Admirável Mundo Verde - Filipa Fonseca Silva

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 223

dLivros

{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }

Converted by convertEPub
Edição em formato digital: Agosto de 2024

ADMIRÁVEL MUNDO VERDE

© 2024, Filipa Fonseca Silva

© desta edição:

2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.

Suma de Letras é uma chancela de

Penguin Random House Grupo Editorial Unipessoal, Lda.

Rua Alexandre Herculano, 50, 3.º, 1250-011 Lisboa, Portugal

correio@penguinrandomhouse.com

Penguin Random House Grupo Editorial apoia a proteção do copyright. Este livro não pode ser

reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, eletrónico ou

por meio de gravação, nem ser introduzido numa base de dados, difundido ou de qualquer forma

copiado para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas,

sem a prévia autorização por escrito do editor.

Edição: Diana Garrido

Revisão: C. Santos

Capa: Duarte Lázaro

978-989-583-175-3

Composição digital: M. I. Maquetación S.L.

Site: penguinlivros.pt

Twitter: @PenguinLivrosPT
Facebook: sumadeletrasportugal

Instagram: topseller.suma

Por vontade da autora, o presente livro não segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Índice

Admirável Mundo Verde

Créditos
Dedicatória

Prólogo
Admirável Mundo Verde

Três anos depois

Agradecimentos
Alguns Factos e Soluções para as alterações

climáticas

Nota

Sobre este livro


Sobre Filipa Fonseca Silva

Marcas

Admirável Mundo Verde

Índice
Início
Para o Hugo
PRÓLOGO

epois de entrarem no complexo industrial, os dois homens

D esperaram pelo sinal escondidos atrás do contentor de entulho,

onde a câmara de vigilância não conseguia filmá-los. Do outro lado da

estrada, por entre as árvores que formavam uma densa mancha até ao

rio, uma lanterna piscou três vezes, avisando que o alvo estava a sair do

bloco de escritórios e a dirigir-se para o carro. No instante em que se

sentou no lugar do condutor, um dos homens entrou pela porta de trás e

tapou-lhe a boca, enquanto o segundo surgiu do lado do pendura e lhe

apontou uma pistola à cabeça. Como previsto, não houve qualquer

resistência. O dono da fábrica foi algemado, amordaçado, e saiu do carro

obedientemente, seguindo o caminho que lhe foi indicado.

Ainda que a lua estivesse cheia, o seu reflexo não se espelhava na

água como prata. Ali, qualquer brilho era absorvido por uma espuma

acastanhada, opaca e quase estática, como um campo de neve suja a

cobrir toda a superfície do rio. Apavorado, as mãos presas atrás das

costas, o homem fitava o manto de espuma e nem reparou que aos dois

raptores se tinha juntado um novo elemento, carregando umas caneleiras

de pesos, como as que se usam nos ginásios. Era difícil perceber a

diferença entre os três, já que todos tinham o cabelo rapado, vestiam

fatos-macaco verdes e usavam botas pretas cardadas, mas a estatura do

novo elemento, assim como a delicadeza com que lhe prendera as


caneleiras de pesos à volta das pernas, deixava adivinhar que se tratava

de uma mulher. «Anda», ordenou uma voz feminina, cravando-lhe o

cano de um revólver na nuca. Não sabia como obedecer, já que, se

andasse mais um metro que fosse, entraria no rio. Foi nesse instante que

percebeu que aquilo não era um assalto.

Os olhos do dono da fábrica encheram-se de lágrimas de angústia e

de incompreensão. Não fazia ideia de quem eram aquelas pessoas, nem

porque queriam matá-lo. Tentou falar, mas a mordaça impedia que os

sons que soltava fossem perceptíveis. Tentou olhar para trás, suplicar

pela vida, mas, ao mínimo gesto, o cano do revólver cravava-se-lhe mais

contra a pele. Sabia que o rio não era muito profundo, dificilmente

ficaria com a cabeça submersa, por isso, provavelmente iam estourar-lhe

os miolos e deixar o corpo desaparecer na corrente. Mas porquê? Se

fosse por dinheiro, teriam ficado com o relógio ou com a carteira. Talvez

fosse um homicídio encomendado. Um ex-sócio? A sua mulher? As

lágrimas corriam-lhe pela cara enquanto tentava gritar, esforço inútil.

«Continua a andar!», gritou ela assim que se deu conta da sua hesitação.

A água do rio dava-lhe agora pela cintura e a espuma aproximava-se do

peito. Não ia continuar. Preferia levar um tiro na cabeça. Em desespero,

tentou correr para trás, só que o peso das caneleiras fez com se

enterrasse cada vez mais no fundo lodoso e deixasse de ver o que quer

que fosse, como se, de um momento para o outro, tivesse sido engolido

por um ser das profundezas do rio. A espuma ultrapassava a sua altura e

entrava-lhe pelos olhos, pela garganta, pelo nariz, impedindo-o de

respirar. Por mais que agitasse o corpo para tentar soltar-se, por mais

que tentasse gritar, sabia que ia morrer.

Laura deixou-se ficar com o revólver apontado em direcção ao monte

de espuma até este parar de oscilar, enquanto um dos seus companheiros


acabava de cravar um símbolo numa árvore com um pequeno canivete.

Quando a espuma ficou estática, ocultando por completo o corpo do

homem, baixou os braços, embora o olhar permanecesse fixado no

vazio. «Vamos embora», exclamou Frank, mas ela não conseguia mover-

se. «Vá, toca a andar, o espectáculo acabou», insistiu ele, puxando-a pelo

braço para que saísse daquele torpor. Caminhou em silêncio atrás dos

dois companheiros até ao local onde tinham escondido as bicicletas.

Montaram-se nelas e começaram a pedalar, as luzes apagadas, sempre

junto à berma, por atalhos longe da estrada principal. Laura só queria

chegar a casa. E vomitar.

Aquilo a que Laura chamava casa era um esconderijo num antigo

armazém de uma quinta abandonada, base das operações há vários

meses, separado em duas áreas distintas: a maior, onde se espalhavam

mesas com computadores e servidores próprios, dois sofás e uma

cozinha improvisada com algumas tábuas e um fogão de campismo; e

uma menor, com vários beliches e um acesso à latrina exterior. A luz era

parca, as paredes nuas, e sentia-se no ar um intenso cheiro a humidade.

Laura, Frank e Erik foram recebidos como heróis. Mal abriram o

portão enferrujado, os vivas, os abraços de alívio e os cânticos de vitória

entoados pelo resto da equipa contrastavam com o que ela sentia. Tentou

sorrir, aceitou a cerveja que lhe puseram nas mãos, mas, pouco depois,

desculpou-se com o cansaço e fugiu para a sua pequena cama junto à

parede da camarata, onde imaginava que estavam coladas fotografias de

momentos felizes e outras coisas que nunca poderia exibir. O frio no

pescoço e nas orelhas era uma novidade a que ainda não se habituara,

procurando em vão os longos cabelos ruivos que já não tinha. Fitou a

parede sem tinta, na esperança de que a textura do cimento afastasse a


imagem da espuma a engolir o dono da fábrica. Procurava formas nas

irregularidades, como se faz com as nuvens quando olhamos o céu.

Formas bonitas, que a levassem para longe.

Paolo apareceu pouco depois. Chamou pelo seu nome, mas Laura não

se moveu. Sabia que ela não tinha adormecido (ninguém adormece tão

depressa após a primeira execução), por isso, sentou-se na beira da cama

a olhá-la com ternura. «Laura», chamou de novo, baixinho, e como ela

não respondia, deitou-se a seu lado, abraçando-a por trás. Ao sentir-se

envolvida pelos braços de Paolo, Laura não conseguiu conter todas as

lágrimas que estavam presas desde a margem do rio e começou a chorar

compulsivamente. Paolo limitou-se a apertá-la com mais força e a

sussurrar repetidamente ao seu ouvido, «vais ficar bem». Quando Laura

não tinha mais lágrimas para soltar, ele estendeu-lhe um lenço e beijou-

lhe o pescoço.

— Já tenho saudades dos teus cabelos — disse com carinho.

— Vais ter saudades por muito tempo — respondeu Laura, sentando-

se na cama para se assoar e limpar o rosto.

— Estás melhor?

— Estou. Foi só a descompressão.

— Laura, falámos sobre isto durante muito tempo. O que hoje

começou não pode ser parado. Não há espaço para dúvidas,

arrependimentos e, muito menos, sentimentos de culpa.

— Eu sei…

— Amanhã há outro. E depois outro, e depois outro — lembrou

Paolo.

— Certo — respondeu com prontidão, como um soldado que acaba

de anuir ao seu comandante.


— Nenhum de nós pode fugir um milímetro que seja do plano. Todos

contamos com todos.

Ela sabia. A execução do plano era como uma coreografia ensaiada

com precisão até os pés criarem bolhas. Cada passo tinha um tempo,

uma sequência, um porquê. Primeiro, identificar empresários sem

escrúpulos, juízes corruptos, políticos inconsequentes, e eliminá-los de

forma poética, conforme o crime cometido. Depois, bombardear as

redes sociais com propaganda que demonstrasse inequivocamente que as

Brigadas Verdes eram a única alternativa a um governo medíocre e sem

uma estratégia eficaz para atingir as metas necessárias à sobrevivência

do seu povo. Um governo que tardava a encontrar resposta para os

milhões de desalojados das zonas costeiras em perigo e das zonas rurais

onde a água há muito não chegava. Um governo que falava em transição

energética, mas que aprovava a construção de novos oleodutos. Os

ataques seguintes já estavam em marcha. Cada célula sabia o que tinha

de ser feito e estava disposta a tudo para o fazer.

— Podem contar comigo. Só preciso de aprender a encaixar o

homicídio na lista de coisas que nunca tinha imaginado fazer...

— Não foi um homicídio.

— Sim, tenho de mudar o chip. Autodefesa, matar ou morrer.

— Precisamente. E quando tiveres dificuldade em fazê-lo, pensa nos

teus oito mil coalas.

— Os meus oito mil coalas — lembrou Laura, sorrindo.

— Ah, agora sim, um sorriso! — exclamou Paolo, beijando-lhe os

lábios. Depois, olhou-a com um misto de entusiasmo e admiração. —

Conseguiste, Laura!

— Conseguimos, Paolo. Nada nos vai parar.


Beijaram-se apaixonadamente, as mãos a deslizarem pelo corpo um

do outro, as línguas a percorrerem os pescoços, os fatos-macaco verdes

despidos com urgência, sexo selvagem, como se fosse a última vez,

agora que cada vez poderia mesmo sê-lo. Nem se preocuparam em

trancar a porta. Os outros sabiam quando não entrar.

Mais tarde, sem conseguir pregar olho, fixando novamente a parede

cinzenta, Laura recordou como surgira a ideia que os levara até ali.

Conseguia ver a sala insonorizada de um estúdio de gravação

abandonado, onde decorrera mais uma reunião clandestina para preparar

os ataques, a primeira para ela, a enésima para os restantes. Estavam lá o

Paolo, o Frank, o Erik, mas também o Luc, a Maria, o Carlos, a Karen e

o Miguel. Lembrava-se vivamente de se ter sentido alarmada quando

soube que Luc fora membro da Frente de Libertação da Terra, um grupo

considerado terrorista, responsável por inúmeros ataques e actos de

sabotagem. Ou de ouvir Maria assumir bem alto que, pela sua

experiência enquanto ex-membro das secretas, considerava que Laura

não tinha perfil para o que estavam a preparar e que iria ceder assim que

fosse interrogada pela primeira vez. Ou de ter achado Carlos demasiado

imaturo para liderar a célula dos explosivos. Lembrava-se vivamente de

ter ido à casa de banho do estúdio molhar a cara com água fria e de se

ter perguntado se seria assim que os soldados se sentiam quando

partiam para a guerra. Tinha de ter uma confiança cega nas pessoas que

estariam ao seu lado, todavia, não as conhecia e, para algumas delas,

parecia que não era bem-vinda. Como saber se cumpririam o seu papel?

Como saber se todos estavam realmente dispostos a dar a vida pela

causa, mas também uns pelos outros?

Lembrava-se ainda de saltar entre o orgulho de fazer parte de algo

nobre e a culpa de matar alguém. Sim, várias vidas seriam ceifadas sem
dó nem piedade durante a Revolução, e Laura questionava-se, então

como agora, se a vida humana seria mais valiosa do que a vida de

qualquer outra espécie aniquilada diariamente devido às acções dos

homens. Na altura, decidira que não. Decidira que chegava de desculpas

e adiamentos, acordos e conferências onde os intervenientes falavam e

falavam, mas não levavam a cabo as mudanças concretas e necessárias

para a salvação de milhões de vidas. Chegava de petições, marchas,

invasões de conselhos de ministros, vandalização de obras de arte,

greves de fome e cadeados em fábricas. Decidira ficar com o grupo

contra a hipocrisia de quem se dizia preocupado com o assunto, mas não

se desviava um milímetro de um estilo de vida consumista e suicida,

mesmo perante as notícias diárias de secas históricas, furacões

descontrolados e incêndios selvagens, como aquele que, na Austrália,

tinha dizimado oito mil coalas e outros cento e quarenta milhões de

animais. Cento e quarenta milhões! Não havia outra maneira. Chegara a

hora de matar os culpados, todos eles, um por um, por mais poderosos

que pudessem parecer, até que se desse uma verdadeira mudança. Até

que todos os governos percebessem que não havia tempo para

adaptações lentas que não incomodassem os lobbies. A mudança era

urgente. A mudança era agora. Porque a única civilização possível é

aquela que vive em comunhão com a Natureza.

Ensaiou mentalmente o discurso que iria gravar dentro de dias, o qual

seria divulgado em todas as emissoras de televisão, rádio e redes sociais

quando chegassem à sétima execução. O objectivo era incitar o povo a

marchar nas ruas, exigindo a queda imediata do governo.

(Olhos na câmara, doces, mas assertivos.) Caros concidadãos, mais

um criminoso perdeu a vida hoje devido aos seus atentados contra o

nosso planeta. Um assassino que, todos os dias, desprezando os pedidos


desesperados da população, arriscava a vida de todos em nome do

capital. Não restam dúvidas de que foi justamente castigado. (Pausa e

gesto de prece.) Este foi o sétimo acto de libertação das Brigadas

Verdes, um movimento revolucionário pela salvação do povo e da

Natureza. Muito tem sido divulgado nas redes sociais acerca da nossa

origem e propósito, mas estou aqui para vos dizer que não nos move

uma ideologia, religião ou interesse económico. Não somos financiados

por nenhuma corporação. Somos um grupo de cidadãos em luta pela

sobrevivência da nossa espécie e de todas as outras, que partilham

connosco este maravilhoso planeta em agonia e das quais também

dependemos. (Pausa e leve sorriso.) Iniciámos um caminho sem retorno,

matar quem nos mata, com perfeita consciência de que é uma guerra.

Uma guerra pela vida, por mais paradoxal que possa parecer. Como em

qualquer guerra, sabemos que há dois lados. Hoje podem escolher o

vosso. (Pausa dramática.) Quem estiver connosco, a lutar pela vida e

pelo futuro de todos, nada deve temer. Estará protegido, estará do lado

do bem. (Sorriso tranquilizador.) Quem nos tentar deter com o intuito de

perpetuar um modo de vida insustentável, em que a ganância e a

corrupção se sobrepõem a tudo, vai continuar a ser perseguido,

torturado e morto sem misericórdia, até não restar nenhum de vós. Isto

não é um aviso. A guerra já começou. (Olhar confiante para a câmara.

Abertura de plano revelando Paolo e o Luc ao meu lado. Fim de

emissão.)

Relembrar cada uma destas palavras ajudou-a, por fim, a adormecer.

A angústia fora substituída por um enorme orgulho de fazer parte do

lado bom da história. Sonhou que estava com Billie e Max na Casa do

Lago.
Admirável Mundo Verde
Três anos depois
uando era mais nova, a minha mãe ficava enervadíssima por me

Q ver sempre agarrada ao tablet. Estava constantemente a olhar por

cima do meu ombro e a criticar o que quer que fosse que eu estivesse a

fazer: jogar, ver vídeos parvos ou deslizar o dedo pelas redes sociais.

Dizia que a minha geração ia ser uma geração de inúteis, com sérios

distúrbios de aprendizagem e pouca desenvoltura para lidar com o

mundo real. Que não iríamos saber mudar uma lâmpada, desentupir um

cano, fazer uma bainha ou plantar qualquer coisa que nos valesse, se um

dia precisássemos de comer. Que iríamos perder a capacidade de sonhar,

de conversar, de criar brincadeiras com um pau e uma pedra, como ela

fazia no seu tempo. Volta e meia, dava-lhe uma fúria e tirava-me mesmo

o aparelho das mãos. «Pronto, acabou-se», afirmava num tom decidido,

indiferente aos meus protestos. E eu, em lágrimas, a perguntar o que

queria que fizesse o dia inteiro em casa sem um tablet. Vivíamos num

prédio, mas eu não conhecia bem os meus vizinhos, e as crianças,

naquele tempo, já não brincavam na rua. Aliás, nessa altura eu não era

assim tão criança. Perdera a capacidade de me deslumbrar com uma

borboleta ou de me divertir a perseguir um carreiro de formigas, e, além

disso, já estava demasiado crescida para trepar às árvores ou andar de

baloiço. Respondia-me, então, que inventasse. Que fosse para a janela

observar o mundo, contar carros, contar pessoas, ver as nuvens a


desfazer- -se devagarinho, como algodão doce na língua. «O mundo real

está lá fora, observa-o bem», dizia. Quem me dera poder mostrar-lhe

que, agora, é isso que faço a maior parte do tempo.

Amuada no quarto, conversava comigo própria. Construía diálogos

com outra parte de mim, queixando-me da mãe tirana que me calhara

em sorte e da injustiça que era privar-me de falar com os meus amigos

através daquela janela electrónica onde estava todo o meu mundo; aquele

que me importava, não aqueloutro, chato e cinzento, dos adultos. Além

disso, no meu mundo, poderia chamar alguém para mudar a lâmpada,

desentupir o cano ou fazer uma bainha com um só clique, continuando a

construir o meu avatar, que saltava de jogo em jogo em infinitas

possibilidades. Como era demasiado preguiçosa para escrever todos os

diálogos, argumentos e divagações que me ocorriam enquanto estava

fechada no quarto, agarrava no diário que ela me oferecera e escrevia

apenas: «Querido diário, a minha mãe é uma seca e assim que puder

saio de casa para nunca mais voltar.» Deixava-o sem cadeado na mesa-

de-cabeceira, na esperança de que o lesse. Não sei se alguma vez o fez.

Agora, apetecia-me ter nas mãos esse diário de capa verde e folhas

perfumadas, ou outro qualquer, com ou sem cadeado, onde pudesse

escrever sem me preocupar com as palavras ou em poupar cada

bocadinho de papel para algo mais importante. Agora que quase não há

papel…

Tenho direito a um caderno A4 por ano, o qual posso usar para

escrever recados, desenhar, enviar cartas, enfim, tudo o que for

estritamente necessário e que não possa ser feito de forma digital. No

próximo ano, quando quiser levantar um caderno novo, devo levar o que

tenho agora, provando que está todo preenchido. Nem uma folha em

branco. Só então me darão outro. Desperdício zero. Privacidade zero


também. É por isso que os contentores de reciclagem raramente ficam

cheios. As pessoas depressa aprenderam a reutilizar cada caixa de

cereais, cada saco de mercearia gasto, cada verso de cada folha, e eu não

vou gastar o meu único caderno com divagações estúpidas acerca da

minha solidão e das horas que passo a olhar pela janela. Prefiro usá-lo

para anotar citações dos muitos livros que leio e continuar a falar

comigo mesma, como aprendi a fazer naquelas tardes de tédio, naquela

outra vida, deixando que as palavras se soltem e percam em diálogos

imaginários e inconsequentes. Realmente, que interesse teria descrever

este vazio? A mesma rua limpa e florida, as mesmas pessoas

ensimesmadas, o chilrear intenso dos pássaros, o tinido das bicicletas, os

cascos dos cavalos. Sons de aldeia numa cidade. E, no entanto, ao

contrário do que acontecia nas aldeias, aqui ninguém se conhece nem

partilha a sua intimidade. Por detrás de cada sorriso que nos lançam, há

sempre alguma desconfiança. Nas parcas oportunidades que temos de

iniciar uma conversa, ninguém pergunta de onde viemos nem o que

fazíamos antes. Não interessa. Foi-nos sugerido que fizéssemos tábua

rasa, neste novo paradigma que estamos a criar, juntos e unidos.

Quem escolheu ficar sabe que a única coisa que importa é sermos

todos cidadãos cumpridores, cada um dando o seu contributo para um

mundo melhor, provando que é possível viver no século XXI com várias

comodidades e tecnologias, mas nenhumas extravagâncias ou

desperdício. À hora de estender a roupa, trocam-se dicas para branquear

uma peça com bicarbonato de sódio; na fila do Armazém Comunitário,

discute-se a época adequada para semear determinado legume; nas salas

de espera, aprendem-se diferentes pontos de malha. As profissões

artesanais são cada vez mais valorizadas: carpintaria, costura, arranjos

de electrodomésticos, transformação de resíduos, jardinagem, ao passo


que as industriais estão a desaparecer. Ou a «transformar-se», como eles

gostam de lembrar. O lema é fazer em vez de comprar, inventar soluções

ecológicas em vez de esperar que as coisas nos caiam no colo embaladas

em caixas coloridas e envoltas numa fina película de plástico. Também

as lojas de antiguidades e de coisas em segunda mão destronaram as das

novidades constantes. As grandes marcas só podem abrir portas em

versão outlet e a maioria já saiu do país. O mais incrível é que toda a

gente está feliz com estas mudanças e, sobretudo, predisposta a ensinar

os outros a fazer coisas com as mãos e a esticar cada recurso que lhes

chega. Admirável mundo verde!

Sim, a generosidade entre desconhecidos tem sido surpreendente.

Excepto no que diz respeito aos afectos, claro. Estou cá há seis meses e

não fiz um único amigo nem me dou com ninguém. Quando alguém

mete conversa comigo, invariavelmente é para perguntar o que faço. É

natural. Todos procuram alargar a sua lista de recursos. Alfarrabista?

Oh, que interessante, sei perfeitamente onde é a sua loja, uma loja muito

bonita, hei-de lá passar um dia destes, tenho uma pilha de livros em casa

de que já não preciso, então adeusinho, prazer em conhecê-la, até um

dia destes. Não se consegue ir para lá disto. Conversas de circunstância,

troca de informações importantes, mas inócuas. A verdade é que

qualquer pessoa pode ser uma Mosca e ninguém quer arriscar. Eu cá sei

que não quero. Além disso, já me habituei a estar por minha conta.

«Nenhum homem é uma ilha», escreveu John Donne no século XVII.

«Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é um pedaço do

continente, uma parte do todo.» Pois aqui, caro John, já não há um

continente, apenas um arquipélago feito de milhões de ilhas num mar

intransponível.
Regressei à cidade em Novembro passado e já não assisti às purgas.

De vez em quando, aparece um Morcego para levar alguém, mas é cada

vez menos frequente. Parece que nos primeiros meses a razia foi tal que

não deve ter sobrado nenhum dissidente ou, se sobrou, nunca mais terá

coragem para abrir a boca. Nos dias que correm, quando um Morcego

aparece, é porque houve uma denúncia anónima em jeito de vingança

pessoal, ou então é trabalho das Moscas. Aconteceu há uns dias aqui no

prédio.

Acordei de madrugada com gritos no andar de cima. A voz de uma

mulher a implorar, «por favor, não, por favor, não»; por trás, o choro de

uma criança. Foram os passos fortes e sincronizados a bater no soalho

que me fizeram perceber que a minha vizinha recebera a visita das

Brigadas. Fiquei à escuta durante algum tempo, escondida entre os

lençóis, tentando adivinhar o motivo de tal invasão a meio da noite.

Seria um aviso ou iam levá-la? Às vezes, eles aparecem só para

intimidar, se o crime não for grave. Por entre a escuridão, esgueirei-me

até à janela e vi um Morcego estacionado do outro lado da rua. Iam levá-

la, sim. Continuei à espreita até ver a mulher ser arrastada por dois

homens vestidos de verde, tentando olhar para trás, para a janela por

cima da minha, onde provavelmente estaria a criança a chorar nos braços

do pai. As luzes azuis do Morcego acenderam-se e a sirene começou a

soar, sem consideração pela hora. Eles gostam que as pessoas vejam

quando alguém é levado. Serve de aviso para que se mantenham na

linha. Voltei para a cama, angustiada com a memória viva da mulher

ainda nessa mesma manhã, no átrio do prédio, a acariciar a barriga

enquanto abria a caixa do correio.

Não fui eu quem a denunciou, juro, mas eles vão achar que sim.

Nunca irão perdoar-me. Eu, que até gostava deles. Não éramos amigos,
claro, já disse que não tenho amigos por aqui, mas conversávamos

sempre que nos cruzávamos nas escadas, mesmo que fosse sobre

trivialidades, como faziam os vizinhos de antigamente. Chegámos a

trocar receitas e dicas para sermos mais eficientes a lavar a roupa nas

poucas horas em que corre água nas torneiras. Um vislumbre de

normalidade. Cheguei também a ficar com a criança duas vezes, para

eles saírem só os dois. Por que raio deixara ela que aquilo acontecesse?

Em que momento achara que teria o bebé sem que ninguém reparasse?

Não se consegue esconder uma barriga de grávida muito tempo.

Planearia fugir? Como, se as fronteiras estão fechadas e os sessenta e

seis quilómetros e meio de muro quase todos erguidos? Teria sido mais

fácil livrar-se daquilo logo que soube, como uma boa cidadã, com todas

as despesas pagas. Agora vai para a carnificina, sem anestesia, sem

antibióticos. Que insensatez… Naquela madrugada, com essa imagem

terrível na cabeça, não consegui pregar olho. Rebolei na cama, olhei para

o relógio várias vezes e acabei por voltar para a janela, deixando-me

ficar a olhar a rua mal iluminada onde não passava ninguém. Assisti ao

céu a pintar-se de diversos tons de púrpura até ao despontar do primeiro

raio de sol. Mais desperta do que nunca, decidi descer as escadas

interiores que dão para a loja. A lei não permite que a porta abra antes

das dez, mas pelo menos não estaria sozinha. As prateleiras estão

bastante menos cheias do que no tempo do Sr. Joel, uma vez que as

Brigadas Verdes levaram muitos dos livros que são agora proibidos,

sobretudo os de Economia e Engenharia Industrial. Contudo, sobraram

os meus preferidos: os romances, cujas personagens fazem as vezes dos

amigos que não tenho.

Este alfarrabista e o pequeno estúdio por cima são a minha casa desde

que regressei e dei com o apartamento onde vivia parcialmente


destruído e ocupado por um bando de miúdos. Toquei à campainha, mas

ignoraram-me. Toquei à dos vizinhos, mas já não eram os mesmos e,

nos dias que correm, não se abre facilmente a porta a um desconhecido.

Após muita insistência e explicações dadas pelo intercomunicador, os

miúdos lá me deixaram entrar para que visse com os meus próprios

olhos que não tinha sobrado nada da minha antiga vida. Quem por lá

passara antes deles tinha levado tudo o que pudera. Todas as casas, lojas,

armazéns e quintais cujos donos tivessem desaparecido, foram

saqueados sem pudor durante a Revolução e nas semanas que se

sucederam, até a ordem ser restabelecida. Qualquer objecto podia vir a

ser precioso numa troca-por-troca ou para fazer dinheiro no mercado

paralelo, numa altura em que ninguém sabia muito bem o que

aconteceria a seguir. Louças, roupas, brinquedos, quadros, almofadas,

cortinados, talheres, bibelôs, detergentes, medicamentos, escovas de

cabelo, alfinetes, canetas, tudo. Teria sido instinto de sobrevivência,

medo ou histeria? Provavelmente um pouco de cada. Encontrei, ainda

assim, três objectos que para aqueles miúdos eram lixo, mas que para

mim eram tudo: uma caneca lascada dos Estudantes Pelo Planeta, um

vasinho com uma suculenta que continuava no minúsculo parapeito da

casa de banho e o saco de rede que a Laura usava para ir à praça, mas

que ninguém queria, precisamente porque, entre os buracos, caíam as

coisas mais miúdas. Deixei-lhes o meu cachecol em troca daquelas

coisas inúteis. No chão da varanda, a fazer de cama para um cão velho e

magro, muito suja e coçada, estava a manta polar na qual a Laura se

enrolava quando se recusava a ligar o aquecimento.

Por momentos, vi-a saltitando pela casa para se aquecer. O

apartamento não era particularmente frio, mas, em certos dias de

Inverno, ficávamos a bater o dente, porque a Laura só nos deixava ligar o


aquecimento quando a temperatura exterior estava abaixo dos dez graus.

Nem eu nem o Max nos queixávamos. As regras haviam sido claras

desde o primeiro dia. Aliás, quando cada um de nós respondeu ao

anúncio que ela colocou na vitrine de recados da faculdade, já fazíamos

uma pequena ideia do que nos esperava. «Activista ambiental procura

almas gémeas para partilhar abrigo de forma sustentável.» Confesso que

hesitei em responder. Embora, na altura, as questões ambientais já

estivessem no topo das minhas prioridades, o termo «activista

ambiental» remetia-me para uma neo-hippie com rastas na cabeça,

vestida com aquelas roupas largas que parecem pijamas, que não toma

banho e é contra a depilação. No entanto, quando a porta se abriu para a

visita ao imóvel, recebeu-me uma miúda de calças de ganga e top branco

imaculado, debaixo do qual havia um sutiã, e em cujas axilas não

vislumbrei um único pêlo. O cabelo estava molhado e cheirava a

alfazema. A sala estava limpa e não havia pósteres de Shiva nem incenso

a queimar. A Laura era toda luz e a sua casa cheirava a lar.

Fomos submetidos a uma rigorosa entrevista sobre os nossos hábitos

de consumo e estilo de vida, e tivemos de assinar um contracto onde

estava estipulado que podíamos ser expulsos por coisas como usar

garrafas de plástico ou colocar produtos de origem animal no frigorífico.

Excepto ovos. Podíamos comer ovos, desde que fossem biológicos. Eu

não era vegetariana antes de me mudar para lá, mas a casa era tão boa,

com um quarto para cada um, casa de banho com banheira e uma sala

comum, que menti com quantos dentes tinha e saí de lá direita à

biblioteca para descobrir tudo o que pudesse sobre vegetarianismo.

Todas as opções de alojamento que tinha visto até então ou eram

cubículos de seis metros quadrados em casas onde havia muitos outros

cubículos, ou era uma cama num beliche partilhado com um


desconhecido. Em ambos os casos, apenas uma casa de banho, cujo

cheiro dava náuseas e cuja base do chuveiro tinha uma camada de surro,

e o usufruto de uma cozinha com azulejos outrora brancos, agora

amarelos de gordura. A lista de espera para a residência universitária era

infindável, e viver numa pensão estava a sugar todas as economias que

os meus pais tinham feito para eu estudar na capital. Tornar-me

vegetariana ou ter de andar enrolada em mantas durante o Inverno era

um preço insignificante a pagar por aquele apartamento luminoso e

alegre, onde a Laura e o seu sorriso também moravam. De resto, pensei

eu na altura, podia comer carne fora de casa ou beber um café com leite

na faculdade, às escondidas dela, coisa que fiz durante os primeiros

meses.

Certo dia, acabei por encontrar o Max na fila do McDonald’s. Na

altura, ainda não tínhamos falado muito um com o outro. Ele instalara-

se no apartamento depois de mim e, normalmente, acordava quando eu

já tinha saído e regressava quando eu me estava a deitar. Ficámos os dois

a olhar um para o outro, em pânico, para logo percebermos que

estávamos ali pela mesma razão e que mais valia juntarmo-nos a

saborear os nossos hambúrgueres, como quem fuma às escondidas dos

pais. Foi o nosso primeiro encontro e o nosso primeiro segredo. Um

segredo que não foi preciso guardar por muito tempo, porque, semanas

depois deste episódio, chegámos a casa e a Laura estava a ver um

documentário sobre a indústria da carne, de tal forma violento que

nunca mais tivemos vontade de comer um animal. Hoje tenho a certeza

de que não foi coincidência. Ela deve ter encontrado um recibo do dito

restaurante no meio da roupa para lavar e, em vez de nos confrontar por

lhe termos mentido, preferiu dar-nos a ver aquele documentário brutal,

onde apareciam vacas com as tetas cobertas de sangue e de pus, vitelos a


mugir de dor ao serem separados das mães e animais doentes, mantidos

vivos a antibióticos para renderem um bocadinho mais. Era assim que a

Laura passava as suas mensagens. Não falava, agia. Não argumentava,

dava o exemplo. E, por isso, era tão fácil segui-la. Nós seguimo-la sem

hesitar, durante os três anos que antecederam o seu desaparecimento.

Foi desolador olhar para as paredes do apartamento que partilhámos,

testemunhas de tantas histórias, despidas de tudo aquilo que me era

familiar. Saí de lágrimas nos olhos, caminhei durante horas sem destino,

até dar comigo em frente ao alfarrabista, cujas montras estavam

protegidas pelas grades e, por isso, intactas, ao contrário de muitas

outras pelas quais havia passado. Fachadas e fachadas cravejadas de

balas, edifícios e edifícios quase a ruir. Era ali que estudávamos quando

a biblioteca da faculdade estava cheia, e foi ali que me escondi com o

Max no dia em que começou a Revolução. Lembrei-me de que o Sr. Joel

costumava esconder uma chave suplente debaixo de uma pedra nas

traseiras. Saltei o muro, procurei durante mais de meia hora e, quando

estava quase a desistir, convencida de que teria de dormir ali mesmo,

naquele quintal, encontrei-a. Foi assim que entrei neste santuário a que

hoje chamo casa. Tenho a certeza de que, se um dia o Sr. Joel vier a

saber que aqui estou, não se vai zangar comigo. Talvez até fique feliz por

saber que sou eu quem está a cuidar dos seus preciosos livros.

Onde estará o Sr. Joel? Ainda na terra para onde partiu? E o Max?

Fugido? Preso? Decerto morto.

Morreram milhares de pessoas naqueles dias, cujos corpos foram

depois enterrados em valas comuns, como sucede numa guerra qualquer.

Eu não vi nada, mas foi o que me contou a Salete quando me acolheu na

sua quinta. Contou-me também que me encontrou ao seu portão,

praticamente desmaiada depois de vários quilómetros a vaguear


moribunda, sem esperança ou destino. Parece que estive vários dias a

delirar, perante o seu vigilante cuidado, e que, quando finalmente

acordei, perguntei por ele. Com calma, a Salete explicou-me que havia

uma lista de desaparecidos, mortos e fugitivos, a qual podia consultar

em qualquer computador, se bem que a ligação à Internet fosse muito má

naquele lugar. O meu primeiro instinto foi dizer que sim, claro. Queria

consultar a tal lista, o meu e-mail, as redes sociais, tudo! Saber o que

tinha acontecido e quanto tempo passara desde que me tinham levado.

Teria sido um mês? Teria sido um ano? Tudo era vago e disperso na

minha memória. Mas depois lembrei-me do que o Max me dissera

quando andámos escondidos naqueles primeiros dias de assombro, e

como era importante não revelar a nossa identidade a ninguém. Acabei

por mentir à Salete e dizer que me chamava Joana e que o Max era o

meu cão que se tinha perdido. Ela fingiu acreditar e calou-me com uma

canja de galinha que sabia a casa. Nunca tentei procurá-lo. Tinha medo

de que, sei lá como, me localizassem e viessem buscar. Acima de tudo,

tinha medo de ver o nome dele na lista fatal.

Quando recuperei as forças, perguntei à Salete se podia ficar com ela

na quinta durante algum tempo, a ajudar nas colheitas de Verão como

forma de agradecimento por me ter salvado. Ela aceitou, como depois

aceitou muitos outros seres errantes que por ali passavam e aos quais

dava sempre abrigo e uma malga de sopa sem fazer perguntas. As

colheitas de Verão arrastaram-se até ao Inverno e, depois, ao novo ano e

ainda a um outro. Durante todo esse tempo, a Salete nunca perguntou o

que quer que fosse sobre o meu passado e tratou-me sempre com

enorme carinho. Foi como uma mãe para mim. Na verdade, foi como

uma mãe para todos os que por lá passaram. Devia ter perto dos sessenta

anos, roliça, de modos rudes e sem medo de nada, ao contrário de mim,


que tinha medo de tudo. Ainda tenho, passado tanto tempo. Não sei se

ainda estarei a ser procurada. Estou sempre à espera de que alguém entre

pela loja e me leve. Pessoas do antigo regime ou do novo, que me

queiram castigar por ter contado alguma coisa no tempo em que estive

presa ou por algo que fiz depois, não faço ideia o quê, talvez viver sob

uma identidade falsa. É tão fácil prender alguém nos dias que correm…

Mas eu juro que não disse nada. Nem na altura, nem agora. O silêncio

tem sido o meu mote. Se não lesse tanto, talvez até tivesse perdido o

sentido das palavras…

Quando senti que era tempo de abandonar a quinta, cortei o cabelo,

pus uns óculos de massa enormes que encontrei no sótão e decidi

esquecer o passado. Todo o passado, menos a Salete, a quem ainda envio

um postal virtual de Boas Festas. Agora sou a Joana, sobrinha-neta do

Sr. Joel, que me deixou a tomar conta do alfarrabista quando fugiu para

a terra durante a Revolução. J. Andrade, como consta no registo da

empresa e nas contas que chegam para pagar. Ninguém faz perguntas.

Sou discreta e cumpridora. A Billie, amiga da Laura e do Max, para

todos os efeitos morreu e está enterrada com todos os outros mortos

numa vala comum.


s meus dias passam ligeiros entre os livros que me rodeiam. Não

O costumo ir à rua. Prefiro apanhar ar no quintal das traseiras, à

sombra da enorme figueira que me envolve com o seu aroma adocicado.

Uma vez por semana, saio para deixar no Armazém Comunitário as

compotas que faço com os seus figos ou com restos de fruta que recolho

na mercearia, e levantar as senhas correspondentes. Todos temos de

contribuir com algo feito por nós com materiais sustentáveis ou

reutilizados, caso contrário cortam-nos o acesso às preciosas senhas,

que podemos usar em qualquer lugar em substituição do dinheiro.

Podemos fazer algo tão simples como uma pega em crochet ou raminhos

de aromáticas plantadas na varanda, não interessa o valor da matéria-

prima, interessa sim o número de itens que levamos. Um frasco de

compota corresponde a uma senha e há senhas extras para quem se

apresenta com produtos menos comuns. A ideia por detrás desta medida

é obrigar as pessoas a produzir coisas com baixo impacto ambiental que

possam usar no seu dia-a-dia e, simultaneamente, abastecer a

comunidade, sem que se tenha de recorrer a produções de grande escala.

Aposto que esta foi uma ideia da Laura. Ela sempre fez muita da sua

roupa, assim como os presentes que nos oferecia. Velas feitas com óleo

usado, mantas de retalhos, saquinhos com pot-pourri, colares de

missangas, uma aguarela. Pintava muito bem.


O dinheiro, como o conhecemos antes, ainda circula, e muitas das

coisas que existiam continuam por cá. Bancos, agências de seguros,

cabeleireiros, cafés. Também é possível comprar uns ténis novos, desde

que sejam feitos de materiais reciclados, ou um jornal diário, se bem que

apenas em versão digital. Para a maioria das pessoas, parece que pouco

mudou. Continuam a levar a sua vida para a frente, habituadas a que

«eles» tomem decisões. «Eles», aquela entidade que desresponsabiliza e

nos permite dormir sem o peso de ter de fazer seja o que for. «Eles», os

que mandavam no antigo regime. «Eles», os que mandam no novo. Tanto

faz. Ninguém se queixa, nem mesmo os que tiveram de se desfazer dos

carros ou viram os seus empregos simplesmente desaparecer. Como

quem trabalhava em gráficas, agora que são proibidos novos livros em

papel. É por isso que a loja do Sr. Joel, que agora é minha, tem sempre

clientes. Entram aqui pessoas para vender livros que encontraram por aí,

e pessoas que querem comprar os últimos exemplares impressos. Já se

habituaram à Joana, que responde com sorrisos sempre que pode, como

se fosse também proibido desperdiçar palavras. Lançamentos de livros,

só nas plataformas digitais. Não estou a par das novidades porque

continuo sem querer aceder à Internet, a não ser para coisas burocráticas

essenciais, mas suspeito que não sejam muitas. Quem quererá publicar

sob o escrutínio do Mocho e da sua incessante busca por mensagens

ocultas? Quem quererá escrever livros inócuos e unidimensionais?

Dizem que ele consegue ler e bloquear e-mails e qualquer espécie de

mensagens privadas. Tal como as pessoas, todos os dias desaparecem

dezenas de contas de redes sociais sem deixar rasto. O potencial é

infinito, quando toca a Inteligência Artificial. De qualquer forma, os

livros novos não me fazem falta. Tenho ainda muitos dos clássicos para
ler. Como disse Almada Negreiros, «não duro nem para metade de uma

livraria». Mais uma frase que apontei no meu caderno.

Sou chamada à realidade pelo som de uma sirene que se aproxima. É

o Morcego da noite anterior, que traz a minha vizinha de volta a casa.

Vejo-a sair devagar e a porta a fechar-se com estrondo atrás de si. Parece

um fantasma, pálida e hesitante, os olhos vazios cravados no chão.

Conheço bem aquele olhar. O olhar de quem leva a alma quebrada, sem

esperança de conseguir voltar a colá-la. Sinto um nó no estômago e, nos

braços, os dedos grossos dos polícias que me arrastaram naquele dia e

me atiraram para dentro da carrinha sem janelas, onde se amontoavam,

amordaçados, outros jovens como eu.

É inevitável voltar a esse dia. A minha mente fá-lo constantemente,

por mais que lhe diga que o passado já não existe e que só me devo

preocupar com o agora. Sim, tenho lido também vários livros sobre

como lidar com um trauma, de onde retiro estas frases-feitas, as quais,

normalmente, até ajudam. Porém, volta e meia, acontece alguma coisa

que me transporta até àquele momento e me faz revivê-lo uma e outra

vez. Hoje foi a vizinha, esquálida, a regressar a casa, os passos trémulos

e o som da porta do Morcego a fechar. Bam!


ão faço ideia de quanto tempo andámos, se chegámos sequer a sair

N da cidade. O tempo parou naquele percurso em que o medo nos

esmagava. Éramos maioritariamente jovens, se bem que também vi um

homem da idade do meu pai e uma senhora que devia ter uns setenta

anos. Quando as portas da carrinha se abriram, quase ceguei com a

quantidade de flashes disparados por jornalistas ansiosos por saber se as

pessoas que vinham lá dentro eram membros da organização que andava

a incitar a população à revolta. Um dos polícias teve a decência de me

tapar a cabeça com o seu casaco, enquanto os jornalistas gritavam: «Dá-

nos um nome!» Entrámos numa esquadra e toda a gente parou para

olhar, com olhares duros e reprovadores, enquanto o polícia me

encaminhava para uma sala no fundo do corredor. Fechou a porta e

deixou-me lá sozinha. Só então me lembrei dos outros, que vinham

comigo na carrinha. Estariam também a ser levados para uma sala?

Juntar-nos-iam quando o interrogatório terminasse? Não sei o que teriam

feito de mal. De certeza que não eram íntimos de um dos líderes da

revolta, como eu.

Olhei em volta, tão assustada que conseguia ouvir o meu próprio

coração. Estava descompassado, marcando com a sua batida o medo que

continuava a crescer dentro de mim. Ao meu redor, tudo era cinzento: as

paredes, o tecto, as cadeiras, a mesa, o candeeiro, a luz. De tal forma


que, ao olhar para as minhas mãos algemadas, estas também me

pareceram cinzentas. Por momentos, foi como se toda a cor do mundo

tivesse sido sugada e eu estivesse numa dimensão a preto-e-branco. Tive

de olhar para dentro da blusa e ver se o sutiã que trazia ainda era cor-de-

rosa, para ter a certeza de que não estava a delirar. Podia ser da fome.

Nesse dia só tinha comido o resto do pacote de batatas fritas que sobrara

da noite anterior. O Sr. Joel levara-nos comida nos primeiros dias em

que estivemos escondidos na sua cave, porém, naquela manhã, apenas

nos apressara para a rua e fechara a loja com grades e cadeados, como se

não pretendesse voltar. E não pretendia, sei-o agora.

O tempo foi passando e eu tinha a certeza de que vários dos meus

direitos constitucionais estavam a ser violados. Não teria eu direito a um

advogado? Não teria o direito a permanecer em silêncio? O meu

conhecimento da lei era escasso e baseado nas séries americanas que fui

consumindo ao longo dos anos, ainda assim, foi exactamente isso que

perguntei ao homem que entrou na sala pouco depois. Um homem

enorme, calvo, de rosto quadrado, que se limitou a revirar os olhos e a

responder:

— Ao abrigo da lei antiterrorismo, essa coisa dos direitos é

perfeitamente dispensável. Além disso, só tenho umas perguntas para te

fazer. Não és suspeita de nada. Por enquanto.

— E vou estar aqui sozinha consigo? — perguntei. — Não devia estar

aqui mais alguém, para garantir que não me bate ou tortura?

O homem agarrou o candeeiro que estava em cima da mesa de metal e

virou a lâmpada de alta potência directamente para os meus olhos,

obrigando-me a protegê-los contra o antebraço.

— Escuta aqui, ó pirralha, quem faz as perguntas sou eu, ouviste?


Assenti e, quando percebi que a lâmpada já não incidia sobre mim,

abri os olhos e vi que tinha entrado uma mulher na sala. Respirei de

alívio. A presença de outra mulher deu-me alguma segurança, mesmo

sabendo que há mulheres que são piores do que os homens no que toca a

utilizar técnicas de interrogatório agressivas. Talvez tivesse sido

condicionada por ela ser pequenina e ter uns olhos grandes e amistosos.

— Billie, certo? — perguntou ela.

— Sim.

— Eu sou a inspectora Neto. E este é o inspector Garcia. Temos umas

perguntas para te fazer em relação a uma amiga tua. Laura Espinosa.

Estás pronta para responder?

— Sim, mas gostava de chamar o meu advogado — disse eu, fingindo

uma incomensurável autoconfiança, já que não tinha advogado nenhum.

— Lamento, Billie — continuou a inspectora —, mas não temos

tempo para essas burocracias. Estamos perante questões de segurança

nacional, entendes?

— OK, mas eu sei que não sou obrigada a responder a nada.

— Bom, não vamos começar já com essa atitude, pois não? —

perguntou ela com um sorriso, o qual foi imediatamente substituído por

um olhar gelado enquanto a mão me puxava o cabelo, fazendo com que

a minha cabeça batesse com violência na mesa fria. — É que eu não

tenho paciência para pirralhas insolentes. Além disso, tenho um jantar

esta noite, ao qual não faço tenção de faltar, estamos entendidas?

— Sim — respondi, abafando o choro.

— Então, já chega de conversa — disse o inspector Garcia, sentando-

se à minha frente. — Vamos ao que interessa: quando é que viste a

Laura pela última vez?

— Foi há mais de um ano, no dia da grande manifestação.


— Dia?

— 22 de Abril.

— E onde estavas exactamente quando a viste pela última vez?

— Em casa.

— Que casa?

— Na casa que partilhamos os três, eu, ela e o Max. Ou

partilhávamos, porque desde esse dia só eu e o Max é que lá vivemos.

Mas imagino que já saibam disso, certo? Olhe, desculpe, mas eu já

contei esta história mil vezes à Polícia. Fui eu quem fez queixa do

desaparecimento dela logo no dia seguinte. Devem ter aí nos vossos

registos.

— Mas não te importas de contar outra vez, pois não? — perguntou o

inspector, aproximando do meu rosto a sua cara descomunal.

— Não… — respondi, contrariada.

— Então, vá, recapitulando — voltou a inspectora, sentando-se ao

meu lado. — Foram à manifestação, organizada por vocês e por outros

grupos ambientalistas, e, no final, foram direitinhos para casa.

— Sim.

— Tu, a Laura e estes indivíduos todos? — insistiu ela, mostrando-me

as fotografias do Max e de quatro amigos do nosso movimento

ambientalista.

— Sim. Este é o Max, que vive connosco, e estes são do grupo dos

Estudantes Pelo Planeta.

— E quando chegaram a casa, o que é que fizeram?

— Ficámos por lá a celebrar com umas cervejas e a ver o telejornal, à

espera de que desse a notícia da manifestação. Queríamos ver as

imagens e se o tom da reportagem nos seria favorável.

— Que horas eram?


— Oito e pouco.

— E depois?

— Depois, o telejornal começou e não mencionaram sequer a

manifestação. Mudámos para outros canais, mas as primeiras notícias

eram as do costume: futebol, inflação, o preço da gasolina… A Laura

ficou furiosa, a dizer que é sempre a mesma coisa, que ninguém dá

importância à vontade do povo, que as notícias sobre o clima são sempre

passadas no final do noticiário, que a sociedade anda alheada, enfim,

estava mesmo chateada. E com razão. Ali estávamos nós, acabados de

chegar de uma manifestação histórica, que conseguiu juntar mais de

quinhentas mil pessoas, a exigir mudanças para um futuro sustentável, e

o mais importante para os jornalistas continuava a ser o futebol.

— E foi aí que ela saiu de casa?

— Não. Ainda ficou por lá, a andar de um lado para o outro, até que,

finalmente, deu a notícia da manifestação, e nós todos contentes, porque

na televisão dá para ter melhor noção da quantidade de pessoas que

aderiram. Eram milhares. A Laura estava orgulhosa. Estávamos todos!

Logo a seguir, deu uma notícia sobre os incêndios na Austrália que

mataram cerca de oito mil coalas e ela ficou muito perturbada. Primeiro,

muito séria, a fitar o ecrã, com a respiração acelerada e as sobrancelhas

a formarem um ângulo que eu nunca tinha visto; depois, levantou-se

com brusquidão, disse «já chega, eles têm de morrer» e saiu porta fora.

— Eles têm de morrer? Eles, quem? — perguntou o inspector Garcia.

— Não sei, quer dizer, ninguém levou aquilo de forma literal.

— Mas ela acabou mesmo por matar várias pessoas, não foi? —

indagou a inspectora, colocando à minha frente as fotos dos cadáveres

brutalmente assassinados pelas Brigadas Verdes nos últimos dias.


— Ela nunca falou em matar alguém em específico, nem nunca falou

de nenhuma dessas pessoas que apareceram mortas. Ela era

absolutamente contra a violência. Daí nem termos ligado nenhuma

quando ela disse aquilo. Achámos que era uma maneira de falar.

— E depois, levantou-se e simplesmente saiu de casa, sem dizer nada

a ninguém? — indagou o inspector.

— Sim.

— E levava alguma mala, mochila, saco, algo que indicasse que se ia

embora?

— Nada. Só o casaco. Presumo que tivesse a carteira no bolso, porque

quando começámos a ficar preocupados fomos vasculhar as coisas dela e

não a encontrámos, mas quer dizer, não levava nada que fizesse parecer

que não ia voltar.

— E para onde é que ela foi quando saiu?

— Não faço ideia. Na altura, pensámos que tinha ido apanhar ar ou

comprar alguma coisa na loja de conveniência ao fundo da rua.

— Apanhar ar?

— Sim, quer dizer, nada fazia prever que fosse desaparecer, não é? —

respondi com impaciência, dadas as perguntas tolas que me faziam.

— E ninguém perguntou onde ela ia?

— Não. Ela simplesmente bateu com a porta, nem tivemos tempo de

perguntar nada.

— Nem o namorado?

— Ela não tinha namorado na altura, pelo menos que eu soubesse.

— Então isto é o quê? — perguntou o inspector, mostrando- -me uma

foto da Laura a beijar o Max, e outra onde passeavam de mãos dadas.

— Isso não é nada. Foi uma brincadeira numa festa. O Max gostava

da Laura, mas nunca foram namorados. Ela era assim, tinha por hábito
tocar nas pessoas, andar de mãos dadas ou com o braço por cima dos

nossos ombros. Era muito carinhosa com toda a gente.

— Com quem é que ela se foi encontrar, então?

— Na altura, não sabia, nem suspeitei. Agora tenho a certeza de que

se foi encontrar com o Paolo.

— Ah, então, afinal também conheces o Paolo! — exclamou a

inspectora, como se me tivesse apanhado em flagrante.

— Não! Só o vi uma vez, numa das reuniões do nosso grupo. Ele

apareceu lá com umas teorias revolucionárias, a incitar os jovens a

derrubar o sistema. Achámos aquilo completamente descabido, mais

ainda sendo um homem com idade para ser nosso pai, ali no meio dos

estudantes. No fim da sessão, antes de ele se ir embora, a Laura foi falar

com ele e ele ofereceu-lhe o livro que trazia na mão. Depois, saiu da sala

e nunca mais o vi.

— Mas a Laura sim.

— Houve uma altura em que suspeitei que sim, até cheguei a

confrontá-la, mas ela sempre negou.

— Suspeitaste ou sabias muito bem? — perguntou a inspectora, num

tom zangado.

— Suspeitei. Achei que ela me andava a esconder alguma coisa, mas

fiquei à espera de que me contasse. Ela contava-me tudo. Achei que era

uma questão de tempo até confessar.

— Onde é que eles se encontravam?

— Não faço ideia.

— Se te contava tudo, deves saber. Onde é que se encontravam? —

repetiu, dando um murro na mesa.

— Ela disse-me que foi a um encontro do grupo ambientalista dele,

mas que não gostou do que ouviu e que nunca mais voltou.
— Onde decorreu esse encontro? — gritou a inspectora, puxando-me

os cabelos.

— Não sei! Juro que não sei! Se soubesse, tinha lá ido assim que ela

desapareceu! Ando há um ano à procura dela, vou à esquadra de quinze

em quinze dias, procuro notícias. Ela era como uma irmã! Conseguem

imaginar como me tenho sentido? Estou zangada com ela por nos ter

abandonado sem dizer nada. Nunca nos enviou uma mensagem, uma

carta, um sinal. Nada! É como se tivesse morrido. Juro!

O inspector Garcia agarrou-me na cara com as duas mãos e falou

quase em cima de mim.

— Quem mais fazia parte do grupo a que ela se juntou?

— Não sei!

— Não mintas!

— Não sei! Juro que não sei! Eu queria saber! Ela mentiu-me e

abandonou-me! Será que vocês não me ouvem? — gritei com raiva.

Depois, comecei a chorar compulsivamente e os inspectores saíram.

Chorei tanto que acabei por adormecer de cansaço e só acordei com a

porta a ser novamente aberta com brusquidão. Dessa vez, entraram dois

soldados, não os inspectores. Levaram-me para uma cela, noutro

edifício, onde fiquei sentada no chão. Todos os dias, durante vários dias,

fui interrogada pelo inspector Garcia e a pela inspectora Neto, cada vez

com mais violência. Houve alturas em que me interrogavam quase de

hora a hora. Mostravam-me fotografias de pessoas que nunca vi,

gritavam nomes que nunca ouvira antes. Luc Bênot, Karen Mitjigaard,

Maria Guadalupe… No final, frustrados com a minha ignorância,

começaram a bater-me. Quanto maior a violência, mais eu tinha a

certeza de que não estavam nem perto de saber o paradeiro da Laura ou

de qualquer elemento das ditas Brigadas Verdes. Estavam desesperados


e enraivecidos por eu não ter absolutamente nada para lhes dizer.

Contei-lhes tudo o que sabia, tudo. Repeti a mesma história vezes sem

fim. Bem sei que era difícil que acreditassem em mim. Afinal, vivi três

anos com a Laura e éramos mesmo amigas. Melhores amigas. Nós as

duas e o Max. A santíssima trindade, unidos por um amor que nos

tornava mais próximos do que irmãos. Por isso o seu desaparecimento

doera tanto. Por isso era tão inverosímil que eu não tivesse nada que ver

com as Brigadas Verdes, muito menos com aquelas mortes macabras

que faziam há vários dias a abertura dos telejornais.

Levaram-me, então, numa longa viagem para uma prisão de alta

segurança, onde estive fechada na mesma cela dias sem fim. Nunca

saberei quantos. Não tinha janela e a luz estava propositadamente

sempre acesa, para nos confundir e torturar. Revivi todos os dias da

minha vida desde aquela reunião dos Estudantes Pelo Planeta em que

Laura conheceu Paolo, tentando descobrir algum pormenor que pudesse

dar às autoridades para que me soltassem. Algum pormenor que me

tivesse levado a confrontá-la e impedi-la de se juntar a ele. Oh, Laura, o

que foste tu fazer?


uando a Laura nos falou dos Estudantes Pelo Planeta, era evidente

Q que já tinha pensado muito sobre o assunto. Como se estivesse

apenas à espera de encontrar mais duas ou três pessoas que a ajudassem

a levar a ideia avante. O próprio aluguer dos quartos tinha sido um

pretexto para recrutar membros para o grupo. Não que o tivesse

confessado. Não havia necessidade de fazê-lo. Ao fim de poucas

semanas, percebemos que vinha de uma família com muito dinheiro e

que não precisava de dividir a casa com estranhos para conseguir pagar a

renda. De qualquer forma, antes de eu e o Max lhe dizermos que podia

contar connosco, já ela tinha elaborado estatutos e definido acções de

luta, que não passavam pelos tradicionais incentivos à reciclagem ou ao

boicote a garrafas de plástico.

O objectivo era educar as pessoas, dar-lhes factos científicos e

argumentos para usarem com as suas famílias, nos seus empregos, para

que as coisas começassem realmente a mudar e todos tornassem as

preocupações com o ambiente uma prioridade. O foco não eram os

pequenos consumos do dia-a-dia, mas antes encontrar formas de alertar

e pressionar quem tinha poder de decisão. Dar exemplos concretos às

chefias, aos donos das empresas e fábricas, aos políticos e legisladores

do que podiam fazer. Fossem mudanças drásticas, como colocar painéis

solares no telhado de todos os edifícios, ou mudanças pequenas, como


pôr bicicletas à disposição dos funcionários para usarem nas pequenas

deslocações. Era um movimento que nascia com o propósito claro de

crescer para fora da Universidade. Ia começar como uma greve

estudantil às sextas-feiras, apoiando o movimento Fridays For Future da

menina sueca que todos admiravam, mas com vista a parar todo o

campus, depois toda a cidade e, quem sabe, com o tempo, o país inteiro.

E aí, já não haveria volta a dar, os decisores teriam de agir, as leis teriam

de sair, a mudança iria acontecer.

Claro que tudo isto era muito mais convincente quando dito pela

Laura. Os seus olhos brilhavam como se estivesse a ser possuída por

uma força maior. A sua voz era firme e fazia-se ouvir em toda a sala,

fosse a minúscula sala de alunos do piso -1 da faculdade, fosse o salão

nobre. Os seus gestos eram teatrais, e os exemplos que usava eram tão

simples que tudo se tornava óbvio depois de pronunciado pelos seus

lábios. Todas as sextas-feiras tinha um discurso novo, ideias novas,

dados novos para apresentar. Todo o seu tempo livre era dedicado à

investigação, porque não suportava ser apanhada em falso com alguma

estatística que um negacionista apresentasse. Tinha argumentos para

todos eles. O Max ficava com ela pela noite dentro a investigar, a ler

relatórios e artigos científicos. Eu coordenava o material para as greves.

Cartazes, faixas, máscaras de gás, pinturas faciais. Mobilizei o

Departamento de Artes Plásticas para fazer esculturas e instalações que

funcionavam como ponto de encontro da greve, e o Departamento de

Dança para fazer coreografias que chamavam a atenção de quem passava

e os impelia a sentarem-se ao nosso lado nas escadarias da porta

principal.

No início do segundo semestre, os Estudantes Pelo Planeta já

contavam com vinte e oito membros permanentes e milhares de


simpatizantes que se juntavam todas as sextas-feiras, ocupando a

Universidade inteira. A polícia não se dava ao trabalho de andar atrás de

nós à procura de autorizações. Deixavam- -nos ali estar, mesmo quando

invadíamos a via pública. A maioria dos condutores que eram

apanhados no meio daquilo não se mostravam chateados. Alguns

aplaudiam-nos e incentivavam-nos, por vezes envergonhados por

estarem a fazê-lo dentro de um veículo poluente. Eram sinais de que o

movimento estava a resultar. Ou, pelo menos, de que as pessoas estavam

cada vez mais conscientes da importância da nossa causa e da

honestidade dos nossos argumentos. Foi por isso que, a dada altura,

decidimos que as reuniões dos Estudantes Pelo Planeta deviam ser

abertas ao público. Percebemos que, para além de docentes e pessoal

administrativo da Universidade, havia muitas pessoas que queriam

participar no movimento, ainda que não pertencessem ao mundo

académico. Pessoas das mais diversas áreas da sociedade. As reuniões

eram o espaço ideal para passar as nossas ideias e ouvir as preocupações

de quem vivia o movimento de fora. Quantas mais pessoas

conseguíssemos convencer, melhor. Queríamos organizar uma marcha

nacional com milhares de pessoas nas ruas das principais cidades, e

acabámos por conseguir. Paralisar o país num dia da semana. Não havia

limites para a nossa ambição.

Numa dessas reuniões, a Laura brilhava no seu discurso. Também

ajudava envergar um vestido de lã verde-claro, que fazia sobressair o

ruivo dos seus cabelos. Ela não era particularmente bonita ou curvilínea

ou sensual, mas sempre que a observava, o meu olhar ficava retido nela,

e eu, maravilhada. Parece estranho e obsessivo, mas havia na Laura

qualquer coisa que me fazia querer protegê-la, abraçá-la, guardá-la só

para mim. Cheguei a pensar que me estava a apaixonar por ela, o que foi
muito perturbador porque nunca tinha tido esse tipo de sentimentos por

uma mulher e estava perfeitamente convencida da minha

heterossexualidade. Desabafei com o Max sobre isso e ele confessou-me

que sentia o mesmo, o que não ajudou, porque ele é homem, o que

tornava qualquer sentimento para com ela, por mais estranho que

parecesse, perfeitamente normal. Além disso, ele estava mesmo

apaixonado por ela. Finalmente percebi que o que eu nutria pela Laura

era admiração, do género que as meninas pequenas têm por uma irmã ou

prima muito mais velha. Aquele fascínio e desejo de ser igual a ela

quando crescesse.

O auditório estava cheio e todos ouviam atentamente o que Laura

tinha para dizer. Estava empolgada, as faces ligeiramente enrubescidas, a

voz firme e hipnotizante. O discurso acabava com uma citação da Greta

Thunberg, mote para a mobilização de todos para a grande manifestação

que estávamos a planear para o próximo Dia Mundial da Terra, dali a

dois meses. «A esperança não vem dos governos ou das empresas. Vem

do povo. O povo está pronto para a mudança. Podemos começar a

mudança agora. Nós, o povo.» O público aplaudiu efusivamente,

ouviram-se gritos e cânticos, como no futebol, e quando tudo acalmou,

um homem bem mais velho do que nós pediu a palavra. Com um

sotaque italiano, apresentou-se como Paolo, engenheiro do ambiente.

Sem demoras e com enorme eloquência começou a questionar muito do

que tinha sido dito.

— Desculpem perguntar, mas vocês acreditam mesmo que a nossa

sociedade vai sofrer uma transformação voluntária para um modo de

vida mais sustentável? Que por haver uma grande maioria de pessoas

nas ruas a mostrar uns cartazes, os que têm poder de decisão vão parar

voluntariamente de destruir os recursos naturais, de eliminar povos


indígenas, de explorar os pobres e matar quem ousa lutar contra eles?

Claro que não! O próprio Ghandi disse que o mundo tem o suficiente

para as necessidades de todos, mas não o suficiente para a ganância de

todos. É esse o problema. A ganância. E a impunidade de quem,

sofregamente, se alimenta dela. Tem de haver uma mudança radical de

paradigma. E, para tal, é preciso uma mudança na estratégia de quem

luta pelo ambiente. Uma mudança de tácticas.

— Desculpa, Paolo — interrompeu Laura —, mas qual a estratégia se

não for educar e convencer a maioria?

— Acabar com a economia industrial! É este modelo económico que

está a contaminar a nossa água, a dizimar as nossas florestas, a

escravizar os nossos povos. Sabiam que apenas 15% da energia

produzida no mundo é para consumo das pessoas? E que só 3% de todo

o lixo do mundo é produzido pelos cidadãos comuns? Acham mesmo

que é por reciclarem as garrafas de detergente que vão parar o

aquecimento global?

— Mas somos nós, o povo, quem pode eleger os políticos que

legislam sobre a indústria e quem pode criar líderes e empresários que

provoquem a mudança.

— Não há tempo para isso! Não percebem? A única opção é acabar

com o estilo de vida consumista e egoísta que nos ensinaram a ter.

Derrubar quem manda. Derrubar governos. Derrubar o sistema.

— Há maneiras democráticas de mudar o sistema.

— Não, não há. A única maneira é fazer uma revolução. Com sangue,

se for preciso.

A plateia começou a dividir-se entre aplausos e apupos. É fácil

prender a atenção de uma maioria de jovens acabados de sair da

adolescência com palavras como «derrubar o sistema» e «revolução». A


Laura teve de intervir para acalmar os ânimos e voltar a colocar o foco

na organização da manifestação, frisando que o nosso movimento era

pacifista e democrático. No entanto, quando a reunião terminou e Paolo

se levantou para abandonar o auditório, ela foi atrás dele com um

semblante fechado e um passo decidido. Inicialmente, pareceu-me que

estava a atirar-lhe o discurso do somos contra a violência, blá-blá-blá,

mas a conversa foi-se prolongando, e os sorrisos foram surgindo e

ficando cada vez maiores. No fim, ele ofereceu-lhe o livro que tinha na

mão e piscou-lhe o olho, desaparecendo depois por entre a multidão que

abandonava o auditório.

Laura ficou especada com um sorriso meio parvo, claramente

embevecida pelo charme italiano. Passou o resto da noite agarrada ao

livro, cujo título era Endgame, petiscando cereais directamente do frasco

em vez de jantar connosco à mesa. De vez em quando, endireitava-se na

poltrona e lia-nos em voz alta algumas passagens que a tinham

entusiasmado. Coisas como «nesta cultura, a riqueza é medida pela

capacidade que cada um tem de consumir e destruir» ou «as

necessidades do mundo natural são mais importantes do que as

necessidades do sistema económico». A ecofilosofia não nos era

estranha. Desde que morávamos com ela, quer eu, quer Max tínhamos

lido diversas obras do género, de Thoreau a Naess, contudo, à medida

que os dias passavam, a Laura parecia mais deslumbrada com as ideias

daquele livro, de um tal Derrick Jensen, e parecia querer transformar os

Estudantes Pelo Planeta num grupo de acção mais radical, chegando a

sugerir actos de sabotagem a fábricas e afins. Inicialmente, achámos que

era uma fase. Depois, tivemos de ameaçar sair do grupo caso insistisse

naqueles disparates. Se estávamos a lutar por um mundo melhor, não

havia espaço para actos de violência. Além disso, nenhum de nós queria
ser condenado por esse tipo de crimes. Eram crimes a sério, lembrei-lhe.

Não era o tipo de coisa que a polícia deixasse passar só porque éramos

jovens cheios de sonhos. Exemplos não faltavam de membros de grupos

mais radicais que tinham sido presos e condenados por terrorismo. Não

era uma brincadeira. A Laura ouvia-nos e assentia, mas, no fundo, eu

desconfiava que, por dentro, estava a chamar-nos idiotas e a conspirar

sozinha.

Foi então que comecei a suspeitar de que ela se encontrava às

escondidas com Paolo. Cheguei a confrontá-la, sobretudo porque senti

que os encontros que tinha com ele não eram apenas para debater formas

de luta. Andava mais sorridente e tinha muito mais cuidado com o que

vestia, sinais suficientes para eu saber que andava a ter sexo. Noutra

altura qualquer, sorrir-lhe-ia e perguntar-lhe-ia quem era o rapaz. Ela

suspiraria, aliviada por poder falar do assunto sem ter de ser ela a puxá-

lo, e, a partir daí, descreveria a pessoa, o acto, tudo, até eu lhe pedir para

se calar ou o Max nos apanhar e revirar os olhos atirando um «não me

digam que estão outra vez a falar de sexo». A Laura nunca me escondeu

os seus casos, mesmo os mais fortuitos. Entre nós não havia segredos.

Pensava eu.

Se a minha suspeita em relação a Paolo tivesse acontecido mais cedo,

talvez tivesse comentado com o Max. Ou talvez não… Na altura, o Max

estava preparado para ouvir falar dos casos fugazes da Laura, e, por

vezes, até intervinha na conversa, partilhando a sua visão masculina

sobre o assunto, mas ficaria de coração partido se percebesse que o caso

com o italiano era sério a ponto de ela ter vergonha de nos contar. De

qualquer forma, como já referi e repeti até à exaustão nos sucessivos

interrogatórios a que fui submetida, a Laura negou tudo quando a

confrontei. Garantiu-me que vira Paolo apenas uma vez depois daquele
dia no anfiteatro. Que fora com ele à tal reunião de um outro grupo mais

radical, mas que não gostara da vibe (palavras dela) e nunca mais

voltara. Confessou que ele ainda insistira duas vezes para se voltarem a

encontrar, mas que ela nunca aceitara e ele acabara por desistir. Eu, feita

parva, acreditei. E continuei a acreditar, ou a querer acreditar, durante

muito tempo, mesmo quando a via a sorrir para o telemóvel, mesmo

quando lhe perguntava onde tinha estado e ela corava da cabeça aos pés.

Queria tanto ter-lhe feito mais perguntas. Queria tanto saber onde era

o ponto de encontro do grupo de Paolo, ou até mesmo ter ido lá com ela.

Tivesse eu percebido que ela se estava a apaixonar por ele, mas

principalmente pelas ideias dele, em vez de achar que estava apenas

fascinada por namoriscar um homem muito mais velho. Tivesse eu

levado a sério as coisas que ela me dizia e que agora, à luz do que

estamos a viver, parecem tão, mas tão óbvias. Paolo lançou a semente

que a Laura já estava pronta para plantar. Aliás, estava desejosa de que

alguém a desafiasse para ir mais longe na luta, coisa que nem eu nem o

Max estávamos dispostos a fazer. Será que, se tivesse reparado em tudo

isto na altura, teria conseguido demovê-la? Será que poderia ter evitado

que chegássemos até aqui? Provavelmente não. Mas então, porque é que

me sinto esmagada por esta culpa? Porque temo que descubram que eu

sou a Billie e me queiram castigar por não ter impedido a Laura a

tempo? Bastava uma denúncia anónima aos serviços secretos. Bastava

ter estado mais atenta. Sem a Laura não haveria Brigadas Verdes. Laura

e a sua presença, Laura e a sua vontade, Laura e o seu dinheiro infinito.

O Paolo sabia muito bem o que estava a fazer quando a foi recrutar.
que fui eu fazer? É a pergunta que nunca me abandona, sobretudo

O agora que ouço os gritos dos prisioneiros constantemente

torturados. Olho por olho, dente por dente, o lema do início deste nosso

movimento, que o Paolo teima em não abandonar. «Qual é a

necessidade?», perguntei-lhe vezes sem conta. Não bastará a privação

da liberdade, a comida escassa, as celas sujas? Não chegam todas as

mortes que carregamos nos ombros desde os dias da Revolução? Ele

acha que não. Que todos os prisioneiros têm de ser castigados,

quebrados a ponto de não se atreverem sequer a pensar em incumprir

qualquer regra. «Porque não matá-los de uma vez, então? Acabar com o

sofrimento e com a possibilidade de um dia revelarem o que passa

dentro destas paredes?» insistia eu. E ele sorria e dizia que não me

preocupasse, que isto era apenas uma fase até o nosso trabalho estar

feito. Um mal temporário, uma insignificância no panorama geral das

coisas. E eu engolia as minhas dúvidas, porque sonhava com esse bem

maior: salvar a humanidade de si própria e construir um novo

paradigma sustentável. Ainda sonho.

Não me lembro bem quando despertou a minha consciência

ambiental. Talvez tenha sido com a Irmã Vera, a única professora que

nos dava colo e parecia compreender que andávamos sempre com o

coração apertado de saudades, contando os dias para voltar a casa. A


única que não me mandava engolir as lágrimas naqueles primeiros

tempos de regresso ao colégio, após a morte da minha mãe, e que me

deixava falar com o fantasma dela, o qual, dizia eu, vivia escondido

dentro do seu retrato. Guardou-me debaixo da sua asa e arranjava

sempre desculpas para me ter ao seu lado na estufa e no jardim. Foi ela

que me ensinou a importância dos solos no equilíbrio dos ecossistemas,

a riqueza inestimável que existe na compostagem e que nada se perde,

tudo se transforma. «É na terra que está a salvação.» A Irmã Vera, que

me ensinou que não era preciso deixar de comer para não matar

animais. Bastava seguir uma dieta vegana. E eu, nas férias, voltava

para casa cheia de ideias, obrigando os empregados a separarem o lixo

e a usarem vinagre e bicarbonato em vez dos detergentes habituais;

fazendo pasta de papel com os jornais que o meu pai já tinha lido;

plantando flores nas varandas do enorme apartamento, para que

servissem de alimento às abelhas. Talvez por isso não tenha descansado

até encontrar a chave do portão da Casa do Lago. Gostava de me

demorar por lá, não apenas para não perder as ténues memórias que

ainda tinha da minha mãe, mas para estar completamente imersa na

natureza, rodeada de verde, de seiva, de terra.

Só que, à medida que fui crescendo e dando conta do que estava a

acontecer ao planeta, adoeci. Sentia cada crime ambiental relatado nas

notícias como se me fosse infligido. Ardia em febre ao ver imagens de

incêndios florestais, tinha falta de ar ao ver ilhas de plástico nos

oceanos, morria de sede só de ouvir falar das secas severas. Tinha

pesadelos frequentes e estava a entrar num estado de depressão. Para

quê estudar, se vamos todos morrer? Para quê fazer planos ou projectar

o futuro, interrogava-me. Durante este período, se as notas desciam, o

meu pai punha-me de castigo, ignorando que não sair do quarto era
tudo o que eu mais queria. Se se mantinham boas, enchia-me o quarto

com peluches enormes e roupas caras, coisas inertes e inúteis, que

jamais atenuariam a minha angústia e o meu vazio.

Noutras alturas, entrava em estados de raiva incontrolável, atirando

objectos contra a televisão, desfazendo o jornal do meu pai em

pedacinhos, insultando os vizinhos que não separavam o lixo. Foi então

que ele, temendo que eu tivesse herdado da minha mãe a capacidade de

autodestruição, me obrigou a ir a uma psicóloga, a qual me

diagnosticou ecoansiedade e me ensinou a procurar os pequenos gestos

que podiam baixar o meu impacto ambiental e a descobrir as pequenas

histórias de pessoas que criavam soluções para o planeta. Focar-me nas

soluções, não nos problemas. Resultou. Aprendi a controlar a raiva e

comecei a acreditar que também eu poderia, um dia, ser uma dessas

pessoas boas que fica para a História como inspiração para os outros.

Comecei a fazer voluntariado, doei mesadas a empresas de novas

tecnologias, dei inúmeras palestras na minha escola, no advento

daquilo que seria os Estudantes Pelo Planeta. E comecei a recusar

embarcar no jacto do meu pai, preferindo passar as férias fechada entre

quatro paredes. Foram deliciosos, esses breves anos de inocência e

idealismo.

Até que o Paolo apareceu e reabriu todas as minhas antigas feridas.

Foi fácil, visto que elas mal tinham sarado. Inundou-me com dados e

projecções assustadoras. Ciência climática inquestionável. Fez-me

sentir patética por acreditar que poderia mudar alguma coisa com as

minhas marchas pelo clima e acções de sensibilização. Fez-me sentir

uma fraude. «A única opção é acabar com a economia industrial. A

única salvação é derrubar o sistema.» E aqueles olhos azuis cheios de

vida, e de entusiasmo, e de certezas. Aqueles olhos azuis, onde me


perdia durante horas e onde só havia coisas bonitas e sonhos de um

mundo mais justo, onde cada um só tem aquilo de que precisa e as

comunidades são auto-suficientes. Aqueles olhos azuis que agora são

gelo inquebrável onde eu já não consigo penetrar.

Quando se terá dado essa transformação? O mar não se transforma

em gelo de um dia para o outro. Onde estive durante a sua

metamorfose? Será que fui eu que a provoquei, ao embarcar nesta

aventura? Ao aceitar ceifar vidas de forma violenta, mesmo que fossem

as vidas de criminosos ambientais? Provavelmente. Daí esta culpa que

não me larga e que se veste de um recorrente pesadelo, que me faz

acordar encharcada em suor. Frank e Erik a levarem o dono da fábrica

para a margem do rio. Eu a prender as caneleiras nas pernas dele e a

apontar-lhe a arma à cabeça. Ele a suplicar pela vida, até se voltar e

revelar o rosto: às vezes é o da Billie, outras vezes é o do Max, outras

ainda é o meu. Tento acordar, mas nunca consigo, e tenho de reviver o

momento em que a espuma os engole, me engole, nos engole.

Branco-sujo.

Branco-morte.
noite regressou finalmente e, com ela, o silêncio, meu lugar

A preferido. Se bem que hoje o dia de trabalho até tenha sido

bastante calmo. Tive quatro clientes no total. Às sete em ponto, todo o

comércio tem de fechar, e às dez da noite inicia-se o recolher

obrigatório. Entre a meia-noite e as sete da manhã é mesmo proibido

usar electricidade, excepto em hospitais e outros serviços essenciais ou

de emergência. Todos os equipamentos electrónicos têm de estar

desligados, do carregador do telemóvel à televisão, com excepção dos

frigoríficos, que podem continuar a trabalhar. Toda a rede eléctrica foi

dotada de um software que permite detectar qualquer uso abusivo, e o

preço de tentar contorná-lo é demasiado elevado. Assim, voltámos ao

uso de velas e lamparinas, o que dá às ruas pouco iluminadas um

ambiente medieval.

A única coisa boa desta medida, além do silêncio que tanto aprecio, é

permitir ver as estrelas, mesmo a partir do centro da cidade. De quando

em vez, o céu é recortado com as luzes dos holofotes de vigilância ou

dos faróis de um carro-patrulha. Sem ruídos de motores, de máquinas,

dos estridentes programas de televisão, ouvem-se os animais nocturnos:

as corujas, os morcegos, os grilos, os sapos, os gatos e outros pequenos

mamíferos que vão circulando livres pelas ruas quase desertas. Em

algumas cidades e vilas, dizem que já se avistam raposas, cavalos


selvagens e até lobos, seduzidos pela calma e a ausência de predadores.

Costumo adormecer a identificar cada um deles, como aprendi a fazer na

quinta da Salete quando as insónias me visitavam, algo que, ao início,

era quase sempre. Assim que fechava os olhos, vinham-me à memória as

bofetadas, os pontapés, o sabor metálico do sangue na boca, os gritos

vindos de outras celas, o medo que sentia sempre que ouvia os passos

dos guardas a aproximar-se, sem saber se me iam levar outra vez para

alguma sala de interrogatório ou se vinham apenas deixar a única

refeição a que tinha direito. De vez em quando, parecia-me que havia

helicópteros a passarem mesmo por cima do edifício, e se estivesse

muito atenta, pese embora a grossura das paredes, conseguia ouvir,

muito ao longe, explosões. Foi assim durante vários dias e várias noites,

até que tudo ficou em silêncio.

Estava a dormir e acordei sobressaltada com a ausência de ruído.

Pensei que tinha enlouquecido, perdido a audição, qualquer coisa que

justificasse aquele silêncio atroz. Abri os olhos, mas tudo continuava

escuro, como se estes permanecessem fechados. Entrei em pânico.

Pestanejei várias vezes. Pensei que estava a sofrer as sequelas dos

espancamentos. Bati as palmas duas vezes e percebi que surda não

estava. Depois, gritei e ouvi gritos de outras celas também. Levantei-me

com as pernas a tremer e encostei-me à porta, que se abriu como se

nunca tivesse estado trancada. O sistema era eléctrico e, claramente,

tinha havido um corte geral de energia. No corredor, a escuridão

circundava os vários presos, que, como eu, tinham saído das celas.

Andavam para trás e para a frente, sem saberem se avançavam em busca

de uma saída ou se deveriam permanecer por ali. Podia ser uma cilada.

Finalmente, alguém teve a coragem de abrir a porta de saída da nossa ala

e todos seguimos a luz que nos levou ao átrio central. Deparámos com
uma prisão sem guardas, sem sistema de vigilância, sem ninguém para

além de nós, os presos, homens e mulheres, jovens e velhos, todos

misturados.

Algumas pessoas, surpreendidas pela inesperada situação, começaram

a gritar e a cantar de alegria; outras pegaram em cadeiras e vassouras e

começaram a destruir tudo à sua volta; outras, ainda, dirigiram-se à

cozinha, onde saquearam todos os alimentos que conseguiram, como

primatas esfomeados, os olhos brilhantes de raiva, as mãos como garras

a segurar o seu quinhão. Um homem encontrou uma arma e começou a

disparar para o tecto. Queria instaurar a ordem, garantindo que todos

ficariam com alguma coisa para sossegar os estômagos há muito vazios,

mas depressa foi atirado ao chão por outros homens que precisavam de

libertar as humilhações a que tinham sido sujeitos durante todo o tempo

em que estiveram encarcerados, talvez semanas, talvez anos. Foi

espancado sem piedade, até o seu rosto se transformar numa papa. Os

outros ficaram com a comida.

Nesta altura, as mulheres começaram a sentir-se demasiado expostas

aos instintos primários dos machos e esconderam- -se onde puderam.

Senti uma mão puxar-me para dentro de um armário, firme, mas

delicada, um «shhh» murmurado ao meu ouvido, um peito feminino

recebendo o meu rosto. Abracei-a como se a conhecesse e ali ficámos

não sei quanto tempo, acho que muito, numa intimidade estranha, até os

ânimos se acalmarem e sentirmos que era seguro sair. Ela correu para o

exterior, eu não fui capaz. Estava descalça e demasiado fraca. Deixei-me

ficar para trás, tentando ignorar os corpos e os gemidos espalhados pelo

chão.

Horas depois, a prisão estava quase vazia. Os prisioneiros avançavam

pela estrada sem rumo certo, como formigas desnorteadas quando se


inunda um formigueiro, mas eu continuava sem ser capaz de me

aventurar. Deambulei cautelosamente pela prisão, com o intuito de

encontrar objectos que me pudessem ser úteis numa caminhada, sabia lá

eu para onde. Consegui encontrar os vestiários dos guardas, onde

descobri umas botas, um casaco e um bastão. Numa mesa estava um

copo de café com uma fina película de gordura formada à superfície e

meio queque já ressequido, provavelmente do dia anterior, o que me

levou a pensar que os guardas também tinham saído a correr. Enfiei tudo

na boca com avidez. As migalhas do queque a desfazerem-se na minha

saliva, o café gelado a empurrar o bolo pela garganta. Já não me

lembrava a que sabia um café. Quando teria sido a última vez que bebera

um? Lavei a cara no pequeno lavatório e, quando percebi que havia

sabonete líquido no doseador, quase que tomei um banho ali mesmo. O

sabonete cheirava a mel e flores, tão diferente do sabão azul e branco

que tínhamos nas nossas celas. Meti a cabeça debaixo da torneira para

sentir a água fria na nuca a ensopar-me o cabelo, e depois bebi toda a

água que consegui, até ficar com a barriga dilatada. Tinha tanta sede

que, se pudesse e o meu estômago aguentasse, teria ficado horas a beber.

Mas não podia perder mais tempo. Não me sentia segura naquele lugar.

Atrevi-me, então, a atravessar o portão principal rumo à liberdade.

A prisão ficava num monte árido e deserto a vários quilómetros de

qualquer povoação. Olhei em volta à procura de um ponto de referência.

Não sabia onde estava nem para onde me dirigir. Deveria voltar para a

cidade à procura do Max? Ou seria melhor procurar a casa dos meus

pais? E para que lado ficava a cidade? Não fazia ideia do que pudesse ter

acontecido nem por que razão não se avistavam guardas, polícia ou

viaturas de qualquer espécie. Parecia um cenário apocalíptico: uma


prisão vazia, o sol demasiado quente, caminhos de terra sem vegetação,

prisioneiros errantes a descerem cada encosta como zombies acabados

de sair debaixo da terra. Fui caminhando devagar, ora ultrapassando, ora

sendo ultrapassada pelos outros. Ninguém falava com ninguém. Ao fim

de um bom bocado, já perto daquilo que parecia uma estrada principal,

perguntei a uma mulher que ia à minha frente se sabia para onde

caminhávamos, mas ela disse que não. Queria apenas chegar àquela

estrada, que certamente iria dar a algum lado, e eu continuei a caminhar

atrás dela. Horas depois, engolindo o pó do caminho, concentrando toda

a minha vontade em continuar a mover as pernas, vislumbrei alguns

telhados e aquilo que parecia ser uma pequena aldeia abandonada. À

medida que nos aproximámos, porém, percebi que estava cheia de gente,

aldeãos assustados que se esconderam dentro das suas casas assim que

viram hordas de prisioneiros a descer a encosta. Conseguia sentir os

seus olhares atrás das cortinas, o pulsar dos seus corações, agitados

como o fumo ténue que saía de algumas chaminés.

A rua principal tinha um café, uma farmácia e um banco, todos com

as grades corridas até ao chão. Mais adiante havia uma igreja cujas

pesadas portas estavam fechadas. Numa rua à direita, vimos um letreiro

a sobressair de uma fachada, no qual se lia «Talho». A montra, vista de

onde estávamos, aparentava não ter grade, pelo que corremos para lá. A

fome cega e a fraqueza atordoante fizeram-me esquecer que em tempos

tinha sido vegetariana e, a cada passo que dava, mais a saliva crescia

dentro da minha boca. Estava capaz de comer qualquer coisa, fosse o

que fosse, mesmo um pedaço de carne cru e ensanguentado. Até que

chegámos à porta. A montra do talho estava bem aberta, sim, mas sem o

vidro, que jazia estilhaçado no chão. Pendurado num gancho onde

outrora estiveram pedaços de animais, o corpo do talhante a sangrar.


Estava coberto de moscas. O cheiro era nauseabundo, a putrefacção,

evidente, acentuada pelo calor intenso. Senti a cabeça a andar à roda e

não contive o vómito. «A carne mata», lia-se num pequeno cartaz

pendurado no avental da vítima. O símbolo das Brigadas Verdes como

um selo no final da mensagem.

Um dos prisioneiros que ia mais adiante começou, então, a bater a

todas as portas. Ninguém abriu. Depois, desesperado, pôs-se a gritar no

meio da rua que tinha fome e que não ia sair dali enquanto não lhe

dessem alguma coisa para comer. Tornou-se violento, a atirar pedras às

janelas, a dar pontapés nas portas cerradas com o intuito de as arrombar.

Até que uma bala lhe atravessou o peito. Não percebi de onde saiu,

apenas me atirei para o chão com o estrondo seco do tiro, que ficou a

ecoar pela rua. Instintivamente, comecei a rastejar até à estrada de onde

tínhamos vindo, depois a gatinhar, os braços a tremerem não sei se de

cansaço se de medo. Mais tiros foram disparados para o ar em jeito de

aviso. Levantei-me com as últimas réstias de força e corri sem olhar para

trás, agora sozinha, os joelhos em sangue. Só parei quando me vi de

volta à estrada principal. Os pulmões a arder, a boca de areia e a certeza

de que ninguém nos iria ajudar.

Como disse antes, não tenho ideia de quanto tempo fiquei na prisão,

nem o que aconteceu nesses dias ou semanas em que estive isolada, mas

o que encontrei em cada aldeia por onde passei foi devastação. Pessoas

desconfiadas, fechadas em casa, o silêncio apenas cortado pelos sons da

natureza, como se os seres humanos tivessem todos perdido o dom de

falar. Não se via um carro, não se ouvia uma máquina, apenas os meus

passos a esmagar a estrada. Em algumas janelas estavam hasteadas

bandeiras com o símbolo das Brigadas Verdes, o que me levou a

acreditar que, pelo menos por ali, o movimento vencera. Pelo menos por
ali, as pessoas tinham preferido apoiar uma causa que defendia o fim da

civilização industrial como a conhecemos. Seria isso bom ou mau? E

onde estaria a Laura no meio daquilo tudo? Será que andava à minha

procura para me levar com ela e me dizer «vês como eu tinha razão»?

Também no café da última aldeia por onde passei antes de chegar à

quinta da Salete, havia uma dessas bandeiras. Atrás do balcão estava um

homem enorme, com um fato-macaco verde e uma caçadeira na mão.

Baixou-a assim que me viu, o que me leva a pensar que o meu estado era

tudo menos ameaçador.

— Por favor, só quero um copo de água e alguma coisa para comer —

implorei, quase desfalecendo contra a ombreira da porta.

— Claro, entra — disse o homem, enquanto enchia um copo com

água, que logo colocou na mesa junto à entrada. — Senta-te aí, olha só o

teu estado… És uma daquelas da prisão, hein? Qual foi o teu crime?

— Nenhum, apanharam-me na rua no meio da confusão… Eu estava

na rua pelas Brigadas — menti, lembrando-me da bandeira lá fora.

— Pronto, já passou — assegurou ele, sentando-se ao meu lado e

colocando uma madeixa do meu cabelo atrás da orelha. — Tenho sopa e

um prato quente. Tenho também um sítio ali atrás onde podes limpar

essas feridas.

— A sério? Oh… muito obrigada, mas não tenho como lhe pagar.

— Ora, havemos de arranjar maneira, não é? — disse ele, segurando-

me o queixo para me ver o rosto. Depois girou à minha volta como se

me estivesse a inspeccionar. Os olhos cor de chumbo, imperscrutáveis,

os dedos calejados e quentes. — Anda, há ali um chuveiro e umas

roupas lavadas. Eu vou aquecer a comida.

Senti um misto de gratidão e medo. Não conseguia perceber se me

olhava com pena, nojo ou desejo, contudo, tinha tanta fome e queria
tanto um banho que fiz o que me disse. A água tinha pouca pressão, mas

era mais do que tinha tido enquanto estivera presa, sujeita a um mero

lavatório. Havia um sabonete ressequido, mas que ainda cheirava a

qualquer coisa parecido com pó de talco, e água, oh, a água, que eu

sorvia desesperadamente à medida que me escorria pela cara. Quando a

sede se dissipou, saí do banho e limpei-me numa toalha puída. A roupa

que o homem deixou em cima de um banco era um fato-macaco verde

igual ao dele, que me estava um pouco grande, mas que era melhor do

que a roupa imunda e rasgada com que tinha saído da prisão. Havia um

pequeno espelho baço onde olhei para o meu reflexo, mas não me

reconheci. A minha cara era só ossos, a pele estava queimada pela

caminhada debaixo de sol, o cabelo mais comprido e desgrenhado. Virei

as costas e voltei para o café, onde vi a comida na mesa e outros dois

clientes na sala, também eles vestidos como nós. Definitivamente eram

todos apoiantes das Brigadas. Sentei-me sem olhar para eles e comecei a

sorver uma sopa cremosa com pedaços de hortaliça demasiado cozidos,

mas que me estavam a saber pela vida. Quando ia pegar nos talheres

para me lançar ao prato principal, o homem sentou-se ao meu lado e

segurou-me na mão.

— Já sabes como me vais pagar? — perguntou, colocando a minha

mão na sua coxa, depois na virilha, depois no pénis.

Comecei a tremer. Olhei em volta para os outros homens na esperança

de que me pudessem ajudar, mas notei que estavam a assistir à cena com

um sorriso. Devia ter-me levantado naquele instante. Devia ter

empunhado o bastão que ainda trazia comigo e fugido dali. Mas

paralisei. Não tinha forças. E tinha tanta fome… Não podia prever qual

seria o próximo lugar que me receberia com um prato de sopa e de

comida. Além disso, o que poderia eu fazer perante três homens feitos,
mesmo com um bastão em punho? Resistir só iria piorar a minha

situação. De repente, senti que o meu espírito abandonava o meu corpo.

Já não era eu quem ali estava. Era um filme que se desenrolava à minha

frente e sobre o qual eu não tinha controlo. Assenti, por isso, com a

cabeça e dei a primeira garfada na comida que estava à minha frente.

Uma espécie de feijoada. Só que, a cada segundo o meu estômago

embrulhava-se mais e a comida não passava na garganta. Perguntei se

podia guardar o resto para levar.

— Claro, até te ponho isso numa caixinha de papel — respondeu num

tom trocista, pegando no prato com uma mão e em mim com a outra. —

Ó Jorge, toma aí conta do estaminé que eu já venho.

Levou-me para a cozinha, debruçou-me sobre a bancada e enfiou-se

em mim com brusquidão. Não sei dizer quanto tempo aquilo durou.

Fixei os olhos no alumínio sujo de restos de comida antigos e não

ofereci qualquer resistência. Não me lembro de sentir dor, nem

vergonha, nem nojo. Mas senti raiva. Muita raiva da Laura. A culpa de

tudo o que me tinha acontecido e de tudo o que me estava a acontecer

naquele momento era dela. Só dela.

Nunca mais a quero ver.


uando a Laura desapareceu subitamente, na noite da nossa

Q grandiosa manifestação, passei os meses seguintes obcecada por

encontrá-la. A minha melhor amiga não podia, simplesmente, ter-se

evaporado. Não conseguia aceitá-lo. Vasculhei todos os seus pertences,

refiz todos os seus passos, liguei centenas de vezes para o telemóvel,

cujo número, segundo a voz da operadora, deixara de estar atribuído. Fui

à polícia tantas vezes que os agentes já me tratavam por Billie, e liguei

outras tantas para o escritório do pai dela, até este acabar por me

atender, se bem que não se tenha mostrado minimamente preocupado

com o desaparecimento da filha. «É maior e vacinada e ninguém me

pediu um resgate; se desapareceu é porque não quer ser encontrada»,

disse-me na única vez em que falei com ele. Só eu continuava a sonhar

com ela, noite após noite, imaginando que chegava a casa e a encontrava

sorrindo no sofá, ou que esbarrava com ela no metro ou numa outra

cidade, reconhecendo-a mesmo se tivesse mudado completamente de

visual. Andava pelas ruas sempre atenta a cada rosto com que me

cruzava. Abria as gavetas para sentir o seu cheiro e deitava-me na cama

dela a imaginar todo o tipo de cenários e justificações para o seu

silêncio. Em todos eles, eu iria, obviamente, perdoá-la e compreender os

seus motivos. Ela teria um óptimo motivo e, então, prometeria nunca

mais voltar a pregar-me um susto destes e tudo voltaria a ser como antes.
Talvez por isso, quando, um ano depois do seu desaparecimento, as

televisões começaram a falar de uns homicídios macabros, fiz de tudo

para ignorar o meu instinto. Era algo demasiado dramático e assustador,

e eu estava cheia de trabalhos para a faculdade. Queria lá saber do dono

de uma fábrica encontrado a flutuar nas águas que tinha contaminado;

queria lá saber de uns madeireiros que dirigiam uma rede de tráfico de

madeiras exóticas e que foram esquartejados e pendurados nos troncos

das árvores do seu estaleiro; ou do director de uma petrolífera que foi

afogado num bidão de gasóleo… Ouvia essas conversas no café, na

paragem de autocarro, na fila da caixa do supermercado, mas não estava

interessada em saber os detalhes sórdidos das mortes de uns empresários

sem escrúpulos. No entanto, era inútil tentar fugir. Os meios de

comunicação social não deixavam aquelas histórias morrer nem por um

minuto, e multiplicavam-se os debates e entrevistas com especialistas,

directos infindáveis dos locais do crime, das casas das vítimas e até dos

seus funerais. E depois havia aquele símbolo, um B e um V

entrelaçados, único ponto comum entre todos os crimes, a ser

escrutinado ao pormenor por linguistas, semiologistas e ex-membros dos

serviços de informação. Os comentários das pessoas às notícias eram tão

surpreendentes quanto os factos relatados. É bem feita. Cá se fazem, cá

se pagam. Finalmente, justiça pelas próprias mãos. Abaixo os ricos e

poderosos. E coisas que tais. Nem sei o que me perturbava mais: os

factos ou aqueles que os aplaudiam e que eram cada vez mais.

No dia do quarto ataque, tinha uma apresentação e estava a preparar o

meu ritual de combate aos nervos: acordar às sete; tomar um duche

rápido com água morna para despertar; vestir uns jeans e a sweatshirt do

Chewbacca, que usei no exame de admissão à Universidade e que passei

a usar em todos os momentos decisivos da minha carreira académica, até


na época de exames do semestre de Verão; enfiar nos dedos os meus três

anéis de prata, um deles herdado da avó (tinham de ser aqueles anéis,

sempre enfiados nos mesmos três dedos, pela mesma ordem); retirar da

gaveta da mesa-de-cabeceira o estojo de veludo onde guardava a caneta

de tinta permanente que o meu pai me deu quando fiz dezoito anos e que

só usava naqueles dias, porque tinha medo de a perder; colocar a folha

onde escrevi os pontos-chave da apresentação no bolso de trás das calças

para não ter de estar sempre a olhar para os slides; finalmente, sair de

casa com o pé direito.

As minhas aulas eram sempre de manhã, e eu, normalmente, era uma

das primeiras a chegar ao café da faculdade, quando ainda estava pouco

mais que vazio. A televisão, presa na parede junto ao tecto, costumava

estar ligada num canal noticioso, que era a maneira de o reitor nos dizer

que devíamos ser pessoas informadas, e não basear todo o nosso

conhecimento do mundo no que víamos nos feeds das redes sociais. No

entanto, naquele dia, o local estava inexplicavelmente composto. Olhei

para o relógio para me certificar de que não me tinha atrasado e entrei,

intrigada pelo movimento tão pouco habitual. Lá dentro, alunos,

professores e funcionários amontoavam-se em frente da televisão e havia

um certo constrangimento no ar. Será que tinha caído um avião ou coisa

assim? Aproximei-me o mais possível, mas não consegui ver quase nada

do ecrã. Tentei, por isso, ouvir o que a jornalista dizia.

«A identidade da vítima deste acidente já foi revelada pelas

autoridades. Trata-se de uma juíza, de sessenta e dois anos, que,

segundo uma testemunha, tinha acabado de estacionar a viatura nesta

rua residencial, quando um camião porta-contentor deixou cair sobre ela

cerca de oito toneladas de entulho. Domitília Soares era conhecida por

absolver todos os processos relativos a crimes ambientais. No último


caso, relativo a um despejo de entulho ilegal que continha colas e

amianto, de uma multa que podia chegar aos duzentos mil euros, a juíza

acabou por reduzir para seis mil euros, substituindo depois o pagamento

da mesma por uma mera admoestação. Como dissemos anteriormente,

os bombeiros só conseguiram retirar o corpo da vítima esta manhã, o

camião está a ser analisado e o condutor ainda não foi identificado.

Embora ainda não haja confirmação por parte das autoridades da relação

entre este e os outros casos que temos noticiado, sabemos que o camião

tem pintado numa das laterais o mesmo símbolo encontrado nos outros

incidentes.»

Incidentes? Até os jornalistas pareciam querer ignorar que se tratava

de homicídios. Não era nada disto que eu precisava naquela manhã.

Tanto controlo emocional, tantos rituais infalíveis para nada. Os ataques

não tinham sido reivindicados oficialmente. Só havia aquele símbolo, B

e V, que aparentemente não pertencia a nenhum grupo ou seita

conhecida. Ninguém sabia muito bem o que esperar nem como saber se

estaria a salvo. E se houvesse também um ataque à Universidade? Todas

as possibilidades estavam em aberto e todas elas eram assustadoras.

Escusado será dizer que a apresentação me correu muito mal e saí da

sala com a certeza de que nem a camisola do Chewbacca me impediria

de ter uma péssima nota. Baldei-me às aulas seguintes e fui para casa,

desanimada e a maldizer as horríveis notícias que provocaram o meu

espalhanço académico. Estranhei ver tanta gente nas ruas, mas estava

mais preocupada com o meu umbigo e em ter pena de mim própria.

A meio do caminho, o telemóvel começou a tocar. Primeiro, senti a

vibração, depois a melodia monótona e insistente, que tentei ignorar. Por

norma não ligava nenhuma ao telemóvel, muito menos quando estava em

cima de uma bicicleta no meio do trânsito, que àquela hora estava muito
mais caótico do que o habitual. Em contraste com a maioria das pessoas

da minha geração, não estava dependente do aparelho e muitas vezes até

me esquecia de pô-lo a carregar, acabando por ficar todo o dia esquecido

em casa. Porém, quem quer que fosse que estava a tentar ligar, não

desistia, a ponto de me fazer parar e atender.

— Billie? Onde estás? — perguntou uma voz ofegante.

— Max? Está tudo bem?

— Onde estás? — insistiu.

— A caminho de casa, porquê?

— Não vás para casa, Billie! Faças o que fizeres, não vás para casa!

— Mas porquê, Max? Estás a assustar-me. O que se passa? —

perguntei com apreensão.

— Ouve-me bem, Billie. Eles estão lá à nossa espera. Eles vão

apanhar-nos.

— Eles quem?

— A polícia, foda-se!

— Mas porquê? O que é que aconteceu? Meteste-te em algum

sarilho?

— Não, Billie. Ela é que nos meteu num sarilho. Agora a polícia

pensa que também somos terroristas.

— De que é que estás a falar?

— Não viste as notícias? O comunicado à nação?

— Não! Hoje foi o dia da minha apresentação, lembras-te?

— Ela faz parte dos terroristas que andam a cometer aqueles

assassinatos.

— Ela quem?

— A Laura, porra!

— A Laura?!
— Eu depois explico-te. Vem ter comigo à estação de comboios. Já

comprei os bilhetes e vamos desaparecer hoje, agora, já! Percebeste?

— Mas…

— Billie, tenta passar despercebida e vem ter comigo A-GO-RA! O

comboio parte dentro de meia hora. Corre!

Sem olhar para trás, larguei a bicicleta e comecei a correr em direcção

ao metro. Depois lembrei-me de que podia haver câmaras de vigilância e

que, se estivessem realmente à minha procura como Max dizia, depressa

descobririam para onde me estava a dirigir. Mas de bicicleta não

conseguiria chegar a tempo à estação. Apanhei um táxi e pedi ao taxista

que sintonizasse o rádio nas notícias.

«… identificados pelo menos três dos membros das autoproclamadas

Brigadas Verdes, o grupo que tem levado a cabo assassinatos violentos

de diversos empresários e de uma juíza. Laura Espinosa, Paolo Tomazzo

e Luc Bênot surgiram hoje num vídeo que tomou de assalto as redacções

de todos os canais de televisão e inundou as redes sociais. Os três

membros apresentaram-se de cara destapada e apelam à rebelião dos

cidadãos. Por todo o país, grupos de jovens já responderam ao apelo e

invadem as ruas…»

O meu coração apertou-se quando ouvi o nome dela e, de repente, as

palavras que saíam das colunas deixaram de fazer sentido. Pus as mãos

na cara e olhei pela janela. Pelas ruas, por onde o táxi circulava com

cada vez mais dificuldade, vi lojistas a baixar as grades das suas montras

e pessoas a correr em diferentes direcções. Uns com ar assustado, outros

com ar triunfante. Uns a fecharem-se em casa ou nos carros, outros a

invadirem as ruas, orgulhosos por fazerem parte de toda aquela

convulsão. O táxi parou, mas ainda não estávamos perto da estação de

comboios.
— Vai ter de sair aqui, menina. A estrada está cortada — disse o

taxista.

— Como assim?

— Está cortada, não vê?

Espreitei por entre os dois bancos da frente e vi uma multidão de

pessoas com cartazes em punho, gritando «Guerra pela Terra», «Abaixo

a economia industrial» e outras coisas do género. A polícia de choque

chegava com alarde, numa sucessão de carrinhas com as sirenes ligadas,

tentando a todo o custo fazer uma barreira para isolar os manifestantes

que não paravam de crescer, vindos de todos os lados. Os passos

alinhados dos polícias de choque lembravam o som de uma marcha

militar, e o seu equipamento não deixava dúvidas de que estavam ali

para travar quem ousasse ir mais longe, custasse o que custasse. Paguei

ao taxista e saí a correr em direcção à estação, esforço inútil, já que,

quando lá cheguei, tinha acabado de ser encerrada. As autoridades

tentavam conter os manifestantes, controlando quem entrava e saía da

cidade, e os transportes públicos foram os primeiros a ser travados.

Tentei ligar de volta para o Max, mas a rede já estava saturada e não

consegui fazer a chamada. Será que ele tinha conseguido entrar no

último comboio? Será que tinha partido sem mim? Comecei a chorar

sem saber o que fazer, quando subitamente alguém me agarrou por trás.

Era ele. Deixei-o guiar-me para longe dali.

A primeira coisa que o Max me obrigou a fazer foi livrar-me do

telemóvel. Agora que estávamos juntos não precisávamos de contactar

mais ninguém, e estava fora de questão enviar mensagens ou usar a

Internet. A segunda, foi não parar de correr. Enquanto corria, sem saber

para onde, agarrando-me com desespero à sua mão, reparei num ecrã

publicitário que projectava um grande plano de uma pessoa de cabelo


rapado a falar para a câmara. Nas legendas, lia-se: «Isto não é um

ensaio. Estamos oficialmente em guerra.» Olhei melhor e o meu coração

sobressaltou-se de novo. Era a Laura. Mas não a Laura que se enfiava na

minha cama quando estava frio e me tocava com os pés gelados, mesmo

calçada com dois pares de meias. Manta-me, dizia ela, numa palavra

inventada do nosso vocabulário de amor. Estava serena e confiante,

proferindo cada palavra com calma e determinação. Fiquei hipnotizada,

tentando ler nos seus lábios o que dizia. Até que o Max me deu um

puxão que me trouxe de volta à Terra.

Quando olhei ao meu redor, notei que nos estávamos a dirigir ao

alfarrabista que é hoje a minha casa, o único sítio onde estávamos

autorizados pela Laura a comprar livros. «Há tantos livros impressos no

mundo, para quê cortar mais árvores?», disse ela na primeira vez que

nos levou lá. Entrámos esbaforidos porta adentro. O Sr. Joel olhou-nos

por cima dos óculos e, sem precisar de ouvir nada, como se já estivesse à

nossa espera, abriu-nos o alçapão que se encontrava debaixo da carpete

do escritório. Descemos para uma cave secreta, que tantas vezes usámos

para estudar, quando a biblioteca estava cheia na época de exames, e que

cheirava a madeira e cera de vela. Fora construída numa época em que

ser comunista era crime, e servira para albergar reuniões clandestinas

contra o regime e imprimir panfletos ilegais. Nem nos anos da mais dura

repressão fora descoberto, segundo nos contava o Sr. Joel, por isso, era o

sítio ideal para nos escondermos até conseguirmos sair da cidade ou

mesmo do país. Estava estupefacta com o sangue-frio do Max, focado e

com a capacidade de raciocínio que eu perdera ainda durante o nosso

telefonema.

— OK. Já percebeste o que se passa? — perguntou-me, quando

recuperámos o fôlego.
— Mais ou menos…

— Então, como viste naquele ecrã e nos cartazes espalhados pelas

ruas, a Laura faz parte das tais Brigadas Verdes, ou melhor, é a cara das

Brigadas Verdes, e, ao que parece, entrámos em guerra.

— Guerra com quem?

— Com todos os que não estiverem do lado deles. Civis, governo,

polícia…

— Mas porque é que nós os dois temos de fugir?

— Ei, Billie! Estás parva ou quê? Então nós não moramos na casa que

é dela? Não partilhámos essa mesma casa com ela durante três anos?

Não fizemos parte do Estudantes Pelo Planeta?

— Sim, mas ela desapareceu há um ano, toda a gente sabe disso. A

polícia sabe disso! Fomos participar o seu desaparecimento várias vezes.

— A Laura faz parte de um grupo terrorista que está a tentar espalhar

o caos no país, percebes? Um grupo terrorista que já conseguiu colocar

milhares de pessoas nas ruas a torcer por eles. A polícia, os serviços

secretos, a cena toda, vão espremer qualquer pessoa que alguma vez se

relacionou com qualquer um daqueles três, até terem alguma pista sobre

o paradeiro deles. E nós somos os mais suspeitos.

— Não pode ser! A Laura não é uma assassina!

— Billie, olha para mim e ouve com atenção. A Laura que nós

conhecemos desapareceu no ano passado, no dia da nossa manifestação.

Esta Laura, de cabelo rapado e ar de psicopata, é, sim, uma assassina,

responsável por todos aqueles crimes atrozes que temos visto na

televisão. E nós, se formos apanhados, vamos ser presos e interrogados,

quem sabe torturados, até provarmos que não fazemos parte do grupo

dela, está entendido? Por isso, controla-te, concentra-te e ajuda-me a

descobrir como é que vamos sair disto.


De repente, tudo fez sentido. Todas as vezes em que a Laura via as

notícias com raiva nos olhos, todas as vezes em que se emocionava

durante os discursos, gritando que tínhamos todos de nos juntar, que o

tempo estava a esgotar-se. Ainda assim, custava-me imaginá-la a tirar a

vida a alguém, por muita raiva ou sede de vingança que tivesse dentro de

si. E mais ainda imaginá-la a planear aquelas mortes cruéis. Não podia

ter sido a minha Laura. A Laura doce e divertida, que dava os melhores

abraços do mundo, com a cabeça aninhada no nosso ombro como se

fosse uma criança. De certeza que fora aquele italiano a obrigá-la. Um

homem com idade para ser pai dela, ou quase, e que lhe dava toda a

atenção que o próprio pai nunca lhe dera. Clássico caso freudiano. Ela

apaixonou-se por ele, ele aproveitou-se dela e convenceu-a a embarcar

naquela loucura. Certamente que tentou fugir várias vezes, só que,

entretanto, desenvolveu Síndrome de Estocolmo e agora acredita que ele

é bom. Faz tudo o que ele lhe pede, incluindo matar. Sim, a Laura não

fez nada, limitou-se a apaixonar-se e a esquecer quem era antes de ser

dominada por um estranho. Acontece tantas vezes: alguém começa a

namorar, os amigos sabem que é um erro, que aquela pessoa não presta

ou é tóxica ou manipuladora, mas não dizem nada, não querem estragar

a felicidade (mesmo que ilusória) que o outro está a viver, não querem

chamar a atenção para os sinais de alarme, acreditando que a pessoa vai

chegar lá sozinha. Pouco a pouco, esses amigos afastam-se ou são

afastados, e os escassos momentos juntos tornam-se desconfortáveis,

cheios de coisas por dizer. Lentamente, quem era tão próximo, unha

com carne, torna-se apenas um conhecido.

Não me lembro se disse tudo isto em voz alta ou se o monólogo se

desenrolou na minha cabeça, mas algo em mim acreditava que, apesar

de todas as evidências, a Laura estava inocente.


— Temos de encontrá-la, Max! É isso que temos de fazer!

— Tu estás maluca?

— Não! Temos de encontrá-la e trazê-la à razão. Isto não é coisa da

Laura, não pode ser. Vamos infiltrar-nos nas Brigadas Verdes e vamos

trazê-la para casa.

— E entregá-la à polícia para que seja julgada por homicídio? Ou

escondê-la num buraco onde passará anos e anos até toda a gente se

esquecer desta história e o mundo regressar à normalidade?

— Não sei, isso não interessa. Se calhar, se ela se entregar e entregar

os outros, até tem atenuantes. Pode chegar a um acordo.

— Billie, estás a partir do pressuposto de que ela é uma vítima e quer

ser salva. Quando devias partir do pressuposto de que ela faz parte da

organização, de forma consciente e voluntária.

— Até saber qual dos pressupostos é verdadeiro, não vou desistir dela,

Max.

— Não estás a ajudar, foda-se! Estás tão preocupada em salvar a

Laura, que não estás a pensar em como nos salvar a nós! Ou achas que

vamos ficar a viver nesta cave?

— Já não sei o que pensar… — desabei num pranto.

— Billie, por favor, não chores, olha para mim, nós vamos sair disto,

OK? Esquece a Laura. Faz de conta que recebemos a notícia de que

encontraram o corpo e afinal ela esteve este tempo todo morta. Billie,

olha para mim. A Laura morreu. Agora somos só nós os dois.

O Max tinha razão. Eu estava constantemente a tentar salvar a Laura,

a desculpá-la, a enaltecê-la. A colocar sobre mim a responsabilidade de

protegê-la e de lhe dar o amor e a segurança que ela nunca sentira por

parte da família. Talvez devido ao seu passado triste e disfuncional. Um


passado que nos foi revelando aos bocadinhos e cujas peças soltas

tivemos de juntar.

A mãe suicidara-se quando ela tinha apenas seis anos e o pai nunca

soube lidar com esse facto. Mergulhou ainda mais no trabalho, arranjou

outras mulheres, quatro que me lembre, e deixou a Laura a ser criada

por empregados, mordomos e colégios internos. Tinha uma enorme

dificuldade em lidar com aquela filha que, desde que nascera, se tinha

imposto na totalidade do coração da mulher, empurrando-o para fora

daquilo que deveria ter sido uma família. Ainda para mais, Laura era a

cara chapada da mãe. O Natal de Laura, contou-nos ela quando

Dezembro chegou e lhe perguntámos onde ia passar a pausa lectiva, era

celebrado num hotel de cinco estrelas num qualquer destino tropical, no

meio de adultos que bebiam e riam alto e achavam as crianças

extremamente infantis. Como ficou feliz quando a levei para passar o

Natal com a minha família! Os olhos brilhavam, fascinada por ver que,

afinal, havia famílias nas quais as tradições que apareciam nos filmes e

nos livros se cumpriam: a preparação dos doces, a decoração da mesa, a

família a chegar cheia de casacos e presentes, as velas com aroma a

gengibre, o presépio na sala de estar. O aniversário dela, contou-nos

também, era um dia como qualquer outro, a não ser que calhasse num

fim-de-semana, em que, aí sim, podia almoçar com o pai, que ficava sem

a desculpa de estar a trabalhar. Normalmente iam a um restaurante caro

onde toda a gente o conhecia e onde não podia correr por entre as

mesas. No apartamento onde viviam, nunca havia pessoas da sua idade

com quem brincar, nem histórias lidas na cama, nem conversas à lareira.

Eu estava constantemente a tentar salvar a Laura, é verdade, porque

tinha tido uma infância muito feliz, porque tinha tido o carinho e a

atenção dos meus pais e não conseguia imaginar quanta tristeza pesava
no seu coração. À medida que ela nos foi fazendo estas confissões,

comecei a querer ser mais do que uma amiga. Comecei a querer ser a

família que ela não teve. Nos três anos em que vivemos juntos, eu, ela e

o Max transformámo-nos nisso mesmo, uma pequena família, que

celebrava os aniversários com bolo de chocolate caseiro e chapelinhos

de papel, e que se juntava sempre à mesa à hora de jantar, para contar

como tinha sido o dia. Como eu gostava de cozinhar para ela e para o

Max. E como era bom, nesses momentos, ver pequenos lampejos de

felicidade nos seus olhos, enquanto saltitava como a criança que nunca

pôde ser.

Só que agora estava a cair-me a ficha, ali, naquela cave, com o Max,

aflito, a tentar limpar as minhas lágrimas. A Laura era culpada. Era

mesmo. E eu estava a ser invadida por um profundo pesar. Pesar,

desilusão, não sei explicar. Acho que, acima de tudo, me senti usada.

Como se os três anos que passámos juntos tivessem sido um engodo.

Lutando contra a minha própria incredulidade, começava a achar que a

Laura nos tinha acolhido na sua casa apenas para a ajudarmos a criar os

Estudantes Pelo Planeta e descartar-nos quando surgissem voos mais

altos. Tudo premeditado. A Laura, tão sensível e luminosa, que chorava

comigo quando víamos filmes românticos, tinha-se juntado a um grupo

de ecoterroristas, o qual não só matava pessoas, como o fazia de forma

obscena. Foi então que percebi que dificilmente alguma coisa voltaria a

ser igual.
izem que as pessoas que se sentem em perigo iminente entram em

D modo de sobrevivência e começam a agir. Eu, pelo contrário,

estava apática e não conseguia parar de chorar. Todas as hipóteses que o

Max me apresentou naquela cave fria pareciam impossíveis. Fugir a

meio da noite, misturar-nos na multidão, entrar num camião de

transporte que nos levasse para longe dali, passar a fronteira a salto,

como se fazia antigamente. Ou ficar a viver na cave por tempo

indeterminado, contando com a ajuda do Sr. Joel. Esta última hipótese,

porém, foi descartada ao fim de três dias. O Sr. Joel mostrou que não

estava disposto a ser uma Miep Gies e que nós nunca seríamos uma

espécie de Anne Frank. Desceu as escadas íngremes e relatou-nos que

nas ruas se vivia uma autêntica guerra civil. A maioria das pessoas

estava do lado das Brigadas Verdes, e a polícia via-se obrigada ao uso da

força para as afastar. Jactos de água, gás lacrimogéneo, balas de

borracha e, nas últimas horas, balas de verdade. Quanto mais a polícia

investia, mais os manifestantes se multiplicavam, ignorando qualquer

ordem que não viesse das Brigadas Verdes. Muitos apresentavam-se de

fato-macaco verde e cabelo rapado, como os líderes que continuavam a

interromper as emissões televisivas com apelos à rebelião, sem que

ninguém conseguisse travá-los. Aliás, eram tantos os manifestantes

vestidos como as Brigadas que, se os verdadeiros membros quisessem,


podiam perfeitamente misturar-se com eles na rua e passarem

despercebidos. Pensámos, então, que seria a altura perfeita para fugir. Só

precisávamos de um macacão verde e de rapar o cabelo como milhares

de pessoas já estavam a fazer. O Sr. Joel também achou boa ideia, ou

então só queria que saíssemos dali rapidamente e que não lhe

criássemos problemas. Ia fechar a loja e mudar-se para a casa de campo

até as coisas serenarem. Provavelmente também achava que éramos

cúmplices das Brigadas Verdes. «Apoio todo o tipo de luta, menos a luta

armada», disse-nos enquanto voltava a tapar o alçapão com o tapete

desbotado.

Saímos a correr da loja e misturámo-nos na multidão, que era agora

uma massa uniforme a ocupar todas as ruas. Ao contrário do que vi no

dia em que nos escondemos ali, havia bandeiras das Brigadas em quase

todas as janelas, um sinal de que o povo se tinha juntado à causa. O

povo, que há muito andava descontente e que via naquele movimento a

oportunidade de mandar o governo abaixo e tentar iniciar uma

verdadeira mudança. O povo, ressentido pela inércia de um governo de

interesses, cuja solução para a falta de água era enviar camiões-cisterna

para certas localidades; cuja solução para a falta de transportes públicos

era fretar mais autocarros movidos a gasóleo; cuja solução para os

centros das cidades, onde no Verão já não se conseguia andar devido ao

calor extremo, era pedir às pessoas que ficassem em casa; cuja solução

para os fogos florestais era comprar mais aviões de combate. Sim, o

povo estava cansado e só precisava de algo em que acreditar, como em

tempos acreditara em coisas como «Deus, pátria e família» ou «tornar o

país glorioso outra vez». Algo que o retirasse do marasmo e da

mediocridade nos quais aquele governo o tinha enterrado. Neste caso,

uma ideologia aparentemente nobre: destruir quem destrói o planeta.


Também notámos que já não era só a polícia de choque que tentava

conter as manifestações e as inevitáveis pilhagens. O exército estava

agora na rua e os soldados, nervosos, rezavam para não ter de abrir fogo

e transformar aquilo num banho de sangue. Tinham armas, mas não

tinham a fúria de quem gritava pela revolução.

Andámos durante uma hora por entre os manifestantes sem que eu

largasse a mão do Max por um segundo. Temia perder-me. Avançava aos

tropeções, tentando acompanhar o seu passo cada vez mais apressado.

Procurávamos passar despercebidos e, ao mesmo tempo, descobrir onde

poderíamos encontrar os macacões verdes. Parecia que cada vez mais

pessoas os vestiam, o que em breve nos faria sobressair por não os

usarmos. Se ao menos encontrássemos uma loja, um armazém… Tinha

de haver um armazém.

De repente, alguém do outro lado da rua chamou por mim. «Billie!

Billie! Billie Jean!» Não consegui evitar levantar a cabeça para ver quem

me chamava. Era a Dora, uma amiga da faculdade e membro dos

Estudantes Pelo Planeta. Começou a andar na nossa direcção a

esbracejar e a gritar o meu nome com entusiasmo. Empunhava uma

gerbera branca. Olhei para Max e percebi que estávamos perdidos. A

minha alcunha era pouco comum e, por certo, as autoridades estavam

em alerta para ela. Era uma questão de tempo até um agente infiltrado

me encontrar. Decidimos, por isso, que era melhor separarmo-nos. Max

segurou-me o rosto, beijou-me os lábios e disse «encontramo-nos na

Casa do Lago». Depois, fugiu pelo meio da multidão. Tapei a minha

própria boca com a mão para me impedir de gritar o seu nome, quando a

única coisa que queria fazer era pedir-lhe que não me deixasse ali. Teria

sido egoísta da minha parte. Com sorte, despistaria a Dora e iria ter com

ele. Comecei a furar na direcção oposta, com a Dora a perseguir-me e a


chamar por mim. Curvei-me e tentei desaparecer por entre o mar de

gente. Só via chão e sapatos. A poucos metros estava o lancil do passeio,

tinha de furar até ele para depois sair na próxima rua que surgisse ou

entrar na primeira porta que estivesse aberta. Foi então que senti uma

mão gigante à volta do braço. Foi então que me levaram naquela

carrinha preta. A porta a fechar-se com violência. Bam!


stá quase a celebrar-se o terceiro aniversário da Revolução. As

E Brigadas têm andado a espalhar cartazes, anunciando uma grande

parada e lembrando todas as vitórias alcançadas desde que estão no

poder. Como o fim dos carros movidos a combustíveis fósseis e dos

aviões civis, que fez descer as concentrações de dióxido de nitrogénio no

ar em setenta por cento; a obrigação de plantar árvores ou hortas em

todas as ruas e nos campos baldios da cidade, que fez a temperatura

descer dois graus nesses territórios; o fim absoluto do uso do plástico de

uso único, que fez diminuir a produção de lixo doméstico em sessenta

por cento. E tudo isto em menos de três anos. Imaginem como será

daqui a dez, dizem eles, um país totalmente alimentado a energia

renovável, com solos férteis e ecossistemas restabelecidos. O povo

rejubila, feliz por ver que todos os sacrifícios a que se tem sujeitado

estão a compensar. Já ninguém se queixa do tempo que demora a chegar

ao trabalho sem carro, nem de não poder comprar os últimos modelos de

telemóveis ou de consolas. Ninguém se queixa de nada. Cidadãos cem

por cento satisfeitos. Mais um número nesta luta contra o tempo para

impedir que o planeta aqueça mais um grau e meio. As imagens de

drones que têm sido divulgadas mostram que, dentro das fronteiras do

novo território, a mancha verde é dez vezes superior à dos territórios


vizinhos, que nos devem olhar com desconfiança e fascínio, digo eu,

porque aqui praticamente não chegam notícias de fora.

Há uns meses, numa conferência de imprensa, uma jornalista

perguntou como estava a reagir a comunidade internacional, e a resposta

foi que muitos países estão a adoptar medidas idênticas, esmagados com

a evidência de que é possível fazer melhor. No entanto, ainda há alguns

que se recusam a divulgar os números que demonstram que é possível

travar a devastação. Países corrompidos pelo dinheiro sujo do petróleo e

do capitalismo industrial. Por isso, agora temos as fronteiras fortemente

patrulhadas. Não queremos que nos entrem por aqui adentro lobistas e

cientistas pagos para contradizerem os números. Um grau e meio, é o

único número que interessa. A pergunta que a jornalista fez não voltou a

ser repetida e também ninguém se atreveu a mencionar as Moscas, o

Mocho ou as pessoas que são levadas a meio da noite em carrinhas

negras a que chamamos Morcegos.

Quando as Brigadas definiram as fronteiras, pouco depois de subirem

ao poder, todos os habitantes tiveram uma semana para escolher se

queriam ficar e viver segundo uma nova ordem ou se preferiam sair.

Quem saísse não podia voltar a entrar. Nome na lista negra. Depois

desse período de adaptação, tornou-se praticamente impossível entrar ou

sair daqui. O novo governo não quer mais habitantes, que significam

mais consumo dos recursos. Por outro lado, não deixa sair ninguém,

com receio que revele a forma como as medidas têm sido

implementadas. O mais curioso é que a maioria das pessoas escolheu

ficar. Decerto não tinham noção do que os esperava. Ou então tinham,

mas decidiram que os atropelos às liberdades individuais são um preço

baixo a pagar pela salvação do planeta. Eu, durante esse período de

transição, estava convalescente na quinta da Salete. Não pude escolher.


Mas e se pudesse ter escolhido? O que teria acontecido se não me

tivessem apanhado? Se eu e o Max tivéssemos conseguido chegar à Casa

do Lago e ficado por lá, assistindo à Revolução? Teríamos gritado

vitória com eles? Teríamos ido à procura de uma Laura vitoriosa?

Teríamos escolhido ficar por cá, ao seu lado? Ou teríamos escolhido

partir? Teria voltado para casa dos meus pais?

Coitados dos meus pais. Nunca mais falei com eles. Devem pensar

que morri, como tanta gente morreu naquelas semanas infernais. A

última vez que falámos foi na véspera daquela minha última

apresentação na faculdade. Desejaram-me boa sorte e disseram que ia

correr tudo bem. Nos dias em que estivemos escondidos na cave, ainda

ponderei pedir ao Sr. Joel que lhes enviasse uma mensagem a dizer que

eu estava em segurança, mas isso poria o próprio Sr. Joel em risco, caso

a mensagem fosse interceptada. Passaram-se três anos, o nome da Billie

ainda está na lista dos desaparecidos, mas eu agora sou a Joana. Podia

tentar enviar uma mensagem de alguma forma, mas a Internet, quando

funciona, é mais ou menos como na China, altamente censurada; e,

além disso, há o Mocho. Não há como contornar os olhos incansáveis da

inteligência artificial, por mais encriptações que tentem inventar.

Por vezes, penso que devia assumir a minha verdadeira identidade. O

novo regime está de pedra e cal, ninguém parece interessado em voltar

atrás e já não há polícias atrás de mim. Poderia tentar contactar os meus

pais abertamente, procurar o local onde o Max possa estar enterrado e

tentar encontrar amigos que tenham sobrevivido. Mas voltar a ser a

Billie obrigar-me-ia a reviver tudo de cada vez que houvesse um

reencontro. Teria de contar onde estive, com quem estive, quando

regressei. Teria de fingir que estou orgulhosa da Laura e do que ela

conseguiu. Fingir que aquelas mortes macabras em que participou foram


autodefesa, como diziam as Brigadas na sua propaganda tão eficaz. E,

sobretudo, fingir que acredito que só há este caminho para a

sobrevivência. Um caminho que todos seguem cegamente. Um caminho

em que mulheres como a minha vizinha são levadas a meio da noite para

abortar porque não se pode ter mais do que um filho. O que é que a

Laura teria a dizer sobre isto e sobre tantas outras coisas erradas que

acontecem todos os dias, mas em que ninguém parece notar? Por vezes,

sinto-me como a Mulher do Médico do Ensaio sobre a Cegueira: a

única pessoa que consegue ver.

Tenho a certeza de que é o peso na consciência que a impede de me

procurar. Com tantas Moscas no terreno, não seria difícil mapear o meu

percurso desde o dia em que saí da prisão até hoje. Mesmo esta loja estar

aberta há vários meses, sem vislumbre do Sr. Joel, seria para ela

suspeito. Ela sabe que o Sr. Joel não tem nenhuma sobrinha-neta e que

eu e o Max estivemos aqui escondidos naqueles primeiros dias da

revolta. Esteve na cave pouco depois e até deixou um bilhete, que

encontrei logo que aqui regressei. Estava escrito na sua caligrafia

infantil.

Querida Billie e querido Max,

Antes de mais quero pedir-vos desculpa por toda esta confusão e por terem tido de fugir.

Agora sabem por que razão desapareci e porque não pude contar-vos nada. Ainda bem que

se esconderam aqui naqueles dias violentos. Como disse JFK, «aqueles que tornam a

revolução pacífica impossível, tornam a revolução violenta inevitável». Teve de ser assim.

Sei que, entretanto, o Sr. Joel partiu, mas vou voltar a colocar a chave no esconderijo

para que, se um dia voltarem à cidade, possam entrar. Darei ordens para que este espaço

não seja ocupado e para que não vos incomodem. Espero, em breve, poder visitar-vos.

Até lá, deixo-vos esta carta, o meu amor e muitas saudades.

Laura
PS: vêem como vencemos?

Isto data de um mês após a Revolução. Ou seja, só um mês depois da

merda toda que fez é que a Laura se lembrou de nos procurar. Saberá

que vivi tanto tempo escondida na quinta da Salete? O que a impediu de

vir até aqui assim que ouviu dizer que a loja reabrira? Não terá ela

passado por esta rua tão central? Será que não vem por saber que o Max

morreu e a culpa é toda dela? Será isso? Terá remorsos por tudo o nos

fez passar? Por tudo o que se está a passar? Espero que tenha. Remorsos

e pesadelos. Espero que acorde de noite em lágrimas, com a imagem dos

nossos corpos atirados para uma vala comum. E que não tenha na cama

alguém que a console e que a ajude a voltar a adormecer, como eu fazia.

Como é que se atreveu a dizer que vencemos? Isto é vencer? A nossa

pequena família aniquilada? A nossa liberdade agrilhoada? Imaginará

ela o que é trocar o corpo por uma mísera sopa? Saberá o que é dormir

ao relento, com medo de ser assassinada? Saberá o que é estar

completamente sozinha? «Vêem como vencemos?», escreveu ela. Não,

Laura, não vencemos. Isto não é uma vitória! Nunca mais te quero ver.

E, se um dia, me apareceres aqui com esses teus olhos angelicais e o teu

sorriso doce e falso, cuspo-te na cara.

Respiro fundo. Sei que o ódio não é um bom alimento para a alma.

Sei que me está a corroer por dentro, aniquilando as melhores partes de

mim. Oh, o que eu daria para voltar a acordar todos os dias com leveza,

dar os bons-dias ao mundo com um sorriso… Ela tinha a obrigação de

nos ter avisado para que fugíssemos. Se sabia que ia colocar em causa a

nossa segurança, tinha de nos ter tirado da cidade antes do primeiro

ataque. «Darei ordens para que não vos incomodem», pois sim, agora

que não somos nada. Eu, pelo menos, não sou nada. Nem eu própria

posso voltar a ser.


nde estará a Billie agora?

O E onde estará o Max?

Assim que tomámos o poder, corri à procura dos dois. Queria

partilhar com eles a felicidade da vitória e o advento de uma nova

sociedade. Descobri que a Billie tinha sido levada para a prisão de São

José nos primeiros dias da Revolução, e que, quando a mesma foi

abandonada pelos guardas do antigo regime, foi vista numa aldeia a

trinta quilómetros de lá. Depois disso, nada. O vazio absoluto. Do Max,

apenas descobri uma imagem nas gravações das câmaras de segurança

da avenida principal, nos primeiros dias da Revolução. Quase três anos

se passaram e nem vestígio dele. Como se se tivesse evaporado.

Ainda fui à loja do Sr. Joel, na esperança de que estivessem na cave,

mas só encontrei resquícios de uma presença longínqua: embalagens de

comida vazias com data de expiração de um mês antes e dois sacos-

cama cobertos por uma fina camada de pó. Sim, tinham estado ali

escondidos, mas eu chegara tarde demais. Deixei-lhes uma carta e a

chave no esconderijo de sempre, na esperança de que ali voltassem, e

vigiei a loja durante um ano inteiro, mas nunca voltaram lá. Também

procurei na Casa do Lago, o nosso lugar especial, porém, só encontrei

memórias que me dilaceraram o coração. Gritei por eles do portão e

não tive coragem de avançar mais do que dois passos. Parti com a culpa
a esmagar-me o peito. E se eles tivessem morrido durante aqueles dias

violentos? E se alguém os tivesse enterrado numa vala comum? É

verdade que tínhamos listas de mortos e desaparecidos, mas,

honestamente, eram impossíveis de actualizar com rigor. Nós, nas

Brigadas, tentámos sempre recolher identificação dos corpos que

encontrávamos, contudo, chegou uma altura em que deixou de ser

possível fazê-lo. A capital transformou-se num cenário de guerra. Um

cenário que, até então, eu só vira em filmes ou em notícias de países

distantes. E eu a fazer-me de forte, imitando a determinação que via no

rosto do Paolo, do Luc, do Carlos, do Erik, do Frank. Mas eles haviam

sido militares na sua outra vida. Eu, apenas uma miúda com o sonho de

mudar o mundo.

Todos os dias me agarrava às imagens de animais mortos, florestas

carbonizadas, solos ressequidos para manter o foco e a motivação.

Todos os dias dizia a mim própria que algumas centenas de pessoas

mortas não eram nada em comparação com as perdas desastrosas que

os humanos provocavam em todos os ecossistemas. Todas as noites me

consolava nos braços do Paolo, que insistia em que estávamos do lado

certo da História. E eu acreditava, como acreditava que a Billie e o

Max estavam vivos e que, um dia, me bateriam à porta para

celebrarmos juntos.

Pensava neles constantemente. Ainda penso. Agora menos certa de

que quereriam celebrar o que quer que fosse comigo. Ao evocar os seus

rostos, vejo os olhares de censura que me fizeram quando lhes comecei a

falar em tornar o nosso movimento mais combativo. Os olhares que eu

não conseguia enfrentar sempre que lhes mentia. Fizéramos a promessa

de não ter segredos, e eu fora a primeira a quebrá-la.


Imagino a aflição deles quando desapareci. Imagino a angústia deles

quando me viram como o rosto das Brigadas Verdes no dia da grande

revelação. Angústia e desilusão, sei-o bem. Nada do que consigamos

conquistar com este nosso novo paradigma será suficiente para que me

perdoem a traição e o abandono. Na verdade, o seu perdão nem sequer

me importa. Só gostaria de saber se estão vivos. Se saíram incógnitos

antes de termos fechado as fronteiras. Consigo viver bem com o seu

ódio ou com o seu desprezo, mas acho que não conseguirei ultrapassar

a possibilidade de nunca mais os ver.

Voltei a rezar. Todas as noites, como no colégio. Relembro as orações

bonitas que a Irmã Vera me ensinou, aquelas que não falam de culpa,

ofensas e pecados, mas sim de esperança e redenção.

Vinde, ó santo Espírito,

vinde Amor ardente,

acendei na terra

vossa luz fulgente.

Vinde, Pai dos pobres:

na dor e aflições,

vinde encher de gozo

nossos corações.

Peço a Deus que estejam vivos. Que tenham conseguido sair daqui

quando as fronteiras estavam abertas. Peço a Deus que não os tenha

levado.
ltimamente tem entrado aqui na loja um rapaz intrigante. Alto,

U moreno, sempre vestido da mesma maneira, com umas calças de

ganga muito gastas e um hoodie cinzento, com o capuz enfiado embora

o tempo esteja bastante quente para uma Primavera. Passeia por entre a

filas de livros durante uns minutos e volta a sair. Não vem comprar, não

vem vender, não diz nada. Percebi que me observa quando não estou a

olhar, mas, estranhamente, nunca fico assustada com a sua presença

fugaz, eu que me assusto com tudo. Acho que é por me parecer

demasiado novo para ser Mosca. A não ser que já andem a recrutar nas

escolas e faculdades. Por outro lado, uma Mosca não iria dar tanto nas

vistas. É como se ele quisesse que eu o visse. E hoje vi.

Começou, como sempre, a percorrer as estantes sem se decidir por

nenhuma. Até que, por fim, parou à frente dos policiais e pegou num dos

livros. Folheou-o aleatoriamente, sem realmente tentar ler uma única

palavra, e, quando percebeu que eu estava a olhar, colocou um pedaço

de papel entre as páginas, fechou o livro com brusquidão e voltou a

colocá-lo no mesmo lugar. Depois, saiu a correr sem dizer nada. Dirigi-

me até à estante, desconfiada. Que raio teria o miúdo enfiado no livro,

assim, ostensivamente, para que eu o apanhasse em flagrante? Seria um

bilhetinho de amor? Teria o rapaz desenvolvido por mim uma paixão

secreta? Sorri perante tão absurdo pensamento. Há tanto tempo que não
sorria espontaneamente. Vi que ele colocou o livro na terceira prateleira

a contar de cima, um livro de capa amarelada, cujo título ou autor não

consegui ver. Um por um, fui retirando cada exemplar da dita prateleira,

sacudindo cuidadosamente cada um deles, à espera de ver cair de entre

as suas páginas o que quer que o rapaz ali tivesse colocado. Até que um

fragmento de papel de jornal se soltou e começou a rodopiar, assentando

no chão. Peguei-lhe com cuidado e vi que era uma notícia antiga sobre

um novo recorde de temperaturas máximas. A lápis, um círculo

contornava três das letras do título: M-A-X. Senti um arrepio, como se

um fantasma me tivesse tocado.

Todos os dias penso no Max. É um pensamento doce e amargo, que

com o tempo se tem tornado um pouco mais suportável. Mas desde

aquele dia em que disse à Salete que o Max por que chamei durante os

meus delírios era um cão, nunca mais me atrevi a verbalizar o seu nome,

nem tão pouco a escrevê-lo. Agora, ao ver aquelas três letras

materializarem-se à frente dos meus olhos, sou obrigada a retirá-lo da

caixinha onde o tenho guardado, para que não me doa tanto a sua falta.

Quem era aquele miúdo e que brincadeira de mau gosto seria aquela? Se

ele conheceu o Max e queria demonstrá-lo, então também sabe quem eu

sou. Comecei a sentir alguma dificuldade em respirar. Seria um

chantagista que descobrira a minha identidade falsa? Ou alguém que me

queria contar o que realmente acontecera ao Max? Finalmente, fechei o

livro que ainda tinha na mão e de onde aquele pedacinho de jornal se

soltara e fixei a capa. A Casa do Lago, de Kate Morton. Comecei a

tremer.

— A menina sente-se bem? — perguntou uma senhora que,

entretanto, entrara na loja sem que eu desse por isso.


— Sim — respondi, lacónica, colocando o livro de volta na estante, as

mãos ainda trémulas.

— Está muito pálida, não se quer sentar?

— É melhor, sim — anuí eu, apoiando-me na senhora até alcançar o

banco que usava para chegar às prateleiras mais altas das estantes.

— Isso deve ser uma quebra de tensão. Devia comer qualquer coisa

doce, deixe lá ver o que tenho aqui — continuou a senhora, vasculhando

na sua mala feita de crochet. — A-ah! Tenho este pirulito, tome lá.

— O que é um pirulito?

— Ai, esta juventude, não sabe nada… — disse ela, tirando o papel

branco que envolvia um doce que parecia uma sombrinha de chocolate,

mas de cor de caramelo, com um pauzinho de madeira espetado na base.

— É um chupa-chupa, como vocês chamam, mas feito só de açúcar e

limão em ponto de rebuçado. Não tem corantes nem nada disso. Sou eu

que os faço em casa para o Armazém Comunitário.

— Obrigada — respondi, aceitando aquela oferta.

— Vá, tem de recuperar as forças. Ele está à sua espera.

— Ele quem?

— Volto outro dia quando estiver recuperada. No domingo. O livro

que procuro já foi escrito há tantos séculos que posso esperar mais uns

dias para lê-lo. Então, até domingo — disse a senhora, enfatizando a

última palavra, enquanto se encaminhava para a porta.

— Ele quem?!

Tentei correr atrás dela, mas ainda estava tonta, pelo que, quando

cheguei à rua, não encontrei nem vestígios da mulher. Deitei o pirulito

fora. Podia estar envenenado com uma droga qualquer para me

adormecerem e fazerem mal. Mas quem me quereria mal? O rapaz, a

senhora? Sei lá. Já não sei nada. Domingo? Mas domingo as lojas estão
fechadas, toda a gente sabe. Apeteceu-me fechar a porta nesse instante,

respirar fundo, organizar as ideias, mas sabia que isso ia dar nas vistas.

Naquele momento, eu queria tudo menos dar nas vistas. Tive de manter,

por isso, a loja aberta até às sete em ponto, o pedaço de papel de jornal

entre os dedos, as lágrimas contidas num esforço hercúleo. Será que é o

Max que está à minha espera no domingo?

Continuo a conter as lágrimas. Não sei o que é chorar desde o dia em

que aquele homem me violou no café. Como se ali, naquela bancada fria

da cozinha, tivesse ficado vazia de toda a espécie de sentimentos.

Apática. Robótica. Mesmo durante o tempo em que vivi com a Salete na

quinta, fiz de tudo para não me apegar muito a ela. Sufoquei todas as

emoções e fugi sempre que ela tentou criar qualquer tipo de intimidade.

Como mulher do campo que era, habituada à dureza da vida e a aceitar

as coisas como são, nunca me levou a mal. «O importante é viver um dia

de cada vez, com o pouco que temos aqui e agora», dizia. Passávamos o

dia juntas, partilhávamos refeições, falávamos do tempo, das colheitas,

dos animais. Falávamos dos homens e mulheres que chegavam e partiam

e que contribuíam sempre com a sua força de braços, indispensável

quando se tornou proibido usar o tractor a gasóleo. Falávamos dos

clientes que vinham abastecer-se à quinta. Ela sempre vivera em modo

de sobrevivência, no ténue equilíbrio entre o que a terra lhe dava e o que

a meteorologia lhe tirava. Eu entrei nesse modo a partir do momento em

que me encarceraram entre quatro paredes e nunca mais de lá quis sair.

Funcionou durante aqueles dois anos e meio e tem funcionado durante

todos estes meses, desde o meu regresso à cidade. Até ter deparado com

aquelas três letras circundadas a lápis num fragmento de jornal. Três

letras que desmoronaram a fortaleza que construí ao longo de todo este

tempo e que me impediu de resvalar nas saudades e na esperança. Nunca


voltei a procurar o Max na lista de mortos e desaparecidos, mesmo

quando já podia fazê-lo com alguma segurança e, afinal… ele está à

minha espera? Foi o que a senhora disse.

Ele está vivo!

Vivo!

Meu querido Max…

Assim que fechei a loja, a primeira coisa que fiz foi procurar um mapa

da cidade. Quis verificar qual o melhor caminho até à Casa do Lago,

evitando as patrulhas, se bem que é difícil saber por onde andam. Há

alguns checkpoints fixos pela cidade, mas eles gostam do efeito surpresa.

Tenho de ir lá durante o dia, uma vez que, a partir da hora do recolher

obrigatório é praticamente impossível sair sem justificação. A mulher

falou em domingo. Não sei se consigo esperar até domingo, mas é

efectivamente mais seguro. A loja está fechada, pelo que não será

considerado nada estranho que eu saia de manhã para um passeio de

bicicleta e regresse apenas ao final do dia.

A Casa do Lago é uma casa devoluta num dos extremos da cidade,

propriedade do pai da Laura, trancada a sete chaves desde que a mãe

dela morreu. Foi construída para ser a casa da família, o sítio onde a

Laura deveria ter crescido com os irmãos que nunca chegou a ter. Além

da casa principal, havia um anexo de arrumos e uma piscina natural,

pequeno lago na verdade, onde a mãe da Laura gostava de nadar nua. O

pai, que padecia de ciúmes doentios da mulher, mandou construir muros

de quatro metros à volta de toda a propriedade, pois não conseguia

tolerar a ideia de que algum vizinho ou transeunte pudesse espreitar para


o jardim e deleitar-se com a sua estonteante beleza. Além das copas das

árvores, era impossível ver o que quer que fosse a partir da rua. Para a

mãe da Laura, porém, aquilo sempre pareceu uma prisão onde nunca

quisera viver e onde tinha medo de ficar sozinha. O marido passava o dia

inteiro fora e, por vezes, semanas inteiras no estrangeiro. O isolamento,

por muitas festas que desse e amigos que convidasse para lhe fazerem

companhia, acabou por fazê-la cair numa depressão profunda, que

tentava disfarçar com uso de drogas e álcool. As coisas melhoraram

quando a Laura nasceu. A felicidade de ter nos braços aquele ser

ternurento fê-la começar a ver a casa como um castelo onde vivia com a

sua princesa. Brincavam no enorme jardim como se fosse uma selva,

desciam as escadas como se fosse um escorrega, saltavam nas camas

como se estivessem nas nuvens. Ou, pelo menos, era assim que a Laura

recordava.

Quando fez seis anos, o pai mandou-a para um colégio interno, como

era tradição na família, o que levou a mãe literalmente à loucura. Foi-lhe

tirada à força a única razão de viver. Um dia, deu folga às criadas e

pegou fogo à casa. Quando viu os bombeiros a transpor o pesado portão

principal, as labaredas a devorarem tudo atrás de si, acenou-lhes com

um sorriso e atirou-se da varanda, pondo fim à vida. Desde então, a

propriedade ficou fechada, em escombros carbonizados que mal se viam

por entre as árvores que, entretanto, tinham crescido desordenadamente.

A história foi passando de boca em boca como uma lenda, e as pessoas

da zona acreditavam que a casa tinha ficado assombrada. Dizia-se que,

de vez em quando, se ouviam vozes e sons de mergulhos no lago. Por

vezes, até se viam luzes espectrais. A Laura ria-se destes disparates,

porque era ela quem se banhava naquelas águas e explorava o lugar com

velas ou lanternas. Desde os catorze anos, sempre que vinha a casa nas
férias do colégio interno, fazia questão de visitar aquele lugar onde fora

tão feliz nos primeiros anos de vida. Encontrara uma chave do portão

das traseiras durante uma exploração clandestina ao escritório de casa

do pai e, desde então, passava lá tardes inteiras, sobretudo no Verão, a

mergulhar nua, como a mãe fazia. Levou-nos lá no dia em que nos

contou esta história e deu-nos logo uma cópia da chave. Queria que

aquele voltasse a ser um lugar feliz. Desde essa altura, era lá que

passávamos grande parte das férias, eu e o Max eternamente

agradecidos, já que não tínhamos dinheiro para ir para outras paragens.

Era como ter o nosso pequeno resort privado, com piscina, jardim e

escombros românticos onde estendíamos os sacos-cama. Era lá que nos

devíamos ter encontrado naquele dia, se não me tivessem prendido.

Agora penso: será que o Max esteve na Casa do Lago durante todo

este tempo? Não me ocorreu passar por lá quando cheguei à cidade,

afinal, o Max para mim estava morto, ainda pode estar. Teria sido

demasiado doloroso olhar para aquele lugar tão especial, tal como fora

visitar o nosso apartamento. Além disso, já nem sequer tinha a chave do

portão. De qualquer forma, pressupondo que ele está vivo, não acredito

que lá tenha estado a viver todo este tempo. A casa de que me lembro

nem sequer tinha telhado. Eram escombros onde jogávamos às

escondidas ou líamos contos de Edgar Allan Poe. Onde a Laura pintava

o fantasma da mãe e o Max a fotografava, olhando descaradamente

através da lente, como nunca tivera coragem de fazer a olho nu. Havia

também aquele piso subterrâneo que tinha resistido ao incêndio, onde

nos abrigávamos nos dias de chuva, mas não era um sítio onde se

pudesse viver muito tempo, quanto mais três anos. Era um género de

sala das máquinas, onde havia caldeiras e condutas desactivadas. Se


descobrir que o Max está vivo e que esteve ali durante todo este tempo,

vou sentir-me uma completa imbecil.

Noite de sábado. Não consigo pregar olho. Apetece-me correr para lá

neste instante, mas sei que não posso sair de casa agora. Uma vez mais,

ponho-me à janela a ver o despontar do dia, à espera de que a rua

comece a despertar com o bulício domingueiro, para sair sem levantar

qualquer suspeita. Quando a hora chega, subo para a bicicleta com um

sorriso forçado, que me obrigo a fazer para parecer uma simples mulher,

feliz por ir dar um passeio de bicicleta numa soalheira manhã de

domingo. Não é nada comum fazê-lo, raramente saio de casa, mas a

verdade é que não estou a fazer nada de exótico, nem de ilegal. Pedalo

devagar como se não tivesse para onde ir. Vejo algumas pessoas a colar

cartazes nas paredes, anunciando a grande parada de aniversário do

regime. A cara da Laura está por toda a parte. A Laura má, do cabelo

rapado e olhos vazios. Tornou-se uma espécie de Che Guevara, um

ícone da Revolução. Quando as Brigadas se apresentaram ao mundo,

num comunicado ao país, instigando as pessoas a sair para a rua, Laura,

Paolo e Luc surgiram envergando os seus fatos-macaco verdes,

segurando uma gerbera branca, assegurando que estavam ali para nos

salvar. Foi um choque para mim vê-la naquele papel, mas não poderia

ter sido de outra maneira. A Laura tinha uma presença indiscutível.

Deixava-nos desconcertados perante um misto de força e beleza, carisma

e doçura. As pessoas que saíram à rua defendendo a Revolução

começaram espontaneamente a estampar o seu rosto em T-shirts, em

bandeiras improvisadas, em muros. Infelizmente, a moda não passou.

Ela continua a ser a cara das Brigadas e a porta-voz nos anúncios à

nação. Há também a sua voz a interromper as emissões de rádio.


Provoca-me sempre uma náusea. Por sorte, o Sr. Joel tinha na loja uma

aparelhagem antiga e uma enorme colecção de cassetes.

Maioritariamente música clássica. Evito sintonizar o rádio. Nos últimos

meses, aprendi a gostar de Bach.

Será que o Max também esteve preso? Será que também foi

torturado? Se descobriu onde eu estava, por que razão não veio ele até

mim? Se calhar também tem estado incógnito. Se calhar também se quis

esquecer. Se calhar… Começo a pedalar mais depressa, nunca pedalei

tão depressa, esquecendo as patrulhas, esquecendo o perigo de chamar

demasiado a atenção. Só quero chegar, só quero vê-lo, só o quero para

mim.

Do fundo da rua, avisto o muro altíssimo. Parece que as árvores

cresceram e agora há hera debruçada sobre o exterior do mesmo.

Abrando a pedalada e tento controlar os batimentos cardíacos, que estão

desenfreados com o esforço físico e a emoção. Desmonto da bicicleta e

caminho devagar até às traseiras, verificando se há vizinhos às janelas. É

uma zona de moradias, muitas delas destruídas durante a Revolução. Há

uma que simplesmente desapareceu. No seu lugar está uma cratera.

Também há outras que estão a ser reabilitadas, sendo a primazia dada ao

exterior. As Brigadas têm jardineiros e arquitectos paisagistas que vão

de porta em porta informar cada proprietário sobre o que deve plantar. É

importante haver diversidade e respeitar as plantas autóctones, já que a

rega é severamente controlada e a prioridade vai para as hortas e

terrenos agrícolas que abastecem a população. As casas só têm água três

horas por dia, uma de manhã, outra a meio do dia e outra à noite. Zero

desperdício também aqui.

Defronte ao portão das traseiras fico na dúvida se bato, se chamo pelo

Max ou se procuro uma chave. Pelo sim, pelo não, levo a mão ao trinco
e percebo que está destrancado. Abro-o com cuidado e ouço o meu

coração de novo a bater desenfreado. Escondo a bicicleta num arbusto à

entrada e caminho devagar em direcção à ruína. Estou assustada.

Começo a achar que isto foi uma péssima ideia. Só se ouvem os pássaros

e os meus passos. Assusto-me com um pombo que decide mudar de

poiso à minha passagem. Avanço a medo. Decido começar por chamar

baixinho pelo Max, mas não tenho resposta, apenas os meus pés a

pisarem folhas secas. Entro na ruína e noto que está exactamente como

me lembrava. Vejo o fantasma da Laura a dançar perante o olhar

embevecido do Max. Vejo-me deitada a olhar para as estrelas. Como

éramos felizes…

— Max — repito baixinho, sem obter resposta.

Talvez tenha sido má ideia. Talvez isto seja mesmo uma cilada. Talvez

deva correr daqui para fora e depressa. Porém, há algo que não me deixa

partir. Dirijo-me à antiga sala das máquinas, que já não tem aquela porta

de ferro, só degraus de cimento e escuridão.

— Max — volto a sussurrar antes de entrar.

Dois braços envolvem-me.

— Estou aqui.

Não me lembro de alguma vez ter chorado tanto. Sinto as pernas a

fraquejar e o meu corpo a cair naqueles braços familiares que me

apertam cada vez com mais força. Não sabia o tanto que pode caber num

abraço. Ergo o olhar para me encontrar nos seus olhos. É o Max. É

mesmo o Max. O rosto mais magro e coberto com uma barba espessa

que não lhe conhecia. O cabelo pelo queixo e ondulado. Como assim,

ondulado, pergunto-me, entrelaçando os meus dedos numa madeixa e

soltando uma gargalhada, que se mistura com o meu pranto. Choramos

os dois como se fosse o fim de tudo. E, quando paramos de chorar, não


consigo despegar-me dele. Quero ficar para sempre neste abraço, a

cabeça no seu peito, ouvindo a sua voz melancólica.

O Max ajuda-me a descer os poucos degraus da entrada da casa das

máquinas, apontando com a luz muito ténue de uma lanterna. Continua

a não haver vestígios de que alguém tivesse vivido ali. Suspiro de alívio.

Mesmo que cá tivesse vindo antes, não o teria encontrado. Vejo-o

desviar uma placa de cartão muito velha e suja com o pé, como se de um

tapete leve se tratasse, e levantar a pesada tampa de esgoto que se

esconde por baixo. Desço as escadas de ferro ferrugento devagar e às

cegas, sem perguntar para onde me leva, confiando nele, seguindo

apenas a sua voz sussurrada, até chegarmos ao chão húmido e bafiento.

Aperto-lhe a mão com mais força, estou com medo e preocupada com as

patrulhas, que talvez possam ter-me visto a entrar na propriedade. E se

alguém me seguiu? E se algum vizinho me denunciou? A qualquer

momento pode soar um alarme e chegar um Morcego. Afinal, trespassei

uma propriedade privada, ainda por cima uma propriedade que, tanto

quanto sei, ainda é de um dos líderes das Brigadas. É muito estranho que

continue abandonada.

Caminhamos em silêncio durante vários minutos (sempre que eu

tento falar o Max manda-me estar calada) até chegarmos ao fim deste

túnel que não imagino onde vá dar. À nossa frente está uma parede. O

Max bate-lhe com os nós dos dedos e, embora pareça pedra, soa como

madeira. Bate oito vezes, com um ritmo muito específico, como se fosse

código Morse. Percebo que é uma parede falsa, que logo se abre

revelando uma galeria subterrânea. Lá dentro estão quatro pessoas, que

parecem indiferentes à nossa entrada, até o Max anunciar:

— Pessoal, esta é a Billie.


Olham-me todos com curiosidade e alívio, como se estivessem há

muito à minha espera. Um a um, vêm abraçar-me com estranha

familiaridade e dar-me as boas-vindas.

— Podes explicar-me o que se passa?

— Billie, estes são a Rita, a Olívia, o Mário e o Luís. Somos a

Resistência. Falta o Sam, que já está fora do país, e o David, que

conheceste na loja e que continua a viver na superfície com os pais.

— O quê? Que Resistência? De que raio estás a falar?

— Senta-te, Billie — diz ele, encaminhando-me para o fundo da

galeria onde está um colchão velho a fazer de sofá. — Vou contar-te

tudo do início.
o dia em que nos perdemos, fiquei sem chão. Bem sei que

N decidimos que seria mais sensato separarmo-nos, uma vez que

também eu estava a ser procurado, mas se nos prendessem aos dois,

estaríamos juntos ou, pelo menos, teríamos uma ideia de onde cada um

de nós estava. Por outro lado, o mais provável seria manterem-nos

afastados, ou então, pelo contrário, usar um para torturar o outro. Não

suportaria ver-te sofrer… Tentei afastar todos esses pensamentos e

acreditar que ias conseguir escapar no meio daquele mar de gente e

juntar-te a mim mais tarde, na Casa do Lago. Tentei fundir-me na

multidão, sem correr, sem levantar suspeitas, até conseguir sair para

uma rua lateral e, depois, seguir o caminho que vem aqui dar. Tu viste o

que se estava a passar naquele dia, milhões de pessoas nas ruas, tudo a

gritar pelas Brigadas Verdes. Nem a polícia nem o exército conseguiam

conter o ímpeto das massas e, de minuto para minuto, frustrados com o

rumo que as coisas estavam a tomar, tornavam-se mais violentos.

No caminho até aqui vi centenas de pessoas a ser espancadas,

algumas até perderem os sentidos. Deves ter assistido ao mesmo…

Corpos abandonados em becos escuros, sem ninguém se certificar se

estavam vivos ou mortos. Percebi que muitos estavam ali há dias,

deixados de propósito pelas autoridades para amedrontar os

manifestantes e lhes mostrar o que lhes podia acontecer se persistissem


na desobediência. Porém, nada disso fazia qualquer diferença, porque

quem engrossava as manifestações estava disposto a entrar na guerra e

a dar o corpo às balas. Mesmo os que acordavam entre sangue e

membros, levando atrás de si o cheiro fétido da morte, voltavam para as

ruas, com mais raiva, com mais determinação. A propaganda das

Brigadas Verdes continuava a ser veiculada com sucesso, sobretudo

através das redes sociais, e a maioria queria mesmo a tal mudança

prometida. Aos que não queriam, não restava mais do que fecharem-se

em casa, as portas trancadas, o medo a espreitar atrás das cortinas.

Não se podiam deixar ver, senão seriam confrontados pelos vizinhos,

chamados de cobardes, obrigados a vir para a rua. A luta era de todos.

Não havia espaço para neutralidades, e quem se quisesse manter à

distância de toda a convulsão era considerado pró-sistema.

Quando estava a uns três quarteirões daqui, comecei a ficar

preocupado. As ruas ficaram mais vazias, o que me deixava mais

exposto. Tinha a sensação de que seria abatido caso me cruzasse com

um carro da polícia, por isso, escondi-me dentro de um contentor de

lixo até ser noite, e, na escuridão, finalmente consegui chegar à Casa.

Estava tudo tal qual tínhamos deixado da última vez que lá estivéramos

com a Laura, tanto tempo antes, excepto a vegetação, que agora me

chegava acima dos joelhos. A ruína mantinha-se ali como um esqueleto

cansado. Comecei por te procurar por toda a propriedade. Havia a

possibilidade de teres chegado antes de mim. Percorri o jardim e cada

pedaço dos escombros da casa. Nada. Por fim, aninhei-me contra uma

parede de onde conseguia ver o portão, não fosses tu finalmente

aparecer, e fechei os olhos na esperança de conseguir dormir. Não

consegui. Os gritos, os tiros e as sirenes não cessavam, e a cada hora

que passava sem que chegasses aumentava a minha certeza de que já


não vinhas. Sentia que chamavas por mim, e eu ali, sem te poder salvar.

Imaginava-te um daqueles corpos esquecidos nos becos. E a culpa era

minha, que te tinha largado. Imaginava que te apanhavam e levavam

para interrogatório. E a culpa era minha, que tinha acedido a que nos

separássemos. Não chores. Eu sei… Já passou. Eu estou aqui.

Na manhã seguinte, tive de resistir à tentação de sair para te

procurar. A prudência venceu. Prudência ou cobardia, não sei.

Convenci-me de que de nada me valia ser apanhado e de que tu talvez

estivesses escondida num qualquer buraco, à espera de uma

oportunidade para vires até aqui. Fui ficando. Escondi-me na sala das

máquinas, alimentei-me de pequenos frutos que havia nas árvores e

bebi água da mangueira que enchia o lago. Nunca pensei que ainda

estivesse a funcionar. Lá fora, continuavam as sirenes, os tiros, as

explosões; cá dentro, soava apenas a culpa por não ter conseguido

proteger-te. À medida que os dias avançavam, porém, os helicópteros e

os bombardeamentos deixaram de se ouvir. Havia menos tiros e mais

vozes a gritar «ninguém nos vai parar». Só então me aventurei para lá

dos limites da propriedade, sempre à noite, protegido pela escuridão.

Os manifestantes continuavam nas ruas, incansáveis. Espalhavam

pregos nas estradas por onde ainda passavam algumas carrinhas do

corpo de intervenção e carregavam em macas corpos inertes que tinham

sido deixados no meio das ruas, exibindo-os nas redes sociais. A prova

da brutalidade usada pelas autoridades para calar as vozes dissidentes

que exigiam mudanças. Agora, além da pressão interna, o Governo

começava a ser pressionado pela comunidade internacional para ouvir

os manifestantes em vez de tentar calá-los pela força. As Brigadas

continuavam a piratear as emissões televisivas com os seus vídeos

propagandistas, em que explicavam quais as medidas concretas que o


governo tinha de tomar. Acelerar a transição energética; proibir a

circulação de veículos não eléctricos; punir os incendiários com penas

de prisão efectiva; proibir o uso de fertilizantes, as embalagens de

plástico, o consumo de carne. Por cada vídeo lançado, mais pessoas

saíam espontaneamente às ruas exigindo que as reivindicações das

Brigadas Verdes se tornassem lei. E o pior é que, de repente, as

próprias pessoas se comportavam como se fossem membros das

Brigadas. Já não era apenas o vestirem-se de fato-macaco verde e

raparem o cabelo, como vimos naquele dia em que fugimos do

alfarrabista. Agora faziam também justiça pelas próprias mãos. Matar

como eles matam, era o lema. Assisti a coisas que nunca poderia ter

imaginado. Pessoas que pareciam animais selvagens, a pilharem tudo

por onde passavam, a destruírem os carros não eléctricos, a

espancarem uma mulher até à morte só porque usava um blusão de

cabedal, consegues imaginar? Nessa noite, percebi que não podia ficar

aqui muito mais tempo. O que quer que viesse a acontecer quando a

vitória das Brigadas fosse oficial, algo que devia estar por horas, não ia

ser bonito. Tinha de fugir do país.

Foi então que reparei na tampa de esgoto ao fundo da sala das

máquinas e decidi abri-la. Fosse o que fosse que encontrasse lá em

baixo, teria de ir dar a algum lado. Talvez um rio, talvez o mar, talvez

apenas um lugar mais calmo onde não tivesse de assistir a todas as

atrocidades que se estavam a passar na cidade. Encontrei estes túneis

técnicos há muito desactivados. A pouca água que havia no chão era

das chuvas e da humidade. Não tinha lanterna, por isso, andei às

apalpadelas, contando os passos para conseguir voltar para trás

quando me arrependesse de tamanha aventura. Até que dei com o Sam,

um homem entroncado, mais velho, que me atirou contra a parede e me


agarrou pelo pescoço, apontando uma lanterna bem aos meus olhos.

Atabalhoadamente, disse quem era e o que fazia ali. Largou-me e pediu

desculpa, explicando, no seu sotaque inglês, que era arqueólogo e que

também estava a tentar fugir da cidade. Acabara de perder o único filho

numa manifestação e não queria ficar nem mais um minuto aqui.

Conhecia bem os subterrâneos da cidade, pois andava há anos a

investigar a existência de antigos túneis da cidade medieval, entretanto

perdidos com sucessivos aterros. Sabia que um deles desembocava

numa zona junto à fronteira e que estava perto de o encontrar. Fiquei

com ele. Tratou-me como o filho que perdera. Mostrou-me os mapas

medievais e o lugar onde achava que podia haver uma abertura para

esses túneis perdidos, a nossa única salvação, uma vez que, ao que tudo

indicava, nem o Governo, nem as Brigadas sabiam da sua existência.

Ao longo da semana, fomos encontrando outras pessoas a vaguear

nestas entranhas secretas da cidade. Cada um tinha entrado por um

sítio diferente, mas todos tínhamos vindo parar a este labirinto

subterrâneo para fugir da loucura que se vivia na superfície.

Começámos a desenhar o nosso próprio mapa, sinalizando os lugares

por onde era seguro subir à superfície em busca de comida, e também

os lugares que Sam achava que nos poderiam dar acesso ao outro

submundo. Ainda não tínhamos encontrado esta galeria, pelo que

dormíamos no chão, sempre um em vigília para afastar as ratazanas.

Quando os tiros foram substituídos por cânticos de vitória e

manifestações de alegria, percebemos que as Brigadas Verdes tinham

vencido. Tomaram o poder sem mais resistência, a pedido da

população. Eram os heróis, os salvadores da pátria e do planeta. Nas

ruas, vivia-se o êxtase colectivo. Sempre com um discurso altruísta, os

líderes do movimento, a nossa Laura incluída, prometeram meter mãos


à obra de imediato, arrumar a casa, implementar todas as medidas

necessárias para criar um país auto-suficiente e sustentável. Fariam

eleições assim que houvesse estabilidade. Para já, iam repor as

fronteiras e deixar sair quem quisesse continuar a viver um estilo de

vida insustentável noutro país qualquer.

Não foram muitos os que partiram. Toda a gente estava feliz e,

aparentemente, esquecida de como o movimento começara. «Foram bem

mortos, os poluidores», «os fins justificam os meios», «vamos criar um

mundo melhor», eram os argumentos. Aqui em baixo, houve quem

aproveitasse a deixa para abandonar país, mesmo sabendo que não

poderia regressar. Outros foram tentar descobrir como estavam as suas

casas e famílias depois daquelas semanas de loucura. Eu, como não

tinha para onde ir, fiquei e prometi a mim mesmo que só sairia daqui

quando te encontrasse. Morta ou viva.

Continuei a viver na escuridão com o Sam, que se recusava a partir

até encontrar os túneis antigos. Sem me identificar, fui dar o teu nome

para a lista de desaparecidos. Cruzaram os dados e descobriram que

tinhas estado detida na prisão de alta segurança, mas que as Brigadas

haviam libertado todos os prisioneiros e não se sabia para onde cada

um tinha ido. Decidi esperar. Tinha a certeza de que, assim que te visses

livre, me procurarias na Casa do Lago. Aliás, foi aqui que combinámos

encontrar-nos quando nos separámos naquele dia. Calculei quantos

dias demorarias a chegar a pé. Cinco no máximo. Oito se fizesses

paragens mais demoradas. Mas o tempo passava e eu não tinha notícias

tuas. Comecei a ficar preocupado. E se alguém te tivesse feito mal no

caminho? E se tivesses escolhido partir sem sequer me procurares?

Foram dias de profunda angústia. Não podia sair do país sem ter a

certeza do que te tinha acontecido, mas também não podia ficar num
lugar que já não reconhecia como meu. Um país onde os cidadãos não

podiam circular livremente nem passar a fronteira, onde eram

obrigados a usar um símbolo das Brigadas Verdes na roupa, provando

que já tinham feito o registo de cidadania e que estavam empenhados

em construir uma nova sociedade. Assim que o prazo de abandono

voluntário do território terminou, fui outra vez consultar a lista oficial.

O teu nome continuava na coluna dos desaparecidos. Respirei de alívio.

Pelo menos, podia viver com a esperança de que não estavas morta nem

tinhas partido. Restava-me aguardar.

Entretanto, chegámos ao Verão, e o Sam continuava a palmilhar

caminhos infindáveis em busca dos seus túneis, que eu começava a

achar que eram imaginados. Até que um dia encontrou mesmo a

passagem por que tanto procurava, atrás de uma parede de tijolo. Foi

sozinho investigar onde ia desembocar e, poucos dias depois, regressou

com um sorriso triunfal. Tinha encontrado a saída que sempre

acreditara existir, a apenas quinze quilómetros daqui. Podíamos partir

a qualquer altura, sem sermos vaiados e cuspidos como aqueles que o

fizeram legalmente. Os ingratos, os retrógrados, os que não queriam ver

o único caminho possível para a salvação. No entanto, nenhum de nós

se queria ir embora. Eu, sobretudo por tua causa, ele, porque percebeu

que o que se passava na superfície era demasiado inquietante.

O regime estava em funções há cerca de dois meses, e todos os dias

saía um edital com novas regras e proibições. Também todos os dias,

pessoas anónimas comportavam-se como vigilantes, acusando os

vizinhos ou fazendo justiça pelas próprias mãos. Vivia-se um clima de

suspeita constante. Pouco a pouco, alguns dos nossos antigos

companheiros regressaram ao submundo. Cada um trazia novas

histórias de repressão e desproporcionalidade entre o crime e o castigo.


Cada um trazia mais um amigo também. Por vezes, os crimes derivavam

de puro desconhecimento das novas regras, mas as Brigadas eram

intransigentes. Algumas vozes começaram a levantar-se, para serem

imediatamente abafadas. Surgiu o rumor de que havia uma prisão para

dissidentes.

Em poucos dias já éramos demasiados a viver nesta pequena galeria

e não podíamos simplesmente sair em barda para o país vizinho sem ter

onde ficar ou quem nos ajudasse por lá. Seria meio caminho andado

para que as Brigadas descobrissem o túnel. Tínhamos de planear tudo

com prudência e retirar as pessoas uma a uma, sobretudo aqueles que

já estavam a ser investigados e temiam ser presos em breve. Tínhamos

também de criar na superfície uma rede de contactos à prova de bala,

que nos ajudasse não só com informações acerca das movimentações do

novo regime, mas também com mantimentos e outras coisas de que

precisávamos. Conseguimo-lo maioritariamente através das avós ou

mães de membros do nosso grupo, as únicas que, mesmo não

concordando, jamais denunciariam os próprios filhos. Mas também

através de pessoas como a Olívia e o Mário, que continuam a trabalhar

até hoje no hospital e a fazer uma vida dupla. Percebemos que, afinal,

havia muitas pessoas que se recusavam a aceitar o estado das coisas.

Não estávamos sozinhos.

A saída do túnel medieval desemboca numa floresta densa, impossível

de vigiar. A duzentos metros é outro país. Levámos semanas a investigar

o esquema de vigilância, até percebermos que não havia um. Sabíamos

que era uma questão de tempo, claro, até porque, ao longo de toda a

fronteira, já estavam a ser erguidos muros. Tínhamos uma janela curta

para sair e levar connosco quem conseguíssemos. Mas eu não queria

sair. Não sem ti. Continuava a ir todos os dias à superfície, espreitar o


pequeno portão das traseiras da Casa do Lago, verificar se os arbustos

estavam intactos ou se tu tinhas entrado durante uma das minhas

excursões subterrâneas. Prometi a mim mesmo que, enquanto houvesse

pessoas para retirar, eu daria a minha vez. Seria o último. O que fecha

a porta. Deixar-te-ia uma carta e um mapa para nos seguires. Esperaria

por ti do outro lado.

A primeira pessoa a passar a fronteira foi o Sam. Tinha de ser

alguém que fizesse a ponte com outras pessoas dispostas a ajudar-nos

do lado de lá. O Sam era bem relacionado e certamente conseguiria

montar em pouco tempo uma estrutura para acolher os fugitivos que se

seguiriam. Além disso, tem dupla nacionalidade. Seria mais fácil pedir

asilo, caso algo corresse mal. Demos-lhe uma semana até voltarmos

àquele lugar com o primeiro fugitivo e a esperança de que o Sam

estivesse do outro lado, pronto para o levar. Se não estivesse, o fugitivo

estaria por sua conta. Não podíamos fazer mais. Não tínhamos, e não

temos, comunicações. Demasiado arriscado. Combinamos dias e horas

certas, e esperamos conseguir cumprir. Felizmente, essa primeira fuga

correu bem. Após semanas de angústia, abriu-se uma janela de

esperança. Uma janela não, um túnel inteiro.

Começámos, então, a actividade de forma mais regular. Escolhíamos

dias aleatórios para fazer a passagem, para não dar nas vistas,

caminhos diferentes no meio da floresta para não marcar o solo com os

nossos passos. Pensávamos que ia ser trabalho para um mês ou dois,

mas a cada ida à superfície os nossos contactos pediam que

ajudássemos mais uma pessoa e mais outra e mais outra. Não podíamos

parar. Actualmente, sabemos que há outros túneis de fuga, que,

entretanto, se transformaram em vias de contrabando, algumas com a

conivência de pessoas do regime, pagas a peso de ouro. Aqui não. Aqui


só passam pessoas e não lhes pedimos dinheiro. Também não traficamos

bens. Tudo o que recebemos é para nosso uso apenas. Pilhas para as

lanternas, medicamentos, munições. O que foi? Não olhes assim para

mim. Temos de estar preparados, ou achas que se nos apanharem nos

vão dar alguma hipótese? Dão-nos logo um tiro nos cornos. São

animais. Tu sabes que são.

Agora que finalmente te encontrámos, até podia terminar a minha

missão e sair daqui contigo hoje mesmo, em busca de uma vida bem

longe. Mas não posso e vou explicar-te porquê. Temos de continuar a

enviar para fora daqui pessoas que estejam dispostas a falar com os

jornalistas dos outros países e a dizer a verdade sobre o que se passa

por cá. Queremos mostrar ao mundo que, embora este novo governo

tenha estado a atingir todas as metas do acordo de Paris em tempo

recorde, há um lado muito negro na forma como o tem conseguido. Mas

atenção, tu podes partir se quiseres. Levamos-te lá neste instante, se for

preciso. Sei que vives sozinha e mal sais daquela loja, não deves ter

nada que te prenda aqui. Conheço-te bem demais para acreditar que

estás feliz. Mas também podes ficar comigo. Não tens de decidir nada

agora.

De qualquer forma, já salvámos sessenta pessoas, só que a

informação que o Sam nos tem dado é que todas elas têm sido

desacreditadas. Sabemos que há gente das Brigadas infiltrada no país

vizinho e que é muito fácil apelidar de negacionista alguém que critica

medidas de salvação do planeta. Algumas dessas pessoas

desapareceram sem deixar rasto. O Sam não pode garantir se foi um

desaparecimento voluntário ou se alguém as fez desaparecer. Então,

percebemos que a única hipótese de sermos levados a sério pela


comunidade internacional é levarmos connosco um membro do regime e

obrigá-lo a contar ao mundo o que realmente se passa aqui.

Não, não se trata bem de um rapto, quer dizer, tem de ser alguém que

se mostre verdadeiramente arrependido e testemunhe na primeira

pessoa no Tribunal Penal Internacional. E agora, por favor, não te

passes com o que vou dizer…

Já adivinhaste de quem estou a falar, não já?

Sim, é a Laura.

Por favor, ouve-me, Billie!

Peço-te apenas que me ouças até ao fim.

Eu também andei meses e meses a alimentar a minha raiva. Não

conseguia esquecer que ela tinha participado naqueles assassinatos

escabrosos e que foi a causa de todo o nosso sofrimento. Senti-me usado

e manipulado por ela, que não hesitou em abandonar-nos à nossa sorte

por um ideal que se tornou perverso. Senti-me ridículo por todas as

vezes em que pensei declarar-lhe o meu amor. Tanto tempo a achar que

estava apaixonado por ela, mas quem era a verdadeira Laura, afinal?

Não conseguia vê-la como a heroína que toda a gente via. Para mim,

era simplesmente uma desilusão. Sempre que pensava nela, não sentia

nem uma réstia daquele amor que em tempos me consumiu. Mas, certa

noite, tudo mudou.

Andava eu numa das minhas saídas de vigilância nocturnas, quando,

ao fundo da estrada vi um carro antigo a circular. Sim, um carro antigo,

a gasolina, com ruído de motor e tubo de escape! Também pensava que

tinham sido todos destruídos, mas ali estava aquele exemplar. Escondi-

me imediatamente atrás de uma daquelas paragens de autocarro

cobertas com plantas de cima a baixo, pressentindo que algo não ia

correr bem. E tinha razão, pois logo surgiram quatro indivíduos de fato-
macaco verde a bloquear a estrada, apontando metralhadoras ao

condutor, que teve de travar a fundo. Não sei se eram membros oficias

das Brigadas Verdes ou apenas pessoas que continuavam a comportar-

se como vigilantes. Ainda há muito disso por aí. Só sei que estavam a

ser muito agressivos e recusaram-se a deixar o veículo passar. O

condutor, um rapaz que não devia ter sequer dezoito anos, chorava,

explicando que o avô estava a ter um ataque cardíaco e que tirara o

velho carro da garagem porque precisava mesmo de ir ao hospital. Um

homem de cabelos grisalhos e desgrenhados estava deitado no banco de

trás, o corpo a soluçar como que engolindo golfadas de ar, a mão sobre

o peito. Os homens, no entanto, estavam irredutíveis. Mandaram o

rapaz sair do carro e continuar a pé. O rapaz implorou, pediu que os

levassem então num veículo eléctrico, tirou o avô do carro e tentou

transportá-lo nos braços. Não há palavras para descrever o seu

desespero.

E eis que, não sei de onde nem como, aparece a Laura. Estava tão

embrenhado na história que se desenrolava perante os meus olhos que

não vi chegar o Morcego de onde ela saiu, seguida de três militares,

como se a escoltassem; apenas lhe reconheci a voz, depois o porte,

depois os gestos. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, não sei se de

raiva, se de espanto. A Laura estava ali, no meio daquela rua escura, a

escassos metros do sítio onde me mantive escondido, a dirigir-se a

quatro homens armados, destemida e determinada.

— Camaradas — gritou, levando a que os homens, assustados,

desviassem as armas do rapaz e as apontassem a ela. — O meu nome é

Laura Espinosa e sou uma das líderes das Brigadas Verdes.

Os homens olharam uns para os outros em descrédito. Como é que

aquela mulher, pequena e delicada, podia ser a Laura dos vídeos que
circulavam por todo o lado? A cara da Revolução?

— Ordeno-vos que deixem este rapaz passar — continuou ela,

avançando em direcção aos homens sem hesitar.

— Nem mais um passo — gritou um deles, atrapalhado. — Para já,

nem sabemos se dizes a verdade. De onde saíste?

— Não interessa de onde saí. Interessa onde vais parar se não

deixares este carro passar — respondeu a Laura, aproximando-se até

quase ficar testa com testa com o homem. De repente, parecia que o seu

corpo crescera e era agora uma mulher de dois metros. A proximidade

do seu rosto fez com que os homens a reconhecessem.

— Laura, desculpe, mas é proibido circular em carros que não sejam

eléctricos. Você mesma disse isso. Você mesma, no vídeo, pediu que os

civis patrulhassem as estradas e impedissem os carros não eléctricos de

circular.

— Eu sei que disse isso, porém, temos de saber avaliar as situações.

Há uma pessoa em risco de vida, que tem de seguir imediatamente para

o hospital! Se não têm um carro eléctrico que o leve, têm de deixar

passar este.

— É um velho, quer dizer…

— Deixem-nos passar! Já!

Ainda ela não tinha acabado de falar e já os três militares que a

escoltavam, se aproximavam, esses sim, seguramente das Brigadas

Verdes ou do novo exército por elas criado, vestidos com uniformes

cheios de protecções e capacetes similares aos das forças especiais. Os

quatro homens recuaram, assustados, mas os três militares não se

dirigiam a eles, antes à Laura, que logo ali seguraram e algemaram sem

qualquer contemplação. A Laura olhou para eles com total

estupefacção. Como se atreviam? Ao mesmo tempo, um deles mandou o


rapaz continuar a andar. O rapaz obedeceu, tremendo, com o avô nos

braços. Não andou mais do que dez metros. O velho segredou-lhe

qualquer coisa ao ouvido, que o fez ajoelhar-se e ficar ali, no meio da

estrada, a segurá-lo no colo.

— Larguem-me! Larguem-me e deixem-nos passar — continuava a

Laura, tentando soltar-se.

Instantes depois, o corpo do velho deu um esticão, a cabeça tombou

para trás e a rua encheu-se com o grito de dor do rapaz.

— Vejam só o que fizeram — gritou também a Laura. — Seus

monstros!

Os quatro homens que tinham feito a barricada afastaram-se,

indiferentes, a sua missão já estava cumprida. O carro não passara.

Fim da história. Então, o rapaz levantou-se em fúria e foi a correr atrás

deles, a chamar-lhes assassinos. Acto contínuo, um dos militares deu-lhe

um tiro na cabeça. Os homens riram-se, mas logo depois outros quatro

tiros atingiram as suas cabeças. Um, dois, três, quatro tiros certeiros,

precisos, infalíveis. Ficou o silêncio e seis corpos no chão. Eu encolhi-

me, horrorizado, a Laura abriu a boca de espanto e confusão. Um dos

militares informou-a de que estava presa por traição e enfiou-a com

brusquidão dentro do Morcego. Sim, ouviste bem, Billie, a Laura foi

presa por traição, ali mesmo à minha frente, ninguém me contou.

Presumo que os outros homens foram mortos para não espalharem a

notícia de que um dos líderes das Brigadas Verdes, cuja mão de ferro

vigia cada cidadão para que cumpra todas as regras, estava disposta a

quebrar uma delas para salvar um velho. Ainda por cima, um velho.

Não digas que é bem feito, Billie, vá lá. Bem sei que ela nos mentiu e

traiu, mas começo a achar que tinhas razão quando, no início de tudo,

disseste que não podíamos desistir dela e que tínhamos de salvá-la.


Quando acreditaste que ela não estava em si ao juntar-se àquele grupo

de fanáticos. Ali, naquela rua, eu vi a nossa Laura, a Laura que não se

calava perante uma injustiça, a Laura que defendia sempre os mais

fracos, a Laura dos discursos inflamados e contagiantes, a Laura com

um enorme coração. Não é a mesma Laura que obriga as mulheres a

abortarem o segundo filho ou que está a aprovar a eutanásia

obrigatória a partir dos noventa. Não é, Billie, não é!

Mas deixa-me só terminar, não fujas.

Não te zangues comigo, por favor.

Há mais uma coisa que precisas de saber…

A Laura está grávida.

Sabemos isso porque encontrámos o sítio para onde a levaram depois

desta cena. Temos um informador que vigia o pátio da prisão para onde

levam os inimigos do regime, de forma que possa dar notícias deles às

famílias. Foi ele que reparou nela. Todos os dias, segundo nos conta, a

Laura sai para uma hora de passeio nesse pátio, apenas quando está

vazio, o que nos faz crer que está completamente isolada. De dia para

dia, ele tem visto a sua barriga a crescer. Pelas nossas contas, estará

agora no último mês de gravidez. Achamos que é só por isso que

continua viva. E por precisarem dela para a celebração do terceiro

aniversário do regime, que se avizinha. Para os vídeos, não precisam.

Os que têm circulado nos últimos meses já foram feitos através de

inteligência artificial. Mas ela vai aparecer na parada, isso sabemos de

fonte segura. Não há como não ter a cara da Revolução a desfilar

perante o povo. Aliás, os pósteres que cobrem as paredes de tudo quanto

é rua a anunciar esse grande evento têm a cara dela. Depois disso, e de

a criança nascer, acreditamos que vão matá-la. Não podem manter viva

uma pessoa que, perante várias testemunhas, estava a ir contra a lei e a


pedir que os outros também o fizessem. Admitir tal rebeldia seria o

princípio do fim. E mesmo que só três dessas testemunhas continuem

vivas, eles são militares. O exemplo tem de vir de cima. Com certeza que

os líderes vão inventar um acidente ou um parto que correu mal.

Achas bem que a matem?

Vá lá, não digas isso.

Eu sei, é muita informação para assimilares. Ainda nem te perguntei

como passaste, quando voltaste, onde estiveste. Não queres falar sobre

isso? Tudo bem. Falas quando estiveres preparada. Também não te

disse qual o nosso plano para raptar a Laura e levá-la connosco para

longe daqui.

Não queres saber?

Espera, Billie! Não te vás embora assim.

Billie!

Billie!
em estou em mim. Não sei o que fazer nem o que pensar de tudo

N isto. Preciso de ir para casa. Só quero enfiar-me na cama, na

escuridão que nos é imposta, e adormecer. Quero acordar amanhã com a

certeza de que isto foi só um sonho. Não encontrei o Max. Não estive a

chorar nos seus braços. Não voltei a encher-me de esperança.

Porque é que todas as pessoas são desilusão atrás de desilusão?

Haverá alguém no mundo que seja verdadeiro, que não tenha uma

agenda, que não esteja sempre à procura do que podemos fazer por eles?

Diz que ficou aqui este tempo todo por mim, à espera de me encontrar,

mas afinal foi só pela Laura. Afinal, a Laura é que é boa. A Laura é que

é a salvação. A Laura, que nos deixou em suspenso durante um ano, que

virou a vida de toda a gente do avesso, que tem as mãos manchadas de

sangue e de lágrimas e de mortes. Não só as mortes planeadas, que

executou sem piedade, mas todas as outras que aconteceram porque a

maldade, a suspeita e o medo se instalaram entre todos nós. Como a

morte daquele homem que só tinha fome, na primeira aldeia. Ou do

talhante que só estava a tentar sobreviver com o seu negócio. Ou da

menina que eu era antes de ser espancada e violada. Essas mortes

também contam, sabias Max? E agora, afinal, ela é boa. Está muito

arrependida e disposta a denunciar aquilo que ajudou a criar. Só porque


defendeu um rapaz e o seu avô numa noite escura. E quantos rapazes e

avôs morreram em todas as outras noites por causa dela?

Três anos. Já passaram quase três anos disto e vão passar muitos mais.

E o Max a falar da Resistência. Resistência a quê? Não há uma só voz

discordante. Metade das pessoas vive com medo. A outra metade,

alienada, hipnotizada, convencida de que este é o caminho certo. E o

pior é que parece mesmo ser. Os números não mentem. O país tornou-se

um oásis, um farol de esperança na guerra contra as alterações

climáticas, que eventualmente todos os outros países quererão copiar.

Não sei. Não tenho como saber o que se passa lá fora, o que dizem de

nós, mas não me parece que a Resistência seja assim tanta gente. O que

são sessenta pessoas? Quem é que, no seu perfeito juízo, quer sair

daqui? Lá fora, tal como acontecia por cá até as Brigadas terem tomado

as rédeas, continua a haver escassez de comida, incêndios cada vez mais

devastadores, espécies extintas. Aqui temos verde, campos cultivados e

passarinhos a chilrear por todo o lado. Três anos bastaram para restaurar

centenas de ecossistemas, reabilitar solos, diminuir a concentração de

substâncias tóxicas do ar que respiramos. Três anos! Estranho é ainda

não termos sido invadidos por milhões de pessoas a querer um pouco

deste paraíso. Claro que ninguém se insurge. Não se pode querer tudo.

Salvar o planeta tem um custo. No nosso caso, pagamos com eugenia,

vigilância e censura. De que servem as liberdades individuais se

morrermos todos?

Peço ao Max que me leve até à Casa do Lago por aquele labirinto

subterrâneo. Não respondo enquanto repete a mesma história e

argumentos. Não lhe perdoo por querer perdoar a Laura. Assim que

entro na sala das máquinas, fecho a tampa do esgoto para que não venha

atrás de mim. Coloco por cima o papelão velho, tento desfazer as


pegadas que ficaram marcadas no chão e saio dali para fora. Reparo que

são quase seis da tarde.

Pedalo furiosamente de volta a casa. Estive todo o dia fora, pelo que

estou preocupada com a possibilidade de ter levantado suspeitas. Era só

o que me faltava, ter uma Mosca a vigiar-me. Começo a achar que tenho.

Talvez não estivesse a ser paranóica de todas as vezes em que me senti

observada ou fiquei fechada em casa. De certeza que eles sabem que eu

sou a Billie e, qualquer dia, aparecem para me vir buscar. Enquanto

achei que a Laura mandava alguma coisa, consegui dormir de noite. Na

carta patética que deixou na cave, garantiu que nos ia proteger. Porém,

agora ela não me pode salvar. Pelo contrário. Se calhar até lhes daria

gozo fazerem-me mal só para a torturarem. Sempre a Laura, a destruir a

minha vida.

Entro em casa. Pela primeira vez, não preciso de ir a correr encher os

garrafões e as panelas com água durante a hora livre. Ainda estão cheios

com a água da manhã. Também vou a tempo de usufruir de duas horas

de electricidade, que de nada me servem. Não tenho computador nem

telefone para carregar. Posso ouvir um pouco de música. Talvez Bach me

acalme.

Estou furiosa com o Max. Para que é que me veio buscar, então? O

que é que ele quer de mim? Deve querer ajuda para salvar a Laura, claro,

sempre o cãozinho dela. Esteve à minha espera, diz ele. Pois que

continue à espera, sentado. Já não sou a Billie. Nunca mais serei a Billie.

E não quero ter nada que ver com os planos de ajudar dissidentes a fugir,

na esperança de que nos salvem a partir de fora. Vão acabar todos

fuzilados. É uma questão de tempo. Se há infiltrados lá fora a impedir os

que têm saído de falar, então, cá dentro já se está a investigar quem os


ajuda. Inevitavelmente alguém se vai lembrar de procurar debaixo da

terra. Nem pensar. Estou fora.

Deito-me na cama e fecho os olhos. Sou a Joana, não os conheço, não

conheço ninguém. Vim de longe, a pedido do meu tio-avô Joel, apenas

para tomar conta deste alfarrabista. É essa a minha história. Não quero

saber de mais nada.

Inspiro fundo.

Sinto o cheiro do Max na minha roupa e estremeço.

Ele podia ter fugido daqui há muito tempo, mas escolheu ficar. Não

desistiu de mim. Foi o que disse. No fundo, sei que é verdade…

Quero abraçá-lo outra vez. Não há muitas oportunidades para abraçar

alguém que julgávamos morto.

Mas não posso! Ele está do lado dela. Não posso perdoar outra

traição.

Apetece-me levantar e deambular pela casa; ajuda-me a pensar.

Porém, não quero fazer nada que possa levantar a mínima suspeita. Já

basta ter passado todo o dia fora. Se alguém me estiver a vigiar, há-de

voltar à sua base com o relatório limpo. «O alvo manteve todas as suas

rotinas e horários. Com excepção de um passeio de bicicleta, que

consideramos insuspeito, uma vez que é domingo e esteve um dia

deveras aprazível. Continuaremos a observá-la. Fim de relatório.»

Estará a Mosca no prédio da frente? Em cima de um telhado? Será o

vizinho do lado?

Sinto a boca seca.

Começo a transpirar.

Ainda há um pouco de água no copo que tenho em cima da mesa-de-

cabeceira. Tacteio no escuro até sentir o frio do vidro na ponta dos

dedos. A quantidade é pouca, mas sabe-me como uma garrafa inteira. O


tecto sobre a minha cama não tem nada além de uma racha. Nem uma

sanca, nem um candeeiro, nada que me distraia e leve a mente para outro

lugar. No meu quarto no apartamento da Laura havia estrelinhas que

brilhavam no escuro, pintadas com uma tinta especial. Deus me livrasse

de comprar aquelas de plástico ou autocolantes. A Laura matar-me-ia.

«Sabias que os autocolantes não são recicláveis? A cola que têm impede

que os possamos reciclar», disse-me quando me atrevi a sugerir

fazermos autocolantes para os Estudantes Pelo Planeta.

A Laura.

Sempre a Laura a invadir os meus pensamentos.

Nem acredito que está grávida, prestes a ter um bebé. Será mesmo

verdade? Lembro-me de quando, um dia, acordou a chorar porque

achava que engravidara de um rapaz com quem teve um caso fugaz.

— Toma a pílula do dia seguinte, sua tola — disse eu, pragmática.

— Não posso. Já foi há mais de um mês — respondeu, em pranto.

— E só agora é que te lembraste?

— Só agora é que o período me faltou…

— Calma, vamos por partes, quem é ele?

— Não interessa, não é para repetir.

— E não usaste preservativo?

— Usei, mas, fiquei com a sensação de que se rompeu um pouco, não

sei explicar.

— Então, por que raio… Esquece, não vale a pena estar aqui a falar

sobre o que se passou há mais de um mês. Tens de fazer um teste de

gravidez.

— E se estiver grávida?

— Se estiveres, estás, daqui a pouco já sabes — respondi, pragmática,

pegando no telemóvel e teclando com rapidez. — Vou mandar uma


mensagem ao Max para que traga um teste da farmácia. Ele está a

caminho de casa.

— Não! Assim, ele fica a saber.

— Ele vai sempre ficar a saber.

— Não se for falso alarme.

— Como se tu não fosses falar sobre o assunto até à exaustão…

— Deixa. Tens razão. Nós não temos segredos.

— Bem me parecia.

— Se estiver grávida, achas que devo ficar com o bebé? — perguntou

apreensiva.

— Ah, não, nem penses que me vais pôr essa cruz em cima.

— Não é isso, é só que… há tantos bebés no mundo, ter filhos não é

nada sustentável, mas por outro lado, agora que existe a possibilidade de

estar grávida, acho que não ia conseguir não o ter.

— A única coisa que posso dizer é que estarei sempre aqui para ti,

seja qual for a tua decisão.

— E se o tiver, ajudas-me a mudar as fraldas, a baixar as febres, a

tomar conta dele?

— Tudo o que precisares — tranquilizei-a.

— Dizes-me que eu estou linda quando estiver gorda e barriguda?

— Tu vais estar linda.

— Seguras-me a mão no bloco de partos?

— A mão, o pé, o que quiseres.

Nem dez minutos tinham passado quando o Max chegou, esbaforido.

As mãos tremiam-lhe ao entregar o teste à Laura. Ficou a vê-la entrar na

casa de banho como se estivesse a entrar num foguetão que a levaria

para sempre para outro planeta. Não conseguia falar. A Laura voltou à
sala pouco depois e colocou o teste na mesa de centro. Ficámos os três a

olhar, à espera de ver aparecer dois tracinhos vermelhos.

— Podes ser madrinha dele?

— Posso, claro. Com todo o gosto — respondi, com um certo orgulho.

— E tu, Max, podes ser o padrinho?

— Er… Sim, óbvio, obrigado pelo convite — disse ele, pigarreando.

— Assim seremos uma família de verdade — concluiu a Laura.

— Nós já somos uma família de verdade — lembrou o Max.

Demos as mãos e ficámos em silêncio até passarem os cinco minutos,

como indicava a embalagem. O teste deu negativo. Suspirámos de alívio.

A Laura fez um sorriso ligeiramente desiludido.

— Não fiques assim — disse eu. — Eu serei a madrinha quando

realmente engravidares.

E agora há mesmo um bebé na barriga dela. A barriga que eu nunca

vi, nem pude acariciar. Algures nesta cidade está uma Laura grávida,

sem ninguém para lhe dizer que está bonita. Algures nesta cidade vai

nascer o filho da Laura, de quem não poderei ser madrinha. Sinto a

almofada molhada. Sou mesmo estúpida. Estou a chorar por causa dela

outra vez.
que me custa mais nesta clausura, não é a falta de alguém com

O quem conversar, mas sim dormir sozinha. Desde os tempos do

colégio, raramente dormi sozinha. Sempre tive medo não do escuro, mas

do silêncio. Talvez porque, durante os primeiros tempos após a morte da

minha mãe, falava com o seu retrato e ela nunca me respondia. Silêncio

para mim era igual a morte. Essa foi uma das principais razões para ter

arranjado companheiros de casa ao fim de apenas uma semana no meu

pequeno apartamento. E sempre que não tinha um namorado, era na

cama do Max ou da Billie que me enfiava, só para sentir alguém a

respirar ao meu lado. A respiração profunda dos outros acalma-me.

Lembra-me o vai-e-vem das ondas a desfazer-se na areia.

Bem sei que já não estou sozinha há vários meses, mas como ainda

não consigo sentir a respiração do meu bebé, durmo mal. Pudera eu ter

um estetoscópio e ficar a ouvir o seu coraçãozinho…. Fico feliz quando

me pontapeia as entranhas, o que é cada vez mais comum neste final de

tempo. E falo muito com ele. Escrevo-lhe cartas no pequeno caderno

que me permitem ter. Como não me disseram se é menino ou menina

nas duas ecografias que me fizeram, chamo-lhe Ervilha.

A minha cela é completamente diferente da dos outros prisioneiros. É

quase como uma suite. Tem uma cama grande e confortável, casa de

banho completa, um sofá com repousa-pés, um leitor de CD, uma bola


de Pilates e todos os livros que eu quiser requisitar. Uma enfermeira

vem cá diariamente para me ver e as refeições são muito completas. E

posso passear ao ar livre duas horas por dia. Uma de manhã e outra de

tarde, os únicos momentos em que me sinto a respirar. Depois de tantas

horas em clausura, sentir o vento beijar-me a pele ou poder olhar para

a infinitude do céu é sempre um deslumbramento. E sim, faz-me bem o

exercício, ainda que eu também o faça na minha cela. Foi um hábito

que criei dos tempos de intenso treino a que toda a célula foi sujeita,

nos primórdios disto tudo. Autodefesa, artes marciais, manejamento de

armas, técnicas de sobrevivência, incluindo simulação de situações em

que poderíamos ficar fechados em espaços pequenos durante semanas.

Afinal, serviu para alguma coisa. Nenhum destes privilégios é para mim,

sei-o bem. Paolo está apenas preocupado com a criança que carrego. Só

isso lhe interessa.

É irónico: a pessoa que impôs a lei do filho único e que obriga as

mulheres a abortar caso tenham uma segunda gestação, é a mesma que

me impediu de interromper a gravidez. «Daqui a cinquenta anos, pode

não haver água, comida, planeta! O que será desta criança?»,

perguntava eu. «Viverá neste nosso oásis» respondia ele. «Seremos

invadidos por quem está do lado de fora e não tem nada», argumentava

eu. «Faremos muros mais altos», ripostava ele. Deve ser o incontrolável

orgulho de macho a prevalecer. O desejo de perpetuar o poder nas

mãos de um filho, ele, que agora se vê como um rei. Como é que eu

poderia confessar-lhe que os meus argumentos eram apenas desculpas

para não ter um filho dele? Como é que eu poderia confessar-lhe que me

sentia como se aquele filho que carregava fosse fruto de uma violação?

Que agora, quando tremia ao seu toque, era por medo, e não por
desejo. E ele a acariciar-me a barriga. E eu a afastar-me, fingindo estar

enjoada.

Quase todos os dias, desde há umas semanas, obriga-me a ir para um

cubículo com uma abertura circular, na qual enfio a barriga para que

me possa tocar sem me encarar. Encosta os lábios à minha pele e fala

com ternura para o filho. Há dias em que me apetece atirar o cubículo

ao chão e obrigá-lo a olhar-me nos olhos; mas há outros em que me

deixo comover pelas suas palavras e sinto saudades dos tempos em que

nos amávamos no esconderijo da quinta, onde adormecíamos

abraçados e víamos o sol nascer por entre os arbustos. São apenas as

hormonas, bem sei. O meu coração está vazio. Há muito que deixei de o

amar.

No outro dia, dirigiu-me a palavra pela primeira vez desde o dia em

que me enfiou aqui. Disse que vou ter de desfilar na grande parada de

aniversário. Que tenho de estar sorridente e não tentar nada estúpido.

Que vai haver uma recepção depois, onde terei de ir e acenar e evitar

responder ao que quer que seja. Acima de tudo, tenho de me mostrar

imensamente feliz e dar-lhe a mão. Deu estas instruções num tom

mecânico, o mesmo que usaria com um qualquer soldado que nunca

tivesse visto antes. Gelo também na sua voz.

Vai matar-me, sei-o bem. Selei o meu destino naquela noite em que

tentei salvar o avô e o neto. A Maria estava na carrinha e assistiu a

tudo. Foi quem deu a ordem para me algemarem logo ali.

— Sabes a merda que podias ter provocado? Quem é que pensas que

és?

— Não ia deixar uma pessoa morrer só porque uns estúpidos

decidiram brincar às Brigadas Verdes.


— Foram estes estúpidos que nos deram a vitória, sua besta! Foram

estes estúpidos que andaram nas ruas a gritar por nós, a proteger-nos, a

levar a cabo verdadeiras mudanças!

— Tem de haver bom senso! Não se pode andar por aí a matar

inocentes!

— Aqui não há inocentes, nem culpados. Quando muito, há danos

colaterais. E regras que têm de ser cumpridas escrupulosamente.

— Todas as regras podem ter uma excepção.

— Não as nossas. Além disso, podias ter levado um tiro, sua imbecil!

— Desculpa, não me contive…

— Desculpas, vais ter de pedir ao Paolo. Eu sempre soube que não

tinhas maturidade para isto, desde o primeiro dia. Falas muito bem,

escreves muito bem discursos e é só. Devias ter ficado sempre nos

bastidores, mas não, tinhas logo de dormir com ele, enfeitiçá-lo com

esse palminho de cara que é agora símbolo da nossa Revolução. Para

mim, estás acabada. És um risco para o grupo e para a causa.

O Paolo achou o mesmo. Até essa noite, ainda ninguém sabia do

nosso segredo, mas ele fez gala em revelá-lo a toda a direcção, para que

soubessem, sem sombra de dúvida, que nem a minha gravidez o

impediria de me castigar. Pelas minhas contas, tenho entre duas a

quatro semanas de vida. O tempo que falta até a minha Ervilha nascer.

Talvez me matem logo ali, na sala de parto. Ou talvez me deixem viver

mais um pouco para amamentar a criança. Mas matar-me-ão, não

tenho dúvidas. Não me importo. Eu mereço. Por todo o sangue de

inocentes que mancha estas mãos. Por ter achado que depois da

Revolução viria a paz. Por não ter previsto que o poder corrompe.

Só tenho pena desta criança, que será criada por um louco sem

conhecer o amor de uma mãe. São poucas as memórias que tenho da


minha. Conto pelos dedos os momentos que consigo recriar, porém,

recordo-me bem do seu amor. Sei que me amou com todas as suas

forças e que preferiu morrer a estar um dia que fosse longe de mim. Já

eu, nunca terei essa oportunidade. Não faço ideia do que o Paolo irá

contar ao nosso filho sobre mim. Já que lhe vai mentir acerca das

circunstâncias da minha morte, espero que invente uma mentira doce. E

que lhe mostre estes cadernos, onde todos os dias lhe conto histórias

bonitas e lhe confesso o meu amor.


á muito tempo que não dormia tão mal. Demasiados sonhos,

H demasiado reais. Dói-me o corpo e a alma. Só quero ficar aqui na

cama, enrolada na penumbra e no lençol, como fazia no quarto da quinta

onde a Salete me instalou. Depois do trabalho, tomava um banho,

ajudava com o jantar, comia com quem estava e seguia para a cama. Não

lia, não via televisão, não jogava às cartas. Limitava-me a retirar-me para

dentro de uma bolha onde não cabiam conversas nem sorrisos. Não me

apetece levantar, mas sei que tenho de manter uma rotina insuspeita e

aproveitar a hora da água para tomar um duche. Um minuto e trinta

segundos certos. Todas as torneiras têm temporizador. Mais uma razão

para continuar a usar o cabelo curto. Cada vez mais mulheres o fazem,

na verdade. Já para não falar das que continuam com as cabeças rapadas

como os nossos queridos ídolos da Revolução. Também voltou a ser

moda as tranças e os lenços na cabeça, não sei se para evitar ou

esconder a sujidade. As mulheres de hoje parecem saídas das fotografias

que eu via em casa da minha avó.

A água tépida dá-me um pouco de energia. Ligo a música e tiro um

café. Deixo outro já tirado para a hora de almoço. Aprendi a bebê-lo

frio, não por gosto, mas porque não tenho outro remédio. Electricidade

não é quando se quer, é quando se pode. E acho que ainda vai demorar

muito tempo até todos os prédios serem completamente alimentados por


energias renováveis e acabarem estas limitações. Se é que vão acabar.

Desço até à loja e saboreio o café ao balcão, depois de abertas as grades.

O sol da manhã banha o espaço com uma tonalidade dourada, que

condiz com o amarelado das folhas dos livros. Adoro o sol da manhã. E

com isto fico um pouco mais bem-disposta.

O primeiro cliente a entrar na loja é um senhor que nunca vi antes por

aqui. Traz dois livros debaixo do braço, que deve querer vender ou trocar

por outros. Deixo-o à vontade, como sempre. Parte do prazer de entrar

num alfarrabista é poder apreciar e manusear os exemplares que cobrem

cada prateleira, com tempo e sem ninguém a interromper o percurso que

os olhos fazem pelas lombadas. Tento abstrair-me, mas não consigo

deixar de sentir que o homem me olha de alto a baixo, escondido atrás

de uma das estantes. Sinto um frio na barriga. Começo a achar que é

uma Mosca, só pode. Uma gota de suor escorre-me pela testa. Imagino

que me vai apanhar em falso e obrigar a contar tudo. Não vou aguentar

se me levarem outra vez para uma sala de interrogatório. Vou revelar

quem sou, porque me escondi, onde fui ontem, com quem estive, que

planos têm. Não vou hesitar, nem fazer-me difícil. Faço um juramento à

bandeira, peço perdão, o que eles quiserem, desde que não voltem a

deixar-me abandonada numa cela, não voltem a amarrar-me a uma

cadeira, não se riam enquanto testam até onde aguento a dor. O homem

dirige-se ao balcão. Sorrio e tento parecer calma. Pergunta se pode

trocar os dois livros que traz na mão por outros dois que tirou da estante.

Digo logo que sim, sem sequer ver muito bem que livros quer deixar e

que livros quer levar. Se calhar, vou ficar a perder. Suspiro perante o

meu pedantismo. O que é que isso interessa? Um livro é um livro.

— Desculpe, estava a olhá-la insistentemente, não me leve a mal —

começa por dizer o homem —, mas é que eu era cliente do Joel e estava
a tentar perceber se tinha alguma parecença com ele. É a neta, não é?

— Sobrinha-neta.

— Ah, pois, bem me parecia que ele não tinha filhos. Como está o

meu amigo?

— Está óptimo — menti. — Gostou mais de voltar à terra do que

imaginara e agora não quer outra coisa. Não volta tão cedo.

— Ah, fico feliz por ele, mas tenho pena. Era um excelente livreiro,

homem sábio, nunca me aconselhou um livro de que eu não tivesse

gostado. Era como se soubesse exactamente o que eu precisava de ler em

cada altura.

— É verdade, também sinto o mesmo. Às vezes, telefono-lhe só para

pedir uma sugestão de leitura — volto a mentir, se bem que apenas na

parte de telefonar ao Sr. Joel, a outra é mesmo verdade: ele dava-nos

sempre excelentes sugestões de leitura e parecia ter um conhecimento

infinito da Literatura.

— Ah, então quando voltar a falar com ele, diga-lhe que esteve aqui o

Zeca e pergunte-lhe o que devo ler a seguir.

— Claro, esteja descansado — asseguro eu, tentando decorar os livros

que o homem leva com ele para tentar perceber o género de que gosta.

Mesmo que seja uma Mosca, tenho de manter a minha personagem.

— Adeusinho, menina.

— Joana. Sou a Joana.

— Adeusinho, Joana — disse o homem, lançando-me um quase-

sorriso.

Tenho as mãos a tremer, escondo-as atrás das costas. A dúvida é o

pior dos tormentos e eu continuo sem saber lidar com ela sempre que

interajo com alguém. Tento racionalizar cada gesto e cada palavra

trocada com o homem. Por um lado, acho que se fosse Mosca não ia
dizer-me o nome, mesmo que falso, nem perder tempo a falar de livros.

As Moscas só observam, não interagem. A não ser que estivesse a tentar

ganhar a minha confiança, para ver se me descaio com alguma

informação. Por outro lado, mesmo não sendo uma Mosca, se conhecia

o Sr. Joel, pode saber que ele não tem sobrinha-neta nenhuma e, nesse

caso, será inequivocamente uma questão de tempo até me desmascarar e

denunciar às autoridades. Estou feita. E paranóica. Cada pessoa que

entra na loja a seguir, parece-me suspeita. Homens e mulheres, novos e

velhos, sinto que todos me olham e julgam, esperando apenas por um

mínimo deslize meu. Quero que o dia acabe depressa. Pôr trancas à

porta. Quero voltar a ter paz.

Estava conformada, até o Max ter reaparecido na minha vida… Após

seis meses na cidade, já me tinha habituado a esta rotina cheia de

pequenos nadas, todos os dias iguais, excepto o domingo, que, não sendo

igual aos outros dias, era igual ao domingo anterior e também ao

seguinte. Limpar a casa, fazer compotas, ler sem interrupções. Não dar

conversa, evitar a intimidade, passar despercebida, esperar para ver o

que isto dá. Até o Max ter reaparecido, não tinha noção do quão segura é

a ignorância, do quão fácil é viver resignado. Só que agora sei que

debaixo dos meus pés algo se agita e floresce. Debaixo dos meus pés há

esperança ou, pelo menos, um longo túnel para um lugar onde não há

Moscas, nem Morcegos, nem pessoas levadas de casa a meio da noite.

Agora que sei da existência dessa outra dimensão, o meu coração agita-

se e começa a provocar pequenas faíscas, activando circuitos que já não

me lembrava de possuir. É uma questão de tempo até um fogo deflagrar.

Um fogo que pode matar. Que pode matar-me.

Talvez o Max tenha razão. Talvez não me reste mais nada senão

juntar-me a ele e partir. Não vou conseguir viver neste constante


sobressalto. Depois do que vi lá em baixo e do que sei que estão a

planear, nada será como antes. Mas como é que posso avisá-lo de que

estou disposta a regressar à Casa do Lago e ouvir o que pretendem fazer?

Quem deixará o portão destrancado? E, ainda que consiga entrar, como

encontrarei a galeria no meio daquela escuridão dos túneis? Se fosse

fácil, já os tinham descoberto. Vou ter de esperar que ele volte a

procurar-me. Depois de tanto tempo não me vai deixar fugir à primeira

contrariedade, tenho a certeza.

Max, eu consigo perdoar-te, por favor, vem buscar-me. Não me deixes

sozinha outra vez…

Agora parece que o tempo não passa.

Agora parece que tudo estagnou.


Billie saiu daqui transtornada. Não era minha intenção deixá-la

A assim. Mas haveria outra maneira de lhe contar o que se passa?

Deveria ter deixado que falasse primeiro e me contasse tudo aquilo por

que passou nestes anos? Terei sido demasiado intenso, insensível?

Agora que penso nisso, talvez sim. Mas nós nunca tivemos rodeios um

com o outro, seria estranho falar de outra maneira, com paninhos

quentes ou aquele cuidado com que se fala com alguém com quem não

temos grande confiança. Por outro lado, a verdade é que se passaram

três anos. Já não somos as mesmas pessoas que se separaram no meio

de uma multidão. Tudo aquilo que vimos e vivemos durante este tempo

deixou marcas e talvez tenha criado uma barreira que nunca tivemos

entre nós. Talvez sejamos de facto dois estranhos…

De uma coisa tenho a certeza: perdemos a inocência. Dá-me vontade

de rir quando recordo como éramos no tempo dos Estudantes Pelo

Planeta. Cheios de ideias e a crença inabalável de que o mundo podia

mudar com palavras de ordem gritadas nas ruas, petições ao governo,

cortes de estradas, ocupação de edifícios. Nisso, o Paolo tinha razão, há

que admitir: é por demais evidente que as coisas só mudam

verdadeiramente com uma revolução. O caminho já nessa altura estava

a ser traçado, tenho a certeza. A ida dele à nossa reunião tinha um só

objectivo: angariar seguidores para a sua causa radical. Conseguiu


convencer a melhor de nós. Não é por acaso que tudo lhe correu tão

bem.

A Billie decerto ficou a achar que só permaneci aqui até agora para

tentar salvar a Laura. Não podia estar mais longe da verdade. Estava a

ser completamente honesto quando lhe disse que a raiva e a desilusão

desfizeram qualquer sentimento que tenha tido por ela. E claro que sei,

e nunca esquecerei, que a Laura, ainda que possa ter tentado suavizar

as Brigadas Verdes, foi uma das figuras centrais na conquista dos

apoiantes da causa. Está muito longe de ser inocente. O que não

invalida que se tenha arrependido ou que queira fazer alguma coisa

para travar o curso que as coisas tomaram. Eu vi o choque dela quando

os soldados mataram o rapaz e, depois, os outros homens. Vi como se

encolheu e engoliu em seco. Vi como estava aterrorizada. Mas, sim,

posso estar enganado… aquilo pode ter sido apenas uma reacção do

momento e a Laura estar empenhada em ser perdoada pelo Paolo e

voltar à cúpula do poder. Pode perfeitamente mandar prender-nos assim

que lhe contarmos o nosso plano. Pode estar tão cega, que não se tenha

dado conta de que tem a vida em risco. Ainda ponderei em só falar da

Laura depois de a Billie confirmar que se queria juntar a nós, mas

tenho a certeza de que teria sido pior. Não havia uma maneira de fazer

isto sem, de alguma forma, a magoar.

Já sabia que era ela quem estava no alfarrabista há cerca de dois

meses, mas não a quis pôr a par do plano até que este estivesse bem

fechado. Passei por lá por mero acaso, numa das raras idas diurnas à

cidade. Há muito tempo que não passava naquela rua, muito menos

durante o dia, e as grades levantadas chamaram-me imediatamente a

atenção. Inicialmente, ainda pensei que o Sr. Joel tivesse voltado. A

confusão dos primeiros tempos estava sanada, cada cidadão já


conhecia bem os seus deveres e obrigações, e uma loja com livros

antigos e manuseados era um negócio muito bem visto pelas

autoridades. Refreei a tentação de entrar e abraçar aquele velho amigo,

tendo optado por observar à distância, meio escondido pelos arbustos

que floriam do outro lado da rua. Fiquei surpreendido quando, em vez

do homem magro e curvado, cabelo de prata e óculos de aros finos na

ponta do nariz, vi uma mulher a passar atrás do balcão. Quem seria a

jovem? O Sr. Joel não tinha família e jamais iria confiar os seus

preciosos livros a uma empregada. Teria alguém simplesmente invadido

o espaço e reclamado como seu, como tanta gente fez a outros negócios,

cujos donos teimavam em não reaparecer?

Entrei no café em frente, pedi um sumo para disfarçar e deixei-me

ficar na mesa junto à janela a tentar perceber quem seria aquela

mulher. Vi-a aproximar-se da montra, olhando melancolicamente para o

vazio. O cabelo acima do queixo, os óculos de massa demasiado

grandes para o tamanho do seu rosto e, de repente, um cruzar de braços

que me era demasiado familiar. Parecia mesmo a Billie. Senti um aperto

no estômago. Olhei com mais atenção para aquela mulher perdida nos

seus pensamentos. Os lábios finos, o pescoço longo… era mesmo a

Billie! Quase não contive um grito, ali mesmo, no meio do café! Quis

acenar, quis entrar, quis abraçá-la, por fim. Mas depressa me lembrei

de todos os perigos que isso acarretaria e decidi não o fazer. Regressei

para o subterrâneo a matutar nas razões que a levaram a não me

procurar.

Tínhamos combinado na Casa do Lago. Todos os dias eu arriscava

tudo, a minha vida e a dos outros companheiros, para ir até ao pequeno

portão das traseiras em busca de um vestígio dela. Todos os dias desde

há quase três anos e, afinal, ela estava ali, viva, inteira, serena, sem
nunca me ter procurado. Perguntei-me se seria pró-regime. Se refizera a

vida como quase toda a gente, esquecendo tudo o que acontecera antes.

Se simplesmente não me queria reencontrar. Através dos meus

informadores depressa descobri que dava pelo nome de Joana e se dizia

sobrinha-neta do Sr. Joel. Só aí consegui respirar de alívio.

Aparentemente, havia uma razão para não me ter procurado e outra

mais profunda para estar a viver sob uma identidade falsa. Foi isso que

me fez acreditar que estaria do nosso lado, assim que soubesse da nossa

existência. Foi isso que me fez pensar na melhor forma de a fazer vir até

mim sem a colocar em risco. Talvez esta não tenha sido a melhor opção,

admito. Talvez devesse mesmo ter entrado loja adentro, fechado as

grades, descido até à cave e dizer-lhe tudo o que lhe disse, mas num

lugar onde se sentia segura. Só nós os dois, a noite inteira pela frente,

sem pessoas estranhas e túneis desalumiados. No entanto, tive medo de

arriscar.

Acredito que possa estar confusa e zangada, mas sei que conseguirei

fazê-la ver que não há outra solução. Temos de sair daqui com a Laura

do nosso lado e desmascarar este governo, que tem conquistado a

admiração de tanta gente, dentro e fora de portas. O Sam diz que,

noutros países, começa a haver manifestações de solidariedade para

com as Brigadas. Multidões a pressionar os seus governos para que

tomem medidas idênticas, fascinados com o tanto que se conquistou em

tão pouco tempo. Sabemos que muito do que circula lá fora é

manipulado cá dentro, feito para tocar no coração das massas,

potenciado pelo poder sem filtro das notícias falsas veiculadas

livremente nas redes socias. O Paolo desdobra-se em entrevistas a

grandes cadeias noticiosas internacionais, envia imagens e dados e

números impossíveis de ignorar, ainda que, quando deixa algum


jornalista estrangeiro entrar, este seja cautelosamente vigiado e

encaminhado para os lugares mais luminosos deste domínio. Nesses

dias, não há Moscas nem Morcegos a circular. Corre até o rumor de

que as Brigadas Verdes vão ser nomeadas para o Prémio Nobel da Paz,

dá para acreditar? Nem tive tempo de contar isso à Billie. Prémio Nobel

da Paz! Qualquer dia os terroristas somos nós! Morreremos aqui ou

morreremos lá fora, párias a quem ninguém dará asilo.

Amanhã vou enviar-lhe outra mensagem. Estamos a ficar sem tempo.

A grande parada de aniversário é dentro de dias e é o único momento

em que vamos poder ver a Laura em carne e osso. Tenho a certeza de

que vai aparecer na parada de aniversário, claro, o povo assim o exige.

É a nossa última hipótese. O plano vai para a frente com ou sem a

Billie. Eu preferia que fosse com ela ao meu lado. Ficarei devastado se

escolher ficar…
enho umas olheiras até ao queixo, reparo agora. Não que costume

T ligar à minha aparência, longe disso. Tenho fugido dos espelhos a

sete pés. Sou a Joana, e no reflexo da Joana há muito que não cabe a

Billie. No entanto, desde que voltei do encontro com o Max, tento

encontrar-me por detrás da tez pálida, dos cabelos brancos que,

entretanto, despontaram apesar da minha idade, da ruga de preocupação

que se formou entre os olhos. Estar com ele abriu o alçapão do lugar

onde tenho estado escondida. Escondida de mim própria e das

recordações a que não quero voltar.

As olheiras não são só destas últimas noites mal dormidas, sei-o bem.

São de meses e meses a viver em sobressalto, sempre a desconfiar de

cada pessoa que olha para mim. De dia, o coração dispara assim que o

pequeno sino atrás da porta soa, anunciando a entrada de alguém. De

noite, acordo ao primeiro ranger do piso ou com passos na escada,

imaginando umas botas cardadas a arrombar a porta a meio da noite,

como fizeram com a minha vizinha de cima naquela vez.

Estou exausta. Não tenho conseguido fazer nada e estou atrasada no

trabalho para o Armazém Comunitário. Tenho três dias para ir apanhar

os figos que já pesam na figueira do quintal, cozinhar, esterilizar os

frascos, derramar neles a compota e esperar que esfriem naturalmente.

Esta noite, sem falta, tenho de o fazer. Também preciso de ir à mercearia


comprar pão, bebida vegetal, lentilhas, uma vela. O problema é que não

quero abandonar a loja nem por um minuto, pois temo que o Max, ou

seja quem for que ele envie com instruções para um novo encontro, bata

com o nariz na porta. Sei que ele não vai desistir de mim…

Por fim, decido ir à mercearia à hora de almoço. Não demoro mais de

quinze minutos. No caminho de regresso, porém, a um quarteirão de

casa, vejo um Morcego parar no meio da praça. Fico sem pinga de

sangue, certa de que vieram buscar-me. A porta abre-se, mas, em vez de

soldados a marchar na minha direcção, saem lá de dentro três homens

com ar maltrapilho e um cheiro nauseabundo. Respiro de alívio. Decerto

são cidadãos prevaricadores, a regressar de um castigo na lixeira para

agora fazerem o seu caminho da vergonha até casa, perante os olhares

críticos e os apupos dos transeuntes. É o castigo para quem coloca lixo

reciclável no lixo comum. Há cães treinados para farejar os caixotes do

lixo e é relativamente fácil localizar os infractores, embora, volta e meia,

haja enganos. Ou pessoas que colocam o lixo no contentor dos outros

para os incriminarem e se vingarem de algo insignificante. Quezílias de

vizinhos. Há gente para tudo, mesmo neste país tão limpo e tão verde…

É por isso que evito sair. É por isso que tenho mesmo de me juntar ao

Max. Não posso continuar a viver assim. Não quero…

Volto para a loja cabisbaixa, evitando olhar para a cara da Laura

estampada em tudo o que é parede. Estão a levar isto da Parada de

Aniversário muito a sério. Demasiado a sério. Fomentar o orgulho

nacional.

Pouco depois de reabrir a loja, o rapaz aparece. No mesmo hoodie

cinzento, no mesmo andar apressado. David, parece-me que foi esse o

nome que o Max disse. Não consigo disfarçar a minha felicidade. Desta

vez, traz um livro na mão e dirige-se directamente ao balcão, em vez de


deambular entre as estantes. Pousa o exemplar sobre o tampo gasto de

madeira. Leio o título de imediato: Amanhã a Esta Hora, de Emma

Straub. Levanto os olhos, espantada, e vejo que o rapaz me fita sem

revelar qualquer emoção. Olho para o relógio. São 15h05.

— Temos de fingir que estamos a conversar — diz ele, por fim.

— Sim, claro — gaguejo. — David, não é?

— Podes gesticular mais.

— Desculpa.

— Não faz mal. Preciso de uma resposta. Não tenho muito tempo.

— Na verdade, tenho aqui um livro que serve de resposta. Podes levá-

lo?

— Posso.

Estendo-lhe um exemplar do Nunca Me Deixes, de Kazuo Ishiguro, ao

qual junto um sorriso. O David levanta o braço, num gesto de

agradecimento e vai-se embora. Não sei quanto tempo fiquei a olhar

para a porta a sorrir. Espero que ninguém tenha reparado. Eu sabia que o

Max não ia desistir de mim. Amanhã, precisamente às 15h05, estarei ao

portão da Casa do Lago.

Passo o resto da tarde a fazer uma lista mental de coisas que devo

colocar na mochila que tenciono levar comigo (um lápis previamente

afiado, o meu único caderno, escova de dentes, roupa interior, algumas

T-shirts), e outra lista com coisas práticas que devo fazer antes de sair,

como desligar o quadro eléctrico, fechar as grades à chave, em vez de me

limitar a baixá-las como habitualmente, esvaziar o frigorífico e levar o

lixo para o contentor. Sei que não voltarei aqui. Não posso deixar

alimentos que se possam estragar. Depois lembro-me de que, quando

amanhã não abrir a loja todo o dia, as Moscas vão reparar. Não é

desejável fechar qualquer tipo de negócio sem aviso prévio bem


justificado. Ao início, vão dar-me o benefício da dúvida: posso ter ido ao

Armazém Comunitário, do outro lado da cidade, a uma consulta ou

estar, simplesmente, no piso de cima a convalescer de uma qualquer

indisposição. Ao segundo dia, porém, vão tocar à campainha e, não

abrindo eu a porta, começarão a fazer perguntas aos vizinhos e aos

lojistas das redondezas. Ao terceiro dia, vão entrar na loja e no

apartamento, sem dó nem piedade. Será suspeito se não encontrarem

comida no frigorífico e a escova de dentes no seu lugar. É preferível que

pensem que saí e que me aconteceu alguma coisa. Um atropelamento,

uma queda num buraco, ou algo menos trágico como ter ido passar uns

dias a casa de alguém, um novo amor, quiçá… Até cruzarem a

informação, os alarmes de fuga não serão accionados e eu vou ganhando

tempo. Sim, é melhor deixar tudo como está.

Depois de fechar a loja e correr a grade, em jeito de despedida,

percorro cada estante, passando o dedo e os olhos uma última vez por

todos aqueles exemplares empoeirados, que têm sido a minha

companhia e salvação nos últimos meses. Espero que quem vier a ficar

com a loja lhes tenha tanto carinho como eu tenho. Num último

impulso, escolho levar um comigo: Ensaio sobre a Cegueira, de José

Saramago.

Chego ao portão da Casa do Lago precisamente à hora combinada.

Desta vez, por ser um dia de semana, cruzei-me com centenas de

pessoas pelo caminho. Será que alguma delas reparou em mim? Será que

alguém vai saber dizer para onde me dirigia, se mais tarde lhe

perguntarem? O senhor, por acaso, viu uma mulher de vinte e poucos

anos, cabelo castanho pelo queixo, óculos de massa, numa bicicleta

cinzenta? Claro que sim, seguiu pela direita, depois virou na terceira à
esquerda. Mais à frente outra testemunha dirá: claro que vi, ia nesta

direcção e, ao fundo da rua, virou à direita. E outra ainda dirá, com

certeza, vi uma mulher entrar com uma bicicleta cinzenta por aquele

portão velho, deve estar a tramar alguma, pois aquele terreno está

abandonado e assombrado há vários anos, só alguém muito suspeito

teria entrado ali. Afasto estes pensamentos, mas pelo sim pelo não, antes

de entrar no quarteirão da Casa do Lago, decido largar a bicicleta num

beco, troco de T-shirt, prendo o cabelo e deito os óculos falsos fora.

Andas a ver filmes a mais, diria o Max há uns anos se me visse nestes

preparos. Talvez. Mas isto não é um filme e sinto que devo ter todo o

cuidado possível.

São precisamente 15h05. Atravesso o portão e, sem fazer barulho,

caminho cautelosamente pelas ruínas até à sala das máquinas. Nada de

Max por aqui. Decido afastar o papelão e abrir a tampa de esgoto por

onde entrámos no outro dia. Não faço ideia se estará alguém lá em baixo

para me guiar até à galeria, pelo que o meu plano é avançar pela

esquerda, tacteando a parede até encontrar uma abertura que me permita

virar à direita. Acho que depois disso não virámos em mais lado

nenhum. Mas como saber onde está a parede falsa? O melhor é ficar

aqui, junto às escadas até alguém me vir buscar. Perder-me num

labirinto de túneis, onde não vejo um palmo à frente do nariz, não é

muito inteligente. Ainda assim, decido descer às cegas, pé ante pé, até

que ouço a voz do Max:

— Estou aqui.

Quando chego aos últimos degraus, ele pega-me ao colo, encosta-me

à parede e beijamo-nos. A última vez que tinha beijado alguém foi numa

outra vida, por isso, este beijo tem o sabor e a surpresa de um primeiro.

Sinto um formigueiro no lábio inferior, um arrepio na barriga e a


ausência absoluta de som, como se estivéssemos dentro de uma bolha, a

flutuar rumo a uma outra realidade. Quando nos largamos, não trocamos

uma única palavra. Não consigo ver a cara dele e ainda bem que ele não

consegue ver a minha, porque me sinto corar como uma adolescente.

Não sei o que nos deu, nem o que pensar daquilo. Provavelmente foi o

entusiasmo de estarmos juntos outra vez, de eu ter aceitado fazer parte

desta última aventura, que será mesmo definitiva, visto que, ou

conseguimos cumprir cada passo e saímos vivos disto, ou seremos

apanhados e executados exemplarmente. Não tem qualquer interesse

ficar a matutar nisso agora. Não posso voltar atrás. Limitamo-nos a

avançar pelo túnel de mãos dadas, seguindo a quase inexistente luz da

lanterna do Max, até que, por fim, chegamos à galeria, onde dois dos

companheiros dele, a Rita e o Luís, nos esperam para me porem a par do

plano. Os outros já estão a preparar a sua parte na superfície.

— Temos três hipóteses possíveis — explica-me o Max, quando

percebe que eu continuo com muitas dúvidas em relação ao plano. — A

primeira é aceitar esta nova ordem e viver resignadamente num país

totalitário, mas em profunda regeneração ambiental, na esperança de

que, dentro de pouco tempo, seja permitido formar novos partidos

políticos e disputar eleições livres. A História mostra-nos que tal nunca

acontece. O mais provável é que as Brigadas ganhem as eleições, vendo-

se ainda mais legitimadas pelo voto popular. A segunda hipótese é fugir

daqui sem salvar mais ninguém, vivendo com o peso na consciência de

não ter feito nada, cúmplices com o nosso silêncio. A terceira é fugir

daqui, mas levando connosco a Laura, que será a prova de que este é um

regime repressivo, que diariamente atropela os direitos dos seus

cidadãos.
— E em que é que isso vai mudar alguma coisa? — interrogo. —

Quantos países do mundo reprimem e torturam os seus cidadãos sem

que a comunidade internacional possa ou queira fazer alguma coisa?

Quantos países do mundo tiveram ditaduras durante três, quatro, cinco

décadas, sem que os dissidentes asilados tenham conseguido mudar o

que quer que fosse? A não ser que as Brigadas Verdes comecem a

invadir os países vizinhos, ninguém vai mexer uma palha para ajudar

quem aqui ficar.

— Então desistimos? Salvamo-nos e esquecemos os outros? —

pergunta a Rita.

— Os outros não querem ser salvos. Vivem obedientemente felizes —

respondo.

— Ou resignadamente amedrontados.

— Eu concordo que a terceira é a opção menos má, mas não me

conformo com não podermos voltar para salvar mais ninguém… —

confesso. — Assim que as Brigadas perceberem que levámos a Laura,

vão levantar pedra por pedra até descobrirem como o fizemos e,

consequentemente, vão descobrir o túnel. Este e os outros todos de que

me falaste e que têm servido para o contrabando. Vamos estar a isolar

cada vez mais todos os que ficarem.

— O problema é que temos a informação de que já alguém levantou a

suspeita da existência de túneis — explica-me o Max. — É uma questão

de tempo até nos descobrirem. E quando digo tempo, estou a falar de

poucos dias. Basta meia dúzia de drones com câmaras termográficas e

uns cães pisteiros para nos encontrarem num par de horas. Acho que só

ainda não o fizeram porque todos os meios de segurança estão a ser

canalizados para a parada. Se ficarmos mais tempo, seremos todos

executados. Se sairmos agora, temos pelo menos a hipótese de agitar as


coisas. Temos a hipótese de dar voz a quem fica — conclui ele,

agarrando as minhas mãos.

Olho-os um por um. Vejo nas suas caras que esta é uma discussão

antiga, e eu não estou a trazer para a mesa nenhuma perspectiva nova.

Decerto que todos eles, bem como os outros elementos que não estão

aqui agora, já debateram estas e outras hipóteses que, entretanto, se

perderam. É impossível contornar as Moscas, é impossível combater a

propaganda diária, é impossível tentar convencer o povo de que

estaríamos melhor sem as Brigadas e fazer uma contra-revolução. Sim,

eles têm razão. A única forma de ajudar quem fica é revelar o que se

passa. Mostrar ao mundo que os fins, por mais nobres que sejam, não

justificam os meios. E fazê-lo lá de fora, em relativa segurança, num

lugar onde possamos voltar a fazer ouvir a nossa voz.

Com clareza e determinação, põem-me a par de cada passo do plano.

Avançamos amanhã.
asso a noite abraçada ao Max. Quero decorar-lhe o cheiro, o ritmo a

P que respira, a textura da pele. Quero conseguir ver de olhos

fechados a linha do seu maxilar, o contorno dos seus braços, a falha

quase imperceptível no dente da frente. Se esta for a última vez que

estamos juntos, sei que tatuei cada minuto na minha memória. Voltarei a

ela sempre com ternura, esteja onde estiver, aconteça o que acontecer.

Às primeiras horas da manhã, a Rita acorda-nos com cuidado. Está na

hora de avançar. Cada um agarra na sua mochila e dirige-se ao seu

posto. Eu e o Max não nos despedimos. Aliás, ninguém se despede.

Seria como atrair a má sorte e admitir que existe uma forte possibilidade

de não nos encontrarmos em breve do lado de lá da fronteira. E nós

temos de chegar ao lado de lá. Cada um sabe de cor o que tem de fazer e

onde tem de estar a cada momento, a cada minuto. Tivemos de decorar

tempos, procedimentos, plano A e plano B de cada etapa, uma vez que,

durante todo o processo, não teremos como comunicar uns com os

outros. Vamos ter de andar com a máxima atenção, aguardar o momento

certo para dar determinado passo e esperar que não haja imprevistos.

Esperar também que do outro lado da fronteira esteja o Sam com a

carrinha de fuga pronta a arrancar. Não tive tempo de conhecer bem

nenhum dos elementos do grupo, mas confio em cada um deles como se

fôssemos família. Não há outra forma. É este o único caminho.


Ao início da manhã, deixo-me conduzir pelo Luís até à superfície.

Viemos por um caminho completamente diferente, mas ele desbravou-o

com a naturalidade de quem percorre estes túneis todos os dias. Antes

de subir, troco de roupa, para o célebre macacão verde que a maioria das

pessoas vai envergar para assistir à Grande Parada de Aniversário, e dou-

lhe um abraço. Ele fica surpreendido. Depois de me certificar de que não

há ninguém por perto, saio para a rua onde me espera um radioso dia de

sol. Na esquina dessa mesma rua está o David, também envergando a

mesma indumentária que eu. Sem o hoodie percebo que afinal não é tão

novo como eu pensava. Deve ter perto da minha idade. Seguimos de

mãos dadas, sorrindo e cantarolando, fingindo ser um casal apaixonado

que caminha despreocupadamente até à avenida por onde a Parada vai

desfilar. O início está previsto para as quatro da tarde, mas viemos cedo

porque é preciso garantir que fico junto da grade. Há pessoas a marcar

lugar desde as oito da manhã.

O tempo vai passando devagar e eu vou encarnando a personagem de

jovem activista que foi com o namorado assistir ao evento do ano,

descontraídos, anónimos, como milhares de outras pessoas. Permito-me

cantarolar com a multidão alguns hinos do regime, tentando esquecer

por breves instantes o verdadeiro motivo que me trouxe até aqui.

— Estás muito animada — diz-me o David ao ouvido, num tom

trocista.

— É suposto estar, não é?

— Nem pareces a mesma pessoa da livraria.

— E não sou, acredita. Aquela pessoa era a Joana.

— Compreendo. Aproveitei e comecei a ler o livro que mandaste, do

Ishiguro.

— E então, estás a gostar?


— Sim. Se bem que seja estranho ler sobre uma distopia quando

estamos a viver uma.

— Chiu!

— Ora, a maioria das pessoas não quer saber.

— Mas as Moscas ouvem tudo.

— Ya. Sei bem como elas trabalham. Os meus pais… — interrompe-

se, temendo ter ido longe demais.

— A sério?

— Fanáticos. Devem estar aqui, algures. Saíram de casa antes de

mim. Ficaram delirantes quando disse que também vinha.

— Tens o álibi perfeito, então!

Começamos a ouvir as trompetas anunciando o início do desfile. Fico

subitamente nervosa: a Parada está a subir a avenida e, dentro de

instantes, vou voltar a ver a Laura, em carne e osso, à minha frente.

Ainda não sei como vou reagir. Ainda sinto a raiva a ebulir dentro de

mim… estou mais nervosa com isso do que com tudo o resto que nos

espera.

Três carros alegóricos compõem a caravana. No primeiro vem a

banda, integrada numa bonita floresta tropical com árvores feitas de

papier mâché. Os músicos estão vestidos de flores e tocam melodias

alegres. O segundo carro é composto por um planeta gigante e

sorridente, rodeado de crianças envergando batas de todas as cores do

arco-íris, arrancando sorrisos a quem assiste e atirando flores de papel, o

que ao início me pareceu estranho, até agarrar numa e perceber que são

biodegradáveis e têm sementes no seu interior. Bravo, penso eu, a

atenção ao detalhe desta gente é esmagadora. O terceiro carro aproxima-

se, por fim, com os líderes das Brigadas Verdes, que são também os

membros que constituem o governo interino desde que o anterior foi


deposto. Três anos passaram e ainda ninguém fala de eleições, confiando

em oito fanáticos para nos governar. Tenho de parar com estes

pensamentos subversivos. Não me admirava nada que eles já tivessem

inventado uma máquina para os ler.

Este terceiro carro está decorado em forma de Arca de Noé, com

centenas de animais, também esculpidos em papier mâché, a

espreitarem em toda a volta, e, na proa, um grupo de indivíduos

endeusados, como exploradores que se lançam à descoberta de novos

mundos. São eles. Distingo imediatamente a Laura, num vestido branco

e esvoaçante, coroa de flores pousada na cabeça rapada, como uma

Iemanjá dos tempos modernos. Parece-me óbvio que está muito grávida,

mas quem não sabe da novidade talvez possa pensar que se trata apenas

de um vestido demasiado grande. Em circunstâncias normais, teria

havido um anúncio oficial da gravidez, para que o povo pudesse celebrar

o nascimento daquela criança, fruto do amor entre dois dos grandes

líderes. Porém, tal poderia ser visto como hipocrisia, uma vez que a

natalidade não é mesmo nada incentivada por estas bandas. Há pessoas a

mais e recursos a menos. Ao lado da Laura estão o Paolo e o Luc; atrás

deles, muitos outros cujos nomes desconheço, mas cujas caras já vi em

folhetos ou na televisão. O carro desliza pela avenida lentamente, para

que os seus ocupantes possam acenar e sorrir a todos quantos os vieram

ver. A multidão fica eufórica à medida que o conjunto se aproxima, grita

vivas e agita bandeiras freneticamente. Há pessoas emocionadas, que

não têm pudor em deixar cair as lágrimas. Outras que agem como fãs de

uma banda rock. Outras que cantam o novo hino nacional.

O carro encontra-se agora a cem metros de mim. É a minha deixa.

Tenho de me içar na grade e gritar por ela. Tenho de garantir que me vê.

O David concorda que ninguém achará estranho ouvir chamar por aquela
que ainda é o principal rosto da causa. Aqui e ali, já ouvimos pessoas a

chamar pelos nomes deles, dos líderes que tão sabiamente nos guiam

neste novo mundo cem por cento sustentável. Respiro fundo, encho os

pulmões e grito «LAURA», o mais alto que consigo. Como num sonho,

vejo-a voltar a cabeça na minha direcção. Os olhos espelham o espanto,

enquanto tentam localizar a voz que, decerto, reconheceu. «LAURA»,

grito de novo, até sentir a garganta arranhada. Levanto os dois braços e

aceno, e eis que o nosso olhar se cruza e humedece. Antes que ela tenha

alguma reacção que possa chamar a atenção dos outros ou dos

seguranças que vigiam o público a toda a hora, levo o indicador à boca

num gesto de silêncio. Depois, viro as costas e saio dali com o David

pela mão. Sinto que ela continua a seguir-me com o olhar, até ser

impossível alcançar-me. O primeiro passo do plano foi bem-sucedido.

Ela viu-me. Ela sabe que estou aqui e que tenho um segredo para lhe

contar.

Não tenho tempo para processar as emoções contraditórias que ver a

Laura me provocaram. Ainda bem que tenho alguém ao meu lado para

me chamar à realidade e dizer o que tenho de fazer a seguir. Sinto as

lágrimas a correr. Era a Laura. A minha Laura. Não aquela que aparece

nos cartazes e vídeos, cujo olhar não reconheço, mas sim a Laura do dia

da manifestação dos Estudantes Pelo Planeta, a saltitar pela rua de

sorriso rasgado. A Laura dos banhos na Casa do Lago e das tardes no

sofá, a ver filmes e a comer pipocas feitas na panela e polvilhadas com

açúcar e canela. Percebo agora o que o Max quis dizer. Também vi nos

olhos dela. Aquela mulher não é uma assassina sanguinária. Temos de

tirá-la daqui. Resta saber se ela vai querer vir connosco ou se prefere

morrer por este novo mundo que ajudou a criar. Limpo o rosto e volto a

colocar um sorriso. Temos de continuar dentro das nossas personagens.


Um casal de namorados. O David põe o braço por cima dos meus

ombros e aperta-me contra si.

A Parada de Aniversário desemboca num recinto que faz lembrar o de

antigos festivais de música. Sou invadida por uma onda de saudade. Os

bilhetes esgotaram há meses, pois é a primeira vez em anos que algo

parecido com uma festa acontece neste novo país. Há filas na entrada,

onde todas as pessoas são revistadas e identificadas, há barraquinhas a

vender comida e bebida, há um palco enorme onde irão tocar várias

bandas e uma zona VIP, onde os líderes e os seus convidados estarão a

assistir a tudo sem se misturarem com o povo. No entanto, não é para a

longa fila da entrada que nos dirigimos, mas sim para a zona reservada à

entrada do pessoal, onde um homem e uma mulher nos esperam,

apreensivos. Entramos numa carrinha de catering e trocamos de roupa e

de documentos de identificação com eles, que depressa viram costas e se

misturam entre os transeuntes. Afinal, a Resistência tem mais braços do

que eu imaginava. Só ainda não percebi o que estas pessoas ganham em

nos ajudar. Senhas extra para comida? Produtos do mercado negro?

Ajuda para fugir? Saberão que não pretendemos regressar? Que depois

de tirarmos a Laura daqui não voltaremos para resgatar seja quem for?

Nós corremos o risco de ser apanhados durante a fuga, presos, fuzilados,

mas eles, enquanto cúmplices, não terão destino melhor. O que os levará

a ajudar-nos? Comovo-me com a sua bondade. Só pode ser isso, uma

enorme compulsão por fazer algo de bom pelos outros. Havia esquecido

que isso ainda podia existir.

Temos as fardas de limpeza, as credenciais e, no caso do David,

também um bigode falso, que o aproxima vagamente da figura do sujeito

que está a substituir. Passamos os cartões de identificação pelo


torniquete, que abre imediatamente. Suspiro de alívio. Sem falar com

ninguém, dirigimo-nos à zona VIP, mostramos a identificação ao

segurança que está de guarda àquela entrada, olhando

despreocupadamente em volta. Temos de evitar o contacto visual, mas

não demasiado, para não dar nas vistas. O homem observa-nos da

cabeça aos pés, as fotografias dos cartões foram propositadamente

sombreadas. No final, deixa-nos passar. Decido dirigir-me logo às casas

de banho, evitando que os olhos dos outros pousem em mim. Mantenho-

me ocupada a limpar cada pingo de água, a dobrar cada ponta de cada

rolo de papel higiénico, a esvaziar cada caixote do lixo de cada cubículo.

Tento andar escondida, não vá aparecer algum responsável pelo pessoal

que me mande sair. Não posso sair enquanto ela não chegar. Pouco

depois, começo a ouvir um burburinho e, logo a seguir, o som de

inúmeros flashes a disparar. A Laura entra finalmente na sala,

provocando toda aquela agitação. Não há quem não queira ser visto ao

seu lado. Saio da casa de banho e deixo-me ficar junto à porta,

aguardando que olhe para cá e me veja. Sinto as pernas a tremer.

Ali, naquele círculo restrito de pessoas muito importantes, há quem

repare na barriga proeminente e lhe dê os parabéns. Paolo enlaça-lhe o

braço, para que não restem dúvidas de que são um casal unido e aquele

filho é seu. Acima de tudo, há que manter as aparências. Até lhe dá jeito

que a notícia se espalhe neste final de gravidez. Se realmente planeiam

matá-la assim que der à luz, podem sempre desculpar-se com uma

complicação no parto. Que história maravilhosa para alimentar o mito:

Paolo, sozinho com um filho nos braços, depois de lhe ter morrido o

grande amor da sua vida. Que história comovente para criar empatia

com os seus súbditos.


Tento colocar-me no campo de visão da Laura, mas é como se a farda

das limpezas me conferisse um manto de invisibilidade. As pessoas

passam por mim e pelas outras serviçais como se não estivéssemos lá ou

como se fôssemos mais uma peça de mobília: visível, mas com a qual

não devem interagir. Começo a ficar impaciente. Lanço um olhar ao

David, indicando que não sei o que devo fazer. Pode passar-se uma hora

até ela decidir vir à casa de banho e eu não vou poder estar uma hora

aqui especada. Arriscando ser posto na rua, como logo acaba por

suceder, ele passa pela Laura e entorna um copo de vinho no seu colo. O

Paolo começa a desancá-lo à frente de toda a gente, insultando-o e

expulsando-o da tenda, «onde já se viu um empregado de limpeza

misturado com os convidados, quem lhe deu ordem para andar aqui,

alguém chame imediatamente o responsável pelo pessoal». Entro em

pânico. A Laura tenta acalmá-lo, que foi sem querer, que deixe estar, que

não faz mal, que é só uma bebida e o vestido seca num instante. Paolo

dá um trago na bebida e encolhe os ombros, continuando a conversar

com as pessoas que o rodeiam, disfarçando os laivos de tirano, já que

estão por ali tantos jornalistas. Finalmente, a Laura levanta-se e dirige-se

para aqui. Antes que ela entre, começo a expulsar as senhoras que

estavam na fila, com a desculpa de que tenho de limpar as sanitas.

— É só um minuto, não demora mesmo nada — digo eu,

empurrando-as para fora dali, aguardando que Laura chegue à porta.

— Posso entrar só para limpar o vestido? — pergunta ela, sem me

reconhecer.

— Entre, sim — respondo eu, colocando o sinal de «em manutenção»

no lado de fora da porta.

Ela levanta, então, os olhos do vestido e vê o meu reflexo no espelho,

empalidecendo no mesmo instante. Murmura o meu nome, mas não a


deixo falar, apenas a envolvo num abraço. É difícil concentrar-me e não

desmoronar perante o seu cheiro e a barriga de grávida comprimida

contra a minha. Tenho o súbito impulso de me ajoelhar e encostar a

cabeça nela para tentar sentir aquele que deveria ter sido o meu afilhado

desde o primeiro minuto. Cerro os dentes e esforço-me para visualizar o

Max e os outros na galeria, no dia em que os conheci: pálidos de uma

vida passada debaixo de terra, subnutridos, exaustos, mas nem por um

instante hesitantes quanto à decisão que acabámos de tomar, tão

imprudente quanto irreversível. Não posso quebrar agora. Não é hora de

redenção. Segredo-lhe ao ouvido as instruções que tenho para lhe dar.

— Corres perigo de vida. Estou com o Max. Vamos tirar-te do país —

começo eu, embora sejam tantas outras as palavras que lhe quero dizer.

— Esta noite, antes de este festival acabar, tens de fingir que estás a

sentir dores muito fortes e que tiveste uma pequena perda de sangue.

Suja as cuecas com este sangue falso. A ambulância que está aqui à

porta vai levar-te para o hospital central.

— Mas e se o Paolo me mandar para o prisional?

— Tens de lhe implorar, dizer que lá não há ecógrafos ou que não há

anestesista caso seja necessária alguma intervenção, sei lá, saberás

melhor do que eu como convencê-lo. Quando chegares às Urgências,

tens de dizer aos médicos que estás cheia de dores, dores insuportáveis

e, mesmo que eles não encontrem nada de estranho depois de te

examinarem, tens de fazer de tudo para ficar internada. Desmaia, revira

os olhos, perde as forças. Durante a noite, receberás outras instruções.

Tenho de ir.

— Espera… — pede ela, apertando-me a mão, mas eu não posso

ficar.
Saio da casa de banho, retiro o sinal de manutenção e dou a minha

tarefa por terminada. Pronto. Já não está nas minhas mãos. Abandono a

tenda VIP tão discretamente quanto entrei e livro-me da bata e da touca,

voltando a ser apenas mais uma pessoa do público a cirandar por ali.

Tenho de me manter por perto até chegar a ambulância e garantir que a

Laura entra nela. Mal consigo respirar. O meu coração salta

desenfreadamente, num misto de medo, comoção e expectativa.

Pressupomos todos de que a Laura também acredita que pode ser

executada mal o bebé nasça e que quer fugir connosco. Pressupomos que

está arrependida, desiludida, aterrorizada, e que fará aquilo que lhe

dissermos para fazer sem questionar, nomeadamente este teatro para ser

levada para o hospital. Mas e se, uma vez mais, a Laura não quiser ser

salva? E se, uma vez mais, aquele seu olhar comovido e o abraço que me

deu, como se nunca mais me quisesse largar, forem um embuste? Ela

viu-me na Parada. Soube, pelo meu gesto, que eu estava a preparar

alguma. Pode perfeitamente ter contado tudo ao Paolo e estar apenas a

fingir-se emocionada por me ver. Também me enganou de todas as

outras vezes em que já andava metida com ele, mas dizia que eram

coisas da minha cabeça. Acabei de lhe dizer que o Max está vivo e que

temos um plano para tirá-la daqui. É certo que não sabe se há outras

pessoas envolvidas na operação de resgate, nem que tipo de instruções

lhe serão dadas no hospital. Mas sabe que há pelo menos dois

dissidentes à solta, eu e o Max, e que estamos a planear fugir do país

com ela. É mais do que suficiente para accionar os alarmes! Posso já

estar a ser vigiada. A qualquer momento posso voltar a sentir uma mão

brusca e firme a segurar-me, primeiro num braço, depois no outro, até

me enfiar numa carrinha que me levará outra vez para um sítio frio e

escuro onde me interrogam e espancam e matam. Começo de novo a


tremer. Só consigo acalmar-me quando vejo o David, já sem a farda e o

bigode postiço que lhe dava um ar cómico, a espreitar atrás de uma das

tendas. Pisca-me o olho e desaparece assim que vê a ambulância

aproximar-se. Já fez a sua parte e tem de regressar à galeria. Estou por

minha conta.

A ambulância estaciona ao lado da tenda VIP e, minutos depois, a

Laura é levada numa maca para o seu interior. Solto uma gargalhada

nervosa. Realmente é boa actriz. Visto de fora, parece mesmo que está a

sofrer dores horríveis, impossível alguém suspeitar de que está a fingir

seja o que for. Ainda para mais depois de um dia tão desgastante. Não é

por acaso que os médicos recomendam repouso no final da gravidez.

Paolo está a exigir ir com ela na ambulância. Não faz parte do plano,

mas tenho a certeza de que o Max previu este cenário. Certifico-me de

que o condutor da ambulância é o Mário, como estava planeado, pelo

que não há dúvida que a levará para o hospital certo.

Fingindo uma certa naturalidade, afasto-me, por fim, misturando-me

com as outras pessoas que estão a abandonar o recinto do festival mais

cedo. Caminho até à rua que me foi indicada, onde estará o Luís para

abrir a tampa do esgoto e me conduzir de novo pelos túneis até à nossa

base. Durante todo o percurso, tento caminhar devagar e não olhar para

trás, mas volta e meia cedo à tentação de ver se estou a ser perseguida.

Daqui para a frente tudo pode começar a correr mal. A dúvida volta a

assaltar-me. E se ela alinhar nisto até à última hora, apenas com o intuito

de nos apanhar em flagrante? Até atravessarmos o túnel, não poderemos

ter a certeza da sinceridade da Laura. Nem mesmo depois de a olhar nos

olhos, consigo pôr as mãos no fogo. Resta-nos ter fé.


fase seguinte do plano não me envolve. Ainda pedi ao Max para

A me deixar ir ter com ele ao estacionamento do hospital, de modo

que lá estivesse quando chegasse a Laura: queria que ela me visse e

percebesse que, ao contrário do que ela fez comigo, não a deixei para

trás. Mas percebi que seria muito arriscado. Já estive demasiado exposta

nesta primeira etapa, e não podemos correr nenhum risco. Há câmaras

por toda a cidade, há Moscas e o Mocho a cruzar dados ao segundo,

sendo que o hospital é exactamente o ponto onde tudo pode correr mal.

Se me tivessem perseguido durante a Parada, se a Laura me tivesse

denunciado na casa de banho, se não tivesse entrado na ambulância, os

outros partiriam sem hesitar. É esse o plano B de cada etapa. Desertar

sem olhar para trás e viver anonimamente o resto dos nossos dias num

lugar bem longe daqui. Assim que desaparecer no nosso labirinto

subterrâneo e me encontrar na segurança da galeria, só me resta esperar

que os outros consigam também cumprir a sua parte e que, dentro de

umas horas, se juntem a nós. Como não podemos comunicar em

nenhum momento da execução do plano, temos de confiar no tempo

calculado para cada um deles. A hora prevista para retirar a Laura do

hospital é às duas da manhã. Se não chegarem à galeria até às três,

teremos de seguir sem eles. São três horas a caminhar até à saída. O Sol

nasce às 6h59 e, aos primeiros raios, temos de estar do outro lado.


Quando chego à morada que me foi indicada, finjo que estou a apertar

os atacadores e bato com uma pedra na tampa metálica que encontro no

chão. A terceira a contar do primeiro número de porta. Instantes depois,

esta começa a mover-se lentamente e eu, acto contínuo, enfio um pé e

depois outro no buraco que se abre debaixo de mim, olhando em volta, o

coração na boca, até sentir o primeiro degrau das escadas de ferro.

Desço o mais depressa que consigo e dou com o Luís ao meu lado.

Abraço-o como se fôssemos amigos de longa data, apesar de o conhecer

há apenas dois dias. Ele afaga-me o cabelo e tranquiliza-me.

— Estás em segurança. Vamos embora daqui.

Foi a primeira vez que ouvi a sua voz. Caminhamos lado a lado,

enquanto lhe conto como correu cada passo da minha parte do plano. O

Luís não responde. Ouve e acena com a cabeça. De vez em quando, solta

um «hã-hã» ou um «sim». A mim, pelo contrário, com os nervos, só me

apetece falar. Volta e meia, manda-me estar calada.

— Há condutas que podem levar o som lá para cima — diz por fim.

— Desculpa. Mas se não fosse isso, falavas? É que nunca tinha ouvido

a tua voz.

— Não gosto de conversas.

— É só porque sinto que vocês todos me conhecem pelas histórias

que o Max vos contou, mas eu não vos conheço. E estou a colocar a vida

nas vossas mãos.

— Estás bem entregue.

— Só isso?

— Tenho vinte e sete anos, nasci perto do rio, vivia e trabalhava com

o meu pai no nosso tanque de aquacultura. As Brigadas fecharam-nos.

Falimos. Passámos fome. O meu pai acabou por se suicidar. Fim da

história.
— Lamento muito… — digo, sentindo um nó no estômago.

Realmente, é melhor estar calada. Continuar o caminho em silêncio,

distrair-me contando os passos, adivinhando a que bicho pertence certo

chiado, marcando o ritmo da marcha com a respiração. Não faço ideia

de quanto tempo falta até chegarmos à galeria, mas não quero fazer mais

perguntas. Limito-me a seguir o Luís, a executar ordens sem pestanejar,

sem questionar, a fazer o que tem de ser feito. Quando concordei em

fazer parte desta fuga, assinei a minha sentença.

Sinto-me fora do meu corpo.

Nem o peso das botas a calcarem o chão imundo me fixa aqui.

Chegamos à porta falsa da galeria, onde a Rita deverá estar à nossa

espera. O Luís bate o seu nome em código morse e logo a porta se abre.

Ao lado da Rita já está o Mário e o David, que me vem dar uma

palmada nas costas.

— Conseguiste! Estiveste muito bem.

Abraço-o com ternura e começo a soluçar. Lá estou eu com os

abraços. Não sei o que se passa comigo. Talvez tenha estado tanto tempo

sem tocar em alguém, que, ao primeiro contacto com outro corpo, o meu

se entregue e se perca. Como um bebé, sempre a precisar de colo e

consolo.

O Mário explica-nos que deixou a Laura nas Urgências e que os

médicos não deixaram o Paolo passar para lá da área restrita. Viu-o na

sala de espera a dar indicações ao seu segurança particular. Ao que

parece, ia voltar para a festa, mas ordenou ao segurança que não saísse

de perto da Laura e que, quando a levassem para um quarto, ficasse

sempre à sua porta. Olho para todos, assustada. Como vão retirar a

Laura do hospital se estiver a ser vigiada tão de perto?


A Rita sorri e conduz-me até ao colchão, estendendo-me um chá

demasiado doce.

— Precisamos de açúcar para nos aguentarmos na caminhada — diz

ela, ignorando a minha pergunta.

Olho para os outros, mas nenhum se mostra preocupado ou

interessado em responder-me. Sinto-me estúpida por ter levantado a

questão. É claro que eles pensaram em tudo, incluindo numa forma de

tirar a Laura do quarto nas barbas de um ou de vários seguranças. Tento

descansar, mas o meu coração está longe, algures naquele hospital.

Ventrículo direito, Max, ventrículo esquerdo, Laura.

Inquieta, procuro na minha mochila um pedaço de papel para escrever

uma carta de despedida. Se o pior acontecer, é reconfortante imaginar

que alguém vai conhecer um pouco do que me vai na alma. Quero

deixar claro que estou a fugir de um governo opressivo que sucumbiu à

ideologia, desviando-se do propósito nobre da sobrevivência do planeta.

Que me recuso a viver entre o medo e a desconfiança. Que nenhuma

sociedade sobrevive quando o pensamento é único. Que lamento não ter

procurado os meus pais. Que, se me safar, vou procurar os meus pais…

— O que estás a fazer? — pergunta a Rita.

— A escrever uma carta de despedida… caso me aconteça alguma

coisa…

— Não podes fazer isso.

— Porquê?

— Estás a atrair más energias.

— Mas se eu for apanhada…

— Não te preocupes — assegura ela. — Saberei o que colocar no teu

obituário, se chegarmos a tanto.


— Não é isso… É que sinto que ninguém sabe a minha verdadeira

história.

— O Max falou-nos tanto de ti durante todo este tempo que, quando

entraste aqui pela primeira vez, foi como se te conhecêssemos há anos,

acredita — diz a Rita, afagando-me o cabelo. Só de perto reparo nas

finas rugas que se formam na testa e à volta dos seus olhos, nada que lhe

retire o ar de ser etéreo e sem idade.

— A Billie que o Max conheceu já não existe há muito tempo —

suspiro. — Morreu e ressuscitou na forma de uma Joana, que por sua

vez ficou fechada naquele alfarrabista, vagueando com o espírito de

todas as personagens que lhe fizeram companhia nestes últimos oito

meses. Esta nova Billie tem uma voz que ainda ninguém ouviu.

— Não precisamos de te ouvir. Estás aqui. Quiseste juntar-te à nossa

causa, cumpriste a tua parte exemplarmente e, acima de tudo, ao

contrário de tanta gente que por aí anda, ainda sentes e te comoves e te

preocupas em deixar palavras a quem vier depois.

— Mas eu gostava de vos ouvir. Vocês sabem quase tudo sobre mim,

mas eu não sei nada sobre vocês. Quer dizer, já estou a par das histórias

do Luís e do David, mas…

— E queres perder aquelas que, segundo dizes, podem ser as tuas

últimas horas a vasculhar o nosso passado e as nossas razões? O passado

já passou. E as razões não têm importância, desde que estejamos aqui de

corpo e alma. É como esse teu ódio pela Laura. Não muda nada. Não

ganhas nada em continuar a carregá-lo. Deixa-o ir.

— Mas foi o passado que nos guiou até aqui. Sinto-me em

desvantagem por não conhecer o vosso.

— OK. Se é assim tão importante para ti, a minha história é muito

simples.
u era professora de Yoga e activista climática desde uma época em

E que nem sequer se falava de activismo climático e em que alguns

de vocês nem sequer eram nascidos. Juntei-me à revolta das Brigadas

Verdes logo na primeira hora, claro. Como não? Mesmo achando

excessivas as mortes, em tudo o resto eles tinham razão: só derrubando

o sistema e impondo leis inequívocas de protecção do ambiente é que

era possível evitar o ponto de não retorno. Estive na rua todos os dias

até o Governo cair e rejubilei com a nova ordem. Fui voluntária em

todas as acções para as quais faziam apelos e estava empenhada em

entrar oficialmente para as Brigadas Verdes. Concordei com todas as

medidas, todas as proibições. Ajudei a fechar fábricas e a lavrar

campos de golfe. Finalmente, o mundo estava a mudar e podíamos

voltar a uma sociedade do ser, em vez de uma sociedade do ter!

Os primeiros meses do novo regime foram como ver todos os meus

sonhos tornarem-se realidade. As pessoas andavam eufóricas e sentiam-

se parte de uma mudança sem precedentes, como se toda a gente tivesse

visto a Luz. Íamos salvar o mundo!

Até que uma vez, numa rua bastante movimentada e em pleno dia,

deparei com uns miúdos de treze ou catorze anos a insultar um casal de

velhotes porque se enganaram a fazer a reciclagem. Estavam a colocar

algumas peças de loiça partida no vidrão, imagina, um erro


perfeitamente comum. Os miúdos começaram a avançar sobre eles, a

ponto de os empurrar. A cena era perturbadora, como estar a assistir a

netos a bater em avós. Indignada, intervim, defendendo os velhotes, e

quando dei por mim estava uma data de gente à nossa volta, até

aparecer a polícia. Estávamos cercados por uma multidão de cães

raivosos a gritar sem razão. A polícia ouviu as acusações dos miúdos e

prendeu de imediato os velhos, que tremiam de medo. Depois,

prenderam-me também, por continuar a defendê-los. Soltaram-me após

algumas horas, avisando-me que aquele tinha sido o meu primeiro e

único aviso. De então em diante, comecei a reparar em cenas parecidas

um pouco por toda a cidade, espantada por não me ter dado conta de

nada antes. Pessoas anónimas a comportarem-se como vigilantes que

levavam cada nova lei mais à letra do que quem a fizera, intransigentes,

cegas na sua militância. Mas o que me impressionava mais não era a

injustiça das situações, nem o fanatismo de uns quantos; o que eu

começava a sentir era uma energia muito negra a apoderar-se de toda a

gente. Todas as pessoas à minha volta, se olhasse com atenção, estavam

a tornar-se cínicas, desconfiadas, prontas a acusar o vizinho, a apontar

o dedo, sem tentarem compreender o outro ou muito menos perdoar. E o

que é do mundo sem o perdão? Fiquei assustada e, aos poucos, foi

crescendo dentro de mim a certeza de que este não era o caminho.

Durante uns tempos vagueei por aí, sem saber ao certo o que fazer nem

para onde fugir. Sabia que, se me insurgisse contra o que quer que

fosse, seria imediatamente calada, enfiada num qualquer buraco para

onde estavam a ser levados todos os que criticassem as medidas do

novo governo. Por outro lado, há muito que as fronteiras se tinham

fechado.
Finalmente, um dia, escondida num jardim a tentar meditar, vi o Luís

a desaparecer por um buraco no chão e fui atrás dele. Uma pessoa não

desaparece assim, chão adentro. Percebi que entrara por uma conduta e

decidi descer também. Ele quase me matou! Estava com medo de eu

fosse uma Mosca. Foi difícil convencê-lo do contrário, enquanto me

apertava o pescoço e me revistava. Pus-me de joelhos, peguei-lhe nas

mãos e, sem falar, fi-lo sentir a minha energia. Pouco depois, ele

sentou-se à minha frente, deitou a cabeça no meu colo e chorou. Acabou

por me confessar que também estava sozinho no mundo, desesperado

para fugir daqui. Perguntou-me se estava disposta a viver no

subterrâneo e desaparecer com ele. Disse logo que sim. Nunca mais

voltei à superfície. Sou o meu próprio sol.

Que mais te posso dizer?

Já conheces a história do Luís, do David, falta a do Mário e da

Olívia, não é?

Mário, posso contar?

Sim?

Então, o Mário é condutor de ambulância e é casado com a Olívia,

que é enfermeira no hospital central. O sonho deles é serem pais. Como

ao longo de dez anos de tentativas nunca conseguiram engravidar,

iniciaram tratamentos de fertilidade caríssimos, fazendo turnos atrás de

turnos no hospital para conseguirem pagá-los. Quando as Brigadas

chegaram ao poder, também eles os apoiaram e aplaudiram, até ao dia

em que todos os casais em tratamento foram chamados à clínica. Olívia

encheu-se de expectativa, afinal ainda tinham material para fazer mais

um ciclo de fertilização in vitro. Só que, na verdade, os casais foram

chamados apenas para lhes comunicarem que, por ordem do novo

governo, os procedimentos de fertilidade iam ser suspensos e todo o


material genético destruído. Deixou de haver o direito à procriação

medicamente assistida, em qualquer das suas formas, num país que

tinha acabado de aprovar a lei do filho único e o aborto compulsivo de

segundas gestações. Todos os casais tiveram ainda de assinar um

documento, no qual declaravam que se viessem a ter uma gravidez

gemelar resultante de um processo já em curso, o que é muito frequente

nestes casos, abortariam um dos fetos. Uma minúscula gota de cloreto

de potássio injectada in utero num minúsculo coração e… puf!

Eu sei, é horrível. Como são horríveis tantas outras coisas que se

passam aqui e que o Mocho impede que se espalhem, quer por cá, quer

lá para fora.

Vês como o passado não traz nada de útil?

Mário, David, Luís, cheguem aqui.

Vamos todos dar as mãos.

São onze e cinquenta e oito. Faltam dois minutos para o grande dia.

Por esta hora, a Laura já foi examinada e os médicos não encontraram

nada suspeito. Não tem contracções, o falso sangramento parou, mas

vão considerar que o melhor é passar a noite vigiada, sobretudo

tratando-se de uma das líderes das Brigadas, o que seria mandá-la para

casa e depois acontecer alguma coisa ao bebé. Não querem arriscar.

Estamos certos de que vão interná-la no piso de Obstetrícia, onde uma

das enfermeiras do turno da noite será a Olívia. As outras enfermeiras

vão estranhar a cara nova no seu piso, apesar de a Olívia trabalhar

naquele hospital há vários anos, mas ela vai desculpar-se com um

problema na escala e um pedido vindo directamente da administração.

As outras vão encolher os ombros, é sábado, não há ninguém na

administração para confirmar a história e, além disso, é o turno da

noite. Estão demasiado cansadas, pelo que um par de mãos extra é


sempre bem-vindo. Olívia vai passar a primeira hora do turno a

aprender os processos daquele serviço. As outras aproveitam para lhe

pedir para ir aos quartos, enquanto ficam na sala de enfermagem a

conversar. É sempre assim quando chega uma pessoa nova. Numa

dessas visitas aos quartos, a Olívia vai encontrar o segurança que Paolo

mandou ficar de guarda a Laura. Está sentado numa cadeira demasiado

pequena para o seu enorme corpo, tendo já baixado a guarda. Afinal,

aquele é um piso de Obstetrícia, só há mulheres e recém-nascidos. A

Olívia vai perguntar-lhe se não quer um café ou uma água. Ele vai dizer

que não, mas ela insiste. O homem acaba por aceitar. A bebida tem um

tranquilizante, que o faz adormecer em menos de dez minutos.

Pelas duas da manhã vai chegar àquele piso o carrinho de sujos.

Quem o empurra é o Max. A Olívia vai recebê-lo e pedir-lhe que afaste

o carro para junto da porta da enfermaria onde a Laura está deitada.

Antes que as outras enfermeiras apareçam, estranhando a hora nada

habitual de recolha dos sujos, a Laura será enfiada no meio da nuvem

de roupa. A Olívia fingirá que está zangada com o Max, afinal, não

deveria fazer barulho àquela hora, e sairá com ele até aos elevadores de

serviço, fingindo estar a dar-lhe indicações sobre o lugar que ele

procura, certamente não aquele, onde só estão parturientes a tentar

descansar. Entrará com ele no elevador e descerão até ao piso -2.

Colocarão o carrinho num dos poucos sítios que não é alcançado pelas

câmaras. A Olívia ajudará a Laura a sair de dentro do carrinho e dar-

lhe-á uma roupa para substituir a bata de hospital. O Max abrirá o

bueiro de acesso ao túnel. Descerão os três e caminharão durante trinta

minutos até aqui. Enquanto isto, as enfermeiras estarão a pensar que

Olívia foi à rua fumar um cigarro, quiçá à cafetaria, e o segurança do


Paolo continuará a ressonar. Quando derem por falta da Laura será

tarde demais.

É assim que tudo se vai desenrolar.

O dia vai raiar e nós vamos estar do outro lado.

O dia vai raiar e nós vamos estar do outro lado.

O dia vai raiar e nós vamos estar do outro lado.


dia vai raiar e nós vamos estar do outro lado», repetimos todos
«O
em coro. Não sei se este mantra surtirá algum efeito na

concretização do nosso plano e temo que as coisas não se passem com

esta simplicidade, mas a verdade é que me sinto infinitamente mais

calma.

Continuamos em silêncio e ainda de mãos dadas. Abro os olhos a

medo, sem querer perturbar esta energia boa que sinto, e reparo que

todos têm um sorriso nos lábios. Também tenho vontade de sorrir e

sinto uma excitação infantil, como aquela que antecedia o meu

aniversário quando era pequenina. A certeza de que, acontecesse o que

acontecesse, aquele era o meu dia, o dia em que eu era o centro das

atenções, a destinatária de todas as felicitações, e que, melhor de tudo,

podia dormir na cama dos meus pais.

Será que vai ser assim tão fácil? E se o segurança se recusar a beber a

água que a Olívia lhe vai dar? E se o Max e o carrinho de sujos forem

barrados antes de conseguirem entrar no piso de Obstetrícia? E se, no

estacionamento, alguém os vir a enfiarem-se pelo buraco? Não, Billie,

pára! Corrijo de imediato a minha mente. Boas energias, pensamentos

positivos. Vai ser assim tão fácil.

Vai…

Vai…
Ainda falta um bocado para as três da manhã. Sinto-me sonolenta…

Acho que vou adormecer… Só um bocadinho…Será que a Rita pôs

alguma coisa no meu chá? Vai ser fácil… Eu sei que vai…O Max sabe o

que fazer…

O Max…
uando a porta do piso de Obstetrícia se abre, começo a

Q transpirar. É muito diferente planear e executar um plano.

Totalmente diferente, posso agora afirmar. Durante o planeamento, não

há esta luz branca que me fere os olhos habituados à escuridão. Nem o

chiar destas rodas na superfície vinílica azul-bebé. Nem o cheiro

asséptico que paira no ar. Durante o planeamento, não dá para

antecipar o que vou sentir quando voltar a ver a Laura ao fim de todo

este tempo. Na noite em que a vi ser levada pelos próprios

companheiros, ainda estava um bocado toldado pela raiva e em choque

com o que vi acontecer mesmo à minha frente, mas, desde então,

passaram-se vários meses e agarrei-me à certeza de que só ela nos pode

salvar. Agora, estou prestes a reencontrá-la, à Laura de verdade, e com

um filho na barriga.

Já tive de me esconder três vezes até chegar a este piso. Durante o

planeamento também era só entrar num elevador que estaria vazio e

sair no sítio certo. Não havia seguranças do hospital a perguntarem

para onde vou, nem a exigirem que usasse o monta-cargas, que não

faço ideia onde vai parar. Enfim, o que interessa é que consegui vir aqui

dar. Percorro cada metro infindável do corredor até ver a Olívia lá ao

fundo. Sinto um alívio imediato. Já não estou sozinho. Hesito quando

vejo um homem sentado junto a uma das enfermarias. É enorme e está


vestido de preto. Tal como eu suspeitava, o Paolo enviou um segurança

para vigiar a Laura caso ela ficasse internada. Mas parece-me que a

Olívia conseguiu adormecê-lo. Tínhamos falado nesta possibilidade.

Ela faz-me sinal para avançar e manda-me encostar o carrinho junto

à porta de um dos quartos, fingindo estar a zangar-se comigo, entrando

de seguida. Fico de costas para a câmara de vigilância e atento ao

segurança, que tem um fio de baba a escorrer-lhe pelo queixo. Tenho

uma arma debaixo da bata, mas se tiver de usá-la é muito mau sinal.

Servirá apenas para ganhar tempo e evitar a rendição. Dificilmente

conseguiremos sair daqui vivos, se um tiro se fizer ouvir. Em três

segundos, a Laura enfia-se entre as roupas que carrego. Admiro-me com

a sua destreza. Parece alguém com treino a sério, e não aquela miúda

frenética que andava sempre a saltitar de um lado para o outro, mas se

recusava a entrar num ginásio. Antes de conseguir olhá-la nos olhos, a

Olívia cobre-a com mais toalhas e lençóis. Não faz ideia de que sou eu

quem a empurra no carrinho. Sabe que isso não é importante. O

importante é haver alguém que a quer tirar daqui.

Avançamos em direcção ao elevador. O segurança mexe-se com o

barulho das rodas a passarem pelo rebordo de metal do elevador. Sinto-

me empalidecer. Nem eu nem a Olívia conseguimos falar. Se o gajo

acordou, estamos lixados. Ou, então, não. Ele não pode entrar dentro

da enfermaria. Vai presumir que está tudo como antes. As portas

fecham-se.

Ao chegarmos ao piso -2, temos a tentação de respirar fundo, mas

ainda é cedo. Abro a tampa que dá acesso ao túnel vinte e quatro

enquanto a Olívia ajuda a Laura a vestir-se e a atar os atacadores dos

ténis. A barriga de trinta e sete semanas impede-a de se dobrar. Quando

se volta para mim, afasto a máscara cirúrgica. «Max», proferem os seus


lábios, embora não se consiga ouvir bem a sua voz. Abraça-me e chora

convulsivamente.

— Não temos tempo para isto — diz a Olívia, com razão. — Estão a

fazer demasiado barulho.

Pois estamos. O barulho da emoção de um reencontro que nenhum de

nós tinha a certeza de que poderia algum dia acontecer.

A Olívia desce primeiro, depois a Laura, revelando mais uma vez

uma enorme desenvoltura apesar da barriga pesada. Estou convencido

de que as Brigadas tiveram treino militar. O seu rosto parece-me mais

magro do que me recordava, as mãos mais finas, mas os braços são

fortes e musculados. Se não fosse a óbvia protuberância, ninguém diria

que está grávida. Espero impaciente até poder descer também, fechando

a tampa com todo o cuidado. Espera-nos uma caminhada de cerca de

trinta minutos até à galeria onde nos reencontraremos com o resto do

grupo. Espero que estejam lá todos. Espero que a Billie esteja bem.

Caminhamos num silêncio apenas quebrado pelo som da nossa

respiração ofegante. Ainda não acredito que já estamos na segurança

dos túneis. Mesmo que lá em cima dêem o alarme, vão passar-se horas

até nos procurarem aqui. Estamos a contar com isso. Mas agora a

minha prioridade tem de ser apenas o bem-estar da Laura. Pergunto-

lhe se se sente bem. Acena com a cabeça, ainda sem conseguir falar. Sei

que está a conter o choro, pois morde o lábio inferior e crava as unhas

na palma da mão. Sei que está a tentar não desabar. Explico-lhe que

temos de andar num passo rápido e em silêncio, mas que deve avisar-

me se precisar de parar. Asseguro-lhe que para o percurso final teremos

um velho porta-cargas, visto serem demasiados quilómetros para

palmilhar no seu estado. Uns metros à frente retiro uma mochila de um

esconderijo e estendo uma arma a cada uma delas. Também tenho água
e biscoitos, como se alguém se lembrasse de ter sede ou fome numa

situação destas.

Caminhamos em fila, em silêncio. O meu coração bate

desenfreadamente. Eu tinha razão. A Laura veio. Quis ser salva por nós.

Mal posso esperar para chegar perto da Billie. Os três juntos de novo,

como deve ser.

Como sempre deveria ter sido.


uatro anos. Foi há quatro anos que estivemos os três juntos pela

Q última vez, no dia da grande manifestação. Como é que quatro

anos podem parecer décadas? Não foi só o cabelo ruivo da Laura, que

nos inebriava com o aroma da alfazema, que desapareceu. Não foi só a

barba do Max que passou a cobrir-lhe o rosto. As mudanças físicas,

embora profundas para um curto espaço de tempo, são o somenos nesta

reunião. Estamos perante três pessoas absolutamente diferentes,

demasiado cansadas, traumatizadas, desiludidas para se lembrarem

sequer de aquilo que as juntava antes de tudo acontecer. E, no entanto,

assim que o Max e Laura entraram pela galeria adentro, os nossos

corpos foram atraídos uns para os outros, dissolvendo-se num abraço. A

santíssima trindade de novo reunida, uma força que nem a minha raiva

consegue travar.

— Desculpem-me, desculpem-me, desculpem-me — repete a Laura,

enquanto as lágrimas lhe inundam as faces.

— Está tudo bem — assegura o Max, afagando as nossas costas com

as mãos frias.

Já eu não consigo dizer nada. Não sei se estou feliz, aliviada ou

angustiada. Tenho um nó na garganta que me parece impossível de

desfazer e sinto um enorme alívio quando, com delicadeza, a Rita nos

vem dizer que temos de nos pôr a andar. São 2h55. Estamos dentro do
horário previsto, mas espera-nos uma caminhada de dezassete

quilómetros com uma grávida em fim de tempo, por isso, cada minuto

conta. Há um porta-cargas para a transportar, mais os sacos com armas,

água, estojo de primeiros socorros, toalhas e cobertores de emergência,

insistência da Olívia. Estou abismada com a capacidade de planeamento

deles. Sim, deles. Ainda não me consigo ver como membro deste grupo,

talvez por ter estado demasiado tempo a contar apenas comigo própria.

E além disso, não planeei nada. Só fiz chegar a mensagem à Laura.

Vamos tirar-te daqui.

Vamos tirar todos daqui.

Seguimos em fila. O Max na frente, seguido do Mário, que empurra o

porta-cargas com a Laura, depois a Olívia, que se recusa a sair de perto

dela, preocupada com o avançado estado de gestação, depois eu, o

David, a Rita e, por último, o Luís, fortemente armado. Percebo que

estão a contar com a possibilidade de as autoridades descobrirem que

estamos no túnel e entrarem por aqui adentro. Fico assustada. Até agora

achei que só corríamos perigo enquanto estivéssemos na superfície. Que

se, até agora, as autoridades não encontraram os túneis, não era logo

hoje que se iam lembrar de os vasculhar. Terá sido excesso de

optimismo?

Pelos vistos, os outros têm sido mais pragmáticos. Mesmo com a

certeza de que não voltaremos a este lugar, a Rita e o Luís fecham a

galeria com um cadeado e demoram-se a disfarçar a abertura com placas

de madeira antigas. Caminham de costas, espalhando areia no chão de

forma a fazer desaparecer qualquer vestígio de pegadas. Fazem-no

durante os primeiros dez minutos do percurso, tendo o cuidado de não

deixarem os sacos vazios para trás. Tanto cuidado. Todo o cuidado.


Pequenos passos no escuro, sem fazer barulho, apenas o rumor da nossa

respiração.

A dada altura, o Max pára e põe-se a esgravatar uma das paredes.

Retira um tijolo, depois outro e mais outro. Apetece-me gritar e

perguntar o que raio está a fazer. Continuo sem ver quase nada, mas sei

que temos de continuar a andar. Ainda não percorremos sequer metade

do caminho, e a qualquer momento podemos ter soldados a invadir todo

o espaço subterrâneo. O Luís vai ajudá-lo naquela tarefa estúpida, que

ninguém me explica para que serve. Os tijolos são velhos e pesados.

Estão ali há muito tempo, pelo aspecto, há várias décadas, mas o Max e

o Luís retiram-nos com perícia e rapidez, como exímios jogadores de

Jenga, colocando cada tijolo numa determinada ordem. A minha

impaciência passa a curiosidade, tentando ver por cima dos ombros dos

outros a que levará esta paragem. E eis que, naquela que era uma parede

sólida, surge uma abertura por onde nos obrigam a passar. Do outro

lado, um novo túnel completamente diferente. A Rita dá uma lanterna a

cada um.

— Aqui já se se podem usar.

Estou maravilhada.

O Max explica-nos que já não estamos nos túneis desactivados da

cidade. Estamos num lugar que não aparece em nenhum mapa. Uma

descoberta arqueológica que andava há muito a ser estudada pelo Sam e

a sua pequena equipa universitária, bem antes da Revolução. Um

labirinto de túneis secretos e desconhecidos que começam no antigo

Convento das Freiras Franciscanas e se estendem até à periferia. Contam

as más- -línguas que as próprias religiosas cavaram estes túneis, uma

rota segura para encontros e para escapar dos rigores do claustro. Mas a

verdade é que faziam parte das antigas minas de água que abasteceram a
cidade entre os séculos XI e XVIII. Eram trezentos quilómetros debaixo

de terra, com ramificações que foram fechadas por sucessivos aterros à

medida que a cidade cresceu, sobrando apenas os três caminhos que

partem do Convento. Um dos caminhos leva ao Hospício, um lugar

onde, durante séculos, foram mantidos sem tratamento os loucos,

alcoólicos, sem-abrigo, prostitutas, homossexuais, mães solteiras a quem

roubavam os filhos, e outros dissidentes sociais. Outro dos caminhos

desemboca perto do Seminário São Gregório, que ainda funciona como

tal e que, ao longo dos séculos, foi alimentando a lenda das freiras

ardilosas. O terceiro vai até à antiga Estrada Real, hoje um mero trilho

que marca a fronteira com o país vizinho. É esse o caminho que vamos

tomar.

As paredes aqui já não são cinzentas e uniformes, de cimento. Já não

há escadas de metal enferrujadas até à superfície ou cabos eléctricos

obsoletos. Aqui, estamos vários séculos antes de haver electricidade ou

explosivos para criar novas galerias. As paredes são rocha molhada,

assim como o chão, e a luz das lanternas faz cintilar os minerais como

se fossem tesouros preciosos. Estou fascinada com a existência deste

lugar e não consigo imaginar como é que, naqueles tempos, se

construíam coisas assim. Passo as mãos pelas pedras seculares tentando

ligar-me às histórias que por aqui se deram, enquanto o Max e o Luís

voltam a colocar cada tijolo na abertura, pela mesma ordem, como um

puzzle que já fizeram e desfizeram incontáveis vezes.

O Max avisa que, de agora em diante, o caminho é mais estreito, e o

tecto, mais baixo. Percebo que, de todo o grupo, só ele e o Luís haviam

estado aqui. Os outros, tal como eu, estão fascinados.

— Malta, já podemos falar porque não há risco de nos ouvirem lá em

cima, mas convém não abusar — diz o Max. — Temos de estar atentos a
qualquer sinal de movimentações. A esta hora, já devem ter dado por

falta da Laura e por certo iniciaram as buscas. Vão obviamente procurar-

nos primeiro na superfície, mas nunca se sabe. Laura, alguém nas

Brigadas sabe da existência deste túnel?

— Não! Nem pensar. Quer dizer, tenho estado presa nos últimos

meses, mas nunca tinha ouvido falar de um lugar assim. Eles sabem que

há contrabando feito por túneis, mas estamos a falar dos túneis técnicos

da cidade, os quais já estão a ser patrulhados.

— Tens a certeza? Nunca houve sequer uma suspeita?

— De todos os mapas da cidade que me passaram pelas mãos, mesmo

durante a preparação do golpe, nunca se levantou a hipótese de existir

este túnel medieval. Até o túnel por onde viemos deveria estar

emparedado. Pelo menos é o que dizem as plantas que sempre usámos.

— Óptimo! O pior é quando sairmos, mas lá chegaremos. Vamos. Já

não falta tudo.

Quando o Max passa por mim, de volta à liderança do percurso, beija-

me a cabeça e assegura-me de que vamos sair daqui. Segue novamente

para a frente, enquanto eu fico a olhá-lo com surpresa e admiração.

Quem diria que o Max, aquele rapaz franzino e tímido que alinhava nos

nossos planos com displicência, como se estivesse mais interessado em

fazer-nos a vontade do que nas causas pelas quais lutávamos, que nos

deixava decidir tudo, até a comida que mandávamos vir quando não nos

apetecia cozinhar, tinha esta capacidade de liderança. A sua energia e

determinação não nos deixam sombra de dúvida. Vamos sair daqui

vivos.

Sinto por ele uma coisa que nunca senti antes. Talvez seja algo

parecido com o que as mães dos soldados sentiam quando os viam

regressar da guerra depois de vários anos sem lhes pôr a vista em cima.
Como não pude assistir à sua transformação subtil, dia após dia, é como

se estivesse perante outra pessoa, um desconhecido, até. O rapaz agora

homem.

Seguimos em compasso. Como já podemos usar as lanternas, consigo

observar melhor a Laura. Parece outra vez a minha Laura, mas com uma

barriga de grávida. Talvez devesse ir ter com ela e perguntar-lhe se se

sente bem, só que começa a irritar-me que todos estejam a fazer

precisamente isso. De repente, a culpada por tudo isto que estamos a

viver, por todas as mortes, todas as torturas, todas as ausências, está a

ser apaparicada, literalmente levada num carrinho, como uma rainha.

Queres parar, Laura? Estás confortável, Laura? Precisas de água, Laura?

Come qualquer coisa, Laura. Laura, Laura, Laura. E eu sem conseguir

dar nome ao que o seu nome me faz sentir. «O passado não leva a lugar

algum», disse-me a Rita esta madrugada. «É preciso perdoar e seguir em

frente.» Eu sei. Já consegui que a raiva se desvanecesse; mas ainda me

debato com este nó de coisas que lhe quero dizer e que parece

impossível de desatar. Tenho medo de que a primeira palavra se solte e

eu não consiga segurar as outras. Tenho medo de que nada sobreviva a

essa avalanche.

A Laura pressente. Sempre foi muito intuitiva. Pede ao David que

pare o porta-cargas com a desculpa de que está a ficar com dores nas

costas e que precisa de andar um bocadinho. Pouco a pouco, deixa-se

ficar para trás e aproxima-se de mim. Caminha mesmo ao meu lado.

Respiro fundo.

Vai ser agora.


lá, Billie — diz ela com um sorriso estúpido, como se nos
-O
tivéssemos acabado de cruzar.

— Olá — respondo secamente, voltando a colar os olhos no chão.

— Fica-te bem o cabelo assim.

— Já eu não posso dizer o mesmo da tua careca.

Ela ri-se. Não disse isto para que se risse. Aliás, não pretendo mesmo

nada que se ria. Sobretudo porque a maneira como o faz leva-me para

momentos felizes que ela não tem o direito de me recordar.

— Sei que nada vai mudar o que fiz — começa num tom mais pesado.

— Sei que te fiz passar por situações difíceis de esquecer…

— Não sabes nada! — interrompo-a, com um grito.

Os outros olham todos para nós. O Max faz um gesto para que sigam

caminho e vem para o nosso lado. O nosso árbitro. O nosso juiz. Noto-

lhe alguma apreensão. Talvez porque nunca me tenha visto assim. A

Billie nunca se exalta, a Billie sempre tão carinhosa e maternal, a Billie

indiferente à sua própria felicidade, desde que eles os dois estivessem

felizes.

— Eu disse que já podíamos falar, mas não podemos gritar, não é? Só

estamos a uns dez metros da superfície — repreende-me ele, com um

sorriso e o braço por cima do meu ombro. Não sei porquê, mas esse

gesto acalma-me. Ainda assim, não impede que as palavras se soltem.


— Não sabes o quanto chorei quando desapareceste, meses e meses

de preocupação, angústia, imaginando que tinhas sido raptada, violada,

traficada, colocando até a hipótese de te teres suicidado, sei lá! Já ouvi

tantas histórias de suicídios de pessoas que estavam aparentemente bem.

Motivo? Ecoansiedade, ecodepressão, uma merda qualquer — disparei.

— Imaginei tantas histórias, todas a histórias menos aquela em que

partias sem nos explicares porquê. Não sabes o que passei durante um

ano, sempre obcecada em encontrar-te, a ler todas as notícias, de todos

os jornais à procura de uma pista. Mulher acorda de coma e não sabe

quem é, corpo de jovem encontrado, desmantelada rede de tráfico

humano. Qualquer coisa era possível. Levava os recortes de jornal à

polícia, que no final já só se ria de mim. Não sabes o que senti quando

começaram a noticiar os assassinatos sinistros às mãos de umas tais

Brigadas Verdes, de quem nunca ninguém tinha ouvido falar. Incrédula,

zangada comigo própria por ter dentro de mim uma voz que me dizia

que podias estar por detrás daquilo. Não, a Laura, não, impossível! Não

sabes o pânico que senti, que sentimos, eu e o Max, quando percebemos

que tínhamos de fugir, que nos iam procurar e interrogar por tua causa,

por andarem à tua procura. As horas negras que passámos na cave do

alfarrabista, com o Sr. Joel a dar-nos notícias cada vez mais

preocupantes daquilo que se estava a passar nas ruas. Não sabes o terror

que senti quando me apanharam e enfiaram numa carrinha com montes

de pessoas, algumas mais mortas do que vivas. Não sabes que fui

espancada em sucessivos interrogatórios, nem que vivi sei lá quanto

tempo numa cela iluminada todo o dia e com direito a uma única

refeição. Não sabes que dei o meu corpo em troca de uma sopa. Uma

merda de uma sopa, ouviste bem? Nem que caminhei sozinha até

desmaiar e ser encontrada por uma mulher caridosa que cuidou de mim.
Não sabes o que é viver com vergonha de tudo isto, como se a culpa

fosse minha, sempre minha. Não sabes o que é viver sem ter ninguém.

Como vês, não sabes nada! Nada, Laura!

As lágrimas caem-lhe ininterruptamente, mas não me impedem de

continuar. Nem que se afogue no seu arrependimento.

— Como foste capaz de nos fazer isso? Como foste capaz, Laura?

Responde! Tu sabes que eu tinha descoberto que andavas metida com o

lunático do Paolo. Sabes que fingi acreditar em todas as mentiras que me

contaste. E que, de cada vez que fingia acreditar no que me dizias, a

minha desilusão crescia um pouco mais. Aliás, há tantas camadas de

desilusão que não sei por onde começar a desfazê-las, percebes?

Percebes ou não?

— Percebo. Vivo com essa desilusão todos os dias — responde ela,

limpando o rosto, os olhos vermelhos de tanto chorar. — Desilusão de

mim própria. Nojo, até. E infinitas camadas de culpa também. Porque

fui eu quem teve a ideia de escolher as vítimas e matá-las de uma forma

tão brutal que ninguém ficasse indiferente. Sim, eu! Eles queriam

rebentar com centrais eléctricas, colocar bombas no Ministério do

Ambiente, sabotar a rede eléctrica, enfim, mais do mesmo, acções que,

no final, só iriam prejudicar as pessoas comuns e magoar inocentes. Fui

eu que sugeri o lema de matar como eles matam. EU! Ouviram bem?

Eu e o Max olhamos um para o outro, mas a Laura continua:

— Tinha tanto ódio dentro de mim. Ódio, raiva, impotência. Por que

razão umas centenas de homens tinham o poder de decidir sobre toda a

vida na Terra? Por que razão continuavam a fingir que havia tempo, que

não se podia fazer a transição energética nem acabar com a dependência

do petróleo de um dia para o outro? Podia, mostrámos que podia. Não

eram metas irrealistas, como o status quo continuava a propagandear.


Eram exequíveis e urgentes! Mas também mostrámos que facilmente se

resvala do idealismo para um governo autoritário…. Sinto culpa por não

ter conseguido travá-los. Por não ter conseguido impedir que fossem,

fôssemos, sempre um pouco longe demais. Eu devia ter tentado com

mais empenho. Afinal, era a namorada do Paolo, adormecíamos todas as

noites a conversar.

— Pois devias — interrompo eu. — Sempre foste muito convincente

connosco…

— Só que, à medida que ele chegou ao poder, as nossas conversas

tornaram-se monólogos, e sempre que eu tentava fazê-lo ver que estava a

ser demasiado duro, autoritário, intransigente, respondia-me que eu era

muito nova, que não conhecia o ser humano e do que ele é capaz. O

Paolo está convencido de que, assim que aligeirar as regras, as pessoas

voltam a abusar, a pensar apenas em si e no seu conforto, a encontrar

esquemas para continuar a consumir o que não devem, a tentar voltar

aos hábitos antigos. E a minha prisão só veio piorar as coisas. Depois de

ele me ter prendido, sem qualquer contemplação por estar grávida do

seu próprio filho, ninguém do núcleo duro se atreve a discordar dele.

Ninguém lhe fará frente. Mas acima de tudo, sinto culpa por me ter

oferecido para ser a cara da Revolução, contra o conselho do Paolo…

— Deve ter sido, deve…

— Juro! Ele sabia que toda a minha vida íntima e familiar seria

vasculhada no segundo em que saísse o nosso comunicado à nação. Nem

ele, nem o Luc tinham grandes laços afectivos fosse com quem fosse, até

porque se dedicavam à luta clandestina há mais de vinte anos, mas eu

tinha pai e, sobretudo, tinha-vos aos dois. Ele tentou impedir-me e eu

não hesitei. O meu sentido de dever sobrepôs-se à lealdade para com

aqueles que amava. E isso, mais do que a morte de meia dúzia de


pessoas horríveis, que cometeram crimes ambientais sem qualquer

arrependimento, mais do que as mortes inevitáveis durante as semanas

da Revolução, mais do que os excessos deste novo regime, é o que mais

me pesa. Porque eu sabia que a polícia vos iria perseguir. Sabia que vos

iriam interrogar e espancar até que um de vós dissesse qualquer coisa

que os pudesse levar até mim.

— Porque é que não nos falaste das Brigadas Verdes quando te

juntaste a elas? — pergunta o Max.

— Porque tenho a certeza de que vocês teriam feito tudo para me

demover. Tudo! Até amarrarem-me a uma cadeira ou entregarem-me à

polícia, se fosse preciso. Lembro-me bem do olhar crítico que a Billie

me fez quando descobriu que eu andava a trocar mensagens com o

Paolo. Foi aí que comecei a mentir. Tínhamos prometido uns aos outros

que, acontecesse o que acontecesse, diríamos sempre a verdade. Mas

tinha de ser. Se vos tivesse contado, vocês nunca me teriam deixado

partir. Quem me dera que vos tivesse contado…

— Podias ao menos ter encontrado uma forma de nos avisar na

véspera dos ataques, para que pudéssemos fugir — lembra o Max.

— Sim, pensei nisso. Mas como convencer-vos a fugir sem explicar o

que estava prestes a acontecer? Isso poria em risco toda a missão.

Também ponderei raptar-vos e levar-vos para um sítio seguro, onde a

polícia dificilmente vos encontrasse, até tudo terminar. Mas, e se

tivéssemos sido apanhados e mortos logo no início da Revolução? O que

seria de vocês, fechados num lugar inacessível? Decidi que o melhor era

não dizer nada. Porque um dia a guerra ia acabar e o mundo ia mudar e

poderíamos voltar a ser uma família.

— Uma família — digo eu, com um riso trocista.


— Sim, vocês são e serão sempre a minha família — responde ela,

travando o passo e pegando nas nossas mãos com desespero.

— Não é assim que se refaz esse caminho, Laura — digo, soltando-

me com brusquidão.

— Então, ensina-me como!

— Não sei — admito, cabisbaixa.

— Vamos encontrar uma maneira — diz o Max, segurando o meu

rosto entre as mãos.

Olho bem para dentro dos seus olhos, estes olhos doces que me fazem

sentir em casa. Aceno com a cabeça e continuo caminho. Não temos

tempo para isto. Não podemos parar. O Max conduz a Laura de volta ao

porta-cargas, afagando-lhe a cabeça com afecto.


ão sei ao certo quanto tempo já passou desde que saímos da

N galeria, muito menos quantos quilómetros andámos. Só sei que me

doem os pés e a alma… E agora a Rita faz-nos sinal para parar. Coloca o

dedo indicador em frente aos lábios e todos ficamos em alerta. Lá muito

ao longe começamos a ouvir algo que se assemelha a sirenes da polícia.

A Rita troca um olhar com o Max e este retoma a marcha num passo

mais rápido.

Engulo em seco.

Vem-me à memória o dia em que tentei fugir com o Max. Quero dar-

lhe a mão e desatar a correr, deixando tudo e todos para trás. Se

tivéssemos corrido mais naquele dia… Se não nos tivéssemos largado…

As sirenes, ainda as sirenes, serão reais? Temos de correr! Não percebo

por que não estamos a correr. O David volta a substituir o Mário na

função de empurrar o porta-cargas que leva a Laura. O Mário passa por

mim e vai para o fim da fila, para junto do Luís, a Rita vai para a frente,

junto do Max. Todos eles empunham armas, mas não dizem nada. São

como soldados treinados que sabem exactamente o que fazer. Só que eu

não sei. E sinto-me claustrofóbica neste lugar!

Controla-te, Billie. Respira.

Agora parece-me ouvir um helicóptero. Se calhar, é só a minha

imaginação a reviver aqueles dias passados na prisão. Dias, semanas,


flashes do candeeiro, dos puxões de cabelo, do sal que me obrigavam a

chupar.

Não!

Respira.

Se calhar é só a minha imaginação a fazer-me crer que a disposição

mudou. Será? Para onde foi aquela aura de invencibilidade? Deixámos

de ser uma fila ordenada a caminhar com cuidado por um percurso

seguro. Sinto a tensão a brotar de cada um deles, de cada um de nós. O

ar está mais ácido, o escuro, mais escuro.

Não. Não é a minha imaginação, há mesmo helicópteros,

perfeitamente audíveis mesmo a dez metros debaixo do chão. São cinco

da manhã. É por demais evidente que estão à procura da Laura.

Seguimos num silêncio inundado de medo, até que se ouve uma

explosão e o túnel de pedra parece estremecer. Tapo a boca para abafar

um grito.

— Chegaram — diz o Luís.

— Aqui? — pergunta a Laura aterrorizada.

— Não, ao túnel principal — responde a Rita.

— Não te preocupes, Laura, estão mortos — diz o Luís com um

sorriso nos lábios. — Foi uma armadilha que lhes deixei.

Os homens chocam as mãos, celebrando esta pequena vitória, mas eu

não me sinto nada tranquilizada. Se já descobriram o outro túnel, quanto

tempo demorará até encontrarem este? Quem nos garante que não

descobrem a tal abertura que vem aqui dar? Quem nos garante que não

há várias forças especiais a entrar por tudo quanto é buraco que

encontrem no chão?

— Falta muito? — pergunta a Olívia.

— Dois quilómetros — responde o Max, olhando para o relógio.


Estão a ser dois quilómetros de terror. Ninguém se atreve a falar.

Sentimos o alvoroço que se vive lá fora. A polícia deve estar a passar as

imagens do hospital a pente fino, talvez as do festival também. Já devem

ter encontrado o carro de roupa suja no piso do estacionamento do

hospital, com a bata da Laura lá dentro. Já devem ter cães focados no

seu cheiro, a farejar tudo, atentos ao que passa despercebido aos

humanos, como túneis secretos. O Mocho também já deve saber tudo

sobre nós. Pelo menos, sobre mim, o David, o Mário e a Olívia, quatro

cidadãos que desapareceram precisamente na mesma altura que a Laura.

Para o Mocho não há coincidências. Há dados concretos, cruzados a

cada segundo. Nem os pais do David conseguirão salvá-lo, seja lá qual

for a posição que tenham na estrutura do poder. Se alguma esperança

havia em chegar à saída deste túnel e encontrar uma silenciosa floresta, a

qual poderíamos atravessar apenas com um pouco de cautela, acabou de

se dissipar.

Um quilómetro.

Só falta um quilómetro.

À medida que nos aproximamos do final do percurso, o túnel fica

mais apertado. O David e o Mário, mais altos do que os restantes, já

andam curvados para não baterem com a cabeça no tecto. Também

conseguimos ouvir melhor as sirenes e os helicópteros que sobrevoam

toda a cidade e arredores. O Max garante que, dos sessenta e seis

quilómetros e meio de muro fronteiriço que o regime mandou construir,

na zona onde este túnel vai desembocar ainda não há betão, e que a torre

de controle mais próxima está a quinhentos metros. Para chegar ao outro

lado só temos de atravessar duzentos metros de mato denso e passar um


gradeamento de arame farpado que o Sam já conseguiu furar nas suas

diversas idas e vindas. Só duzentos metros. Parece tão pouco.

A Laura solta um brado de dor, levando a Olívia a aproximar- -se,

sempre atenta a quaisquer sintomas. Pede-lhe que se deite e que lhe

demos alguma privacidade, coisa difícil neste túnel que a cada metro

parece cada vez mais estreito. Após um exame rápido, pede que lhe

passem a nifedipina, para ajudar a diminuir as contracções e atrasar um

pouco o trabalho de parto. Fico surpreendida. Ficamos todos. É possível

que esteja a entrar em trabalho de parto? Pela primeira vez, vejo o Max

assustado. Como naquele dia em que foi comprar os testes de gravidez.

Há qualquer coisa na Laura que lhe desperta o instinto de protecção,

como se ela fosse uma boneca de porcelana sempre na iminência de se

estatelar no chão. Os homens são todos muito corajosos até depararem

com os mistérios do corpo de uma mulher. Lembro-me também de

como ficava atarantado quando eu lhe dizia que não conseguia sair da

cama por causa das cólicas menstruais. Faltava às aulas para ficar

comigo, numa aflição por não me conseguir ajudar. Fazia-me chá de

gengibre e canela, e enchia-me o saco de água quente vezes sem fim,

enquanto os analgésicos não faziam efeito.

Ao longe vejo uma tonalidade diferente, será?

É mesmo!

Finalmente a saída!

Estou tão aliviada que começo a soluçar. O David abraça-me,

protector. Sinto-me segura nos seus braços. Quero prolongar este

instante de estranha e precipitada familiaridade. Abafar o medo que

cresce. Não faço ideia do que nos espera lá fora, porém, pressinto que

ainda falta muito caminho até à liberdade. Ao menos aqui estamos

protegidos por estas pedras seculares… Assim que pusermos um pé lá


fora não sabemos o que vamos encontrar, além dos helicópteros que já

estão a patrulhar todo o perímetro, por mais remoto que seja. Contamos

com a escuridão da madrugada para nos proteger, se bem que falte

pouco para o dia raiar. Vinte e cinco minutos, para ser precisa.

A cerca de cem metros da saída, o Max obriga-nos parar. Explica que

temos de nos dividir em dois grupos, um guiado por ele e outro pelo

Luís. As duas únicas pessoas que sabem onde está a rede cortada e a

carrinha que nos vai levar para longe. Eu e a Laura temos de ficar com o

Max, isso é ponto assente.

— Fazia-me jeito mais um homem que saiba atirar — diz o Max.

— Eu sei atirar — assegura a Laura.

— Tu não estás em condições — descarta o Max.

— Eu vou convosco — oferece-se o David, dando-me a mão.

— Não, tenho de ser eu — afirma Olívia, num tom que não admite

contestação. — A Laura está a entrar em trabalho de parto.

— Mas não foi só uma contracção? — pergunta a Rita, admirada.

— Não. Tenho estado a observá-la e, apesar de não ter dito nada, sei

que já teve mais algumas e cada vez menos espaçadas — responde a

Olívia, olhando para a Laura com uma certa reprovação por ela ter

omitido essa informação. — Tenho de estar com a Laura até ao fim, a

não ser que algum de vocês tenha noção de como se faz um parto.

A Laura cora e o Mário fica assustado. Não se quer separar da mulher,

não agora, tão perto do destino. Olha para a Olívia como se esta o

tivesse traído. Ela aproxima-se e abraça-o com paixão, segredando-lhe

palavras doces ao ouvido.

— Laura, Billie e Olívia, venham comigo — ordena o Max. — Billie,

vais atrás com a arma e disparas para tudo o que se mexer. Mário, vem

tu também.
— Mas…

— Quatro ou cinco vai dar ao mesmo. Luís, tu levas o David e a Rita

para a saída sul. Temos de ir agachados, de gatas ou a rastejar, de

preferência escondidos no mato. A partir do momento em que sairmos

desta gruta, não podemos parar. Sempre que sentirem um holofote a

aproximar-se, param completamente. Vai correr tudo bem. Encontramo-

nos no lado de lá.

Desta vez, há abraços. Longos e sentidos abraços.

Só faltam duzentos metros.

Não é nada. Duzentos metros no meio de mato cerrado numa noite

sem lua. Vai correr tudo bem.

A Rita faz um gesto esquisito na testa de cada um, como um pequeno

sinal da cruz, enquanto murmura umas palavras numa língua que

desconheço. Deve ser para dar boas energias. O Luís e a Laura estão de

olhos fechados a rezar. Instintivamente, dou por mim também a dizer um

Pai Nosso. Na aflição todos se lembram de Deus, é bem verdade, mesmo

aquele Deus que me abandonou de todas as outras vezes e permitiu que

eu passasse por tantas atrocidades. Por outro lado, é o mesmo Deus que

ressuscitou o Max e reuniu a nossa santíssima trindade. Pelo sim, pelo

não, rezo um Pai Nosso, mal não há-de fazer.

É agora.

Vamos sair.
ssim que ponho um pé fora da gruta sinto o cheiro a terra e a

A folhas a invadir-me as narinas até quase doer. Mais do que fresco,

o ar é mentolado, e engulo-o em golfadas, ávida, depois de tantas horas

passadas debaixo do chão. No silêncio da madrugada, o barulho das

ervas a quebrarem sob os nossos passos parece ensurdecedor, mas não

há um caminho trilhado no chão. Cada passo é uma pequena conquista a

este solo fértil de plantas de todos os tamanhos. Muitas delas agarram-se

às nossas roupas e rasgam cada pedacinho de pele descoberto.

Caminhamos agachados, como o Max nos instruiu, apesar de a Olívia

alertar que isso pode acelerar o parto.

— Laura, por amor de Deus, tu não deixes essa criança sair — digo-

lhe, tentando quebrar a gravidade da situação.

Ela sorri, apesar das dores que sei que está a sentir. E assim se vai

desfazendo mais um bocadinho daquela mágoa que nos separa.

Ouve-se um helicóptero a aproximar-se desta zona, o que me faz

paralisar. Tenho a certeza de que, apesar da vastidão de terreno que

podem sobrevoar, os holofotes vão incidir precisamente em nós.

Olhamos uns para os outros, olhares de pânico, e, sem trocar uma

palavra, deitamo-nos todos no chão, tentando cobrir-nos com a

vegetação exuberante, o rosto contra a terra, estátuas de carne e osso.

Parece que a aeronave voa agora mesmo por cima das nossas cabeças.
Não posso ter a certeza, nem sequer me atrevo a olhar, mas o barulho é

ensurdecedor e sinto o vento provocado pelas hélices a agitarem a

vegetação que, por enquanto, nos protege. Num impulso, pego na mão da

Laura. Se morrermos agora, quero que saiba que estou disposta a

perdoar. Ela segura a minha com força, grata por eu demonstrar essa

abertura. Não precisamos de dizer nada. Tudo é dito pele com pele.

Quando o helicóptero se afasta, agarramos a oportunidade de avançar

um pouco mais. Sabemos que, não tendo encontrado nada de suspeito,

não voltará a sobrevoar esta zona nos próximos minutos, e nós

precisamos somente de mais uns minutos. Levantamo-nos e

continuamos o percurso, passo a passo. Só agora noto que a Laura não

largou a minha mão. Aperta-a com um vigor desmedido, fazendo estalar

alguns dos meus ossos. Acho que está a ter outra contracção. Aviso o

Max, preocupada.

— Estamos quase — garante ele —, falta mesmo muito pouco.

A Olívia tenta ajudar a Laura a controlar a dor com a respiração.

— Inspira e expira lentamente — diz-lhe ela, como se fosse possível

no meio desta urgência.

Se eu estou ofegante e não estou em trabalho de parto, como é que ela

vai respirar lentamente?

E, subitamente, um cão começa a ladrar.

— Não é nada, continuem a andar — ordena o Max. — É só um cão a

ladrar com a agitação dos helicópteros.

Sim, Max, tens razão, apesar da voz que te treme. Já se sabe que,

quando acorda um cão, acordam todos os da vizinhança. Querido Max,

sempre a tentar manter a calma e o espírito positivo. No entanto, os

latidos parecem aproximar-se mais e mais e mais. Não estão por detrás

de um muro. Percebo, então, que são cães pisteiros no nosso encalce.


Perseguem a Laura, sabem-lhe o cheiro de cor, estão cada vez mais

perto, temos de correr!

O helicóptero também volta a voar mesmo por cima de nós,

possivelmente alertado por alguém que opera as tropas cá em baixo. Os

seus holofotes, junto com os da torre de vigia a quinhentos metros,

começam a iluminar o campo que se estende à nossa frente e que parece

nunca mais acabar. Subitamente, é como se fosse de dia. Voltamos a

deitar-nos, tentando não sobressair mais do que o tamanho da vegetação,

raspando os joelhos no chão, mas tenho a certeza de que já nos viram. A

alguns metros de nós, ou talvez muitos, não sei, oiço a voz do David.

— Ei! Estamos aqui — grita ele, tão longe e tão perto.

Quero parar e erguer-me para tentar perceber o que se passa, se é

connosco que está a falar, quiçá precisa de ajuda, um pé preso num

galho, mas o Mário bate-me com o punho da arma nas pernas e obriga-

me a continuar o caminho. Segundos depois, uma chuva de tiros abate-

se para os lados de onde surgiu a sua voz.

Não consigo respirar…

Quero correr até lá, ver se está tudo bem. Tem de estar tudo bem. O

Mário garante que aquilo foi só uma manobra de diversão para afastar os

cães e os holofotes do nosso pequeno grupo; garante que o David sabe o

que está a fazer. Mas saberá? Um miúdo de vinte e dois anos? Não

estará armado em herói? A fugir do plano? Não me lembro de o Max ter

mencionado manobras de diversão. Só disse para não pararmos de correr

até chegarmos à cerca. De que vale uma manobra de diversão contra

uma salva de tiros?

Começo a soluçar.

Pára!

Nós vamos conseguir!


Já vejo o arame farpado e um vulto do outro lado, que presumo que

seja o Sam ou alguém que ele mandou para nos ajudar.

Nós vamos conseguir!

Começamos a correr, já sem nos preocuparmos se estamos ou não

agachados, se estamos ou não na mira de quem nos persegue. Não

podemos parar.

Nós vamos conseguir!

A Laura está agarrada à barriga e percebo que tem as calças

molhadas. Rebentaram as águas! Com todas as minhas forças começo a

puxá-la.

— Vem, Laura, vem!

O Max já está a segurar a cortina de arame, de forma a indicar-nos a

abertura por onde temos de passar. Uma porta invisível para o outro

lado, o da salvação. Estamos tão perto!

Nós vamos conseguir!

A Olívia empurra a Laura para que chegue mais depressa nestes

metros finais. É ela que temos de salvar! Vamos, Laura, não pares agora!

Sinto a mão do Max a segurar-me o braço enquanto atravesso a abertura.

Passo eu primeiro, sem largar a Laura, puxando-a com toda a minha

força até a ter ao meu lado.

Nós vamos conseguir!

Os cães voltam a estar demasiado perto, assim como os homens que

os guiam, mas nós os três já conseguimos atravessar, já estamos do outro

lado da fronteira. O homem que veio ajudar indica-nos o caminho até à

carrinha, enquanto empunha uma metralhadora e começa a disparar

sobre os cães. Enquanto corremos os últimos metros, sinto várias balas a

passarem ao nosso lado. Não sei de onde vêm, temos de continuar a

correr.
Nós vamos conseguir!

A carrinha já está aqui, mesmo à nossa frente. Ajudo a Laura a subir,

está empapada em suor e ofegante, mas, por fim, em segurança. O Max

já vem também. Falta tão pouco, falta só a Olívia e o Mário. Tudo se

desenrola em segundos que parecem horas. Ela está a atravessar a

abertura neste instante, gatinhando na nossa direcção, só que os

militares que nos perseguem estão praticamente em cima deles. Para

proteger a mulher, o Mário levanta-se e deixa-se ficar de pé, os braços

abertos, encostado ao arame farpado. Olha para a Olívia, esboçando um

sorriso. Ela grita e tenta recuar até ele. O Max impede-a, lançando-a ao

chão. As balas continuam a rasar os nossos ouvidos, mas muitas ficaram

cravejadas no corpo do Mário, que estremece e fica ali pendurado, como

um Cristo abnegado que só tinha aquela missão.


ma vez, tive um acidente de carro. Vinha com os meus pais de um

U passeio na praia. De repente, um despiste para um descampado de

areia onde demos três cambalhotas e ficámos capotados. Por sorte,

nenhum de nós se magoou a sério, mas o susto foi tremendo. Durante

algum tempo, voltei a molhar a cama. Quando a minha mãe descrevia o

evento, fazia-o com detalhes pormenorizados acerca do barulho do vidro

a estilhaçar, do metal a retorcer, dos pneus a chiarem, do motor a roncar.

Eu, por outro lado, só me lembro de ouvir a música que estava a dar na

rádio, como se todos os sons em volta tivessem sido sugados para longe

deste mundo. I’m like a bird, I only fly away, I don’t know where my

soul is, I don’t know where my home is. Foi só isto que eu ouvi,

enquanto o carro rebolava e durante algum tempo depois de ter parado,

eu presa pelo cinto, de cabeça para baixo, até ser desperta pela voz do

meu pai. Agora essa música volta a pairar na minha cabeça, só a música,

bloqueando a entrada de qualquer outro som. Uma música dissonante

com o que se passa à minha volta.

Continuo parada junto às portas traseiras da carrinha. O homem da

metralhadora abre fogo enquanto recua até mim. Só vejo o clarão que os

disparos provocam, não o som. Imagino que seja alto. Procuro o Max e

vejo-o a arrastar uma Olívia em pranto até aqui. No lugar do condutor,

outro homem também dispara para lhe dar cobertura. O Max passa por
mim e atira-me para dentro da carrinha, puxando a Olívia consigo, e

logo a carrinha arranca, com as portas de trás ainda abertas. O homem

da metralhadora salta para o banco do pendura. Os vidros devem ser

blindados, porque a chuva de tiros continua e nenhum se estilhaça. No

entanto, surgem aqui e ali, na chapa que nos envolve, pequenas

saliências, como se o interior das paredes da carrinha estivesse com

acne. Sorrio com as coisas parvas que me passam pela cabeça. I don’t

know where my soul is, I don’t know where my home is.

Parece-me que estamos a abrandar a marcha, mas não entendo

porquê. Temos de seguir! Não podemos parar agora! Tento olhar pelo

vidro da frente para perceber o que se passa. Vejo a boca de toda a gente

formando grandes ós, gritos que não escuto. Nos meus ouvidos só cabe

aquela mesma música, sempre na parte do refrão.

A carrinha não chega a parar, mas pelas suas portas escancaradas vejo

o Luís e o David a entrar. Têm lágrimas no rosto. Oiço as suas vozes

muito ao fundo, no meio da música que insiste em tocar. Fico tão feliz

por vê-los.

Retomamos a marcha a alta velocidade, com o condutor que parece

gritar let’s go, let’s go, mas em mim continua o I only fly away. Deduzo

que o condutor seja o tal Sam, acho que o Max disse que ele é meio

inglês. Não o imaginava assim. Parece um jogador de rugby, e não o

professor de Arqueologia que eu tinha idealizado, com óculos na ponta

do nariz, colete bege cheio de bolsos, chapéu de abas largas. Tinha

imaginado uma espécie de Indiana Jones. Não sei porque me detenho a

pensar no aspecto dele, mas depressa sou chamada à terra pela Laura,

que me aperta de novo a mão, como se pretendesse esmagar-me os

dedos.
O Max está a falar comigo, mas continuo sem escutar o que me diz.

I’m like a bird, I only fly away. Só vejo a sua expressão de pânico e os

seus olhos alagados. Arrasta a Laura para cima de si, as costas dela

contra o seu peito. Não a quero largar, mas o movimento provoca-me

uma dor profunda no ombro. O meu grito desliga a música na minha

cabeça e sinto o Luís a agarrar-me com firmeza e a despir-me a

camisola. Não sei o que lhe deu! Mas não consigo ripostar. Olho para

baixo, para o meu tronco nu e só vejo sangue. Só então percebo que é o

meu sangue. Não sei de onde vem. Só me dói o ombro. Parece que arde.

Um líquido vermelho e espesso a brotar como um pequeno rio. Será que

levei um tiro?

Acho que vou desmaiar.


illie !

B Não vais morrer agora, Billie, ouviste?

Não te atrevas a morrer!

Não aguento o peso de outra morte nas minhas costas.

Não aguento não me teres dado o teu perdão.

Billie, não deixei de pensar em ti um só dia, sabias? Deixei-te uma

carta e tudo. Procurei-te, juro que procurei! Nunca parei de procurar.

Aaaaah!!! Por favor!

E há tanta coisa que ainda te quero dizer.

Vá lá, Billie…

Tu prometeste que cuidavas do meu bebé. Tu prometeste que serias a

madrinha dele, lembras-te? Eu sei que foi há muito tempo, noutra vida,

mas éramos nós. Ainda somos nós. Eu prometo que vou conseguir fazer

com que me perdoes. Mas para isso tens de viver.

Billie, por favor, Billie!

Volta para mim!

Volta para mim…


illie, acorda!

B Billie!

Façam qualquer coisa! David! Luís! Por amor de Deus, falem com

ela! Eu não posso largar a Laura.

Olívia, diz-lhes o que têm de fazer!

De onde vem esse sangue?

Billie!

Não estive três anos à tua espera para te perder assim, ouviste?

Estamos juntos de novo, está aqui a Laura. Salvámos a Laura, Billie!

Conseguimos!

Billie, já passámos a fronteira, ouviste? Já estamos quase a chegar,

não nos vais deixar agora.

Por favor, Billie! Acorda!


ão sei quanto tempo fiquei sem sentidos, mas sinto a bochecha

N direita a arder. Alguém me deu um estalo. Deram-me um estalo?

Quer dizer, porque é que me estão a bater? Eu estou bem, não precisam

de me bater, parem, eu estou bem, mas é tão difícil falar, a língua está

enrolada, descansada, inerte. Dentro de mim é outro tempo, desfasado

do deles e do que quer que estejam a fazer. Não sei por que me batem.

Se calhar estou outra vez numa cela, se calhar isto foi tudo um sonho e

nunca saí de lá, se calhar fui apanhada, não sei para onde a levaram, juro

que não sei onde ela está! Não sei! Não me façam mal! Por favor! Não!

— Billie!

É a voz do Max que me traz de volta.

— Billie, precisamos de ti, Billie! Acorda, foda-se!

E eu obedeço.

O Max está aqui.

Está vivo, agora lembro-me.

Olho em volta para me localizar. Tenho a cabeça deitada no colo do

David. O Luís está a enfaixar-me o ombro. Estou numa carinha. Não

conheço as pessoas que estão a guiar. Fecho os olhos e, de repente, vejo

o corpo do Mário no arame farpado. Não pode ser! Devo ter sonhado.

Ergo o tronco como se estivesse a vir ao de cima depois de ter estado


demasiado tempo debaixo de água. A urgência em encher os pulmões de

ar, só que o movimento provoca-me uma dor lancinante.

— Já acordou — diz o Luís.

— Bom dia, princesa — brinca o David, acariciando-me a cabeça.

— Tirei a bala, foi muito superficial — garante o Luís, como se isso

me deixasse mais tranquila.

Parece que acabei de sair de uma anestesia. Estou zonza, como se

estivesse numa nave espacial. Gravidade zero.

O Max está na parte de trás da carrinha a agarrar a Laura, que geme

de dor, mas que ainda assim me sorri. Uma mão a segurar a dela, a outra

a tentar tirar qualquer coisa da mochila onde estão os primeiros

socorros. A Laura tem as pernas abertas e a Olívia está à sua frente. De

novo a imagem do Mário no arame farpado. Não foi um sonho. Engulo o

choro. Nem a Olívia teve tempo de chorar, está ali, estoicamente, a

ajudar a Laura enquanto a carrinha avança aos solavancos por um

caminho que decerto não é uma estrada. Não sou eu que me vou armar

em mariquinhas, não sou eu que vou desatar a chorar.

Oh, meu Deus, a Laura está a ter um filho! O bebé vai nascer aqui,

nesta carrinha imunda, o bebé da Laura. Quero ir para o seu lado, para a

parte de trás. Já estou bem, já estou lúcida, estamos aqui todos.

Estamos aqui todos? Então e a Rita? Onde está a Rita?

— Onde está a Rita, merda?

Ninguém me responde.

O David vira a cara para a janela. Outra vez o Mário preso ao arame

farpado, as balas a trespassarem-lhe o corpo. E a Rita a pairar sobre ele,

como um anjo. A Rita com o seu sorriso etéreo, a dizer, naquela língua

esquisita, que vai correr tudo bem. Um gesto com a mão sobre as nossas
testas e as balas a atravessarem-na de um lado ao outro. Só que dela não

brota sangue, apenas luz.

Começo a soluçar. O David abraça-me e chora também, mas logo um

grito rouco e profundo da Laura faz-me sair deste torpor.

— Faz força agora! Agora, Laura, força! — insiste a Olívia com a voz

embargada.

O meu olhar cruza-se com o dela e noto que tem a pele arroxeada,

parece prestes a desfalecer. Tenho de ir até lá. Vou salvar-te! Salto para a

parte de trás da carinha ignorando a dor no ombro e começo a gritar:

— Tu consegues, Laura, tu consegues! Não pares agora!

A Olívia pede-me para agarrar numa toalha limpa, que estendo com

dificuldade sobre o braço bom. Depois pede ao Max que tenha à mão

um fio resistente e a tesoura para cortar o cordão umbilical, que ele

quase deixa cair com um solavanco da carrinha.

— Estamos a chegar à estrada principal — diz o Sam, como se isso

agora interessasse para alguma coisa.

Não faço ideia para onde estamos a ir, mas tenho a certeza de que não

há um hospital ali à frente e que este bebé vai nascer aqui, agora.

— Olha para mim, Laura! Manda a merda do puto cá para fora!

Ouviste?

Ela assente e volta a encher os pulmões como se fosse mergulhar. Faz

uma pausa e, então, expele todo o ar com um grito gutural e, com ele, a

minúscula criatura. Todos se calam e esperam a melodia do seu choro,

que não surge logo. No primeiro instante, parece um coelho acabado de

esfolar. A Olívia coloca-o na toalha que tenho no braço, o seu corpo

rosado e coberto de uma camada amarelada, como se o tivessem barrado

com demasiado creme. É leve como uma pluma. Com destreza de

enfermeira, estica o cordão umbilical e pede ao Max para clampá-lo a


um ou dois centímetros da barriga, cortando-o de seguida. É uma

menina! É tão perfeita. A Olívia dobra a toalha sobre a bebé como se

estivesse a enrolar um burrito. Depois aninha-a no peito da mãe.

Mãe.

Palavra santa, mesmo que ela não o seja.

Nem acredito.

Laura, querida Laura, está aqui o teu bebé.

Permanecemos todos em silêncio, como se temêssemos perturbar a

estranha calma que se impôs depois do caos e não soubéssemos escolher

as palavras exactas para dar as boas-vindas a um novo habitante deste

planeta. Não podemos assustá-lo logo nos primeiros minutos aqui. Tem

o resto da vida para descobrir o que é a dor e o medo. Este é um raro

momento de paz na aurora de um novo dia. Respeitemo-lo.

Os homens desviam o olhar, enquanto a Olívia puxa a placenta e

coloca toalhas entre as pernas da Laura. Quase tão exausta como a

parturiente, deixa-se então cair nos braços do Luís, para finalmente

desabar. Sentam-se os dois no banco, ao lado de David, ela no meio,

dois rapazes tentando acalmar uma dor que não tem nome. Os olhos

dela estão vazios.

Também eu não sei bem o que estou a sentir. Alívio? Gratidão? Tenho

um peso enorme no peito que me impede de respirar livremente, ainda

incrédula com o destino do Mário e da Rita. Não era para ser assim. Ou

morríamos todos ou não morria ninguém, era isso que eu tinha

imaginado. Eram só duzentos metros da saída da gruta até à cerca e nem

sequer havia lua. Estávamos tão perto de um final feliz… Tão perto…

Porém, à minha frente tenho um Max a fazer festas na cabeça da

Laura e a olhar embevecido para a bebé, como se fosse ele o pai. É uma
imagem demasiado bonita para este cenário de horror, com cheiro a

sangue e suor, mas suficiente para me fazer sorrir. Tiro um cobertor de

emergência da mochila para cobrir mãe e filha, e, com ternura, deposito

um beijo na testa de cada uma. Deito-me ao lado deles. O Max acolhe-

me com o braço. Agora somos quatro.

Lá da frente, o Sam grita que o hospital é a vinte quilómetros, se bem

que não era essa a chegada que tínhamos planeado. O plano era

passarmos a noite num lugar seguro e, na manhã seguinte, convocarmos

os meios de comunicação para uma conferência de imprensa, onde

mostraríamos a Laura, uma das líderes das Brigadas Verdes, ali, em

carne e osso, a testemunhar contra a liderança autoritária do nosso país.

O plano era pedirmos asilo político e estarmos protegidos da

possibilidade de sermos extraditados ou irmos parar à prisão. Mas na

vida nada é como planeamos, por isso, não temos outro remédio senão

prepararmo-nos para o frenesim que a nossa chegada vai provocar. Será

difícil aparecer de forma discreta nas Urgências do hospital: uma

carrinha cravejada de balas, uma parturiente com um recém-nascido nos

braços, uma mulher com um tiro no ombro, outra em estado de choque,

vários homens de aspecto andrajoso e com várias escoriações, armas por

todo o lado. Isto aliado à histeria que deve estar a inundar os meios de

comunicação, que a esta hora já devem saber que houve um grande

tiroteio na fronteira e que há fugitivos a monte. Ainda ponderamos

manter o plano e seguir para o abrigo, mas o Max diz imediatamente

que isso está fora de questão. A Laura e a bebé têm de ser observadas o

mais depressa possível, e eu perdi demasiado sangue e tenho uma ferida

de bala que tem de ser suturada e desinfectada como deve ser.

A Laura começa a chorar. Teme que a prendam e lhe tirem a bebé,

logo ali, nas Urgências, e a entreguem ao Paolo. O homem da


metralhadora, que agora sei chamar-se Tobias, garante que tal não vai

acontecer. E mesmo que a decisão de asilo seja revogada, teremos vinte

dias para sair deste país e tentar a sorte num outro. Nem que tenhamos

de nos enfiar num bote de borracha e rumar a outro continente. Além

disso, já há diversas organizações de direitos humanos atentas ao que se

passa que nos vão dar todo o apoio legal, assegura. O único perigo que

corremos, alerta-nos ele, e que dificilmente conseguiremos evitar, vem

das próprias Brigadas Verdes, pois têm agentes espalhados por

diferentes lugares. Estamos todos bem cientes de que o Paolo não vai

parar de procurar a Laura e um filho que sabe ser dele, mesmo depois de

mostrarmos ao mundo quem ele verdadeiramente é: um ditador

sanguinário como tantos outros. Vamos ter de andar atentos, não só

agora, mas para sempre. Por isso mesmo, a Laura chora, obrigando-nos

prometer, a mim e ao Max, que vamos cuidar da sua bebé, caso ela não

possa fazê-lo. Seremos mais do que um pai ou uma mãe, seremos a sua

família. Prometemos, claro. Já estava combinado há tanto tempo,

naquele outro tempo em que éramos leves…

Para desviá-la de tais preocupações, pergunto-lhe se já tem nome para

a menina. Ela olha-me com surpresa, como se nunca tivesse pensado

nisso. Depois, limpa as lágrimas com as costas da mão e olha para o seu

pequeno embrulho com uma ternura incomensurável, passando o dedo

indicador pelo contorno do seu rosto, pela ponta do seu nariz, por cada

dedinho minúsculo e perfeito, como se estivesse a procurar a resposta na

criança. Olha então para mim e para o Max, e, com uma certeza feliz e

triste, anuncia que vai chamar-lhe Esperança.

No preciso momento em que a Laura profere o nome da sua bebé, a

carrinha entra na estrada de alcatrão, seguindo ainda veloz, mas sem os

constantes abanões, como se o anúncio tivesse posto fim a qualquer


turbulência. Talvez seja um bom presságio para esta criança, que nem

imagina como chegou a este mundo. Nasceu no meio de uma guerra e

espera-a uma ainda maior com as suas raízes. Um dia saberá quem é o

pai, o que fez a mãe, quantas mortes carregam em cima de si… Um dia.

Mas agora nada disso importa.


al como eu suspeitara, somos recebidos nas Urgências com um

T misto de desconfiança e admiração. Não é todos os dias que se

vêem fugitivos do país vizinho. Os poucos que se sabia terem fugido,

rapidamente se integravam com identidades falsas; a maioria jazia num

qualquer buraco perto da fronteira. Ordem 101, atirar para matar, como

nos tempos do Muro de Berlim.

O Sam e o Tobias trataram das explicações, obrigando o pessoal

médico a garantir que não nos vai separar e que a criança nunca sairá de

perto da mãe. O director do Serviço de Urgências aparece e acompanha-

nos até a um bloco operatório que fica reservado para nós e onde

recebemos tratamento. Olhamos uns para os outros, esboçamos sorrisos

cansados e voltamos a fechar os olhos. O que quer que cada um esteja a

pensar é indizível.

Algum tempo depois, a polícia e alguns homens de fato entram por ali

adentro. Temos de prestar declarações. Tal como nós, estão incrédulos

com a nossa fuga e preocupados com o impacto que terá nas relações

diplomáticas entre os dois países. Segundo o comunicado enviado pelo

nosso governo através da embaixada, a Laura foi raptada por um

perigoso grupo armado e deve ser extraditada assim que for encontrada.

Laura explica que está ali de livre vontade, grata a quem a salvou.
Enfatizamos que a nossa vida corre perigo e que vamos requerer asilo.

As autoridades aconselham-nos a passar a noite no hospital.

Dormimos todos numa enfermaria que está em remodelação. A porta

é guardada por polícias, mas também por Sam e Tobias, que se

recusaram a arredar pé. Assim que o dia começa a clarear, duas

enfermeiras trazem-nos o pequeno-almoço e eu sinto-me num hotel de

cinco estrelas, ou como imagino que será um hotel de cinco estrelas,

visto que nunca frequentei nenhum. Há pão e manteiga de verdade, leite,

café, fruta e bolachas. Só Olívia se recusa a comer. O Luís obriga-a a

beber o chá. Sam e Tobias entram na sala, trazendo consigo duas

mulheres que nos apresentam como as nossas advogadas. Lágrimas de

alívio correm pelas minhas faces ao ouvir que está tudo a ser tratado e

ninguém nos irá deportar. Assim que sairmos do hospital, que será ainda

durante a manhã, teremos um abrigo seguro, com segurança vinte e

quatro horas por dia, até todo o processo estar concluído. Além do asilo,

aconselham-nos a entrar no programa de protecção de testemunhas, com

base na denúncia que vamos fazer ao Tribunal Penal Internacional. Para

já, aconselham-nos a não falar com a imprensa.

Laura insurge-se de imediato.

— Falar à imprensa é o único motivo pelo qual arriscámos a vida

nesta fuga alucinante.

— A única coisa que justifica a morte da Rita e do Mário — diz

Olívia, naquelas que são as suas primeiras palavras desde que saiu da

carrinha.

— Mas se vocês vão aparecer perante as câmaras, será muito mais

difícil esconder-vos. Laura, você sabe que as Brigadas Verdes têm

espiões deste lado.


— Sei. E sei que estão treinados para silenciar quem quer que seja

que fale contra o nosso admirável governo. Mas eu não tenho nada a

perder.

— Agora tens — interrompo-a, olhando para a Esperança, espantada

pelo seu desprendimento.

— Quando me juntei às Brigadas Verdes sempre estive ciente de que

poderia pagar essa decisão com a vida. Se quero acabar com eles, tenho

de ter a mesma predisposição. Marquem, por favor, a conferência de

imprensa, o mais depressa possível.

— Não é necessário — diz o Max, espreitando para a rua. — O baile

já está armado lá em baixo.

Acorremos todos à janela e vemos os passeios repletos de jornalistas,

carros de exteriores e polícias a tentarem fazer uma barreira de

segurança. O director do hospital está a dar uma actualização e a pedir,

em vão, que respeitem os doentes. Olhamos uns para os outros e

assentimos. Está na hora.

Antes de as portas do elevador se abrirem no piso 0 do hospital, a

Laura coloca-me a filha no colo e avança, confiante. Seguimo-la em

silêncio, porém, antes de atravessar as portas de vidro que nos separam

do frenesim dos meios de comunicação social, ela pede-nos que

fiquemos do lado de dentro. Diz que as advogadas têm razão e que não

há necessidade de nos expormos todos. A sua cara já é conhecida em

qualquer parte do mundo, a sua cabeça estará sempre a prémio, mas

todos estaremos mais seguros, incluindo a Esperança, se forem poucos

os que conhecem os nossos rostos. O Max protesta. Não a quer deixar ir

sozinha. Ela aperta-lhe o rosto entre as mãos, encosta a testa na sua e

diz-lhe que volta já.


Vemo-la a ser rodeada por um batalhão de seguranças que tentam

conter os jornalistas, e a esperar que todos se acalmem. Ouvimo-la

começar o seu discurso, naquele tom de voz familiar que usava nos

tempos dos Estudantes Pelo Planeta: segura, assertiva, envolvente.

O meu nome é Laura Espinosa. Sou uma das fundadoras das

Brigadas Verdes e a porta-voz do movimento desde o tempo em que

éramos apenas um grupo de sonhadores a lutar por um mundo mais

verde. Conseguimos chegar ao poder e, em três anos, implementar mais

medidas de acção climática do que todos os outros países juntos. Os

resultados são impressionantes e os números que vos têm chegado são

absolutamente verdadeiros. No entanto, não se deixem enganar!

Corremos perigo de vida!

Para lá destas fronteiras, o que existe é uma ditadura sanguinária

que só tende a piorar. Todas as conquistas foram feitas à custa de

execuções sumárias de milhares de cidadãos e atropelos aos mais

básicos direitos…

Um estrondo.

Som seco.

Gritos e flashes a dispararem freneticamente, pessoas a correrem em

todas as direcções.

O Max obriga-me a recuar e empurra-me para dentro do elevador. Os

meus olhos fazem-lhe a pergunta. Os seus olhos dão-me a resposta…

Não pode ser.

Não pode ser.

Os outros também entram no elevador, que desce agora lentamente

para o piso da garagem. Estamos todos, menos a Laura. O Sam atreve-se


a quebrar o silêncio esmagador. Garante que nos vai levar para um lugar

seguro. Ninguém lhe responde. Ninguém consegue falar.

Não sei se algum dia haverá um lugar seguro.

Não sei se algum dia esquecerei a mancha de sangue cuspida contra a

porta de vidro.

Não sei se…

Até que me lembro de que tenho a Esperança nos braços. Terna e

inocente Esperança. Aconchego-a mais contra o peito, inspirando o seu

cheiro adocicado.

Querida Esperança, fiz uma promessa à tua mãe.

Não te preocupes. Vou cuidar de ti. Vamos cuidar de ti, eu e o Max.

E um dia, contar-te-emos a história dela. Uma história bonita, cheia

de sonhos e ideais. Uma história de amor e de coragem. Começa assim:

a tua mãe morreu para nos salvar.

FIM
AGRADECIMENTOS

Comecei a escrever este livro em Dezembro de 2019, revoltada com

as notícias dos incêndios na Austrália, que mataram mais de oito mil

coalas em poucas semanas. Em Julho de 2020, com uma pandemia e um

confinamento pelo meio, escrevi no meu diário: «Não consigo

concentrar-me para continuar o livro. Vou em cinquenta páginas, a

última das quais escrita há três meses.» Estava desmotivada, sem editora

e com medo de arriscar escrever um género que nunca tinha escrito. Em

Março de 2021, pu-lo na gaveta e atirei-me ao E Se Eu Morrer

Amanhã?.

Contudo, as personagens recusavam-se a sair de cena. Viveram na

minha cabeça durante todo este tempo e, a cada notícia sobre o colapso

climático que estamos a viver, renovava-se a urgência de escrever. Ainda

assim, havia o medo. E se nunca conseguir acabar esta história? E se

falhar redondamente ao sair da minha zona de conforto? Em Maio de

2023, decidi enfrentá-lo e recomeçar, encorajada pela minha editora,

Diana Garrido, e pelo Hugo, sempre o Hugo, o meu amor e maior fã.

Obrigada aos dois.

Tenho de agradecer também aos meus filhos, que, pela primeira vez,

se mostraram realmente interessados no que eu estava a escrever e

quiseram ler o primeiro rascunho, apaixonando-se também pela história.

A Carlota, inclusive, incentivou este final e deu várias sugestões


interessantes. O Tiago, ávido leitor, garantiu que ficou preso da primeira

à última página. Já agora, desculpem os dias em que estou demasiado

embrenhada na minha escrita e me irrito convosco desnecessariamente.

Para escrever os capítulos finais, tive de me isolar naquilo a que

chamei um auto-retiro literário, possível apenas porque existe o Hugo,

sempre o Hugo (e, assim, percebem por que razão quase todos os meus

livros lhe são dedicados). Obrigada à minha avó, que disponibilizou o

apartamento em Sesimbra para o fazer.

Agradeço, claro, aos meus pais, por lerem sempre a primeira versão

com orgulho; aos meus leitores, por me mimarem com as suas

mensagens e me pedirem para nunca deixar de escrever; às minhas irmãs

do Clube das Mulheres Escritoras, por me fazerem sentir menos sozinha

no processo de escrita e noutros também; à Íris Bravo, por ter revisto a

cena do parto e respondido às minhas questões com entusiasmo; e a

todos os que lutam diariamente contra a destruição do planeta,

denunciando os culpados, inventando tecnologias verdes ou mostrando

formas de nos salvar.

Por fim, obrigada a toda a equipa da Penguin Random House que

esteve envolvida na criação deste livro (revisão, paginação,

comunicação, distribuição…), e a si, que decidiu entrar neste Admirável

Mundo Verde.

Podemos continuar esta conversa no Instagram (@filipafonsecasilva),

no TikTok (@filipafonsecasilva) ou por e-mail para

filipafonsecasilva@gmail.com.
Alguns Factos e Soluções para as alterações

[1]
climáticas

A concentração de CO2 na atmosfera está nos valores mais altos

de toda a história da humanidade.

O ano de 2023 foi o mais quente desde que há registo (ou seja,

desde 1850), e os dez anos mais quentes foram todos registados

na última década.

Quase metade da população mundial vive em áreas de alta

vulnerabilidade, sujeitas a secas, inundações, ondas de calor e/ou

aumento do nível das águas.

A emissão de gases com efeito de estufa que acontece devido à

desflorestação é superior às emissões de todos os veículos de

passageiros existentes no planeta.

A indústria agro-pecuária é a principal responsável pela

desflorestação, sobretudo a produção de óleo de palma, soja e

gado (e soja para alimentar o gado, enquanto há pessoas a morrer

à fome).

Apesar de a Natureza conter em si maneiras de captar e reter

carbono (através das algas, árvores e solo), apenas 3% dos

fundos de emergência climática são usados para a proteger.


A regeneração e a protecção dos ecossistemas é a forma mais

barata, viável e eficaz para garantir a nossa sobrevivência, mais

do que qualquer tecnologia inventada pelos humanos.

Parte dos direitos de autor recebidos com esta obra serão doados à

organização One Tree Planted (onetreeplanted.org), que trabalha na

reflorestação de áreas em risco, proporcionando também formas de

sustento para as comunidades locais.


Nota

[1]
Fonte: conservation.org e site do Parlamento Europeu.
Sobre este livro

Num futuro não muito distante, um grupo de activistas pelo clima

radicaliza-se e decide derrubar o sistema. Dotado de uma eficaz

máquina de propaganda, que lhe garante o apoio popular, consegue

chegar ao poder e impor uma sociedade totalmente verde. Mas a que

preço?

Depois do sucesso de «E Se Eu Morrer Amanhã?» e de «O Elevador»,

nomeados para melhor livro do ano e em adaptação para filme, Filipa

Fonseca Silva traz-nos um romance distópico electrizante, que levanta


questões incontornáveis, como a emergência climática e a polarização

de uma sociedade à deriva.

INTENSO. COMOVENTE. IMPERDÍVEL.


Sobre Filipa Fonseca Silva

Filipa Fonseca Silva nasceu no Barreiro em 1979.

O seu romance de estreia, Os 30 – Nada é como Sonhámos, publicado

em 2011 e traduzido em várias línguas, fez com que se tornasse a única

autora portuguesa a atingir o Top 100 da Amazon. Desde então,

publicou O Estranho Ano de Vanessa M., Amanhece na Cidade, O

Elevador (finalista do Livro do Ano Bertrand 2023), E Se Eu Morrer

Amanhã?, dois livros de humor e inúmeras crónicas, contos e ensaios.

Feminista, ecologista, fundadora do Clube das Mulheres Escritoras,

além de escrever, gosta de pintar e de comer melancia.

Você também pode gostar