tendo em vista a
necessidade de seus pais trabalharem, foi tratado não de forma a combater as

Ética, direitos humanos e meio ambiente 301


causas que originavam aquela situação, mas, sim, de modo punitivo em
relação àqueles menores vadios, que se encontravam nas ruas. A teoria que
fundamentou a produção legislativa da época foi denominada Doutrina da
Situação Irregular.
Por todo o exposto, pode-se constatar a enorme gama de causas que
têm como consequência o aumento do trabalho infantil.

Consequências do trabalho infantil


As restrições impostas ao exercício do trabalho por pessoas menores de
18 anos são justificadas pela necessidade de se protegerem as crianças e os
jovens da exploração de sua força de trabalho pelos empregadores, que
optam pelo trabalho infantil, com o intuito de reduzir os custos com mão de
obra. Tais restrições existem, também, para a proteção da saúde daqueles
que ainda estão com o corpo em formação. Destaque-se, ainda, a necessidade
de se proteger a formação escolar das crianças e dos jovens, tendo em vista
que muitos abandonam os estudos por causa do trabalho.
Essas proteções existem para evitar as nefastas consequências do
trabalho precoce na formação intelectual, física e psicológica das crianças e
dos jovens.
Diante de todo o exposto, é fácil constatar as consequências infligidas
pelo trabalho precoce, não só ao menor, mas a toda a sociedade. As crianças e
os jovens que trabalham prejudicam seu rendimento escolar ou, até mesmo,
têm o acesso à escola inviabilizado; recebem menos que os adultos, isso
quando possuem algum tipo de remuneração; realizam excessivas jornadas
de trabalho; são expostos a condições insalubres de trabalho, a ambientes
com higiene inadequada, a riscos de acidentes de trabalho, a doenças
ocupacionais e, ainda, à exploração sexual. E em que pese o fato de esse
amplo rol de malefícios produzidos pelo trabalho precoce ser facilmente
verificado, ainda existe muita resistência da sociedade, e às vezes do próprio
Estado, no esforço de coibir o trabalho infantil, o que dificulta as ações,
governamentais ou não, relativas ao seu combate. Com relação a essa
problemática, dispõe Souza, de forma clara:
Os aspectos culturais representam limites concretos para a erradicação
do trabalho infantil e estão dispostos em forma de mitos culturais

Ética, direitos humanos e meio ambiente 302


reproduzidos por gerações, e ainda reforçados por práticas jurídicas e
políticas ao longo da história brasileira. Expressões de uso comum são
representativas dessa realidade, tais como: 01. é melhor trabalhar do
que roubar; 02. o trabalho da criança ajuda a família; 03. é melhor
trabalhar do que ficar nas ruas; 04. lugar de criança é na escola; 05.
trabalhar desde cedo acumula experiências para trabalhos futuros; 06. é
melhor trabalhar do que usar drogas; 07. trabalhar não faz mal a
ninguém. 3

Esses mitos refletem de forma clara os valores difundidos atualmente


na sociedade. Para ela, os problemas referentes à criminalidade são
decorrência do fato de as crianças não estarem trabalhando e não por
estarem fora da escola, ou até mesmo dentro da escola, mas recebendo um
péssimo ensino e sendo aprovadas sem terem aprendido o assunto. O mito
referente à ajuda do trabalho da criança para o sustento da família traz em si
uma enorme inversão. Segundo ele, não são só os pais que devem sustentar a
criança e propiciar-lhe um desenvolvimento digno e, na falta desses, o Estado
e/ou a sociedade, mas, sim, a criança, por meio de seu trabalho, deve
colaborar com o sustento dos pais, em detrimento de sua formação
intelectual, física e psicológica.
Dessa forma, resta clara a necessidade não apenas de modernizar o
aparato jurídico, mas também de implementar políticas públicas sérias e
efetivas, que não só combatam diretamente a danosa prática do trabalho
infantil, como também conscientizem a sociedade dos danos provenientes
dessa problemática.

O trabalho infantil na Constituição Federal e na Consolidação dos


Leis do Trabalho
A Carta de 1988 estabeleceu um amplo leque de direitos e garantias aos
trabalhadores e, conforme citado acima, no inciso XXXIII do art. 7o dispõe
sobre as hipóteses de proibição do trabalho infantil. Ainda nessa linha,
inseriu na legislação pátria o Princípio da Proteção Integral ao Menor, norma
pertencente ao grupo dos Direitos e das Garantias Fundamentais, conforme
dispõe seu art. 227, o qual estabelece em seu caput:

3 SOUZA, Ismael Francisco de. O conselho tutelar e a erradicação do trabalho infantil.


Criciúma: Unesc, 2010. p. 44.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 303


Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Seus mandamentos, assim, vêm representando um enorme desafio à


sociedade e ao Estado, para adequar a realidade do país ao conteúdo da
Norma Constitucional programática, em especial no tocante às questões
trabalhistas envolvendo menores de 18 anos de idade. A finalidade de se
alcançarem as garantias dos direitos de crianças e adolescentes que, em
última instância, significa assegurar a máxima efetividade do princípio da
dignidade humana para esse grupo de pessoas, não é mera faculdade dos
responsáveis pelas políticas públicas e dos operadores do direito, e sim um
dever.
Nesse sentido, Barroso4 afirma que “o tema da eficácia e efetividade da
constituição relaciona-se com o plano da concretização constitucional, no
sentido da busca da aproximação tão íntima quanto possível entre o dever ser
normativo e o ser da realidade social”, sendo complementado por Canotilho:5
“O princípio da máxima eficácia e efetividade implica o dever do intérprete e
aplicador de atribuir o sentido que assegure maior eficácia às normas
constitucionais”. É neste ponto que se encontra o cerne da questão do
trabalho infantil, na efetiva garantia da dignidade humana para crianças e
adolescentes, que são privados dela em decorrência da atividade laborativa
precoce e ilegal. É importante salientar que tal princípio vem insculpido já no
art. 1º da Constituição Federal de 1988, como um fundamento da República
Federativa do Brasil.
Nesse sentido, é evidente o intuito da CF/88 em propiciar a crianças e
adolescentes tratamento diferenciado, que consiste em oferecer um extenso
rol de proteção para eles, em especial proteção contra o trabalho infantil.
Assim, a efetiva aplicação da norma constitucional exige ações imediatas para

4 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro:


Forense, 2010. p. 305.
5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed.

Coimbra: Almedina, 1999. p. 1224.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 304


a aplicação do princípio da proteção integral e que toda a interpretação da
legislação infraconstitucional seja realizada segundo os princípios
estabelecidos na Carta Magna.

Na Consolidação das Leis do Trabalho


A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é a lei federal que atende ao
disposto no art. 22, inciso I da Constituição Federal, que afirma ser
competência privativa da União legislar sobre Direito do Trabalho.
No que tange à regulamentação do trabalho do menor, a CLT possui
todo um capítulo (Capítulo IV – Da Proteção do Trabalho do Menor)
composto por 40 artigos que versam sobre diversos itens relacionados à
proteção do trabalho do menor: a idade mínima (art. 403), questões relativas
a descanso, intervalos e duração da jornada de trabalho, proibição do
trabalho perigoso, insalubre, penoso (art. 405), noturno (art. 404) ou
trabalhos realizados em locais prejudiciais à sua formação, ao seu
desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que
não permitam frequência à escola (art. 403 parágrafo único).
A aprendizagem está regulamentada do art. 428 ao 433 da CLT.
Resumidamente, eles conceituam a aprendizagem, o contrato de
aprendizagem, regulam os valores máximo e mínimo de aprendizes que uma
empresa pode ter, dispõem sobre os limites temporais de duração do
contrato e da jornada do aprendiz, impõe a necessidade de frequência e
rendimento escolares e mostram como se dará a participação das entidades
de ensino profissionalizante no processo de aprendizagem profissional.
É clara na CLT a ideia de proteção ao trabalho do menor. Nessa linha,
ela não só regulamenta o disposto na CF/88, como amplia o rol mínimo de
proteção. A CLT, ainda, exige que as empresas ou equiparados efetuem a
contratação de aprendizes. Assim, seu art. 429 estabelece um percentual
mínimo de 5% e máximo de 15% dos trabalhadores existentes em cada
estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional. Consoante
dito, o percentual mínimo exigido existe para garantir que jovens aprendizes
sejam contratados e o máximo, para se tentar evitar a indevida utilização da
mão de obra do aprendiz, desvirtuando-se dos fins do contrato de
aprendizagem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 305


Em relação a essa temática, dispõe Amazarray:
Por sua vez, a contratação de aprendizes, regulamentada pelo Decreto no
5598/2005 (Brasil, 2005), assegura formação técnico-profissional e
realização de atividades compatíveis com a vida escolar e com o
desenvolvimento físico, psicológico e moral do aprendiz. [...] A
contratação de aprendizes é obrigatória para empresas submetidas ao
regime da Consolidação das Leis do Trabalho, no número equivalente a,
no mínimo, 5% e, no máximo, 15% dos trabalhadores. Como
consequência, empresas têm inserido adolescentes em seu quadro
funcional na condição de aprendizes que executam suas atividades
protegidos pela legislação. 6

Por todo o exposto, apesar de essa temática do trabalho do menor ser


uma parte bastante negligenciada pelos autores da seara trabalhista, ela se
apresenta na Consolidação das Leis Trabalhistas de modo bastante relevante
e possui extrema importância no âmbito social.

Programa jovem aprendiz

O conceito de aprendizagem é dado pelo art. 62 do ECA – “Considera-se


aprendizagem a formação técnico-profissional ministrada segundo as
diretrizes e bases da legislação de educação em vigor” –, que obriga os entes
contratantes a seguirem as disposições ali citadas e, sublinhe-se, as
contratações devem ser realizadas em consonância com o princípio da
proteção integral já discutido.
Desenvolvido com o intuito de propiciar qualificação profissional para
os jovens e simultaneamente gerar renda, o programa jovem aprendiz
apresenta diversos pontos positivos. O jovem que participa do programa
recebe qualificação, salário; é inserido no sistema previdenciário e no
mercado de trabalho. Para as empresas, existe a oportunidade de se
qualificar mão de obra para que posteriormente possa ser utilizada de acordo
com suas necessidades e, ainda, cumprir um relevante papel social. O
governo se beneficia pela redução da informalidade, do trabalho infantil,
dentre outros fatores. Já a sociedade tem como benefício a oportunidade

6AMAZARRAY, Mayte Raya et al. Aprendiz versus trabalhador: adolescentes em processo de


aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 25, n. 3, p. 329, jul./set 2009.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 306


oferecida aos seus jovens, em total conformidade com a lei e a redução de
todos os prejuízos decorrentes da utilização ilegal do trabalho precoce.
Depreende-se também do conceito que a aprendizagem técnico-
profissional deve ser metódica, ou seja, a instituição de ensino
profissionalizante deve elaborar previamente toda a sequência de atividades
que devem ser desenvolvidas, de modo que se estabeleça um processo de
aprendizado contínuo e progressivo.

O contrato de aprendizagem
O programa jovem aprendiz consiste na realização de contrato de
trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado entre o
empregador e o jovem maior de 14 anos e menor de 24 anos de idade. Para
isso, o jovem deverá estar inscrito em programa de aprendizagem compatível
com seu grau de desenvolvimento e ministrado, preferencialmente, por
Serviços Nacionais de Aprendizagem, os quais, juntamente com o
empregador, o jovem e seu responsável, no caso de menores de 18 anos de
idade, participam da relação contratual de trabalho.
Nestes termos, ensina-nos a Consolidação das Leis Trabalhistas em seu
art. 428:

Art. 428. Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial,


ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se
compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte
e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-
profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico,
moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as
tarefas necessárias a essa formação.

Sendo assim, percebe-se que o contrato de aprendizagem é especial,


deve ser obrigatoriamente escrito. Esse contrato sempre será a prazo
determinado, com validade máxima de dois anos e atingirá o público jovem,
na faixa etária entre 14 e 24 anos de idade, salvo para pessoas com
deficiência, para as quais o contrato de aprendizagem não possui limite
superior de idade.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 307


E, além disso, nas palavras de Vecchi,7 o contrato de aprendizagem “visa
possibilitar ao aprendiz, por meio de formação técnico profissional na
empresa, captar o aprendizado de experiências necessárias para o seu
desenvolvimento profissional”.
No programa jovem aprendiz, também é assegurado o pagamento do
salário mínimo-hora, a assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência
Social (CTPS), o recolhimento das contribuições previdenciárias e do Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço (com alíquota de 2%).
Com relação a este assunto cita-se Oliveira:
O contrato de aprendizagem celebrado por escrito com adolescentes
entre 14 e 18 anos deve ser consignado na Carteira de Trabalho,
indicando matrícula e frequência à escola caso não haja concluído o
ensino fundamental, e sua duração deve corresponder ao tempo
necessário para obter a formação, não podendo, porém, ultrapassar dois
anos. Ressalvadas as normas específicas de um contrato especial, o
aprendiz torna-se empregado para todos os efeitos, gozando, pois, de
todos os direitos trabalhistas e previdenciários, nestes incluída a
cobertura contra acidentes de trabalho. 8

Pelo exposto, salienta-se que, para a formação e o prosseguimento do


contrato de aprendizagem, são obrigatórios a matrícula, a frequência e o bom
rendimento escolar dos jovens inseridos no programa, caso estes ainda não
tenham concluído o Ensino méDio.

Personagens envolvidos
Os principais atores na questão da aprendizagem profissional, nos
moldes definidos pela CLT, são: o jovem com idade maior ou igual a 14 anos e
menor de 24 anos; o empregador, que possui em seu estabelecimento a partir
de sete funcionários que demandem formação profissional; os serviços
nacionais de aprendizagem e o governo federal.
Segundo o Manual da Aprendizagem,9 aprendiz é

7 VECCHI, Ipojucan Demétrius. Noções de direito do trabalho: um enfoque constitucional. 2.


ed., rev. e ampl. Passo Fundo Universidade de Passo Fundo, 2007. p. 441.
8 OLIVEIRA, Oris de. In: CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado:

comentários jurídicos e sociais. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 295.
9 MANUAL DA APRENDIZAGEM: o que é preciso saber para contratar o aprendiz – Brasília:

MTE, 2014. p. 15.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 308


o adolescente ou jovem entre 14 e 24 anos que esteja matriculado e
frequentando a escola, caso não tenha concluído o Ensino Médio e
inscrito em programa de aprendizagem (art. 428, caput e § 1º, da CLT).
Caso o aprendiz seja pessoa com deficiência, não haverá limite máximo
de idade para a contratação (art. 428, § 5º, da CLT).

É importante salientar que o jovem entre 14 e 18 anos “em observância


aos princípios contidos no art. 227 da Constituição Federal (CF/88) e no
ECA”,10 possui prioridade na contratação.
O jovem aprendiz deve executar com zelo e diligência as tarefas
dispostas no curso de formação, ser assíduo e pontual, ter frequência e
rendimento escolares mínimos.
O atestado de frequência e rendimento escolar deve ser fornecido pela
escola, e o jovem deve apresentá-lo à instituição de ensino profissionalizante,
responsável pela elaboração e o acompanhamento do programa. Esta, por sua
vez, deve compartilhar essas informações com o empregador.
Caso o jovem ainda não tenha o Ensino Médio completo, o § 1o do art.
428 da CLT exige a matrícula na escola para a validade do contrato de
aprendizagem.
Apesar de a empresa ser obrigada a manter a cota mínima de
aprendizes, nada obsta que algum aprendiz venha a ser desligado por
iniciativa do empregador. O art. 433 da CLT elenca diversas hipóteses nas
quais o empregador pode dispensar o aprendiz, antes do término do contrato
de aprendizagem. O aprendiz também pode pedir para sair do programa a
qualquer tempo. Ao jovem matriculado no curso de aprendizagem é
assegurado salário-mínimo-hora, ou o piso estadual, caso seja superior ao
salário-mínimo nacional. Destaque-se que “a convenção ou o acordo coletivo
da categoria poderá garantir ao aprendiz salário maior que o mínimo (art.
428, § 2º, da CLT e art. 17, parágrafo único do Decreto 5.598/05)”.11 Também
é assegurada a anotação da CTPS, o recolhimento do FGTS com alíquota de
2% e inserção no sistema previdenciário.
No tocante às entidades qualificadas em formação técnico-profissional
metódica, são elas que elaboram o programa de educação profissional,

Idem.
10

MANUAL DA APRENDIZAGEM: o que é preciso saber para contratar o aprendiz. Brasília:


11

MTE, 2014. p. 29.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 309


metódico, organizado em tarefas de complexidade progressiva, que será
executado por elas próprias e pelas empresas com os aprendizes durante a
realização do contrato de aprendizagem.
Os serviços nacionais de aprendizagem possuem prioridade no
atendimento à demanda por aprendizes. Conssoante disposto no art. 430 da
CLT, somente se não houver na localidade esses serviços ou se estes não
estiverem atendendo a demanda é que o interessado deverá recorrer às
escolas técnicas de educação, até mesmo às agrotécnicas e às entidades sem
fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e a
educação profissional.
Cabe à entidade formadora a elaboração do programa técnico-
profissional que preveja a execução de atividade teóricas e práticas, com
especificação do público-alvo, dos conteúdos programáticos a serem
ministrados, do período de duração, da carga horária teórica e prática, dos
mecanismos de acompanhamento, da avaliação e certificação do
aprendizado, observando os parâmetros estabelecidos na Portaria MTE 615,
de 13 de dezembro de 2007.
Ficará, também, sob a responsabilidade da entidade formadora o dever
de fornecer à empresa o respectivo plano de curso e orientá-la para que ela
possa compatibilizar o desenvolvimento da prática à teoria ministrada e a
incumbência de conceder certificado de qualificação profissional aos
aprendizes que concluírem curso de aprendizagem, com o aproveitamento
mínimo.
Por fim, tais entidades têm o dever de fiscalizar o correto cumprimento
e o desenvolvimento do contrato de aprendizagem, devendo informar às
autoridades competentes quaisquer indícios de desvirtuamento dos fins do
programa, por parte do empregador.
Com relação ao papel da escola no programa jovem aprendiz, tem-se
que este é bem restrito. Pelo menos em termos de exigências formais, o
legislador é que impõe à instituição.
A escola deve fornecer atestados de frequência e rendimento de seus
alunos que sejam jovens aprendizes, para que possam apresentá-los à
instituição de ensino profissionalizante responsável pelo programa.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 310


No que diz respeito ao empregador, sua principal obrigação, na
temática da aprendizagem, é realizar a contratação do jovem aprendiz,
conforme dispõe o art. 2o da Instrução Normativa (IN) 97, de 2002 do MTE.
Deve ser cumprida pelo empregador a obrigação inicial de contratação
do(s) jovem(ns) aprendiz(es), na quantidade estipulada pelo cálculo da cota
legal. A escolha do jovem é de sua livre escolha, devendo indicar monitor
para acompanhar o aprendiz nas suas atividades.
Cabe, ainda, ao empregador realizar a matrícula do aprendiz no curso,
respeitar todas as limitações impostas ao trabalho do menor, no caso de
aprendizes entre 14 e 18 anos de idade, agir de acordo com o princípio da
proteção integral, proceder às devidas anotações do contrato de trabalho na
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) do jovem, pagar o salário e
efetuar o recolhimento das contribuições previdenciárias e do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Todos esses cuidados e deveres são de suma importância, haja vista a
aprendizagem ser uma modalidade de trabalho educativo, que, nas palavras
de Costa, trata-se de “[...] um tipo específico de relação laboral que, sem
excluir a possibilidade de produção de bens ou serviços, subordina essa
dimensão ao imperativo do caráter formativo da atividade, reconhecendo
como sua finalidade principal o desenvolvimento pessoal e social do
educando”. 12
A empresa ou o empregador deve sempre prezar para que o contrato de
aprendizagem tenha seu desenrolar de forma mais efetiva possível: o jovem
deve ser orientado pelo responsável por seu acompanhamento, deve ser
cobrado pela realização de suas tarefas e pela técnica que utiliza para realizá-
las, não deve ter sua função desvirtuada e deve trabalhar em um ambiente
propício ao seu desenvolvimento físico, psicológico e intelectual.
Por fim, é competência do governo – mais especificamente, do Governo
Federal –, representado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a
fiscalização do cumprimento da cota de aprendizes e de todos os atributos
trabalhistas referentes ao contrato do aprendiz, como, por exemplo, jornada
de trabalho, correto pagamento do salário, assistência nas rescisões dos

12COSTA, Antônio Carlos Gomes da. In: CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente
comentado: comentários jurídicos e sociais. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 314.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 311


contratos superiores a um ano e verificação in loco de possíveis desvios de
finalidade ou irregularidades no exercício das atividades dos aprendizes.
Tais competências estão dispostas na Instrução Normativa (IN) 97, de
2012 do TEM, que dispõe sobre a fiscalização das condições de trabalho, no
âmbito dos programas de aprendizagem.
Para isso, os Auditores Fiscais do Trabalho podem autuar as empresas,
acionar o Ministério Público do Trabalho para eventual ação civil pública ou
até mesmo rescindir os contratos de trabalho, desconsiderando o registro
como aprendiz, caso o desvirtuamento do contrato de aprendizagem seja
grave e insanável.
Cumpre salientar que, além do exercício do poder de polícia supra-
analisado, deve o Poder Público também divulgar o disposto na lei de
aprendizagem; orientar jovens, pais, entidades; firmar convênios com outros
órgãos e utilizar todos os recursos e meios disponíveis para que o maior
número possível de jovens permaneça fora do trabalho infantil. Ou seja, deve
o Poder Público adotar medidas e implementar políticas públicas que visem a
efetivação do direito do jovem à profissionalização, ao trabalho e à renda,
sendo a inserção na aprendizagem uma maneira muito eficiente de se atingir
esse fim.

Papel do Ministério do Trabalho e Emprego na inserção de aprendizes


no mercado de trabalho

Em que pese haver inúmeros benefícios e bons resultados nas


atividades de articulação da rede protetora e conscientização da comunidade,
não se pode deixar de enfatizar o poder da atividade de fiscalização do TEM,
no que diz respeito à redução do trabalho infantil e à inserção de jovens
aprendizes no mercado de trabalho.
Sem a repressão ao trabalho infantil e as consequentes punições
aplicadas aos empregadores que se utilizam irregularmente dessa mão de
obra, os números envolvendo tais práticas seriam ainda maiores dos que os
apresentados nos dias atuais.
Com o intuito de regulamentar a inspeção do trabalho nas ações de
combate ao trabalho infantil, foi publicada a Instrução Normativa (IN)

Ética, direitos humanos e meio ambiente 312


102/2013, da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), que dispõe sobre a
fiscalização do trabalho infantil e a proteção ao adolescente trabalhador.
Sobre essa IN, escreve Ribeiro:13

A SIT/MTE n. 102/13 dispõe sobre a atuação da inspeção do trabalho no


combate ao trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente. Em
seu art. 2º, a IN n. 102/2013 estipula que todos os Auditores Fiscais do
Trabalho têm competência institucional de fiscalizar os locais de
trabalho, almejando combater o trabalho infantil e proteger o
trabalhador adolescente. Em seu art. 3º, a IN 102/2013 espelha a
Doutrina da Proteção Integral ao dispor sobre a prioridade absoluta
conferida à inspeção e às ações fiscais, nos casos de denúncias
envolvendo trabalho infantil e trabalhador adolescente. Da mesma
forma, esse artigo provoca os Auditores Fiscais do Trabalho a planejarem
fiscalizações específicas para combate do trabalho infantil e do trabalho
irregular de adolescentes.

A fiscalização possui competência ainda para rescindir os contratos de


trabalho das crianças e dos jovens encontrados em situação irregular
(Parágrafo único do art. 6o da IN 102/2013), lavrar os autos de infração
pertinentes contra o empregador e exigir o pagamento de verbas rescisórias
e indenizações para o trabalhador infantil (art. 9o). Paralelamente a isso,
encaminham-se relatórios para o Ministério Público do Trabalho (MPT) –
para que, tomando conhecimento da situação, adote as medidas cabíveis à
situação descrita (art. 9o, §1o) –, ao Conselho Tutelar e à Secretaria de
Assistência Social do Município, para que venham a acompanhar a família e o
jovem e para que possam prestar algum tipo de apoio. Quando possível, o
próprio auditor fiscal tenta inserir o jovem afastado do trabalho ilegal no
programa jovem aprendiz, entrando em contato com empresas que
necessitem cumprir a cota.
A IN, em seu art. 4o, estabelece ainda que as chefias de fiscalização
devem buscar nas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego
(SRTE) “garantir a infraestrutura necessária para a execução das ações do
projeto de combate ao trabalho infantil, incluindo a designação de recursos

13 RIBEIRO, Ana Carolina Paranhos de Campos. A Doutrina da Proteção Integral nas

dinâmicas internacional e brasileira: uma proposta quadrangular a partir do estudo da


erradicação das piores formas de trabalho infantil. 2014. Dissertação (Mestrado) – UnB,
Brasília, 2014. p. 170.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 313


humanos, técnicos e administrativos, bem como a disponibilização de
materiais permanentes e outros que se fizerem necessários”. Tal preceito
está em consonância com a aplicação do princípio insculpido no art. 227 da
CF/88, que garante prioridade absoluta na aplicação do recursos públicos
para a garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
A necessidade de realização de fiscalizações se manifesta pelo fato de
haver grande número de empregadores que não cumprem de forma
espontânea as obrigações trabalhistas. O problema é tão grave que, mesmo
na aprendizagem, apontada como uma alternativa ao trabalho infantil para
jovens a partir de 14 anos de idade, quando o jovem está registrado e existe
um contrato de acordo com a legislação, há casos em que ocorre um desvio
nas atividades do aprendiz, que deve ser coibido pela fiscalização do
trabalho.
Para impedir esse tipo de prática, faz-se fundamental o planejamento
de ações estratégicas, que visem coibir essas fraudes e a realização periódica
e reiterada de fiscalizações, não só para verificação do trabalho infantil e do
cumprimento da cota de jovens aprendizes, mas também para o
acompanhamento do desenvolvimento do contrato de aprendizagem nas
empresas. Cumpre salientar que, no que diz respeito à fiscalização da
inserção de aprendizes no mercado de trabalho, os sistemas informatizados
que são colocados à disposição do Auditor Fiscal realizam o cruzamento das
informações que as empresas têm obrigação de declarar ao governo, tais
como a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e o Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados (Caged). Esses sistemas facilitam muito a
coleta de informações no que diz respeito às empresas que deixam de
cumprir a cota de aprendizes.
Além disso, também permitem a denominada fiscalização eletrônica,
regulamentada no art. 25-A da IN 97/2012, que proporciona aumentar
significativamente a quantidade de empresas fiscalizadas em dada região,
num determinado espaço de tempo.
Pelo exposto, pode-se perceber que, nos últimos anos, o aparato legal
que possibilita a utilização de instrumentos mais eficazes e eficientes, na
fiscalização, vem se aperfeiçoando de modo significativo. Embora não na
velocidade desejada pelos envolvidos nas atividades fiscalizatórias, esses

Ética, direitos humanos e meio ambiente 314


novos instrumentos estão permitindo significativa ampliação do universo
abrangido pela fiscalização da aprendizagem.

A relação entre a inserção de aprendizes e a redução do trabalho infantil


Considerando-se um contrato de aprendizagem regular, sem desvios na
sua execução, o maior número de aprendizes implica matematicamente uma
diminuição do número de jovens envolvidos com trabalho infantil.
Ora, se o intuito é zerar a quantidade de crianças e adolescentes
laborando de forma ilegal, deve-se aumentar o número de jovens que não
trabalham e/ou a quantidade daqueles que laboram de forma legal.
Como se percebe, o aumento do número de jovens aprendizes inseridos
no mercado de trabalho reduz, necessariamente, a quantidade de menores de
18 anos, que laboram de forma ilegal.
Os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) –, realizada em 2014 pelo IBGE, mostraram que, após anos de queda,
o percentual de crianças trabalhando voltou a aumentar no Brasil. Em 2013,
o percentual de crianças envolvidas com trabalho era de 7,5%. Já em 2014,
esse percentual subiu para 8,1%. Em termos absolutos, isso significa que de
2013 para 2014 o número de crianças e jovens trabalhando aumentou em
143.500 (cento e quarenta e três mil e quinhentos).
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNDA)
(2015):
Em 2014, havia 3,3 milhões de pessoas de 5 a 17 anos de idade
trabalhando no Brasil, os homens representavam cerca de dois terços
desse número. Comparando com 2013, houve um aumento de 4,5% no
número de crianças e adolescentes ocupados, ou um contingente de
143,5 mil a mais nesta condição.

O documento prossegue afirmando que “em termos absolutos, a maior


variação ocorreu no grupo de 14 a 17 anos de idade, 96,3 mil pessoas
ocupadas a mais, sendo que os maiores aumentos foram observados nas
Regiões Nordeste e Sul, 22,7 mil e 26,7 mil pessoas, respectivamente”.
Justamente a faixa etária que corresponde aos jovens que podem ser
atendidos pelos programas de aprendizagem.
Continua a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio afirmando:

Ética, direitos humanos e meio ambiente 315


Encontravam-se na situação de trabalho infantil – grupo de 5 a 13 anos
de idade – 554 mil pessoas. Destas, 70 mil estavam no grupo de 5 a 9
anos de idade e 484 mil no grupo de 10 a 13 anos de idade; enquanto no
grupo de 14 a 17 anos de idade, estavam 2,8 milhões de pessoas.

Resumidamente, tem-se que em 2014 havia 3,3 milhões de crianças e


jovens entre 5 e 17 anos realizando atividade laboral. Desse total, 554.000
estão na faixa etária entre 5 (cinco) e 13 anos. Ao decompor esta última faixa
em duas, observou-se que, de 5 (cinco) a 9 (nove), anos existem 70.000
crianças trabalhando. Já na faixa de 10 (dez) a 13 anos são 484.000 que
realizam atividade laboral.
Por último, encontra-se a faixa etária de 14 a 17 anos, que, para este
trabalho, possui maior importância, tendo em vista que se trata da faixa
atingida pelo programa jovem aprendiz. Sendo assim, são 2,8 milhões de
jovens que estão realizando atividade laboral, seja ela legal, seja ilegal.
Segundo dados da Sistema Federal de Inspeção do Trabalho (SFIT) –, o
cumprimento espontâneo da contratação do percentual mínimo de jovens
aprendizes exigido das empresas fica um pouco abaixo de 45%. Tal
constatação pôde ser verificada por meio de consulta aos sistemas
informatizados da intranet do TEM, realizada em 10.5.2016, que utiliza os
dados fornecidos pelas empresas ao Caged. Na data apontada, o sistema
apresentou os seguintes dados para o Brasil: 435.572 aprendizes
contratados, porém a quantidade de cotas a ser cumprida era de 1.013.529
aprendizes, ou seja, existem 577.957 vagas para jovens aprendizes que não
estão preenchidas. Isso corresponde a um percentual de cumprimento de
cota de 42,98%. Caso essas vagas fossem preenchidas, haveria 577.957
jovens a menos no trabalho infantil.
Para se ter uma ideia do potencial de redução do trabalho infantil, caso
as cotas fossem devidamente preenchidas, deve-se fazer a seguinte conta: O
IBGE apontou 3,3 milhões de crianças e jovens entre 5 (cinco) e 17 anos
trabalhando. Destes, 435.572 são aprendizes. Assim, restam 2.864.428
crianças e jovens no trabalho infantil. Caso fossem preenchidas as 577.957
vagas abertas, a redução seria de 20,17%.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 316


Caso a mesma conta seja realizada apenas para a faixa etária de 14 a 17
anos, que é aquela sobre a qual o programa jovem aprendiz pode ser
aplicado, seriam 2,8 milhões de jovens em atividade laboral, dos quais
435.572 são aprendizes. Restariam 2.364.428. Caso fossem preenchidas as
577.957 vagas abertas, a redução seria de 24,44%.
O Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Secretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT), estabelece metas da quantidade de aprendizes
que deveriam ser inseridos sob ação fiscal nos anos de 2014 e 2015.
De acordo com a própria SIT, em 2014 apenas 83% da meta foi atingida.
Deveriam ter sido inseridos na aprendizagem, por meio da fiscalização,
200.000 (duzentos mil) aprendizes, porém somente 165.308 (cento e
sessenta e cinco mil, trezentos e oito) foram alcançados. A situação em 2015
não foi diferente. Apenas 155.811 (cento e cinquenta e cinco mil, oitocentos e
onze) foram inseridos por ação fiscal, em um ano cuja meta, já reduzida em
relação ao ano anterior, era de 170.000 (cento e setenta mil).
A primeira informação pertinente no tocante a esses dados é a de que a
quantidade absoluta de jovens inseridos no programa de 2014 para 2015 foi
reduzido em 10.000 (dez mil) jovens. Dessa forma, houve uma redução de
5,7% de um ano para outro. A própria meta estabelecida pelo órgão foi
reduzida de 200.000 para 170.013 jovens inseridos sob ação fiscal, o que
representa uma redução de 15%.
Outro ponto relevante é que, nem mesmo com uma redução de 15%, foi
possível atingir a meta. Ressalta-se que 2015 foi um ano atípico, pois a
conjectura política afetou o desempenho da fiscalização.
Note-se o quanto o trabalho de fiscalização é importante no processo de
inserção de aprendizes no mercado de trabalho. Um desempenho ruim da
fiscalização, em determinado ano, impacta de forma considerável na
quantidade de jovens inseridos no mercado.
A contrário senso, a melhoria nos procedimentos fiscalizatórios
acarreta maior inserção de jovens aprendizes no mercado.
Por tudo isso, é de suma importância que fiscalizações de cumprimento
da cota de jovens aprendizes sejam realizadas constantemente no decorrer
de todo o ano, que haja um planejamento para que, em determinado período,
todas as empresas que precisam cumprir a cota sejam notificadas a

Ética, direitos humanos e meio ambiente 317


apresentar a comprovação da contratação. Paralelamente a isso, devem-se
priorizar, também, as fiscalizações de combate ao trabalho infantil. É
igualmente importante que se utilize o programa jovem aprendiz, para
inserir no trabalho regular e formal, quando a idade permitir, os jovens
afastados do labor ilegal, evitando-se assim que estes retornem às condições
indesejáveis de trabalho.
Outros fatores relevantes são: o próprio aumento do número de
aprendizes e a intensificação da fiscalização da cota, que fazem com que a
sociedade como um todo saiba da existência do programa. É como se
houvesse uma publicidade com relação à divulgação da existência do
programa e da obrigação do cumprimento da cota por parte de empresas e de
empregadores em geral. Dessa forma, constitui-se um processo virtuoso no
qual, posteriormente, tende-se a aumentar o percentual de cumprimento
espontâneo e o conhecimento dos próprios jovens da possibilidade de se
trabalhar de forma correta com todos os benefícios provenientes disso. De
fato, ainda há muito desconhecimento das pessoas de modo geral, não só do
funcionamento do programa, mas até mesmo de sua existência.
Demonstrado está, pois, que a intensificação da fiscalização no
cumprimento da cota de jovens aprendizes, implica a redução das taxas de
trabalho infantil e, não apenas isso, implica também a produção de
conhecimento, para que toda a sociedade fique a par das consequências
positivas que essa inserção pode trazer ao País.

Conclusões

As questões relacionadas à inserção de jovens aprendizes no mercado


de trabalho e, em paralelo, à redução do número de crianças e jovens
laborando de forma ilegal têm grande importância socioeconômica para o
País.
Dessa forma, salienta-se a importância do presente trabalho para a
sociedade brasileira, por tratar de assuntos que se refletem diretamente na
qualificação de crianças e jovens, na sua frequência à escola e na qualidade
do ensino que recebem. A contribuição deste trabalho também se faz por
mostrar os problemas decorrentes do trabalho infantil e as mazelas da

Ética, direitos humanos e meio ambiente 318


exploração laboral no mundo, em especial as que atingem crianças e jovens e
a necessidade de implementação de políticas públicas complementares,
convergentes e que apresentem resultados eficazes. E com isso, possam
realmente mudar a realidade de setores sensíveis a toda a população.
Tendo em vista todos os dados expostos no presente trabalho,
verificou-se uma relação direta entre o aumento do número de jovens
inseridos no mercado de trabalho como aprendizes e o aumento da
quantidade de fiscalizações realizadas pelo Ministério do Trabalho e
Emprego e/ou um incremento na qualidade do trabalho desenvolvido por
esse órgão, com relação ao tema da aprendizagem. E, transversalmente, uma
redução do trabalho infantil por meio do programa jovem aprendiz.

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Ética, direitos humanos e meio ambiente 320


16
Ética e psicanálise: o sofrimento do homem moderno e o
apelo a uma nova ética

Camila Scheifler Lang*

Introdução

Foucault assinala que psicanálise e etnologia podem ser apresentadas


como ciências do inconsciente, embora apresentem distintas características e
abordagens. Ambas convergem, no que diz respeito aos domínios
epistemológicos, numa abordagem positiva, em direção ao que escapa à
consciência do homem. Seus conceitos, métodos e suas interpretações são
aplicáveis a tudo que se refere às produções humanas. A psicanálise, por sua
vez, carrega o advento de um permanente e inesgotável e até mesmo
desconcertante, princípio de inquietude e de questionamento. Além de
provocar um consistente senso de crítica e de contestação, permite-se a
tarefa de “fazer falar por meio da consciência o discurso do inconsciente,
avançando fundamentalmente a partir das relações entre representação e a
finitude”, tendo como deliberação a interpretação de sentido da dinâmica da
resistência ou da barreira, “orientado ao que está aí e se furta ao que
inacessivelmente transpõe a representação”.1
Notadamente, a psicanálise não se propõe como uma “nova ética” ao
mundo moderno. A questão da Psicanálise e o abalo provocado estão
justamente aprofundadas em algumas conjecturas a respeito das relações do
homem com o Bem, exigindo que repensássemos os fundamentos éticos do
laço social, numa perspectiva considerável acerca das determinações
inconscientes da ação humana.2

* Psicóloga e professora. Mestra em Filosofia (UCS). Especialista em Psicologia Clínica


(UFRGS). Membro provisório em formação psicanalítica pelo CEP De PA. E-mail:
camilaslang@terra.com.br
Aceito divulgação do texto em quaisquer meios científicos.
1 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.

de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1966/2007. p. 517-519.
2 KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 321


Dessa maneira, tomamos o inconsciente como uma produção discursiva
que, de certo modo, instaura o laço social entre trocas permanentes e
produto/produtor do sujeito do desejo, tendo o pesquisador/analista a
implicada e complicada tarefa de questionar as certezas e problematizar
verdades e saberes totalitários.3 Nessa perspectiva, o inconsciente passa a
caracterizar não só o pensamento simbólico, mas a própria definição de
humanidade.4 Assim, “o inconsciente não é uma realidade psíquica que cada
um carrega, como se fosse uma propriedade da alma, oculta, ignorada, que se
desvela, revela, descobre”.5 Ele se faz a partir da lógica do discurso, uma
lógica que se apresenta paradoxal, pois é o próprio sujeito que produz a
verdade que acredita descobrir, é ele quem inventa a verdade na relação com
o outro.6
Desse modo, compreende-se que repensar o sofrimento humano, o
desamparo da humanidade em tempos difíceis e até mesmo
permanentemente inconstantes, é necessário, especialmente no que tange
aos aspectos psíquicos. E é justamente essa a proposta da psicanálise – a
reflexão, a análise, o pensar a partir das implicações do inconsciente. O
presente artigo aborda algumas questões concernentes entre a ética e a
psicanálise, constituindo-se sobretudo como escopo central, a discussão da
temática do sofrimento do homem moderno e o apelo a uma nova ética.

O sofrimento do homem moderno e o apelo a uma nova ética

O “contemporâneo” pensa a cura do sofrimento psíquico, na tentativa


de eliminação de todo mal-estar, de toda e qualquer angústia de viver. Dessa
maneira, sobretudo, pelas novas implicações terapêuticas do contemporâneo,
passamos a conviver com a ideia de que a todo preço precisamos nos livrar
dos “incômodos efeitos do inconsciente, assim, servir às finalidades de um eu
soberano, pragmático, feliz, ajustado às aspirações dos membros da cultura

3 BUENO, Cleuza Maria de Oliveira. Entre-vista: espaço de construção subjetiva. 4. ed. Porto
Alegre: Edipucrs, 2002.
4 LÉVI-STRAUSS, Claude. A antropologia diante dos problemas do mundo moderno. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012.


5 BUENO, op. cit., p.30.
6 JERUSALINSKY, Alfredo N.; MEZAN, R. Que tipo de ciência é a psicanálise: longe da

ortodoxia e do ecletismo. Revista Percurso, São Paulo, 2007. p. 136 – 137.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 322


do individualismo e do narcisismo”.7 Estes fatos são confirmados pela
exacerbação constante das terapias exclusivamente medicamentosas, pelo
emaranhado de livros, compêndios e eventos de autoajuda, como também
pelas novas formas de espiritualidade baseadas em resultados e praticadas,
com finalidades terrenas muito específicas. Não obstante, poderíamos citar
inúmeros fatos sociais, como o incremento das redes sociais virtuais, a
exposição da vida privada e o advento do corpo, e todo o fascínio que ele
carrega na sociedade moderna, seja pela massificação da beleza e da busca
pelo corpo-máquina ideal, seja pelo incremento das terapias alternativas,
rejuvenescedoras, modeladoras e da incansável tentativa de melhoramento
do corpo, por meio da ingestão de “poções mais do que mágicas”.8 Hoje,
sabemos, que cresce vertiginosamente a busca por qualidade de vida, por
alimentos que possam fornecer a certeza de uma saúde impecável e isso a um
tempo quase massificante, ao passo que também industrializamos toda a
forma de alimento numa tentativa de facilitação momentânea, tudo isso
alicerçado pela promessa de prazer eterno.
Numa tentativa desenfreada, e a qualquer preço de gozo, o homem
moderno é vitimado pela onda formadora de “deprimidos” ávidos de
normalização farmacológica. Assim, conforme Roudinesco, a perspectiva
patológica do sujeito passa a ser a própria sociedade não é apenas o sujeito
que está deprimido, mas a sociedade em si que é depressiva. Uma sociedade
obcecada pela padronização de comportamentos e de crenças voltados para a
normatização de atitudes diante dos pretensos padrões de normalidade,
dispendiosos demais para a humanidade.9 E sabe-se, também, caros em se
tratando de investimento de vida.
O sujeito contemporâneo quer ser ou, ainda, precisa ser despojado não
apenas da angústia de viver, mas, sobretudo, quer ser libertado da
responsabilidade de arcar com a angústia de viver. Esse mesmo homem
delega à competência de terceiros, especialmente à competência médica ou
às intervenções químicas a questão fundamental do destino das pulsões.10

7 KEHL, op. cit., p. 8.


8 Grifo nosso.
9 ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
10 O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta.

Ele é o elemento mais variável da pulsão e não está originariamente vinculado a ela, sendo-

Ética, direitos humanos e meio ambiente 323


Desse modo, ele elimina a inquietação que o habita, em vez de questionar seu
sentido. Não raro, e talvez paradigmático, é que o homem cega a si mesmo e
não percebe que por tais motivos a vida se torna vazia e cada vez mais
insignificante.
Sabemos que o sentido não é um valor inerente à própria vida, pois, “se
a perda do sentido da existência está na origem da depressão, que é o
sintoma emergente do mal-estar contemporâneo”, [...] “ele é efeito de uma
construção discursiva que confere significado aleatório, ao sem sentido, à
precariedade da existência”.11 Ao tentar ampliar seu domínio simbólico sobre
o real, tanto do corpo, da morte, do sexo e do futuro incerto, o homem
denuncia a produção de sentido que não é individual, é coletiva e,
obviamente, seus efeitos inscritos na cultura.12
Assim, como todo ato de fala só se consuma no endereçamento a um
outro, toda produção de sentido, de significação, depende de sua inscrição
numa cadeia de interlocuções. Dizer que a vida faz sentido do ponto de vista
do vivente significa que existe a possibilidade de esse sentido ser
reconhecido pelo Outro, ou pelos outros que o rodeiam. Igualmente,
indagamos quando os sentidos dados pela tradição, pelas religiões, pela
transmissão familiar deixam de fazer sentido, o que podemos colocar em seu
lugar? Assim, o que confere sentido a/em nossas vidas?13
Desde a Antiguidade, muito antes de Freud, quando já havia a
interrogação sobre uma atividade psíquica diferente da consciência, ou mais
tarde com Descartes, a partir da ideia de razão e desrazão, abordavam-se
noções de inconsciente. Observa-se que a primeira psiquiatria dinâmica
acreditava que a consciência era ameaçada por forças destrutivas, originárias
de um inconsciente metafísico.

lhe apenas acrescentada em razão de sua aptidão para propiciar a satisfação. A rigor, não é
preciso ser um outro objeto externo, pode muito bem ser uma parte de nosso próprio corpo.
Ao longo dos diversos destinos que a pulsão conhecerá, o objeto poderá ser substituído por
intermináveis outros objetos, e a esse movimento de deslocamento da pulsão caberão os
mais significativos papéis. (FREUD, S. As pulsões e suas vicissitudes. [1915]. Edição standard
brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. p. 137. v. XIV).
11 KEHL, op. cit., p. 9.
12 Idem.
13 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 324


No século XIX, a Filosofia alemã igualmente abordou a ideia de um
inconsciente influenciado pela concepção romântica de aspectos noturnos da
psiquê. Sobretudo, foi com Freud que surgiu a concepção de um inconsciente
dinâmico, psíquico e afetivo. Freud pensava o inconsciente organizado em
instâncias próprias: o eu, o isso e o supereu. Certamente, uma ideia de
inconsciente, que tirou o homem de um estado de alienação, tido como um
“animal insensato” e temível, “estranho a si mesmo”, precisava ser
moralmente cuidada. Mas também, ao mesmo tempo, o retira do lugar central
do mundo. Se, por um lado, era o senhor absoluto, agora padece dessa ferida
narcísica; tido como um sujeito livre, dotado de razão que não é única, e que
“vacila no interior de si mesma”. Nesse sentido, parece para Roudinesco, que
a psicanálise, por assim entender, foi a única ciência do século XIX que
associou a teoria do psiquismo a uma filosofia de liberdade ou filosofia
existencialista. Nessa visão, o homem passou a ser sujeito de seu destino, de
suas escolhas, de suas incertezas e de seus conflitos; mesmo que, e apesar
disso, permanentemente faltoso, incompleto, por não poder dominar seu
próprio inconsciente.14
Mesmo que Freud tenha se visto tentado a integrar a psicanálise às
ciências da natureza, ele jamais o fez exatamente, porque acabou elaborando
um modelo especulativo, aos moldes da filosofia metafísica, que denominou
de metapsicologia, em que se inscrevem conceitos como o de inconsciente,
pulsões, recalcamento, narcisismo, o eu, o isso. Foi a metapsicologia15 que
garantiu à psicanálise um status específico, capaz de opor o homem trágico,
paradigma da consciência moderna, ao homem comportamental, cérebro-
máquina imaginado pelos adeptos do cientificismo. A metapsicologia,

14ROUDINESCO, op. cit., 1999.


15 Termo criado por Freud em 1896 numa carta a seu amigo Fliess, a metapsicologia
distingue as concepções teóricas psicanalíticas das perspectivas da psicologia clássica. Os
modelos propostos na metapsicologia estão para além do observável e referem-se a um
conjunto de teorias que define as instâncias do aparelho psíquico: a teoria das pulsões, o
recalcamento e a interpretação dos sonhos, entre outros processos. Divide-se nas
perspectivas: dinâmica, relativa ao conflito psíquico e à composição das forças de origem
pulsional; tópica, relativa à diferenciação da psique em sistemas ou instâncias com diferentes
funções; econômica, relativa à distribuição e circulação da energia psíquica ou pulsional.
(RAFAELLI, Rafael. Nota sobre a metapsicologia freudiana. Revista Internacional
Interdisciplinar INTERTHESIS, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 2-7, jan./jun. 2007. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/download/890/10848>.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 325


portanto, pretende ser uma teoria refutável e falsificável. É nesse sentido que
podemos sustentar a ideia de uma metapsicologia científica.16
Apresentando o que entendemos por “teoria psicanalítica”, podemos
compará-la à dimensão da prática psicanalítica. Dividindo-a em: uma práxis e
uma teoria da técnica psicanalítica. Entende-se que a práxis envolve toda a
dimensão ética da experiência psicanalítica, marcada por uma ética do
desejo, que difere da ética moral. Essa práxis envolve conceitos como “desejo
do analista” e “contratransferência”. Segundo Lacan, a ética é a “dimensão
mais profunda do movimento do pensamento, do trabalho e da técnica
analíticos”.17 Também temos a teoria da técnica, que abrange conceitos, tais
como: associação livre, resistência, transferência, interpretação de sonhos e
parapraxias, entre outros.18

A psicanálise e as formações sociais no contemporâneo

Certamente, é prudente apresentar as relações entre subjetividade,


ética e formações sociais. É numa sociedade marcada pelo resultado do
projeto iluminista que surge a modernidade, pela nítida visão da
autoemancipação de uma humanidade possível. Por sua vez, compreende-se
que, paulatinamente, a religião foi orientada para a substituição pela razão e
pela ciência, numa espécie de conjunto de valores e ideias pautados pelo
racionalismo, individualismo e universalismo. Em se tratando do
individualismo, pôde-se perceber que houve a ruptura comunitária com
antigas concepções de mundo. A inevitável transição para uma nova ética e
política deu espaço para importantes transformações, com características
descentradas e libertas do coletivo, fazendo com que o homem se valesse por
si mesmo e não pela outorga estatutal da comunidade. Desse modo,
emancipar implicava desprender o homem das malhas do todo social. O
universalismo buscava dissolver os particularismos locais e se concretizaria

16 LAPLANCHE J. A psicanálise como anti-hermenêutica. Psicanalítica, v. 3, n. 3, p. 71-86,

1995.
17 LACAN, Jaques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro: J.

Zahar, 2008. p. 248.


18 LACAN, J. Op. cit., 2008.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 326


no processo de globalização.19 Ora, Giddens assinala porque se entende que
“a radicalização da modernidade é tão perturbadora, e tão significativa”. E dá
providências em ampliar sua conceituação:
Seus traços mais conspícuos – a dissolução do evolucionismo, o
desaparecimento da teleologia histórica, o reconhecimento da
reflexividade meticulosa, constitutiva, junto com a evaporação da
posição privilegiada do Ocidente – nos levam a um novo e inquietante
universo de experiência. Se o ‘nós’ aqui ainda se refere primariamente
àqueles que vivem no próprio Ocidente – ou, mais precisamente, nos
setores industrializados do mundo – é algo cujas implicações são
sentidas em toda parte.20

Portanto, entende-se que o dinamismo da modernidade deriva


basicamente de três fontes: uma que é a separação de tempo e espaço, e de
sua recombinação em formas que permitem o “zoneamento” tempo-espacial
preciso da vida social; outra que é o processo de desencaixe dos sistemas
sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos fatores envolvidos na
separação tempo-espaço); e, por fim, a ordenação e reordenação reflexiva das
relações sociais à luz das contínuas entradas (inputs), de conhecimento
afetando as ações de indivíduos e grupos. Essas três fontes são condições que
facilitaram a transição da ordem tradicional para a ordem moderna.21
Foucault, em seu texto, O que é o iluminismo, esclarece que o discurso da
modernidade é “tudo isso, a filosofia como problematização de uma
atualidade e como interrogação para o filósofo dessa atualidade da qual faz
parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia
como discurso da modernidade e sobre a modernidade”.22
Assim, se na Antiguidade e na Idade Média, o homem considerava
verdadeiro o pensar de acordo com o que existe na realidade, nos tempos
modernos ele inverte sua postura dizendo que aquilo que pode pensar
poderá realizar. E, podendo realizar, por assim compreender, analisa-se que a

19 ROUANET, S. P. Mal-estar na modernidade. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v.


XXXI, n. 1, p. 9-30, 2007.
20 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 2. ed. São Paulo: Ed. da Unesp, 1991.

p. 50.
21 GIDDENS, op. cit., 1991, p. 21.
22 FOUCAULT, Michel. O que é o iluminismo? Trad. de Wanderson Flor do Nascimento.

Brasília: UnB, 1994. p. 1-13. Disponível em:


<http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/iluminismo.html>.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 327


Modernidade foi construindo um personagem independente, livre das
pressões tradicionais. Sobretudo, fazer a pergunta o que é o sujeito ou o que
se entende por sujeito deve levar o investigador a buscar respostas nas duas
“figuras da modernidade: a racionalização e a subjetivação”.23
O saber da Psicanálise só faz sentido nas modernas sociedades
industriais, urbanas, laicas, democráticas. Sociedade em que se produz um
sujeito diferente daquele nascido no mundo antigo ou no mundo medieval.
Um sujeito até aqui entendido como carente de ser e um sujeito centrado no
EU. Desse modo, a psicanálise parece, como mencionado, alvo de
permanentes ataques, considerando o fato de que ela conquistou o mundo
por meio da “singularidade de uma experiência subjetiva, que coloca o
inconsciente, a morte e a sexualidade no cerne da alma humana”.24
Concernente ao mundo contemporâneo, um mundo eminentemente
ágil, massificado e medicalizado, cujos indivíduos aprisionam-se em solidões
e carências de identidade, permanecer higiênico, refratário ao desejo, pode
significar a decretação da falência do sujeito. “Sujeito que é a um só tempo,
livre por sua sexualidade ao mesmo tempo em que é coagido por ela”, pois
compreende-se que o inconsciente, as pulsões, a sexualidade, o amor, a
agressividade deslocam o sujeito de uma linearidade impossível, fazendo-o
transigir ora aos anseios de sua consciência, ora às forças que habitam as
profundezas de sua alma.25 Restar-nos-ia questionar que sujeito é esse que,
desamparado dele mesmo, de suas implicações, fica à deriva envolto primeiro
no sofrimento gerado por essa conflitiva sem igual; após, fica desamparado,
imerso em uma bruma sem sentido de existir, órfão de filiação simbólica.

O sofrimento do homem moderno

Assim, cabe assinalar que “não é verdade que o deserto induz a


contemplação de crepúsculos mórbidos. [...] O deserto se alastra e nele lemos
a ameaça absoluta, o poder do negativo, o símbolo do trabalho mortífero dos
tempos modernos até seu termo apocalíptico”.26 É importante destacar que

23 TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 218.


24 ROUDINESCO, op. cit., 1999.
25 Idem.
26 LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio. Barueri. SP: Manole, 2005, p.18.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 328


um sujeito carente de ser não quer dizer carente de Pai, mas sugere que a
filiação já não recobre todo o campo simbólico que situa o sujeito. Para a
Psicanálise, a expressão, carente de ser está direcionada para: o que falta ao
sujeito ser é ser o falo (do Outro). Desse modo, entende-se que essa
importante posição de gozo que se perdeu, ou, de certo modo, que nunca se
teve é senão uma abstração da teoria; ora, a posição de objeto de gozo para o
Outro27 encontra-se na mãe. “Ser o falo do/para o Outro equivale a sustentar-
se na posição de objeto capaz de obturar a falta no Outro.” E dessa
proposição, nos recordamos de outra tão importante quanto: “O desejo do
homem é desejo do Outro.”28
Foucault, paradoxalmente, no que se refere à questão do cuidado ético
entre os gregos, questiona: “Por que essa ‘problematização’, afirmando que
esta é a tarefa de uma história do pensamento por oposição à história dos
comportamentos ou das representações?” Trata-se de “definir as condições
nas quais o ser humano ‘problematiza’ o que ele é e o mundo no qual ele vive”
– a sua atualidade.29
Se, nas sociedades tradicionais, a falta-a-ser estava sistematizada pela
estabilidade das estruturas simbólicas de parentesco, que conferiam à pessoa
um lugar, um nome, um destino, referendados pela comunidade e
dificilmente modificados ao longo da vida, nas sociedades democráticas
modernas observa-se um homem muito mais órfão de filiação simbólica e
muito mais desamparado de autoridade paterna, sobretudo, muito mais
carente de ser.30
Freud investiga a relação entre filosofia e psicanálise em 1932, num
texto tido como especial: “Uma questão de Weltanschauung”, pois se
pergunta se a Psicanálise conduz a uma determinada “visão de mundo”. A

27 “Há dois outros que se devem distinguir, pelo menos dois – outro com “A” maiúsculo e um
outro com “a” minúsculo, que é o eu. O Outro, é dele que se trata na função da fala.” (LACAN,
J. (1985). O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 1954-55. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985. p. 297).
28 KEHL, Maria Rita. Ibid., 2002, p. 40.
29 FOUCAULT, Michel. (1984c) O que é o Iluminismo. In: ESCOBAR, Carlos Henrique (Org.).

Michel Foucault (1926- 1984) – o Dossier – últimas entrevistas. Rio de Janeiro, Livraria
Taurus. Curso inédito de Michel Foucault no Collège de France, 1983. Transcrição de
Katharina Von Bülow. Dossier Michel Foucault. Publicado originalmente no Magazine
Littéraire, 207, maio de 1984. p. 14.
30 KEHL, op cit., 2002.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 329


posição dele, em sua obra, situa-se em argumentar que a psicanálise é uma
ciência natural, orientada pela Weltanschauung científica, não é, nem deve ser
um ramo da Filosofia. Ele não coloca em discussão os significados dos
conceitos de Ética e de Moral (tidos como sinônimos), pois acata e
compreende-os como ditos pela filosofia. Para ele,
a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os
problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma
hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa
nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa
encontra seu lugar fixo [...]. Sendo essa a natureza da Weltanschauung,
torna-se fácil a resposta, no que diz respeito à psicanálise. Na qualidade
de ciência especializada, ramo da psicologia – psicologia profunda ou
psicologia do inconsciente –, ela é praticamente incapaz de construir
uma Weltanschauung: tem que aceitar uma Weltanschauung científica.31

Obviamente, em se tratando da consciência moral e dos


comportamentos éticos, um dos mitos conhecidos das mais distintas áreas, e
que explique acerca da instauração da Lei, situa-se, também, em talvez ser o
único grande mito moderno, sua força, há muito confirmada, está justamente
no fato de implicar todos os membros das sociedades democráticas como co-
autores da Lei, como participantes no estabelecimento das relações de poder
e na legitimação simbólica da autoridade. Freud, em 1914, publicou Totem e
tabu ([1912-1913]1990),32 fortemente implicado por sua pesquisa
antropológica e pela esperança de estabelecer verdades factuais a respeito
das origens da civilização. Numa estrutura vertical de poder, o pai protetor e
opressor se permitia todos os privilégios, inclusive o gozo de todas as
mulheres. Os filhos, e, portanto, irmãos, estavam abaixo do pai e todos
indiferenciados se submetiam ao mais forte. Ao obedecerem ao pai, eram
poupados de sua ira, desse modo, protegidos dos perigos entre eles e dos
perigos externos. Pela vigência da primitiva lei do pai, não sofriam
desamparo, mas também não tinham direito ao prazer. Um dia, privados do
prazer e imersos ao pai onipotente do acesso às mulheres, perceberam que
juntos eram mais fortes que o pai tirano. O mataram e o devoraram, pondo

31 FREUD, Sigmund. (1932b). Uma questão de Weltanschauung: Conferência XXXV. Imago,

1969, p. 155. v. XXII.


32 STRAUSS, Claude Lévi. A eficácia simbólica. In: _____. Antropologia estrutural. Trad. de

Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 330


fim à horda paterna. Em grupo, levaram a cabo o que sozinhos não poderiam
fazer e perceberam sua nova arma. A selvageria imposta pelo ato de
canibalismo também sobrepôs o modelo invejado e temido de cada um dos
membros da associação fraterna. Ao devorá-lo, os filhos, além de estarem
identificados com o pai, adquiriam sua força. A comida, o alimento totêmico,
entendido como, talvez, a primeira festa da humanidade, além de ter sido a
reprodução de um ato criminoso, foi memorável por apresentar o ponto de
partida das organizações sociais, das restrições morais e da religião.33
Ao analisarmos o mito, percebemos a nítida noção de ambivalência,
senão pela comemoração de um crime libertador, pela culpa e remorso que
se instauram entre os irmãos. Com a morte do pai, eles se dão conta de que
também amavam esse pai tirano. Eles amavam-no pela possibilidade de
proteção oferecida e pelo gozo das delícias de uma submissão irrestrita.
Morto o pai, recai a culpa e a ameaça entre os filhos. Enquanto o pai vivo
desfrutava de todas as mulheres, não havia sentido para conflitar entre os
irmãos, ao passo que o pai gozante aniquilava o ser desejante dos filhos. Com
a morte do pai, a possibilidade ameaçadora do gozo se apresenta, pela
possibilidade de os filhos serem abusados, esmagados por todos os outros. A
partir da morte do pai, com a organização dos irmãos para inventar um modo
de barrar o gozo, restaura-se a autoridade simbólica do pai, na forma da lei
da interdição do incesto. Somente a partir desse tempo, cada filho tem o
direito de ter acesso a todas as mulheres, menos à mulher do pai. Freud
assinala que o tabu do incesto, “é a única interdição comum a todas as formas
de civilização”.34
Freud afirma ainda que, se há uma proibição, há um desejo ambivalente
de cometer o incesto, de matar o próximo. Para Ele, não há
fundamentalmente a necessidade de uma lei que diga “não cometa o incesto”,
se o desejo não fosse de cometê-lo. Diz ele,

[...] deveríamos dar ainda mais importância à nossa tese de que onde
existe uma proibição tem de haver um desejo subjacente. Teríamos de
supor que o impulso de matar acha-se realmente presente no
inconsciente e que nem os tabus nem as proibições morais são

33 KEHL, op. cit., p. 41-42.


34 Ibidem, p. 43.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 331


psicologicamente supérfluos, mas, pelo contrário, explicam-se e
justificam-se pela existência de uma atitude ambivalente para o impulso
de matar.35

A renúncia a todo esse excesso de gozo, do gozar a qualquer preço36


marca o território da horda indiferenciada das outras formas de organização
social. “É a interdição do incesto que torna o gozo impossível e faz dos
homens sujeitos, sujeitos do desejo, entendendo que o desejo advém da perda
do objeto de gozo.”37 Pois bem, se formos devotos ao mito freudiano,
admitiremos que, para os irmãos, esse gozo nunca foi perdido, porque nunca
foi possível. E,
o gozo era atribuído à onipotência do pai morto, e torna-se inacessível
aos filhos em função do próprio ato que pretendia libertá-los. Articular a
perda do gozo e a instauração da Lei que funda a ordem social é o mesmo
que dizer que a satisfação da pulsão é mediada pela linguagem, fazendo
ressaltar esse fato por efeito da comparação com um tempo fictício em
que a mediação pela linguagem era desnecessária – pelo menos para
um.38

A relação existente entre a possibilidade da comunicação pela fala e a


insubmissão a um tirano é pauta para o cenário em questão, e é pela fala que
deixamos de sustentar os discursos tiranos. Sobretudo, é porque os filhos
falam, entre si, que é possível fazer a soma de suas forças, autorizando-se
assim a matar o pai. Filhos estes, libertos pelo grande presente da voz e da
fala, que além de permitir-nos a convivência e a confraternização, nos
protagoniza a ponto de fazermos.
Por analogia, a partir do gesto de insubmissão da horda primitiva, que
se pôs em atos de palavra, há uma espécie de condenação, especialmente,
porque os irmãos estão implicados a falar uns com os outros. Por todo e
qualquer argumento, tem-se aqui a ideia de diferença, para contar e
contabilizar as diferenças oriundas do momento em que deixam de ser massa
35 FREUD, Sigmund. Totem e tabu. [1912-1913]. Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 82. v.
XIII.
36 Termo utilizado por Charles Melman. In: MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar

a qualquer preço: Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2008.
37 KEHL, op. cit., p. 43.
38 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 332


indiferenciada de filhos e se constituem como irmãos, sujeitos à diferença e
ao conflito. A posteriori, criando instâncias de poder em substituição à tirania
do tirano.39 Desse modo, a Lei que cobra a renúncia do gozo passa, em vez de
ser imposta por Um, a ser consentida coletivamente, até, paulatinamente,
“estabelecer-se como limite inconsciente, portanto simbólico, ao gozo
absoluto.”40
Para Kehl, o mito de Totem e tabu insere-se não só pela concepção de
apresentar uma ocorrência fora da história e de consequências universais,
como por nomear de fato a difícil condição do homem moderno. Sobretudo,
“um homem que perde a proteção oferecida por um pai capaz de fazer da
filiação um destino”.41 Essa passagem de filho a irmão, de súdito a cidadão,
ocorre por meio do luto pelo amparo que o tirano ofereceria em relação à
falta-a-ser. Igualmente, o ganho obtido com a liberdade equipara-se ao
amparo que o pai, mesmo tirano, proporcionara aos filhos, que, protegidos
das garras uns dos outros, ficavam desprotegidos da crueldade empregada
pelo pai protetor-agressor.
Assim, recordando o Discurso sobre a servidão voluntária, de Boétie: “É
o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser
livre e ser escravo, decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que
aceita o seu mal, que o procura por todos os meios”.42 Não havia ali limite
para os caprichos e destemperos desse pai tirano, que utilizava seu poder
mau o quanto desejasse, mas também não havia limite para o desejo desses
filhos. Cabe ressaltar ainda que “o poder que um só homem exerce sobre os
outros é ilegítimo”.43 Por ser ilegítimo, coercitivo e alienante é que surge o
desejo de liberdade. Sobretudo, por entendermos, conforme Boétie, que mais
é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?44

O apelo a uma nova ética

39 Ibidem, p. 44.
40 Idem.
41 Ibidem, p. 43.
42 BOÉTIE, Étienne de La. Discurso sobre a servidão voluntária (1549). 2006. Disponível em:

<http://www.miniweb.com.br/biblioteca/Artigos/servidao_voluntaria.pdf>. Acesso em: 10


jan. 2016.
43 Idem.
44 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 333


Não obstante, Freud reconhece que a leitura e a importância dos tabus
estão na sua relação com as proibições morais e convenções sociais, cuja
função é regular a relação entre os homens e possibilitar o convívio em
sociedade, podendo, assim, lançar luz sobre a gênese da consciência moral e
da conduta ética dos indivíduos.45 Por compreender a relação de regulação
de poder, entende-se, a partir dos assinalamentos de Freud, que o pai precisa
ser reinventado, na forma de seu Nome, fazendo uma referência simbólica
organizadora dos irmãos, vinda de um lugar fora do espaço e do tempo
presentes.46
O representante da Lei, o pai simbólico, não é necessariamente o pai
biológico de cada um. “Ele é o significante do pacto instituído pelos irmãos
livres e desamparados – e livres porque desamparados – depois do
assassinato do tirano, o pai real da horda primitiva”.47 Para a Psicanálise,
para evitar a destruição oriunda da violência pulsional surge o Pai, que
protege e é entendido como um lugar da Lei (simbólica). Esse pai também
existe de maneira imaginária, especialmente porque ele detém a verdade
sobre quem é o filho; pai este capaz de fazer do filho o herdeiro de uma
identidade, aplacando a permanente interrogação do sujeito quanto a seu
desejo e sua singularidade. Nesse sentido, o sujeito interroga o pai sobre: O
que deseja (de mim)?
Kehl assinala que a “alienação ao desejo do Outro é pauta para
refletirmos que todo desejo é no limite, desejo de servir a um poder, desejo
masoquista de sujeição ao Outro”. Ora, se é a Lei que impõe a mediação do
gozo por meio da linguagem, ela institui o desejo. Compreende-se que se a Lei
é originada pelo assassinato do pai tirano, que tinha o poder e saber sobre os
filhos, estaria esse mesmo objeto de desejo nos impulsionando de volta à
tirania. No seminário sobre Ética, Lacan48 afirma que, como a condição do
sujeito desejante emerge pelo crime contra o pai, é sempre um desejo
criminoso que se encontra no limite do que o sujeito pode saber de si. Para

45 JUNQUEIRA, Camila. Ética e consciência moral na Psicanálise. São Paulo: Via Lettera;
Fapesp, 2006. p. 34.
46 KEHL, op. cit., 2002, p. 45.
47 Idem.
48 LACAN, op. cit.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 334


além do limite significante, visualizamos a dimensão plena do masoquismo,
do desejo de entregar-se inteiramente como objeto de gozo do tirano, cujo
assassinato lamenta-se sempre. Trata-se aqui do aniquilamento da própria
condição desejante do sujeito, a pulsão de morte.49 O sujeito se ergue contra
essa tendência aniquiladora da função vital, propositado pelo “duro desejo de
desejar”,50 sustenta – entre a sujeição e o crime – ainda que simbolicamente,
como um sujeito ético da psicanálise, especialmente porque suas escolhas
não lhe fogem, não tem como não escolher, custe o que custar, o crime. Freud
deduz que, por trás do horror da humanidade pelo incesto, há, na realidade, o
desejo de cometê-lo.51
Na pretensa coletividade dos irmãos, a Lei estava explícita na forma de
um tabu imposto ao grupo, não como uma Lei que interdita o incesto de
forma inconsciente. No caso do sujeito da Modernidade, uma Lei mantida na
forma do recalque está para a neurose assim como uma Lei, tida como tabu,
está para a formação social. Salienta Freud que a formação social está inscrita
nos códigos explícitos que governam a vida de uma comunidade, “libera o
sujeito da necessidade de elaborar uma resposta neurótica para seu conflito”.
Esse sujeito pertencente a essa tribo ou comunidade tradicional é tido como
menos livre que seus descentes modernos; mas, por outro lado, é menos
comprometido subjetivamente com as consequências de suas ações. Na culpa
neurótica, há o permanente adiamento de uma punição imaginária por um
crime que se sabe que praticou, mas é naturalmente ignorado.52
A diferença das condições que produzem o primitivo ou o neurótico
reside no caráter mais ou menos coletivo das decisões e dos atos. Não há por

49 O pulsional não só se origina abrindo a possibilidade da construção do aparelho psíquico,


arrancando o ser humano da natureza e da “estúpida existência”, mas também como o
verdadeiro motor do progresso psicológico: o pulsional também se estabelece como uma
dinâmica que não se deixa evacuar e ligar, obstruindo e desestruturando o ego como
instância intrapsíquica. Daí a cegueira que caracteriza o pulsional des-ligado e, de modo
especial, o mais pulsional da pulsão, que é a pulsão de morte, que não tem outro fim senão a
descarga imediata e a busca do idêntico sem reconhecimento de qualquer alteridade, e que
termina sempre funcionando como modo de autodestruição ou de morte psíquica do eu.
(TERRAZAS, José Gutiérrez-. O conceito de pulsão de morte na obra de Freud. Ágora, v. V, n.
1, p. 8, jan./jun. 20028).
50 LACAN, op cit., 2008.
51 JUNQUEIRA, op. cit., p. 35.
52 KEHL, op. cit., p. 46.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 335


que pensar no assassinato do pai da horda como um crime do ponto de vista
dos que o cometeram, pois não há nada, numa suposta “natureza” das
relações humanas, que diga que a morte do pai tirano é criminosa. A
coletividade, tanto passada como presente, composta pelos agentes sociais, é
quem decide pelo caráter criminoso. Entende-se que
do assassinato primitivo legitimado pela comunidade, cuja consumação
teria lançado os irmãos no remorso e no temor, à culpa do neurótico que
se julga criminoso pelos atos com que ousa afirmar algo de seu desejo, há
uma longa passagem efetuada pela humanidade: a passagem das culturas
comunitárias às culturas do individualismo.53

Em Psicologia de massas e análise do eu, Freud parece interessado em


líderes e o fascínio destes sobre as massas, e em suas profundas análises,
retomando Totem e tabu, é possível conjecturar sobre as consequências do
assassinato do pai, supondo que é possível que um dos irmãos, o mais novo
ou o predileto da mãe, tenha se posto, após um tempo, na posição de
‘usurpador’ da autoria coletiva do ato. Este é o protótipo do “indivíduo”, que
se acredita soberano e autônomo em sua consciência e sua ação. Destacando-
se sobre os outros, sobre a coletividade dos irmãos, esse usurpador é tido
como “poeta mítico”, recontando a história das origens e se colocando,
presentemente, no lugar de herói, que, não raro, teria cometido o assassinato
libertador sozinho.54 Especialmente, pensa-se aqui que o protótipo do
neurótico moderno ocorre não pela identificação dada uns aos outros na
responsabilidade coletiva pelo ato, mas sim pela ideia de um herói
usurpador. Sobretudo, porque se acredita que sozinho, executa, autor de uma
transgressão que só é levada de fato pela cumplicidade de todos que o
neurótico se sente culpado. “A culpa tem a medida exata de sua ilusão de
individualidade e autonomia.”55
Sob uma nova visão, as condições objetivas que produziam as
comunidades tradicionais, regidas pelas formações sociais estáveis, capazes
de dispensar o sujeito de se tornar neurótico, desapareceram com a
modernidade. “É o indivíduo neurótico que trata a psicanálise, e das

53 Ibidem, p. 47.
54 Idem.
55 Idem.

Ética, direitos humanos e meio ambiente 336


implicações de sua condição de sujeito separado de uma coletividade
protetora”.56

Considerações finais

Para Freud, o ato do assassinato do chefe, talvez repetido


insistentemente na sociedade, tenha sido de fato cometido, não somente
simbolicamente. A humanidade inicia, assim, por um crime cometido em
conjunto, que parece ter possibilitado o surgimento do sentimento de culpa;
por conseguinte, entende-se que tenham se criado “as organizações sociais,
as restrições morais, as religiões”. Sobretudo analisamos que as saídas
psíquicas possíveis para o sujeito, no que diz respeito à culpa são: o remorso,
a negativa, a fuga. E, certamente, seus desdobramentos são infinitamente
analisados quando operamos na clínica.
Portanto, cabe assinalar que ‘descoberto’ por Freud, o complexo de
Édipo, no nível do psiquismo individual, tem da mesma forma um papel
determinante e estruturante no nível da vida coletiva, no laço social.
Certamente, nos é conhecido que não continua sendo necessário que o ato
ocorra para que a fantasia se desenvolva, uma vez que a fantasia é inventiva,
nutre-se das impressões e das projeções mais inesperadas e é expressão da
pulsão e do desejo; isto não impede que a realidade ofereça seu ponto de
partida e seu ponto de apoio à sua criação e à sua manifestação.57 A partir das
reflexões acerca do sofrimento e do esvaziamento de sentido, da perda da
tradições e dos aspectos tidos como “sagrados” da racionalidade humana, e
se assim entendermos as implicações do complexo de Édipo, bem como do
seu desenrolar, poderíamos pensar no apelo a uma nova ética.

Referências

BUENO, Cleuza Maria de Oliveira. Entre-vista: espaço de construção subjetiva. 4. ed. Porto
Alegre: Edipucrs, 2002.

56Ibidem, p. 48.
57 ENRIQUEZ, Eugène. Psicanálise e ciências sociais. Ágora, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 2,
jul./dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/agora/v8n2/a01v8n2.pdf>.

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