Admirável Mundo Verde - Filipa Fonseca Silva
Admirável Mundo Verde - Filipa Fonseca Silva
Admirável Mundo Verde - Filipa Fonseca Silva
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Edição em formato digital: Agosto de 2024
© desta edição:
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Por vontade da autora, o presente livro não segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Índice
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Admirável Mundo Verde
Agradecimentos
Alguns Factos e Soluções para as alterações
climáticas
Nota
Marcas
Índice
Início
Para o Hugo
PRÓLOGO
estrada, por entre as árvores que formavam uma densa mancha até ao
rio, uma lanterna piscou três vezes, avisando que o alvo estava a sair do
água como prata. Ali, qualquer brilho era absorvido por uma espuma
costas, o homem fitava o manto de espuma e nem reparou que aos dois
andasse mais um metro que fosse, entraria no rio. Foi nesse instante que
sons que soltava fossem perceptíveis. Tentou olhar para trás, suplicar
contra a pele. Sabia que o rio não era muito profundo, dificilmente
fosse por dinheiro, teriam ficado com o relógio ou com a carteira. Talvez
«Continua a andar!», gritou ela assim que se deu conta da sua hesitação.
tentou correr para trás, só que o peso das caneleiras fez com se
enterrasse cada vez mais no fundo lodoso e deixasse de ver o que quer
que fosse, como se, de um momento para o outro, tivesse sido engolido
respirar. Por mais que agitasse o corpo para tentar soltar-se, por mais
vazio. «Vamos embora», exclamou Frank, mas ela não conseguia mover-
se. «Vá, toca a andar, o espectáculo acabou», insistiu ele, puxando-a pelo
braço para que saísse daquele torpor. Caminhou em silêncio atrás dos
uma menor, com vários beliches e um acesso à latrina exterior. A luz era
entoados pelo resto da equipa contrastavam com o que ela sentia. Tentou
sorrir, aceitou a cerveja que lhe puseram nas mãos, mas, pouco depois,
pescoço e nas orelhas era uma novidade a que ainda não se habituara,
Paolo apareceu pouco depois. Chamou pelo seu nome, mas Laura não
se moveu. Sabia que ela não tinha adormecido (ninguém adormece tão
não tinha mais lágrimas para soltar, ele estendeu-lhe um lenço e beijou-
lhe o pescoço.
— Estás melhor?
— Eu sei…
Paolo.
com precisão até os pés criarem bolhas. Cada passo tinha um tempo,
Conseguiste, Laura!
cinzenta, Laura recordou como surgira a ideia que os levara até ali.
não tinha perfil para o que estavam a preparar e que iria ceder assim que
ter ido à casa de banho do estúdio molhar a cara com água fria e de se
partiam para a guerra. Tinha de ter uma confiança cega nas pessoas que
parecia que não era bem-vinda. Como saber se cumpririam o seu papel?
nobre e a culpa de matar alguém. Sim, várias vidas seriam ceifadas sem
dó nem piedade durante a Revolução, e Laura questionava-se, então
hora de matar os culpados, todos eles, um por um, por mais poderosos
que pudessem parecer, até que se desse uma verdadeira mudança. Até
Natureza. Muito tem sido divulgado nas redes sociais acerca da nossa
origem e propósito, mas estou aqui para vos dizer que não nos move
matar quem nos mata, com perfeita consciência de que é uma guerra.
Uma guerra pela vida, por mais paradoxal que possa parecer. Como em
pelo futuro de todos, nada deve temer. Estará protegido, estará do lado
torturado e morto sem misericórdia, até não restar nenhum de vós. Isto
emissão.)
lado bom da história. Sonhou que estava com Billie e Max na Casa do
Lago.
Admirável Mundo Verde
Três anos depois
uando era mais nova, a minha mãe ficava enervadíssima por me
cima do meu ombro e a criticar o que quer que fosse que eu estivesse a
fazer: jogar, ver vídeos parvos ou deslizar o dedo pelas redes sociais.
Dizia que a minha geração ia ser uma geração de inúteis, com sérios
mundo real. Que não iríamos saber mudar uma lâmpada, desentupir um
cano, fazer uma bainha ou plantar qualquer coisa que nos valesse, se um
fazia no seu tempo. Volta e meia, dava-lhe uma fúria e tirava-me mesmo
queria que fizesse o dia inteiro em casa sem um tablet. Vivíamos num
naquele tempo, já não brincavam na rua. Aliás, nessa altura eu não era
através daquela janela electrónica onde estava todo o meu mundo; aquele
apenas: «Querido diário, a minha mãe é uma seca e assim que puder
saio de casa para nunca mais voltar.» Deixava-o sem cadeado na mesa-
Agora, apetecia-me ter nas mãos esse diário de capa verde e folhas
bocadinho de papel para algo mais importante. Agora que quase não há
papel…
próximo ano, quando quiser levantar um caderno novo, devo levar o que
tenho agora, provando que está todo preenchido. Nem uma folha em
cereais, cada saco de mercearia gasto, cada verso de cada folha, e eu não
minha solidão e das horas que passo a olhar pela janela. Prefiro usá-lo
para anotar citações dos muitos livros que leio e continuar a falar
partilha a sua intimidade. Por detrás de cada sorriso que nos lançam, há
Quem escolheu ficar sabe que a única coisa que importa é sermos
mundo melhor, provando que é possível viver no século XXI com várias
os outros a fazer coisas com as mãos e a esticar cada recurso que lhes
Excepto no que diz respeito aos afectos, claro. Estou cá há seis meses e
não fiz um único amigo nem me dou com ninguém. Quando alguém
Oh, que interessante, sei perfeitamente onde é a sua loja, uma loja muito
bonita, hei-de lá passar um dia destes, tenho uma pilha de livros em casa
qualquer pessoa pode ser uma Mosca e ninguém quer arriscar. Eu cá sei
que não quero. Além disso, já me habituei a estar por minha conta.
intransponível.
Regressei à cidade em Novembro passado e já não assisti às purgas.
vez menos frequente. Parece que nos primeiros meses a razia foi tal que
não deve ter sobrado nenhum dissidente ou, se sobrou, nunca mais terá
coragem para abrir a boca. Nos dias que correm, quando um Morcego
prédio.
mulher a implorar, «por favor, não, por favor, não»; por trás, o choro de
la, sim. Continuei à espreita até ver a mulher ser arrastada por dois
homens vestidos de verde, tentando olhar para trás, para a janela por
soar, sem consideração pela hora. Eles gostam que as pessoas vejam
Não fui eu quem a denunciou, juro, mas eles vão achar que sim.
Nunca irão perdoar-me. Eu, que até gostava deles. Não éramos amigos,
claro, já disse que não tenho amigos por aqui, mas conversávamos
sempre que nos cruzávamos nas escadas, mesmo que fosse sobre
trocar receitas e dicas para sermos mais eficientes a lavar a roupa nas
eles saírem só os dois. Por que raio deixara ela que aquilo acontecesse?
Em que momento achara que teria o bebé sem que ninguém reparasse?
seis quilómetros e meio de muro quase todos erguidos? Teria sido mais
fácil livrar-se daquilo logo que soube, como uma boa cidadã, com todas
terrível na cabeça, não consegui pregar olho. Rebolei na cama, olhei para
ficar a olhar a rua mal iluminada onde não passava ninguém. Assisti ao
interiores que dão para a loja. A lei não permite que a porta abra antes
das dez, mas pelo menos não estaria sozinha. As prateleiras estão
bastante menos cheias do que no tempo do Sr. Joel, uma vez que as
Brigadas Verdes levaram muitos dos livros que são agora proibidos,
Este alfarrabista e o pequeno estúdio por cima são a minha casa desde
olhos que não tinha sobrado nada da minha antiga vida. Quem por lá
passara antes deles tinha levado tudo o que pudera. Todas as casas, lojas,
assim, três objectos que para aqueles miúdos eram lixo, mas que para
mim eram tudo: uma caneca lascada dos Estudantes Pelo Planeta, um
casa de banho e o saco de rede que a Laura usava para ir à praça, mas
vestida com aquelas roupas largas que parecem pijamas, que não toma
alfazema. A sala estava limpa e não havia pósteres de Shiva nem incenso
estava estipulado que podíamos ser expulsos por coisas como usar
não era vegetariana antes de me mudar para lá, mas a casa era tão boa,
com um quarto para cada um, casa de banho com banheira e uma sala
cheiro dava náuseas e cuja base do chuveiro tinha uma camada de surro,
eu na altura, podia comer carne fora de casa ou beber um café com leite
meses.
altura, ainda não tínhamos falado muito um com o outro. Ele instalara-
segredo que não foi preciso guardar por muito tempo, porque, semanas
de que não foi coincidência. Ela deve ter encontrado um recibo do dito
dava o exemplo. E, por isso, era tão fácil segui-la. Nós seguimo-la sem
familiar. Saí de lágrimas nos olhos, caminhei durante horas sem destino,
balas, edifícios e edifícios quase a ruir. Era ali que estudávamos quando
naquele quintal, encontrei-a. Foi assim que entrei neste santuário a que
hoje chamo casa. Tenho a certeza de que, se um dia o Sr. Joel vier a
saber que aqui estou, não se vai zangar comigo. Talvez até fique feliz por
saber que sou eu quem está a cuidar dos seus preciosos livros.
Onde estará o Sr. Joel? Ainda na terra para onde partiu? E o Max?
acordei, perguntei por ele. Com calma, a Salete explicou-me que havia
naquele lugar. O meu primeiro instinto foi dizer que sim, claro. Queria
consultar a tal lista, o meu e-mail, as redes sociais, tudo! Saber o que
Teria sido um mês? Teria sido um ano? Tudo era vago e disperso na
por mentir à Salete e dizer que me chamava Joana e que o Max era o
meu cão que se tinha perdido. Ela fingiu acreditar e calou-me com uma
canja de galinha que sabia a casa. Nunca tentei procurá-lo. Tinha medo
aceitou muitos outros seres errantes que por ali passavam e aos quais
que quer que fosse sobre o meu passado e tratou-me sempre com
enorme carinho. Foi como uma mãe para mim. Na verdade, foi como
uma mãe para todos os que por lá passaram. Devia ter perto dos sessenta
ainda estarei a ser procurada. Estou sempre à espera de que alguém entre
queiram castigar por ter contado alguma coisa no tempo em que estive
presa ou por algo que fiz depois, não faço ideia o quê, talvez viver sob
uma identidade falsa. É tão fácil prender alguém nos dias que correm…
Mas eu juro que não disse nada. Nem na altura, nem agora. O silêncio
tem sido o meu mote. Se não lesse tanto, talvez até tivesse perdido o
Sr. Joel, que me deixou a tomar conta do alfarrabista quando fugiu para
empresa e nas contas que chegam para pagar. Ninguém faz perguntas.
compotas que faço com os seus figos ou com restos de fruta que recolho
Podemos fazer algo tão simples como uma pega em crochet ou raminhos
apresenta com produtos menos comuns. A ideia por detrás desta medida
Aposto que esta foi uma ideia da Laura. Ela sempre fez muita da sua
roupa, assim como os presentes que nos oferecia. Velas feitas com óleo
apenas em versão digital. Para a maioria das pessoas, parece que pouco
nos permite dormir sem o peso de ter de fazer seja o que for. «Eles», os
papel. É por isso que a loja do Sr. Joel, que agora é minha, tem sempre
clientes. Entram aqui pessoas para vender livros que encontraram por aí,
habituaram à Joana, que responde com sorrisos sempre que pode, como
continuo sem querer aceder à Internet, a não ser para coisas burocráticas
essenciais, mas suspeito que não sejam muitas. Quem quererá publicar
livros novos não me fazem falta. Tenho ainda muitos dos clássicos para
ler. Como disse Almada Negreiros, «não duro nem para metade de uma
Vejo-a sair devagar e a porta a fechar-se com estrondo atrás de si. Parece
Conheço bem aquele olhar. O olhar de quem leva a alma quebrada, sem
por mais que lhe diga que o passado já não existe e que só me devo
preocupar com o agora. Sim, tenho lido também vários livros sobre
homem da idade do meu pai e uma senhora que devia ter uns setenta
de olhar para dentro da blusa e ver se o sutiã que trazia ainda era cor-de-
rosa, para ter a certeza de que não estava a delirar. Podia ser da fome.
Nesse dia só tinha comido o resto do pacote de batatas fritas que sobrara
nos apressara para a rua e fechara a loja com grades e cadeados, como se
conhecimento da lei era escasso e baseado nas séries americanas que fui
consumindo ao longo dos anos, ainda assim, foi exactamente isso que
responder:
sabendo que há mulheres que são piores do que os homens no que toca a
condicionada por ela ser pequenina e ter uns olhos grandes e amistosos.
— Sim.
nacional, entendes?
— 22 de Abril.
— Em casa.
— Que casa?
contei esta história mil vezes à Polícia. Fui eu quem fez queixa do
registos.
— Sim.
ambientalista.
— Sim. Este é o Max, que vive connosco, e estes são do grupo dos
— E depois?
— Não. Ainda ficou por lá, a andar de um lado para o outro, até que,
mataram cerca de oito mil coalas e ela ficou muito perturbada. Primeiro,
com brusquidão, disse «já chega, eles têm de morrer» e saiu porta fora.
— Mas ela acabou mesmo por matar várias pessoas, não foi? —
quando ela disse aquilo. Achámos que era uma maneira de falar.
— Sim.
embora?
não a encontrámos, mas quer dizer, não levava nada que fizesse parecer
— Apanhar ar?
— Sim, quer dizer, nada fazia prever que fosse desaparecer, não é? —
perguntar nada.
— Nem o namorado?
— Isso não é nada. Foi uma brincadeira numa festa. O Max gostava
da Laura, mas nunca foram namorados. Ela era assim, tinha por hábito
tocar nas pessoas, andar de mãos dadas ou com o braço por cima dos
ainda sendo um homem com idade para ser nosso pai, ali no meio dos
com ele e ele ofereceu-lhe o livro que trazia na mão. Depois, saiu da sala
tom zangado.
fiquei à espera de que me contasse. Ela contava-me tudo. Achei que era
mas que não gostou do que ouviu e que nunca mais voltou.
— Onde decorreu esse encontro? — gritou a inspectora, puxando-me
os cabelos.
— Não sei! Juro que não sei! Se soubesse, tinha lá ido assim que ela
em quinze dias, procuro notícias. Ela era como uma irmã! Conseguem
imaginar como me tenho sentido? Estou zangada com ela por nos ter
abandonado sem dizer nada. Nunca nos enviou uma mensagem, uma
— Não sei!
— Não mintas!
— Não sei! Juro que não sei! Eu queria saber! Ela mentiu-me e
porta a ser novamente aberta com brusquidão. Dessa vez, entraram dois
edifício, onde fiquei sentada no chão. Todos os dias, durante vários dias,
fui interrogada pelo inspector Garcia e a pela inspectora Neto, cada vez
gritavam nomes que nunca ouvira antes. Luc Bênot, Karen Mitjigaard,
Contei-lhes tudo o que sabia, tudo. Repeti a mesma história vezes sem
fim. Bem sei que era difícil que acreditassem em mim. Afinal, vivi três
doera tanto. Por isso era tão inverosímil que eu não tivesse nada que ver
segurança, onde estive fechada na mesma cela dias sem fim. Nunca
minha vida desde aquela reunião dos Estudantes Pelo Planeta em que
que não precisava de dividir a casa com estranhos para conseguir pagar a
argumentos para usarem com as suas famílias, nos seus empregos, para
menina sueca que todos admiravam, mas com vista a parar todo o
campus, depois toda a cidade e, quem sabe, com o tempo, o país inteiro.
E aí, já não haveria volta a dar, os decisores teriam de agir, as leis teriam
Claro que tudo isto era muito mais convincente quando dito pela
uma força maior. A sua voz era firme e fazia-se ouvir em toda a sala,
nobre. Os seus gestos eram teatrais, e os exemplos que usava eram tão
dados novos para apresentar. Todo o seu tempo livre era dedicado à
todos eles. O Max ficava com ela pela noite dentro a investigar, a ler
principal.
honestidade dos nossos argumentos. Foi por isso que, a dada altura,
acabámos por conseguir. Paralisar o país num dia da semana. Não havia
ruivo dos seus cabelos. Ela não era particularmente bonita ou curvilínea
ou sensual, mas sempre que a observava, o meu olhar ficava retido nela,
para mim. Cheguei a pensar que me estava a apaixonar por ela, o que foi
muito perturbador porque nunca tinha tido esse tipo de sentimentos por
que sentia o mesmo, o que não ajudou, porque ele é homem, o que
tornava qualquer sentimento para com ela, por mais estranho que
apaixonado por ela. Finalmente percebi que o que eu nutria pela Laura
era admiração, do género que as meninas pequenas têm por uma irmã ou
prima muito mais velha. Aquele fascínio e desejo de ser igual a ela
quando crescesse.
dois meses. «A esperança não vem dos governos ou das empresas. Vem
vida mais sustentável? Que por haver uma grande maioria de pessoas
nas ruas a mostrar uns cartazes, os que têm poder de decisão vão parar
Claro que não! O próprio Ghandi disse que o mundo tem o suficiente
aquecimento global?
provoquem a mudança.
— Não, não há. A única maneira é fazer uma revolução. Com sangue,
se for preciso.
ficando cada vez maiores. No fim, ele ofereceu-lhe o livro que tinha na
abandonava o auditório.
estranha. Desde que morávamos com ela, quer eu, quer Max tínhamos
era uma fase. Depois, tivemos de ameaçar sair do grupo caso insistisse
havia espaço para actos de violência. Além disso, nenhum de nós queria
ser condenado por esse tipo de crimes. Eram crimes a sério, lembrei-lhe.
Não era o tipo de coisa que a polícia deixasse passar só porque éramos
mais radicais que tinham sido presos e condenados por terrorismo. Não
sozinha.
que os encontros que tinha com ele não eram apenas para debater formas
de luta. Andava mais sorridente e tinha muito mais cuidado com o que
vestia, sinais suficientes para eu saber que andava a ter sexo. Noutra
suspiraria, aliviada por poder falar do assunto sem ter de ser ela a puxá-
lo, e, a partir daí, descreveria a pessoa, o acto, tudo, até eu lhe pedir para
digam que estão outra vez a falar de sexo». A Laura nunca me escondeu
os seus casos, mesmo os mais fortuitos. Entre nós não havia segredos.
Pensava eu.
estava preparado para ouvir falar dos casos fugazes da Laura, e, por
com o italiano era sério a ponto de ela ter vergonha de nos contar. De
confrontei. Garantiu-me que vira Paolo apenas uma vez depois daquele
dia no anfiteatro. Que fora com ele à tal reunião de um outro grupo mais
radical, mas que não gostara da vibe (palavras dela) e nunca mais
voltara. Confessou que ele ainda insistira duas vezes para se voltarem a
encontrar, mas que ela nunca aceitara e ele acabara por desistir. Eu, feita
quando lhe perguntava onde tinha estado e ela corava da cabeça aos pés.
Queria tanto ter-lhe feito mais perguntas. Queria tanto saber onde era
o ponto de encontro do grupo de Paolo, ou até mesmo ter ido lá com ela.
levado a sério as coisas que ela me dizia e que agora, à luz do que
estamos a viver, parecem tão, mas tão óbvias. Paolo lançou a semente
que a Laura já estava pronta para plantar. Aliás, estava desejosa de que
alguém a desafiasse para ir mais longe na luta, coisa que nem eu nem o
isto na altura, teria conseguido demovê-la? Será que poderia ter evitado
que chegássemos até aqui? Provavelmente não. Mas então, porque é que
me sinto esmagada por esta culpa? Porque temo que descubram que eu
ter estado mais atenta. Sem a Laura não haveria Brigadas Verdes. Laura
O Paolo sabia muito bem o que estava a fazer quando a foi recrutar.
que fui eu fazer? É a pergunta que nunca me abandona, sobretudo
torturados. Olho por olho, dente por dente, o lema do início deste nosso
qualquer regra. «Porque não matá-los de uma vez, então? Acabar com o
dentro destas paredes?» insistia eu. E ele sorria e dizia que não me
preocupasse, que isto era apenas uma fase até o nosso trabalho estar
ambiental. Talvez tenha sido com a Irmã Vera, a única professora que
deixava falar com o fantasma dela, o qual, dizia eu, vivia escondido
sempre desculpas para me ter ao seu lado na estufa e no jardim. Foi ela
me ensinou que não era preciso deixar de comer para não matar
animais. Bastava seguir uma dieta vegana. E eu, nas férias, voltava
fazendo pasta de papel com os jornais que o meu pai já tinha lido;
demorar por lá, não apenas para não perder as ténues memórias que
quê estudar, se vamos todos morrer? Para quê fazer planos ou projectar
meu pai punha-me de castigo, ignorando que não sair do quarto era
tudo o que eu mais queria. Se se mantinham boas, enchia-me o quarto
pessoas boas que fica para a História como inspiração para os outros.
idealismo.
Foi fácil, visto que elas mal tinham sarado. Inundou-me com dados e
sentir patética por acreditar que poderia mudar alguma coisa com as
Branco-sujo.
Branco-morte.
noite regressou finalmente e, com ela, o silêncio, meu lugar
ambiente medieval.
A única coisa boa desta medida, além do silêncio que tanto aprecio, é
vindos de outras celas, o medo que sentia sempre que ouvia os passos
dos guardas a aproximar-se, sem saber se me iam levar outra vez para
muito ao longe, explosões. Foi assim durante vários dias e várias noites,
circundava os vários presos, que, como eu, tinham saído das celas.
de uma saída ou se deveriam permanecer por ali. Podia ser uma cilada.
e todos seguimos a luz que nos levou ao átrio central. Deparámos com
uma prisão sem guardas, sem sistema de vigilância, sem ninguém para
misturados.
mas depressa foi atirado ao chão por outros homens que precisavam de
não sei quanto tempo, acho que muito, numa intimidade estranha, até os
ânimos se acalmarem e sentirmos que era seguro sair. Ela correu para o
chão.
levou a pensar que os guardas também tinham saído a correr. Enfiei tudo
lembrava a que sabia um café. Quando teria sido a última vez que bebera
que tínhamos nas nossas celas. Meti a cabeça debaixo da torneira para
água que consegui, até ficar com a barriga dilatada. Tinha tanta sede
Mas não podia perder mais tempo. Não me sentia segura naquele lugar.
Não sabia onde estava nem para onde me dirigir. Deveria voltar para a
pais? E para que lado ficava a cidade? Não fazia ideia do que pudesse ter
caminhávamos, mas ela disse que não. Queria apenas chegar àquela
medida que nos aproximámos, porém, percebi que estava cheia de gente,
aldeãos assustados que se esconderam dentro das suas casas assim que
seus olhares atrás das cortinas, o pulsar dos seus corações, agitados
as grades corridas até ao chão. Mais adiante havia uma igreja cujas
onde estávamos, aparentava não ter grade, pelo que corremos para lá. A
tinha sido vegetariana e, a cada passo que dava, mais a saliva crescia
chegámos à porta. A montra do talho estava bem aberta, sim, mas sem o
meio da rua que tinha fome e que não ia sair dali enquanto não lhe
Até que uma bala lhe atravessou o peito. Não percebi de onde saiu,
apenas me atirei para o chão com o estrondo seco do tiro, que ficou a
aviso. Levantei-me com as últimas réstias de força e corri sem olhar para
Como disse antes, não tenho ideia de quanto tempo fiquei na prisão,
nem o que aconteceu nesses dias ou semanas em que estive isolada, mas
o que encontrei em cada aldeia por onde passei foi devastação. Pessoas
falar. Não se via um carro, não se ouvia uma máquina, apenas os meus
acreditar que, pelo menos por ali, o movimento vencera. Pelo menos por
ali, as pessoas tinham preferido apoiar uma causa que defendia o fim da
onde estaria a Laura no meio daquilo tudo? Será que andava à minha
procura para me levar com ela e me dizer «vês como eu tinha razão»?
Baixou-a assim que me viu, o que me leva a pensar que o meu estado era
água, que logo colocou na mesa junto à entrada. — Senta-te aí, olha só o
teu estado… És uma daquelas da prisão, hein? Qual foi o teu crime?
um prato quente. Tenho também um sítio ali atrás onde podes limpar
essas feridas.
— A sério? Oh… muito obrigada, mas não tenho como lhe pagar.
olhava com pena, nojo ou desejo, contudo, tinha tanta fome e queria
tanto um banho que fiz o que me disse. A água tinha pouca pressão, mas
era mais do que tinha tido enquanto estivera presa, sujeita a um mero
igual ao dele, que me estava um pouco grande, mas que era melhor do
que a roupa imunda e rasgada com que tinha saído da prisão. Havia um
pequeno espelho baço onde olhei para o meu reflexo, mas não me
todos apoiantes das Brigadas. Sentei-me sem olhar para eles e comecei a
mas que me estavam a saber pela vida. Quando ia pegar nos talheres
segurou-me na mão.
de que me pudessem ajudar, mas notei que estavam a assistir à cena com
paralisei. Não tinha forças. E tinha tanta fome… Não podia prever qual
comida. Além disso, o que poderia eu fazer perante três homens feitos,
mesmo com um bastão em punho? Resistir só iria piorar a minha
Já não era eu quem ali estava. Era um filme que se desenrolava à minha
frente e sobre o qual eu não tinha controlo. Assenti, por isso, com a
tom trocista, pegando no prato com uma mão e em mim com a outra. —
em mim com brusquidão. Não sei dizer quanto tempo aquilo durou.
vergonha, nem nojo. Mas senti raiva. Muita raiva da Laura. A culpa de
outras tantas para o escritório do pai dela, até este acabar por me
com ela, noite após noite, imaginando que chegava a casa e a encontrava
visual. Andava pelas ruas sempre atenta a cada rosto com que me
mais voltar a pregar-me um susto destes e tudo voltaria a ser como antes.
Talvez por isso, quando, um ano depois do seu desaparecimento, as
directos infindáveis dos locais do crime, das casas das vítimas e até dos
rápido com água morna para despertar; vestir uns jeans e a sweatshirt do
sempre enfiados nos mesmos três dedos, pela mesma ordem); retirar da
de tinta permanente que o meu pai me deu quando fiz dezoito anos e que
para não ter de estar sempre a olhar para os slides; finalmente, sair de
estar ligada num canal noticioso, que era a maneira de o reitor nos dizer
assim? Aproximei-me o mais possível, mas não consegui ver quase nada
amianto, de uma multa que podia chegar aos duzentos mil euros, a juíza
acabou por reduzir para seis mil euros, substituindo depois o pagamento
Embora ainda não haja confirmação por parte das autoridades da relação
entre este e os outros casos que temos noticiado, sabemos que o camião
tem pintado numa das laterais o mesmo símbolo encontrado nos outros
incidentes.»
conhecida. Ninguém sabia muito bem o que esperar nem como saber se
de ter uma péssima nota. Baldei-me às aulas seguintes e fui para casa,
espalhanço académico. Estranhei ver tanta gente nas ruas, mas estava
cima de uma bicicleta no meio do trânsito, que àquela hora estava muito
mais caótico do que o habitual. Em contraste com a maioria das pessoas
em casa. Porém, quem quer que fosse que estava a tentar ligar, não
— Não vás para casa, Billie! Faças o que fizeres, não vás para casa!
apanhar-nos.
— Eles quem?
— A polícia, foda-se!
sarilho?
— Não, Billie. Ela é que nos meteu num sarilho. Agora a polícia
assassinatos.
— Ela quem?
— A Laura, porra!
— A Laura?!
— Eu depois explico-te. Vem ter comigo à estação de comboios. Já
— Mas…
e Luc Bênot surgiram hoje num vídeo que tomou de assalto as redacções
invadem as ruas…»
palavras que saíam das colunas deixaram de fazer sentido. Pus as mãos
na cara e olhei pela janela. Pelas ruas, por onde o táxi circulava com
cada vez mais dificuldade, vi lojistas a baixar as grades das suas montras
comboios.
— Vai ter de sair aqui, menina. A estrada está cortada — disse o
taxista.
— Como assim?
para travar quem ousasse ir mais longe, custasse o que custasse. Paguei
Tentei ligar de volta para o Max, mas a rede já estava saturada e não
último comboio? Será que tinha partido sem mim? Comecei a chorar
sem saber o que fazer, quando subitamente alguém me agarrou por trás.
Internet. A segunda, foi não parar de correr. Enquanto corria, sem saber
para onde, agarrando-me com desespero à sua mão, reparei num ecrã
minha cama quando estava frio e me tocava com os pés gelados, mesmo
calçada com dois pares de meias. Manta-me, dizia ela, numa palavra
tentando ler nos seus lábios o que dizia. Até que o Max me deu um
mundo, para quê cortar mais árvores?», disse ela na primeira vez que
nos levou lá. Entrámos esbaforidos porta adentro. O Sr. Joel olhou-nos
por cima dos óculos e, sem precisar de ouvir nada, como se já estivesse à
do escritório. Descemos para uma cave secreta, que tantas vezes usámos
contra o regime e imprimir panfletos ilegais. Nem nos anos da mais dura
repressão fora descoberto, segundo nos contava o Sr. Joel, por isso, era o
telefonema.
recuperámos o fôlego.
— Mais ou menos…
ruas, a Laura faz parte das tais Brigadas Verdes, ou melhor, é a cara das
polícia…
— Ei, Billie! Estás parva ou quê? Então nós não moramos na casa que
é dela? Não partilhámos essa mesma casa com ela durante três anos?
secretos, a cena toda, vão espremer qualquer pessoa que alguma vez se
relacionou com qualquer um daqueles três, até terem alguma pista sobre
— Billie, olha para mim e ouve com atenção. A Laura que nós
quem sabe torturados, até provarmos que não fazemos parte do grupo
vida a alguém, por muita raiva ou sede de vingança que tivesse dentro de
si. E mais ainda imaginá-la a planear aquelas mortes cruéis. Não podia
ter sido a minha Laura. A Laura doce e divertida, que dava os melhores
homem com idade para ser pai dela, ou quase, e que lhe dava toda a
atenção que o próprio pai nunca lhe dera. Clássico caso freudiano. Ela
é bom. Faz tudo o que ele lhe pede, incluindo matar. Sim, a Laura não
namorar, os amigos sabem que é um erro, que aquela pessoa não presta
a felicidade (mesmo que ilusória) que o outro está a viver, não querem
cheios de coisas por dizer. Lentamente, quem era tão próximo, unha
— Tu estás maluca?
Laura, não pode ser. Vamos infiltrar-nos nas Brigadas Verdes e vamos
escondê-la num buraco onde passará anos e anos até toda a gente se
ser salva. Quando devias partir do pressuposto de que ela faz parte da
— Até saber qual dos pressupostos é verdadeiro, não vou desistir dela,
Max.
Laura, que não estás a pensar em como nos salvar a nós! Ou achas que
— Billie, por favor, não chores, olha para mim, nós vamos sair disto,
encontraram o corpo e afinal ela esteve este tempo todo morta. Billie,
protegê-la e de lhe dar o amor e a segurança que ela nunca sentira por
tivemos de juntar.
A mãe suicidara-se quando ela tinha apenas seis anos e o pai nunca
soube lidar com esse facto. Mergulhou ainda mais no trabalho, arranjou
dificuldade em lidar com aquela filha que, desde que nascera, se tinha
daquilo que deveria ter sido uma família. Ainda para mais, Laura era a
Natal com a minha família! Os olhos brilhavam, fascinada por ver que,
afinal, havia famílias nas quais as tradições que apareciam nos filmes e
também, era um dia como qualquer outro, a não ser que calhasse num
fim-de-semana, em que, aí sim, podia almoçar com o pai, que ficava sem
onde toda a gente o conhecia e onde não podia correr por entre as
com quem brincar, nem histórias lidas na cama, nem conversas à lareira.
tinha tido uma infância muito feliz, porque tinha tido o carinho e a
atenção dos meus pais e não conseguia imaginar quanta tristeza pesava
no seu coração. À medida que ela nos foi fazendo estas confissões,
comecei a querer ser mais do que uma amiga. Comecei a querer ser a
família que ela não teve. Nos três anos em que vivemos juntos, eu, ela e
como tinha sido o dia. Como eu gostava de cozinhar para ela e para o
felicidade nos seus olhos, enquanto saltitava como a criança que nunca
pôde ser.
Só que agora estava a cair-me a ficha, ali, naquela cave, com o Max,
desilusão, não sei explicar. Acho que, acima de tudo, me senti usada.
Laura nos tinha acolhido na sua casa apenas para a ajudarmos a criar os
obscena. Foi então que percebi que dificilmente alguma coisa voltaria a
ser igual.
izem que as pessoas que se sentem em perigo iminente entram em
transporte que nos levasse para longe dali, passar a fronteira a salto,
porém, foi descartada ao fim de três dias. O Sr. Joel mostrou que não
estava disposto a ser uma Miep Gies e que nós nunca seríamos uma
nas ruas se vivia uma autêntica guerra civil. A maioria das pessoas
cúmplices das Brigadas Verdes. «Apoio todo o tipo de luta, menos a luta
desbotado.
dia em que nos escondemos ali, havia bandeiras das Brigadas em quase
calor extremo, era pedir às pessoas que ficassem em casa; cuja solução
agora na rua e os soldados, nervosos, rezavam para não ter de abrir fogo
de haver um armazém.
Billie! Billie Jean!» Não consegui evitar levantar a cabeça para ver quem
em alerta para ela. Era uma questão de tempo até um agente infiltrado
própria boca com a mão para me impedir de gritar o seu nome, quando a
única coisa que queria fazer era pedir-lhe que não me deixasse ali. Teria
sido egoísta da minha parte. Com sorte, despistaria a Dora e iria ter com
tinha de furar até ele para depois sair na próxima rua que surgisse ou
entrar na primeira porta que estivesse aberta. Foi então que senti uma
por cento. E tudo isto em menos de três anos. Imaginem como será
rejubila, feliz por ver que todos os sacrifícios a que se tem sujeitado
por cento satisfeitos. Mais um número nesta luta contra o tempo para
drones que têm sido divulgadas mostram que, dentro das fronteiras do
foi que muitos países estão a adoptar medidas idênticas, esmagados com
patrulhadas. Não queremos que nos entrem por aqui adentro lobistas e
único número que interessa. A pergunta que a jornalista fez não voltou a
Quem saísse não podia voltar a entrar. Nome na lista negra. Depois
sair daqui. O novo governo não quer mais habitantes, que significam
mais consumo dos recursos. Por outro lado, não deixa sair ninguém,
Coitados dos meus pais. Nunca mais falei com eles. Devem pensar
correr tudo bem. Nos dias em que estivemos escondidos na cave, ainda
ponderei pedir ao Sr. Joel que lhes enviasse uma mensagem a dizer que
eu estava em segurança, mas isso poria o próprio Sr. Joel em risco, caso
ainda está na lista dos desaparecidos, mas eu agora sou a Joana. Podia
em que mulheres como a minha vizinha são levadas a meio da noite para
abortar porque não se pode ter mais do que um filho. O que é que a
Laura teria a dizer sobre isto e sobre tantas outras coisas erradas que
acontecem todos os dias, mas em que ninguém parece notar? Por vezes,
procurar. Com tantas Moscas no terreno, não seria difícil mapear o meu
percurso desde o dia em que saí da prisão até hoje. Mesmo esta loja estar
aberta há vários meses, sem vislumbre do Sr. Joel, seria para ela
suspeito. Ela sabe que o Sr. Joel não tem nenhuma sobrinha-neta e que
infantil.
Antes de mais quero pedir-vos desculpa por toda esta confusão e por terem tido de fugir.
Agora sabem por que razão desapareci e porque não pude contar-vos nada. Ainda bem que
se esconderam aqui naqueles dias violentos. Como disse JFK, «aqueles que tornam a
revolução pacífica impossível, tornam a revolução violenta inevitável». Teve de ser assim.
Sei que, entretanto, o Sr. Joel partiu, mas vou voltar a colocar a chave no esconderijo
para que, se um dia voltarem à cidade, possam entrar. Darei ordens para que este espaço
não seja ocupado e para que não vos incomodem. Espero, em breve, poder visitar-vos.
Laura
PS: vêem como vencemos?
merda toda que fez é que a Laura se lembrou de nos procurar. Saberá
vir até aqui assim que ouviu dizer que a loja reabrira? Não terá ela
passado por esta rua tão central? Será que não vem por saber que o Max
morreu e a culpa é toda dela? Será isso? Terá remorsos por tudo o nos
fez passar? Por tudo o que se está a passar? Espero que tenha. Remorsos
nossos corpos atirados para uma vala comum. E que não tenha na cama
ela o que é trocar o corpo por uma mísera sopa? Saberá o que é dormir
Laura, não vencemos. Isto não é uma vitória! Nunca mais te quero ver.
Respiro fundo. Sei que o ódio não é um bom alimento para a alma.
mim. Oh, o que eu daria para voltar a acordar todos os dias com leveza,
nos ter avisado para que fugíssemos. Se sabia que ia colocar em causa a
ataque. «Darei ordens para que não vos incomodem», pois sim, agora
que não somos nada. Eu, pelo menos, não sou nada. Nem eu própria
sociedade. Descobri que a Billie tinha sido levada para a prisão de São
cama cobertos por uma fina camada de pó. Sim, tinham estado ali
vigiei a loja durante um ano inteiro, mas nunca voltaram lá. Também
não tive coragem de avançar mais do que dois passos. Parti com a culpa
a esmagar-me o peito. E se eles tivessem morrido durante aqueles dias
sido militares na sua outra vida. Eu, apenas uma miúda com o sonho de
mudar o mundo.
celebrarmos juntos.
que quereriam celebrar o que quer que fosse comigo. Ao evocar os seus
conquistar com este nosso novo paradigma será suficiente para que me
ódio ou com o seu desprezo, mas acho que não conseguirei ultrapassar
bonitas que a Irmã Vera me ensinou, aquelas que não falam de culpa,
acendei na terra
na dor e aflições,
nossos corações.
Peço a Deus que estejam vivos. Que tenham conseguido sair daqui
levado.
ltimamente tem entrado aqui na loja um rapaz intrigante. Alto,
o tempo esteja bastante quente para uma Primavera. Passeia por entre a
filas de livros durante uns minutos e volta a sair. Não vem comprar, não
vem vender, não diz nada. Percebi que me observa quando não estou a
demasiado novo para ser Mosca. A não ser que já andem a recrutar nas
escolas e faculdades. Por outro lado, uma Mosca não iria dar tanto nas
nenhuma. Até que, por fim, parou à frente dos policiais e pegou num dos
colocá-lo no mesmo lugar. Depois, saiu a correr sem dizer nada. Dirigi-
secreta? Sorri perante tão absurdo pensamento. Há tanto tempo que não
sorria espontaneamente. Vi que ele colocou o livro na terceira prateleira
consegui ver. Um por um, fui retirando cada exemplar da dita prateleira,
as suas páginas o que quer que o rapaz ali tivesse colocado. Até que um
no chão. Peguei-lhe com cuidado e vi que era uma notícia antiga sobre
aquele dia em que disse à Salete que o Max por que chamei durante os
meus delírios era um cão, nunca mais me atrevi a verbalizar o seu nome,
caixinha onde o tenho guardado, para que não me doa tanto a sua falta.
Quem era aquele miúdo e que brincadeira de mau gosto seria aquela? Se
tremer.
banco que usava para chegar às prateleiras mais altas das estantes.
— Isso deve ser uma quebra de tensão. Devia comer qualquer coisa
na sua mala feita de crochet. — A-ah! Tenho este pirulito, tome lá.
— O que é um pirulito?
— Ai, esta juventude, não sabe nada… — disse ela, tirando o papel
limão em ponto de rebuçado. Não tem corantes nem nada disso. Sou eu
— Ele quem?
que procuro já foi escrito há tantos séculos que posso esperar mais uns
— Ele quem?!
Tentei correr atrás dela, mas ainda estava tonta, pelo que, quando
senhora? Sei lá. Já não sei nada. Domingo? Mas domingo as lojas estão
fechadas, toda a gente sabe. Apeteceu-me fechar a porta nesse instante,
respirar fundo, organizar as ideias, mas sabia que isso ia dar nas vistas.
Naquele momento, eu queria tudo menos dar nas vistas. Tive de manter,
por isso, a loja aberta até às sete em ponto, o pedaço de papel de jornal
que aquele homem me violou no café. Como se ali, naquela bancada fria
quinta, fiz de tudo para não me apegar muito a ela. Sufoquei todas as
emoções e fugi sempre que ela tentou criar qualquer tipo de intimidade.
de cada vez, com o pouco que temos aqui e agora», dizia. Passávamos o
todos estes meses, desde o meu regresso à cidade. Até ter deparado com
Vivo!
Assim que fechei a loja, a primeira coisa que fiz foi procurar um mapa
alguns checkpoints fixos pela cidade, mas eles gostam do efeito surpresa.
efectivamente mais seguro. A loja está fechada, pelo que não será
dela morreu. Foi construída para ser a casa da família, o sítio onde a
Laura deveria ter crescido com os irmãos que nunca chegou a ter. Além
árvores, era impossível ver o que quer que fosse a partir da rua. Para a
mãe da Laura, porém, aquilo sempre pareceu uma prisão onde nunca
quisera viver e onde tinha medo de ficar sozinha. O marido passava o dia
por muitas festas que desse e amigos que convidasse para lhe fazerem
ternurento fê-la começar a ver a casa como um castelo onde vivia com a
como se estivessem nas nuvens. Ou, pelo menos, era assim que a Laura
recordava.
Quando fez seis anos, o pai mandou-a para um colégio interno, como
porque era ela quem se banhava naquelas águas e explorava o lugar com
velas ou lanternas. Desde os catorze anos, sempre que vinha a casa nas
férias do colégio interno, fazia questão de visitar aquele lugar onde fora
tão feliz nos primeiros anos de vida. Encontrara uma chave do portão
contou esta história e deu-nos logo uma cópia da chave. Queria que
aquele voltasse a ser um lugar feliz. Desde essa altura, era lá que
Era como ter o nosso pequeno resort privado, com piscina, jardim e
Agora penso: será que o Max esteve na Casa do Lago durante todo
afinal, o Max para mim estava morto, ainda pode estar. Teria sido
demasiado doloroso olhar para aquele lugar tão especial, tal como fora
portão. De qualquer forma, pressupondo que ele está vivo, não acredito
que lá tenha estado a viver todo este tempo. A casa de que me lembro
através da lente, como nunca tivera coragem de fazer a olho nu. Havia
nos abrigávamos nos dias de chuva, mas não era um sítio onde se
pudesse viver muito tempo, quanto mais três anos. Era um género de
neste instante, mas sei que não posso sair de casa agora. Uma vez mais,
sorriso forçado, que me obrigo a fazer para parecer uma simples mulher,
verdade é que não estou a fazer nada de exótico, nem de ilegal. Pedalo
devagar como se não tivesse para onde ir. Vejo algumas pessoas a colar
regime. A cara da Laura está por toda a parte. A Laura má, do cabelo
segurando uma gerbera branca, assegurando que estavam ali para nos
salvar. Foi um choque para mim vê-la naquele papel, mas não poderia
Será que o Max também esteve preso? Será que também foi
torturado? Se descobriu onde eu estava, por que razão não veio ele até
mim.
horas por dia, uma de manhã, outra a meio do dia e outra à noite. Zero
Max ou se procuro uma chave. Pelo sim, pelo não, levo a mão ao trinco
e percebo que está destrancado. Abro-o com cuidado e ouço o meu
Começo a achar que isto foi uma péssima ideia. Só se ouvem os pássaros
baixinho pelo Max, mas não tenho resposta, apenas os meus pés a
pisarem folhas secas. Entro na ruína e noto que está exactamente como
éramos felizes…
Talvez tenha sido má ideia. Talvez isto seja mesmo uma cilada. Talvez
deva correr daqui para fora e depressa. Porém, há algo que não me deixa
partir. Dirijo-me à antiga sala das máquinas, que já não tem aquela porta
— Estou aqui.
apertam cada vez com mais força. Não sabia o tanto que pode caber num
mesmo o Max. O rosto mais magro e coberto com uma barba espessa
que não lhe conhecia. O cabelo pelo queixo e ondulado. Como assim,
a não haver vestígios de que alguém tivesse vivido ali. Suspiro de alívio.
desviar uma placa de cartão muito velha e suja com o pé, como se de um
Aperto-lhe a mão com mais força, estou com medo e preocupada com as
uma propriedade privada, ainda por cima uma propriedade que, tanto
quanto sei, ainda é de um dos líderes das Brigadas. É muito estranho que
continue abandonada.
tento falar o Max manda-me estar calada) até chegarmos ao fim deste
túnel que não imagino onde vá dar. À nossa frente está uma parede. O
Max bate-lhe com os nós dos dedos e, embora pareça pedra, soa como
madeira. Bate oito vezes, com um ritmo muito específico, como se fosse
código Morse. Percebo que é uma parede falsa, que logo se abre
tudo do início.
o dia em que nos perdemos, fiquei sem chão. Bem sei que
estaríamos juntos ou, pelo menos, teríamos uma ideia de onde cada um
multidão, sem correr, sem levantar suspeitas, até conseguir sair para
uma rua lateral e, depois, seguir o caminho que vem aqui dar. Tu viste o
que se estava a passar naquele dia, milhões de pessoas nas ruas, tudo a
prometida. Aos que não queriam, não restava mais do que fecharem-se
Estava tudo tal qual tínhamos deixado da última vez que lá estivéramos
pedaço dos escombros da casa. Nada. Por fim, aninhei-me contra uma
para interrogatório. E a culpa era minha, que tinha acedido a que nos
oportunidade para vires até aqui. Fui ficando. Escondi-me na sala das
bebi água da mangueira que enchia o lago. Nunca pensei que ainda
sido deixados no meio das ruas, exibindo-os nas redes sociais. A prova
como eles matam, era o lema. Assisti a coisas que nunca poderia ter
cabedal, consegues imaginar? Nessa noite, percebi que não podia ficar
aqui muito mais tempo. O que quer que viesse a acontecer quando a
vitória das Brigadas fosse oficial, algo que devia estar por horas, não ia
baixo, teria de ir dar a algum lado. Talvez um rio, talvez o mar, talvez
medievais e o lugar onde achava que podia haver uma abertura para
esses túneis perdidos, a nossa única salvação, uma vez que, ao que tudo
os lugares que Sam achava que nos poderiam dar acesso ao outro
tinha para onde ir, fiquei e prometi a mim mesmo que só sairia daqui
até encontrar os túneis antigos. Sem me identificar, fui dar o teu nome
um tinha ido. Decidi esperar. Tinha a certeza de que, assim que te visses
Foram dias de profunda angústia. Não podia sair do país sem ter a
certeza do que te tinha acontecido, mas também não podia ficar num
lugar que já não reconhecia como meu. Um país onde os cidadãos não
Pelo menos, podia viver com a esperança de que não estavas morta nem
passagem por que tanto procurava, atrás de uma parede de tijolo. Foi
se queria ir embora. Eu, sobretudo por tua causa, ele, porque percebeu
dissidentes.
e não podíamos simplesmente sair em barda para o país vizinho sem ter
onde ficar ou quem nos ajudasse por lá. Seria meio caminho andado
até hoje no hospital e a fazer uma vida dupla. Percebemos que, afinal,
que era uma questão de tempo, claro, até porque, ao longo de toda a
pessoas para retirar, eu daria a minha vez. Seria o último. O que fecha
seguiriam. Além disso, tem dupla nacionalidade. Seria mais fácil pedir
asilo, caso algo corresse mal. Demos-lhe uma semana até voltarmos
estaria por sua conta. Não podíamos fazer mais. Não tínhamos, e não
dias aleatórios para fazer a passagem, para não dar nas vistas,
ajudássemos mais uma pessoa e mais outra e mais outra. Não podíamos
bens. Tudo o que recebemos é para nosso uso apenas. Pilhas para as
vão dar alguma hipótese? Dão-nos logo um tiro nos cornos. São
missão e sair daqui contigo hoje mesmo, em busca de uma vida bem
enviar para fora daqui pessoas que estejam dispostas a falar com os
por cá. Queremos mostrar ao mundo que, embora este novo governo
preciso. Sei que vives sozinha e mal sais daquela loja, não deves ter
nada que te prenda aqui. Conheço-te bem demais para acreditar que
estás feliz. Mas também podes ficar comigo. Não tens de decidir nada
agora.
informação que o Sam nos tem dado é que todas elas têm sido
Não, não se trata bem de um rapto, quer dizer, tem de ser alguém que
Sim, é a Laura.
vezes em que pensei declarar-lhe o meu amor. Tanto tempo a achar que
estava apaixonado por ela, mas quem era a verdadeira Laura, afinal?
Não conseguia vê-la como a heroína que toda a gente via. Para mim,
era simplesmente uma desilusão. Sempre que pensava nela, não sentia
nem uma réstia daquele amor que em tempos me consumiu. Mas, certa
tinham sido todos destruídos, mas ali estava aquele exemplar. Escondi-
correr bem. E tinha razão, pois logo surgiram quatro indivíduos de fato-
macaco verde a bloquear a estrada, apontando metralhadoras ao
condutor, que teve de travar a fundo. Não sei se eram membros oficias
se como vigilantes. Ainda há muito disso por aí. Só sei que estavam a
condutor, um rapaz que não devia ter sequer dezoito anos, chorava,
trás, o corpo a soluçar como que engolindo golfadas de ar, a mão sobre
desespero.
E eis que, não sei de onde nem como, aparece a Laura. Estava tão
aquela mulher, pequena e delicada, podia ser a Laura dos vídeos que
circulavam por todo o lado? A cara da Revolução?
quase ficar testa com testa com o homem. De repente, parecia que o seu
eléctricos. Você mesma disse isso. Você mesma, no vídeo, pediu que os
circular.
passar este.
dirigiam a eles, antes à Laura, que logo ali seguraram e algemaram sem
monstros!
tiros atingiram as suas cabeças. Um, dois, três, quatro tiros certeiros,
notícia de que um dos líderes das Brigadas Verdes, cuja mão de ferro
vigia cada cidadão para que cumpra todas as regras, estava disposta a
quebrar uma delas para salvar um velho. Ainda por cima, um velho.
Não digas que é bem feito, Billie, vá lá. Bem sei que ela nos mentiu e
traiu, mas começo a achar que tinhas razão quando, no início de tudo,
desta cena. Temos um informador que vigia o pátio da prisão para onde
famílias. Foi ele que reparou nela. Todos os dias, segundo nos conta, a
Laura sai para uma hora de passeio nesse pátio, apenas quando está
vazio, o que nos faz crer que está completamente isolada. De dia para
dia, ele tem visto a sua barriga a crescer. Pelas nossas contas, estará
é rua a anunciar esse grande evento têm a cara dela. Depois disso, e de
a criança nascer, acreditamos que vão matá-la. Não podem manter viva
vivas, eles são militares. O exemplo tem de vir de cima. Com certeza que
como passaste, quando voltaste, onde estiveste. Não queres falar sobre
disse qual o nosso plano para raptar a Laura e levá-la connosco para
longe daqui.
Billie!
Billie!
em estou em mim. Não sei o que fazer nem o que pensar de tudo
certeza de que isto foi só um sonho. Não encontrei o Max. Não estive a
Haverá alguém no mundo que seja verdadeiro, que não tenha uma
agenda, que não esteja sempre à procura do que podemos fazer por eles?
Diz que ficou aqui este tempo todo por mim, à espera de me encontrar,
mas afinal foi só pela Laura. Afinal, a Laura é que é boa. A Laura é que
também contam, sabias Max? E agora, afinal, ela é boa. Está muito
Três anos. Já passaram quase três anos disto e vão passar muitos mais.
pior é que parece mesmo ser. Os números não mentem. O país tornou-se
Não sei. Não tenho como saber o que se passa lá fora, o que dizem de
nós, mas não me parece que a Resistência seja assim tanta gente. O que
são sessenta pessoas? Quem é que, no seu perfeito juízo, quer sair
daqui? Lá fora, tal como acontecia por cá até as Brigadas terem tomado
passarinhos a chilrear por todo o lado. Três anos bastaram para restaurar
deste paraíso. Claro que ninguém se insurge. Não se pode querer tudo.
morrermos todos?
Peço ao Max que me leve até à Casa do Lago por aquele labirinto
argumentos. Não lhe perdoo por querer perdoar a Laura. Assim que
entro na sala das máquinas, fecho a tampa do esgoto para que não venha
Pedalo furiosamente de volta a casa. Estive todo o dia fora, pelo que
o que me faltava, ter uma Mosca a vigiar-me. Começo a achar que tenho.
carta patética que deixou na cave, garantiu que nos ia proteger. Porém,
agora ela não me pode salvar. Pelo contrário. Se calhar até lhes daria
minha vida.
garrafões e as panelas com água durante a hora livre. Ainda estão cheios
acalme.
Estou furiosa com o Max. Para que é que me veio buscar, então? O
que é que ele quer de mim? Deve querer ajuda para salvar a Laura, claro,
sempre o cãozinho dela. Esteve à minha espera, diz ele. Pois que
continue à espera, sentado. Já não sou a Billie. Nunca mais serei a Billie.
E não quero ter nada que ver com os planos de ajudar dissidentes a fugir,
para tomar conta deste alfarrabista. É essa a minha história. Não quero
Inspiro fundo.
Ele podia ter fugido daqui há muito tempo, mas escolheu ficar. Não
Mas não posso! Ele está do lado dela. Não posso perdoar outra
traição.
Porém, não quero fazer nada que possa levantar a mínima suspeita. Já
basta ter passado todo o dia fora. Se alguém me estiver a vigiar, há-de
voltar à sua base com o relatório limpo. «O alvo manteve todas as suas
vizinho do lado?
Começo a transpirar.
sanca, nem um candeeiro, nada que me distraia e leve a mente para outro
«Sabias que os autocolantes não são recicláveis? A cola que têm impede
A Laura.
Nem acredito que está grávida, prestes a ter um bebé. Será mesmo
sei explicar.
— Então, por que raio… Esquece, não vale a pena estar aqui a falar
gravidez.
— E se estiver grávida?
caminho de casa.
— Bem me parecia.
apreensiva.
— Ah, não, nem penses que me vais pôr essa cruz em cima.
nada sustentável, mas por outro lado, agora que existe a possibilidade de
— A única coisa que posso dizer é que estarei sempre aqui para ti,
para sempre para outro planeta. Não conseguia falar. A Laura voltou à
sala pouco depois e colocou o teste na mesa de centro. Ficámos os três a
realmente engravidares.
vi, nem pude acariciar. Algures nesta cidade está uma Laura grávida,
sem ninguém para lhe dizer que está bonita. Algures nesta cidade vai
almofada molhada. Sou mesmo estúpida. Estou a chorar por causa dela
outra vez.
que me custa mais nesta clausura, não é a falta de alguém com
colégio, raramente dormi sozinha. Sempre tive medo não do escuro, mas
minha mãe, falava com o seu retrato e ela nunca me respondia. Silêncio
para mim era igual a morte. Essa foi uma das principais razões para ter
Bem sei que já não estou sozinha há vários meses, mas como ainda
não consigo sentir a respiração do meu bebé, durmo mal. Pudera eu ter
quase como uma suite. Tem uma cama grande e confortável, casa de
posso passear ao ar livre duas horas por dia. Uma de manhã e outra de
que criei dos tempos de intenso treino a que toda a célula foi sujeita,
Afinal, serviu para alguma coisa. Nenhum destes privilégios é para mim,
sei-o bem. Paolo está apenas preocupado com a criança que carrego. Só
invadidos por quem está do lado de fora e não tem nada», argumentava
eu. «Faremos muros mais altos», ripostava ele. Deve ser o incontrolável
para não ter um filho dele? Como é que eu poderia confessar-lhe que me
sentia como se aquele filho que carregava fosse fruto de uma violação?
Que agora, quando tremia ao seu toque, era por medo, e não por
desejo. E ele a acariciar-me a barriga. E eu a afastar-me, fingindo estar
enjoada.
cubículo com uma abertura circular, na qual enfio a barriga para que
deixo comover pelas suas palavras e sinto saudades dos tempos em que
hormonas, bem sei. O meu coração está vazio. Há muito que deixei de o
amar.
que me enfiou aqui. Disse que vou ter de desfilar na grande parada de
Que vai haver uma recepção depois, onde terei de ir e acenar e evitar
Vai matar-me, sei-o bem. Selei o meu destino naquela noite em que
— Sabes a merda que podias ter provocado? Quem é que pensas que
és?
estes estúpidos que andaram nas ruas a gritar por nós, a proteger-nos, a
inocentes!
— Não as nossas. Além disso, podias ter levado um tiro, sua imbecil!
tinhas maturidade para isto, desde o primeiro dia. Falas muito bem,
escreves muito bem discursos e é só. Devias ter ficado sempre nos
bastidores, mas não, tinhas logo de dormir com ele, enfeitiçá-lo com
nosso segredo, mas ele fez gala em revelá-lo a toda a direcção, para que
quatro semanas de vida. O tempo que falta até a minha Ervilha nascer.
inocentes que mancha estas mãos. Por ter achado que depois da
Revolução viria a paz. Por não ter previsto que o poder corrompe.
Só tenho pena desta criança, que será criada por um louco sem
recordo-me bem do seu amor. Sei que me amou com todas as suas
forças e que preferiu morrer a estar um dia que fosse longe de mim. Já
eu, nunca terei essa oportunidade. Não faço ideia do que o Paolo irá
contar ao nosso filho sobre mim. Já que lhe vai mentir acerca das
que lhe mostre estes cadernos, onde todos os dias lhe conto histórias
ajudava com o jantar, comia com quem estava e seguia para a cama. Não
lia, não via televisão, não jogava às cartas. Limitava-me a retirar-me para
dentro de uma bolha onde não cabiam conversas nem sorrisos. Não me
apetece levantar, mas sei que tenho de manter uma rotina insuspeita e
para continuar a usar o cabelo curto. Cada vez mais mulheres o fazem,
na verdade. Já para não falar das que continuam com as cabeças rapadas
frio, não por gosto, mas porque não tenho outro remédio. Electricidade
não é quando se quer, é quando se pode. E acho que ainda vai demorar
condiz com o amarelado das folhas dos livros. Adoro o sol da manhã. E
aqui. Traz dois livros debaixo do braço, que deve querer vender ou trocar
uma Mosca, só pode. Uma gota de suor escorre-me pela testa. Imagino
que me vai apanhar em falso e obrigar a contar tudo. Não vou aguentar
quem sou, porque me escondi, onde fui ontem, com quem estive, que
planos têm. Não vou hesitar, nem fazer-me difícil. Faço um juramento à
bandeira, peço perdão, o que eles quiserem, desde que não voltem a
cadeira, não se riam enquanto testam até onde aguento a dor. O homem
trocar os dois livros que traz na mão por outros dois que tirou da estante.
Digo logo que sim, sem sequer ver muito bem que livros quer deixar e
que livros quer levar. Se calhar, vou ficar a perder. Suspiro perante o
começa por dizer o homem —, mas é que eu era cliente do Joel e estava
a tentar perceber se tinha alguma parecença com ele. É a neta, não é?
— Sobrinha-neta.
— Ah, pois, bem me parecia que ele não tinha filhos. Como está o
meu amigo?
imaginara e agora não quer outra coisa. Não volta tão cedo.
— Ah, fico feliz por ele, mas tenho pena. Era um excelente livreiro,
cada altura.
infinito da Literatura.
— Ah, então quando voltar a falar com ele, diga-lhe que esteve aqui o
que o homem leva com ele para tentar perceber o género de que gosta.
— Adeusinho, menina.
sorriso.
pior dos tormentos e eu continuo sem saber lidar com ela sempre que
trocada com o homem. Por um lado, acho que se fosse Mosca não ia
dizer-me o nome, mesmo que falso, nem perder tempo a falar de livros.
informação. Por outro lado, mesmo não sendo uma Mosca, se conhecia
o Sr. Joel, pode saber que ele não tem sobrinha-neta nenhuma e, nesse
mínimo deslize meu. Quero que o dia acabe depressa. Pôr trancas à
pequenos nadas, todos os dias iguais, excepto o domingo, que, não sendo
seguinte. Limpar a casa, fazer compotas, ler sem interrupções. Não dar
que isto dá. Até o Max ter reaparecido, não tinha noção do quão segura é
debaixo dos meus pés algo se agita e floresce. Debaixo dos meus pés há
esperança ou, pelo menos, um longo túnel para um lugar onde não há
Agora que sei da existência dessa outra dimensão, o meu coração agita-
Talvez o Max tenha razão. Talvez não me reste mais nada senão
planear, nada será como antes. Mas como é que posso avisá-lo de que
Deveria ter deixado que falasse primeiro e me contasse tudo aquilo por
Agora que penso nisso, talvez sim. Mas nós nunca tivemos rodeios um
quentes ou aquele cuidado com que se fala com alguém com quem não
de uma multidão. Tudo aquilo que vimos e vivemos durante este tempo
deixou marcas e talvez tenha criado uma barreira que nunca tivemos
bem.
A Billie decerto ficou a achar que só permaneci aqui até agora para
tentar salvar a Laura. Não podia estar mais longe da verdade. Estava a
desfizeram qualquer sentimento que tenha tido por ela. E claro que sei,
e nunca esquecerei, que a Laura, ainda que possa ter tentado suavizar
posso estar enganado… aquilo pode ter sido apenas uma reacção do
que lhe contarmos o nosso plano. Pode estar tão cega, que não se tenha
tenho a certeza de que teria sido pior. Não havia uma maneira de fazer
meses, mas não a quis pôr a par do plano até que este estivesse bem
fechado. Passei por lá por mero acaso, numa das raras idas diurnas à
cidade. Há muito tempo que não passava naquela rua, muito menos
jovem? O Sr. Joel não tinha família e jamais iria confiar os seus
o espaço e reclamado como seu, como tanta gente fez a outros negócios,
no estômago. Olhei com mais atenção para aquela mulher perdida nos
Billie! Quase não contive um grito, ali mesmo, no meio do café! Quis
acenar, quis entrar, quis abraçá-la, por fim. Mas depressa me lembrei
procurar.
há quase três anos e, afinal, ela estava ali, viva, inteira, serena, sem
nunca me ter procurado. Perguntei-me se seria pró-regime. Se refizera a
vida como quase toda a gente, esquecendo tudo o que acontecera antes.
mais profunda para estar a viver sob uma identidade falsa. Foi isso que
me fez acreditar que estaria do nosso lado, assim que soubesse da nossa
existência. Foi isso que me fez pensar na melhor forma de a fazer vir até
mim sem a colocar em risco. Talvez esta não tenha sido a melhor opção,
grades, descido até à cave e dizer-lhe tudo o que lhe disse, mas num
lugar onde se sentia segura. Só nós os dois, a noite inteira pela frente,
arriscar.
Acredito que possa estar confusa e zangada, mas sei que conseguirei
fazê-la ver que não há outra solução. Temos de sair daqui com a Laura
que as Brigadas Verdes vão ser nomeadas para o Prémio Nobel da Paz,
dá para acreditar? Nem tive tempo de contar isso à Billie. Prémio Nobel
Billie. Eu preferia que fosse com ela ao meu lado. Ficarei devastado se
escolher ficar…
enho umas olheiras até ao queixo, reparo agora. Não que costume
sete pés. Sou a Joana, e no reflexo da Joana há muito que não cabe a
que se formou entre os olhos. Estar com ele abriu o alçapão do lugar
As olheiras não são só destas últimas noites mal dormidas, sei-o bem.
cada pessoa que olha para mim. De dia, o coração dispara assim que o
quero abandonar a loja nem por um minuto, pois temo que o Max, ou
seja quem for que ele envie com instruções para um novo encontro, bata
com o nariz na porta. Sei que ele não vai desistir de mim…
vizinhos. Há gente para tudo, mesmo neste país tão limpo e tão verde…
É por isso que evito sair. É por isso que tenho mesmo de me juntar ao
nacional.
nome que o Max disse. Não consigo disfarçar a minha felicidade. Desta
— Desculpa.
— Não faz mal. Preciso de uma resposta. Não tenho muito tempo.
lo?
— Posso.
para a porta a sorrir. Espero que ninguém tenha reparado. Eu sabia que o
Passo o resto da tarde a fazer uma lista mental de coisas que devo
T-shirts), e outra lista com coisas práticas que devo fazer antes de sair,
lixo para o contentor. Sei que não voltarei aqui. Não posso deixar
amanhã não abrir a loja todo o dia, as Moscas vão reparar. Não é
uma queda num buraco, ou algo menos trágico como ter ido passar uns
percorro cada estante, passando o dedo e os olhos uma última vez por
companhia e salvação nos últimos meses. Espero que quem vier a ficar
com a loja lhes tenha tanto carinho como eu tenho. Num último
Saramago.
pessoas pelo caminho. Será que alguma delas reparou em mim? Será que
alguém vai saber dizer para onde me dirigia, se mais tarde lhe
cinzenta? Claro que sim, seguiu pela direita, depois virou na terceira à
esquerda. Mais à frente outra testemunha dirá: claro que vi, ia nesta
certeza, vi uma mulher entrar com uma bicicleta cinzenta por aquele
portão velho, deve estar a tramar alguma, pois aquele terreno está
teria entrado ali. Afasto estes pensamentos, mas pelo sim pelo não, antes
Andas a ver filmes a mais, diria o Max há uns anos se me visse nestes
preparos. Talvez. Mas isto não é um filme e sinto que devo ter todo o
cuidado possível.
Max por aqui. Decido afastar o papelão e abrir a tampa de esgoto por
onde entrámos no outro dia. Não faço ideia se estará alguém lá em baixo
para me guiar até à galeria, pelo que o meu plano é avançar pela
virar à direita. Acho que depois disso não virámos em mais lado
nenhum. Mas como saber onde está a parede falsa? O melhor é ficar
muito inteligente. Ainda assim, decido descer às cegas, pé ante pé, até
— Estou aqui.
à parede e beijamo-nos. A última vez que tinha beijado alguém foi numa
outra vida, por isso, este beijo tem o sabor e a surpresa de um primeiro.
flutuar rumo a uma outra realidade. Quando nos largamos, não trocamos
uma única palavra. Não consigo ver a cara dele e ainda bem que ele não
Não sei o que nos deu, nem o que pensar daquilo. Provavelmente foi o
lanterna do Max, até que, por fim, chegamos à galeria, onde dois dos
não ter feito nada, cúmplices com o nosso silêncio. A terceira é fugir
daqui, mas levando connosco a Laura, que será a prova de que este é um
cidadãos.
— E em que é que isso vai mudar alguma coisa? — interrogo. —
que quer que fosse? A não ser que as Brigadas Verdes comecem a
invadir os países vizinhos, ninguém vai mexer uma palha para ajudar
pergunta a Rita.
respondo.
— Ou resignadamente amedrontados.
uns cães pisteiros para nos encontrarem num par de horas. Acho que só
Olho-os um por um. Vejo nas suas caras que esta é uma discussão
Decerto que todos eles, bem como os outros elementos que não estão
eles têm razão. A única forma de ajudar quem fica é revelar o que se
passa. Mostrar ao mundo que os fins, por mais nobres que sejam, não
Avançamos amanhã.
asso a noite abraçada ao Max. Quero decorar-lhe o cheiro, o ritmo a
estamos juntos, sei que tatuei cada minuto na minha memória. Voltarei a
ela sempre com ternura, esteja onde estiver, aconteça o que acontecer.
Seria como atrair a má sorte e admitir que existe uma forte possibilidade
temos de chegar ao lado de lá. Cada um sabe de cor o que tem de fazer e
certo para dar determinado passo e esperar que não haja imprevistos.
de subir, troco de roupa, para o célebre macacão verde que a maioria das
há ninguém por perto, saio para a rua onde me espera um radioso dia de
mesma indumentária que eu. Sem o hoodie percebo que afinal não é tão
desfilar. O início está previsto para as quatro da tarde, mas viemos cedo
trocista.
Ishiguro.
— Chiu!
— A sério?
Ainda não sei como vou reagir. Ainda sinto a raiva a ebulir dentro de
mim… estou mais nervosa com isso do que com tudo o resto que nos
espera.
que ao início me pareceu estranho, até agarrar numa e perceber que são
se, por fim, com os líderes das Brigadas Verdes, que são também os
Iemanjá dos tempos modernos. Parece-me óbvio que está muito grávida,
mas quem não sabe da novidade talvez possa pensar que se trata apenas
líderes. Porém, tal poderia ser visto como hipocrisia, uma vez que a
não têm pudor em deixar cair as lágrimas. Outras que agem como fãs de
Tenho de me içar na grade e gritar por ela. Tenho de garantir que me vê.
O David concorda que ninguém achará estranho ouvir chamar por aquela
que ainda é o principal rosto da causa. Aqui e ali, já ouvimos pessoas a
chamar pelos nomes deles, dos líderes que tão sabiamente nos guiam
neste novo mundo cem por cento sustentável. Respiro fundo, encho os
pulmões e grito «LAURA», o mais alto que consigo. Como num sonho,
aceno, e eis que o nosso olhar se cruza e humedece. Antes que ela tenha
num gesto de silêncio. Depois, viro as costas e saio dali com o David
pela mão. Sinto que ela continua a seguir-me com o olhar, até ser
Ela viu-me. Ela sabe que estou aqui e que tenho um segredo para lhe
contar.
Laura me provocaram. Ainda bem que tenho alguém ao meu lado para
lágrimas a correr. Era a Laura. A minha Laura. Não aquela que aparece
nos cartazes e vídeos, cujo olhar não reconheço, mas sim a Laura do dia
açúcar e canela. Percebo agora o que o Max quis dizer. Também vi nos
tirá-la daqui. Resta saber se ela vai querer vir connosco ou se prefere
morrer por este novo mundo que ajudou a criar. Limpo o rosto e volto a
parecido com uma festa acontece neste novo país. Há filas na entrada,
longa fila da entrada que nos dirigimos, mas sim para a zona reservada à
Ajuda para fugir? Saberão que não pretendemos regressar? Que depois
de tirarmos a Laura daqui não voltaremos para resgatar seja quem for?
mas eles, enquanto cúmplices, não terão destino melhor. O que os levará
enorme compulsão por fazer algo de bom pelos outros. Havia esquecido
que me mande sair. Não posso sair enquanto ela não chegar. Pouco
provocando toda aquela agitação. Não há quem não queira ser visto ao
braço, para que não restem dúvidas de que são um casal unido e aquele
filho é seu. Acima de tudo, há que manter as aparências. Até lhe dá jeito
matá-la assim que der à luz, podem sempre desculpar-se com uma
Paolo, sozinho com um filho nos braços, depois de lhe ter morrido o
grande amor da sua vida. Que história comovente para criar empatia
como se fôssemos mais uma peça de mobília: visível, mas com a qual
David, indicando que não sei o que devo fazer. Pode passar-se uma hora
até ela decidir vir à casa de banho e eu não vou poder estar uma hora
aqui especada. Arriscando ser posto na rua, como logo acaba por
suceder, ele passa pela Laura e entorna um copo de vinho no seu colo. O
misturado com os convidados, quem lhe deu ordem para andar aqui,
pânico. A Laura tenta acalmá-lo, que foi sem querer, que deixe estar, que
não faz mal, que é só uma bebida e o vestido seca num instante. Paolo
para aqui. Antes que ela entre, começo a expulsar as senhoras que
reconhecer.
cabeça nela para tentar sentir aquele que deveria ter sido o meu afilhado
começo eu, embora sejam tantas outras as palavras que lhe quero dizer.
— Esta noite, antes de este festival acabar, tens de fingir que estás a
sentir dores muito fortes e que tiveste uma pequena perda de sangue.
Suja as cuecas com este sangue falso. A ambulância que está aqui à
tens de dizer aos médicos que estás cheia de dores, dores insuportáveis
Tenho de ir.
ficar.
Saio da casa de banho, retiro o sinal de manutenção e dou a minha
tarefa por terminada. Pronto. Já não está nas minhas mãos. Abandono a
voltando a ser apenas mais uma pessoa do público a cirandar por ali.
executada mal o bebé nasça e que quer fugir connosco. Pressupomos que
dissermos para fazer sem questionar, nomeadamente este teatro para ser
levada para o hospital. Mas e se, uma vez mais, a Laura não quiser ser
salva? E se, uma vez mais, aquele seu olhar comovido e o abraço que me
outras vezes em que já andava metida com ele, mas dizia que eram
coisas da minha cabeça. Acabei de lhe dizer que o Max está vivo e que
temos um plano para tirá-la daqui. É certo que não sabe se há outras
lhe serão dadas no hospital. Mas sabe que há pelo menos dois
estar a ser vigiada. A qualquer momento posso voltar a sentir uma mão
me enfiar numa carrinha que me levará outra vez para um sítio frio e
bigode postiço que lhe dava um ar cómico, a espreitar atrás de uma das
minha conta.
Laura é levada numa maca para o seu interior. Solto uma gargalhada
nervosa. Realmente é boa actriz. Visto de fora, parece mesmo que está a
seja o que for. Ainda para mais depois de um dia tão desgastante. Não é
Paolo está a exigir ir com ela na ambulância. Não faz parte do plano,
cedo. Caminho até à rua que me foi indicada, onde estará o Luís para
base. Durante todo o percurso, tento caminhar devagar e não olhar para
trás, mas volta e meia cedo à tentação de ver se estou a ser perseguida.
Daqui para a frente tudo pode começar a correr mal. A dúvida volta a
assaltar-me. E se ela alinhar nisto até à última hora, apenas com o intuito
percebesse que, ao contrário do que ela fez comigo, não a deixei para
trás. Mas percebi que seria muito arriscado. Já estive demasiado exposta
sendo que o hospital é exactamente o ponto onde tudo pode correr mal.
sem olhar para trás e viver anonimamente o resto dos nossos dias num
teremos de seguir sem eles. São três horas a caminhar até à saída. O Sol
Desço o mais depressa que consigo e dou com o Luís ao meu lado.
Foi a primeira vez que ouvi a sua voz. Caminhamos lado a lado,
enquanto lhe conto como correu cada passo da minha parte do plano. O
Luís não responde. Ouve e acena com a cabeça. De vez em quando, solta
— Há condutas que podem levar o som lá para cima — diz por fim.
— Desculpa. Mas se não fosse isso, falavas? É que nunca tinha ouvido
a tua voz.
que o Max vos contou, mas eu não vos conheço. E estou a colocar a vida
— Só isso?
— Tenho vinte e sete anos, nasci perto do rio, vivia e trabalhava com
história.
— Lamento muito… — digo, sentindo um nó no estômago.
de quanto tempo falta até chegarmos à galeria, mas não quero fazer mais
espera. O Luís bate o seu nome em código morse e logo a porta se abre.
abraços. Não sei o que se passa comigo. Talvez tenha estado tanto tempo
sem tocar em alguém, que, ao primeiro contacto com outro corpo, o meu
consolo.
parece, ia voltar para a festa, mas ordenou ao segurança que não saísse
sempre à sua porta. Olho para todos, assustada. Como vão retirar a
demasiado doce.
coisa…
— Porquê?
história.
finas rugas que se formam na testa e à volta dos seus olhos, nada que lhe
meses. Esta nova Billie tem uma voz que ainda ninguém ouviu.
— Mas eu gostava de vos ouvir. Vocês sabem quase tudo sobre mim,
mas eu não sei nada sobre vocês. Quer dizer, já estou a par das histórias
corpo e alma. É como esse teu ódio pela Laura. Não muda nada. Não
simples.
u era professora de Yoga e activista climática desde uma época em
era possível evitar o ponto de não retorno. Estive na rua todos os dias
Até que uma vez, numa rua bastante movimentada e em pleno dia,
quando dei por mim estava uma data de gente à nossa volta, até
um pouco por toda a cidade, espantada por não me ter dado conta de
levavam cada nova lei mais à letra do que quem a fizera, intransigentes,
Durante uns tempos vagueei por aí, sem saber ao certo o que fazer nem
para onde fugir. Sabia que, se me insurgisse contra o que quer que
fechado.
Finalmente, um dia, escondida num jardim a tentar meditar, vi o Luís
a desaparecer por um buraco no chão e fui atrás dele. Uma pessoa não
desaparece assim, chão adentro. Percebi que entrara por uma conduta e
mãos e, sem falar, fi-lo sentir a minha energia. Pouco depois, ele
subterrâneo e desaparecer com ele. Disse logo que sim. Nunca mais
Olívia, não é?
Sim?
passam aqui e que o Mocho impede que se espalhem, quer por cá, quer
lá para fora.
São onze e cinquenta e oito. Faltam dois minutos para o grande dia.
tratando-se de uma das líderes das Brigadas, o que seria mandá-la para
dessas visitas aos quartos, a Olívia vai encontrar o segurança que Paolo
Olívia vai perguntar-lhe se não quer um café ou uma água. Ele vai dizer
que não, mas ela insiste. O homem acaba por aceitar. A bebida tem um
de roupa. A Olívia fingirá que está zangada com o Max, afinal, não
deveria fazer barulho àquela hora, e sairá com ele até aos elevadores de
Colocarão o carrinho num dos poucos sítios que não é alcançado pelas
tarde demais.
calma.
medo, sem querer perturbar esta energia boa que sinto, e reparo que
acontecesse, aquele era o meu dia, o dia em que eu era o centro das
Será que vai ser assim tão fácil? E se o segurança se recusar a beber a
água que a Olívia lhe vai dar? E se o Max e o carrinho de sujos forem
Vai…
Vai…
Ainda falta um bocado para as três da manhã. Sinto-me sonolenta…
alguma coisa no meu chá? Vai ser fácil… Eu sei que vai…O Max sabe o
que fazer…
O Max…
uando a porta do piso de Obstetrícia se abre, começo a
antecipar o que vou sentir quando voltar a ver a Laura ao fim de todo
um filho na barriga.
para onde vou, nem a exigirem que usasse o monta-cargas, que não
faço ideia onde vai parar. Enfim, o que interessa é que consegui vir aqui
para vigiar a Laura caso ela ficasse internada. Mas parece-me que a
uma arma debaixo da bata, mas se tiver de usá-la é muito mau sinal.
a sua destreza. Parece alguém com treino a sério, e não aquela miúda
Olívia cobre-a com mais toalhas e lençóis. Não faz ideia de que sou eu
acordou, estamos lixados. Ou, então, não. Ele não pode entrar dentro
fecham-se.
convulsivamente.
— Não temos tempo para isto — diz a Olívia, com razão. — Estão a
que está grávida. Espero impaciente até poder descer também, fechando
grupo. Espero que estejam lá todos. Espero que a Billie esteja bem.
dos túneis. Mesmo que lá em cima dêem o alarme, vão passar-se horas
até nos procurarem aqui. Estamos a contar com isso. Mas agora a
lhe se se sente bem. Acena com a cabeça, ainda sem conseguir falar. Sei
que está a conter o choro, pois morde o lábio inferior e crava as unhas
na palma da mão. Sei que está a tentar não desabar. Explico-lhe que
temos de andar num passo rápido e em silêncio, mas que deve avisar-
esconderijo e estendo uma arma a cada uma delas. Também tenho água
e biscoitos, como se alguém se lembrasse de ter sede ou fome numa
situação destas.
desenfreadamente. Eu tinha razão. A Laura veio. Quis ser salva por nós.
Mal posso esperar para chegar perto da Billie. Os três juntos de novo,
anos podem parecer décadas? Não foi só o cabelo ruivo da Laura, que
santíssima trindade de novo reunida, uma força que nem a minha raiva
consegue travar.
as mãos frias.
vem dizer que temos de nos pôr a andar. São 2h55. Estamos dentro do
horário previsto, mas espera-nos uma caminhada de dezassete
quilómetros com uma grávida em fim de tempo, por isso, cada minuto
deles. Sim, deles. Ainda não me consigo ver como membro deste grupo,
talvez por ter estado demasiado tempo a contar apenas comigo própria.
estamos no túnel e entrarem por aqui adentro. Fico assustada. Até agora
se, até agora, as autoridades não encontraram os túneis, não era logo
optimismo?
respiração.
perguntar o que raio está a fazer. Continuo sem ver quase nada, mas sei
Estão ali há muito tempo, pelo aspecto, há várias décadas, mas o Max e
impaciência passa a curiosidade, tentando ver por cima dos ombros dos
outros a que levará esta paragem. E eis que, naquela que era uma parede
sólida, surge uma abertura por onde nos obrigam a passar. Do outro
cada um.
Estou maravilhada.
cidade. Estamos num lugar que não aparece em nenhum mapa. Uma
rota segura para encontros e para escapar dos rigores do claustro. Mas a
verdade é que faziam parte das antigas minas de água que abasteceram a
cidade entre os séculos XI e XVIII. Eram trezentos quilómetros debaixo
tal e que, ao longo dos séculos, foi alimentando a lenda das freiras
ardilosas. O terceiro vai até à antiga Estrada Real, hoje um mero trilho
que marca a fronteira com o país vizinho. É esse o caminho que vamos
tomar.
assim como o chão, e a luz das lanternas faz cintilar os minerais como
tecto, mais baixo. Percebo que, de todo o grupo, só ele e o Luís haviam
cima, mas convém não abusar — diz o Max. — Temos de estar atentos a
qualquer sinal de movimentações. A esta hora, já devem ter dado por
— Não! Nem pensar. Quer dizer, tenho estado presa nos últimos
meses, mas nunca tinha ouvido falar de um lugar assim. Eles sabem que
há contrabando feito por túneis, mas estamos a falar dos túneis técnicos
este túnel medieval. Até o túnel por onde viemos deveria estar
Quem diria que o Max, aquele rapaz franzino e tímido que alinhava nos
fazer-nos a vontade do que nas causas pelas quais lutávamos, que nos
deixava decidir tudo, até a comida que mandávamos vir quando não nos
vivos.
Sinto por ele uma coisa que nunca senti antes. Talvez seja algo
regressar da guerra depois de vários anos sem lhes pôr a vista em cima.
Como não pude assistir à sua transformação subtil, dia após dia, é como
homem.
observar melhor a Laura. Parece outra vez a minha Laura, mas com uma
dar nome ao que o seu nome me faz sentir. «O passado não leva a lugar
debato com este nó de coisas que lhe quero dizer e que parece
essa avalanche.
pare o porta-cargas com a desculpa de que está a ficar com dores nas
Respiro fundo.
Ela ri-se. Não disse isto para que se risse. Aliás, não pretendo mesmo
nada que se ria. Sobretudo porque a maneira como o faz leva-me para
— Sei que nada vai mudar o que fiz — começa num tom mais pesado.
Os outros olham todos para nós. O Max faz um gesto para que sigam
caminho e vem para o nosso lado. O nosso árbitro. O nosso juiz. Noto-
felizes.
sorriso e o braço por cima do meu ombro. Não sei porquê, mas esse
partias sem nos explicares porquê. Não sabes o que passei durante um
polícia, que no final já só se ria de mim. Não sabes o que senti quando
zangada comigo própria por ter dentro de mim uma voz que me dizia
que podias estar por detrás daquilo. Não, a Laura, não, impossível! Não
que tínhamos de fugir, que nos iam procurar e interrogar por tua causa,
preocupantes daquilo que se estava a passar nas ruas. Não sabes o terror
de pessoas, algumas mais mortas do que vivas. Não sabes que fui
tempo numa cela iluminada todo o dia e com direito a uma única
refeição. Não sabes que dei o meu corpo em troca de uma sopa. Uma
merda de uma sopa, ouviste bem? Nem que caminhei sozinha até
desmaiar e ser encontrada por uma mulher caridosa que cuidou de mim.
Não sabes o que é viver com vergonha de tudo isto, como se a culpa
fosse minha, sempre minha. Não sabes o que é viver sem ter ninguém.
— Como foste capaz de nos fazer isso? Como foste capaz, Laura?
Percebes ou não?
tão brutal que ninguém ficasse indiferente. Sim, eu! Eles queriam
eu que sugeri o lema de matar como eles matam. EU! Ouviram bem?
— Tinha tanto ódio dentro de mim. Ódio, raiva, impotência. Por que
vida na Terra? Por que razão continuavam a fingir que havia tempo, que
ter conseguido travá-los. Por não ter conseguido impedir que fossem,
noites a conversar.
connosco…
muito nova, que não conhecia o ser humano e do que ele é capaz. O
Ninguém lhe fará frente. Mas acima de tudo, sinto culpa por me ter
— Juro! Ele sabia que toda a minha vida íntima e familiar seria
ele, nem o Luc tinham grandes laços afectivos fosse com quem fosse, até
me pesa. Porque eu sabia que a polícia vos iria perseguir. Sabia que vos
Paolo. Foi aí que comecei a mentir. Tínhamos prometido uns aos outros
seria de vocês, fechados num lugar inacessível? Decidi que o melhor era
me com brusquidão.
Olho bem para dentro dos seus olhos, estes olhos doces que me fazem
tempo para isto. Não podemos parar. O Max conduz a Laura de volta ao
doem os pés e a alma… E agora a Rita faz-nos sinal para parar. Coloca o
A Rita troca um olhar com o Max e este retoma a marcha num passo
mais rápido.
Engulo em seco.
Vem-me à memória o dia em que tentei fugir com o Max. Quero dar-
mim e vai para o fim da fila, para junto do Luís, a Rita vai para a frente,
junto do Max. Todos eles empunham armas, mas não dizem nada. São
chupar.
Não!
Respira.
um grito.
tempo demorará até encontrarem este? Quem nos garante que não
descobrem a tal abertura que vem aqui dar? Quem nos garante que não
encontrem no chão?
sobre nós. Pelo menos, sobre mim, o David, o Mário e a Olívia, quatro
se dissipar.
Um quilómetro.
Só falta um quilómetro.
na zona onde este túnel vai desembocar ainda não há betão, e que a torre
demos alguma privacidade, coisa difícil neste túnel que a cada metro
parece cada vez mais estreito. Após um exame rápido, pede que lhe
que esteja a entrar em trabalho de parto? Pela primeira vez, vejo o Max
como ficava atarantado quando eu lhe dizia que não conseguia sair da
cama por causa das cólicas menstruais. Faltava às aulas para ficar
É mesmo!
Finalmente a saída!
cresce. Não faço ideia do que nos espera lá fora, porém, pressinto que
estão a patrulhar todo o perímetro, por mais remoto que seja. Contamos
pouco para o dia raiar. Vinte e cinco minutos, para ser precisa.
temos de nos dividir em dois grupos, um guiado por ele e outro pelo
Luís. As duas únicas pessoas que sabem onde está a rede cortada e a
carrinha que nos vai levar para longe. Eu e a Laura temos de ficar com o
— Não, tenho de ser eu — afirma Olívia, num tom que não admite
— Não. Tenho estado a observá-la e, apesar de não ter dito nada, sei
Olívia, olhando para a Laura com uma certa reprovação por ela ter
não ser que algum de vocês tenha noção de como se faz um parto.
não agora, tão perto do destino. Olha para a Olívia como se esta o
vais atrás com a arma e disparas para tudo o que se mexer. Mário, vem
tu também.
— Mas…
desconheço. Deve ser para dar boas energias. O Luís e a Laura estão de
eu passasse por tantas atrocidades. Por outro lado, é o mesmo Deus que
É agora.
Vamos sair.
ssim que ponho um pé fora da gruta sinto o cheiro a terra e a
— Laura, por amor de Deus, tu não deixes essa criança sair — digo-
Ela sorri, apesar das dores que sei que está a sentir. E assim se vai
Parece que a aeronave voa agora mesmo por cima das nossas cabeças.
Não posso ter a certeza, nem sequer me atrevo a olhar, mas o barulho é
vegetação que, por enquanto, nos protege. Num impulso, pego na mão da
perdoar. Ela segura a minha com força, grata por eu demonstrar essa
abertura. Não precisamos de dizer nada. Tudo é dito pele com pele.
alguns dos meus ossos. Acho que está a ter outra contracção. Aviso o
Max, preocupada.
Sim, Max, tens razão, apesar da voz que te treme. Já se sabe que,
latidos parecem aproximar-se mais e mais e mais. Não estão por detrás
alguns metros de nós, ou talvez muitos, não sei, oiço a voz do David.
galho, mas o Mário bate-me com o punho da arma nas pernas e obriga-
Quero correr até lá, ver se está tudo bem. Tem de estar tudo bem. O
Mário garante que aquilo foi só uma manobra de diversão para afastar os
que está a fazer. Mas saberá? Um miúdo de vinte e dois anos? Não
Começo a soluçar.
Pára!
podemos parar.
puxá-la.
abertura por onde temos de passar. Uma porta invisível para o outro
metros finais. É ela que temos de salvar! Vamos, Laura, não pares agora!
correr.
Nós vamos conseguir!
sorriso. Ela grita e tenta recuar até ele. O Max impede-a, lançando-a ao
Eu, por outro lado, só me lembro de ouvir a música que estava a dar na
rádio, como se todos os sons em volta tivessem sido sugados para longe
deste mundo. I’m like a bird, I only fly away, I don’t know where my
soul is, I don’t know where my home is. Foi só isto que eu ouvi,
eu presa pelo cinto, de cabeça para baixo, até ser desperta pela voz do
meu pai. Agora essa música volta a pairar na minha cabeça, só a música,
metralhadora abre fogo enquanto recua até mim. Só vejo o clarão que os
disparos provocam, não o som. Imagino que seja alto. Procuro o Max e
outro homem também dispara para lhe dar cobertura. O Max passa por
mim e atira-me para dentro da carrinha, puxando a Olívia consigo, e
acne. Sorrio com as coisas parvas que me passam pela cabeça. I don’t
porquê. Temos de seguir! Não podemos parar agora! Tento olhar pelo
vidro da frente para perceber o que se passa. Vejo a boca de toda a gente
formando grandes ós, gritos que não escuto. Nos meus ouvidos só cabe
A carrinha não chega a parar, mas pelas suas portas escancaradas vejo
muito ao fundo, no meio da música que insiste em tocar. Fico tão feliz
por vê-los.
gritar let’s go, let’s go, mas em mim continua o I only fly away. Deduzo
que o condutor seja o tal Sam, acho que o Max disse que ele é meio
pensar no aspecto dele, mas depressa sou chamada à terra pela Laura,
dedos.
O Max está a falar comigo, mas continuo sem escutar o que me diz.
I’m like a bird, I only fly away. Só vejo a sua expressão de pânico e os
seus olhos alagados. Arrasta a Laura para cima de si, as costas dela
camisola. Não sei o que lhe deu! Mas não consigo ripostar. Olho para
meu sangue. Não sei de onde vem. Só me dói o ombro. Parece que arde.
levei um tiro?
Vá lá, Billie…
madrinha dele, lembras-te? Eu sei que foi há muito tempo, noutra vida,
mas éramos nós. Ainda somos nós. Eu prometo que vou conseguir fazer
B Billie!
Façam qualquer coisa! David! Luís! Por amor de Deus, falem com
Billie!
Não estive três anos à tua espera para te perder assim, ouviste?
Conseguimos!
Quer dizer, porque é que me estão a bater? Eu estou bem, não precisam
de me bater, parem, eu estou bem, mas é tão difícil falar, a língua está
do deles e do que quer que estejam a fazer. Não sei por que me batem.
Se calhar estou outra vez numa cela, se calhar isto foi tudo um sonho e
nunca saí de lá, se calhar fui apanhada, não sei para onde a levaram, juro
que não sei onde ela está! Não sei! Não me façam mal! Por favor! Não!
— Billie!
E eu obedeço.
o corpo do Mário no arame farpado. Não pode ser! Devo ter sonhado.
de dor, mas que ainda assim me sorri. Uma mão a segurar a dela, a outra
caminho que decerto não é uma estrada. Não sou eu que me vou armar
Oh, meu Deus, a Laura está a ter um filho! O bebé vai nascer aqui,
nesta carrinha imunda, o bebé da Laura. Quero ir para o seu lado, para a
Ninguém me responde.
O David vira a cara para a janela. Outra vez o Mário preso ao arame
como um anjo. A Rita com o seu sorriso etéreo, a dizer, naquela língua
esquisita, que vai correr tudo bem. Um gesto com a mão sobre as nossas
testas e as balas a atravessarem-na de um lado ao outro. Só que dela não
— Faz força agora! Agora, Laura, força! — insiste a Olívia com a voz
embargada.
O meu olhar cruza-se com o dela e noto que tem a pele arroxeada,
parece prestes a desfalecer. Tenho de ir até lá. Vou salvar-te! Salto para a
A Olívia pede-me para agarrar numa toalha limpa, que estendo com
dificuldade sobre o braço bom. Depois pede ao Max que tenha à mão
Não faço ideia para onde estamos a ir, mas tenho a certeza de que não
há um hospital ali à frente e que este bebé vai nascer aqui, agora.
Ouviste?
uma pausa e, então, expele todo o ar com um grito gutural e, com ele, a
Mãe.
Nem acredito.
planeta. Não podemos assustá-lo logo nos primeiros minutos aqui. Tem
dois rapazes tentando acalmar uma dor que não tem nome. Os olhos
Também eu não sei bem o que estou a sentir. Alívio? Gratidão? Tenho
incrédula com o destino do Mário e da Rita. Não era para ser assim. Ou
sequer havia lua. Estávamos tão perto de um final feliz… Tão perto…
Laura e a olhar embevecido para a bebé, como se fosse ele o pai. É uma
imagem demasiado bonita para este cenário de horror, com cheiro a
que não era essa a chegada que tínhamos planeado. O plano era
vida nada é como planeamos, por isso, não temos outro remédio senão
todo o lado. Isto aliado à histeria que deve estar a inundar os meios de
que isso está fora de questão. A Laura e a bebé têm de ser observadas o
dias para sair deste país e tentar a sorte num outro. Nem que tenhamos
passa que nos vão dar todo o apoio legal, assegura. O único perigo que
diferentes lugares. Estamos todos bem cientes de que o Paolo não vai
parar de procurar a Laura e um filho que sabe ser dele, mesmo depois de
agora, mas para sempre. Por isso mesmo, a Laura chora, obrigando-nos
prometer, a mim e ao Max, que vamos cuidar da sua bebé, caso ela não
possa fazê-lo. Seremos mais do que um pai ou uma mãe, seremos a sua
nisso. Depois, limpa as lágrimas com as costas da mão e olha para o seu
indicador pelo contorno do seu rosto, pela ponta do seu nariz, por cada
criança. Olha então para mim e para o Max, e, com uma certeza feliz e
espera-a uma ainda maior com as suas raízes. Um dia saberá quem é o
pai, o que fez a mãe, quantas mortes carregam em cima de si… Um dia.
qualquer buraco perto da fronteira. Ordem 101, atirar para matar, como
médico a garantir que não nos vai separar e que a criança nunca sairá de
nos até a um bloco operatório que fica reservado para nós e onde
pensar é indizível.
Algum tempo depois, a polícia e alguns homens de fato entram por ali
com a nossa fuga e preocupados com o impacto que terá nas relações
perigoso grupo armado e deve ser extraditada assim que for encontrada.
Laura explica que está ali de livre vontade, grata a quem a salvou.
Enfatizamos que a nossa vida corre perigo e que vamos requerer asilo.
alívio correm pelas minhas faces ao ouvir que está tudo a ser tratado e
ninguém nos irá deportar. Assim que sairmos do hospital, que será ainda
quatro horas por dia, até todo o processo estar concluído. Além do asilo,
Olívia, naquelas que são as suas primeiras palavras desde que saiu da
carrinha.
que fale contra o nosso admirável governo. Mas eu não tenho nada a
perder.
poderia pagar essa decisão com a vida. Se quero acabar com eles, tenho
fiquemos do lado de dentro. Diz que as advogadas têm razão e que não
começar o seu discurso, naquele tom de voz familiar que usava nos
básicos direitos…
Um estrondo.
Som seco.
todas as direcções.
porta de vidro.
cheiro adocicado.
FIM
AGRADECIMENTOS
última das quais escrita há três meses.» Estava desmotivada, sem editora
Amanhã?.
minha cabeça durante todo este tempo e, a cada notícia sobre o colapso
Diana Garrido, e pelo Hugo, sempre o Hugo, o meu amor e maior fã.
Tenho de agradecer também aos meus filhos, que, pela primeira vez,
sempre o Hugo (e, assim, percebem por que razão quase todos os meus
Agradeço, claro, aos meus pais, por lerem sempre a primeira versão
Mundo Verde.
filipafonsecasilva@gmail.com.
Alguns Factos e Soluções para as alterações
[1]
climáticas
O ano de 2023 foi o mais quente desde que há registo (ou seja,
na última década.
à fome).
Parte dos direitos de autor recebidos com esta obra serão doados à
[1]
Fonte: conservation.org e site do Parlamento Europeu.
Sobre este livro
preço?