O Lpis Do Bom Deus No Tem Borracha Low

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1a Edição

Traduzido do francês por


Marcelo Marinho e Fernanda Giglio

2010
© Letra Livre Editora, 2010

Reservam-se os direitos desta edição à


LETRA LIVRE EDITORA LTDA.

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Tradução: Marcelo Marinho, em colaboração com Fernanda Giglio.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Dalembert, Louis-Philippe
D139L O lápis do bom Deus não tem borracha: romance /
Louis-Philippe Dalembert / tradução de Marcelo
Marinho e Fernanda Giglio. — Campo Grande-
MS: Letra Livre, 2010.
p.

ISBN

1. Literatura haitiana 2. Romance I. Título

CDD H840.9

Bibliotecária responsável: Josiane de Oliveira – CRB 1/1524


“Kreyon Bondye pa gen gòm.”

(provérbio haitiano)
Para Caëtan.
À memória de Kiki e de Fanfan, que saberiam – melhor
que eu próprio – escrever esta história. Ou outra: a deles.
“O doloroso é lutar…
e, ao fim das contas, salvar apenas a si.”

Henry Roth
Abertura
O homem não ousou embrenhar-se pelo antigo quintal
da morada familiar. Vista da rua, pareceu-lhe ridiculamente
pequena, enquanto suas lembranças faziam da casa uma cidadela.
Igualmente minúscula era a varanda, que outrora exigia esforços
de titã daqueles braços franzinos para penosamente soerguerem
o guri à balaustrada de quase metro e meio de altura. Antes ficasse
apenas nisso... Para dizer a verdade, a varanda mais parecia um
ordinário puxadinho de um desses moquiços salve-se-quem-puder
do Terceiro Mundo. Mas – sussurra o homem a si mesmo, para se
reconfortar –, talvez conservasse ecos dos jogos e brincadeiras,
das partidas de futebol em dupla, das quizumbas ferozes que
acompanhavam as disputas, das tentativas de reconciliação tão
cheias de orgulho e ingenuidade. A varanda fora a segunda
decepção nas veredas da memória, após o cortante desconsolo
experimentado nas andanças pelas ruas de Porto Pinto, sua cidade
natal. Uma área urbana abandonada, encravada entre os
abortados sonhos de alguns e a indolente morgação dos demais.
Tal qual a inteira República Salbundense, sempre largando
amarras, meio à deriva, apartando-se, dia após dia, das outras
ilhas caribenhas. A varanda e a antiga morada prolongavam – ou
melhor, condensavam em si – a decrepitude da pátria salbundense.
Por tais cercanias é que o homem conhecera Faustino,
famoso engraxate da beira-mar, a pessoa que marcaria, com a
estampa indelével dos autênticos encontros, sua vida e sua
percepção do mundo. Desde então, a infância se fechara por trás
de suas espaldas, ainda que de uma maneira menos violenta que
o baque da porta de um avião selando as largadas daquele exilado
perpétuo em que se transformara… No bairro, já não havia uma

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só árvore: o deserto. Como surgido do hiato. A igreja, que do alto
do Monte Tufo abraçava os molhes, dissipara-se num incêndio.
Partira em fumaça numa noite de dezembro. O incidente causara
alvoroço, dele se falou até mesmo no exterior. Outras catástrofes
naturais e políticas se juntaram àquela. De uma maneira regular
o bastante para deixar o homem com uma sensação incômoda. A
estranha impressão de ter sonhado. Ou, pior, de ser outra pessoa,
e não essa que pensava ser… Toda a gente conhecida sumira de
circulação. A mãe de sua mãe também se fora, sem lhe deixar
tempo para revê-la, após tantos anos de separação, nem para beijá-
la uma derradeira vez. De sua primeira existência, aqueles que
foram próximos estavam agora em debandada pelos quatro cantos
do planeta; e, nas raras vezes em que se escreviam, usavam novos
idiomas, línguas que perdiam o fôlego antes mesmo de se
aproximarem daquelas raízes doravante longínquas demais. De
uma voz embargada e mais intensa que o ridículo da situação,
em uma língua certamente desconhecida por aquela gente do
bairro, ele debitou alguns versos que carregavam traços de sua
infindável errância: “Sono partiti tutti. / Hanno spento la luce, /
Chiuso la porta, e tutti / (Tutti) se ne sono andati / Uno dopo
l’altro.” Eles todos partiram. Apagaram a luz, fecharam a porta, e
todos, todos partiram, um após outro. Partiram, todos. Para
alhures ou para o Além. Sem que vento algum, nem mesmo o
mítico Papillon que reina sobre o imaginário dos salbundenses,
deles lhe trouxesse o mais remoto eco. Partiram, todos. Entretanto,
como delicada enxaqueca, restava a persistente imagem de
Faustino e suas quimeras de imperador. A única que importava,
de fato. A única suscetível de dar sentido a esse regresso.

Ao longo de vários dias, sem descanso, e apesar das


incertezas que o atormentavam, o homem buscou pelo engraxate
nesse bairro em que se enredara sua primeira infância. As
perguntas que ele eternamente se repetia em suas peregrinações
surgiam malignas, dançando em sua cabeça como espíritos cuja
chegada não se espera. Quem saberia dizer por que razão voltamos
sempre sobre nossos próprios passos? Por que não se deixa correr
a vida, como o rio que jamais remonta à nascente? De onde vem
essa tal necessidade de ressuscitar o passado a qualquer preço, de

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não se permitir à sua própria alma que adormeça em paz?
Explicações não faltavam, ele poderia encontrá-las às dúzias, mas
a genuína verdade sempre escapará a esses vermes que somos. A
essa observação sentenciosa, o homem sorriu. Esse tom doutoral,
definitivo, trazia-lhe à memória os filósofos das ruas próximas ao
cais, que sempre deixavam a impressão de saberem mais do que
diziam e que afetavam um certo descaso por seus semelhantes,
história de aumentar sua própria cotação. Só lhe faltava agora
percorrer a calçada dos bate-pernas itinerantes, dos
desempregados renitentes e dos zé-borra-botas. De qualquer forma,
seu problema ficaria sem solução: não soubera queimar suas
pontes no momento hábil.
Um quarto de século após sua própria partida da beira-
mar e, na sequência dos fatos, de Salbunda, teria sido um milagre
reencontrar Faustino sentado no mesmo lugar, debruçado sobre
sua caixa de engraxate. Tal qual um desses cadáveres que se
descobrem décadas mais tarde, recolhidos no gelo. Como se o
tempo tivesse estagnado e esperado por ele. Entretanto, o homem
teve que se entregar às evidências: o engraxate esvanecera sem
deixar o menor traço. Batera asas para fora da rinha. Como um
canhestro galo rinhador, exausto de receber bicaço e esporão de
adversários. Tivera Faustino um tal medo da vida, a ponto de bater
em retirada?
Ninguém sabia informar seu paradeiro, não se ouvira
nem mesmo falar desse lustrador de sapatos. “Faustino de Quê?”,
perguntou-lhe um engraxate de uns bem passados cinquenta anos.
“Faustino…” O homem hesitou antes de acrescentar “Primeiro”,
mas o “Primeiro” perdeu-se no ronco gago de uma motocicleta
desconjuntada. – “Para falar a verdade, não sei” –, disse ele, dando-
se conta de que não conhecia o sobrenome daquele que tanto
marcara sua infância. Seu interlocutor fez cara de quem
vasculhava a memória: “Eu conheci um Faustino há mais ou menos
quinze anos, mas não trabalhava no mesmo ramo que eu. Hoje,
eu não saberia dizer onde foi que amarrou sua canoa… O senhor
sabe, aqui as pessoas vão e vêm. Desembarcam sem o menor aviso,
ninguém pergunta o que têm pra vender, ficam por um tempinho
e, num belo dia, desaparecem.” Vendo a feição decepcionada do
homem, o engraxate, sem muita convicção, indicou outra pista:

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“Talvez procurando lá para os lados de Buraco-Pardal e do velho
Mesilòm… Ele talvez saiba onde se encontra o Faustino de quem
falo, é seu padrinho de casamento.”

O crepúsculo caía ruidosamente sobre Salbunda quando


o homem subiu no velho jipe e tomou a direção de Yaguana. A
máquina, que parecia datar da Segunda Guerra Mundial, andava
mais pra lá do que pra cá. Desguarnecida da capota, era o ideal
para enfrentar a canícula do centro da cidade; a menos que se
pudesse dispor de um cupê com ar-condicionado. Mas o homem
tinha preferido essa geringonça, alugada de um mecânico das
docas. Optou por deixar de lado as agências de locação de veículos
que, no mais das vezes, somente os turistas utilizavam. Ao final
de duas horas de engarrafamentos, de buzinas perfurando os
tímpanos, de trocas de palavrões entre motoristas, de freadas que
poderiam mandar um cardíaco ao CTI, ele terminou por se subtrair
à Avenida do Pai-Fundador-da-Pátria. A partir de lá, era preciso
acompanhar a artéria construída ao longo do mar, que ia
desaparecendo do campo de visão à medida que o carro afastava-
se de Porto Pinto.
A paisagem desfilava em marcha à ré. A brisa levantada
pelo deslocamento do jipe açoitava-lhe suavemente o rosto. Não
havia meio algum de calcular a distância percorrida: o hodômetro
não funcionava, o velocímetro menos ainda, e até ali o homem
não tinha entrevisto nem indicativos de distância, nem painéis de
sinalização. A lata-velha estropiava-se, mas seguia engolindo
asfalto. A ausência de um companheiro de estrada, um simples
rádio que fosse, bem logo pesou. Tanto mais por serem raros os
carros que tomavam aquele caminho. Mas a solidão era necessária
para completar essa viagem pela memória. Sem descuidar da
direção, o homem olhou sua mão esquerda acariciar o volante,
roçou a direita sobre a alavanca do câmbio, sentiu o contato do
pé contra o acelerador. A tomada de consciência desses gestos –
todavia mecânicos – fez com que caísse na maior gargalhada.
Ajeitou-se no banco, esticou os braços; seu pé direito triscou o
piso esburacado no exato momento em que o homem começou a
assobiar uma canção – trazida não se sabe de onde, ainda menos
de quando.

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Primeira
Fase
“Claros atardeceres de mi lejana infancia
que fluyó como el cauce de unas aguas tranquilas.”

Pablo Neruda
I Vrummmm! Bi-bi!

O menino está fechado dentro do velho Peugeot 304, uma


perua bege, já faz uma data. Com as duas mãos agarradas ao
volante, virando a cabeça como uma coruja, vai buzinando a torto
e a direito. Sem razão aparente, debita uma enxurrada de
impropérios, da qual não se pode dizer que os pedestres façam lá
grande caso: “Ô, dá pra tomar mais cuidado? Tá pensando que
isso aqui é o teu quintal, é? Quantas vezes tenho que repetir?
Assim é que acontecem acidentes. Aí, você é o primeiro que vai
choramingar na barra da saia da polícia…” Dá nova arrancada,
cantando pneu, orgulhoso como um soldado do Marine Corps.
Passa as marchas enquanto reclama desses pedestres que pensam
tudo poderem, os aloprados.
De vez em quando, o motorista tira os olhos do vaivém da
rua para examinar o interior de seu Peugeot 304, cujos defeitos
nem mais se contam. O vidro da porta dianteira já não sobe, desde
lustros. O vidro da esquerda, para ser mais exato. O da direita
ainda aguenta. Mas os ruídos do mundo exterior dão a volta, com
malícia, para se enfiarem dentro do carro. Um roteiro que tiraria
do sério até mesmo um monge tibetano. Uma semana antes, o
moleque pensou ter achado um plano infalível; no final das contas,
o arranjo provoca sérios problemas de sincronização. A ideia era
a de deixar o vidro levantado com a ajuda de um graveto, o qual,
por sua vez, ficaria amarrado por um pedaço de arame. Desde
logo, mais contato nenhum com o exterior! Exceto quando o
motorista quisesse. Em outras palavras, com frequência, pois o
moleque tem a mania de usar os braços como pisca-pisca,
imitando, assim, os outros motoristas que passam como furacão

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a poucos metros do Peugeot 304. Todas as vezes, é cruz ou espada.
Além de frear quando próximo às curvas, ele tem que desenrolar
rapidamente o arame, soltar o galho, deixar cair o vidro no interior
da porta com um estalo surdo e esticar o braço na horizontal
para avisar de uma guinada à esquerda, ou arranjar o braço por
cima do teto, em forma de periscópio, para as viragens à direita.
Fosse essa a única enfermidade da tranqueira! Do assento
– cujo empalhamento está reduzido a alguns fiapos de pita –, as
molas enferrujadas irrompem como saca-rolhas e não param de
atiçar suas nádegas, deixando-lhe a calça em frangalhos. Isto lhe
custa severas fubecadas de sua avó materna. Ela domina a arte
de ministrar, simultaneamente, tabefes vigorosos e lições à voz
serena: “Micróbios passeiam em inteiras legiões por essa
marmitona… Quantas vezes já disse e repeti que é pra você ficar
do lado de fora?” (Ainda hoje, homem feito, o moleque por vezes
sente a dor dos precisos e abundantes bofetões chovendo em sua
bunda).

Naquelas priscas eras, a avó ainda não ganhara suas


divisas de General aos olhos da malícia do populacho. Herdara,
no máximo, o apelido de Ponte-Napoleão, que terminou por se
transformar em seu registro civil por todos os recantos de Porto
Pinto. Deriva daí uma longa história, feita de mil episódios e mil
diferentes versões, a tal ponto que o menino até esqueceu a origem
do apelido e, ainda por cima, o verdadeiro nome de sua avó. Diga-
se ainda que ela própria vai engrossando o enredo a seu bel-prazer,
algo como para desorientar o garoto, chegando até mesmo a tirar
vantagem da alcunha, quando assim lhe apraz – ao passo que,
diante dela, ninguém ousaria chamá-la dessa forma. Naqueles
tempos, em resumo, Ponte-Napoleão é não mais que uma mulher
valente, terçando armas contra a miséria diária, trocando pó por
borralho, exercendo uma forte ascendência sobre o populacho de
Porto Pinto (talvez um dia, se já não foi feito, os cronistas da beira-
mar lhe dedicarão uma hagiografia). Desde a morte de sua filha e
de seu genro em um acidente de carro, ela cria sozinha o seu

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neto. Um verdadeiro capeta que terminaria, se ela não tomasse o
devido cuidado, por lhe aprontar poucas e boas!
Em verdade, à mera vista do Peugeot 304, vai pro beleléu
o medo dos corretivos ministrados pela avó – tal como um
lobisomem, ao despontar da aurora. Uma única coisa interessa
ao garoto: tomar assento frente aos instrumentos, girar o volante
ao extremo, direita-esquerda-direita, sentindo as rodas dianteiras
se mexendo sob efeito do movimento dos braços. Com os pés
planando a mais de um palmo do piso esburacado, através do
qual se vê o chão lodoso em que brotam beldroegas selvagens,
não lhe resta outra escolha senão a de se debruçar sobre os
elementos ao alcance da mão: o volante, a alavanca presa à coluna
de direção, a porta. Sobretudo o volante, com redobrada
frequência, padece desses assaltos, como se um carro só se pudesse
dirigir com tais movimentos bruscos e mudanças de marcha
ininterruptas. Pelo menor motivo, ele abre a porta, levanta o capô,
inspeciona o chassi à dianteira e à traseira. Vrrrrraaaaaam!
Vrrrrraaaaaam! Sua boca reproduz à perfeição o ronco do motor,
como também o da buzina. Os demais carros que passam pela
rua, quase rentes, reforçam sua impressão de prosseguir adiante.
Aceleração. Mudança de marcha. Vrrrraaam! Bi-bi!

É bem dali, da solidão e desse vetusto Peugeot 304, que o


garotinho observa o mundo. Não aquele que fervilha seu salve-se-
como-puder à frente do automóvel. Esse aí o garoto não consegue
enxergar. Para poder vê-lo, seria preciso um ou dois perpianhos
por baixo das nádegas, mas o peso terminaria por desconjuntar o
banco. Sem falar da rugosidade dessas pedras sob o traseiro! Tentar
outra coisa? Em pé, por exemplo. Dessa forma, sem dúvida
conseguiria, com a vantagem extra de poder pisar sem dó no
acelerador. Mas onde é que já se viu dirigir um carro em tal
postura? O garotinho, então, vigia a própria retaguarda. Graças
ao retrovisor virado para o banco do motorista. Nas férias e
feriados, ele passa dias inteiros com os olhos cravados nessa fatia

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de espelho, por onde observa fatos miúdos e gestos da fauna algo
especial que se aglutina diante da varanda de sua avó.
Com um ar falsamente ingênuo, Asefi, a mocinha
vendedora de amendoim torrado, deixa cair um punhadinho de
volta na bandeja quando enche o copo que lhe serve de medida; a
mascate de mangas tem o cuidado de esconder o lado meio podre
para exibir a melhor face das frutas aos clientes; com habilidade,
Leretour serve suas raspadinhas, uma mistura de gelo ralado e
xarope de frutas, sempre tentando ludibriar o comprador (suas
manobras de prestidigitador tornaram-se um ritual cujo
desenrolar o garoto acompanha atentamente); Boss Manno, esse
tal, é célebre em toda a extensão das docas por causa de sua
estupidez: de fato, quem teria, em plena luz do dia, chegado um
fósforo tão perto do nariz a ponto de incendiar o próprio bigode?;
próximo ao crepúsculo, transportada pelo cheiro de café que
embalsama o ar e pelo barulho das canecas que uma de suas filhas
enxágua num balde, aparece então Nerélia; Tikita-Maluco, esse
aí, volta e meia regressa, tal como os ciclones que varrem o país
com regularidade de marés…
Vem em seguida a encachaçada nuvem de engraxates:
Lorde Harris, cujos lábios queimados de tafiá reúnem-se, a cada
três minutos, para lançarem alguns metros à frente um espesso
jato de saliva; Branquinho, que começa a cambalear antes mesmo
que os lampiões se acendam, mas que permanece lúcido o
suficiente para arrancar a craca de alguns calçados; com o rosto
severo e um pileque sóbrio, Merlet nunca ultrapassa uma certa
medida, para não dar maus exemplos a Lelezinho, seu filho,
também ele engraxate por profissão. Igualmente no ofício de
limpar sapatos alheios, há ainda todos aqueles cujos nomes o
garoto não logrou gravar, os quais trazem aos pés, com frequência,
umas sandálias de couro barato, apelidadas Jesus-Cristo, por conta
da semelhança com as ostentadas, em santinhos, pelo Nazareno.
Exibem essas Jesus-Cristo uma fisionomia tão esfarrapada que

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seus proprietários se engenham em artifícios para aplumá-las com
nacos de barbante.

Se ele aprendeu pouco a pouco a observar, com o recuo


próprio da rotina, o desfile de toda essa congregação em suas
evoluções pelo pátio de terra batida em torno da casa familiar, o
garoto tem sempre um olhar especial para um dos engraxates.
Em sua estima, esse alcança o mesmo nível, se não acima, que
Ponte-Napoleão. Por sobre o populacho, eis aqui o Yaguanês,
atendendo pelo patrônimo de Faustino, enquanto o sol não
emborcar no horizonte, mergulhando em prumo nos flancos
imóveis do mar. Que idade teria ele? Afora sua têmpora esquerda
algo prematuramente grisalha, ostenta fumos de distinção. Está
sempre vestido com uma camisa jeans e com uma calça –
remendada nos joelhos e nos fundilhos – que ele conserva num
estado de limpeza quase obsessiva. Há três anos, todas as manhãs,
é ele quem leva o garoto à escola e volta para buscá-lo à tardinha,
num encontro que não perderia por nada neste mundo. E ai
daquele que, mesmo sem intenção, tentasse atrasá-lo. Santa
Misericórdia! Clientes se viram enjeitados ao Deus-dará, sem direito
a qualquer palavra de escusa, com um pé de sapato engraxado e
outro não. Ao longo do caminho, sabe contar mil e uma histórias
engraçadas, evocar com talento e nostalgia Yaguana, a remota
cidade da princesa Anacaona, neutralizar no menino os desejos
inconscientes de ir saltando amarelinhas pelo meio da rua, e, bem
diante da cancela da escola, deslizar umas moedinhas no bolso-
faca da bermuda do garoto.
Durante o dia, Faustino, como todos os demais, ocupa-se
de suas atividades de engraxate; quando preciso, dá uma
mãozinha na construção dessa ou daquela casa. Noite feita, dorme
no chão do quintal de Ponte-Napoleão, numa convulsa coabitação
com as demais cotovias que também estilhaçaram o bico no espelho
polido da cidade grande. Mas é ao anoitecer, entre as atividades
do dia e a hora do sono, que o yaguanês encontra sua verdadeira
estatura, deslizando por baixo da pele desse imperador da segunda
metade do Século XIX, governante que reinou pela baioneta sobre
o país salbundense, em uma orgia de sangue, fastos e musselina,

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e que era com certeza o autor do ditado: “baionetas são de aço;
constituições, de papel.” Tal é o destino de Salbunda, diria você –
e com toda razão –, desde o Grão-Duque de Antanho, com generais
de opereta sucedendo a governantes laranjas, e vice-versa. Com
certeza, é outra essa música, e aqui não é o lugar para cantá-la.
Poucas gotas de uma aguardente fortificada com raízes,
o trempé, são o bastante para fazer Faustino trocar de registro
civil. Bêbado feito gambá, então ele parte em solilóquio pela
extensão das docas, emprestando sua figura à zombaria dos
moleques do bairro. Até mesmo Tikita-Maluco, em seus raros
transes de lucidez, debocha ferozmente. “Pé-de-cana, olhe a reta,
tá bambinho assim por quê? Tá no mar, é? Êh! Ôh!” E Tikita se
escancara numa dessas risadas secas tão suas, como se quisesse
limpar o fundo da garganta. É nessas horas que o yaguanês bate
forte nos peitos, com a mão espalmada, para fazer acreditarem
que a pinga é da boa e que baixou nele o espírito de Faustino I. Ao
passo que bastaria não mais que uma brisa ou um peteleco de
mocinha para que ele saísse catando cavacos. A verdade é que
isso acontece muito raramente. Só que, quando sucede, é no meio
de tanto pampeiro e de tanta cadeira derribada ou destroçada! É
um dilúvio de autodescomposturas a que sucedem os esculachos
de Ponte-Napoleão – logo um moço como você, Faustino! O
acontecido termina dando corda à matraca dos moleques da doca
pelo resto da semana. Naquele tempo, ninguém, nem mesmo os
cronistas da beira-mar, cujo ofício é precisamente o de tudo saber
sobre todos, ninguém sabia que Faustino já vivera outras vidas.
Tampouco se sabe como, ou por quê, seus passos à deriva
desembocaram no cais, lugar em que ele pode – por assim
serenamente dizer – se fazer de engraxate durante o dia,
ensanguentado monarca ao cair da noite. Uma espécie de Dr. Jekill
e Mr. Hyde tropical.

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II Os rumores da morte

Pregados no ar, os crescentes eflúvios de melaço vieram


arrancar o homem de suas lembranças, assinalando a iminente
chegada a Yaguana, local onde viveu essa princesa Taino que,
antes de seu assassinato pelos invasores espanhóis, para sempre
legou, a todas as nativas da região, seu charme e sua arte nas
coisas do amor. Uma lenda dourada que o homem tinha aprendido
com Faustino, muito antes de encontrá-la nos livros de História.
À saída de Yaguana, abandonou o asfalto pontuado de cavoucos
e conduziu o carro em direção ao sul, por uma trilha de terra
traçada ao acaso da passagem de veículos de todo tipo, como um
corredor talhado na vegetação espessa: caminhões, tuque-tuques,
charretes… Uma tristeza cada vez mais aflita se destacava por
sobre a paisagem. Árvores? Entesadas num ato de recolhimento,
sua pose rígida e silenciosa sustava, na atmosfera tépida, algo
como um lamento fúnebre. O vento, por sua vez, não se dispunha
a soprar. O pó da estrada mal conseguia se levantar sob as rodas
do sacolejante jipe que seguia rangendo ao menor solavanco,
enquanto a duras penas arrastava sua carcaça e cortava uma
massa pastosa de vapor e silêncio. Apenas o cri-cri de grilos em
romaria interrompia, por vezes, o ronco tuberculoso do motor.
Por que o regresso aos lugares da memória tinha um tal
gosto de tristeza? Apesar da perda de seus pais, sua infância tinha
sido antes alegre do que triste; fora até mesmo feliz, se comparada
com aquela de certos filhinhos de papai abarrotados de brinquedos
e de presentes, mas sempre insatisfeitos; ou ainda, aquela de outros
garotos tão pobres que falar de felicidade nesses casos seria um
insulto. Elemento chave dessa relembrança, teria sido a vida de

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Faustino I um poço de calamidades, de mazelas de toda espécie?
Somente o saberia se perquirisse, passando ao crivo cada detalhe,
fosse mesmo o mais ínfimo, da sua história de homem.
O jipe soluçou. A trilha, transformada em montanha russa
pelas chuvas consecutivas, esgueirava-se na escuridão, e as noites
pareciam pouco seguras naquelas paragens. Nem tanto por obra
de bandidos de estrada, mas sim por um vago temor de lobisomens,
nascido daquelas histórias de infância e alimentado na
adolescência pela imaginação desenfreada dos salbundenses;
medo que, apesar dos anos consumidos na escola do racionalismo,
restava-lhe colado às entranhas… Bruscamente, sem que nada
no arranjo do espaço deixasse prever, um vilarejo brota das trevas:
Buraco-Pardal. Tão logo o homem entreviu o lugar, um clamor
fendeu o silêncio. A agonia instantânea das ondas, no longínquo
da noite, revelou a até então invisível presença do mar. A lua,
dissimulada durante o trajeto, agora passeava nua em meio a um
rosário de estrelas. Ela lançava sobre o vilarejo uma suave e viva
claridade, esmaecendo a chama já quase pálida dos lampiões a
querosene. Lá se encontrava a chave de sua viagem a Salbunda,
após mais de três lustros passados em terras ditas estrangeiras. O
homem desceu do carro e caminhou em direção ao povoado,
paramentado para livrar combate frente ao tempo – que roía sua
memória como um velho rato tenaz e esfomeado. Estava pronto
para desafiá-lo a terçar destinos, e subjugá-lo.

Aterrissou em cheio num velório. Um desmazelado cristão


resolvera largar a corda da vida. Um jovem que, por descuido,
deixara arrancarem-na de entre seus dedos? Um ancião que,
cansado de segurá-la, abrira a mão? Ou ela se rompera por si
própria, sem mais nem menos?… Pessoas iam e voltavam num
burburinho de palavras e risadas, ritmado pela lancinante
quebrança das ondas na escuridão. Encantadoras mocinhas
ofereciam bandejas sobre as quais bailavam canecas de chá, de
café, copos de rum. No caminho, beliscões desciam sobre aquelas
popas carnudas, para despeito das carolas que deitavam furiosos
vitupérios contra esses senhores sem respeito, capazes de pensar

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naquilo em dia de luto; decididamente, nunca esses porcos vão
mudar. O mau humor das ratazanas de sacristia em nada sofreava
a audácia dos homens, pois as jovens moçoilas não pediam por
menos. Elas passavam e repassavam rente às mesas, rebolando
umas ancas que trepidavam por sob saias ou vestidos, com o
evidente propósito de provocarem o contato furtivo de uma mão
masculina sobre o traseiro. Na hora da apalpadela, fingiam
surpresa e se esquivavam aos cicios, quase derrubando,
invariavelmente, as bandejas.
Os retumbos do mar ao longe. Sobre um fundo de tambor
e banjo, a voz de um animador, mais vizinha da matraca do que
de qualquer melodia, salmodiou uma torrente de palavras, evocou
os costumes ancestrais pisoteados, vituperou contra os lares em
que já não se saudava como se deve a partida das pessoas de
respeito… O retumbo do mar… Quanto a mim – voz estridente
do mestre-de-cerimônias –, estou orgulhoso por, nesta noite, oficiar
numa família que ainda sabe honrar seus mortos, conservar as
tradições sagradas… O mar. Sem transição, as palavras se
tornaram canção. “Vèy o! Vèy o! Vèy-la pase byen o!”
Galos invisíveis, aporrinhados por não lhes deixarem pregar
os olhos, volta e meia misturavam seus estrondosos cocoricós ao
rebuliço ambiente. Refugiados nas árvores, perambulavam de galho
em galho num grande ruflo de asas, vez em quando largando
uma gosma tépida que aterrissava sem aviso prévio sobre uma
bem aprumada cabeça ou um chapéu branquinho, ostentado com
uma ponta de orgulho por seu proprietário. A essa melodia
respondiam longos uivos de cães sarnentos, fazendo o homem
lembrar-se dos lobos de florestas nevadas que ele esquadrinhara
em suas peregrinações através do planeta. No momento de lançar
seus ganidos para a morte, afastavam-se do pequeno grupo,
apoiavam-se contra a cerca de bambus trançados e, com o focinho
apontado para o céu, ululavam seus ladridos queixosos. Apenas

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as pedradas acenadas pelos moleques tinham o poder de
interromper, de supetão, essa melopeia por demais prolongada.

Subitamente, gritos expelidos de uma choupana jorraram


por sobre a voz dos convidados:
– Ai, ai, ai, meus amigos!
A porta do barraco gemeu nos gonzos e se escancarou
abruptamente. Uma velha senhora saiu em disparada, numa
velocidade espantosa para sua idade. Num piscar de olhos foi
alcançada por três corajosos que a agarraram com todo vigor.
Seus algozes mal conseguiam retê-la. Ela se agitava sem sossego,
debatia-se, esperneava, chorava tão forte que já não se percebia
nem a cacofonia em torno, nem os longínquos rumores do mar.
De onde diabos tirava tanta energia? Seu rosto, realçado pelo lenço
vermelho-sangue emoldurando-lhe a fronte, expressava uma dor
que se adivinhava profunda. Um som pungente irrompia de seus
minúsculos pulmões, intercalado de lamentos que ela sem dúvida
ruminara por longo tempo:
– Ah, Mesilòm! Por que você fez isso comigo? Você me
largou sozinha… Ai! Ai! Ai! Amigos! Vocês mal conheciam o meu
Mesilòm.

Essas palavras vieram se plantar na carne mais viva do


homem. Todo esse trajeto por nada! Pregado em seu canto, a
ninguém ousava interrogar sobre as circunstâncias do falecimento
de Mesilòm. Além de tudo, se morreu de velhice ou disenteria,
daria no mesmo. O homem sentiu-se desamparado. Quem agora
poderia lhe falar de Faustino I (caso fosse aquele, realmente, o
Faustino que procurava)? E de sua infância? Outras perguntas,
igualmente dolorosas, afrontaram-se em sua cabeça: Faustino
teria morrido? Se vivesse ainda, por que não estaria presente no
funeral de seu padrinho de casamento? Macerava ele uma
mendicância plena de vergonha e de má consciência em alguma
favela de Porto Pinto? Mais grave ainda, não teria o homem, ele
próprio, inventado Faustino? Para espantar os demônios da

28
saudade. Figura protetora do pai que nunca conhecera. Duplo
que lhe servia de interlocutor nos momentos de solidão.
A noite afundou-se a passos largos dentro de sua
confusão. Os mesmos sons heteróclitos confraternizavam num
corpo-a-corpo dos mais inocentes. A essa altura de suas
considerações achava-se o homem, quando, perdida a conta das
horas na extasiada contemplação das idas e vindas daquela
assembleia, um ancião, com uma voz segura de sua autoridade,
reclamou silêncio.
– Crique!, lançou.
– Craque!, respondeu a plateia.
– Criiiiique!
– Craaaque!
– Todo rotundo, sem fundo?
– Anel!
– Todos os dias me visto com saias, nunca saio?
– Cama!
O jogo assim prosseguiu por alguns minutos, numa
disciplina assombrosa em meio a tanta anarquia. Sem sabê-lo,
contador e auditório obedeciam ali a um velho ritual de vários
séculos, acurado por dezenas e dezenas de noitadas à lua cheia,
após ter sido arrastado às praias salbundenses pelos vagalhões
dos oceanos para se misturar às lendas em obisidiana que os
fantasmas dos tainos e dos caribes vêm, de tempos em tempos,
contar aos nativos da terra. Tal como em Porto Pinto, nas cidades
em que a eletricidade tinha destronado a lua e os lampiões, essa
arte era reinventada todos os dias por meio das práticas de
juntamentos de auditório, dos jocosos encontros de adolescentes
ao pé dos lampadários. Sempre havia um joão-fandango para
tomar as coisas em mãos e se erigir em animador da noitada. Por
vezes, alguém concebia a ideia de contestar o poder, fato que
resultava em verdadeiras justas verbais e repartia a noite em
campos estremados.
Mas ali, nos confins do país, o homem tinha a impressão
de ter voltado ao tempo das origens, quando então as noites de
Salbunda sonegavam seus mistérios. Tempo em que a criada de
Ponte-Napoleão tecia, unicamente para ele, contos que o faziam

29
ora rir, ora ficar com os cabelos eriçados. O clamor da assembleia
fazia eco ao fio de voz do patriarca, maestro atípico espiando o
instante em que arrebataria seus músicos com a introdução de
um sulco brutal na partitura. Após outras duas ou três tiradas, o
maestro pensou que tivesse encontrado o momento propício. Mas
sua voz foi abafada pelo canto exasperado de um galo: a nova
cadência do pátio, sobre a qual regulara o sono, viera dilacerar
seus sonhos. Passado o momento hilário, lançou o ancião às
pessoas agrupadas em meia lua à sua volta, todos vidrados em
seus lábios:
– Comecemos pelo começo, senhoras e senhores. E o
começo, nesta noite, é nosso saudoso Mesilòm, que se reuniu aos
antepassados para iniciar uma nova vida. Antes de festejá-lo como
se deve, sirvam-me um trago de rum, por todos os raios! Para me
aquecer o sangue: tem feito friozinho demais nestes dias…

O homem retirou-se na ponta dos pés, subiu novamente


no carro, sem nada perguntar a ninguém. O destino o precedera
e confiscara sua memória… E se, para o engraxate, tudo tivesse
começado nesse povoado debruçado sobre o mar? Nessa igrejinha
em tijolos à vista, uma das raras construções sólidas da aldeia, na
qual, em tempos de ciclone, deveria se refugiar tudo o que vilarejo
contasse como vivo? Quem sabe, essa igreja tivesse sido talvez
testemunha do batismo de Faustino, de sua primeira comunhão,
de seu casamento. E sobretudo o mar – que não sabe guardar
segredo, dizem os salbundenses – teria com certeza muitas
histórias para lhe contar… Os pneus do carro morderam
avidamente a trilha de terra, os pés do motorista pisavam fundo
no pedal. Era o medo que lhe embrulhava o estômago, ou a raiva
por ter sido empulhado pela providência? Ao cabo de alguns
quilômetros, o velho jipe expediu uma tosse seca que o arrancou
de suas cogitações. O homem baixou pés ao chão e escarafunchou
sob o capô. Instantes depois, o carro pegou em meia volta de chave.
Vrraaaam! Bi-bi! Mal percorreu quinhentos metros, já novamente
afogou.
Viva alma não havia nas paragens. A noite em sua mais
completa opacidade. A noite desdobrando seus mistérios. Talvez

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Yaguana distasse de uma boa dezena de quilômetros. O homem
conseguiu empurrar o carro para tirá-lo do caminho e estacioná-
lo rente a uma árvore. Não havia escolha: teria que hibernar seu
crescente medo e passar a noite por ali mesmo. Enquanto se
embrulhava numa lona, pegou-se recitando um salmo de Davi,
que pensava ter esquecido. “O Senhor é meu pastor... Quando
caminho no vale das sombras da morte, não temo mal algum”.
Reflexo de sua antiga educação – sorriu para si mesmo. O estrondo
do mar, até ali encoberto pelo ronco do jipe e por seu medo,
preencheu abruptamente o silêncio da noite. A presença tão
próxima do oceano o reasserenou; deixou-se acalentar pelo rumor
das ondas.

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III O casamento

No dia do casamento de Faustino, Buraco-Pardal


despertou ao cantar do galo. Logo em seguida, o aroma do café
cedinho coado veio se misturar ao cheiro da terra molhada, regada
de antemão para abrandar a ardência do pó. Após o manjar
rapidamente devorado, garotas principiaram a varrer o pátio em
que se faria a recepção, parando, volta e meia, para se
espreguiçarem e afugentarem o resto de sono colado à menina
dos olhos. Mulheres, acocoradas ao pé de uma árvore, destramente
degolavam galinhas que, após entregarem a alma (caso tenham
uma), eram logo aferventadas, depenadas e então flambadas nas
chamas de um braseiro. Na hora em que o sol inundou de luz o
povoado, meninos já corriam pra lá e pra cá, meio nus, exultando
por verem tanta atividade à sua volta. Uma cozinheira
interrompeu, num supetão, o empurra-empurra da molecada:
“Jãozinho, vai pegar água... Titim, vai lavar as vasilhas, aproveite
e cate uns cravos-de-cheiro.” As tarefas foram executadas em
grande celeridade, ainda maior por causa da tácita promessa de
nacos de pão ou asinhas de frango ao regresso. Nossos intrépidos
molecotes desembestaram rápido como meteoro, carregando
adiante uma pança redonda como cabaça – pesada, pesada
demais para aqueles franzinos gambitos. Tal panturra não os
impede de enfrentar, mais tarde, os filhotes de pirata que tentaram
se apossar da paga, provocando assim um pugilato inflamado.
Safanões e cascudos, distribuídos por um adulto que passava pelas
cercanias, arremataram a peleja; como um enxame de abelhas, a

33
molecada então retomou o curso de sua alegria, zunindo em
grandes gargalhadas.
Os homens, por seu lado, foram repartidos em dois grupos.
A sangria do boi e dos três porcos? Brincadeira de criança para a
primeira equipe, salvo pelos urros do touro e pelo guincho dos
leitões, um dos quais, transido de medo, evacuou as tripas sobre
as pernas de seu verdugo. Gamelas postas por terra receberam o
sangue para o chouriço, sem perder gota alguma – exceto aquelas
destinadas aos mortos. Com martelo em mãos e pregos entre os
dentes, a segunda equipe engenhou-se na elaboração de uma
muralha feita com tecido grosso, circundando quatro troncos de
árvore. Dentro em pouco, a sala de recepção estaria pronta para
acolher os convidados. Nesse momento, um improvisado arquiteto
deu a ideia, aceita à unanimidade, de prolongar a tenda com um
longo corredor de palmas entrelaçadas. Nele seriam colocadas
tochas para caso os festejos, como era de se esperar, se
prolongassem noite adentro. Mas uma coisa é levar a cobra à
escola, outra é fazê-la sentar-se no banco. A realização mobilizou
um número incalculável de mãos, de ordens e de contra-ordens.
Gritos assomavam de toda parte, tendo o projeto escapado, nesse
meio-tempo, a seu criador. A fase mais delicada consistia em erigir
em portal uma arcada feita em palmas, bordada com botões
vermelhos de flamboyant. Passou-se o resto da manhã levantando
palmas que se negavam a permanecer eretas, enquanto se
formulavam propostas para bem esteá-las. Terminada a labuta,
duas moças ficaram encarregadas de montar guarda e de assinalar
a aproximação de eventuais vândalos. Expressamente proibida a
profanação da seara dos bem-aventurados. Assim mantidos à
distância, os moleques se enfureciam por não poderem batizar a
aleia. Contentaram-se em macaquear o ritual que, algumas horas
mais tarde, seria repetido pelos nubentes.

Nesse meio tempo, Faustino encontrava-se em companhia


de Mesilòm, suando aos borbotões dentro do passeio completo
que o amigo lhe emprestara. Seu padrinho de casamento
conseguira dissuadi-lo de comprar um terno novo. “De qualquer
forma, vai ser pouco útil. Você não é candidato a nada, é? Vai

34
precisar desse dinheiro por lá, Mesilòm argumentava. Na cidade,
carece pagar até o ar que se respira”. Por enquanto, prensado nos
garnimentos com que se paramentara desde a aurora, além de
ostentar uma esganadora gravata borboleta, Faustino tinha a
sensação de estalar. Paciência!
– Não é que é mesmo bonito?! – exclamou Sor Lamercie,
companheira de Mesilòm. Não se pode dizer que tenha surrupiado
fama alheia! Se eu fosse um tantico mais mocinha... – brincou.
Sor Lamercie exprimia não mais que a opinião geral, pois
Faustino atraía sobre sua pessoa os ardores de pelo menos metade
da gente feminina de Buraco-Pardal. Era um galo posudo, um
mancebo de admirável prestança – condição que, ademais, ele
bem sabia ressaltar com um sorriso sedutor. À exceção do
dignatário do povoado, que avançara bastante em seu percurso
escolar, Faustino fora o único a triscar bem de perto o diploma de
estudos primários. Aliás, Buraco-Pardal inteira acreditava
piamente que ele se diplomara. Sabe-se lá por que razão seu nome
não fora citado pela rádio entre aqueles dos demais laureados.
Talvez por um instante de desatenção do locutor porto-pintense.
Talvez o radialista estivesse de conchavo com o dignatário, que
fizera do “diploma” sua reserva de caça. Um rapaz tão esforçado,
que nunca fora reprovado na escola! Como poderia não ser
aprovado no exame final? Tudo era culpa do jornalista! Se
Faustino, com treze anos de idade, já secundava seu pai nas lidas
de meeiro num pequeno quinhão de terra. Se ele, cansado de roçar
terra alheia, dedicou-se à pesca de cabotagem num barco
arrendado do dignatário. Se foi trabalhar, mais tarde, em uma
usina de açúcar de Yaguana, antes de voltar ao vilarejo para se
casar com Maria, com a firme intenção de levá-la consigo a Porto-
Pinto. “Trabalho não falta por lá – explicou a Mesilòm, que tentava
dissuadi-lo. Por acaso não tenho dois braços e duas pernas? Jamais
tive medo de levantar cedo e deitar tarde”. No princípio teria
acolhida de um antigo companheiro do engenho, que já arriscara
a aventura; em seguida, firmaria seu próprio teto, no Brooklyn
ou em Koweit City. Nomes que ressoavam feito onomatopeias
vazias de significado ao ouvido dos pardalenses e suas

35
preocupações outras. Como faria Faustino para controlar uma
jovem tão bela como Maria na cidade grande? Floresciam as
tentações, uma moça inexperiente terminaria por ceder, mais cedo
ou mais tarde, às solicitações de que se fazia objeto.

Até então, a Maria não faltavam pretendentes. Homem


algum da região, por lesto que fosse, conseguia evitar de ciscar
em suas redondezas. Sorte de quem fosse o primeiro a gozar de
suas curvas divinas. Fruir do privilégio de se abandonar no leito
em brasas de sua carne nova. Não pediam muito: um furtivo
abraço seria o bastante para deixá-los tomados de acalanto. De
preferência, no lapso de um pálido crepúsculo de outono
caribenho. Quando, por longas horas, a chuva bloqueava a vida
do dia-a-dia, na cidade como no campo. Que sonho ter a seu lado
uma mulher hábil na arte milenar que vocês já sabem, para então
preencher essas tardes, intermináveis como uma prece de beata!
E, ainda por cima, uma mulher como Maria!
Sendo o oceano que sou, posso lhes garantir que raramente
vi mulheres tão belas. Uma verdadeira festa de natureza. A orla
dos lábios finamente esculpida. Seios que podiam, à sua vantagem,
concorrer com duas mangas maduras, em ponto de se desejar
mamá-las por uma eternidade. Sua anca empinada formava
curvas que eram um dos espetáculos mais enfeitiçados a que um
homem pudesse presenciar. Quanto às nádegas, nem se fale! Tinha
um tal modo de balançá-las quando caminhava... E, ainda por
cima, numa tal generosidade! Com o pretexto de facilitar seus
movimentos, habituara-se a arregaçar a barra da saia quando
subia a colina que leva ao vilarejo. Essas coxas, hum! Bela negra,
vero! Diga-se, vez em quando inflamava os ciúmes das outras
moças, cujos seios e nádegas todavia cantavam, sob o vestido, um
hino de fogo à saúde. No vigor de sua excepcional beleza, Maria
enfrentava com igual valentia todos os flagelos da vida.

Por enquanto, refestelada numa poltrona, a futura esposa


padecia os preparativos de praxe. Estava entregue aos cuidados
de um batalhão de moças pardalenses, demasiado felizes por se

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livrarem de tão perigosa rival: uma desfrisava seus cabelos, outra
manicurava, uma terceira ocupava-se dos pés, aquela achava que
o penteado não convinha, não realça a sua beleza, da noiva todos
têm que se lembrar, todos os homens do povoado têm que sonhar
com ela hoje à noite. Uma mulher, já quarentona, de peitos
abundantes e voz de cafetina, encarregava-se de ensinar-lhe a
arte de segurar seu homem, isso se aprende, querida.
– Na essência, o homem faz parte de uma raça de gulosos.
É preciso lhe preparar bons pratos bem picantes e caldos apetitosos,
sobretudo se ele tiver feito muito daquilo, na véspera... Se quiser
que seus arrochos sejam ardentes como os de um garanhão, não
esqueça o maracujá, em grandes copos de suco com leite, depois
de um bom prato de mariscos lambis.
Angustiada pela aproximação do acontecimento, Maria
esboçou um sorriso, enquanto as outras moças se desmanchavam
em gargalhadas. A comadre tomou as rédeas do grupo, antes de
acrescentar:
– Você me dirá como foi, querida: não poderá aguentá-lo
na cama.

Foi um casamento como Buraco-Pardal não vira desde luas


e luas. As cozinheiras se atarefavam atrás da casa, suando em
meio a caixas de rum, refrigerante e garrafas de tafiá. Seu arqueado
vai-e-vem entre a mesa com bandejas e as panelas plenas de óleo,
emanando um calor dos infernos, acompanhava o ritmo da música
despejada por um trio ensurdecedor. Troncos e braços
galhardamente reboliam. Roçando-se pelas pernas, apenas os cães
conseguiam estragar o humor, vez ou outra, das preparadoras de
caldos e molhos. “Cachorrada de merda! Vão se catar lá adiante!”
Debruçadas, retomavam então o trabalho, acrescentavam uma
pitada de sal ou pimenta, experimentavam o molho com boca
arredondada feito fiofó de galinha.
Acenderam-se as estrelas em mesmo tempo que as tochas
da arcada. Faustino e Maria abriram o baile, seguidos sem mais
delongas por outros casais que, no meio da pista de dança,
sacudiam-se acoplando o baixo-ventre na mais perfeita harmonia.

37
A festa ia durar a noite toda. Arrepiando sob o vento que revolvia
minha carne, não resisti ao desejo de misturar meus gemidos ao
regozijo geral. Acompanhei o cantor da orquestra, que me dava
as costas vociferando um estranho merengue que descompunha
uma mulher por demais possessiva.

Mezanmi, vini koute.


Men fanm-nan tounen majò prizon.
Mwen pa kòk yo mare nan pye tab
Pran kay-la, ban-m libète-m.

Fanm jalou pa janm gra


Wooo, pa janm gra!

O sol emergiu, lânguido, por trás das montanhas,


derramando uma calmaria de vidro por sobre o terreno. Aqui,
alguém tirava uma pestana, a cabeça apoiada no encosto de uma
poltrona. Adiante, outro curtia seu tafiá, segurando nas mãos
um pernil de cabrito, lambido pela língua desatenta de um
doguinho refestelado por terra, já empanturrado de tripas de
galinha. Os meninos dormiam debruçados nas mesas. Cachorros
cochilavam sob o abrigo das cadeiras de palha...
Após a partida do último convidado, Faustino juntou-se
ao casal Mesilòm: seguiria no mesmo dia para Porto-Pinto. Voltarei
para levar Maria dentro de alguns dias, assim que tiver encontrado
morada. A despedida durou mais que o previsto. Mesilòm falou
com melancolia dos bons tempos de farta pesca junto à costeira,
quando havia comida para todos e os pardalenses vendiam seus
excedentes em Yaguana. Ninguém era obrigado a defrontar mar
aberto para trazer, pior ainda, restolho miúdo. “Enfim, concluiu
Mesilòm, naquele tempo os camponeses não deixavam seu quinhão
para irem mendigar nas cidades. Hoje, até o mar, nutrido como
sempre fora, acabou por ressecar”, suspirou. Sentado sobre um

38
tronco de árvore cortado em tamborete, Faustino escutou,
impassível, as nostálgicas palavras de seu padrinho de casamento.

O homem, pouco depois da aurora, foi despertado pelo


clamor das ondas se arrebentando contra os rochedos. Bateu-lhe
a impressão de ter tido um longo sonho. O mais estranho é o
sentimento que sobrou: estivera presente no casamento de
Faustino. Como um acontecimento de que teria participado na
véspera, e do qual tinha nítida consciência, mesmo nos mais
ínfimos detalhes. Debitou tudo na conta da noite a céu aberto e
da brisa marinha. Um pouco mais tarde, ajudado por dois
transeuntes, conseguiu dar partida no velho jipe e retomar então
a direção de Porto-Pinto, olhando pelo retrovisor a estrada que
murchava atrás de si.

39
IV O enigma

Recostado na varanda, Faustino, com um olhar estúrdio,


inspeciona os calçados de passantes, não hesitando em interpelar
o portador quando parecem sujos demais. No início desta tarde
de sexta-feira, após ter almoçado um naco de vitualha colhida
fiado numa barraquinha de cozidos, tira a sesta à sombra do
telhado. Daí então desponta tia Luciana, uma das irmãs mais velhas
de Ponte-Napoleão, sempre recriminando a caçula por frequentar
em excesso esses pés-rapados, gentinha sem origem registrada no
mapa ou certidão de nascimento. “Se alguém importante resolve
visitar você, nosso irmão, por exemplo, respeitável diretor de escola,
e encontra esse vagabundo roncando forte na varanda, na
companhia desse vira-lata do Dessalines, já imaginou o que vai
pensar?” Nesse tocante, entretanto, Ponte-Napoleão jamais recuou
de uma só polegada. Pouco se lixa para o julgamento de mestre
Jacques ou de quem quer que seja, aliás. “Sou livre até a raiz dos
dentes”, costuma repetir. Ainda que devesse precisar “até a raiz
dos meus pitocos”, pois em suas gengivas disputam assento não
mais que dois ou três caquinhos, os quais ela se recusa
obstinadamente a substituir por uma dentadura novinha em folha.
Mas esse nem é nosso ponto. Diante do Yaguanês que
tranquilamente tira sua habitual pestana de meio-dia, tia Luciana
para e lança um olhar fulminante, partindo em seguida, fundo
sorvendo sua cólera.
Próximo das quatro horas, quando aos poucos o sol parece
perder o fôlego, Faustino desempacota suas tralhas: a caixa – na
qual assentavam-se escovas e ceras diversas, flanelas, a sineta
servindo para assinalar sua passagem nas raras vezes em que vai

41
circular pelas ruas –, a cadeira do cliente e a dele próprio. Acende
um cigarro e aspira as baforadas com compunção. Ele não fuma
cachimbo à maneira de Lorde Harris – desferindo seguidas
cusparadas, feito grávida, enquanto, apesar do crânio três quartos
branco, chama de “mama” à Ponte-Napoleão. Faustino só cospe
por repugnância, como neste momento em que chega o Chacal-
de-Óculos, esparramado no banco de trás de seu carro com ar
condicionado. Sem dizer uma só palavra, o engraxate lustra não
apenas a superfície, mas também o reverso dos sapatos do Chacal,
que deixa o local calcando a terra com suas solas engraxadas.
Tão logo se vira, explode Faustino: “Entre todo mundo, por que
foi me escolher logo a mim?” Súbito escarra no chão, com desprezo,
sua única cusparada do dia, para grande deleite das vendedoras
de guloseimas.

Como e por que Faustino I aterrissou na cercania das docas?


O moleque esgaravata sua cachola, passa em revista todo seu
cabedal de conhecimentos, já que não gosta de meias respostas: a
ignorância é mãe dos temores. E nunca se gaba ele de seus medos.
Por tal razão, não está longe de crer que Faustino brotou ali
mesmo, no meio do betume. Depois de uma cópula selvagem entre
o atracadouro e as águas marinhas. Que o teriam parido-vomitado
sobre o cais, como fizera a baleia com Jonas. Teria desobedecido
a Deus? Sobretudo, o garoto ignora que nem o próprio Faustino
saberia explicar como ancorou nesse bairro margeando o golfo,
no qual se misturam balaios de turistas vindos de todos os mares
do mundo; vendedores ambulantes de retalhos; napolitanos
fugidos da fome pós-guerra e pós-Duce, marreteando sapatos
usados; mascates sírio-libaneses que já nem se lembram da data
de sua chegada ao país; um descendente, autêntico ou falso, da
rainha de Sabá, duro na queda em seus negócios; palestinos que
fizeram fortuna em menos de uma geração, após muito tempo de
errância e bordoadas pelos quatro portos do planeta; judeus de
todas e nenhuma parte, cuja árvore genealógica precisa ser
vigorosamente espanada para que se perceba a primeira camada
de judaísmo; alguns Benfulanos ou Benciclanos, cujos olhos têm

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o reflexo amarelo do ouro que vendem às braçadas, obtido em
alguma maracutaia com agentes da alfândega; nativos da vizinha
república de Babeque, oferecendo aos passantes suas asinhas fritas
com cheiro de frango macerado com ervas; alemães que nada
perderam de sua arrogância, mesmo após terem sido expulsos da
Europa; poloneses desembarcados na aurora do século precedente,
trazendo em seus alforjes a Virgem Negra de Czestochowa que
reina nos altares salbundenses de todas as confissões... E daí a
África, em tudo presente, tanto nos olhos dos negros quanto no
de mulatos e brancos, em seu porte altivo, seus gestos, na
esperança que renasce como o pássaro Fênix em todos os olhares,
África em tudo, como uma imensa floresta cortada pelos
lancinantes gritos de cinzéis moldando a carne de esculturas em
gestação... Toda essa gente se emaranha, se despreza,
confraterniza, alegremente se mistura, ao acaso dos ardores
sanguíneos ou das contas bancárias, comunga com o mesmo
ímpeto em torno dos molhes, poste intermediário, a própria
consciência desses salbundenses de primeira, segunda ou terceira
geração, pois poucos dentre eles podem reivindicar ter ali estado
desde sempre, ter estado presente ao batismo dessa terra, salvo,
talvez, os zambos das montanhas do Bahoruco, esses negros de
olhos rasgados e pomos salientes, mestiços de caribes e africanos.

No momento, sentado em seu 304, o garotinho já tem para


além da conta com Faustino e seus colegas. Lorde Harris, com
seu umbigo grande como uma munheca, fazendo saltar botões
da camisa; Branquinho, que ostenta um pileque tristonho e se
põe vermelho-urucum quando bebe; sério como um papa, Merlet,
cujos joanetes, contrastando com a solenidade de seu olhar, exibem
a ponta do nariz num vão especialmente recortado à altura do
mindinho em seu tamanco; vendedoras de mangas e guloseimas,
cacarejando à taramela solta; a aparição tonitruante de Thibaut,
muambeira de badulaques, sobre quem se comenta que
prazerosamente vende algo bem distinto, juntando outras moças
à sua volta para contar piadas mais que picantes, com uma voz
sempre rouca; o padre Komokyèl, que passa seu tempo confessando

43
as jovens do bairro segundo os preceitos da carne; a viúva Orfília,
que já não sabe o que inventar para esticar a pensão de seu finado
marido e assim cobrir as delirantes necessidades de Pancho, grávido
até os olhos de tão gordo, e seu Cadillac cor de neve...

Faustino, por seu lado, acaba de dar uma estalada de


flanela e uma última escovada nas botinas de um freguês
apalavrado ao engraxe diário. Levanta-se de sua cadeira de palha,
suficientemente baixa para ficar ao nível dos pés do freguês,
espreguiça feito calango ao sol, desliza algumas palavras nos
ouvidos de Asefi – que gargalha camuflando as amídalas por trás
de um lenço – e depois atravessa a rua com passos já mal seguros.
Força do hábito, sem dúvida. O garotinho então deixa o volante,
ajusta o retrovisor, ergue-se apoiando-se nos punhos.
Faustino desponta no balcão do botequim de Boss Manno.
Antes mesmo que faça seu pedido, o taberneiro serve uma dose
de tafiá, logo empunhada à mão firme. No lugar das três gotas de
praxe, derrama apenas uma: “invisíveis não têm frio no estômago”,
diz, com um sorriso de mofa. Leva o copo à boca e atira a cabeça
para trás, num golpe seco. Engole a cana fazendo careta, põe o
copo no balcão, enxuga os lábios no avesso da manga e esfrega o
peito. Permanece ereto, com as pernas abertas para se manter em
equilíbrio, troca algumas cortesias com o chefe do pé-sujo que, ao
cabo de dois ou três minutos, serve outra dose. Mesmo roteiro.
Desta vez, o yaguanês tira do bolso duas moedas e as larga à vista
de Boss Manno, batendo muito forte com elas sobre o balcão;
volta a atravessar a rua com o mesmo passo mal seguro, lança
um aceno de mão que pode significar de tudo: até a vista, vá se
foder, não enche o saco... Distancia-se até se transformar em um
ponto, um grãozinho de areia preta, até sair completamente do
campo de visão do guri. O menino se encarniça contra o retrovisor,
cujo suporte geme e desfere estalos como se fosse estourar. Por
fim, o espelho traz de volta um Faustino cambaleante, surgido de
lugar nenhum, entalhando repentinamente o enquadramento.
O yaguanês recupera seu posto de trabalho, senta-se sem
dirigir palavra alguma aos colegas, oficia por mais alguns minutos,

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o tempo suficiente para despachar dois ou três fregueses, depois
retoma a direção do botequim de Boss Manno. Para em pleno
meio da rua, ergue a cabeça rumo à placa espetada acima do
boliche e decifra em voz alta: “Re-la re-la a-trás do ca-ju-ei-ro.
Go-te-jar sem pe-car”. Repete, mais fluído: “Rela-rela atrás do
cajueiro. Gotejar sem pecar”. Sem falhar vez alguma, seu olhar é
sempre sugado pela tinta vermelha e brilhante das letras, cuja
leitura recende a uma mistura de respeito e admiração. Um carro
para a seu lado, pedem-lhe que saia de cima do betume, tipinho
cretino. Por sua vez, Faustino esgoela-se sobre o motorista,
terminando por cumprir-se. Chegando ao boteco, sorve três
talagadas seguidinhas e, antes mesmo de voltar à sua caixa de
engraxate, já deslizou sob a pele de Faustino I, Negro de Yaguana,
batendo no peito com a palma da mão. Naquela noite, o menino
não terá a possibilidade de se instalar novamente na varanda para
observar os vaivéns do imperador do atracadouro: sua avó está
chamando para jantar e se lavar. O mês de outubro trouxe de
volta as aulas e, grande novidade, lições para recitar, trêmulo diante
do professor. O garoto vai para a cama. Todavia, com outras
questões na cachola.

As mesmas que fazia o homem ao parar o carro para esticar


as pernas. Aproveitou para se dirigir a uma enorme ceiba que
percebera ao longe. A árvore tinha algo de majestoso. De perto,
parecia ainda mais impressionante, e exalava uma força que o
homem mal poderia explicar. Levantou a cabeça para apreciar os
ramos, ao mesmo tempo maciços e sensuais, que viviam uma
orgulhosa autonomia longe das raízes. O homem apalpou o largo
tronco quase com veneração. Teve vontade de abraçá-lo, mas seria
preciso bem mais que dois braços para consegui-lo. Esse contato
com a pele rugosa da ceiba lembrou-lhe cenas no mínimo
assombrosas. Quando de sua estada em vários países da Europa,
ficava sempre espantado em ver as pessoas se servirem de escadas
para colherem frutas. Como se temessem o corpo-a-corpo com a
árvore, o desafio que a planta lhes impunha. E então se alimentar
com a carne da terra não era algo que se devesse merecer? O

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homem sentou-se ao pé da árvore, encostou a cabeça ao tronco.
Diria-se que auscultava o curso da seiva, o sangue regalando vida
à árvore, a quem faltaria apenas o uso da palavra.

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V Essas vidas à deriva

O que ocorreu a Faustino quando deixou Buraco-Pardal?


Se, na condição de árvore, pouco viajo, os ventos, que tudo
percorrem, voltam para me contar o destino de cada pessoa.
Conheço todos os ventos, por estreitá-los à vontade entre meus
braços. Conheço os alíseos, os tramontanos, os ventos que afagam
a pele, os que anunciam ciclones, que inflam as velas, assim como
os que desarraigam as árvores – pois em qual história de amor
não se vêem crises de ciúmes? Os ventos, ora, esses aí sempre mal
se dobraram à nossa longa copulação com a terra. Porém, melhor
que respostas, deixem-me deitar questões à roda. Digam então,
senhores que decifram estranhos hieróglifos em livros de páginas
intermináveis. Senhores que tudo sabem ou creem tudo saber, mas
que nem mesmo sabem o que Cassagnol disse ao boi. Então digam,
senhoras que conhecem o mistério da gestação e sempre sabem
domar a vida após terem domado os homens. Então, sábios
senhoras-senhores, tese, hipótese, antítese, síntese. Expliquem isso
tudo ao garoto, que prossegue escarafunchando o toutiço.
Sem dúvida, o vasto chamado da esperança, do sonho que
se recusa a morrer, seguido em comitiva pelo riso onipresente do
mar, destas mesmas águas que carrearam os passos de todos esses
homens provindos de outras ribeiras em direção a Salbunda, onde
se sentiram, de imediato, em sua própria casa. Porque, quando se
aluviou nestas plagas do mundo, sempre se está em casa; em
qualquer canto em que se disponha os próprios sonhos, mesmo
quando não se é de terra alguma, sempre há o calor de um lar
abrindo seus modestos braços e se fechando por trás de nosso
humano desalento; a língua da vida é a mesma, e aí se encontram
homens e mulheres, os verdadeiros de verdade, aí se reconhecem,

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se abraçam, servem de muletas a um brother ou a uma sister;
pouco importa o modo como cada qual se protege da poeira e dos
espinhos da grande estrada, se o seu embate assemelha-se ao do
lambari fora d’água ou ao do relâmpago; pouco importa se ele se
contenta em imitar a libação ritual ou se entorna uma mirrada
gota de rum ou café aos invisíveis, ao invés das três de praxe;
amiúde, o olhar, o brilho dos olhos basta; e daí se começa a pensar
no sírio de sangue múltiplo, cujas derradeiras gotas passeiam às
margens do sonho, na babequense que já não tem nacionalidade
de tanto arrastar suas angústias de puta por todas as capitais do
planeta e a quem se gostaria de apertar contra o peito, como a
uma irmã caçula, para acalmá-la... Chega-se a pensar, então, que
toda essa gente é um todo único, como os ramos de um só e
mesmo cajueiro.

O olhar pouco acostumado de Faustino atravessou o


princípio de crepúsculo e recaiu sobre o labirinto de cogumelos
acachapados que feneciam a metro e meio do aluvião, macabra
mistura de êxodo e desilusão. As chapas enferrujadas dos tetos e
das paredes, sustentadas por ripas de madeira e grandes pedras
chatas, guinchavam ao mais ínfimo sopro do vento. Rentes,
meninos mulambentos brincavam no lamaçal. Cravando dentes
com força, outros rasgavam mangas ressequidas, sentados no oco
da carcaça de pneus ou em cima de um velho tronco de árvore,
trazido ali sabe-se lá por qual milagre-do-nome-santo-de-Deus,
esmagando agora uma montoeira de imundícies em
decomposição. Alguns homens rejuntavam as treliças dos barracos
com aparas de papelão e poliestireno, numa lerdeza que bem
mostrava sua pouca pressa em terminar: tagarelavam um bom
bocado antes de passarem adiante o objeto, prancha ou martelo,
em princípio necessário para o prosseguimento do trabalho.
Envelhecidas antes da hora, mulheres arrancavam descarnados
seios de sob batas esfarrapadas; ao mesmo tempo em que se
entregavam a tarefas diversas, amamentavam pirralhos que se
empoleiravam de viés em seus torsos. Com a bunda espalhada
sobre os restos fósseis de uma cadeira despalhada, uma delas

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espichava brutalmente a juba espessa de uma menina, agachada
de costas entre suas pernas. A garotinha miava como um gato
cujo rabo alguém teria pisado. “Cale a boca! – arrotou a megera –
Quem mandou rolar no chiqueiro, feito porca? Agora vai pagar
sua irresponsabilidade!” O pente afundou de novo nos cabelos,
embaraçou-se, debateu-se e saiu vencedor, com um tufo
entranhado nos dentes. Desta vez, a criança urra mesmo de dor.
“Vai calar essa boca ou prefere um tabefe?” Juntando ação e verbo,
a mulher carregou a mão nas costas da menina. Surdo ruído, que
não chamou a atenção de ninguém, exceto Faustino. Enquanto a
garota chorava, a sibila limpou a mão numa dobra do vestido,
apanhou um naco seco de pão e mandou goela abaixo, com a
cabeça inclinada para trás, num gesto teatral.
Seguindo na frente de Faustino, o antigo companheiro do
engenho de Yaguana pulava amarelinhas. Sua frágil silhueta
saltava, com extrema agilidade, de uma pedra a outra. Abertos
na horizontal, seus braços magros e compridos proporcionavam
o contrapeso necessário para que pudesse manter o equilíbrio
enquanto se deslocava. Tinha a destreza de um jogador de futebol,
e seus pés evitavam, como se nada fossem, as poças cheias de
monturos em adiantado estado de putrefação. Seu talento consistia
em avançar rápido, ao mesmo tempo em que saudava os
conhecidos com um aceno de cabeça. Nu feito minhoca, um guri
espreguiçou à soleira de uma porta, cujos batentes amparavam-
se numa viga meio desconjuntada. Seu tórax, bombado para fora,
deixava ver uma aflita magreza. Parecia que as costelas, forçando
um pouco mais, romperiam a pele. Seu sexo pendia como saca-
rolha entre coxas que mal chegavam à grossura do antebraço de
um adolescente bem alimentado. “Bom dia, tio!”, disse, com um
sorriso que iluminou feito relâmpago a tristeza de seu olhar. “Tudo
em cima, Janjão?”.
O fedor emanava do solo transformado em imenso brejo.
A cada salto, Faustino tinha a impressão de que a pedra ia afundar
sob o seu pé, mas, no último instante, ela sempre aguentava,
deixando na ponta de seu sapato uma baba de lodo ou bosta de
cachorro, ou ambos ao mesmo tempo. De tanto perambular seus

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olhos em todas as direções, Faustino quase aterrissou no lodaçal,
mas suas mãos, como por milagre, terminaram topando em algo
sólido. Ergueu os olhos e viu uma árvore vergada, crescida ali
sabe-se lá de que maneira. Olhou para o chão: cascas de frutas,
um barro já destituído de cor, minhocas de mais de vinte
centímetros rebulindo em total indiferença a qualquer presença
humana, ratazanas fuçando essas empadas dos deuses com seus
focinhos de fino trato... Sentiu seu estômago embrulhado como
meia velha: entretanto, teve o reflexo de se arrancar em tempo
àquela mórbida contemplação, antes que se pusesse a vomitar.

Os obstáculos a driblar, as voltas e contra-voltas para abrir


uma picada inexistente em meio àquelas construções anárquicas,
tornavam mais comprido do que parecia o caminho que lhes
faltava percorrer. Faustino interrompeu bruscamente sua marcha,
já não conseguia respirar. Tudo exalava podridão à sua volta. Trazia
a cabeça emparedada num halo de ranço. Fez uma careta e levou
as mãos às têmporas, como para proteger os tímpanos de um
ruído demasiado estridente. Vaguejou, equilibrado sobre uma
pedra plana. Mil gritos, rasgando o véu do crepúsculo nascente,
entupiam-lhe os ouvidos. Tomou a decisão de voltar atrás, sem
avisar o companheiro. Este deveria tê-lo prevenido, dizer-lhe como
seria. Não era por Deus possível que ali vivesse gente. Porque não
lhe havia dito nada? Prepará-lo de alguma maneira? Era isso, o
Brooklyn! Essa favela construída sobre brejos meio ressequidos.
Com que destino poderia esbarrar em semelhante lugar? Que vida
poderia oferecer a seus eventuais filhos?
Faustino chegou ao fim de um beco-sem-saída e se deu
conta de que já não sabia mais aonde ir. Teria que arrepiar
caminho? Dirigir-se às pessoas que passavam a seu lado,
enterrando os pés na lama, sem cuidado algum?... Como é que se
leva seres humanos a lá viverem? – perguntou-se. Acaso não
encontraram outro lugar onde plantar sua esperança? Estavam
assim tão encalacrados no poço? Em Buraco-Pardal, não se vivia
exatamente o paraíso todos os dias, mas os moradores do vilarejo
terminavam por darem um jeitinho, bem ou mal. Apesar dos

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diferendos quase seculares que envenenavam as relações de certas
famílias, davam-se as mãos. Querendo ou não, cresceram com as
mesmas chuvas, ao mesmo passo. O irmão deste se juntara com a
irmã ou a prima daquele. Certos pais passaram mais tempo juntos
lutando contra o oceano – o perigo tecendo as malhas da rede –
do que em companhia de suas próprias mulheres... Mas ele, que
faria se retornasse? O mar já não trazia nada em seu ventre, e
estava fora de cogitação passar a vida carpindo terra alheia... Que
vergonha seria voltar a Buraco-Pardal, agora que já se despedira
de todos! Como explicar a situação a Maria? Deu uma olhada em
volta de si, não conhecia ninguém nesse fim do mundo.

Seu companheiro irrompeu naquele momento: “Que susto


você me deu, Faustino. Tem que me seguir com o pé por cima de
minhas pegadas. Senão, está perdido... Pode nem parecer, mas
encontrar o caminho por aqui não é nada mole!” Quando
retomaram a marcha, a noite já começava a se estender sobre o
Brooklyn, tornando o avanço mais difícil, apenas balizado por
alguns lampiões acesos à ombreira dos barracos. Um tênue cheiro
de café veio recobrir o fedor ambiente. No percurso à frente, os
dois batentes de uma porta se chocaram, com precaução, contra
paredes oscilantes. No puxadinho em terra batida do trêmulo
barraco, uma mulher ajeitou os tições em meio a três pedras sobre
as quais repousava um bule, enquanto um garoto ajoelhado na
lama, com as mãos coladas ao chão e o toba apontado para o céu,
assoprava até quase perder o fôlego para ajudar a atiçar o fogo.
“Logo chegaremos”, anunciou o companheiro de Faustino.
Algumas dezenas de metros adiante, um homem até que
bem vestido, com os cabelos grisalhos e o ar de quem não vivia
nessa cloaca, recebeu a ambos com deferência. Com um sorriso
amável nos lábios, estendeu a mão aos dois parceiros. A porta
externa levava diretamente a um cubículo de três por dois em
que, se satisfizesse as condições de aluguel, Faustino deveria viver
com Maria. Nem sequer uma prateleira em que pudessem deixar
objetos pessoais, vasilhame, copos. Olhou o lugar, procurou em
vão o fogareiro em que sua mulher cozinharia, logo ela que gostava

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tanto de preparar comidinhas em fogo lento! Nu! Era isso ou nada.
As paredes – se assim se pudesse chamar àquelas esteiras grossas
de bambu, penduradas em chapas enferrujadas e barro seco –
poderiam despencar a qualquer momento, reparou. Bastaria dar
uma triscadinha, e pronto... Vozes de crianças ecoaram em seus
ouvidos, vindo do moquiço vizinho.
– Então, está bom? – perguntou o cavalheiro. O senhor
tem dinheiro suficiente para pagar o sinal?
– Vai servir – ouviu-se dizendo. Vai servir.
Era como se outra pessoa tivesse falado em seu lugar. Seu
desleixado anjo-da-guarda, quiçá.
– Bem – disse o homem, apressando-se em recolher o maço
de bilhetes –, passo de três em três meses para receber. É melhor
que esteja com o aluguel em mãos... (Agora o distinto já perdera
seu ar bonachão). Não gosto de maus pagadores, acrescentou,
ameaçador.
Ao lado de Faustino, seu companheiro sorria, feliz por
poder quebrar galho. “É um bom negócio, meu chapa. Pensei logo
em você, quando vi. E como acabou de se casar, disse a mim mesmo
que precisaria de um pouco de intimidade”, explicou com uma
piscadela ao pardalense... Ao cabo de alguns minutos, durante os
quais os dois homens se olharam como dois pinguins-de-geladeira,
sem nem mesmo um suspiro, propôs: “Vamos? Você volta amanhã
com suas coisas”. “Fico por aqui”, respondeu Faustino. “Mas onde
vai dormir?” “Hum, logo logo encontro uma esteira por aí”. “Como
quiser, meu chapa. Se precisar de algo, já sabe que pode contar
comigo... Na vida, um deve ajudar o outro, não é?” Disse essas
últimas palavras já à soleira, logo desaparecendo na noite
nascente. Faustino, por sua vez, não precisou ir muito longe: seu
vizinho, que acompanhara a cena do outro lado da parede, propôs
emprestar-lhe por algum tempo uma esteira e um lampião. Deixou
tudo no cubículo, saiu sem fechar a porta atrás de si: “Para quê?”
– disse a si mesmo.

Faustino caminhou mais de meia hora em meio ao zum-


zum da cidade; para sua grande surpresa, chegou à beira do cais.
A presença do mar, ainda que pouco visível, arrancou-o de seu

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torpor. Ignorava que o oceano chegasse até a capital, ninguém
nunca lhe disse que os porto-pintenses eram pescadores... Veio se
apoiar à balaustrada, por onde perambulavam casais de todas as
idades. Ali, com o rosto açoitado pelo vento de mar aberto, deixou
sua decepção ir se dissipando no ar. Diante dele, amarrados ao
cais, grandes transatlânticos brancos aguardavam sabe-se lá qual
casal em fuga, ou qual aventureiro procurado por todas as
mulheres do planeta para uma longa viagem além-mares.
Prosseguiu sua errância, o olhar ausente. Cruzou com mocinhas
rodando bolsas, sem responder ao convite bem pouco velado. Até
que encontrou, aos pés de Cristóvão Colombo, Tikita-Maluco, louco
manso, uma das figuras lendárias de Porto-Pinto, que duas ou
três vezes por semana passava nas casas de gente-bem recolhendo
o lixo, em troca de alguns centavos ou restos de comida que nem
mesmo os serviçais queriam, levando sempre um grande saco às
costas e mascando palavras que apenas ele mesmo podia
compreender. Tikita parecia mergulhado em um longo
conciliábulo com o genovês, rindo das piadas que lhe contava ou
das palhaçadas que fazia, ignorando regiamente tudo o que
acontecia à sua volta. “Esse cara deve ser louco”, pensou Faustino,
retomando o caminho da casa que doravante seria sua moradia.
Durante a semana seguinte, enquanto perguntava a si
mesmo, sem descanso, como agir para levar Maria a engolir aquela
dose, Faustino voltou dia e noite à borda do mar. Mais ainda que
dos grandes transatlânticos ancorados no cais por três ou cinco
dias, ele gostava desse lânguido vaivém de gente, atividade
incessante de formigas preguiçosas. Parecia que aí se encontravam
para nada fazer, apenas para alimentar a ilusão de se dedicar a
uma atividade, matando o tempo com piparotes de tagarelice e
gargalhadas, vez em quando sombreadas por um véu de
melancolia. Os pintores, cujas telas espalhadas aos pés do Grande
Navegador mal atraíam o olhar da freguesia, com frequência
tiravam uma pestana à sombra do flamboyant. As putas mais
pareciam querer ficar no lero-lero entre elas do que atrair a atenção
da gentarada masculina...
As docas tiveram o condão de atenuar seu agastamento.
Como se os eflúvios marinhos, esse odor tão especial do mar que

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ora se detesta, ora se ama, posto que é ranço, agreste, denso,
recendendo a peixe apodrecido, mas que também é habitado pelos
povos encontrados ao longo do percurso, odor repleto de chamadas
à amplidão do oceano aberto para além do horizonte,
condensando os mais belos sonhos e os mais terríveis medos dos
homens; como se o oceano tivesse a medida para dar solução a
seu problema: como enfrentar Maria? O mar ao menos lhe trouxe
a coragem necessária para fazê-lo. Enfrentar sua mulher estava
bem distante de ser uma sinecura. Por mais que se fizesse de
valentão, que sobrepujasse mais durões e mais fortes que ele, que
fizesse tremer céu e terra reunidos, Faustino, frente à pardalense
– e isso aprendera a duras penas –, deveria baixar a crista. Engolir
seu orgulho de macho.

Assim vai o homem, senhoras e senhores, como um galo


que trepa por sobre suas grandes esporas, mas deixa de se tomar
por pavão e bate bela plumagem tão logo desponta a dona galinha,
de bico armado. Assim vai o homem, desde o tempo em que essas
terras de Salbunda eram o paraíso descrito na Gênese. Até o dia
em que a maré, pela noite subindo, despejou tubarões vivos à beira-
mar. Que não tardaram a montar em suas próprias barbatanas
para devorar homens e mulheres, animais e vegetais. Quem ainda
se lembra? E as mentiras daqueles de lá, de todos aqueles de lá,
encobriram as vozes dessa gente daqui. E, nas noites de moquém,
as lendas daqui se embaraçaram com as de lá. Assim vai o homem,
senhoras e senhores. Amém!

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VI “Respeitem o vosmecê...”

“Respeitem o vosmecê...” Esse chamado tem o condão de


deixar o moleque fora de si. Sentidos alertas, orelhas erguidas.
Um gato acossando sua presa. Neste caso, o cinema da noitada.
Por essa boa causa, chegando à casa, dispara para se livrar das
tarefas escolares, sob o olhar severo de Ponte-Napoleão. Nos dias
de sobrecarga, despacha à maneira das missas do padre Komokyèl.
Pelo menos aquelas que não lhe parecem suficientemente bem
pagas pelo solicitante. “Respeitem o vosmecê...” O garoto mal
escuta a voz e já salta da cadeira, deixa tudo e qualquer um para
se precipitar à varanda – seu limite, depois de certa hora. Aquilo é
também o sinal de que a pêndula, cujo balé de agulhas ele mal
decifra na parede, já dançou o bastante; logo logo, pelo menos
para ele, será hora de ir para a cama. “Respeitem o vosmecê...”.
Lá fora, já quase não sobra nenhum dos atores da sessão
diurna. Leretour já saiu ventando há muito tempo, salvo se ainda
não esgotou os blocos de gelo, o dia inteiro protegidos do sol por
um toldo plástico. Sempre o último a chegar pela manhã e o
primeiro a se retirar, o homem desfruta de uma sólida reputação
de muxiba – repugna-lhe ceder gratuitamente o que seja a quem
for; ainda que ninguém pensasse pôr à prova seus dentes e
gengivas em cima de qualquer raspadinha, mesmo adoçada com
o melhor xarope, na aragem refrescante destas noitinhas de
novembro. Aprumado atrás de seu carrinho, não levantará
acampamento enquanto não tiver se livrado de suas barras
congeladas. Asefi, a vendedora de amendoins, bem mais generosa,
em particular com Faustino; Nerélia, reinando ao mesmo tempo
sobre auroras e crepúsculos; a vendedora de mangas, de cinco

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em cinco minutos borrifando água gelada em cima das frutas,
para conservar uma aparência de frescor; Merlet e seu filho Harris
– a quem Gary, tendo visto uma boa quantidade de filmes ingleses,
apelidou de Lorde Harris, em razão de sua fleugma; todos
descamparam para dar lugar a alguns vendedores de balas, doces
secos, cigarros... E, sobretudo, à senhora Olivarez.

Ex-concubina de um cubano que ela teria conhecido em


sua juventude, ao que consta – mas ninguém no bairro poderia
se gabar de tê-lo encontrado –, a senhora Olivarez instala-se em
seu trono todas as noites, com exceção dos domingos (“porque
não sou uma descrente como o senhor, narrador de merda”), atrás
de uma enorme panela de fritura, rodeada por sete lampiões. É
um mulherão daqueles, enfeitada com duas bolas de futebol no
lugar dos peitos. Suas nádegas, largas como as ancas de duas
jumentas emparelhadas, esparramam-se sobre um assento de ferro
especialmente concebido para acolhê-las, depois de terem
destroçado uma boa meia dúzia. Rumores afirmam que o
babequense inventor e corporizador da cadeira recortou com
maçarico uma peça maciça, diretamente do chassi de um
caminhão. No dia em que entregou o objeto, o mestre ferreiro
teria feito esta declaração: “Se a sua bunda conseguir desmantelar
isto aqui, a beira-mar é testemunha de que volto pra Babeque”.
Neste estágio das reminiscências do moleque, as nádegas
prosseguem perdendo batalha. Os barrotes da cadeira ainda
comprimem aqueles transbordamentos, tal como outrora faziam
as muralhas de uma cidade com o rebuliço dos habitantes.
A senhora Olivarez guarda a receita das vendas em um
avental amarrado à cintura, e a parte essencial fica encadeada
entre as duas coxas. É difícil imaginar um larápio levantando uma
dessas enormes pilastras guardiãs do tesouro, alcançando a
entreperna para fazê-la vomitar dinheiro, como uma lesma sua
baba. Os fregueses desfilam frente a seu estrado como se estivessem
em temporada de escassez, numa penca louca com mais de trinta
pessoas zumbindo em círculo, clamando à direita e à esquerda
para fazerem ouvir seu pedido. “Senhora Olivarez, as crianças
estão com fome, devem ir cedo pra cama, têm aula amanhã de

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manhã”. Sempre no controle do bom andamento de seus negócios,
ladeada por duas jovens ajudantes que dão conta de três quartos
do trabalho em seu lugar, a megera sempre traz umas chalaças
prontinhas para revender:
– Se a estas horas seus filhos ainda não comeram, é que
não têm a mãe que merecem.
– Vizinha, meu marido voltou cansado do trabalho, já não
pode mais esperar.
– Bastava que tivesse preparado a comida, ao invés de rodar
por aí se fazendo de mocinha... Bem que eu queria saber como é
que ele foi tão cego a ponto de amarrar a canoa com uma safada
feito você.
– Mãezinha, o seu filho não se aguenta mais, se você não
me servir agorinha, vou cair duro aqui na frente da sua barraca.
– Você aí, tá pensando que sou sua mulher? Puta é o que
não falta nestes tempos que correm: basta achar uma pra já não
morrer de fome. Quase de graça!
Tudo provoca gargalhadas e marolas em volta. Senhora
Olivarez daqui, Senhora Olivarez pra lá... De vez em quando, ela
reclama por um pouco mais de espaço para respirar, deixem o ar
livre, estou sufocando, não quero mais cheirar esse futum de
xoxotas mofadas e de culhões sem lavar que exala por aqui. Estão
de mal com água e sabão? Pra trás, satanás! Na realidade, ela
tenta assim proteger sua mercadoria, pois alguns, na bagunça
reinante – só para acalmar o estômago, claro –, não vacilam em
esticar a mãozinha até o tabuleiro e apanhar um naco de fruta-
pão ou uma almôndega; e, naturalmente, esquecem de mencioná-
lo no momento de pagar a conta. Abram alas, então! Corre por aí
que ela fez um pacto com o diabo a fim de atrair e fidelizar uma
tão farta freguesia; mais cedo ou mais tarde ela vai ter que pagar,
se há realmente justiça neste baixo mundo, pois até a feirante da
outra esquina teve que desmontar sua barraca, no frigir dos ovos.
Esse diz-que-diz não impede Ponte-Napoleão de enviar a
empregada buscar ali, vez ou outra, a comida do jantar, variando
um pouco do arroz-com-leite ou do eterno mingau-de-aveia.

“Respeitem o vosmecê”. Com os olhos esquadrinhando a


noite, o pescoço esticado por cima da mureta e o desejo ardente

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de transgredir as regras de Ponte-Napoleão, o menino fica à
espreita para ver de que lado vai surgir Faustino. O engraxate
demora a aparecer. O categórico comando vem vindo de longe,
aproxima-se pouco a pouco, mas numa lentidão que põe à dura
prova a paciência do gurizote. Nesse meio tempo, Branquinho
mandou passear um freguês que o acusava de mais sujar que
limpar seus sapatos. E, como já não se aguentava em pé, tirou
uma primeira pestana, numa posição no mínimo incômoda.
Enfeixada entre os braços, sua cabeça repousa na cadeira
destinada aos clientes, enquanto ele fica sentado logo abaixo, em
seu próprio assento de trabalho. Sentado não seria bem o termo,
pois o goró já o deixou com o traseiro no chão e o resto do corpo
de viés. Os roncos saem espedaçados de sua boca, ora galopando
feito cavalo louco, ora imitando apito de trem que chega à estação.
Um fiozinho de baba corre em cima de seu braço, fica a meio
caminho entre a cadeira e o chão, sem decidir se pinga ou não; tal
um barbante de ioiô, sobe e desce ao ritmo da respiração. De uma
mão distraída, livra-se dele entre dois tremeliques, até o instante
em que o filamento espumoso retoma seu movimento de pêndulo.
É o momento que Dessalines – azul, de tão retinto, o que lhe vale
o apelido de “Homem-África”, aliás “Homem”, ou ainda “África”
– escolhe para se aproximar com seus acólitos, na ponta dos pés,
à maneira dos personagens macabros dos desenhos animados.
Armados com sacos de papel previamente inflados, eles provocam
um estouro – bum! – junto aos ouvidos do engraxate e saltam de
banda, às gargalhadas. Um barulhão de acordar zumbis.
Branquinho, mais mamado que um sacristão, limita-se a levantar
a cabeça, balbuciar advertências e mergulhar de novo, ainda
assustado, em seu sono. Não é o suficiente para desassanhar o
Homem e sua camarilha; em derradeiro recurso, voltam à carga
enchendo uma lata com água tirada do meio-fio, logo derramada
sobre a cabeça do engraxate. Apenas o jorro d’água – ou a
imitação vocal da sirene da polícia, levando a crer que não tem lá
a consciência tranquila – consegue arrancar dele algum
sobressalto. Branquinho emerge de seu torpor, recolhe sua caixa
de trabalho – não tem forças para correr atrás da quadrilha, a
caninha encolheu suas pernas – e entra no pátio. Não sem antes

58
lhes dedicar alguns gentis cumprimentos que, na ramagem
feminina, visitam os mais recuados pontos da genealogia dos
comparsas, no fundo de várias gerações. Entenda-se que Ponte-
Napoleão não está na varanda, instalada em sua cadeira-de-
balanço, desfiando conversa com Orfília ou um passante. Do
contrário, ela o proibiria de atravessar a cancela:
– Vá dormir onde quiser, hoje à noite não entra em meu
quintal. Se, na minha presença, você despacha dessas insanidades
na frente do guri, deve ser ainda pior quando não estou por perto.
Logo eu que contava com todos vocês para darem bom exemplo...

“Respeitem o vosmecê!” O eco aproxima-se da mureta em


que Gary, pés suspensos no ar, está conversando fiado com Thibaut.
“Respeitem...” O vento carregou o resto. Ou talvez Faustino não
tenha terminado a sua frase. Tal lhe acontece, com frequência,
nas noites de grande pileque; limita-se a ganir o “respeitem...”
Como um édito do Honorável da República. Contudo, toma o
cuidado de não se tomar por este último. “Respeitem o vosmecê”.
O que pode significar? Por certo, é preciso reverenciar algo ou
alguém. E daí? O garotinho se confunde mais ainda pelo fato de o
vossa mercê não ser usado em salbundense; na escola, nas aulas
de gramática, não chegou a essas sutilezas linguísticas e sociais.
De onde Faustino teria trazido essa expressão? Nos dias em que
está com o espírito à rédea e dispõe de todas as suas faculdades
mentais – quando, por exemplo, no caminho da escola, dá a mão
paternalmente ao molecote, contando brejeiras histórias –, lembra-
se ele de que esse decreto precede seus vacilantes passos ao longo
dos molhes?
A brisa marinha conduz sua perambulação no rumo da
varanda. “Eu vi você...” No trajeto até a chegada, seu repertório
se enriqueceu com uma nova fanfarronice. A quem terá visto,
nessa noite iluminada por uma lua tímida e dois pálidos postes de
luz, os únicos que o olhar do menino abarca desde seu posto de
observação? “Eu vi você...” – fazendo sabe-se lá o quê –, estribilho
pronunciado com voz pastosa. O barulho de seus passos arrastados
pelo chão. “Eu vi você”, dito em refrão alternado com “respeite o
vosmecê, moleque insolente”. Quando enfim desponta, sobrevém

59
o tombo derradeiro sobre o 304, afugentando os cães errantes.
Apenas eles. Bate com toda força sobre o capô e fica estatelado
por ali, braços abertos em cruz. Como um cristo deposto. Já sem
força para se erguer. Ao cabo de alguns segundos, ouve-se seu
ronco.
O sono se estica por não mais que dois ou três minutos.
Um nadinha o desperta: o ronco de um carro, o latido de um
cachorro, uma gargalhada mais desamarrada... ou talvez seus
pesadelos. Nesta noite de novembro, é o farfalhar do vento fresco
nas árvores. “Respeitem o vosmecê, malcriados”, vocifera aos
galhos, pondo-se de pé. Cruza a rua, com passos de marinheiro,
rumo à barraquinha da senhora Olivarez. Seu estômago reclama.
Sua calça vai caindo, ele a levanta a cada passo. A travessia dura
uma eternidade. Consciente de que não deve ir rápido demais,
nunca dá dois passos ao mesmo tempo. Despeja pragas contra
um rapaz que fica olhando com insistência demais. Levantar as
calças exige ainda mais esforço. Como uma de suas mãos está
ocupada por um objeto que o garotinho não consegue identificar
na penumbra, todas as vezes vê-se obrigado a prendê-lo com o
sovaco, para então puxar as calças acima do umbigo. Ao final,
larga o objeto no chão. Nessa posição, feito um cego, escarafuncha
no rego que corre pelo meio-fio, encontrando um pedaço de
barbante com que amarrar a calça.
Após um incalculável número de escalas, chega diante do
tabuleiro da dona Olivarez e é imediatamente despachado às
alfafas; mas a quituteira, depois de muito salamaleque, termina
por lhe servir um prato de fritura. O yaguanês come
religiosamente, aprumado, as pernas bem espaçadas. Durante a
refeição, fica mudo como uma tumba. Por medo da imponente
matrona ou por cumprir um ritual sagrado? Mastiga
aplicadamente cada pedaço, depois descampa sem pagar: é uma
das poucas pessoas que têm o privilégio de pendurar a conta com
dona Olivarez, que lhe entrega a fatura – inchada, no dizer das
comadres – ao fim da quinzena. Ele se dirige diretinho ao centro
do cruzamento, ao exato ponto em que as quatro ruas se
encontram, e urra, com a língua ainda espessa, batendo sua culpa:

60
“Eu, Faustino I, negro de Yaguana, eu digo: respeitem o vosmecê!”
Ri sozinho, continua o caminho rumo ao Calvário, de onde toma
uma rua paralela e desaparece no horizonte. O garotinho não
verá seu retorno: já é hora de ir para a cama. Talvez o escute uma
última vez, antes de adormecer, bronqueando o mundo inteiro, a
lua, as estrelas. Ou ainda empurrando a cancela, no meio da noite,
para se juntar a Branquinho, Merlet, por vezes Tikita. Na manhã
seguinte, quando sair de casa, Faustino correrá até ele, com uma
olhadela verá se os sapatos do menino precisam de uma boa
escovada, e então lhe dará a mão, orgulhoso como um pavão.
Sem a menor olhadela para o restante dos lacaios.

E eis aqui o garotinho dormindo a anos-luz das primeiras


vidas de Faustino, adolescente de sangue ardente, ajudante de
seu pai na lavoura das terras, marinheiro pescador ignorando
ainda que se tornará Faustino I, e que ambos os destinos se
cruzarão às margens do país-tempo da infância, nesse velho bairro
de Porto-Pinto, cujo coração bate junto aos molhes e ao verdolengo
mar. O menino não saberia dizer o exato momento da chegada do
engraxate. Sua única certeza é a de que ele esteve por ali desde
sempre. Desde o início. Desde a aurora dos tempos. Como se o sol
de sua própria existência tivesse sido germinado, encubado e então
alimentado pelo sol do lustrador de sapatos. Pelo sol desse homem
surpreendido e depois ceifado pelo destino que dele fará um
imperador de opereta. Até o fim, o menino desconhecerá o porquê;
mas ajudemo-lo a inventar o como. Por Faustino. Por ele mesmo.
Sísifo de alta linhagem. Para tentar emendar as extremidades do
tempo.

61
Segunda
Fase
“Talvez me digas: estás seguro de que essa lenda é a
autêntica? Que importa o que venha a ser a realidade fora de
mim, se me ajuda a viver, a sentir que sou e o que sou?”

Charles Baudelaire
I Primum amare,
deinde philosophare

De volta a Porto-Pinto, o homem se permitiu passear pela


beira-mar, onde em vão procurou pela imponente silhueta de
Cristóvão Colombo. Teve assim como um choque. Que fizeram do
navegador? Tinha vontade de parar as pessoas para lhes perguntar
o que se passara com Cristóvão Colombo, o senhor já sabe, aquele
que... Sei, sim, mas pouco me importa. E as pessoas seguiam seus
caminhos, indiferentes a suas perguntas. Colombo, pelo menos,
poderia lhe dar informações sobre Faustino. Com todo o tempo
em que estivera velando pelo destino dos habitantes da capital
salbundense! Ademais, estava muito bem situado ali, à entrada
do porto, para captar as fofocas da brisa, do mar, dos transeuntes.
Ainda por cima, tinha o hábito de tudo registrar: o menor
movimento de maré, o mais ínfimo rumor das asas de um
mosquito... O homem estava quase por crer que o tempo se
encarniçava sobre ele, quando divisou, em um cantinho escondido
sob o molhe, uma massa em forma de uma pessoa deitada de
costas. Pulou o alambrado, aproximou-se do marujo – sim, era
ele –, cujo corpo estava coberto de lodo e já bem corroído pelo sal
marinho. Ficou ali pasmado, com os olhos cravados no navegante,
apartado do resto do mundo.

Eu, que já possuí tantas mulheres, que até mesmo uma


rainha cavalguei, que outras tantas deixei pelos portos de Lisboa,
de Gênova, de Barcelona, de Cuba, d’A Espanhola, de São Salvador,
deixo de lado as demais, posso atestar que o senhor Faustino não
sabia como lidar com o belo sexo. Ei-lo então vindo aqui pela
estrada que leva de Buraco-Pardal a Porto-Pinto. Encabulado como

67
uma adúltera no confessionário, tenta tudo explicar a Maria: a
catinga do lugar, as pilhas de imundícies em que ratos brincavam
de esconde-esconde, os barracos se sustentando pelos cotovelos
para não ruírem, a desesperança que se lia mesmo nos olhos das
crianças... Entretanto, faltavam-lhe palavras para dizer desse beco
sem saída da derrocada humana. Talvez não as houvesse. Ao
princípio, Maria supôs que ele estivesse exagerando. Que a estivesse
preparando para o que lhes aguardava, dissimulando a vergonha
por não poder oferecer melhor. Orgulho macho. Afagou seus
cabelos e o apaziguou, com outras palavras, mais fáceis de
encontrar: “Não se preocupe, Fausto: a vida é como uma escada...
É preciso subir degrau após outro. Nunca fui mulher exigente,
você bem sabe. Não sou daquelas que querem se encher de
presentes, assim que um homem trisca de leve em suas coxas.
Vamos conseguir, você vai ver só.” Faustino acolheu as palavras
de Maria com apreço e alívio. Porém, quando ela, após patinhar
naquele lamaçal de miasmas, descobriu o quartinho – rematado,
por certo, com um colchão de molas comprado no cais do porto,
uma mesinha, duas cadeiras e uma lamparina a querosene que
iluminava o cubículo com uma claridade pálida –, foi tomada por
fria cólera: já não piou palavra alguma pelo resto do dia.
Como imaginar que encontraria tanto soçobro em cidade
assim tão grande? Estava a mil léguas de pensar que daqueles
pagos a miséria fizera sua terra de predileção, que a cada passo
seria possível somar os náufragos da vida... Logo ela, saída de seu
vilarejo natal e suas choupanas de pau-a-pique, sapé e barro seco,
com homens partindo o costado dia e noite nos raros campos
cultiváveis, propriedade de um porto-pintense que possuía
igualmente a mais bela residência do lugar; com aqueles
marinheiros de rosto sulcado pela vã espera em alto mar, a cada
dia retornando com mais brisa em seus samburás; suas mulheres
vendendo babugens e espicaçando a esperança no vilarejo vizinho;
e aquele tédio mortal, tão logo esfriado o banzé da semana... Para
Maria, saindo de Buraco-Pardal, em resumo, tudo seria
necessariamente melhor. Bastaria empurrar adiante o burrico.
Longe do mar, essa madrasta de ventre estéril. A única dificuldade

68
seria a escolha. Caso contrário, para que deixar o povoado? Por
que razão arriscar-se a sofrer hostilidades em ribeiras
desconhecidas? A capital, com que tanto sonhara a partir do relato
de alguns visitantes, camuflaria maravilhas, tão somente: letreiros
luminosos emoldurando as bem sortidas prateleiras das lojas de
miudezas; lampadários bordando ruas inteiras, rios de luzes, como
se diz dos diamantes; chafarizes musicais; mansões magníficas;
mil e uma atividades preenchendo a existência. E se devessem
pagar aluguel para viver em algum lugar -– prática que a esposa
de Faustino só compreendia pela metade, posto que nada frequente
em Buraco-Pardal, onde cada qual dispunha de seu próprio teto –
, seria melhor escolher uma casa confortável. Maria não era
exigente: um pequeno quarto-e-sala bastaria. Um guarda-roupa
em madeira lixada, com espelho, no quarto; um modesto altar,
em torno do qual ela espalharia ícones de seus santos protetores e
velas multicoloridas; uma saleta alegre para receber convidados;
com água proveniente da torneira, já não seriam obrigados a
armazená-la num canto da cozinha, como na aldeia... Uma hora
e meia de viagem. E suas ilusões se desfizeram em fumaça.
Deixando-a com um humor do cão. Suas birras de menina, que a
faziam tão bela. Tão desejável.

A primeira experiência com a atitude distante por parte de


sua esposa, Faustino vivera como o desabamento súbito do
relâmpago sobre uma árvore, sem que manifestasse o menor
prenúncio de tormenta. De qualquer maneira, um fenômeno cuja
irrupção deixa você petrificado. Assim ocorreu com Faustino,
acostumado à obediência noves-fora-zero dos moleques e
adolescentes de Buraco-Pardal. Acontecera certa noite, próximo
à duna onde costumavam se encontrar, em busca de ar fresco e
sobretudo de intimidade. Premido por esse insaciável desejo de
possuí-la, sempre ameaçando estourar suas braguilhas, Faustino
quis partir diretinho ao grão, sem preliminares. Passar às coisas
sérias, como dizia. Sem escala alguma para essas mentiras
delicadas que alimentam uma história de amor. A bem dizer, sua
impaciência em nada desagradava à Maria, que raras vezes

69
rezingava por tal gênero de iniciativa. Na maior parte do tempo,
mal se saudavam e já estavam surfando, em perfeito acorde, sobre
as mais altas vagas do amor. Bem protegidos pelo anoitecer e pela
ressaca, que vinha encobrir o clamor de seus embates. Entretanto,
naquela noite, o humor da pardalense não estava lá para essas
coisas. “Já tem uma data que a gente se encontra, a vila inteira
sabe de cor nossas juras, e você nem trisca no essencial da
questão.” Faustino: “Temos tempo, meu bem; falamos disso
depois.” Maria: “Agora mesmo, ou nada feito.” Seguiu-se uma
áspera discussão, duas personalidades enfrentando-se sem
quartel, uma buscando dobrar a outra. Ele desejava primeiro fazer
amor. Ela, falar do futuro, fundar projetos. E não cedia. O questa
minestra, o questa finestra, como dizem os italianos.
Completamente exasperada, acabou por se entrincheirar em um
mutismo cheio de orgulho, que nada mais era do que uma diferente
forma de combate.
Esse enfrentamento surdo, transformando Maria numa
espécie de estrela inacessível, teve o efeito de excitar a libido de
Faustino. Por ela sentiu uma dor intensa no ponto nodal de seu
baixo ventre. De bom grado imaginou possuí-la contra a vontade.
Com raiva. Ela se debatendo embaixo de seus arranques e de seus
violentos volteios com os quadris. Essa possibilidade acabou por
cegá-lo. Juntando ação à ideia, atirou-se sobre sua prometida,
atapetou-a contra o areal, com uma mão imobilizou seus braços
acima da cabeça, enquanto a outra procurava arrancar a calcinha.
No agastamento da situação, Maria logo compreendeu que deveria
pôr freios a tal tentativa. O homem habitua-se rápido a maus
costumes; daqui a pouco, ele a tomaria por tamborim, pensando
que poderia descer o braço sempre que lhe viessem ganas. A moça
volteou como uma leoa, conseguiu livrar uma das mãos, juntou
um punhado de areia e desfechou-lhe à cara. “Meus olhos! Meus
olhos!”, gemeu Faustino.
Ela levantou-se, fulminante, com os olhos injetados de
sangue. Nunca aceitaria apanhar de um homem. Murros e
bofetões, por um sim, por um não, vê? “Juro que o primeiro tipinho
que se atrevesse a levantar a mão contra mim teria assinado sua

70
sentença de morte. Derramaria água fervente no ouvido dele,
enquanto estivesse dormindo”. Ela voltou para casa sem olhar
para trás, e já não quis revê-lo. A punição durou todo um longo
mês, até que ela deu de cara com um Faustino pálido, taciturno,
minguando em pé, feito árvore desarraigada. “Aprendeu a lição”,
Maria comentou com uma de suas amigas. Procurou-o na praia,
onde ele a esperava todas as noites, e entregou-se com ardor e
ousadia.

Daquela noite se lembraria Faustino enquanto seus olhos


se abrissem ao sol. Desde então, quando Maria se punha fula, ele
caía logo na moita. Ficava por ali até que se extinguisse o ciclone
que nela ingurgitava. Seja como for, neste caso preciso, ele não
dispunha de qualquer outro argumento. Como retrucar? Ela tinha
toda razão: Brooklyn não era um lugar em que se pudesse viver.
Que fariam se um filho chegasse de surpresa? Desajeitadamente,
o jovem tentou deitar curativo à decepção de sua esposa, explicou
que mais valia dessa forma... Não podemos gastar de uma só vez
o pouco dinheiro que temos, Mamá. Por agora, nenhum trampo
despontando no horizonte. Formigas jamais morrem de fome...
Ela continuava embirrada. Faustino preparava sozinho seu café
da manhã, lançava um bom dia que Maria ignorava, então
ganhava a rua para arpoar a vida. Assobiando. História de dar o
troco à esposa, e também por não ser de seu feitio baixar os braços.
À noite, ao retornar para casa, trazia frituras compradas na beira
do caminho. A pardalense aceitava encasmurrada, comia sem
apetite e logo em seguida se deitava, dando-lhe gelidamente as
costas. Mesmo que tivesse retornado jururu, Faustino sentava-se
ao pé da cama e inventava promessas de emprego que não tardarão
a dar certo, eu juro, Mamá, daqui a pouco poderemos ir embora
daqui. Ela continuava com taramela na boca. Bem sabia serem
mentiras de Faustino, capaz de armar qualquer embuste para que
ela não levasse a cabo sua ameaça de regressar a Buraco-Pardal.
Noites inteiras tentando atar diálogo com uma carpa. Faustino

71
estava esgotado, mas da caça não afrouxou suas presas: terminaria
por convencê-la.

Não foi menor que sete dias o tempo necessário para sua
esposa se recuperar e superar o desencanto, como uma verdadeira
nativa do país salbundense, terra em que as mulheres são a pedra
angular das famílias. Ao anoitecer do sétimo dia, quando retornou
ao Brooklyn, Faustino sentiu, até mesmo na artéria principal que
cortava a favela em duas, o forte perfume da mariscada de lambis
refogados. Seu prato predileto. Deu com Maria acocorada junto
ao fogareiro, remexendo a comida e temperando com amor.
Abraçou-a por trás, beijou-lhe o pescoço. A moça espavoriu-se:
“Que susto você me deu, seu bobinho! Vá se lavar.” Nem o
rechaçara com aquele ar de potranca assustada que afetava na
hora do gelo. Ele pegou o balde d’água, a caneca, a toalha
arrumada por Maria sobre a cama, e foi para trás do barraco.
“Você esqueceu o sabão, tome. Agache, vou esfregar suas costas”.
Maria o contemplou comendo e apreciando seu prato com
trejeitos de conhecedor. Voltaram à sua memória os conselhos da
matrona, no dia das bodas: “Na essência, o homem faz parte de
uma raça de gulosos. É preciso lhe preparar bons pratos bem
picantes”. Ao ficar só, por dias inteiros, Maria teve tempo para
refletir. Podia, por acaso, duvidar da boa fé de Faustino? Além do
mais, não se casara pelo resto da vida? Isso era o que importava.
Ainda por cima, igualmente ele parecia sofrer com a situação.
Lutariam ambos, unidos deixariam essa ratoeira... Mais tarde,
juntou-se a ele na cama, nua como no dia do nascimento, e selou
pela noite inteira a reconciliação com seu homem. Na manhã
seguinte, sua vizinha lançou-lhe olhares e sorrisos de cumplicidade.

72
II Leopardos de Bengala

Nesta noite de janeiro, a efervescência lateja intensa nas


antigas docas: o time de futebol do bairro enfrenta a equipe de
Copa, um subúrbio elegante onde a burguesia macaqueia – com
parco êxito, por sinal – tudo o que está na moda às margens do
rio Sena: varandas e nomes de cafés; guarda-roupa; o jeito de
falar um francês de antanho, como vertido dos lábios de lacaios
do Rei-Sol, com o ar precavido de alguém que tivesse em mãos
uma joia de valor inestimável, Oh, minha cara, creia apenas que,
na semana passada, meu esposo e eu fomos convidados à ceia na
residência dos Beaubrun; e até os lustres em cópias falsas que
dominam o teto das grandes salas de estar, cujos ornatos
contrastam brutalmente com o mau gosto de uma arquitetura
carregada de grosseiro bolor norte-americano... O garotinho não
saberia perceber tal micagem nas vezes em que toda a família por
ali passava a bordo do Peugeot 304 ainda em estado de uso,
conduzido com grande pompa pelo diretor, com destino às
cumeeiras que cingem Porto-Pinto com sua calvície austera, lá
onde a temperatura, durante todo o ano, mostra-se muito mais
clemente do que no centro da capital, um pouco como em certas
cidades bem ao norte de Salbunda, ao término da primavera, fato
que o menino só constataria muito mais tarde. Ao inverso, o guri
misturava suas exclamações com as demais, ficava extasiado com
o mais ínfimo jorro d’água nas fontes, adorava quando aí paravam
para tomar sorvete de creme e admirar as grandes casas cercadas
de flores.
Também floridas estavam as ruas à beira-mar, nessa noite
de jogo. Enfeitadas com as cores dos “Tigres de Bengala”. Flâmulas

73
entrecruzadas pela haste ostentam-se à meia altura dos postes de
luz, e até mesmo nos carrinhos de ambulantes. Uma gigantesca
auriflama cobre dois terços da amurada da varanda de Dona
Condor, uma outra irmã mais velha de Ponte-Napoleão – a quem
o pequeno garoto prefere chamar pelo nome, Iaiá Vênus –, cuja
casa, nos dias de partidas importantes, torna-se um anexo do
quartel general do time. As cercanias do cais quase retomaram
aquela animação dos dias de festa: o aniversário da assunção do
Honorável ao leme da nação; o natal, que ao molecote não oferece
prazer transcendente algum, exceto a folga das aulas, já que
Faustino parte para junto de sua família; o carnaval; a procissão
do Domingo de Ramos...
Como dispõe de três dias de trégua – graças ao feriado do
dia seguinte, uma sexta-feira –, o garoto remeteu às calendas
gregas sua tarefa de redação. Assim que chegou da escola, tomou
assento junto ao volante do 304 bege para observar o vaivém de
formiga louca do bairro, tudo sob o olhar complacente dos chacais
da delegacia, discretamente fanáticos, também eles, pelo time local,
ainda que dispostos, em caso de vitória, a reprimir qualquer excesso
de júbilo que pudesse desaguar em sabe Deus que espécie de
manifestação ilícita. Secundado por Jão-Caranguejo – apelido que
lhe deram por andar de viés –, o Homem-África formou, com o
reforço de gestos e de contas mal cerzidas sobre o preço dos
ingressos, um grupo de uns quinze sôfregos para irem ao estádio;
Branquinho, vermelho como se tivesse sido picado por um
regimento inteiro de vespas, levanta-se de quinze em quinze
minutos e se aproxima da bica para derramar sobre seu porre
uma bela panelada d’água; peludo como um gorila e com uma
pança pronta para explodir, Pancho buscou refúgio em uma
cadeira de balanço, aí se deixando abanar por Orfília; precedido
por seu umbigo, Lorde Harris veio assessorar Iaiá Vênus, que lhe
pede guardar seus escarros para a rua, meu quintal ainda não é o
sanatório; a voz rouca de Thibaut, chegando antes do pôr-do-sol

74
para nada perder da tagarelice, desfia um rosário de piadas
escabrosas...

“Respeite o vosmecê, pirralho!” Faustino começou a beber


ainda no início da tarde. Vai cambalear até quase emborcar se os
“Tigres de Bengala” voltarem com cara de velório, após uma
qualquer ensacada humilhante; ou também se o bairro inteiro
cair na maior algazarra, um alvoroço do cão, em caso de vitória.
Tanto num caso como no outro, lucidez não lhe convém. Nas
noites de reveses, toda a gente lhe arreganha os dentes, como se
fosse o culpado pela derrota desses abrutalhados. Ele gosta dos
“Tigres”, claro; é até mesmo um de seus melhores torcedores,
sabendo urrar quando preciso; mas para tudo há limites. Se esses
imbecis são incapazes de enterrar uma bola entre duas traves tão
afastadas uma da outra, que culpa tem ele? Além de tudo, quando
ganham, os jogadores roubam-lhe os holofotes. Perseguidos por
inflamados fãs incondicionais, invadem o quintal para sorver o
caldo especialmente preparado por Dona Condor – em parte com
dinheiro do padeiro Marcel. Nas labaredas do acontecimento,
torcedores terminam por danificar alguns utensílios de trabalho,
pisoteados entre arroubos de mulher histérica. Alguns sem-
vergonha chegam a passar a noite no quintal – na realidade,
compartilhado por Ponte-Napoleão com sua irmã Vênus – para
curtir o pileque. Que prazer é possível tirar da companhia desses
selvagens?
Faustino está com a cabeça apoiada em sua caixa de
trabalho; finge dormir, ignorando a animação em volta. Thibaut
fala mais do que o homem das cobras, as vendedoras de salgados
cacarejam à língua solta; o cheiro do cozido de Iaiá Vênus
destronou o aroma do café de Nerélia, que está terminando de
recolher suas tralhas; Leretour, por seu lado, nunca participa
desses festejos e encerrou sua jornada há um lustro, zarpando em
seguida... Súbito, como propulsionado por molas, Faustino põe-
se de pé. Leva aos lábios indicador e polegar, puxa um assobio
prolongado. Algo como um sinal de vitória, arrancando não mais

75
que um sorriso dos que estão em volta, pendurados em seus
radinhos para acompanhar o andamento da partida.
– De ferro! Minhas calças são de ferro!
Esse novo estribilho não faz ninguém rir, tão absorta está
a gente com a retransmissão do jogo. Após dois passos
cambaleantes, Faustino arrota a plenos pulmões:
– Viva os Leopardos!
– Que é isso, Faustino? – retruca Ponte-Napoleão, para
quem essas feras exalam nenhuma santidade –. Aqui temos tigres,
não leopardos.
– A meu ver, titia – é assim que trata à Ponte-Napoleão –,
uma fera é uma fera...
– ... Mas nem todas as feras se equivalem – indigna-se Ponte-
Napoleão, num tom que não admite réplicas.
Mesmo bêbado, Faustino reconhece sua autoridade. Tenta
acalmar o jogo:
– De qualquer maneira, titia, hoje à noite vamos pisotear
esses caras, esmigalhar os culhões.
– Sim, já sei, mas você não precisa ficar soltando dessas
obscenidades na frente do menino.
– Já já vão ver se nós – dá pancadas no peito –, nós aqui
das docas, vestimos calças só porque o pano é bonito!
Puxa mais duas assoviadas, ri sozinho. Nesse fanfarrão,
custa ao garoto reconhecer o homem que, tanto na ida quanto na
volta da escola, vive repassando lições de moral, informa-se sobre
as aulas do dia, protege o pequeno contra o perigo dos carros. Dia
e noite! Faustino avança, capengando, rumo ao grupo de cabeças
que, feito uma imagem de conspiração, reúnem-se para escutar o
radialista. Ouve-se então um barulho ensurdecedor, que ele provoca
ao bater com toda sua força no capô do 304. E pensar que, lúcido,
proíbe a qualquer um de se aproximar do velho carro. Exceto o
molecote, claro... O estrondo faz o grupelho saltar assustado. Dessa
vez, foi demais. Jeová pede a Faustino que pare de palhaçada,
você não está deixando a gente ouvir o jogo. Parece que só esperava
por isso – um dos fanáticos enfim lhe presta atenção –, e logo
lança uma carrada de insultos contra o importuno; é dono da

76
própria boca; com exceção do Honorável, ninguém neste país pode
me proibir de falar. E já disse: ninguém.
– Papo-aranha, esse seu, Faustino... Você não ia dizer nada
disso se Diabo-Baká estivesse por aqui. Posso refrescar sua
memória, se quiser. Lembra-se – disse Jeová – de quando agarrou
você pelos fundilhos e fez você andar na ponta dos pés, como um
bailarino? O balé só terminou no xilindró. Lembrou agora? Era
só um frangote o tal do galo!

Faustino não gosta que lhe recordem esse episódio. Naquele


dia, com certeza estava bem mais mamado que de costume. O
mês de julho vinha chegando ao fim. Desde cedo e até o meio da
tarde, pelas docas ecoavam suas bravatas. Caminhava aos trancos,
fazendo uma zorra de todos os demônios. Recolhido no 304,
lutando encarniçado contra a alavanca do câmbio, o vidro da
janela e a mola em saca-rolhas do banco, o garotinho observava
Faustino e suas fanfarronices, que se protegia de uma queda
iminente em meio a um bamboleio de braços e pernas. Nunca o
vira em tal estado. Seus impropérios ressoavam e preenchiam o
ar, sobretudo porque a beira-mar estava mergulhada numa letargia
pouco usual. A calma. Como quando se adentra um cemitério e
se sente o silêncio vindo ao encontro. Proibindo qualquer palavra.
Qualquer gesto. A calma de um bairro acostumado ao movimento,
à atividade contínua, à tagarelagem das feirantes, ao vozerio grave
dos homens, pleno de humor e repleto de sentidos que o garoto,
desesperadamente, sempre tentava decifrar. Naquele dia, a calma.
E o silêncio. Das casas que não ousavam levantar a voz. Do vento
marinho, ausente. Das artérias exauridas. Em um inextricável
acesso de cólera, Ponte-Napoleão viera arrancar seu neto do
Peugeot. A calma. E então... Faustino, o profanador. Pela fresta
entreaberta na janela, alguns tentaram avisar. Por acaso não tinha
visto os emblemas hasteados nos muros, os cartazes colados nas
portas, a rua varrida, o Chacal-de-Óculos desfilando ao longo do
cais, luzindo seu uniforme tinindo de novo? Por que brincar com
fogo? Por que não tinha sabiamente voltado para casa, como todo
mundo, deixando o asfalto ao furor do sol, ao rumor tímido dos

77
ventos e à passagem-relâmpago de raros pedestres? Por que ficava
dando voltas e mais voltas, alma penada no meio do cruzamento,
aos gritos de “Eu, Faustino I”? Findava-se a tarde quando Diabo-
Baká chegou ao volante de um carro sem placas, lançado a toda
velocidade, e o arrastou direto ao xadrez. Não se tornou a ver o
yaguanês durante três dias. Apesar da intervenção conjunta de
Dona Condor e do padeiro em face ao prefeito. Ele saiu daquela
com um tosco curativo na testa, o olho esquerdo num estado
lamentável, queixando-se de dores nas costelas. Ponte-Napoleão
limpou os ferimentos com uma solução de permanganato e aplicou
uma compressa de laranjas amargas queimadas. Proibido beber,
caso contrário você nem sonhe em pisar no meu quintal.
Faustino endoidece de fúria a cada vez que alguém
relembra o acontecido. Mesmo quando o tafiá confunde seus
passos. Como nesta noite de semifinal. Ameaça dar um carreirão
em Jeová, mas interrompe a corrida no meio do caminho, sem
dúvida por medo de cair. No ar fresco da noite, amaldiçoa: “Vão à
merda, você e seu Diabo-Baká. À merda, e à merda de novo!”
Seus passos o arrastam até a barraca de Dona Olivarez, que
contratou uma terceira colaboradora para a circunstância. Em
caso de tristeza ou de deleite, a matrona terá sua serventia: as
gentes vão precisar forrar o estômago para impedir seus roncos.

Nesse meio tempo, o garoto vai acompanhando a partida


com ansiedade, ouvidos atentos ao rádio-armário – o mesmo que
lhe dera o maior de todos os sustos de sua infância. (Devia ter dois
ou três anos, não mais que quatro, seguro. Como era possível que
ainda estivesse acordado àquela hora? Subiu trepando até chegar
ao painel, girou o botão... “Day o! Daay o!”, a voz de Harry
Belafonte esguichou no meio da noite, despertando a casa inteira.)
Entretanto, suas razões para a escuta assídua dos jogos são bem
distintas das dos outros: eles torcem pela vitória dos Tigres; ele,
pela derrota. Quando o time perde, Dona Condor se recusa a
alimentar esses inúteis, esses tigres de araque, para não dizer de
pura merda. “Vênus, não diga indecências na frente do menino,
sabe muito bem que detesto isso”, intervém Ponte-Napoleão. “Tem

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razão, toda razão, mas esses trastes me irritam, pagos assim para
fazerem bulhufas. O primeiro tem a coragem de dizer que viu um
caixão de defunto fechando a entrada do gol, e por isso não pôde
marcar. Outro jura ter topado com três goleiros à frente da rede.
Uma ova! Devem ter visto mesmo é o zumbi da própria mãe ou da
avó”. Em tais ocasiões, a irmã de Ponte-Napoleão sobe pelas paredes.
Solta cobras e lagartos, fica vulgar, proíbe que os jogadores se
aproximem do fogão em que o cozido está sendo lentamente
preparado num caldeirão gigante. “Saia da minha frente, imbecil!”,
vocifera ainda ao jogador culpado pelo resultado, que deve então
bater em retirada, acabrunhado. Pela inteira extensão do dia
seguinte, na pesca dos melhores bocados, o garoto poderá saborear
o sopão da Iaiá Vênus, ficando Nerélia responsável pela venda da
sobra aos passantes, fazendo um pouco de sombra a Dona
Olivarez. Contudo, por seu caráter fortuito, essa concorrência é
tolerada sem queixumes. De qualquer modo, no bairro, quem
ousaria enfrentar a madrinha dos “Tigres de Bengala”, cujo filho
único transuda linfa e sangue defendendo as cores do time, e cujas
três filhas moram no exterior? Não num lugar qualquer, ainda
por cima. Mas em Gogmagog, onde, segundo dizem, basta se
agachar para colher merréis e tostões.
O garoto tem um segundo motivo, menos venal, para que
os Tigres levem suas boas lavadas. Com frequência, a maior parte
dos torcedores toma o capô e o teto do 304 como ponto de encontro
para acompanhar o jogo pelo rádio. Ficam se remexendo sem o
menor cuidado, amassando aqui e acolá a carroceria que o menino
levará um tempo infinito tentando consertar no dia seguinte, não
sem antes ter certeza de que Ponte-Napoleão não está por ali.
Caso contrário, o barulho da reparação dispara o alerta, e ela
vem tirá-lo dali pelas orelhas. Como se não bastasse, para
manifestar seu contentamento em caso de vitória dos Tigres de
Bengala, esses vândalos não hesitam em golpear a lataria com
maldade e raiva. Sentado na varanda, o menino fica vendo darem
cabo à bárbara tarefa, sem poder se intrometer ou mandar saírem
fora, esse Peugeot não é transporte coletivo. Por vezes, engolindo
a própria cólera, solicita a ajuda indireta de Ponte-Napoleão,

79
indicando que as exações cometidas pelos torcedores dos “Tigres”
podem perturbar o sono da bisavó Lorvanna. Se por acaso ela se
levantou com o pé esquerdo, mandará que deixem em paz a
nádega de suas queridas mãezinhas, esse carro não está na mesma
profissão que a dita-cuja, ouviram? Geralmente, partem – -e logo
em seguida estão de volta. Ponte-Napoleão joga-lhes em cima um
belo balde d’água, e o 304 molhado já não os atrai pelo resto da
noite. Ou então, diz a seu neto: “Deixe pra lá. Não tem
importância”. Mas como não tem importância? Talvez não tenha
para Ponte-Napoleão, que não gosta de ver o menino nesse
“cemitério de micróbios”.
O time ganhou naquela noite, infelizmente. Logo após as
pessoas guardarem seus radinhos, os jogadores chegaram numa
efusão de buzinas e gritaria, pendurados em portas e capôs de
automóveis. Adeus então ao cozido, ao mocotó, batatas e
inhames... Como o dia seguinte é feriado, o menino poderá
contemplar, até bem tarde da noite, o rebuliço do bairro, de Jeová,
do Homem, dona Olivarez suando atrás de seu tabuleiro de frituras,
Thibaut e sua rouquidão que se acentua... Para o garotinho, essa
é a única vantagem em tal situação. No mais, ele e Faustino são
os únicos que não tomam parte no júbilo coletivo.

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III O tempo das cerejas

O homem terminou sentando no colo de Cristóvão


Colombo, sem se importar com o lodo que sujava sua calça. Tinha
o olhar perdido no vazio... Naquela noite, deitado em sua esteira,
talvez Faustino pensasse nas próprias partidas contra a vida. Nas
que havia vencido. E também nas que perdera. Mais numerosas
desde que pusera os pés em Porto-Pinto. Seus primeiros passos
nessa cidade enfavelada. E Maria, valente, combatendo a seu lado.
Daquilo, o menino nada sabia. Aquele era um mundo no qual
ocupava lugar nenhum. Tampouco ocuparia, sem a menor dúvida.
O universo de Faustino, antes do soçobro nas docas.
Desembarcando na vida do garoto. Aí se instalando. Para sempre...
O homem recolheu maquinalmente uma concha marinha, levou
ao ouvido, enquanto contemplava a ondulação indolente do mar.

Fazia dois meses que Faustino e Maria tinham deixado


Buraco-Pardal. Toda procura por trabalho resultara vã. A olhos
vistos, exauriam-se os recursos. Como água no fundo da jarra.
Era preciso entrar algum dinheiro em casa. Fosse como fosse. Cairia
como chuva benfeitora sobre terra árida... Às vezes, um grão de
determinação pode transformar uma vida. A jovem decidira, e no
mesmo dia comunicou a seu marido. Se a vida não vinha até eles,
também ela deveria sair à procura. Convocá-la a plenos pulmões.
“Não é normal – disse a Faustino – todos os dias mandar você à
fogueira, enquanto fico trancafiada aqui no quartinho, esperando
você voltar”. Prisioneira da pestilência que brotava ao lado. Do
choro da criançada das redondezas, sempre faminta e às turras.
Dos prolongados suspiros de amásias, com suas clavículas visíveis

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demais. Da inatividade atrabiliária dos homens... Essa espera não
apenas angustiava: sobretudo irritava. Fera enjaulada! Tinha caído
na arapuca das estrelas: a savana já não bastava a seu
temperamento de gato-do-mato. Quanto mais se debulhavam as
horas, no ritmo do carrilhão da igreja vizinha, mais a tensão lhe
subia à cabeça. Feito espírito maléfico. “Era então que eu podia
engolir cruzinho o primeiro fulano que me falasse de través”. Maria
sentou-se no colo de Faustino e arrematou o requisitório com
habilidade rara: “Levada por muitos braços, nunca pesa uma carga,
não é verdade?” Parecia decidida. Faustino jogou a toalha. “Se
não terminar por aí se prostituindo”, sussurrou para si mesmo.

Na manhã seguinte, já de pé ao alvorecer, Maria pôs seu


mais belo vestido e um par de galochas de borracha com cano
alto, que ela deixaria com uma amiga na entrada do Brooklyn,
para então poder calçar os sapatos de salto agulha do seu
casamento, arrumados de véspera em um saco de papel... Com o
rosto ainda radiante pela noite de amor com seu homem, atirou-
se nas quase desconhecidas ruas de Porto-Pinto, em meio a uma
multidão borbulhante em Deus-nos-acuda. Deixou-se distrair por
não mais que um curto instante, observando a estrepitosa
passagem de carros, a dança de apitos e de luvas brancas dos
guardas de trânsito, as vitrines guarnecidas de perfumarias e lojas
de bijuterias, as vendedoras ambulantes que poderiam até servir
como inspiração, por falta de melhor. Que rebuliço! Maria
retornou subitamente à realidade e ao objetivo de sua excursão
fora do Brooklyn: arrumar um emprego. Que espécie de atividade
poderia precisamente pleitear? Escarafunchou a questão e se deu
conta de que nada de concreto sabia fazer. Costureira? Gostava
desse ofício; já com sete ou oito anos, reacomodava as camisas de
seus irmãos. Mas se tratava de algo bem diferente, agora. Seria
preciso saber riscar um molde e pedalar uma máquina de costura,
dispor de um ateliê tinindo para receber a clientela. Não seria
naquele buraco em que moravam, onde a maioria das pessoas se
vestia com roupas de segunda mão, que ela poderia exercer tal
profissão. Ainda por cima, quem mostraria suficiente paciência

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para com ela, ensinando-lhe o bê-á-bá da costura? Maria
continuou sua caminhada errante pela Avenida do Pai-Fundador-
da-Pátria, driblando as lânguidas ou precavidas pernadas dos
pedestres, por entre tabuleiros de quituteiras instalados sob
marquises.
Que atividade poderia em boa fé postular, se algum
empregador inquirisse a respeito? A mil léguas dali, Faustino
ruminava a mesma questão, repensando a decisão de sua mulher.
Para ele, entretanto, não cabia a menor palha de dúvida quanto à
resposta. Ela se virava supimpa com as panelas, não é? Era até
mesmo um biju de cozinheira: sua mariscada de lambis, seu
caranguejo com ervas (não aquele com que ele todas as noites se
deliciava na cama), seu pato com berinjelas, suas almôndegas de
fruta-pão e bacalhau, seu peixe no sal grosso... Pratos cheios de
mandinga! Capazes de inundar de volúpia o paladar mais delicado.
Com um pouco de audácia, poderia se apresentar pessoalmente e
oferecer seus préstimos em restaurantes. O efeito surpresa talvez
jogasse a seu favor. De qualquer forma, nada tinha a perder.
Diria-se que Maria ouvia os pensamentos de Faustino. O
taberneiro, pasmo com a iniciativa, contemplou-a dos pés à cabeça,
aquilatou seus peitos opulentos com ar de conhecedor, deu uma
pirueta em volta para tomar, com os olhos, a medida de suas ancas,
explicou-lhe que, no momento, não havia vaga disponível, mas –
acrescentou, pousando-lhe a mão na coxa – para uma tão bela
moça, há sempre uma oportunidade. Com presteza, Maria, que
vigiara o manejo do tipinho, aplicou-lhe um sonoro bofetão,
empurrou a porta com estrondo e bateu em retirada.
Recuperou o fôlego diante de uma baiúca, na qual uma
matrona, sentada por trás de uns enormes caldeirões dos quais
brotava um só e único odor rançoso, distribuía grandes cumbucas
de arroz com milho a braçais. A suarenta senhora mergulhou uma
colher de madeira numa e noutra vasilha, trouxe tutu de feijão e
minúsculos nacos de carne, pescados rapidamente por um cliente
que varria o perímetro com os olhos à cata de um vão de calçada
onde pudesse esparramar as nádegas. Maria observou a patroa
expedindo a tarefa, servindo clientes que comiam vorazes,
recolhendo o dinheiro para guardá-lo com mãos ágeis no avental,

83
enquanto uma menina lavava lestamente os pratos, de cócoras
num canto. Aí está uma atividade que me cairia feito luva, pensou,
afastando-se da barraca, da matrona e dos trabalhadores.

O sol batia duro. Os pedestres buscavam refúgio embaixo


de toldos nas calçadas, a fim de se protegerem daqueles dardos e
também da passagem tempestuosa dos veículos. Maria, que muito
caminhara desde cedo pela manhã, parou diante do tabuleiro de
uma vendedora de frituras. Almoçou algumas fatias de banana e
batata frita, acompanhadas com cubos de cenoura e repolho
macerados no vinagre. A garrafa de água gelada, que a sede forçou
a beber de uma só talagada, provocou forte fisgada no estômago.
Esperou a dor abrandar, abaixou-se para limpar a boca no forro
da saia, retomou a marcha. Foi nesse instante que brotou a ideia.
Feito relâmpago. Porque não pensou nisso antes? Talvez tivesse
deixado a sorte escapulir, por andar assim em círculos, feito peru
em véspera de natal. Nos entremeios de uma conversa antiga,
uma vizinha de Brooklyn falara da existência de inúmeras fábricas
na zona adjacente ao aeroporto internacional. Ao que parece, aí
se contratava vapt-vupt. Talvez nesta semana estivessem
recrutando... Maria acenou a um motorista de tuque-tuque. Por
mal saber ler a plaqueta da caminhonete, certificou-se de que o
destino era mesmo o aeroporto e se embrenhou na promiscuidade
tagarela da carroceria.
Chegando ao local, a pardalense ainda caminhou alguns
minutos antes de encontrar, amontoada junto a um gradil de
dezenas de metros de extensão, uma populaça composta por
adultos e adolescentes que, em ruidosa quizumba, aguardavam
enfileirados sob o sol. Deles se aproximou, hesitante. Enquanto
Maria tomava informações, um senhor saiu do galpão erguido no
pátio e empurrou a cancela, provocando uma súbita
recrudescência da algazarra no meio da balbúrdia geral. Logo
subiu num minúsculo estrado visivelmente preparado para a
circunstância. Com a ponta do lápis, o homem indicava pessoas,
geralmente mulheres: “Você... você... você...” Com um sinal da
cabeça, ordenou que passassem para trás da cerca gradeada. Sem

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nem mesmo compreender o que lhe acontecia, Maria se viu entre
os eleitos. No interior, declinou timidamente seu nome e
sobrenome. Em seguida, durante uma meia-hora, o distinto senhor
descreveu ao pequeno grupo de pessoas – todas imantadas ao
poder que dele emanava, radiantes por terem sido escolhidas – o
trabalho que esperava por elas. As duas semanas de formação
não seriam remuneradas. “Ao contrário, vocês é que deveriam
pagar, porque estamos lhes ensinando uma profissão”, afirmou,
com o ar mais sério da galáxia. Fez a volta por um dos ateliês em
companhia dos futuros assalariados, levantou uma lona para
mostrar uma das máquinas, e, para terminar, pediu que se
apresentassem na segunda-feira seguinte, às sete horas da manhã,
diante das grades, para entrarem em suas funções. “Os que se
atrasarem podem saber, desde já, que perderam seu lugar”. Maria
esteve quase por desfalecer de tanta felicidade, mas se conteve.
Desconcertada por tamanha sorte, saiu, espiando de esguelha as
pessoas que se repisavam de impaciência sob o sol. A moça não se
atreveu a soltar os urros de alegria que sentia crescendo dentro
de si. “O que Deus reservou para ti, enchente alguma poderá
arrastar”, assentia. As árvores que se mantinham em fila indiana
nas duas bordas da estrada, o sol, os carros que passavam e,
invariavelmente, quase a atropelavam... Tudo lhe pareceu tão
formoso, naquele dia, que se pôs a cantarolar.

Maria toda alvoroçada voltando para casa. Maria


esquecendo de tirar os sapatos do casamento, que desapareceram
na lama, aspirados pela substância viscosa e tépida. Contudo, ter
enlameado os sapatos não seria então uma ducha de água fria.
Como um ciúme insano que viesse envenenar uma relação de
carinho. Um coró em fruta bem madura. Quando sua mulher
anunciou o venturoso acontecimento, Faustino sentiu uma
pontinha de amargor. Durante várias semanas, ele removeu céus
e terra, virou-se como o próprio capeta, sempre debalde. Em
compensação, bastou um só dia para que Maria encontrasse
emprego. Veria-se obrigado a viver às custas de uma mulher?
Faustino passou uma noitada de péssimo humor, recusou o passeio

85
nos molhes que propôs Maria depois do jantar. Ela esmerou-se
para fazê-lo engolir a pílula. “Um casal, Fausto, é como os dedos
de uma mão – explicou –, só estão separados em aparência. Na
realidade, estão no mesmo barco... Não importa qual dos dois
traz o pão para casa, se o homem ou a mulher... De qualquer
forma, acrescentou, você vai terminar acertando alguma coisa.
Com seu certificado escolar e mais todo o berenguendém, a coisa
não há de tardar”. Naquela noite, pela primeira vez na vida,
Faustino, muito pouco convencido pelas palavras de Maria,
declinou dos avanços feitos por sua mulher.

Na segunda-feira seguinte, Maria estreou em seu novo


emprego, aprendendo a fazer bolas de baseball, firme no propósito
de obter informações sobre os próximos recrutamentos. Todos os
dias acudiu ao trabalho com esperança no coração. Fora então
por obra do ardor com que esperava? Um milagre de sua beleza?
A ocasião terminou se apresentando. Sob uma forma que a
pardalense teve, no entanto, a sensação de brincar com fogo. Mas
se fosse o preço a cobrir para que seu homem novamente
recuperasse o sorriso... O supervisor, que o tempo todo contava
piadas picantes às mocinhas enquanto apalpava-lhes as nádegas,
sempre parava diante dela com uma certa indecisão. Parecia vacilar
entre tentar a sorte, como fazia com as outras, ou adotar uma
atitude de cavalheiro. O olhar orgulhoso de Maria, que sustentava
o dele sem se furtar, sua eficácia no trabalho, sua disciplina –
enquanto o resto da oficina, que era preciso vigiar como a
adolescentes em sala de aula, tagarelava o dia inteirinho –, sua
selvagem beleza que se destacava do conjunto..., tudo isso fazia
com que ele não soubesse exatamente de que maneira comportar-
se com ela.
Seu embaraço não escapou a Maria, que, na hora da pausa
para o almoço, pôs-se a perguntar-lhe por uma eventual
contratação... para seu primo. “Mais vale – disse a si mesma –
nada mencionar sobre minha verdadeira situação matrimonial.
Na vida, nunca se é prudente o bastante”. A jovem tinha certeza
de que o bolinador hipócrita de tudo faria para que ela ficasse no

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débito. Acertou na mosca. Duas semanas mais tarde, Faustino
acordava pela manhã, à mesma hora que sua esposa. Eles faziam
o trajeto a pé, o que permitia um pouco de economia, até que se
separassem à entrada da manufatura: a oficina dos homens
encontrava-se de um lado, a das mulheres do outro, apartadas
pelo edifício administrativo. Bom negócio para Maria: a separação
dos locais de trabalho era uma proteção contra qualquer risco de
ciúmes por parte de Faustino. Ela sozinha acertaria suas contas
com o sitiante libidinoso, pois se este acreditava que ela lhe devia
algo, estava redondamente enganado: ela não era mulher de riscar
navalhadas no contrato passado com seu homem, assim que o
tivesse às espaldas.
Ainda que medíocres, os dois salários trouxeram um
relativo conforto. Assim puderam, ao cabo de três meses, trocar o
Brooklyn por outro bairro de Porto Pinto – por certo popular,
contudo menos fétido. Dispunham de uma grande peça espaçosa,
que dividiram em quarto e sala com auxílio de uma cortina espessa
transpassada de uma parede à outra, e também de uma varanda
protegida por uma mureta, que lhes servia de cozinha. Esse
território, ainda mais afastado da beira-mar que o Brooklyn,
beneficiava-se de luz elétrica nas ruas e na maior parte das casas,
inclusive na deles. Naquela vizinhança, é claro, a miséria ainda
enterrava suas garras na vida das pessoas, mas se aplicava com
um tantico menos de fúria.

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IV Guardião do galo

Entre Faustino e Iaiá Vênus corre um sigilo que o garoto


não consegue desentranhar: o galo. Em princípio, o galináceo a
ela pertence; mas o yaguanês põe nele desvelos tão ciumentos
que se poderia acreditar, por vezes, que é o legítimo proprietário
ou que, pelo menos, compartilha da posse. Amiúde pode-se vê-lo
com o animal entre os braços, passando-lhe a mão pela crista,
falando-lhe como a um ser humano, dando-lhe em pleno meio-
dia banhos de folhas verdes que o fazem estremecer do bico às
esporas. Faustino entra em cólera furiosa se porventura alguém
se aproxima do galo e arranca-lhe ainda que seja uma única pena
para se coçar o ouvido. Uma tal profanação, quando o tafiá faz
colônia em seu espírito, tem a virtude de deixá-lo sóbrio no mesmo
instante, empurrando-o à própria violência física, caso as palavras
não tenham bastado para amedrontar o transgressor. Em uma
dessas frescas noites de março, cujos segredos as ribeiras do mar
sonegam, um pilhante fez as provas dessa amarga experiência.
Remontemos então às origens das crônicas do galináceo.
Por mais distante no tempo que o garoto se lembre, esse
galo – pelo qual seria um eufemismo escrever que o menino nutre
pouca estima, pois seu canto tem o poder de dilacerar o muro de
Iaiá Vênus para massacrar as preguiçosas manhãs de feriados e
finais de semana – sempre fez parte do cenário, eterno pomo da
discórdia entre Ponte-Napoleão e sua irmã.
– Um dia você vai ter que responder ao Altíssimo pelo uso
que você faz dessa pobre ave – lança Ponte-Napoleão.

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– É meu e faço dele o que bem entender. Deixe Deus
tranquilo lá onde estiver... Além disso, ao que eu saiba, Ele não
proíbe o direito à propriedade.
– Ahã, faça de conta que sou burrinha! Você vai rir muito
menos no Juízo Final.

A bem dizer, o galo não é o único motivo de contendas


entre ambas. Tantas e quantas vezes o garoto não as ouviu, amiúde
por questões beneméritas, chamando-se exatamente pelo nome
de certas aves. A paixão que Iaiá Vênus manifesta pelo futebol,
por exemplo, irrita Ponte-Napoleão, que não compreende como é
que se possa gostar de um esporte como esse, vinte e dois cretinos
correndo como cabritos atrás de uma bola de capotão. Ainda por
cima, como fedem quando vêm armar o banzé no quintal, suando,
por nacos de inhame e banana!
– Está proibida de chamá-los de cretinos, no ano passado
ganharam até o campeonato. Já esqueceu, além disso, que meu
filho faz parte?
– Em primeiro lugar, se ganharam mesmo o campeonato,
como diz você, quero saber como é que fizeram. Devem ter
comprado o juiz ou o goleiro do outro time. E depois, já que o
filho de madame também se atropela naquele bando, talvez eu
devesse dizer: vinte e um cretinos, e mais um esperto... Não tenho
culpa se você não ensinou seu filho a fazer outra coisa. Porque
não o despachou a Gogmagog, como fez com as filhas? De
qualquer maneira, são cretinos: é o que você mesma repete, o dia
inteiro.
Ponte-Napoleão entra em casa cerrando a porta atrás de
si. Lá dentro, continua resmungando, pronta a descarregar sua
ira no primeiro infeliz que lhe atravancasse a passagem. A situação
fica ainda mais complicada quando tia Luciana, a irmã mais velha,
que não aguenta ver a caçula na companhia de engraxates e outras
vendedoras de salgadinhos, vem se intrometer no assunto. Chega-
se com as mãos às costas para, depois de lançar um olhar secante
sobre o populacho estacionado em frente à varanda, reivindicar
seu direito de progenitura e impor a paz às duas outras irmãs,
que então abandonam seu próprio contencioso e iniciam outro

90
diferente, “está se metendo em quê?”, “alguém chamou?”, vocifera
uma. “Nunca meta o bico em mingau que é só meu e de Vênus”,
esbraveja a outra. A reaproximação das duas beligerantes se
conclui, então, às expensas da própria intrometida. Por vezes, as
três batem boca como umas bagaceiras, e logo voltam cada qual
à sua casa, sob o olhar vigilante do menino e de seus primos, que
já estão salivando só de pensar nas acrobacias da reconciliação.
Em geral, uma delas prepara delicadamente uma bela iguaria e
oferece à outra, “sei que você gosta deste prato, mas se preferir se
afogar no orgulho e não comer, pior pra você!”. “Se quiser, pode
dar para um de seus peixinhos”, aconselha Iaiá Vênus. “Sobretudo,
que eu não veja seu galo ciscando na minha louça”, adverte Ponte-
Napoleão.

E eis aqui de novo o galo, que sempre termina por conjurar


Dona Condor e tia Luciana contra Ponte-Napoleão. Mas a caçula
conta com uma aliada de peso: a pequena criada de Iaiá Vênus,
que, por dividir com galo tanto a cozinha quanto o dormitório,
mantém regulares pelejas noturnas com o galináceo. O bípede,
sem a menor consideração, passeia-lhe por cima, interrompe seu
sono no meio da noite com cantos intempestivos, tinge seu lençol
meio esfarrapado com excrementos líquidos e pegajosos. A crer
no que diz, ela vive apenas à espera do momento de se dar ao
prazer de degolar o bichinho, de uma só navalhada, tendo, antes,
afiado muito bem a lâmina para não falhar, e que o sangue jorre
de sua goela como de um cano arrebentado. Ficaria por demais
feliz em ver o estúpido animal cambaleando, mijando sangue pelo
pescoço, estrebuchando pela última vez as patas antes de fechar
definitivamente o bico. De boa vontade tomaria o lugar da
cozinheira para escaldá-lo na água fervente, e depois arrancar as
penas uma a uma, decepar a cabeça, mergulhar a faca pelas
entranhas, enfiar a mão pelo meio do furinguinho para arrancar
as vísceras e deitá-las aos cães, esquartejar coxas e asas, e então
fender a carcaça ao meio. E, sobretudo, prolongaria seu prazer
vendo penetrar no corpo o tempero de pimenta do reino e
malagueta, o que houver de mais picante, tudo transpassando a

91
carne que já não demoraria mais para ser entregue ao óleo em
ebulição.
Por que razão Iaiá Vênus insiste em manter vivo por tanto
tempo esse animal? Não é, de forma alguma, um desses galos de
rinha que a todos enlouquecem em Salbunda, trazidos a preços
faraônicos da Benezuela ou da vizinha república de Babeque, e
sobre os quais somas dementes são apostadas, com frequência o
salário do mês, por vezes as economias de toda uma vida. Quem
lhe dera esse bicho? Talvez alguém bastante querido. Um amante
a quem ela teria jurado de guardar o galináceo até que pereça de
sua própria morte. Outro mistério que se furta ao menino. A criada,
Iota, tem sua própria explicação a respeito, cheia de subentendidos
que o garoto não consegue decifrar:
– Não é normal mimar um bicho dessa maneira. Onde é
que já se viu servir comida em prato esmaltado a um engolidor de
grãos, hein? Onde é que já se viu um galo balançar a cabeça de
um lado pro outro para recusar a comida? A dona Condor, hum!,
é uma senhora mulher, sim, senhor!

Por seu lado, o menino sonha apenas com o dia em que o


galo dará com os costados à panela. Sonha com a coxa empanada,
como bem sabe preparar Ponte-Napoleão, sobrenadando em um
molho de cebolas acompanhado de uma bela porção de arroz com
cogumelos negros. Ela não resistiria ao assalto de seus molares,
acostumado a livrar – e a ganhar – batalhas ainda mais selvagens
contra sólidos gomos de cana, ossos de peru e de cabrito, sem
falar em pedaços de coco que serviriam unicamente ao ralador...
Entretanto, arrimado na dupla proteção de Iaiá Vênus e de
Faustino, o galináceo pavoneia-se pelo quintal, trota, deixa marcas
de pata sobre as roupas postas para secar sobre seixos, olha as
pessoas com ares de desprezo, sobre o chão batido derrama titicas
que, certa tarde, fazem derrapar Ponte-Napoleão. Que fica com
as quatro patas para o ar.
Ela se levanta de um só pulo e salta sobre um cutelo, um
enorme, que ela usa para destrinchar o peru do Dois de Janeiro.
Secundada por Iota, lança-se ao pátio atrás do animal, que esvoaça

92
num escarcéu de penas, pousa sobre um fino galho de louro-rosa,
e então sobre o beiral da janela, enquanto Dona Condor não chega
para barrar a passagem, e logo Faustino para se interpor entre
elas e o galo. Ponte-Napoleão balança a lâmina, com os braços
estirados como se fosse Abraão preparando-se para sacrificar seu
único filho, Isaac, à glória de Javé. Faustino não ousa apelar para
a violência, mas, em pé diante dela, mantém seus dois punhos
suspensos, um dos quais segura o facão oscilando no vácuo:
“Minha tia, diz para trazer Ponte-Napoleão de volta à razão, isso
nunca mais vai acontecer, prometo. O quintal ficará limpinho,
sempre”. “– Eu não sou sua tia, pinguço! De onde é que te
conheço?” Alertados pelo alarido de vozes que atravessaram a rua
para lhes perturbar a sesta macia, Orfília e Pancho terminam por
entrar em cena com seu “que é isso, minha gente?” Graças àquela
mediação, por uma penugem, naquele dia evitou-se o drama.
Ponte-Napoleão ficou mais de uma semana sem dirigir a palavra
a sua irmã e a Faustino, o qual toma como obrigação desejar-lhe
bom dia todas as manhãs, limpar os sapatos do garoto antes de
levá-lo à escola, história de enternecer “minha tia”.

Como poderia o ladrão adivinhar, portanto, que essa


avezica forreca era um objeto de tantas disputas e de tanta
veneração? Com certeza invadira o quintal depois de abrir o portão
sabe-se lá como, ou depois de pular por cima da parte baixa dos
muros, perto da cozinha, na esperança de confiscar o que lhe
caísse em mãos. Por que não um galo? Se não pudesse fazer dele
um rei da arena, encontraria uma dona de casa para comprá-lo;
ou então o comeria por conta própria. Toda a arte consistiria em
sua habilidade para se apoderar do animal sem que o dito se
pusesse a cacarejar como franga velha… O garoto, esse nada
ouvira. Talvez Faustino ainda não estivesse dormindo. Ou talvez
tivesse o sono leve. Em todo caso foi ele quem soou o alarme. Seu
grito de “Pega ladrão! Fechem passagem!” acordou em sobressalto
ambas as casas, e o pátio inteiro. Até mesmo o garotinho.
Normalmente, podia-se dar um tiro de canhão ao lado de seus
tímpanos sem que emergisse um só instante desse aprendizado

93
da morte que é o sono. Naquela noite, entretanto, ele se pôs de pé
com toda a turba do quintal, disposto a verificar no próprio local
o que vai por aí acontecendo. Ponte-Napoleão vem refrear seu
ímpeto, ordena-lhe que fique na cama, ele tem aulas amanhã. Ela
sai após se enfiar a toda pressa num vestido. Assim que ela põe
fora seus pés, o garotinho levanta-se e entreabre a porta, de onde
pode assistir, em balcão de primeira, a todo o teatro.

Faustino imobiliza o ladrão no chão, seus joelhos travam-


lhe os ombros e seus braços o prensam com uma gravata. Lorde
Harris observa o quadro com plácido olhar; Dona Condor está em
pé, uma lamparina na mão; tia Luciana, acompanhada de Jeová,
termina por prender um lenço na cabeça, para não se resfriar em
uma hora tão indigna, sobretudo em pleno mês de março; outros
vizinhos vêm chegando pelo lado da casa da mulher do pastor.
Ouve-se a voz de Thibaut, vibrando como um clarim: “Cadê esse
cachorro?” Iaiá Vênus adianta-se e aproxima a lamparina da cara
do malandro: “Deixem-me ver com que se parece, esse filho de
mãe nenhuma”. Imobilizado no chão, o gatuno, apesar de tudo,
faz um gesto de recuo com a cabeça:
– Senhora, não queime minha barba, hein!?
– Cale a boca, seu morcego sanguessuga!
A resposta provém de Faustino, que a acompanha com uma
rude bofetada:
– Além de roubar gente honesta, você se permite até mesmo
resmungar, ainda por cima… O que é que você queria fazer com
o galo? Diga lá, o que planejava fazer dele?
Um segundo bofetão ecoou na noite. Faustino começa
então a sacudir o ladrão, feito roupa suja, num estado de cólera
próximo à loucura. Ponte-Napoleão, a quem não desagradaria
ver o galináceo desaparecer, intervém para acalmá-lo: “Tudo bem,
Faustino. Tudo bem.” O silêncio recai sobre o pátio, enquanto o
ladrão permanece no chão, cercado por todas essas cabeças
debruçadas sobre ele, ansiosas, como se não soubessem o que
fazer. Jeová propõe jogá-lo ao mar, do alto do cais, é tudo o que
merece, esse salafrário. Dona Andreia, a mulher do pastor,

94
aconselha soltá-lo, pois a justiça pertence unicamente a Deus: “a
mim a vingança, a mim a recompensa, escreveu Ele nas Santas
Escrituras”. – “Ei, você, seria melhor fechar essa goela”, devolve-
lhe Iaiá Vênus, que não se decide sobre o castigo a infligir ao
pilantra. Acrescenta então, dirigindo-se ao biltre: “Então, o galo é
que você queria?… Com tudo o mais que há por aqui?!” O silêncio
recobre o pátio outra vez, durante um extenso minuto. É nesse
instante que a gargalhada de Thibaut atravessa a noite, quando
todo mundo já parecia ter esquecido aquela reação do larápio:
– Essa é boa, agora! Desde quando os safados têm direito
neste país?… Tá preocupado com a tua barba, hein?! Mas é o teu
próprio galinho que a gente devia queimar, querido. Junto com
teus culhões. Aí você poderia ir roubar outras coisas...
Forma-se, ao final das contas, uma comitiva, já que convém
levá-lo ao posto policial. Faustino agarra o ladrão pelo fundilho
das calças e o obriga a trotar adiante, na ponta dos pés.
Exatamente como deve ter se sentido quando Diabo-Baká fez-lhe
o mesmo, naquela tarde em que entrou em cana por perturbar a
ordem pública. “Se tentar fugir, te esmago como um piolho,
ameaçou. Adiante, andando.” Após nomear os membros da
comitiva, Ponte-Napoleão retornou à casa. O garotinho correu
para deslizar sob os lençóis. Sabia que, de qualquer forma, no dia
seguinte, ao final da tarde, ouviria as pessoas evocarem o desenredo
da história, amontoadas no perímetro que circunda a varanda.

95
V O fim do feijão

O homem ainda permanecia sentado nos joelhos de


Cristóvão Colombo, com a concha do mar entre as mãos. Desde
sua chegada a Salbunda, tinha a nítida impressão de ziguezaguear
no tempo. Um estranho balé que mais parecia o ritual dos
carregadores de esquifes em funerais no campo. Sobretudo, não
deixar traços visíveis trás de si. De maneira que os mortos não
voltem para surrupiar nossos sonhos de vivos e deixar pesadelos
na nossa cachola. Um vento leve dedilhou por seus ombros,
enrolou-se em seu pescoço feito um cachecol, sussurrou-lhe à
orelha uma história que pensou reconhecer.

Ao correr dos meses, a atração de Faustino pela cidade


grande tinha encolhido como pele de tamborim. Ele pensava
unicamente em economizar tostão após tostão para retornar à
terra. A curta viagem para rever família e amigos restantes atiçara
esse sonho de regresso. Ele já se via voltando a Buraco-Pardal,
Maria abrindo um armazém de produtos impossíveis de se achar
por ali, ela faria bate-e-volta a Porto Pinto ou a Yaguana para
trazê-los; ele compraria um barco e uma pequena gleba para
trabalhar por conta própria, sem receber ordens de quem quer
que seja, mama, o que acha? É claro, Fausto, é claro… Desde a
estada no Brooklyn, de onde a cidade lhe parecera uma larga
cratera fétida encastrada entre montanhas que, feito sentinelas
gigantescas, sitiavam-na e a guardavam refém num enleio
excessivamente apertado, ele pouco a pouco se desofuscara com
a capital. Dela, todavia, ele continuava apreciando alguns prazeres
simples, como passear ao longo das docas com Maria, oferecer-
lhe um sorvete que ambos tomariam, às costas de Cristóvão

97
Colombo, admirando os imponentes transatlânticos brancos que
despejavam, em fluxo contínuo, seus vagalhões de turistas hilários.
Devia ser agradável viajar numa dessas enormes casas flutuantes.
Se ao menos pudessem tomar emprestada uma daquelas para ir a
Buraco-Pardal! Sua única obsessão, doravante.
No entanto, a vida no novo bairro tinha lá seus charmes,
aos quais o pardalense não era insensível: sua mulher e ele não
precisavam permanecer acordados nas noites de chuva intensa,
pois sua morada não era um simples guarda-sol, as gotas não
atravessavam o teto, como no Brooklyn, para transformar a cama
em enorme baía e o solo de terra batida em melaço. A água potável
estava ao alcance da mão, por assim dizer, e eles guardavam pouca
quantidade em casa, exceto nos dias de penúria; e à noite, a
eletricidade banhava tanto o interior quando o exterior… Dulcis
in fundo, alguém – não sabia quem, talvez a prefeitura –, instalara
uma televisão na praça pública, colado à sua casa. Nas noites de
sábado, Faustino levava sua companheira para ver um filme, o
que alimentava suas conversas durante a semana, até o próximo
final de semana. Sua preferência ia para os filmes de caubói,
histórias de valentões que acertam suas diferenças com um par
de murros ou balaços. Maria gostava das cenas em que o beija-
beija jamais terminava. Como se essas pessoas nada mais
soubessem fazer da vida, troçava Faustino. Ainda por cima, nunca
se via o montinho crescendo à altura da braguilha. “Você só pensa
nisso!”, fingia-se de brava. Era o primeiro encontro de ambos com
a sétima arte, sempre regressavam encantados. Deixando Porto
Pinto, dizia-se Faustino, sentiria uma falta enorme dessas sessões
de fascinação coletiva.
Aquilo tudo lhe daria mais saudades até mesmo que os
próprios aviões, cujas manobras de decolagem e aterrissagem
podia permanecer admirando durante horas, por trás dos
alambrados do aeroporto, até o momento em que Maria viesse
arrancá-lo de sua contemplação, já está na hora de voltar, Fausto.
Senão, vamos pra cama tarde demais e amanhã chegamos
atrasados ao trabalho. Ele não dava a mínima, perdido na
admiração desses estranhos animais fazendo estremecer aquelas
asas de gigante, que em nada os impediam de andar, ou mesmo

98
voar. E aquilo roncava, engasgava, cuspia rojões… Faustino muitas
vezes se perguntava por qual milagre do Santo-Nome-de-Deus um
pássaro de aço tão enorme conseguia despegar do chão e esconder
seus pneus na panturra, feito galinha com seus pintinhos. Como
fazia para não desabar com retumbo, sobretudo quando amarrava
ao longe a última guinada, a mais perigosa, segundo lhe parecia,
antes de se dissipar por trás do horizonte? Aonde é que poderia ir,
carregando aquelas pessoas todas, cujos vultos entrevira tantas
vezes pela escotilha, quando a besta-fera vinha se aquecer na
cabeceira da pista? Vapores de querosene escapuliam de suas
entranhas, suas asas reboliam feito lobisomem prestes a se atirar
sobre a caça. E esse barulho ensurdecedor da hora da decolagem,
só se podendo proteger os tímpanos com o dedo enterrado bem
firme no miolo das orelhas! Ele sentia puxavões pelo braço, até
que Maria tomasse a reta, ameaçadora, por fim: “Pior pra você.
De noite, não tem caranguejo com folhas.” Sempre vinha com
esse argumento persuasivo, Maria. Então ele disparava-lhe atrás,
virando-se de vez em quando para lançar uma última espiadela
àqueles animais estranhos.

Na fábrica, Faustino parecia mesmo intocável, muito bem


assentado em sua competência e seriedade. Sempre disposto a
dar uma mão a seu chefe de serviço, estava entre os melhores
empregados da usina. Nunca rezingava para o excesso de trabalho
dos dias de encomendas volumosas, para os plantões aos sábados.
Se houvesse um quadro de honra, como era o costume em outras
manufaturas, seu nome teria figurado todas as semanas em
cabeça da lista. Mas pouco importa! O essencial não era então
economizar e voltar ao campo o mais rápido possível? Ele não iria
fazer corpo mole por bagatelas… Por sua vez, Maria brincava de
gato e rato com o chefe, consciente dos riscos que corria. As
represálias viriam, com certeza, coalhadas de consequências:
descontos na paga, algumas semanas de suspensão sob pretexto
de que não haveria trabalho suficiente para todos…
De esguelha, ela espreitava as artimanhas do supervisor
em suas rondas pela oficina, sem ousar tocá-la na presença de
outras, com medo de rapar em público uma recusa, mas
convidando-a com o olhar a pedir uma permissão qualquer. Ele a

99
seguiria ao banheiro ou alhures para boliná-la, enquanto tentava
marcar um encontro. Seu método de abordagem era conhecido
por todas. As operárias contavam e recontavam seus fazimentos
de macho no estro, meneando ora a cenoura, ora a chibata. Ele
acostava-se a uma jovem junto ao banheiro, encurralando-a
colada à porta, de forma que pudesse gerir com vantagem toda
chegada imprevista; futucava então seu sexo com aquela grande
pata peluda – para pegar um adiantamento, dizia sorrindo. Por
vezes, contentava-se em empunhar à mancheia o púbis da
belezoca, dando-lhe em seguida um tapinha amistoso nas nádegas.
No final da tarde, viam-no sair assobiando, encostar à beira do
caminho, algumas dezenas de metros à frente, para colher a
jovenzinha em seu carro. Bem protegido do olhar da diretoria que,
no frigir dos ovos, com certeza não ignorava suas manigâncias.
Por visto que não atrapalhe o bom funcionamento da fábrica...
Na manhã seguinte, a jovem, além de tentar disfarçar para que
as colegas não se dessem conta da situação, não sabia mais sobre
qual dos pés deveria dançar: poderia chamá-lo pelo nome ou teria
que tratá-lo de “senhor”? Por vezes acontecia que uma ou outra –
menos medrosa e com a língua mais despachada – comentasse,
nas pausas, sua dificuldade em botar o bicho de pé, ou a ligeireza
do seu gatilho. “Pior mesmo é ter que fingir que foi bom.” Não era
bem a hora de se fazer de puta enfastiada, perguntando
escancaradamente, com os olhos pregados no teto, quando é que
vai terminar. Ou, então, arriscar um “já?”, por ter achado que
seria melhor aproveitar, ao final das contas, e acabar se frustrando.
As cópulas do dito-cujo tinham sido repassadas ao pente fino. O
balanço de suas ancas. Sua voz rouca chamando por socorro no
momento do gozo, como se estivesse desprotegido diante de uma
corja de assaltantes de estradas…

Maria permanecia à espreita, desfruindo do relativo


conforto e da serenidade que o trabalho na fábrica trouxera ao
casal. E a guilhotina despencou. Ela estava esperando por Faustino,
na hora da pausa para o almoço. Bem longe de imaginar que o
supervisor pudesse segui-la até ali, sobretudo após a áspera
discussão que tiveram na semana anterior, no banheiro… Naquela

100
ocasião, ela sentira uma necessidade urgente: suas regras
chegaram no meio da manhã, sem se anunciarem. Ela solicitara
a autorização, apressada. O supervisor a alcançou em seguida
para lhe dizer que a amava, que ela era diferente das outras jovens;
não paro de pensar em você, tenho sérias intenções a seu respeito,
sabe?…Uma cólica, que lhe rasgava as entranhas, a deixara retesa
como um arco. O outro em frente, despejando nhenhenhém. Maria
esbravejou: “Não me interessa. Estou cagando e andando.” Saíra,
batendo-lhe a porta nas fuças. O chefe de sessão não deixou
transparecer sua cólera. Sua sede de vingança. Contentara-se em
não mais lhe dirigir a palavra, tampouco súplicas com o olhar.
Até que enfim, regozijava-se Maria, o fulano tinha finalmente
entendido.
Eis que agora voltava ao ataque. Ocupada em preparar
sua defesa, caso preciso, de supetão confessar ao salafrário que
era mulher casada, que tinha seu homem, e aquilo lhe bastava,
não percebeu Faustino aproximando-se à retaguarda. O supervisor
chega-se por defronte, sorrindo. Antes que ela abrisse a boca para
dizer o que quer que fosse, ele pousa-lhe a mão em cheio sobre as
nádegas. O sangue de Faustino, diante da cena, rodopiou pelas
veias. Desembestou, caiu-lhe por cima com braços de pilão, moeu-
lhe os ossos de pancadas, apesar dos esforços de sua mulher para
contê-lo. “É o supervisor! É o supervisor!”, gritava. Faustino nada
ouvia e espancava como um forçado, ainda mais que aquele
sicrano não era seu chefe de serviço na oficina. Outros empregados
chegaram correndo, algumas mocinhas vociferavam e
encorajavam Faustino a esmurrar mais e mais: “Ele só está
recebendo o merecido, esse estúpido, grita uma delas, eu bem sabia
que havia justiça em algum lugar.”
No arremate, quatro homens conseguiram apartá-los. O
supervisor pôs-se de pé, branco em pó. Fulminando de raiva, não
quis perder a compostura diante dos subalternos: “Me larguem,
arrotou. Me larguem que vou mostrar a esse cretino com que
lenha faço fogo.” Ninguém ousou rir, e ninguém o largou, visto o
estado em que se encontrava Faustino. Seus olhos saíam das
órbitas, seu peito estava tenso de cólera, os punhos permaneciam
cerrados, a ponto de relançar o ataque. Parecia uma besta-fera

101
acossada… O chefe de serviço não tardou em redarguir. Ambos
não tiveram nem mesmo a oportunidade de expor seus agravos
no escritório do patrão ianque. Para lá entrar, precisavam da
autorização do chefe de suas respectivas sessões. Ora, aqueles eram
cu e calça: o chefe de Faustino devia ao parceiro as mocinhas que
eram entregues a seu bel-prazer.

Por instante algum Faustino deixava de se desculpar com


sua esposa. É verdade, sua cólera era brusca, não deveria ter
ministrado tão severo corretivo àquele tipo. “Se tivesse parado no
bofete, tudo ficaria por aí mesmo. --– Claro que não, Fausto, o
troco seria o mesmo. Fez muito bem, estou orgulhosa de você.”
Maria procurou amenizar o sentimento de culpa de Faustino. Se
fosse preciso um culpado nessa história, dizia-se em seu foro
íntimo, seria ela mesma e mais ninguém. Deveria ter enfreado
súbito os maneios do supervisor. Talvez tivesse agido mal ao
recorrer a seus préstimos para contratarem Faustino. Foi quando
tudo teve início. Certamente teria encontrado algum emprego por
aí… “Agora vai ser preciso recomeçar do zero, com um aluguel
para pagar, ainda por cima. – Deixe pra lá, respondeu Faustino,
tenho mais de uma carta na manga. A gente chega lá, vai ver só.”
Viveriam de suas economias à espera de encontrar trabalho em
outro lugar. Tinham uma vantagem além: conheciam o ofício.
Maria sorriu amarelo. Faustino puxou-a para si e terminou por
tranquilizá-la, tomando-a em seus braços.

O tempo, encoquinado na sombra, feito um capoeiro. O


tempo, que se deveria poder estrangular. Sem deixá-lo dizer cric.
E nos enfeitiçar com suas histórias de lobisomem esvoaçando em
pleno dia. Vez ou outra traz boas coisas, o tempo. Sabendo-se tomá-
lo com jeito, sem deixá-lo nos surpreender. Sabendo-se dar
cambalhotas, saltar por sobre seus rabos-de-arraia. Gingar quando
nos desfecha tungadas em cheio no peito. Deixá-lo bater e se fazer
de liana mole, para não desabar de costas no chão. Em seu curso,
por vezes nos acerca de prazerosos encontros. Enquanto isso, o
garotinho atravessa outros horizontes, tão igualmente
maravilhosos.

102
VI ¡Cincuenta mil pesos!

Nas manhãs de domingo, mesmo que de presente lhe


oferecessem uma bojuda garrafa de caninha, Faustino jamais
interromperia sua atividade para buscá-la. Fica ali, agarrado ao
radinho de pilha, como se disso dependesse sua vida. Toda sua
energia concentra-se para captar o som que exala dessa caixa de
fósforos, da qual não se ouve mais que um longínquo chiado. Ele
não suportaria nem mesmo o zumbido de mosca nas cercanias.
Por pouco não pede aos carros que parem de rodar, ao mar que
apague sua ressaca. Inclusive o próprio Homem-África e seus
comparsas – aos quais não se pode qualificar de poltrões, visto
que arrostam os mais graves perigos, debochando até mesmo do
Diabo-Baká – ficam de mutuca. Ai daquele que ousasse perturbá-
lo! Um dia, mandou às favas o próprio Chacal-de-Óculos, que se
avizinhara para que lhe engraxasse os sapatos. “Não tira folga,
você aí? Eu tiro.” Descomposto, o Pai da Pátria balançou a cabeça,
como quem diz: o que pensar de semelhante pancada? A história
circulou rápido pelos rebaixos do mar: desde então, ninguém
ousaria incomodar Faustino quando traz o radinho colado à
orelha. À espera, ao que parece, de uma sentença capital.

O menino não compreende a razão para que essa postura


devota sempre se manifeste ao final das manhãs de domingo.
Pensando bem, Faustino não poderia estar à escuta da
retransmissão de partidas de futebol. Normalmente, os jogos têm
lugar à noite; ou à tarde, no pior dos casos. Quando, por exemplo,
os holofotes arriaram-se em pane. Ou quando o governo requisitou
o estádio para uma manifestação à glória do Honorável. Com

103
exceção desses dois motivos, ou de um desses ciclones que fogem
a qualquer controle humano, nada consegue impedir o bom
andamento dos encontros nos horários de costume. Além do mais,
o interesse de Faustino pelo campeonato tem duração mais que
breve: apenas a fatia de noite em que os Tigres de Bengala
confrontam outro plantel. Naquele domingo, a calma em que se
envelopa o bairro não deixa imaginar, nem mesmo um instante,
que os Tigres disputam uma partida. Agitação alguma. A cidade
emerge de uma noite de sábado de pique infernal; as rádios
escarram rancheiras de triturar os tímpanos, músicas que, ao
menino, sempre lembrarão Joselito, o herói do filme El Caballo
Blanco. De tão deserta, parece triste a área defronte à varanda. O
garoto tem que girar e regirar o retrovisor, a ponto de doer a
munheca, até que possa encontrar algo propício à degustação,
uma cena qualquer a saborear com os olhos ou – se necessário,
depois de baixar os vidros – com os ouvidos. Em última instância,
Faustino nunca acompanha os jogos pelo radinho, contenta-se
em imitar o drible, enquanto urra. Um roteiro que é geralmente
bem recebido, quando os Tigres abocanham o adversário; menos,
entretanto, quando estão recebendo uma lavada.
Como esses três argumentos deitaram abaixo sua hipótese
inicial, o garoto não chega a compreender que raios Faustino
forjica, em plena manhã de domingo, com o radinho colado à
têmpora, à maneira de um telefone. Mantém-se ereto, o cotovelo
apoiado ao parapeito, mexendo-se apenas para enfiar a mão no
bolso-faca da calça e coçar vigorosamente o vão entre as pernas.
Um gesto de que é grande entusiasta, executando-o, por vezes,
exatamente no meio do passeio público. Sobretudo em noitadas
de porre homérico. Dessalines e seus acólitos lançam-lhe então:
“desde quando não veem água e sabão, Faustino? – Pergunte à
mamãezinha, que fez cafuné neles ontem à noite”, responde,
ameaçando correr atrás do bando do Homem-África. Ao final de
meia hora de escuta, guarda o radinho e senta-se no chão, na
entrada da varanda, com a cabeça entre as mãos. Diria-se que
acaba de receber uma má notícia. “O que há, Faustino?” – interroga
o menino, travesso, mais para descobrir a razão de tanta pena do

104
que para consolar. “Nada, nadinha”, replica o engraxate. Mais de
um quarto de século depois, o garoto, agora homem feito, nada
poderia jurar, mas ainda está persuadido de ter visto, naquele dia,
uma lágrima brotar dos olhos de Faustino.

Alguns dias mais tarde, abrindo os ouvidos aqui e acolá,


ao fio da conversa dos adultos acabou por esbarrar no culpado
pelas agruras quase dominicais do yaguanês: o Benezuelo. É ele,
o culpado. Como um galo consegue provocar tal sofrimento num
homem tão sólido quanto Faustino? Para o menino, não há a menor
sombra de dúvida: trata-se com certeza de um galo. Não o de Iaiá
Vênus, um reles galinho de meia tigela, sem cauda, que se tomaria
facilmente por uma galinha-d’angola, e que não se poderia alinhar
de forma alguma na categoria dos benezuelos. Aquela espécie
capaz, como se conta, de vazar ambos os olhos dos rivais, de atacar
o homem que levante guarda, goza de uma sinistra reputação
junto aos aficionados. Contudo, além do fato de que nunca vira
um benezuelo, o garotinho não consegue imaginar como um galo
poderia atingir Faustino por meio de um radinho. Talvez seus
cocoricós, transportados pelas ondas, aterrorizem quem os escuta.
Gelem o sangue à distância. Seria possível? Súbito, entretanto,
recorda-se de que nunca se retransmitiu rinha de galo por antenas.
Por que o fariam agora? A questão o intriga, ainda mais por ignorar
a quem deve se dirigir para obter uma resposta. Seus primos têm
mais ou menos a sua idade, ou são seus caçulos. Não terão opinião
alguma sobre o assunto. O Homem-África? Ponte-Napoleão o
proíbe de avizinhá-lo. Jeová mente como poucos, a ponto de fazê-
lo acreditar que homenzinhos verdes moram na lua ou que, sob
nossos pés, pulula outra vida, história de deixá-lo com dor na
cachola por três dias seguidos…
O presidente da Benezuela, em sua visita a Salbunda, vem
trazer uma primeira resposta ao problema. Naquele dia, as ruas
foram areadas de seus estrumes, tal como por ocasião da ronda
semestral do Honorável. Os mendigos desapareceram de supetão,
o menino pergunta a Ponte-Napoleão por que razão não mais
esticam sua miséria defronte os tabuleiros das feirantes e varandas

105
das casas. Não logra a menor explicação. Em todo o bairro,
bandeiras da Benezuela entrelaçam-se às de Salbunda. Em pé,
nos dois lados da rua, o populacho aplaude até destroncar as
munhecas, e urra ensurdecedores “Viva! Viva!”, quando, à
tardinha, o Mercedes oficial, no qual tomou praça o Chefe de
Estado, atravessa a cidade em tromba-d’água. Somente Faustino
não participa das homenagens da turba: “esse tal de dito-cujo me
chupa grana demais”, bufa o dia todo, bêbado como um peru em
véspera de Natal.
Se a vinda do presidente resolveu uma parte do enigma, a
frase de Faustino, mesmo alumiando uma mecha do lampião, traz
outro quebra-cabeça ao guri. Está bem, então não é um galo o
que deixa Faustino assim tão desamparado nas manhãs de
domingo. Mas por que razão o presidente de uma república amiga,
que circula em Mercedes blindado e climatizado, precisaria do
dinheiro do yaguanês? Como é que, de seu país – no qual o petróleo
jorra aos borbotões, ao que dizem –, conseguiria tomar o dinheiro,
já que é a primeira vez que pisa o solo de Salbunda? O negócio
espreme o cocoruto do guri. Ele passa horas inteiras refugiado no
Peugeot, tentando aclarar o mistério. Não é uma partida de futebol,
tampouco uma retransmissão de rinhas de galo, aquilo que
Faustino acompanha em seu conciliábulo com o aparelho. Além
do mais, não há outra ocasião em que desembrulhe seu rádio de
pilhas. Anteriormente, o presidente da Benezuela nunca triscara
os pés em Porto-Pinto. O que ainda resta por investigar? A missa?
O yaguanês não leva o menor jeito de se inquietar por demais
com isso. O garotinho promete elucidar a questão, custe o que
custar.

Para tanto, ainda é preciso que se possa chegar lá! Mas,


para enternecer Faustino sem grande esforço, basta falar sobre a
escola, exibir livros e cadernos de aula – ele decifra as letras quase
tão bem quanto o menino –, perguntar-lhe pela enésima vez em
que série estuda sua filha Chachoune, que tem a mesma idade do
garoto e recebe visitas do pai a cada três ou quatro meses, em
Yaguana. Ao fim e ao cabo, vira brincadeira de criança passar de

106
um tema ao outro. Todavia, súbito manifesta-se mais um problema
inesperado. Quando o garoto está com o rádio colado ao ouvido –
Faustino montando guarda para espreitar a eventual chegada de
Ponte-Napoleão –, nada compreende. Nadica de nada. Para falar
honestamente, o francês não é seu verdadeiro idioma materno,
ainda que o utilize todos os dias na escola, ocasionalmente em
casa. Bem, no geral, consegue captar foneticamente todas as
palavras de discursos deitados em sua presença, ainda que nem
sempre saiba de que se trate (como, por exemplo, nas alocuções
do Honorável transmitidas pela rádio). O salbundense? Mingau
de araruta! Com a fauna que se espalha pelo perímetro defronte à
varanda, ele tem múltiplas oportunidades de aperfeiçoá-lo e de
enriquecer seu vocabulário com novas palavras, e até mesmo com
os palavrões que ele somente pode empinar na companhia de
camaradas. Em resumo, maneja duas línguas, uma das quais com
segura destreza. Mas, ali, com o radinho apoiado à têmpora, nada,
absolutamente nada. Um charabiá que não pode ter sido feito
para orelhas humanas. Os dois radialistas das ondas curtas falam
como se tivessem batata quente na boca. Um deles parece
introduzir e reintroduzir variações em uma sequência cuja
primeira nota permanece inalterável. O outro não desaferroa
daquela cantilena, retomando-a logo após o colega, em eco. Uma
modulação por certo hipnotizante; mas vá lá entender o que quer
que seja.
Faustino nota seu estupor e, sem nada lhe explicar,
pronuncia um pouco mais lentamente, em atenção especial ao
menino, aquilo que parece o estribilho dessa canção em dueto, no
mínimo bárbara: “¡Cincuenta mil pesos! ¡Cincuenta mil pesos!” Ao
fio dos minutos, o garotinho também se põe a escandir “¡Cincuenta
mil pesos!”, com tanto encarniçamento quanto o segundo locutor.
“¡Cincuenta mil pesos!” E, no momento em que menos espera, em
que parece ter conseguido acoplar seu ritmo ao ritmo do rádio,
uma brutal ruptura, prolongada como uma nota de órgão
interminável: “¡Primeeeeer mayoooooor!” Surpreendido, ergue a
cabeça em direção a Faustino que, diante daquele ar de desamparo,
ensina a articulação correta. Naquele dia, o menino talvez tenha

107
trazido sorte, o engraxate não está assim tão triste quanto nos
outros domingos: ganhou algum trocado na loteria sorteada
diretamente da Benezuela. Com certeza, não o grande prêmio, ou
“primer mayor”, mas, pelo menos, o suficiente para, na próxima
vez, jogar sem ter que meter a mão no bolso. Assim é que o menino
enfim descobriu por que razão, nas manhãs de domingo, Faustino
e boa parte do bairro – ele agora se dá conta – ficam agarrados a
seus radinhos. Se não tivesse aprendido esse novo detalhe, ficaria
completamente por fora de uma história, no mínimo espantosa,
que, durante semanas, ou mesmo meses, alvoroçou a crônica à
beira dos cais.

Naquele domingo – ou já na véspera, seja dita a verdade –


Faustino apostou em um número que sua finada mãe, aparecendo
em sonho, indicara. Vestida de branco da cabeça aos pés, ela estava
ereta à proa de uma barca carregada de quitutes, rumando ao
largo. Chegando ao mar aberto, deitou alimento por sobre as águas
e fez meia-volta, sem olhar para trás. “Tem certeza de que você
viu direito?, pergunta-lhe Thibaut. – Está querendo me dizer que
já esqueci o rosto da minha mãe?, responde o outro. – Nunca se
sabe, pode ser que você estivesse bêbado em seu sono. – Não conto
mais nada, se é assim.” Faustino se aborrece e amarra a cara.
Thibaut cede: “Venha, Fausto. Vou pegar o livro de interpretação
dos sonhos. Aqui: mulher de branco, mais elemento líquido…–
Não é um elemento líquido qualquer, interrompe Faustino: é o
mar. E a mulher, era a minha mãe. – Espere aí, pra que tanta
pressa? Disso você não entende mais que os livros. Se até hoje
ainda não lucrei grande coisa com esse livro, é por que minha
cachola não é tão brilhante quanto a sua. – Tenho certeza de que
agora a gente ganha, trombeteia Faustino, estou sentindo. –
Espero que sim, espero sobretudo por você, diz Thibaut, ou então
arranco essas coisinhas que ganhou de Deus.” Generoso, Faustino
alardeia o número aos demais moradores do bairro; a maioria,
na busca de um bom palpite sonhado para aquele dia, não hesita
em apostar, na cabeça. E é aí que a situação se complica.
O titular da banca de loteria pirata – totalmente distinta
da loteria oficial, cujos funcionários religiosamente recebem seis

108
talões todos os meses – é um tal de Azor, que outrora se via em
idas e vindas ao longo do cais, terminando por plantar seu guichê
de apostas a alguns tropeções de distância de Cristóvão Colombo.
Mal ou bem, o bairro concedeu um certificado de credibilidade a
seu negócio; sem dúvida, pelo hábito de confiar-lhe, tão
regularmente, as esperanças de toda uma vida. O que é a loteria,
senão a esperança semeada à mancheia, na expectativa de que
lance rebentos? Às vezes, cresce até se tornar uma bela árvore
carregada de frutos. Por vezes, dá não mais que um desmilinguido
brotinho. Também às vezes, a sáfara terra vem nos tosar do topo
do seu mutismo. Mas é preciso evitar o engano de afugentar a
esperança, atirando-lhe na cara o conteúdo do penico. Nunquinha.
Ela é suscetível. Se for embora, não volta mais. É preciso acariciá-
la o tempo todo, ameigá-la. Fazer-lhe cafuné. É claro, Azor deve
algum, aqui e acolá, a ganhador por demais sortudo. Mas o
banqueiro não tem cara de pilantra, tampouco já saltou
porventura de banda. Muito pelo contrário. Quando é preciso,
até favores ele presta, aceita inclusive fazer o papel de agiota,
acudindo aos necessitados de dinheiro urgente com uma sólida
punhalada (200%). Mas, bom, nesse domingo, toda a beira-mar
apostou no sonho de Faustino, que descola nada menos que o
“¡Primer Mayor!”.
O bairro está num alvoroço só. Alguns se lançam ao meio
da encruzilhada para esconjurar as trevas. O yaguanês já se
imagina sentado no topo de uma fortuna que lhe permitirá
arremessar, do alto do cais, sua caixa de engraxate, e nunca mais
se rebaixar aos pés do Chacal-de-Óculos… Os habitantes da beira-
mar se amontoam para irem embolsar seu prêmio. Mas, ao
chegarem diante do balcão de Azor, não encontram alma viva.
Com o passar das horas, sempre ninguém. Por Deus, isso não deve
ser possível, pensam. Já é hora do almoço, talvez Azor tenha se
atrasado, dando uma sesteadinha vigorosa em companhia de
alguma moçoila. Ficarão à espera até que o céu comece a acender
suas lanternas, que se engrossem as vozes na noite perguntando
onde é que se meteu o vigarista, esse filho-da-mãe? Súbito, jovens
exaltados despedaçam a tenda que funciona como banca de
apostas e a lançam ao mar. No local, alguns ficarão de vigília,

109
noites inteiras, à espreita de Azor, ele vai acabar voltando, ainda
há quem lhe deva algum trocado...
Muito tempo depois, alguns afirmarão tê-lo entrevisto
numa certa cidade do interior, exercendo o mesmo ofício; outros
dirão que se encontra na vizinha república de Babeque, onde vende
sua força de trabalho como braceiro-escravo, quando da colheita
de cana-de-açúcar; por fim, uma senhora quarentona – de cuja
pessoa ninguém sabe exatamente o que vende e o que compra em
seus giros através de Miami, das Américas Central e do Sul,
alimentando, dessa forma, os cochichos a respeito do grau de
calefação de sua entreperna – conta, sob juramento, tê-lo
encontrado na Benezuela, onde se estabeleceu com uma
benezuelana que trabalha dia e noite para sustentá-lo. Um pouco
assim como Pancho e Orfília, insinua, se percebem o que digo…
Mas, tudo isso, são histórias que circulam nas cercanias do cais, e
o menino, que já começa a se esfregar no racionalismo, busca
encontrar sua voz de permeio nas mandingas dos adultos. Dessa
época, entretanto, conservou um refrão, que vai repetindo aos
quatro ventos, colado ao volante do 304: “¡Cincuenta mil pesos!
¡Cincuenta mil pesos! ¡Primeeeer Mayorrrrrrr!”

110
VII A querela

De tempos em tempos, é preciso saber dar o troco ao tempo.


Atirar-lhe pó-de-mico na cara. Enquanto ele se coça os olhos,
deslizar disfarçadamente sob outra pele. De santinha carola, virar
puta. Passar de ladrão contumaz a homem honesto. O cão tinhoso
se transforma em rato de sacristia. Apenas para que o tempo pare
de se encarnar em cima de nossa carcaça. E que cole noutro as
suas ziquiziras.

Ao correr dos dias, mais se esgarçava a corda da esperança


por entre os dedos de Maria e Faustino. Contratação alguma
passeava pelas calçadas; estavam todas trepadas bem no topo da
copa das árvores. Sobre ramas tão tênues que era impossível
apanhá-las. Contudo, não seria por falta de ambos baterem o
sendeiro da vida, sem descanso. Para o casal pardalense, a jornada
iniciava antes do alvorecer. Os primeiros raios de sol vinham
alcançá-los já palmilhando o betume, com passos firmes, como se
fossem a um encontro previamente decidido. Não paravam nem
mesmo para o almoço, do qual decidiram se privar, de qualquer
maneira, para ciscarem o menos possível num pé-de-meia que
vinha vazando feito oceano em maré baixa.
De início, despenderam suas jornadas em anárquicas filas
que se formavam à entrada das fábricas, mais ou menos
espontaneamente. A partir de um simples rumor sobre vagas. Por
vezes, o diz-que-me-diz-que não era nem mesmo necessário. Ao
perceberem um coitado qualquer, teso como pé-de-grua junto às
grades de uma fábrica, outros desocupados reuniam-se a ele e
aproveitavam a oportunidade para matar o tempo, em conchadas
de conversa mole. Contudo, no mais das vezes, o primeiro da fila

111
lá se plantara sem informação alguma. Motivado unicamente pela
fé em seu poder de seduzir a sorte, que terminaria por lhe fazer
um aceno, nunca se sabe, talvez este fosse o seu dia… Ao verem a
pequena turba marcando o passo, tal qual soldados à espera de se
juntarem à tropa, achegavam-se outros e ainda outros,
completamente ao acaso, até que se formava uma aglutinação
cacarejante. Rebolindo de esperança por baixo do sol. Assim é
que Faustino e Maria terminavam por se encontrarem misturados
à afluência, até que sumissem assim que se davam conta de que
nenhuma contratação estava inscrita no programa do dia...
Com o tempo, decidiram bater asfalto cada um por seu
lado: diversificando suas buscas, sem dúvida encontrariam mais
oportunidades. Contudo, em vão empregou Maria seu mais belo
vestido e seus sapatos de núpcias – cujas solas e saltos, diga-se de
passagem, exibiam sérios sinais de fadiga –, em vão encenou o
papel de jovenzinha assustada, disposta a passar do leite ao creme,
enquanto supervisores escrutinavam seus detalhes com o olhar…
Nadica de nada!
Pelo lado de lá, aos quatro ventos Faustino oferecia seus
préstimos: ajudante de mecânico, pedreiro nos canteiros de obra,
coringa nos ônibus de partida para o interior… Trazia a fé
ecumênica de um fiel prestes a adorar Deus e Mamon ao mesmo
tempo; à condição de que um deles atendesse suas preces. Noite
feita, à casa retornava alquebrado. Encostada ao parapeito, de
longe Maria o interrogava com o olhar. Um sorriso amarelo, que
revinha regular como o ciclo noite/dia e que sua mulher decifrava
sem esforço algum, revelava seu infortúnio. Mas Faustino
recusava-se a ceder. Tentava o melhor possível distrair Maria que,
segurando os cordões da bolsa, via como esta murchava ao fio
dos dias. A jovem agora hesitava em comprar um naco de carne.
Acabaram-se os siris refogados, os bolinhos de bacalhau… Ela
formigava em engenhos para não servir a seu homem sempre o
mesmo caldinho de milho, acompanhado de uma tênue lamela de
arenque salmourado. Por seu lado, o pardalense não se fazia de
difícil, comia sem queixumes o que sua esposa lhe pusesse no prato,
parabenizando-a pela mais trivial sopa de pão, você fez um
verdadeiro milagre hoje, Mama, como é que consegue? Depois da

112
refeição, sentavam-se à varanda e olhavam o tempo passar, num
silêncio pesado. Não mais sentiam a necessidade de irem ver filmes
na praça. Faltava-lhes espírito para tanto. Na melhor das hipóteses,
desabavam na cama, arriscando um tímido mergulho nas delícias
da carne.
Mais de três meses assim transcorreram. Na ousada
tentativa de arpoar a vida. No final das contas, Maria sugeriu
voltarem a Buraco-Pardal. Essa ideia não deixava de comprimir-
lhe a moringa. Se ficasse grávida, o que poderiam oferecer à
criança? Não mais se atolariam em Porto Pinto, quando, lá longe,
um vilarejo inteiro lhes traria amparo, no mínimo por sua própria
presença.
– Além de tudo, nada temos de que nos envergonhar.
– Não, Faustino respondeu seco. Nem se discute. Enquanto
tiver saúde, jamais vou mendigar o que seja, a quem quer que
seja.
– O orgulho nem sempre é o melhor conselheiro, sabe?
Não voltamos fugindo da justiça, por roubo ou por crime…
– Nunca! Está me ouvindo? Nunca!
Faustino tinha urrado esta última palavra, e depois se
largara, sem destino algum, pelas ruas da cidade. O ar fresco, lá
fora, o acalmou um pouco. Maria lhe servira como saco de
pancada, ele bem o sabia… A noite estava silenciosa e o céu vazio
de estrelas. As nuvens divertiam-se em revelar e ocultar um quarto
de lua crescente. Faustino lembra-se então da história de um
Zezim que, de tanto se destrambelhar pra cima da família, acabou
lelé. Todas as noites, armado com um fio e um prego curvado em
forma de anzol, sentava-se à beira de um rio para pescar a lua
que aí se refletia… Em sua errância, Faustino veio tropeçar no
sorriso afetado de uma prostituta quase impúbere. Baixou a cabeça
e, com passos apressados, afastou-se para não ver o tormento
despontando por detrás da menina-dos-olhos daquela
mercadorinha de vícios. Um pouco mais adiante, cruzou com um
indivíduo estranho, que ria sozinho enquanto fazia malabarismos
com um junco dourado. Quando criança, quanta coisa ouvira a
respeito das anomalias da noite! Recorda-se das histórias de
Mestre-Meianoite, da Grande-Dianha, de Lúcifer e outras tantas

113
Mulas-sem-Cabeça. Passa triscando nos solilóquios do estranho,
sem medo algum. Há muito dominara a noite e dela fizera até
mesmo uma cúmplice. Quando passeava nessas horas impróprias,
estando suspensa toda atividade de qualquer natureza, tinha a
impressão de que a capital lhe pertencia. Que dela encontraria,
mais cedo ou mais tarde, o calcanhar de Aquiles. De qualquer
maneira, seria mesmo necessário, caso quisesse retornar à cidade
natal… O pardalense caminhou por mais de três horas e, quando
voltou para enfim se deitar, Maria já dormia. De um sono agitado,
ao que lhe pareceu. Colou-se contra o corpo dela e sentiu sua
mulher recuperar, de imediato, uma respiração regular.

No dia seguinte a essa querela, a ribeira do mar – por onde


os dois esposos desde há muito não vinham bater pernas – acabou
os reconciliando. Em desespero de causa, Faustino havia
recontatado o antigo camarada da usina açucareira de Yaguana,
que o colocou na pista da estiva nos dias de desembarque dos
navios em proveniência do exterior. A contratação, ao todo e em
tudo, durava setenta e duas horas. No melhor dos casos, uma
semana. Para se ter uma chance de se encontrar entre os felizes
eleitos, era preciso dormir nas docas. Dessa maneira, Faustino
anunciou a Maria que passaria a noite por lá. De qualquer forma,
nada tinha a perder, exceto a degustação noturna dessa sua
carangueja no bafo, a única coisa que me dá uma casquinha de
prazer, nestes dias. Só uma casquinha?, interrogou sua mulher.
Se é assim, você vai ficar sem ela uma semana inteirinha.
Por três noites seguidas, Faustino teve que se digladiar
ferozmente com outros estivadores, na expectativa de um contrato
hipotético. No primeiro dia, um feitor chegou cedo pela manhã,
com uma olhadela descartou os de sangue quente, arranjou em
fila indiana os parceiros – que ficaram nessa posição até a chegada
do armador. Querendo se mostrar em sua mais bela embalagem,
alguns se disseram dispostos a trabalhar sem pausa, patrão,
estamos aqui é pra isso, não? Foram tratados de capacho, à saída.
O recrutamento ocorria numa balbúrdia tal que os mais
malandros tentavam ganhar dois ou três lugares na fila, passar à
frente dos outros na desordem e no empurra-empurra que

114
acompanharam a aparição do armador. Pipocaram alguns aperta-
chico que terminaram nas águas oleosas da doca. No curto tempo
em que os beligerantes se punham de pé, a contratação já estava
encerrada.
Ao cabo de tanta espera e refrega – com sua barriga
protestando, entre roncos e sibilos, contra o insuficiente prato de
milho com purê de feijão-preto que ao meio dia devorava na
barraca de uma quituteira –, Faustino aceitou um biscate de
quarenta e oito horas. Pelo menos, seria algo de ganho para casa,
o futuro se encarregaria do resto. Contudo, por razões que o
armador não pôde explicar aos estivadores, certos países que se
proclamavam amigos promoviam um boicote contra Salbunda,
outros navios não entrariam no cais por tempo indeterminado.
Mas Faustino não precisou tardar em mais buscas.

Dois dias mais tarde, passando defronte um canteiro,


ofereceu seus serviços –mais por hábito do que por convicção.
Viu-se presenteado com uma vaga de pedreiro imediatamente
disponível, vamos precisar de você durante pelo menos três meses.
No início, você se encarrega de transportar a areia, o cimento e a
argamassa em um carrinho, o trabalho não é muito complicado.
Ele aprenderia o restante ali mesmo: servir-se de um nível, assentar
blocos de pedra, manejar a espátula, dosar a mistura para o
concreto… Por enquanto, era preciso acabar o revestimento do
primeiro andar, o trabalho principal se atrasara. Faustino tirou a
camisa, arregaçou as calças e pôs mãos à obra.
Duas betoneiras giravam com vigor, baldes gingavam de
uma ponta à outra de uma corda com roldanas, parecendo
apresentarem-se por si diante daquela bocarra para recolher a
argamassa, inexplicavelmente reencontravam-se sobre a
cobertura, despejavam seu conteúdo sobre a armação de madeira
e ferro logo após um rápido percurso ao longo da corda. Embaixo,
peões perfuravam novas fundações, delimitadas por barbantes
amarrados a estacas cravadas no solo. As pás executavam um
grave concerto, chocando-se com fervor contra o chão e as pedras.
Aham! E eu te cato, eu te misturo, te catapulto na betoneira. Torsos
nadavam. Pedreiros cantarolavam em surdina, marcando seu

115
esforço. Aham! Eu te cato, eu te levanto… Sentado sobre um balde
emborcado, Faustino demorou um nada para comer o prato que
lhe trouxe o contramestre na pausa para o almoço. No restante,
não se fez de rogado, feliz pela notícia que deveria anunciar a
Maria quando voltasse à casa… Perdido em pensamentos e em
gestos já quase mecânicos, nem percebeu o dia escoar. Ao final da
tarde, um caminhão-cisterna encostou, para o banho dos peões.
Inclinava-se vagarosamente o sol, num silêncio que, por súbito,
pareceu insólito: tinham se calado as máquinas.
Apesar da ducha tomada pouco antes, à noite Faustino
voltou para casa com a pele branca de pó do canteiro. Assoviava
ao longo do caminho, satisfeito como um adolescente que tivesse
triunfado em seu primeiro encontro amoroso. Fizera questão de
regressar enchapelado por um bibico fabricado com saco de
cimento vazio, muito usado por pedreiros para cobrir a cabeça e
proteger os cabelos. Ao vê-lo chegar com o chapéu hilário e aquele
desalento afetado cujo objetivo era o de fazer sua mulher pensar
que as buscas permaneciam infrutíferas, Maria deixou escapar
uma grande gargalhada e levantou-se correndo a seu encontro.

Naquela noite, rolaram na cama tal como um barco ébrio


e louco sobre mar bravio. Maria agarrava-se aos ombros de seu
homem, cravando unhas na carne. O prazer navegava com velas
completamente abertas no oceano largo de suas veias, levando a
bordo uma carga de pimenta-das-ilhas. Maria era uma enseada
profunda pedindo para ser explorada em seus mais ínfimos
recôncavos. Longo demorou Faustino em seu ventre… Como boas
notícias raramente chegam isoladas, sua mulher logo encontrou
uma vaga de doméstica, por intermédio de uma amiga do Brooklyn
com quem se reavistara por acaso. Esse emprego nada lhes aprazia,
tantas vezes ouviram falar da desventura de empregadas que
serviam famílias da pequena ou alta burguesia… Contudo, mesmo
dependendo dos caprichos da patroa, havia a vantagem da
estabilidade, exceto em caso de alguma urucubaca ou deslize grave.
Maria tinha ainda a possibilidade de dormir no serviço, caso
desejasse, mas Faustino logo se opôs: o lugar de uma mulher é ao

116
lado do marido. A pardalense sorriu: “nem é preciso perguntar
por quê, não é, Fausto?” Nesse andar da carruagem, não teriam
que regressar a Buraco-Pardal para – o que seria ainda pior –
verem-se acolhidos como derrotados, sobre quem vizinhos e amigos
lançariam um olhar cheio de comiseração. Para Faustino, isso era
exatamente o mais importante. Mais tarde, com certeza
retornariam ao vilarejo, porquanto deles fora esse o projeto a longo
prazo, mas para o momento que eles próprios tivessem decidido.

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VIII A procissão

Como todos os anos, o bairro vai esperar pelo


acontecimento desde luas e mais luas: a procissão sairá saiba Deus
de que paragens (da velha catedral por duas vezes secular, é o que
se diz, mas ao garoto faltará permissão para comparecer, haja
vista Ponte-Napoleão não ser prosélito em catolicismo), passará
bem em frente à varanda, num longo cortejo serpentino que olhar
algum conseguirá abarcar num só rasgo – até mesmo com muito
esforço não se poderia, pois sua cauda perde-se numa rua
perpendicular. O garotinho assistirá ao desfile da varanda, numa
das raras ocasiões em que consente abandonar o 304: é preciso a
maior distância possível para apanhar o acontecimento, um tão
interminável cortejo não caberia no campo do retrovisor. Até
mesmo Ponte-Napoleão aceitará, naquele dia, que seu neto escape
um poucadinho à sua vigilância: a rua está segura, os carros não
circulam e, exceto quando arremedam o corpo clerical, os moleques
de maus modos abdicam de palavrões… Eis os requisitos para
que se aventure a algumas dezenas de metros da varanda, próximo
à catedralesca casa do padeiro, que se espraia por três andares
piramidais quando o comerciante tem apenas dois filhos; pretende
o bairro que um pavimento inteiro do prédio estaria dividido em
esplêndidos apartamentos reservados às três mulheres do Egito
que ele recebe sucessivamente durante a semana, por vezes no
mesmo dia, fato em que se abstém de intervir sua legítima esposa.
Mas deixemos esses diz-que-me-diz-que às franjas dos cais, ou
nunca mais esta história abeira seu fim.
Em pé sobre a balaustrada, o garoto fingirá estar imerso
na contemplação beata da manifestação, enquanto, de soslaio,

119
terça duelo com a vigilância de Ponte-Napoleão, esperando tirar
proveito do mais ínfimo átimo de descuido para dar uma
escapadela em meio ao cortejo; em seguida voltará a se instalar
sobre a mureta, como se nada fosse. (Aquilo se fizera joguinho
entre ambos, pois, vista agora a muitos anos de distância, sua
ausência sempre durava o suficiente para que a avó percebesse.
Talvez o medo trouxesse a impressão de que seu desaparecimento
durava mais tempo do que uma breve fuga? Seja como for, nunca
fora pego com a boca na botija.)
O desfile acompanhará a trilha artisticamente traçada com
pó multicolor sobre o asfalto, bordada aqui e ali com flores de
flamboyant, galhos de oliveira, frescas ramas de palma, e tudo
será profanado pelos pés à medida que o cortejo ande. Em
compasso de tartaruga, ele avançará por entre fileiras de casas
ornadas com símbolos religiosos, tendo à cabeceira a imensa cruz
de madeira levada em alternância por dois sacristãos, deixando
no ar um murmúrio austero: o canto saído do peito de todos
aqueles homens e mulheres que, no espaço de uma manhã,
descobrem terem alma de devotos. Entremeadas por ali, pessoas
que o garoto reconhecerá: autênticos asseclas de Satã ao lado de
carolas conhecidas em toda a cidade como verdadeiras baratas-
de-sacristia; esposas adúlteras e aquelas tantas que nunca fizeram
daquilo com nenhum outro além do marido; jovens mocinhas de
vida desregrada e virgens de longa data que, se não tomarem
cuidado, morrem com a teia de aranha pregada ao teto; ateus e
descrentes; uns que só põem os pés na igreja em circunstâncias
excepcionais na vida de um indivíduo – batismo, primeira
comunhão, casamentos, funerais… – e outros papa-hóstias;
Dessalines em uniforme, no meio de seus colegas de classe, sério
– ao menos nessa vez – como pão amanhecido; Jeová, que mente
mais ainda que um médico dizendo você só vai sentir uma
picadinha de formiga, cravando em seguida uma enorme agulha
nas nádegas; o diretor, solene como um dignatário, esganado em
seu paletó-com-colete; Thibaut, que não ousará cantar por causa
de sua voz rouca ou por medo de proferir obscenidades, sem querer;
o padre bretão, que rivaliza em ousadia com o padre Komokyèl e
que, de tanto confessá-las segundo os preceitos da carne, enviou

120
ao sétimo céu inúmeras mocinhas do bairro ó quão generosas
com o servidor do Senhor; os “moleques de maus modos” – como
os chama Ponte-Napoleão –, aos quais se juntará Tikita Maluco,
bamboleando cabeça e tronco para imitar o ministro do Culto e
provocar risos no bando do Homem-África…
O desfile irá serpenteando numa lerdeza monótona,
parando a cada charola edificada à soleira de uma personalidade:
do padeiro, do diretor, do poeta-proprietário de um colégio de
moças – no qual, ao que se diz, a bel-prazer ele perscruta musas
cada vez mais tenras… O padre, secundado por dois acólitos,
transporá a bela entrada a fim de benzer o lugar, enquanto Orfília,
em pé na varanda, vai se desmanchar em gestos de piedade e em
sinais-da-cruz ostentatórios, como alguém que esperasse do bairro
sua absolvição, não de Deus. O sacerdote ainda vai se arranchar
em mais paragens erguidas ao longo de todo o itinerário,
aproveitando para recolher, da mão dos anfitriões – que devem
ter muitos pecados a redimir –, óbolos vultosos para a casa do
Senhor. Pendurado na balaustrada ou nos ombros de Gary, o
menino verá a multidão empreender a penosa subida da ladeira
levando à monumental basílica que, do alto do Monte-Tufo,
domina o bairro.

O mais bizarro é que, durante o período antecedente à


Semana Santa, Faustino não trisca numa só gota de álcool. É
difícil dizer se esses dias de abstinência devem-se à atmosfera
sagrada ou à visita iminente a sua Chachoune. Já faz alguns dias
que ele volta bem cedo para dormir, deixando a noite a Gary, seus
amigos e suas querelas sobre filmes, mulheres e metafísica. De
tempos em tempos, aproxima-se de Ponte-Napoleão, visível
inquietude em seu semblante. Gesticulando com ambas as mãos,
indica, pela enésima vez naquele dia, a altura de sua Chachoune:
“ela estava alta assim, quando a deixei, tinha emagrecido um
pouco. – É normal, Faustino, ela está crescendo. – Sim, mas eu
não queria que o vestido ficasse curto demais. – Não se inquiete,
conheço bem o ofício”. Ponte-Napoleão, que já recortou o molde,
bate como louca sua velha máquina Singer, autora de notáveis
favores à família, costurando os vestidos de uma boa parte do

121
bairro ou, quando preciso, penhorando suas porcas e arruelas no
monte-de-piedade, pois que, garras despregadas, alguma urgência
aferrou-se à casa, e Ponte-Napoleão, por orgulho, preferiu não
tomar dinheiro emprestado à uma de suas irmãs. (Quando o
garotinho, já homem feito, volta-se a essa época, além de Faustino
I, é essa máquina Singer que lhe toma as lembranças. Os ruídos
de sua mandíbula, noite e dia rosnando contra a miséria até perder
o fôlego, a fim de mantê-la afastada do lar. Remendando, com
toda força, os retalhos da esperança. Essa velha máquina de
costura que religião alguma canonizou como “santa da
sobrevivência sem fronteiras”, o homem gostaria de vê-la reinando
por trás de uma vitrine de museu, último traço de sua passagem
sobre a terra. Troféu irrefutável da vitória do humano contra o
tempo. Quem poderia lhe dizer hoje em que se transformou? Em
que cabide do esquecimento corroem-se seus derradeiros
parafusos?)
Ponte-Napoleão não reclama centavo algum de Faustino,
que só lhe trás o tecido, fato que censuram suas irmãs, cansadas
de vê-la trabalhar de graça ou fiado para um exército de zés-
ninguém: “você vai passar a vida toda batendo água pra tentar
tirar manteiga”, despejam-lhe nos dias de grande querela. Rindo-
se e confundindo-se em agradecimentos, Faustino leva dois ou
três vestidos extras que Ponte-Napoleão confeccionou com sobras
de retalhos alheios. De que resultam roupas de múltiplas cores
que ela bem sabe agenciar com seu talento de princesa do país do
vire-se-como-puder. Em seu regresso de Yaguana, Faustino sem
dúvida lhe trará uma quinquilharia de que ela não precisa, mas
que aceitará de bom grado para não feri-lo, até que o ceda ao
primeiro mendigo que passe, Nicolas Evangelista ou outro
qualquer. Sempre teve a alma por demais sensível, Ponte-Napoleão.
Faustino quase nem assiste aos primeiros trabalhos de
decoração da rua e das casas, dos quais, de qualquer maneira, se
por acaso estiver presente, ele nunca toma parte. “Tenho mais
com que me coçar”, gosta de repetir, ao ver as pessoas fazendo o
diabo a fim de levantarem o oratório e as charolas, limparem as
ruas, nas esquinas amontoarem carradas de imundice – que o

122
caminhão dos lixeiros vem buscar com pontualidade religiosa,
exatamente ao contrário das demais semanas, quando aparece
de forma fantasiosa… À véspera da partida, o rosto de Faustino,
normalmente engolido por uma barba de três ou quatro dias, surge
então bem aparadinho. De uma caixa escondida perto da cozinha,
tira uma calça de zuarte, sem os remendos de seu traje de todos
os dias, e uma guayabera branca, de mangas compridas, em que
se amolda cheio de um certo orgulho. Por um sim, por um não,
volta a consultar Ponte-Napoleão, buscando obter seu
assentimento para toda e qualquer coisinha comprada: aquilo
para sua mulher, Maria; isto, para minha Chachoune; aquilo, isto
e aquilo… Ponte-Napoleão não parece enfastiada com esses
múltiplos incômodos. Ao contrário, parece experimentar uma
intensa felicidade por se ver requisitada a tal ritmo. Talvez, em
sua doce pieguice, pensa que é seu dever acudir a alguém que
volte à casa não mais do que duas ou três vezes por ano. Iaiá
Vênus, apesar de dividir o segredo do galo com Faustino, para
com ele não se mostra assim tão disponível.

Faustino partirá pouco antes da procissão. O garoto ficará


sem vê-lo durante um período de tempo que não saberia calcular.
Duas semanas? Três? Um mês? Seria incapaz de precisar. Pra
começo de conversa, não conseguiria, àquela época, assenhorar-
se do tempo tal como se capturasse o canto de um pássaro para
apresá-lo em gaiola. A ausência do engraxate planará por sobre o
tumulto, impedindo a cerimônia de chegar à perfeição. Sem esforço
o menino vai imaginá-lo cruzando a multidão, de cabo a rabo,
bêbado como um sacristão, fazendo uma arruaça daquelas para
chamar a atenção sobre si. O engraxate não teria suportado essa
irrupção sediciosa em seu território. Estaria de pé desde o alvorecer,
assobiaria à passagem de todo e qualquer pedestre, sempre
urrando “de ferro, tenho calças de ferro!” a fim de driblar o tédio,
pois naquele dia não se celebra atividade alguma. Lá não estão as
vendedoras a varejo pedindo ao garoto que toque suas
mercadorias antes dos clientes, para lhes garantir frutíferos ganhos
naquela jornada, “você tem mão boa, dizem, menina alguma vem

123
depois de você”, ou seja, não tem ele irmãs caçulas; não está
Leretour para lhe ceder, a ele e a seus primos – sem que Ponte-
Napoleão descubra, claro, e apesar de ser um muxiba notório –, o
restinho de xarope que fica no balde após encherem-se as garrafas;
não está Lorde Harris para enxovalhar o chão com suas
cusparadas… Faustino teria começado a beber antes da chegada
do cortejo, e depois lançaria broncas em todo o mundo de coisas
e gentes.
Nesse dia de desfile, adossado à mureta, dominando a
infindável plateia que passa cantando, o menino ressentirá a
ausência de Faustino, mais que qualquer outra. Dirá, de si para
si: só Deus sabe o que ele teria feito se estivesse aqui. Só Deus sabe
onde se encontra essa Yaguana, de que tanto fala, e o que estará
por lá aprontando. Mas o garotinho não obterá resposta alguma,
pois Deus não fala às crianças de sua idade. Seja como for, não a
ele. A despeito das lições da escola do Sabá, que conhece na palma
da mão, das reiteradas visitas da família ao templo de culto. Até
mesmo mais tarde, muito mais tarde, nos momentos em que dele
terá realmente necessitado, este nunca se dignou a dirigir-lhe a
palavra… Ainda durante a redação deste relato, o menino-homem
espera que ele se manifeste. Um gesto. Um simples sinal. Mas pouco
importa! Ele nunca vira Faustino rezar. Talvez anteriormente em
suas primeiras vidas. Como poderia sabê-lo?

124
IX A partida... de Maria

Mais vale estar vivo, mesmo que feio, não é? Uma vez que,
enquanto houver vida, restará esperança. Até mesmo a de se tornar
uma belezura e seduzir a mais linda das mulheres. Lembram-se
de Sarrito, aquele tal dos pés cobertos de sarro? Ao cabo, não é
que se casou com a mais bela jovem do antigo reino salbundense?
Ora, o que não lhe faltava eram rivais bonitos e valorosos. Jamais
se esqueça de deitar azeite à lâmpada da esperança. É preciso
manter sempre viva a chama. Confie sua guarda a outrem, caso
sinta-se esmorecer. No dia em que ela se apagar, o tempo terá
vencido… O homem ainda estava sob o feitiço conjunto do vento,
da concha marinha e de Cristóvão Colombo. Chegava a seus
ouvidos uma enxurrada de palavras, cuja origem ele desconhecia
e tampouco queria conhecer.

O casal pardalense tinha entrado em um novo período de


vacas, senão gordas, pelo menos cevadas o bastante, levando-se
em conta a modéstia de suas ambições. Todos os sábados, ao voltar
para casa, Faustino confiava à sua mulher a paga da semana,
após deduzir algum trocado para si mesmo, apenas o suficiente
para se presentear com alguns mimos e não se sentir de todo nu.
Foi então que ambos, de forma natural, reataram com as noitadas
na praça pública do bairro, acompanhando os faroestes e outros
filmes água-com-açúcar que sempre degustavam com tanto prazer
quanto polêmica. Igual e mais serenamente desta vez,
reencontraram seu sonho de retorno e seus velhos projetos, no
mesmo ponto em que deles se separaram, nos tempos da
manufatura. Apesar da supersticiosa resolução de não mais

125
hipotecarem o futuro, não conseguiram evitar de nutrir as
quimeras que, normalmente, vão de concerto com as economias.
“Se você arrumasse nem que fossem dois ou três desses serviços
por ano, sonhava sua mulher, e se eu, por meu lado, permanecer
no emprego, nesse ritmo poderemos voltar a Buraco-Pardal ao
final de três anos.” Se, se e se… Como um disco furado bem em
cima da nota da esperança. “Não é verdade, Fausto?” Este preferia
não responder, para evitar ziquizira no destino: nunca deu sorte,
a quem quer que seja, contar com os ovos no toba da galinha.
Mas ele não estava alheio aos votos de sua esposa. Tecera boas
relações com muitos camaradas no canteiro, tinha até mesmo o
contramestre no bolso, e algum deles bem lhe daria a dica certa
no momento preciso.

Entretanto, chegando a termo os três meses, os quais se


prolongaram até mesmo com um bônus de duas semanas,
Faustino penou para remontar em sela. Um trampo aqui, outro
acolá: sete dias de bico no cais para onde, em conta-gotas,
voltavam os navios; quarenta e oito horas como ajudante de
mecânico em uma oficina improvisada na calçada, de onde, por
sua própria vontade, partiu sem um tostão furado, pois o patrão
queria obrigá-lo a dois meses de formação não remunerada, essa
não é uma profissão que se aprenda assim, além de mim, mais
ninguém te aceitaria; uma manhã de limpeza no bairro quando
da visita de uma personalidade cujo nome e função ele ignorava
completamente, ainda que devesse esperar uma eternidade pela
boa vontade da prefeitura, ficar teso como pé-de-grua diante dos
guichês da administração – sem nem mesmo poder alçar a voz,
como alguém que esperasse por um favor, quando viera reclamar
o que lhe era devido –, para, por fim, receber uma ridícula
remuneração. Batentes pesados que atiçavam o braseiro por sob
o caldeirão, e cujo fim ele via aproximar-se sempre com apreensão.
Felizmente, Maria almoçava em seu trabalho, uma boca
de menos para alimentar. Ao preparar a refeição da noite, ela
também dava um jeito de jantar e, à revelia da patroa, levar comida
numa cumbuca ou num saco plástico. Ao passar dos meses, cada

126
vez mais Faustino teve que se sujeitar às sobras que sua mulher
carregava para casa. E fechar as narinas a fim de tragar daquela
água nauseabunda. Em resumo, engolir seu orgulho de macho.
Como Maria trabalhava seis dias por semana, apenas o domingo
apresentava-se como revés, já que o magro salário recebido
destinava-se ao pagamento do aluguel. Em Faustino, roíam-se as
rédeas. Dia e noite, enraivecendo-se de sua impotência.

O casal pouco aproveitava desse domingo de descanso. No


entanto, não era do desejo de passar um dia em companhia de
sua esposa que carecia Faustino. Sobretudo, porque lhe faltavam
oportunidades mais frequentes de fazê-lo, curtindo preguiça na
cama e sussurrando palavras molecas em seus ouvidos. Ou
dissipando tardes inteiras nos molhes – outro hábito que
retomaram durante os três meses de trabalho como pedreiro –,
orgulhoso de passear com Maria em seus braços, de desfilar como
numa parada pública, em meio a toda essa gente que se cruzava
e se saudava com um aceno de mão ou um sorriso, encostando-se
para um bate-papo, apoiados ao parapeito do cais ou sentados
frente ao mar… Eles preferiam o jardim público, uma verdadeira
joia, exclamou Maria, no dia em que Faustino mostrou-lhe o lugar.
Durante horas a fio, admiravam o chafariz que desandava a tocar
música clássica ou marchas militares assim que se jogasse uma
moeda. O que é que fazia o som funcionar? – perguntavam-se,
curiosos, debruçando-se sobre o peitoril da fonte para tentar
compreender o enigma do esguicho musical que tanto os
encantava. Daí a postura de recolhimento que assumiam naquela
presença. Podando com os olhos em fúria as ensurdecedoras
brincadeiras das crianças, as atroadas conversas dos adultos. Ali
ficavam, renunciando a qualquer palavra, enquanto escutavam
as notas que pela tardinha reverberavam, como se sob seus olhos
fossem paridas do próprio movimento do líquido. No momento
em que se acendiam as lâmpadas nas ruas, seus passos levavam-
nos ao sorveteiro, que, de longe reconhecendo o casal, e antes
mesmo que chegassem a ele, preparava-lhes uma enorme
casquinha de chocolate e creme.
Não que Faustino não visse mais prazer naquilo, mas o
passeio à beira-mar, das tardes de domingo, para ele revestia-se

127
de um significado especial: seria a cereja do bolo de alguém que
tivesse trabalhado por toda uma longa semana. Uma forma de
descanso do trabalhador, que ele teria a impressão de usurpar,
caso continuasse entregando-se a ela. Em seu caso, poderia zanzar
da manhãzinha até a noite, se quisesse. Por que, então, fazer de
conta? Por que mentir a si mesmo? Assim é que, aos domingos,
quando de nada serviria sair em busca de trabalho, permanecia
trancafiado em casa. Maria entendeu e não mais aludiu aos
passeios. Naqueles dias, ela punha ordem na casa, depois se sentava
à varanda, atenta ao menor suspiro de Faustino.

Foi no transcorrer de uma dessas tardes de domingo que


Maria deu-lhe a notícia. Em outras circunstâncias, Faustino talvez
pulasse de alegria; mas acolheu a informação num silêncio grave.
Impassível. “Esse aí escolheu direitinho o momento pra chegar”,
pensou. Sua frieza não escapou a Maria, que preferiu fingir nada
notar. Não era momento para se agastarem. Contudo, o assunto
era por demais importante para que a jovem se contentasse com
o silêncio indiferente de seu homem. Queria compartilhar o
acontecimento com ele. Apesar das nuvens que se amontoavam.
Do horizonte que escurecia. Do trovão que ribombava… Ela
abordou o tema por outro viés. “Você preferia que fosse menina
ou menino?” – “Não é a gente que escolhe!” Ela não insistiu. De
fato, o pardalense sabia muito bem o que essa gravidez significava:
estava fora de qualquer cogitação eternizar-se na capital, se a
situação deles não mudasse. Se uma bonança não aparecesse no
horizonte de suas vidas. Maria não mais teria seu emprego, seria
um milagre se a quisessem de volta depois do parto. Lá bem longe,
pelo menos sua família lhe traria amparo; a criança teria todas as
chances de ser mais bem acolhida quando viesse ao mundo… Mas
Faustino ainda não tinha dado sua última palavra, duplicaria sua
gana, prometo e juro, mama.
Ao longo de seis meses, transcorreu uma busca incessante
que o via se levantar com o canto do galo, bater o asfalto desde a
aurora até a noite escura, meter-se em toda fila de desempregados
que tomasse forma, para dela sair, dia após dia, com a esperança

128
um pouco mais dissipada. À noite, mal tocava no caranguejo-ao-
bafo de sua mulher, que todavia bem gostaria de colocá-lo mais
amiúde à sua disposição. História de dar mais vigor aos membros
do pequenino. Nas raras vezes em que ele provava daquilo, Maria
já não sentia nele os mesmos transportes. Parecia cumprir um
dever, enfadonho no mínimo, a tal ponto que ela se acostumou a
adormecer como uma rocha, tão logo se estirasse na cama. A má
sorte tinha transformado seu homem, que se fizera tão taciturno
quanto o mar em temporada de chuva. Por vezes, esperando por
sua chegada, ela não mais tentava conter as lágrimas que lhe
subiam aos olhos, mas bem rápido enxugadas: devia mostrar-se
forte. Pelo casal, pela criança que ia nascer. Faustino não entregara
os pontos, estava apenas um tanto quanto estranho. Como alguém
que tivesse o cérebro colonizado por uma coorte de espíritos
tenebrosos. Zumbis sem lei nem rei. Pelo mais, ia-se bem. Por que
ela não seguiria seu exemplo?
Seis meses de luta pela esperança. Para não ceder diante
das adversidades. Da ziquizira que o espicaçava. Seis meses para
não provar da sina do emigrante que volta ao ponto de partida,
por não ter tomado assento no bom vagão. Sem ousar cruzar
olhos nos olhos com os que ficaram -– por falta de ousadia para
partirem, por medo da aventura em terra desconhecida ou por
não terem sido obrigados a fazê-lo. Ler noite e dia seu próprio
malogro nesses olhares, dizendo a si mesmo que se também tivesse
talvez ficado… Faustino navegava à vista, aceitava qualquer
proposta de bico que aparecesse, ainda que fosse por poucas horas.
Sabia que a solução viria de sua determinação em agarrar-se com
mão tenaz à corda da vida. Aferrar-se a ela. E de maneira alguma
largá-la. Tinha que ganhar a partida contra o tempo. Que corrói
a esperança do homem. A vida do homem. E quando o tempo se
cansa de lixar seu dente de rato em cima do teu couro, ele te
passa por cima como um rolo compressor.
Quanto mais se aproximava o prazo final, mais se
convencia Faustino de que era preciso não jogar a toalha. Se ele
tinha mesmo aprendido uma lição com sua família, era essa, que
é preciso manter-se de pé, custe o que custar. Se cair, só penando

129
muito para levantar-se novamente. Vez que, depois, não se tem
mais forças. Em cidade grande, as pessoas não estendem
necessariamente a mão. Você corre o risco de ficar no chão,
entravado na sarjeta. Jurara que tal não lhe aconteceria. Mas
Faustino perdeu essa batalha. Em que pese ter resistido até o fim.
Não teria desejado admitir a derrota. Com a morte na alma, teve
que aceitá-la, mas apenas em parte. Já disposto a travar outro
combate. Maria partiria sozinha, ele permaneceria até que a
situação melhorasse e pudesse trazê-la de volta à cidade.

Maria não compartilhava dessa decisão, mas sentia


Faustino tão determinado que não ousou contradizê-lo. Era como
quando ela quisera procurar trabalho, e ele não a havia
contrariado, mostrara-se compreensivo. Hoje, ela lhe devolvia a
peteca. “Você vem ver a criança?”, perguntou-lhe quando seu
marido a deixou no ônibus. Ele fizera questão que sua mulher
ocupasse um dos dois lugares próximos ao motorista, longe do
populacho do fundão que não teria dado atenção à sua barriga.
“Quem vai se ocupar de você?”, acrescentou no momento em que
o ônibus partia. Faustino acenou e dirigiu-lhe um largo sorriso
para tranquilizá-la.
Estava lá com sua ideia na cabeça, começaria vendendo a
cama, a mesa e as duas cadeiras para constituir um pecúlio,
liquidaria o contrato de aluguel e recomeçaria do zero. Como se
acabasse de pôr os pés na capital. Iria aonde quer que o vento
empurrasse sua canoa, mas não entregaria os pontos. Sua mulher
e sua criança voltariam a Porto-Pinto: “Eu, Faustino I, é quem o
diz, negro de Yaguana!” Batendo no peito com a palma da mão,
deu-se conta de que falara em voz alta, plantado bem ali em
permeio aos ônibus que partiam ou que chegavam, entre os
maleiros que descarregavam trouxas de mercadorias sob o olhar
atento dos proprietários, tome cuidado para não quebrar os ovos,
não aperte esse saco muito forte, tem mangas dentro… Faustino
afastou-se com passo decidido. Nesse momento, as palavras de
Maria lhe voltaram ao espírito: “A vida é como uma escada. É
preciso subir degrau por degrau.” Ela tinha esquecido de
acrescentar, pensou Faustino, que por vezes nos acontece de pisar

130
um degrau em falso, de despencar até a primeira casa, com os
ossos moídos, sem ter como se levantar. Mas ele retomaria a subida.
Ao lance se atracaria. Com as mãos. Com os dentes, se necessário.
“Eu, Faustino I, é quem o diz, negro de Yaguana!”

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Terceira
Fase
“Não há retorno outro que não seja sobre si mesmo, e os
retornos são feitos para serem negados, negados pela expressão
que lhes dá forma e sentido, e superados.”

Daniel-Henri Pageaux.
I Pau pra toda obra

De volta ao hotel em que se hospedava na praça dos


Ancestrais-da-Pátria, o homem iria viver recluso durante todo o
resto de sua estada em Porto-Pinto. Suas buscas permaneceram
infrutíferas; a cidade ou o país nada mais poderiam lhe ensinar
sobre aquele que ele procurara com tanta esperança, e também
angústia. Talvez escrevendo a história do próprio Faustino ele o
reencontrasse. Sete dias e sete noites na tentativa de colocar em
harmonia suas lembranças e sua imaginação. Na busca de
transformar um duplo passado em presente único, com pausas
apenas para lambiscar ou oferecer-se de duas a três horas de sono.
Horas e mais horas de escrita, que o puseram exangue.

A partida de Maria para Buraco-Pardal desencadeara o


processo que aproximaria Faustino, a seu arrepio, das franjas do
cais, da fauna que se aviventava em torno da varanda de Ponte-
Napoleão, do pequeno garoto que por então devia ser um
espermatozoide impaciente para encontrar a alma gêmea, um
plácido ovo disforme entremeado no líquido placentário, uma
insinuante bolha a explorar com olhos pasmos a geografia
labiríntica por sob cômodas e camas. Mas que se dê tempo ao
tempo. Ser apressado demais nunca levou o dia a brotar antes do
termo. Faustino começou assim por se apartar de seu futuro
ancoradouro.
Após algumas noites insones em sórdidas pocilgas
infestadas de percevejos e de grosserias urradas a pleno pulmão
por casais beirando o orgasmo no lado de lá da parede, o
pardalense encontrou uma vaga de faz-tudo numa casa burguesa

137
de Copa. Ele aí exercia seu talento em múltiplos ofícios
simultâneos: caseiro, zelador, pedreiro no dia em que os
proprietários enfiaram na cabeça a ideia de aumentar a morada,
marceneiro montando armários e prateleiras por todo lado… “Não
é muito complicado, explicaram: basta um pouco de bom senso.”
E como Faustino nunca teve dois braços esquerdos, tampouco
cacá de cabaça no lugar do cérebro, rapidamente aprendeu a
fabricar sólidas tralhas, com as quais ele próprio se espantava,
olhando-as com uma pinçada no coração: gostaria de tê-las feito
para sua mulher. Passava dias inteiros trabalhando, mudava de
atividade tão logo tivesse concluído alguma. A patroa não gostava
de ver desocupados seus empregados, e sem descanso inventava
trabalhos a serem terminados com toda urgência. Ao bel-prazer
de seus caprichos. Apesar de um contrato verbal estipulando que
Faustino gozaria de seus fins de tarde, ela o fez rapidamente
compreender que isso aqui não é um escritório, podemos precisar
de você a qualquer momento. “De toda maneira, disse Faustino a
Maria, quando de uma visita relâmpago a Buraco-Pardal, lá, pelo
menos, eu vou poder economizar algum pra você e pra pequena.
Tenho casa e comida.”
À moda de alojamento, ele dormia em uma peça inacabada,
construída no quintal, longe da casa principal, e que fora
originalmente concebida como latrina de emergência em caso de
falta d’água ou de defeito nos sanitários. O quarto era aberto a
todo vento; nos dias de chuva, Faustino tinha que exibir toda uma
arte feita de pedaços de papelão e de plástico, de nacos de barbante
e de pedras chatas para proteger-se da inundação. Organizara
velhos livros meio estraçalhados que ele mais soletrava do que lia,
desde que suas ocupações lhe deixassem alguma folga. Diante
das jovens empregadas apressadas em lançar comentários e
grandes pontos de interrogação sobre sua virilidade, uma vez que
ele persistia em sua recusa de tomar um banho de hormônios
com alguma delas, acontecia-lhe de fazer seu mea culpa dizendo:
“Eu, negro de Yaguana? No dia em que Faustino for visto aos
fricotes com alguma doméstica, nesse dia qualquer meganha de
tonton macoute poderá metralhar meus miolos com uma descarga

138
de Uzi. Escolho muito bem com quem trepar.” Em seguida, do alto
de seus livros encarquilhados, olhava a criadinha que se punha
excitada como uma cadela no cio diante de tal resistência.
A dona da casa demonstrava pouca simpatia por Faustino,
ainda menos que pela faxineira, pela cozinheira ou pelos demais
serviçais. Tudo havia começado desde as primeiras semanas com
um fato bastante banal, para não dizer pueril. Uma espécie de
desafio entre duas fortes personalidades. A patroa teria desejado,
chegando até mesmo a exigir de alguns, que os empregados
baixassem os olhos na sua presença, história de bem marcar a
diferença hierárquica e social que os separava. Ora, Faustino não
deixava de sustentar o seu olhar. Por hábito, sem dúvida. Sempre
se dirigira às pessoas dessa forma. Manteve-se assim irredutível,
desta vez com conhecimento de causa, tal qual uma falena
divertindo-se com fogo, após ter surpreendido uma conversa entre
a patroa e uma amiga da família. “Ele é mais impertinente que
um piolho, esse Faustino. O pior, revelou a senhora, é que ele faz
um bom trabalho. Às vezes, até mesmo além do que lhe peço.
Nunca tenho por que recriminá-lo… Eu precisaria de um pretexto
para ter o prazer de despedi-lo por insolência. – Você realmente
precisa de um motivo para despedi-lo? – É claro que não, mas
seria bem melhor se eu pudesse, além de tudo, mostrar a esse
irreverente o seu lugar.” O tempo correu, mais de seis meses, sem
que entretanto a dona da casa, constantemente à espreita,
conseguisse despedir Faustino.

O episódio que deitou fogo à pólvora foi um almoço para o


qual a patroa tinha convidado umas quinze pessoas selecionadas
com esmero: europeus instalados em Porto-Pinto, membros do
corpo diplomático, salbundenses de alta classe… Os acepipes desse
final de julho, conforme o que Faustino compreendera, eram
oferecidos em homenagem a duas personalidades salbundenses,
membros de uma corporação que mandava chuvas e trovoadas
sobre o território, sem a menor bonança, e tinha direito de vida e

139
morte sobre tudo aquilo que vivesse ou respirasse: mulheres,
crianças, homens, animais, vegetais…
Desde o nascer do dia, um batalhão de domésticas e de
criados atarefava-se na cozinha, temperando cabritos e frangos,
aprontando arroz com bacon, beterraba e ervilhas, sem esquecer
as almôndegas de bacalhau e de fruta-pão; as bananas verdes
eram pesadas com mão de mestre, achatadas de um só golpe,
com um único movimento de punho, para terminarem fritas em
uma panela de óleo fervente; o agrião nadava em uma saladeira
cheia de água fresca, na companhia moleca de tomates ti-jocelyne;
Faustino espremia frutas para o coquetel, sobre o qual derramava
largas medidas de rum cinco estrelas, e resfriava-se o champanhe
desde a véspera… A patroa orquestrava todo esse vai-e-vem com
autoridade, vigiava de perto o cuidado com que se arranjavam os
objetos e se punha a mesa. “Elifete, a faca está enviesada, idiota!
Pare de assoar o nariz em cima dos pratos. Hei! Ceramise, está
sobrando toalha, a jarra d’água está fora do lugar. Definitivamente,
você não aprende nada.” Ela mesma preparou o macarrão
gratinado e a torta para a sobremesa (aquelas cabeças de bagre
acostumadas à lenha não deveriam se aproximar do forno a gás,
seriam capazes de calcinar os pratos ou de explodir a casa). O
único que podia mais ou menos exprimir-se em francês, Faustino,
ficou encarregado da intendência. Ele se ocuparia de recolher as
bolsas das senhoras e os chapéus dos mais velhos, de servir as
bebidas alcoólicas, das quais, por falta de reconhecê-las à primeira
vista, poderia ler os nomes na garrafa. Madame levou uma meia-
hora ensinando-lhe como verter nas taças o vinho francês, sem
derramar uma única gota na toalha branca.
Sofria Faustino só de pensar naquilo tudo. Ao primeiro
trinado da campainha, o olhar pretensioso da patroa voltou-se
para ele: “Vista tuas luvas, idiota: os convidados já estão aí. Nem
pense em sujar o que for com essas mãos pegajosas.” Três horas
de rega-bofe, o perfume agressivo dessas finas senhoras, o riso
estrondoso dos senhores, Faustino embutido num paletó demasiado
estreito, duas luvas de uma brancura imaculada tomando-lhe o
lugar das mãos, a munheca macilenta e manchada da dona da

140
casa, suspensa no ar e chacoalhando um sinete para chamar as
criadas.
A coisa começou no meio do almoço, feito os sintomas
iniciais de um mal fulminante. Faustino sentiu a raiva inchando-
se lentamente dentro de si. Em seguida, tudo passou a se revolver
em sua cabeça. A arrogância da dama. O nenhum respeito que
ela nutria por seus empregados. As ordens que ladrava com uma
voz cortante, a cada uma de suas aparições. As bofetadas que
vibrava em seus empregados, pelo menor inconveniente. Os gritos
histéricos que desferia ao longo dos dias. Por um sim, por um não,
chamava de asquerosas as criadas, descontava dos salários no
fim do mês: um copo quebrado, um pedaço de camisa queimado
pelo ferro, um atraso nas manhãs de segunda-feira para aqueles
que retornavam à casa no final de semana… Bem mais do que o
pardalense pudesse suportar. Não queria mais ficar por ali.
Precisava de ar. De muito ar. Caminhar lhe faria um grande bem.
Aproveitou de uma ordem da patroa ao final da refeição, “vá buscar
o champanhe”, para ir ao cômodo que ocupava, juntar num saco
a pouca bagagem de que dispunha e desaparecer sem dizer o
menor tchau. A outra que servisse o champanhe por si mesma.
Com sua mão amarrotada e seus ares de cafetina. Quando
notassem sua ausência, estaria a mil léguas dessa casa de ranços
escravagistas. Perdia o pagamento de um mês, que se dane,
recomeçaria adiante, noutro lugar. O caminho da vida era longo,
tantas passagens estreitas para atravessar, mas ele, Faustino,
nunca teve medo de caminhar. Pela força, bem terminaria por
chegar a algum lugar.

Com sua trouxa presa às costas, Faustino lançou-se na


estrada sinuosa que descia íngreme rumo ao centro sórdido e
trepidante. O sol dardejava seus penúltimos raios. Poucos passos
depois, foi alcançado por um tuque-tuque no qual se amontoavam,
em total desordem, passageiros de toda pelagem, cada um mais
barulhento que o outro, os quais comentavam, numa grande
balbúrdia, acontecimentos diversos. Desceu não muito longe dos
cais e ficou espantado por encontrar desertas as bordas do mar.

141
Não reconheceu o lugar que tanto amara quando vivia no
Brooklyn. Ao qual vinha ao anoitecer, em companhia de Maria, à
procura de ar fresco e de nostalgia. Longe das imundices da favela.
De seus fedores que asfixiavam a esperança. Ali, eles relembravam,
com a ajuda de muitos “se lembra?”, os intermináveis instantes
de olho-no-olho ao longo da praia de Buraco-Pardal, os insaciáveis
remelexos sobre a areia, as rezingas de Maria quando queria falar
do futuro… “Se lembra?” E eles riam de si para si, indiferentes às
idas e vindas das pessoas em volta, à música escarrada em alto
volume pelo ônibus do camelô, às brincadeiras dos moleques vadios
que entrelaçavam suas corridas em meio às pernas dos que
passeavam. E ainda o sorvete que tomavam com um só prazer,
andando sem pressa e sem destino ao longo das balaustradas,
com o rosto chicoteado pelo ar marinho que lhes arrancava
lágrimas apesar deles mesmos. Em seu retorno, davam-se um ao
outro com a febre de adolescentes.
Faustino repassou esses momentos agradáveis para
esquecer a decisão que acabara de tomar. De qualquer maneira,
eu não aguentava mais, disse para si mesmo, como sinal de
encorajamento. A dignidade de um homem deveria sempre impedi-
lo de comer merda. Sem destino algum, arrastou seus passos pela
extensão dos cais. O sol já iniciava sua descida rumo ao mar. As
grades de ferro das lojas já estavam baixadas. Alguns sem-teto
tiravam uma pestana ao pé dos flamboyants. Os solitários carros
particulares em circulação pareciam pouco dispostos a pararem.
Alguns raros passantes aceleraram o passo. Uma gaivota fez um
voo rasante sobre a superfície da água oleosa, soltando um lamento
de mulher surrada. O ventou uivou no cordame dos veleiros,
fazendo a driça golpear os mastros. As bandeiras pareciam
arriadas. A borda dos cais tivera sequestrada a animação
espalhafatosa que era a sua própria identidade! Daria até para
dizer que tinha o rosto enrugado de uma velha, o rímel escorrendo
pelos pomos, de tanto chorar e esperar por um jovem amante que
não viria.

Ia-se em direção a um crepúsculo fúnebre como portões


de cemitério, quando então um trio de músicos irrompeu por trás

142
de uma canção popular que Faustino bem conhecia. Um largo
sorriso alumiava o rosto do cantor que arranhava um bandolim
sustentado exatamente à altura do umbigo. Um tamborileiro com
seu instrumento a tiracolo e um percussionista brandindo a
maraca faziam o acompanhamento. Nada mais faltou para que
fossem cercados por uma pequena vintena de pessoas, quase todas
esmolambadas, surgidas sabe-se lá de onde. Um deles logo atacou.
Seus pés gingaram como molas, voltou a pôr-se de pé após
completar uma cambalhota sobre si mesmo. Era o sinal da partida.
Os outros se precipitaram à dança, rivalizando destreza e façanhas
coreográficas.

Nan tout pozisyon m’ap bawou-l


Nan tout direksyon m’ap bawou-l
Zwezo!
Ay, m’ap bawou-l (bis)

Em lúbricas contorções, os corpos imitavam as múltiplas


posições de que falava a canção. Alguns homens dançavam com
ambas as mãos plantadas sobre as nádegas de suas parceiras.
Outros prendiam a nuca com uma mão e com a outra estreitavam
a cintura de suas amazonas. Uma moça acercou-se de Faustino,
nele roçou suas volumosas tetas. Este se contentou em sorrir e
declinou do convite. Ao cabo de um quarto de hora, o grupo de
dançarinos transformou-se num círculo em cujo interior
afrontavam-se dois indivíduos derramando suor em bicas. Seus
ombros executavam espantosa rotação, os braços soltos ao longo
do corpo operavam um balé colubrejante, enquanto os pés,
pregados ao chão, contraíam-se em giro de pião. Os dois
dançarinos caíram juntos por terra, as pernas dobradas às costas.
O tronco foi logo possuído por espasmos rotantes enquanto a
cabeça chacoalhava em solo à direita e à esquerda. Sem parar sua
dança, o pequeno mundaréu aplaudiu com vigor. O olhar
prazenteiro do cantor muito dizia de seu orgulho em trazer um
pouco de alegria a esse austero final de tarde. O rapaz do tamborim,
sempre se deslocando numa coreografia simples de dois passos

143
(um à frente, outro atrás; logo à esquerda e então à direita),
surrava freneticamente seu instrumento. O tocador de maraca
entrou na dança, arqueando-se todo para produzir mais tenência.

Pozisyon kanpe m’ap bawou-l


Pozisyon kouche se pi rèd
Zwezo!
Ay, m’ap bawou-l (bis)

Entretanto, aquilo tudo tinha algo de forçado e um quê de


desencanto. Pareciam autômatos programados para gingar.
Naquela dança, Faustino não percebia um prazer real. Talvez não
estivesse com espírito para tanto, teria dito Maria. Num átimo,
uma batida seca de tambor inseriu uma ruptura na melodia; que
em nada desconsertou os dançantes, os quais pararam
subitamente, com o gesto petrificado e uma das mãos sobre o
quadril. “Ei, maestro! Solte aqui os meus rins.” E o ritmo recomeçou
ainda mais animado, arrastando os participantes de volta ao
batuque. A noite nasceu bruscamente, recobrindo os cais e o mar
com uma capa de trevas. Rajadas esporádicas – explosões de fogos
de artifícios, tiros de armas automáticas? – foram ouvidas a
algumas quadras de distância. Nem sombra de medo se viu
naqueles semblantes.

Faustino recolheu sua trouxa, jogou-a por cima do ombro


e prosseguiu seu caminho. Era preciso encontrar um local para
passar a noite… Como dar a notícia à Maria? Não, era melhor
nada dizer, com as mulheres a menor situação transforma-se muito
rápido em drama. Ela passaria um sermão completo, diria que
fora um erro trocar a caça pela sombra; tinham uma criança
para alimentar, ele precisava aprender a engolir seu orgulho de
macho. Sempre refletindo na eventual reação de sua mulher,
Faustino passeava os olhos por todas as direções procurando a
placa de algum hotelzinho barato… Em última análise, mudou
de opinião: não era hora de gastar dinheiro. Nem mesmo sabia o
que o aguardava. E se os dias à frente fossem ainda mais difíceis?

144
A qualquer preço, era preciso enviar um pouco de dinheiro a Maria
para não despertar suas suspeitas. Ele a avisaria assim que tivesse
arrumado outro bico. À espera, onde é que poderia passar a noite?
Seu olhar encontra, ao longe, a guarita que protegia Cristóvão
Colombo das intempéries. Acelerou o passo. Se ninguém se
encontrasse por ali, a guarita daria um bom abrigo. Lá chegando,
encontrou Tikita contando causos ao Genovês. Segurou o passo,
dizendo: “Merda, que raios esse cara está fazendo aí?” Mas teve
que admitir sua falta de opção. Contornou o navegador, arrumou
sua trouxa no chão feito travesseiro, esticou-se de costas. Dormiria
ali, de frente para o mar. Talvez sonhasse com sua infância em
Buraco-Pardal.

145
II Enxurrada de lágrimas

Desde seu retorno de Yaguana, Faustino já não sai à noite.


Largado sobre uma esteira aberta no chão mesmo, seu pileque
sorvido por falta de álcool, parece um galo decrépito cujo
distanciamento da rinha fez terno e desinteressado pela vida. Por
vezes, levanta-se para dar uma olhadela na cozinha – que é
independente do resto da casa –, nas panelas em que se preparam
as refeições de Ponte-Napoleão e de Dona Condor. Depois volta a
se deitar, desabando, de corpo inteiro, sobre a esteira. Vê-lo assim
tão triste é de partir o coração. Falta-lhe a sua arena: a rua e suas
incessantes atividades; as provocações do bando de Dessalines,
cuja proximidade Ponte-Napoleão proíbe ao garotinho, “se por
acaso eu te pegar com esses meninos vadios!”, ameaça; as
risadinhas de Acef quando o engraxate se debruça para derramar
em seu ouvido palavras que a criança não saberia adivinhar…
Mas ninguém arrisca pôr a ponta dos pés do lado de fora, a partir
da caída da noite. O garotinho imagina que uma colônia de
lobisomens teria invadido Porto-Pinto, chupando, com os olhos
fechados, o sangue dos salbundenses, como se fosse o mero caldo
da cana. Rumores do dia trazem-lhe um fiapo de explicação: um
par de luvas loucas, sem cabeça nem corpo, passeia à noite pela
cidade, nocauteando de morte os passantes em atraso e os
incrédulos. Anos depois, seu bom-senso, que durante muito tempo
frequentou o racionalismo, sempre o faz sorrir dessa versão. Por
que razão Porto-Pinto e seus caçadores da beira mar fogem então
da noite?

Assim que o sol principia a soçobrar no horizonte, a cidade


transforma-se num imenso terreno de corridas. Ocorre, daí, um

147
frenesi inverossímil: as pessoas disparam a galope em todos os
sentidos, quase nem param para se saudarem, súbito esquecendo-
se de suas conversas intermináveis, entrechocam-se, xingam-se e
terminam por trocarem informações sobre o local em que podem
encontrar tal ou qual produto, pois compram tudo que encontram
em seu caminho, para evitarem sair de casa novamente. A senhora
Olivarez, que abriu sua barraca mais cedo do que de costume,
liquida as últimas fatias de batata, de banana e de fruta-pão,
empilha a carne e a louça, e fecha então a porta atrás de si (ao
final, a rainha da noite da beira do cais vai optar por se abster de
suas atividades durante todo esse período). Orfília aponta o nariz
uma última vez pelas grades de sua varanda para suplicar a Pancho
que não pare no caminho e que volte direitinho para junto de sua
esposa; o moço dispara em tromba d’água sem se dar o trabalho
de acenar para Ponte-Napoleão, como é de seu costume. Thibaut
e sua voz rouca fundiram como manteiga ao sol. Leretour? Sumiu
entre os primeiros: mora longe (não fosse por medo de Ponte-
Napoleão, há muito tempo o garotinho o teria seguido para
descobrir onde é que ele se aloja, como, aliás, a maior parte dos
personagens que fazem seus passes no terreno livre em volta da
varanda: coça-lhe a vontade de descobri-los noutro contexto).
Idem para Merlet pai e filho. O Homem-África, ao voltar da escola
em que dava as caras só pelas tardes, já não passa mais para
espicaçar Branquinho, o qual, seja como for, não arrumaria tempo
para tirar sua pestana lá fora. Lorde Harris medita de forma grave
em um canto do pátio há pelo menos uma boa hora… Mais
nenhuma vida ao longo dos cais.
A noite nasce num tal silêncio que, na memória do garoto,
relembra unicamente aquele da quarta-feira de cinzas; quando a
cidade inteira, após a pândega de cinco dias e cinco noites,
resguarda seu estado de júbilo. No presente caso, todavia, o período
de carnaval não voltará antes do próximo ano; entretanto, aquele
silêncio. Uma capa de chumbo sobre as asas da cidade! Quase
nem se veem os cães sarnentos esfregando o focinho pelo meio-
fio ou enterrando-os sob montes de imundice. Até mesmo Tikita-
Maluco, ao ver o sol mergulhando no mar, aperta o passo para

148
retornar sabe lá Deus aonde, deixando Cristóvão Colombo solitário,
à mercê do sal marinho. Sabe ele a razão de seu galope sob o
crepúsculo ou apenas imita as pessoas a seu redor? Apenas a
ressaca ainda ousa perturbar a tranquilidade do início da noite.

Estirado pela metade sobre a esteira, a cabeça descansando


sobre a munheca, Faustino resmunga sozinho sem jamais obter
resposta de Lorde Harris ou de Branquinho. Dona Condor
entreabre a porta para lhe pedir que se cale, senão eu te boto pra
fora como um cachorro. Está reclamando do quê? Você só tem
que dormir, como todos. Contudo, Faustino não está de pileque:
pela enésima vez falou ao garotinho sobre a escola e sobre
Chachoune. Um dia, ele a trará a Porto-Pinto para que prossiga
seus estudos, vai apresentá-la à gente das bordas dos cais. Para
concluir, chamou o garotinho a um canto e deu-lhe alguns
trocados, protegido do olhar de Ponte-Napoleão, que proíbe o
menino de receber dinheiro de quem quer que seja, ainda menos
desses pobres coitados, mesmo que seu neto a tivesse uma vez
surpreendido tomando um empréstimo de Faustino, na semana
que vem eu pago.
Ninguém teve como dar ao molecote uma explicação
satisfatória com relação ao novo ritmo da cidade. A hipótese do
carnaval? Descartada. Juntando-se em bando, se assim o
quisessem, os salbundenses poderiam dar assalto e nocautear as
luvas, capturando-as após desconjuntá-las com alguns ganchos
sólidos e certeiros. Lobisomens sempre existiram e, pelo que saiba
o menino, apenas se ocupam de criancinhas. A temporada dos
ciclones ainda está por chegar… O que mais restaria? Na escola,
onde acreditava poder encontrar a chave do mistério, o garoto
tampouco logrou obter resposta convincente; além de tudo, as
aulas foram rápido suspensas. Assim, tem por vários dias a
oportunidade de observar esse ritual no mínimo insólito que vem
alterar a costumeira indolência do crepúsculo à beira-mar. Todas
as atividades da jornada convergem para esse momento crucial
em que subitamente aceleram-se os passos, erguem-se as vozes,
pipoqueiam os carros no tráfego trôpego, buzinas disparam

149
entravadas para se evitar acidente, exato momento em que se
infla a cidade num imenso clamor para então recair num silêncio
profundo. Sepulcral. Quando as aulas forem retomadas – em
bloco com a vida nas franjas do cais – é para que se assista a uma
bem estranha cerimônia.

Certa tarde, na companhia das outras turmas da escola,


em fila indiana, o garotinho assentou a bússola em direção à praça
dos Ancestrais-da-Pátria. Durante o percurso, os professores, que
geralmente toleram um pouco de balbúrdia em dias de saída,
vituperam ao mais ínfimo sussurro. Puxões de orelha, palmadas
no traseiro, braços cruzam-se automaticamente sobre o peito.
Rápido se escutaria o voo de uma muriçoca a três metros de
distância. À chegada, já se encontram outras crianças no local,
vindas de todo o país salbundense. São agrupadas segundo a ordem
e a disciplina concebidas pelo ministério do Honorável, consoante
altura e origem geográfica. Uniformes completam a tarefa de
distingui-los. Diante da multidão, encontra-se instalado um grande
Arco do Triunfo, no qual as aulas de leitura permitem decifrar,
escrito em letras douradas sobre fundo negro: “Homem rebelde,
lembre-se de que você é pó e perecerá arrastado pela justa ira do
Honorável.”
É nessa praça, bem em frente ao Palácio do Honorável,
que o garoto vê pela primeira vez o enorme cavalheiro em bronze
que balança um machete e sopra uma concha marinha a plenos
pulmões, buscando arrebanhar outros entusiastas à sua causa.
Em um nicho também de bronze, dança a seus pés, chova ou faça
sol, noite e dia, uma chama eterna, como o menino descobrirá
muito mais tarde. Os salbundenses se prazem em contar, Gary
sobretudo, que o fogo emana do pulmão dos demônios com os
quais o Honorável firmou um pacto para poder reter o comando
do país, ele e seu filho, durante pelo menos cem anos. Dizem que
seria o próprio bafo dos capetas que ele alimentaria com caviar
importado de Moscou via Paris, pois nunca se viu em lugar algum
fogo que nunca se apague, exceto aquele que Deus reservou para
vocês no inferno, bando de descrentes, arremeteu tia Vênus. “De

150
qualquer maneira, lança Dessalines, tagarela, o dia em que o
Honorável não mais estiver no poder, irei eu mesmo apagá-lo com
minhas próprias mãos; com uma lavagem de catarro de puta no
cio, de mijo de jumenta e de baba de sapo.” – “Antes disso, sua
anta, você vai ter tempo de sobra pra esticar as canelas, relança
Gary, você está surdo ou não ouviu que eles vão ficar por aí pelo
menos cem anos?”

O garotinho vem relembrando aquela discussão de várias


semanas atrás, e nesse momento uns rapazes parrudos, num total
de sete, são trazidos, mãos atadas por trás das costas. São logo
enfileirados em cima de um estrado de madeira para que a
multidão, espremendo-se sobre o cimento ainda quente do meio
da tarde, possa vê-los. Alto-falantes instalados em quase todos os
lugares -– parapeitos de casas, árvores, topo de postes elétricos -–
reclamam silêncio. Só pela forma. Porque, até então, ninguém
abrira a boca. Nem mesmo um cílio se movera. O Honorável,
tomando o cuidado de se colocar no ronronante campo das
câmeras da televisão estatal, aproxima-se em passos lentos e fala
com voz calma e fanhosa aos rapazes em pé, o olhar vazio. Seu
monólogo ressoa pelas caixas de som. A lição é passada por uma
voz impostada, sem a menor marca de enervamento. “Vocês se
rebelaram contra a vontade soberana de um povo consciente e
adulto, vocês merecem o castigo supremo.”
Mais tarde correu à meia voz o rumor de que um deles
teria cuspido na cara do Honorável, emporcalhando com um
espesso jato de baba as grossas lentes do cegueta. Sempre sem
apartar-se de sua calma, o míope teria mandado que tirassem o
insolente do grupo de condenados. O homem duplamente rebelde
teria sido embarcado em um jipe com placas da corporação dos
chacais-de-óculos. E não mais se teria notícias nem dele nem de
sua família. Alguns dirão que morreu de nostalgia e de frio em
terras de exílio, pois o Venerável nutria uma admiração inconfessa
pelos que ousassem fazer-lhe frente, enquanto detestava os que
formavam o imundo pântano de cortesãos. Outros afirmarão, ao
contrário, que lhe fora reservado um tratamento de choque, digno

151
de seu insulto e de sua desobediência. Durante as sessões de
tortura, o executante, esporadicamente secundado pela Sua
Excelência em pessoa, teria declamado versículos dos Salmos de
Davi, que tratam de vingança e de recompensa por parte de Deus.
Mas isso são detalhes que a criança aprenderá muito mais tarde.
Semelhante incidente não poderia, contudo, impedir o
Honorável de levar ao termo a cerimônia do dia. Ele junta-se ao
pelotão, ajoelha-se (um dos únicos momentos, segundo rumores,
em que se põe de joelhos) e prepara a mira. Disparo simultâneo.
Três breves rajadas, secas, rasgam o véu compacto do silêncio. Os
corpos fazem caretas, rodopiam sobre si mesmos e caem com um
barulho surdo. Um segundo depois, revelando um mecanismo bem
azeitado, inunda os ares uma música das mais intensas horas de
carnaval, em contraste com a imobilidade da praça: “Mache pran
yo, Honorab!” (bis). O cantor fala de conquista irremissível.
Radiante. A multidão se dispersa sem palavra alguma, enquanto
o molecote retoma o caminho da escola. Na companhia de seus
colegas de classe. Os cadáveres ficarão expostos pelo resto da tarde
sobre o asfalto, “para que seu sorriso petrificado sirva de exemplo
àqueles que queiram nutrir, em seu seio, apátridas com propósitos
proibidos”.

De volta à casa, a primeira reação do garotinho é perguntar


à Ponte-Napoleão: “O que foi que fizeram, aqueles moços?” A avó
não responde, mas o menino a ouve rilhar entre os dentes: “Se eu
soubesse que era para uma criança ver algo assim tão horrendo,
não o teria mandado à escola.” O dia posterior ao acontecimento
é feriado, o garoto gasta boas horas passeando o olhar pela
animação timidamente redescoberta à beira-mar. Faustino voltou
a beber e a trovejar que é Faustino I, Negro de Yaguana; o Homem-
África a provocar Branquinho; Thibaut a contar piadas, após suas
debandadas por toda a cidade, às vendedoras de mangas e
guloseimas; Nerélia a perfumar os ares com seu café e seus
biscoitos-bombom, recém chegados da padaria de Marcel; Dona
Olivarez a reaver suas posses noturnas… No entanto, o garotinho
sente como uma tristeza sem nome nas coisas e pessoas ao redor.

152
Mesmo na errância dos cães sarnentos, que aceitam
resignadamente as pedras atiradas pelos cupinchas de Dessalines,
sem se darem ao trabalho de botar sebo nas canelas. Até mesmo
no mar, cujo marulho se esvaiu.
Sentado no 304, o menino sente lágrimas subindo ao olhos,
sem poder segurá-las. Enxurrada de lágrimas. Que ele não
consegue explicar. Nem mesmo as mais ferozes palmadas de Ponte-
Napoleão provocaram assim tão abundantes. Elas percorrem suas
bochechas de guri, rolam sobre o peito, caem sobre as coxas,
chegam ao piso esburacado, abrem caminho por entre as ervas
selvagens que livremente se espalham sob o carro, e concluem
sua jornada na água da valeta. E, como quando se penetra uma
mulher, faz-se de si mesmo mulher, uma só e mesma carne, uma
só e única embarcação febril sulcando o mar aberto do gozo, as
lágrimas do menino tornaram-se água da valeta. Partindo em
direção ao desconhecido. Longe de sua infância.

153
III O dilúvio

Tempo outrora não é tempo hoje, e tempo amanhã é outra


cadência. Quem poderia ter escrito tal sentença? Como se o tempo
não passasse seu tempo nos bisbilhotando. Para nos passar a
rasteira quando chegue a hora. Súbito golpe, ao amanhecer da
vida. Pancada tardia, ao anoitecer, por ter se distraído no caminho.
Vez ou outra, ele nos fisga, depois nos solta, nos deixa saltitar
logo à sua frente e então nos apanha novamente. Com uma
patada. Feito gato e rato. E não é porque um de nós pisou nesse
amontoado de cascalhos que é a lua que o tempo mudaria de
atitude para conosco. Ou porque hoje lancemos foguetes como
chuva de estrelas aos céus que o tempo se mostraria mais
conciliante. Apenas nós mesmos, cabritos sobre duas patas,
mudamos. Sem, todavia, nos tornarmos mais humanos.

Os primeiros cafunés do sol, a brisa marinha, a chegada


estrondosa dos estivadores arrancaram Faustino de seu sono. Ficou
espantado por se encontrar estirado frente ao mar; tateia em torno
de si, o contato rugoso e frio da capa do Genovês terminou de
despertá-lo. Seu espírito emergiu pouco a pouco do torpor
noturno. Tikita já tinha desaparecido. Faustino sentou-se,
encostou-se em Cristóvão Colombo, puxou a seus pés a trouxa
que lhe servira de travesseiro, tentou recompor suas ideias. Que
faria agora? O sol começava a mordiscar a pele. As atividades da
beira dos cais principiavam suavemente: dois pintores arrumaram
suas telas à sombra dos flamboyants; aproveitando-se da ausência
de engarrafamento do início da manhã, carros avançaram a toda
por sobre o asfalto meio destroçado; os sírios subiram os portões

155
gradeados de suas lojas de tecido; faxineiras varriam e aguavam
as calçadas, precavendo o calor de meio-dia…
Como movido por uma súbita intuição, Faustino se pôs de
pé, jogou sua trouxa por sobre os ombros, deu uma rodeada em
volta do chafariz musical, no qual, depois de largar a camisa e
observar de soslaio a ronda do guarda, lavou rapidamente as axilas,
o rosto, gargarejou com um bocado d’água que logo cuspiu sobre
as plantas. Uma vez completo o asseio, com as ideias então mais
claras, aproximou-se de uma quituteira, por desjejum tomou uma
xícara de café e um biscoito-bombom, então pegou a direção do
Brooklyn. Com um pouco de sorte, seu velho camarada da usina
de açúcar de Yaguana ainda viveria por lá. Ou talvez vizinhos do
tempo em que ele lá viveu com Maria. Faustino tinha se prometido
nunca mais retornar a esse bairro. Por nada nesse mundo! Bem,
por mais que juremos, a vida por vezes não nos deixa escolha;
experimenta-se então algo como um profundo dilaceramento
quando renegamos nossa palavra de homem. Feitos São Pedro de
nós mesmos. Naquela manhã, Faustino teve que se render às
evidências: era a única solução caso não mais quisesse continuar
dormindo sob as estrelas. “Além de tudo, justifica-se enquanto se
esquiva de uma changa empurrada por um homem melado de
suor, com estas noites frescas, corro o risco de pegar uma
pneumonia dos infernos.”

Havia muito tempo, alguns anos já, que Faustino não


tornara a pôr os pés no Brooklyn. Bateu-lhe a impressão de que a
situação agravara-se por lá. Os barracos tinham quintuplicado e
espremiam-se uns contra os outros. Algum até arredava-se, em
certos pontos, para ceder passagem ao pedestre que se entranhava
por estreitos corredores escuros e lamacentos. Em vão procura
Faustino por seu antigo companheiro e por vizinhos que conhecera.
Nos arredores, todos chacoalhavam a cabeça de um lado a outro,
com a mesma marca de negação: ninguém jamais ouvira falar
dos nomes mencionados. Súbito, um clarão de esperança. Como
quando um viajante, acossado por um regimento de fantasmas,
vê despontar nos confins da noite um luar tranquilizador. Com o

156
coração zabumbando alardeado, Faustino disparou ao lugar que
lhe fora indicado. Mas se tratava de alguém com o mesmo
sobrenome. Onde estavam todos? Sem dúvida partiram à deriva
rumo a outras misérias. Em desespero de causa, cansados de
remexer quimeras, voltaram ao ponto de partida. Ou quiçá tinham
negociado a última viragem de sua rota de homens. Sem tambor
nem trombeta. Sem que o vento trouxesse qualquer aviso a
Faustino. Não foram forçados a apagar as luzes, pois não as havia.
Talvez nunca as houvera em suas vidas. Tampouco tiveram que
trancar as portas, nada havia a roubar nesses barracos que muito
menos dispunham de porta, contentavam-se com uma prancha
de través na soleira, deixando escapar os mais íntimos rumores e
cochichos. Partiram uns após os outros. Sem deixar endereço ou
recado… Faustino passou o resto do dia girando em círculos. Onde
poderia lançar âncoras? Noite feita e moído de cansaço, aterrissou
naturalmente nas cercanias do cais, saltou por cima do alambrado
do jardim em que se encontrava o chafariz musical, esticou-se
sobre um banco.

Foi no meio da terceira noite que sobreveio o irreparável.


Aquilo que Faustino, em sua perambulação, não havia de forma
alguma previsto, e cujo arrastão iria avizinhá-lo do cais e do
menino. Como um caule de coqueiro arrancado pela raiz e logo
arremessado por um rio em fúria. É certo que, no início da tarde,
ele notara as pesadas nuvens cinzentas que o vento empurrava
em direção ao mar. Houve até um falso alarme que provocou uma
inenarrável quizumba na franja dos molhes e na Avenida do Pai-
Fundador-da-Pátria, os salbundenses sofrendo um pavor medonho
de borrascas e sol. Rápidos como relâmpago, mascates recobriram
seus tabuleiros com lona plástica, pedestres correram em busca
de refúgio sob marquises, carros dispararam para não se
entalarem nos rios em que se transformavam as ruas num piscar
de olhos. Mas tudo durou uns meros fiapos de minutos.
Rapidamente as atividades retomaram seu curso. O sol recuperou
sua soberba. Naquele instante, o vento se embrenhou numa caça
às nuvens que pairavam sobre o mar. Que chovesse noutras

157
margens. Sol com chuva, casamento de viúva. Faustino, com
exceção de algumas informações corriqueiras apanhadas aqui e
ali, não tinha de fato conversado com ninguém nesse dia. Como
ficaria sabendo que a temporada das chuvas estava por chegar e
que começaria naquela noite? Tinha lá cabeça para pensar também
nisso?
Estirado no banco, encontrava-se entregue a um sono
profundo, apesar de suas dúvidas em polvorosa e do desconforto
do catre. Foi então que a primeira gota esborrachou-se em cheio
no seu rosto. Enxugou a fronte com a mão, pensando ter sido
roçado por uma muriçoca ou recebido a cagadela de algum
pássaro que dormisse no galho pendurado sobre o banco. Antes
que se desse conta da realidade, abriu-se o céu com o estrondo de
um trovão, despejando uma tromba d’água sobre a cidade. Na
escuridão do jardim, Faustino não teve outra escapatória senão
sofrer a intensidade da borrasca. Suas roupas encharcaram-se
num nada. Endireitou-se, esticou o pescoço e pôde ver, na fraca
claridade do poste, do que realmente se tratava. Enormes gotas
engatadas umas às outras, formando quase verdadeiros dardos,
caíam verticais. As águas já rugiam nas valetas do meio-fio,
carreando objetos heteróclitos. Relâmpagos zebraram o céu
tonitruante. Ribombo potente, ameaçador. A chuva tamborejava
com força em cima dos bancos, na água do chafariz, sobre as
folhas das plantas que eram vergadas sem piedade alguma.
Faustino tentou cobrir a cabeça com sua trouxa. Uma picada de
mosquito num hipopótamo! Ergueu-se, pulou por cima do
alambrado em busca de uma marquise para se proteger.
Arregaçou as pernas das calças, tirou os sapatos para colocá-los
na bolsa, enfiou os pés na água que, rugindo furiosa, subiu até
seus joelhos. Faustino olhou reto à frente, percebeu uma
construção que talvez dispusesse de um alpendre, atirou-se naquela
direção. Quanto mais caminhava, mais ficava a impressão de que
não chegaria. Deitar um passo após o outro custava-lhe um esforço
sobre-humano. A enxurrada parecia ter drenado rumo ao centro
toda a terra das montanhas calvas que formam o cinturão de
Porto-Pinto. Em certos lugares, seus passos chafurdavam-se na

158
lama. Muito lhe custava manter a rota. Encontrou-se a leste
quando tinha tomado o rumo oposto. “Aguente em pé! Encorajava-
se em voz alta. Em pé, Faustino!” Mas estava distante do fim de
suas penas. A borrasca quis arrancar-lhe das mãos a sacola.
Faustino sentiu a fisgada feroz, a trouxa chacoalhou em suas
costas, mas ele agarrou-se a ela com todas as suas forças. Na
luta, acabou ficando de bunda colada no chão, resistindo firme.
Trazia todos seus pertences entre os dedos, estava fora de cogitação
abandoná-los àquela correnteza, que terminaria por derrubá-lo
para junto das rodas de um carro, estacionado de viés no meio da
rua. Sem dúvida trazido pelo dilúvio. Nele agarrou-se Faustino
para retomar fôlego.
As comportas do céu, com a mesma gana, prosseguiam
despejando. Já não havia pessoa alguma na rua. Nem mesmo um
gato! Ao rés da enxurrada, Faustino viu passarem pneus usados,
velhas cadeiras desempalhadas, penicos, troncos de árvore… Os
seixos urravam por baixo do aguaceiro. A cidade inteira estava
abandonada à chuva e à fúria das águas que desciam das
montanhas. Faustino retomou a direção da marquise, travando
combate com semelhante fúria. A enxurrada mais uma vez o
lançou por terra, o nariz na carcaça de um cachorro morto. Por
sorte, a água tinha atenuado a podridão. Lutou com hombridade,
levantou-se, a trouxa sempre entre as mãos. Ao final de uma meia
hora de combate tenaz, mais lhe parecendo a própria eternidade,
atingiu um dos pilares que sustentavam o alpendre. Agarrou-se
nele, após arremessar a trouxa num canto protegido. “Um pouco
mais de esforço, sussurrou para si mesmo. Mostre que você não
usa calças só pela beleza do pano. Você é um homem, Faustino!
Um homem.” Sempre falando de si para consigo, varou o último
trecho e recuperou plenos sentidos na escadaria que dava acesso
à entrada de uma loja. Nem mesmo tinha como se enxugar. Passou
a mão sobre o rosto para clarear a visão, sentiu um gosto salgado
na boca: teria chorado?
O alpendre também transbordava de água, mas lá, pelo
menos, não receberia o céu diretamente sobre o cocuruto. Faustino
preparava-se para enfiar a mão na sacola em busca de roupas

159
menos encharcadas, pelo menos assim o esperava, quando um
estranho formigamento o forçou a suspender o ato. Virou-se para
a luz do poste. Um extenso talho na planta do pé direito urinava
sangue. Cerrou os dentes, rasgou uma tira de pano e cobriu a
ferida. Sentou-se novamente, aturdido, esquecendo-se de trocar
a roupa. Recordou-se de sua infância em Buraco-Pardal quando,
na companhia de seus camaradas, suplicava aos céus numa
canção dilacerante: “Chuva, chuva, caia com força! Vem ganhar
baba-de-moça. Chuva, chuva, caia com força! Vem ganhar baba-
de-moça.” O que não daria Faustino, naquela noite, para conseguir
interrompê-la! Amarrá-la talvez com uma colher de café de prata
e um grão de sal, tal como várias vezes ouvira em sua juventude.

A chuva caiu dez dias seguidos sobre a cidade, embargando


toda atividade na proximidade das docas. Suspendendo o curso
da vida como fez Josué ao sol. Mesmo atenuando em intensidade,
nem por isso deixou de impedir os alunos de irem à escola, os
empregados a seus escritórios, os lojistas de abrirem suas casas
de comércio – de qualquer forma, cliente algum teria aparecido –
, e os camelôs de espalharem suas tralhas. Uma interminável
brincadeira de esconde-esconde, a chuva com certeza vencendo o
bom tempo. Por alguns trocados, os mais espertos ou desesperados
atravessavam sobre os ombros as raras pessoas que colocaram o
nariz para fora de casa e tinham medo de estragar os sapatos. Por
vezes, viam-se alguns imobilizados no meio da rua, espremidos
entre os esguichos levantados por dois carros que nem mesmo se
davam o trabalho de reduzir a velocidade. Foi nesse período que
Faustino descobriu as virtudes da pinga. Assim que começava de
fato a anoitecer – fazia quase noite em pleno dia –, caçava um
boteco, despachava goela abaixo duas ou três biritas que o
aqueciam para as noites frescas embaixo de marquises úmidas,
ao mesmo tempo em que enganavam os repuxos da fome e o
arrancavam da mórbida contemplação de sua condição.
Naquela tarde, aproveitando-se de um momento de
calmaria da chuva, Faustino caminhou até se esvair, oferecendo
seus préstimos de porta em porta, rodando em círculos tal qual

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um cachorro tentando coçar o próprio traseiro com os dentes…
Já estava sem quase um tostão no bolso, restava apenas a soma
exata para pagar a birita noturna e mordiscar qualquer coisa uma
vez por dia, a fim de aguentar o maior tempo possível. Teria para
no máximo uma semana, segundo suas últimas contas. Em sua
trajetória circular, Faustino abeirava-se do cais. Surpreendido pelo
redobro da intensidade da borrasca, lançou uma rápida espiadela
em torno de si e deu-se conta de que tinha se afastado das
marquises das grandes lojas. Súbito, a enxurrada tomou posse da
rua, roncando como um peão gigante, pronta para arrastar tudo
que encontrasse pelo caminho. Onde se abrigar? O pardalense,
num picar de olhos, correu para se refugiar junto à varanda em
que Ponte-Napoleão, bem instalada numa cadeira de balanço,
olhava a chuva caindo. Mas ele não ousou subir os degraus que
levavam a ela, por medo de ser rechaçado por aquela senhora
cujo rosto, por assim dizer, não transpirava uma simpatia lá muito
exuberante. Meio protegido pelo beiral do telhado, tentou fazer-
se miúdo. Chamar o menos possível a atenção sobre si. Apesar da
posição no mínimo desconfortável: contorcendo-se numa flexão
de ginasta empoleirado sobre a mureta, seu torso estava seco,
enquanto as pernas e os pés recebiam toda a água despejada pelo
telhado de chapa ondulada. Entretanto, ao ver a sacola e o rosto
de Faustino, que lhe inspirou confiança – não teria sido sua
primeira aposta tresloucada –, Ponte-Napoleão o fez passar para
o quintal: “Você vai dormir na cozinha enquanto estiver chovendo.
Mais tarde trago um lençol velho.” Ela ainda acrescentou, com
aspereza: “Você não tem nada que me agradecer.” “– Claro que
tenho, minha tia. Claro que tenho”, respondeu Faustino.

Sem que o yaguanês tivesse pedido o que quer que fosse e


sem que pudesse recusar, Ponte-Napoleão abriu-lhe uma conta
fiada, você paga no final do mês, na quitanda de Nerélia. A
quituteira despontava tão logo cantasse o galo de dona Condor, e
pela manhã servia ao rapaz uma taça de café fumegante e dois
biscoitinhos-facão. Nos primeiros dias, provia-lhe a comida do
almoço, que era devorada com apetite de galé faminto. Pela noite,

161
Faustino molhava a garganta às escondidas, com duas ou três
pingas, em pé junto ao balcão do “Rela-rela atrás do cajueiro”, e
rapidamente tomava o rumo de casa para dormir. Compensava o
melhor que pudesse, aliviando Ponte-Napoleão de algumas fainas
que ela nem mesmo havia mencionado, substituindo tia Luciana
na tarefa de levar Jeová à escola, prestando serventia junto à dona
Condor – que por sorte vivia então em perfeito idílio com sua irmã
e dispensava Faustino de tomar partido… Com a temporada das
chuvas prestes a terminar, ele espreitava ansioso o momento em
que Ponte-Napoleão lhe entregaria o convite para levantar
acampamento. Assim que esta lhe dirigia a palavra, seu pulso
disparava a galope, acelerava como uma agulha estropiada de
relógio, podendo-se ouvi-lo a três metros de distância.
Certa tarde, foi por um outro motivo que Ponte-Napoleão
o abordou: “Você entende de tijolo e cimento?”, perguntou. Durou
duas semanas o trabalho de restauração do quinto andar da escola
de mestre Jacques, para o qual foi contratado com salário, mesmo
estando disposto a trabalhar de graça. Graças ao dinheiro recebido,
adquiriu o material necessário, fabricou ele mesmo sua caixa e
lançou-se no ofício de engraxate, tal como vira fazendo Merlet e
Lorde Harris. “Se esse umbigudo pode, por que não eu?”, pensou
enquanto observava este último debruçado sobre sua faina, ainda
que por ele nunca venha a sentir a menor simpatia.

162
IV A lição de história

Faustino atravessou a rua com um passo apressado e


seguro, tomou o rumo oposto ao boteco “Rela-rela atrás do
cajueiro”, sem nem olhar para Asefi ou se importar com as chacotas
da gangue de Dessalines. O dia estava entre cão e lobo. Faustino
tinha um ar febril, como alguém que se preparasse para penetrar
um lugar proibido. Transgredir um tabu. Em resumo, consumar
um ato repreensível. Um punhado de travessuras ensinou ao
garotinho que não há outro método: é preciso atirar-se de supetão.
Sem firulas. Ou então, babau. Daí o nervosismo do engraxate.
Sem nem mesmo ter bebido. Com exceção do período de Páscoa,
consagrado à visita de sua família, esse é o único momento em
que faz da abstinência uma higiene de vida. Nesse caso específico,
ao garoto de nada serve continuar encarniçado no retrovisor. Salta
do carro, fecha rápido a porta, precipita-se no encalço de Faustino.
Depois de ter certeza, entenda-se, de que Ponte-Napoleão encontra-
se dentro de casa, salmodiando mais do que lendo o Apocalipse,
com o indicador apontando ameaças para a foto do Honorável. O
menino desliza atrás do yaguanês, com a mesma ginga rápida e
aveludada.
Faustino varre a rua com um derradeiro olhar furtivo,
antes de empurrar o portão de madeira quase completamente
desengonçado que dá passagem ao pátio de mestre Jacques… O
garotinho nunca entendeu como tal pessoa poderia viver nessa
velha casa colonial de madeira quando é o diretor de uma tão
grande escola. São cinco andares bem emparedados, salas sem
fim interligando-se por corredores que, duas vezes por mês,
desalinham seu senso de orientação, naquelas ocasiões em que o

163
irmão de Ponte-Napoleão abre a escola aos quatro ventos para o
desencardimento, segundo gosta de dizer. O garotinho sempre
aproveita essa oportunidade para, tendo escapado da vigilância
de sua avó, escalar de quatro em quatro os degraus que levam ao
quinto andar. Chegando esbaforido ao ponto mais alto do edifício,
encosta-se à balaustrada e observa a vida dos molhes com um
certo distanciamento: as vendedoras ambulantes, cujas mangas
parecem pontos amarelados; os amendoins, em montinhos
ridículos e indefiníveis; os estivadores, formigas carregando pedras
flácidas às costas; os veleiros ao longe, pequenos como os que se
veem nas telas dos pintores espalhados aos pés de Cristóvão
Colombo; o mar que se doura ao sol – o único que, estranhamente,
parece próximo; bastaria, pensa o menino, esticar a mão para
tocá-lo; a multidão em rebuliço, os carros… Tudo tão pequeno!
Apenas lamenta não poder sinalizar aos berros sua presença,
oferecendo-se à contemplação de todos. Dominando, enfim. Certa
vez, tentou fazê-lo, mas Ponte-Napoleão também o ouviu e suas
nádegas pagaram o pato. “O que estava fazendo lá em cima? E se
tivesse caído?” Desde então, contenta-se com essa silenciosa
observação que, ao fim das contas, paga sua alegria prazenteira.

Mestre Jacques não parece nem um pouco contrariado pela


repentina visita e os faz entrar em um estreito escritório que
ameaça desabar sob os livros amontoados aqui e acolá, numa
desordem pós-diluviana. A poeira disputa lugar com as obras,
algumas das quais se alinham em fila indiana sobre as prateleiras.
Ocasionalmente, marcas de mão desmancham a poenta
uniformidade esbranquiçada, como se um malicioso moleque
tivesse se divertido em aí gravar sua assinatura. Mestre Jacques
coloca no chão os livros que se encontravam entronizados sobre
as cadeiras de palha, fazendo levantar-se uma nuvem de pó. Coloca
os assentos à disposição de ambos e instala-se, por sua vez, numa
cadeira de balanço. Joga os ombros e imprime um movimento à
cadeira, que o acolhe numa lenta oscilação. “Será preciso
organizar tudo isso um dia”, suspira o diretor, que tem a aparência
de um ancião por causa de seus cabelos três quartos

164
embranquecidos e de pelos grisalhos brotando pela orelha. Antes
mesmo que os convidados anunciassem o assunto da visita, ele
mete a cabeça pelo vão da porta e lança: “Amália! Passe um bom
café!”

Por solicitação de Faustino, mestre Jacques


esporadicamente os reúne em seu escritório para inteirá-los da
história de Salbunda. Uma conversação ao sabor dos ventos, no
rumo da curiosidade deles ou da inspiração do momento. Bem,
que se faça a verdade e que se diga como tudo teve início… Certa
noite em que os feriados de Páscoa tinham já se tornado mera
recordação nas lembranças do menino, Faustino, meio de pileque,
palmilhava em toda sua extensão a artéria principal do bairro,
mas com passadas curtas, como era de seu costume, fato que
sempre levava mestre Jacques a declamar: “Veja nossa marcha,
somos da infantaria. / Sempre avançamos um passo a cada dia.”
Chegando ao meio do cruzamento, no ponto exato em que as
quatro ruas se confundem, o yaguanês matracou os peitos e
lançou um trovejante: “Eu, Faustino I, negro de Yaguana”, logo
seguido de uma canção com ares marciais, pontuada por largas
gargalhadas. Seu estardalhaço espraiou-se por todas as casas cujas
portas e janelas encontravam-se abertas para combater o calor
provocado por uma chuvarada tão súbita quanto breve. Imerso
na preparação de seus boletins escolares, como já dissera a quem
fosse capaz de escutar, o irmão de Ponte-Napoleão não conseguia
a necessária concentração. Agastado, saiu e interpelou o engraxate
a respeito do nome que ele brandia acima e abaixo. Ficou
espantado ao ouvir o yaguanês não apenas responder à questão
com uma facilidade evidente, “um megalômano tirano do século
XIX que conduzia os salbundenses na ponta da baioneta”, mas
também lançar-lhe em troco uma interrogação que chamava à
réplica imediata. Mestre Jacques sorriu e relevou o desafio que
Faustino, a bem dizer, tinha proposto por pura fanfarronice: o
peso pena que ele era não teria dado nem para o cheiro em face
daquele peso superpesado, ao qual toda a beira-mar atribuía
ardentes aventuras com a debochada Thibaut. Desde logo, o

165
Homem-África, junto com seus acólitos reunidos à velocidade do
relâmpago para assistirem o enfrentamento, esforçaram-se em
relembrar-lhes os fatos. Mas o combate, do qual toda a beira-mar
teria provavelmente falado durante dias a fio, não se celebrou.
Olhando do alto o populacho e desdenhando mestre Jacques,
Faustino I ganhou a estrada, carreado pelos vapores do álcool e
por sua enxurrada de palavras: “De ferro! Tenho calças de ferro!”
“Respeite o vosmecê, pequeno insolente…”
Desde aquela tardinha, o diretor da escola tomou-se de
xodós pelo engraxate. Encontram-se tão logo o irmão de Ponte-
Napoleão disponha de tempo livre. Há uma única condição para
essas tertúlias: Faustino nada poderá ter bebido. Posteriormente,
tomando como convite o zumbido de vozes que chega a seus
ouvidos, o menino criará o hábito de participar do conciliábulo,
abastecendo-se com informações sobre a história de Salbunda e
do rosário de ilhas circunvizinhas, sempre mais instigantes que as
lições dispensadas em sala de aula: o suposto amante de Thibaut
acrescenta umas pitadas de fantasia que o garoto não encontra
nas preleções de seu professor.

“Acomodem-se, vou lhes contar duas ou três coisas desta


terra em que vivemos”, propõe mestre Jacques, tomando ares de
inspiração enquanto solta uma risada curta como quinhão de
tosse… “Comecemos pelo começo, já que um dia todos os países
foram levados à pia de batismo, não é?” (Seu tique amiúde lhe
permite verificar se os ouvintes estão seguindo o discurso...).
“Quando os Ciboney, os Arauaque e os Caribe empurraram a
porteira do horizonte e atravessaram a estreita faixa de terra que
liga as duas grandes partes do continente, tiveram vontade de
entender este rosário de ilhas que Uragano, cuja fúria punha em
convulsão as próprias entranhas do mar, comprazia-se
malignamente em sacudir durante longas temporadas. Como se
fora um reles coqueiro. O senhor dos vendavais residia, e ainda
reside, no fundo do oceano, em um perímetro delimitado por
Boriquen, pelas Bermudas e pela ponta oriental da grande terra
que avança sobre o Golfo de Yucatán. Um certo dia, sem que se

166
soubesse o porquê, Uragano entrou numa tal cólera que passou a
emborcar as canoas como se fossem beiju de tapioca, e os frágeis
esquifes davam piruetas sobre as ondas antes de desabarem
destroçados. Transformados em meras lascas de madeira. Sua
fúria assolou as costas, levantou a areia das praias para delas
fazer cortinas de granizo, arrancou palmeiras, derrubou
gigantescos cedros… Seu possante sopro, que chegou até o interior
das terras, provocou danos indescritíveis. Os insulares, arauaques,
caribes, tainos e ciboneys, abrigaram-se da melhor forma possível.
Por não poderem proteger-se em suas ajupás, que desmoronavam
feito fetos de palha, escavaram poços de mais de dois metros de
profundidade nos quais metia-se toda uma fieira de gente, duas a
três famílias inteiras, pensando estarem seguras. Então, das
profundezas marinhas em que se encontrava, o deus louco reuniu
inúmeras e pesadas nuvens de chuva, rebentando-as por cima
das ilhas. Trombas d’água se despejaram sobre Madinina,
Quisqueya – o outro nome de Babeque –, incharam rios e riachos
que transbordaram e arrastaram em sua correnteza, além de
animais selvagens e troncos de árvore, as famílias que haviam se
refugiado nos poços. Depois, durante meses, até mesmo anos,
Uragano não mais deu sinal de vida. Encolheu-se no fundo das
águas, apagou até mesmo sua existência. Alguns ousaram pensar
que morrera. Só não contaram com a crueldade maligna de
Uragano, que não tardou a relembrá-los de sua fúria. Esperou
que os habitantes de Salbunda e de Babeque, por então uma só e
única terra, aventurassem suas canoas sobre o mar liso e turquesa,
tal como as águas sabem ser somente nessa região do mundo. No
momento em que pensavam regressar tranquilamente, tendo
sondado os mais ínfimos sinais de cólera do senhor das
tempestades, o mar abria-se e subitamente os aspirava, corpos e
pertences, não deixando traço algum de sua passagem sobre a
terra. É dessa época que datam os ciclones, cujas manifestações
vocês já conhecem. Ainda hoje, esse fenômeno desafia os mais
brilhantes sábios do planeta. Cientistas ianques, vindos há não
muito tempo para arrancarem ao mar seus segredos, foram

167
tragados da mesma maneira. Depois que desapareceram, o avião
utilizado para as buscas sofreu o mesmo destino.”

O amante de Thibaut muito falou naquele dia. Percorreu a


história da ilha, mencionou a cacique Flor de Ouro, senhora dos
dias e das noites de Xaraguá. Aquela que subjugava seus súditos
por sua beleza, sua suave autoridade, e acabou sendo queimada
viva pelos espanhóis, amarrada a uma cruz. Faustino sempre
experimenta um especial prazer quando ouve falar em Flor de
Ouro: ela era nativa de Yaguana. Intervém: “Foi ela quem nos
legou nossa valentia…” Mestre Jacques corta-lhe a palavra e evoca
o extermínio dos Taino, os milhões de negros mortos em alto mar
durante a travessia, o povoamento pela escravidão… Três séculos
de abundância para as metrópoles europeias! E depois, o silêncio,
um grande silêncio como se a Europa inteira estivesse em surto
de amnésia. E todo esse tempo desperdiçado com os sobressaltos
de lutas intestinas, com a ocupação estrangeira. Até o advento do
Honorável.

Depois da lição, mestre Jacques serve ao menino um copo


de suco de laranja e a Faustino um gole de conhaque, que o deixará
ganindo pelo resto da noite: suporta mal essa bebida vinda de
além-mares. Por seu lado, o garoto saiu da sessão com os miolos
pesando feito cabaça. Sem dúvida, terá algumas braçadas de
vantagem sobre os colegas de sala. Sobretudo nos exames de fim
de ano escolar, que não tardam (o mês de junho chegou sem fazer
bulhas, trazendo consigo as borboletas que o menino persegue
incansavelmente no recreio). Contudo, sempre se pergunta por
que razão mestre Jacques para invariável e precisamente defronte
à porta do reino do Honorável. Por que não explica os motivos
que o levaram a fuzilar os “bandidos”? Por que traz aquele uma
voz nasalizada de zumbi e grossos óculos de míope? Amam-no
tanto assim, os salbundenses, a ponto de colocarem sua foto por
todos os lugares, em suas salas de visita, nas salas de aula, na
charrete de Leretour…? A quem poderia fazer essas perguntas?
Apesar de ter pouca simpatia por Diabo-Baká e pelo Chacal-de-
Óculos, com certeza Ponte-Napoleão não ficaria contente em saber

168
que seu irmão faz brotarem interrogações tão malsãs na cabeça
da criança. Faustino, por sua vez, nada sabe a mais que o menino.
Talvez até mesmo nada saiba a mais sobre sua própria história de
homem, pensa consigo o garoto prestes a adormecer.

Talvez muito mais tarde o garotinho possa tudo


compreender. Disse Eclesiastes: há um tempo para cada coisa. Um
tempo para ranger os dentes, feito uma porta com charneiras mal
engraxadas. Um tempo para chorar os mortos. E quiçá os vivos
que se encontram mais mortos que os mortos embaixo da terra,
porque nasceram mortos e jamais conheceram a vida. Mas essa é
uma outra história. E então o tempo do aprendizado. O mais longo.
Porque ocupa a vida toda. Há também o tempo da memória. Ora
lento, ora fulgurante. A única, em todo caso, capaz de rivalizar
com o Tempo.

169
V A partida

O odor o fisga pela garganta assim que ele abre a porta do


carro. Como se dezenas de cadáveres em putrefação tivessem
desabotoado o intestino e deixado a sua pestilência invadir os ares.
O garotinho tem a impressão de sufocar. Nenhuma saída de
emergência. Está encurralado. Prisioneiro do fedor. Que lhe
comprime o tórax. Que lhe provoca náuseas. Tem só o reflexo de
fechar com força a porta. Apenas o tempo para inclinar-se à frente,
segurando a maçaneta com ambas as mãos. O vômito cai no chão,
salpicando-lhe os dois rompe-ferro, como Ponte-Napoleão chama
as botinas que ela comprou no início das aulas e que lhe permitem
chutar pedregulhos do tamanho de seu punho… Todas suas tripas
saem pela boca, nada mais lhe resta. O estômago vazio. Leve…
Olha através do vidro. Nem precisa procurar muito tempo a origem
do cheiro podre.
Eles estão entronizados no lugar do motorista, disputando
quem tem o maior calibre. Um ascarídeo, tão comprido quanto
três vezes o seu dedo indicador, perpassa de lado a lado um dos
toletes de bosta. Parecendo falos em ereção. Rígidos, levemente
ressecados pelo ar ambiente e pelo sol da manhã. Volumosos. Como
saíram do toba de um ser humano? Moscas, provavelmente vindas
pelo buraco do piso – à noite, o garotinho sempre deixa os vidros
levantados –, perdem-se no zum-zum de piruetas em torno deles,
dançando a coreografia da fartura, súbito mergulhando de ponta
na porção, para então subir e retomar a sarabanda. Mesmo com
a porta fechada, o fedor ainda lhe causa ânsia de vômito. É como
se, de uma única baforada, a pestilência tivesse grudado em sua
camisa. Em seu rosto. Em sua pele. Como a lama nos leitões…

171
Desembesta para o quintal, aproxima-se do tanque livrando-se
das roupas, pede à Iota – espantada com tal acontecimento em
pleno dia, logo ele que tem horror à ducha fria – que esfregue
muito sabonete em seu corpo. Chora de raiva enquanto a moça
despeja água em sua cabeça. “O que aconteceu, de onde veio essa
nojeira?”, indaga Iota, virando o nariz com cara de asco. O
garotinho nada responde, afogado em cólera. Não teria como
explicar. Justamente naquele momento em que a vida encontra-
se pronta para uma reviravolta! Para mudar de cenário!

Desde uma semana, ou mais exatamente desde o início


das férias, fala-se apenas disso: vão trocar esse bairro por outro.
Custa ao garotinho imaginar esse novo lugar. Sem dúvida, recusa-
se a tanto. Para ele, o mundo começa e termina nas docas. O
bairro da escola? Resume-se à sala de aula, ao pátio de recreação,
aos colegas, aos ambulantes que vendem pastéis, amendoim,
frutas e guloseimas por entre os vãos do gradil. Todo o resto nada
mais merece do que rápidas espiadelas ao longo do percurso
efetuado quase todos os dias na companhia de Faustino, sem
qualquer andança a esmo. Essa parte da cidade interessa-lhe menos
ainda pelo fato de que foi nos arredores que ele viu os homens
rodopiando sobre si mesmos antes de desmoronarem em cima do
asfalto, a boca cheia de sangue. Em compensação, a beira-mar
representa, a seus olhos, o inteiro mundo das coisas, o alfa e o
ômega, o yin e o yang…
Vá lá então imaginar um bairro em que não haverá, com
certeza, uma vendedora ambulante que acredita piamente poder
realizar milagres com um mero toque de suas mãos – em todo
caso, o único por ela realizado até então limita-se a balas e
suculentas mangas entregues ao menino, a quem basta apenas
levantar o dedinho; um bairro sem Leretour que, apesar da notória
pão-durice, deixa-lhe um restinho de xarope de frutas no fundo
da lata, ao arrepio de Ponte-Napoleão; sem Lorde Harris, cujo
umbigo, em constante luta com os botões da camisa, arrancaria
gargalhadas até mesmo num curso de catequese; sem Merlet pai
e filho para engraxar-lhe os sapatos “que estão realmente sujos
essa manhã, vem aqui, grande neguinho, onde foi que você

172
recolheu tanta poeira?”, desdizendo que Porto-Pinto faz jus a seu
nome; sem Branquinho que fica vermelho-pimentão assim que
começa a encher a cara; sem tampouco Nerélia que impregnará
a aurora com o aroma de seu café fumegante e atrairá a atenção
dos madrugadores; nem Thibaut para se acocorar com as pernas
entreabertas e sua voz rouca, distribuindo piadas obscenas do
despontar do crepúsculo até a noite escura; nem Pancho e Orfília
concentrando a atenção de todo o bairro quando ele tira sua sesta
e ela o abana amorosamente, sem olhos para os meros mortais;
sem Dessalines, aliás Homem-África, e seus acólitos, para
despejarem chistes aos quatro ventos e perguntarem a Branquinho
porque você tem cara de tomatinho cereja; sem Jeová para parir
mentiras capazes de fazer um morto revirar em sua tumba; sem
Gary para falar de filmes ingleses e metafísica (uma palavra que
o menino nunca compreendeu); sem o diretor para, em sua
admirativa presença, folhear as páginas gloriosas da história
salbundense, fazendo dele um guri mais desperto que seus colegas
de sala; sem o padeiro com as três mulheres vindas do longínquo
Egito unicamente para seu prazer; sem o Chacal-de-Óculos para
se fazer lustrar a sola dos sapatos antes de metê-las na lama alguns
passos adiante; sem Iaiá Vênus para deixá-lo escolher na sopa os
melhores pedaços, quando os Tigres de papel levaram uma lavada;
muito menos sem tia Luciana para censurar Ponte-Napoleão por
ter sangue ruim e só frequentar pessoas pouco recomendáveis…;
sem a varanda, onde o menino, ao cair da noite, poderá pescar a
lua e as estrelas, a ginga lenta dos passantes, o banzeiro defronte
ao tabuleiro de dona Olivarez; nem a escola de cinco andares
para em seu topo tomar distância sobre o mundo; nem a borda
dos cais com seus flamboyants de flores vermelhas feito açucenas,
seus louros brancos, suas melissas perfumando o anoitecer, os
lancinantes rumores do mar. Não haverá Faustino para tomá-lo
pela mão e contar-lhe mil e uma histórias a caminho da escola,
para acalantar um galo e com ele travar conversas de gente
grande, para animar a quietude da noite com seus gritos que não
espantam nem cães sarnentos, pondo-a de bom humor nos dias
em que as nuvens sombrias encobrem seu rosto (desta vez, é ele

173
que, adossado à balaustrada, espalha fedor de azedume e pinga
num raio de dez metros). Não mais haverá a velha perua Peugeot
304 bege de onde observará o mundo pelo retrovisor.

O garotinho passou a semana arrolando em sua alma os


tesouros todos que vai perder. O que poderá acrescentar-lhe esse
novo bairro, essa nova casa, que já não encontre nas cercanias
das docas? Ponte-Napoleão visitou o lugar e anuncia aos borbotões
que é muito bonito, melhor do que aqui, de qualquer forma,
teremos mais espaço. Mas seu neto suspeita que está vendendo
gato por lebre. Que suas palavras buscam reacender a chama da
vida que nele está quase extinta. Já nada come. Menos ainda na
presença dela, esperando assim fazê-la mudar de ideia. A balança
ainda pode pender a seu favor, acredita. Mesmo que de corpo e
alma esteja mergulhado em alguma brincadeira, que rodopie forte
um peão para fazer a mudança sair brevemente de seu espírito,
assim que ouve os passos da avó adota ares carrancudos e procura
desesperadamente lágrimas de crocodilo que não vêm. Ponte-
Napoleão permanece tão inabalável quanto a fortaleza imponente
que ele visitou com a escola.
Dia após dia, os móveis vão se amontoando num canto,
cobertos por lonas de plástico. Faustino é o mestre de obras da
mudança, acompanhado por Lorde Harris, ao qual destrata a cada
indício de falta de habilidade. Pela primeira vez, o yaguanês parece
austero. Logo ele, tão opulento! Que tanto gosta de baderna,
debochar de si mesmo, caçoar dos outros. Até seus porres ficam
mais sisudos. Noite feita, parece ainda mais bêbado. Plantado bem
no meio do cruzamento, solta grunhidos de besta ferida, sem
energia para urrar: “Eu, Faustino I, negro de Yaguana!” O
garotinho já perdeu as contas de seus vai-e-vem ao balcão do
“Rela-rela atrás do cajueiro”. Na véspera da partida, virou tantas
e tão bem que, ao final, Boss Manno recusou-se a servi-lo. Logo se
seguindo uma áspera discussão. O garotinho ouviu o dono do
boteco sendo tratado de Chacal-de-Óculos, não estou pedindo pra
fazer fiado, pago na bucha. “Vá para casa dormir, Faustino. Você
não sabe o que está dizendo.” O bebum deu um murro no balcão

174
(garrafas rodopiaram) e partiu cambaleante. Se por acaso alguém
se aproxima demais, Dessalines ou um de seus comparsas, desperta
uma violência sem limites. Já não faz de conta que corre atrás da
pessoa, parte realmente em seu encalço, desaba no meio do
caminho, levanta-se, cata uma pedra para atirá-la com raiva, xinga
mãe, esposa, amantes, irmãs, avós, tias, primas, a futura prole
feminina… Thibaut intervém: “Que bicho te mordeu, Faustino?
Então agora está com a boca mais suja que a minha? É dor de
amor? Melhor não se deixar enrolar por Asefi, hein!” Até ao galo
mostra-se indiferente. O menino é a única pessoa cuja companhia
procura, fala-lhe sobre sua Chachoune com um brilho triste nos
olhos. “Vou apresentá-la a vocês onde quer que estejam. Até agora
não tive como. Mas vou. Prometo.” Também pela primeira vez, o
garoto recusa os trocados que lhe oferece: “Não, Faustino. Minha
avó está olhando.” O yaguanês está bêbado demais para dar-se
conta da ausência de Ponte-Napoleão. E o menino, por sua vez,
precisa de coisas outras que não dinheiro. Simplesmente deseja
que o engraxate possa vir com eles.

O sol tritura a cidade com brasas ardentes. Ondas de calor


reverberam do asfalto. Ao longe, pessoas parecem flutuar,
caminhando envoltas num estranho halo feito de cintilações e
camadas de poluição. Se não for, por acaso, a primeira miragem
dos despossuídos. As atividades da beira-mar não interromperam
todavia seu curso. O perímetro em torno da varanda está entregue
a suas ocupações de formiga atarefada, insensível à iminente
partida do garoto. Ele lança um olhar ao 304… Que choque! Uma
sensação de cova estreita toma-lhe a alma. Seu coração dispara.
O sacrilégio da noite precedente emerge à superfície. Projeta-se
sobre a multidão como se fosse uma tela gigante. O bandido – só
podia ser um homem – abrindo a porta, baixando suas calças
protegido pela escuridão, os dois pés sobre o banco do passageiro
e as veias da têmpora quase explodindo, despejando as duas
enormes toras de bosta que o menino vai encontrar. Com as tripas

175
aliviadas, levanta-se depois de limpar os fundilhos com um tufo
de palha arrancado do estofado... Como castigá-lo?
O garotinho esgaravata o problema em sua cabeça, durante
boa parte da tarde, sem topar com uma resposta satisfatória.
Súbito, uma luz! A alguns metros dali, Jão-Caranguejo suava
debaixo do sol, conduzido por seus passos oblíquos. Uma antiga
discussão entre o Homem-África e Jeová veio à lembrança do
menino. É isso que merece o profanador. Logo logo vai se
arrepender de seu ato: andará como caranguejo. Mas para
queimar o excremento do velhaco, fazendo com que seu ânus
vire do avesso, igual meia velha, não corre ele o risco de tacar
fogo no carro? O assunto trota em seus miolos, enquanto Faustino
e Lorde Harris acomodam os móveis nos dois tuque-tuques
estacionados na frente da varanda. É preciso levar a ameaça a
cabo. Primeiro encontrar um fósforo, o que não é o mais difícil –
mas onde arranjar o álcool? A mulher do filho de Iaiá Vênus, aquele
que joga nos Tigres! Uma enfermeira sempre dispõe de uma
batelada de coisas. Além do mais, ela gosta à beça do menino,
como lhe prova amiúde ao empanturrá-lo com doces, na ausência
de Ponte-Napoleão. Chega inclusive a imaginá-lo como Honorável
da República, quando ele crescer; o garoto tem uma cabeça
enorme, sinônimo de inteligência, grande demais para não fazê-
lo presidente. É tudo o que merece o profanador, repete-se o
menino. Fazer uma dessa precisamente no dia em que o guri está
de partida para um mundo desconhecido, carregando seus medos,
sua pouca sabença, seus mistérios, tantas coisas que, por ora, são
no mínimo insignificantes.

Em pé na varanda, o garotinho ainda rumina sua vingança


quando Ponte-Napoleão vem tomá-lo pela mão para que ele vá se
despedir do bairro antes de partir. Atravessa a rua em direção à
casa de Orfília, cuja sala vê pela primeira vez; toca os livros com
encadernação dourada no escritório do diretor, que o presenteia
com um deles e recomenda-lhe de sempre guardar com você, faça
dele sua bíblia. Ponte-Napoleão intervém: por que fala assim ao
menino, Jacques? Nessa hora do dia, Thibaut está ausente;

176
também Nerélia. Faustino passa-lhe alguns trocados antes de
empurrá-lo no carro que vai na frente dos dois tuque-tuques,
dando-lhe um último tapinha amigo nas costas. “Combinado
então, grande negro”, lança-lhe para lembrá-lo do segredo que
doravante os une: a promessa de apresentar-lhe sua Chachoune.
Em que perdidas paragens fica esse novo bairro? Ao final
das contas, talvez lhe reservasse surpresas agradáveis. O garotinho
recusa-se a pensar em tal possibilidade: seria como trair os molhes.
Com uma das mãos, Ponte-Napoleão acena sorrindo para as
pessoas em pé no perímetro que cerca a varanda. Mas o garoto,
quanto a ele, não está com espírito para sorrisos. Os dois cagalhões!
Ele não pôde punir o insolente, não mais ouvirá o mar apagando
seus murmúrios contra o embarcadouro, também ignora quando
verá novamente Faustino… Assim que o carro parte, vira a cabeça.
Naquele momento, a imagem do yaguanês torna-se cada vez mais
vaga, até se desvanecer para, no espaço de alguns segundos, ceder
lugar àquela de seu pai, que o garotinho viu em fotografia duas
ou três vezes. Havia chorado? Hoje, já não se lembra mais. Lembra-
se, contudo, de nada mais ter visto. As lágrimas, se existiram, sem
dúvida nublaram sua vista. Os dois tuque-tuques que vinham logo
atrás talvez tenham coberto o horizonte. Para o garotinho, no
entanto, o mais duro ainda está por vir. Ignora que, com essa
primeira partida, amputa toda uma parte do seu ser. Exila-se para
sempre de sua primeira infância, esse outro país de si mesmo… A
noite já vem caindo quando Ponte-Napoleão gira a maçaneta da
porta de entrada do novo apartamento.

177
VI O sonho

Muitas ondas tiveram que agonizar às costas de Cristóvão


Colombo depois do dia em que, sentado no banco de trás do carro
que o conduzia a uma nova vida, o garotinho voltara a cabeça
com o coração estufado de lamúrias, para captar uma última
imagem dos cais e de Faustino. O tempo – Três meses? Um ano?
Uma vida? – tinha lhe parecido extenso demais, à espera do dia
em que o yaguanês viria à sua casa, acompanhado por Chachoune.
Promessa é dívida, não é? No entanto, não mais reveria o
engraxate, vindo-lhe então esse desejo de ressuscitar o passado,
que espreita todo ser humano. Assim é que, naturalmente, tomou
a decisão de começar sua busca por esse velho bairro que margeia
os molhes de Porto-Pinto.
Entretanto, a sequência das aventuras de Faustino chegou-
lhe em sonho, na última noite passada em Salbunda, na forma de
um ancião que se apresentou como o próprio Mesilòm. A
lembrança guardada do velório e da pessoa estendida por cima
da carcaça de uma cama circundada por três candeias era vaga
demais para que pudesse dizer se sim ou não tratava-se ali
realmente do padrinho de casamento do yaguanês. Talvez fosse o
próprio ancião contador de causos daquela noite fúnebre,
astucioso como todos os de sua profissão, que escolhera esse meio
para lhe anunciar sua própria partida para o além. Outro a mais,
chegando ao fim do ciclo. Poderia apenas retranscrever suas
palavras, tal como lhe foram ditadas. Ou quase, pois ao final de
seu relato, depois que o garoto, agora homem feito, religiosamente
tudo escutara e logo agradecera pela mãozinha recebida para
terminar a história, a aparição arrancou-lhe a promessa de
temperar esse episódio a seu bel-prazer e dele fazer uma lenda

179
digna de Faustino I. “Acrescente aí sua sensibilidade de homem,
sua cultura, suas andanças: você vai enriquecer nossa arte. Da
mesma forma que se traz uma prancha, um prego, um martelo
para levantar uma casinha, uma canção para incentivar o esforço
dos operários na labuta… É essa contribuição de todas as mãos
que faz com que se mantenha em pé…” (O ancião tinha cada vez
mais dificuldade para falar. Parecia exausto.) “Chegou minha hora
de passar-lhe o bastão… A tal me submeto sem pesar algum. O
tempo, meu fio. O tempo! Passo-lhe o bastão, portanto… Só que
eu não ficaria tranquilo no lado de lá, sem a certeza de que dele
você fará bom uso. Prometa-me…” Depois sumiu por entre as
neblinas do sonho. Antes mesmo que o ex-garotinho da beira-
mar tivesse tempo para responder. Teria preferido deitar por terra
uma tocha tão pesada de se carregar, fugindo a rédeas soltas. Mas
uma promessa, mesmo verbal, é uma dívida, haviam-lhe ensinado
nas franjas do cais.

No dia em que Faustino caminhou com passos decididos


em direção ao mar, rasgou seu passaporte e o lançou nas águas
verdolengas e oleosas do cais sob o olhar impassível de Cristóvão
Colombo, compreendeu que não mais deixaria Salbunda. Ou pelo
menos, se tivesse que acontecer, seria com os dois pés plantados à
frente. Deixando a vida. Ora, como não podia reivindicar raiz
alguma em terra estrangeira – e mesmo que as houvesse! Nas
circunstâncias, os outros é que deveriam retornar ao país –,
custava-lhe imaginar quem teria vindo, com exceção de Maria,
reclamar seu cadáver, para o qual seus chegados – engraxates,
mascates, Ponte-Napoleão e dona Condor… – bem encontrariam
um lugarzinho em alguma vala comum nos arredores de Porto-
Pinto. Em caso de escassez, cotizariam para levá-lo a Yaguana: o
quintal da velha casa em que vivia sua mulher bastaria ao negócio.
Lá, seu corpo repousaria à sombra da quase centenária figueira.
Em certos dias, algum samaritano caridoso viria deixar um
ramalhete ou rezar uma prece pela salvação de sua alma… O
fato de rasgar o passaporte nada tinha de gesto político. Por certo
Faustino não nutria grandes amores por Diabo-Baká, que o
ridicularizara aos olhos da gente da beira-mar. Menos ainda pelo

180
Chacal-de-Óculos. Mas daí a se envolver com política! Após perder,
por um fino fio de cabelo, o diploma de estudos primários, não
prosseguiu na escola o suficiente para se meter nessas histórias
tão complicadas e perigosas. Sentado sobre a balaustrada que
circundava os molhes, Faustino se deixou embalar num doce
devaneio, censurando-se por não ter tido mais cedo essa ideia que
o levou a rasgar o passaporte e lançá-lo ao mar.

O Homem-África, que se tornara mais um jovem


desocupado entre tantos outros, vivia seus dias com um sonho na
cabeça, o mesmo de milhões de salbundenses: a qualquer preço
abandonar o país. Desde então, reaproximara-se de Faustino e,
de tempos em tempos, sentava-se sobre a mureta da varanda,
talhava uma tirinha de prosa com o yaguanês, na saída tomava-
lhe emprestado algum trocado que nunca lhe pagava. Não que
fosse um aproveitador, o Homem. Sempre baixava a cabeça e
olhava a ponta de seus sapatos, quando assim se dirigia a Faustino
para obter justo o suficiente com que comprar um ou dois cigarros.
Por vezes, não ousava solicitar a Faustino pela enésima vez, e partia
arrastando os pés, perguntando-se se era preciso colocar o esquerdo
após o direito, sem todavia conseguir se decidir; então o yaguanês
passava-lhe às mãos, toma aí, mano velho, dois cigarros ou algum
trocado, e ele partia novamente agradecendo com voz
desconfortável.
Para o Homem-África, o país estava fodido, nada mais se
podia dele tirar. De qualquer maneira, não pretendia ficar por ali
até se lascar feito ratazana velha de esgoto. Partiria, não importa
aonde nem como: sairia desse inferno por via terrestre, por avião
ou barco (que se danem os riscos, pensava, muitos já conseguiram,
não é? E depois, ser devorado por tubarões ou viver esta vida, dá
na mesma, man). “Seria melhor se você fizesse igual, Faustino,
desde que eu era bem pequeno, vejo você curvado sobre essa caixa
de engraxate, não venha me dizer que você consegue enganar a
miséria com isso.” O Homem tinha conseguido persuadir Faustino
de que o futuro os aguardava na outra margem. Por lá chegando,
precisariam apenas estender a mão para colhê-lo. Como um fruto
maduro. Falara então de seus projetos de partida. Não vale nem

181
um pouco a pena fazer fila diante do consulado de Gogmagog,
man, com uma chance em cem de obter o direito de entrar nessa
merda de país. Graças à grana que seria enviada por um de seus
amigos de lá, poderia comprar um visto, não seria complicado,
bastaria dirigir-se à rede certa, colocar-se em contato com a tribo
que conhecia pessoalmente o cônsul. Havia anos que essa prática
era corrente em Porto-Pinto. Com frequência, logo ao chegar, o
cônsul arranjava uma amante porto-pintense que lhe servia de
isca, e estava feita a jogada.

Foi durante um desses finais de tarde em que a vida parecia


flutuar entre o dia e a noite, lenta e triste ao mesmo tempo, que o
África lançou a ideia. Assim. No permeio de horas mortas em que
se cansavam ambos de tanto ruminar as mesmas palavras. Para
preencher o silêncio que não suportavam, nem um nem outro.
Caso contrário, Faustino teria atravessado a rua para esvaziar
um copo no Rela-rela, história de confundir os miolos. No fio do
bordado, o yaguanês revelara a Dessalines sua vida de homem,
sua dificuldade em olhar sua mulher nos olhos quando regressava
a Yaguana. Cada vez que se aproximava a visita à sua família,
acometia-se de um estranho mal-estar que lhe embrulhava as
tripas. Como poderia, uma vez mais, explicar a Maria que ainda
não era chegado o momento, de qualquer forma, eu te juro, mama,
ainda vai chegar… No fim das contas, nada disse, e tampouco
sua mulher pediu qualquer justificativa. Explicaram-se sem
palavras. Ora, ele gostaria tanto de ter agradecido por sua
paciência, pela vida, por tudo… Quanto mais Faustino pensava,
mais aquilo lhe dava dor de cabeça. E assim que a noite se
anunciava, sabendo que retornaria para dormir sozinho, era
tomado por uma tal saudade de Maria, de seu corpo, que se punha
a beber. Agora, não havia mais nada a fazer, a roda tinha girado.
Seu único arrependimento era o de não poder ajudar Chachoune
a se tornar alguém na vida. Com certeza devia existir um lugar
no planeta em que, ao fim e ao cabo, valia a pena viver essa vida
biscate.
Gogmagog! O yaguanês não entendeu o propósito do
África. Tinha pensado assim em voz alta; num último furor contra

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o destino. Sem esperar resposta de seu interlocutor, nem de quem
quer que fosse. “Gogmagog!”, repetiu Dessalines, os olhos
cintilando de felicidade, como se tivesse encontrado a panaceia
universal para seus múltiplos males. Sugeriu ao engraxate que
tentasse a sorte junto à embaixada de Gogmagog, nunca se sabe,
também ele partiria e recomeçaria sua vida por lá. “Depois, levaria
sua mulher e sua filha. Por que você não pede uma carta de
recomendação ao Chacal-de-Óculos?” Só de ouvir esse nome,
Faustino escarrou no chão. Mas o Homem retomou a carga todos
os dias, pisando e repisando o assunto, introduziu rudimentos de
inglês, yeah man, no meio de suas conversas, os quais, mesmo
sem se dar conta, Faustino retinha e repetia à noite, estirado sobre
sua esteira com os olhos pregados nas estrelas. As palavras do
Homem-África o atormentavam. Como uma fome que lhe tivesse
subido ao cérebro para fazê-lo ver um sol flamejante em plena
noite. Ele nunca soubera cumprir as promessas feitas à Maria,
por que não aproveitaria desta oportunidade? Ao fim, Faustino I
engoliu seu orgulho de homem. O Chacal sorrira, feliz por mostrar-
lhe a extensão de seu poder.

Faustino começou por se encontrar a cada manhã,


alternadamente, diante da delegacia de polícia e da controladoria
de impostos para tentar que lhe expedissem um passaporte.
Dessalines emprestara um velho paletó e uma gravata para a
fotografia, dá impressão de seriedade, senão o cônsul seria capaz
de meter-lhe uma recusa só por isso. Durante três meses, esteve
teso como um pé de grua à espera desse passaporte dos infernos.
Não tinha como dar propina aos funcionários, que sentido teria
oferecer-lhes de passarem na borda dos cais para um lustre de
sapatos? Seria preciso muito mais. Durante esse lapso de tempo,
Faustino foi mais de uma vez tentado a abandonar, é um mau
sinal, Homem, mas não, man, e depois pense só em sua mulher
que vai pedir contas do dinheiro gasto inutilmente. O yaguanês
tinha de fato gasto uma bela grana com o passaporte, e deixou-se
então convencer. Ao final, cansado de ver sua cara, um dos
funcionários, que sem dúvida se levantara com o pé certo naquele
dia, entregou-lhe o documento, que Faustino assinou com uma

183
letra tremida de aluno iniciante. Ele o mostrou naquela tarde a
Dessalines. Com o sorriso aberto de orelha a orelha, os dois
comparsas falaram de Gogmagog como se já estivessem lá.
Mas nem de longe aquele era o caso, como Faustino logo
se daria conta. Durante mais de uma semana, esteve na fila diante
da embaixada sem conseguir entrar, tal como, outrora, em frente
à entrada gradeada das fábricas. Mas, na fila de hoje, todos teriam
se estripado de boa gana, para estarem presentes no momento da
abertura do portão, o qual infalivelmente fechavam-lhe na cara:
a cota da manhã tinha sido atingida. “Voltem amanhã”, urrava o
vigia, cheio de arrogância na voz. Certa manhã, Faustino acabou
por cruzar a cancela, para sair novamente, ao final de uma hora,
com uma recusa de entrada em Gogmagog, carimbada no
passaporte. Apesar da carta de recomendação do Chacal. A
consulesa o olhara com um ar esquisito, balançando a cabeça.
Faustino nada entendera daquilo que ela ladrara em inglês.
Dessalines explicou-lhe então que ele não poderia tentar de novo
a sorte antes de três meses. Ele esperou, paciente. A segunda recusa
veio com a mesma inflexibilidade.

Foi na terceira tentativa que a situação se reverteu. Três,


como três eram as mulheres do Egito do padeiro Marcel, das quais
o yaguanês também se ocuparia se tivesse a ocasião e os meios.
Para ter uma chance de entrar sem que lhe fechassem o portão na
cara, Faustino se levantara no meio da noite, muito antes de o
galo cantar, e fora tomar seu lugar na fila. Por volta das sete e
meia da manhã, no momento em que a fila de candidatos ia além
do imaginável, com empurra-empurra e sururus a cada quinze
minutos, um homem chegou e lhe propôs comprar seu lugar. Por
que logo ele? Talvez por causa de seus trajes: sua única calça
domingueira já puída, sua camisa cerzida aqui e ali, sem o paletó
que Dessalines não podia emprestar-lhe todos os dias… Quando
Faustino viu o tipo contanto as notas diante dele, fez um rápido
cálculo mental: a soma representava quase o dobro daquilo que
ele, a duras penas, economizava todos os meses para enviar à sua
mulher. Não hesitou mais de um segundo, embolsou a grana e
cedeu o lugar ao indivíduo. “Terei tempo para voltar”, pensou. No

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dia seguinte, levantou-se ainda mais cedo e encontrou lugar quase
no início da fila. Desta vez, quando o vigia deu mostras de abrir a
barreira, foi ele que, com o olhar, procurou passar sua vaga a
quem melhor pagasse. Não teve o menor trabalho para encontrar
comprador, além do mais por um preço superior àquele que
recebera na véspera. Desde então, Faustino tomou o hábito de, ao
anoitecer dos dias de trabalho, ir tomar assento na entrada da
embaixada de Gogmagog, tudo para descolar um lugar com
chance de ser comprado. Como era preciso permanecer acordado
para não ser desalojado de seu posto, diminuiu sua ração de cana.
Com o transcurso dos dias, prescindiria dela por completo. Para
não dormir pela noite, acostado ao alambrado da embaixada ou
sentado em uma pequena cadeira de palha, terçava causos com
os outros. Aqueles que, como ele, tinham como profissão vender
vagas aos candidatos à partida. Trocavam histórias de mulheres
para matar o tempo, até a extinção da última estrela no céu. Na
vez em que esqueceu seu próprio passaporte, Faustino
compreendeu que acabara de encontrar um novo ofício.

À tarde, Faustino I pegou sua caixa de engraxate e seu


passaporte, caminhou rumo ao cais com passos determinados,
enquanto repetia as palavras de Dessalines: “De qualquer maneira,
este país está mesmo fodido. As pessoas não têm outra escolha
que não seja partir.” Talvez esse tal de Gogmagog fosse mesmo
muito bonito, como ele ouvira do Homem e das filhas de dona
Condor, quando regressavam a Porto-Pinto a cada dois anos. Mas,
para ele, era tarde demais. O que faria por lá? Não tinha ele
encontrado uma profissão honesta na sua própria casa? Em seu
país? Talvez Chachoune, mais tarde. Sempre remexendo as ideias
no cocuruto, Faustino chegou ao cais, olhou Cristóvão Colombo
de soslaio, rasgou seu passaporte e lançou-o na água verdolenga
junto com a caixa. Observou o documento rodopiando por cima
da massa oleosa, até que afundou lentamente com todo o
balangandã de ex-engraxate de sapatos. Agora poderia trazer sua
mulher e sua filha a Porto-Pinto.

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Post-Scriptum

E io,
Io allora, qui,
Io cosa rimango a fare,
Qui dove perfino Dio
Se n’è andato di chiesa,
Dove perfino il guardiano
Del camposanto [...]
Ha abbandonato
Il cancello?

G. Caprone

Sentado no avião que leva você rumo a outras errâncias,


após ter lançado um olhar prenhe de tristeza e de cólera sobre o
pântano fétido de Porto-Pinto, você vai ruminando o propósito de
sua visita à Salbunda. Você aí escreveu a história de Faustino, sem
ter chegado a passar para o outro lado do espelho. Sem ter
reencontrado sua imagem de criança. Talvez você tenha feito um
caminho equívoco. Ou então avaliou mal o poder da memória.
Você tem vontade de gritar: “Lorde Harris! Branquinho! Merlet!
Thibaut! Faustino I!” Mas você tem certeza de que ninguém vai
responder. Que os outros passageiros pensarão que você ficou
louco. Que as comissárias lhe rogarão, senhor, por gentileza, o
senhor não está só no avião, faça menos barulho. Dessa travessia
catártica, entretanto, você trouxe algumas balizas que guiarão
seu avanço no tempo. O país real, físico, essa terra que viu você
nascendo não mais suscita laço visceral algum em você. Os deveres
que você sente para com ela não se diferenciam de forma alguma
daqueles que você pode sentir para com o desamparo de qualquer
outra terra. Você sofre com as feridas de cada homem, que brotam
da estupidez de seus irmãos. Você tem fome nas tripas de cada
criança com olhos puídos de miséria. Rejeita todas as formas de
injustiças ligadas ao sexo, à cor da pele, à nacionalidade, à classe
social ou à religião. (Você acabou se tornando um atípico, sempre
engaiolado entre duas salvas. Sempre rechaçado por mesquinhas
ondas de uma margem à outra.) E reage, sobretudo, contra essa
parte de você que sempre inventa razões válidas para excluir o
outro.

Eis o que você vai dizendo para si mesmo no avião que o


leva de volta rumo a outras errâncias, pensando na terra em que
você passou cerca de um quarto de século da sua vida. Onde você
aprendeu a falar, a ler. Rascunhou poemas. Tocou pela primeira
vez o púbis de uma mulher, tendo no corpo esse estranho
estremecimento tão próximo da morte. Descobriu as primeiras
emoções da amizade. A verdadeira. Aquela que não deixa o outro
à beira do caminho. Onde você tudo aprendeu, enfim… Com
exceção dessas convicções que tomaram corpo nesses lugares,
afora essas lembranças tenazes demais, o que mais liga você a
essa terra? A essa cultura que, apesar de tudo, canta sob você e
seus passos, seus olhos, seu sexo? O asno, como se diz, por mais
que vista um chapéu, trará sempre as orelhas de fora. No restante,
Ponte-Napoleão se foi. Sua maneira simples e espontânea de, com
seus parcos recursos, correr ao socorro dos necessitados, de nunca
baixar os olhos diante dos aprendizes de monarca e dos tiranos, é
tudo o que deixou para você como herança… No entanto, você
sente que não completou em vão essa tentativa de peregrinação
ao tempo natal. Certamente não foi para encontrar o bairro de
sua primeira infância, doravante entregue à miséria e às

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imundícies. Tampouco o desejo de lançar em rosto alheio os fumos
de um sucesso qualquer.

De fato, você está buscando um outro país. Aquele que,


nas suas peregrinações em terra estrangeira, você batizou de país-
tempo. Aquele em que se vive uma só e única vez. Como o rio de
Heráclito. Essa terra para além das raças e das nacionalidades.
Duas noções vazias de sentido, dois acasos da aventura humana.
Absurdas, portanto… O país-tempo. Único lugar que sempre leva
você a pensar e a repensar, em profunda nostalgia. E a cada vez
que, na sua caminhada de homem, você se volta para esse país –
no qual nunca mais colocará seus pés, aconteça o que acontecer
–, a imagem obsessora de Faustino I, Negro de Yaguana, retorna
até você. “De ferro! Minhas calças são de ferro!” “Respeite o
vosmecê, seu mocinho casca-grossa.” Uma imagem toda feita de
risos e de lágrimas. De generosidade e de esperança. De alarido e
de furor.

Sem dúvida alguma, tudo o que você escreveu a respeito


dele não passa de efabulação, mas quem poderia contradizê-lo?
Quem, dagora em diante, poderia aduzir provas em contrário?
Quem teria os meios para verificar a exatidão de suas proposições?
Ninguém. Nem mesmo Faustino I, o principal interessado. Se é
que existiu. Se não foi uma mera invenção dessa sua imaginação
destrambelhada, como costumava dizer sua avó. Caso ele não
tenha partido na ponta dos pés, como alguns. Quanto aos
sobreviventes do bairro que porventura leriam este relato,
habitaram ou viveram esse país de outra forma. Melhor dizendo,
com certeza cada um deles habitou um outro país que apenas
eles próprios poderiam traduzir em palavras, e que nunca parecerá
com o seu. Claro está, olhando-o de perto, aí se encontrariam os
rios e os córregos que regam a terra natal – se não tiverem secado.
O mesmo céu lavado de sol. O golfo que Porto-Pinto abraça com
um aperto ao mesmo tempo desesperado e vivaz. Os mesmos cais
de água verdosa e engordurada. Mas esses são elementos que
muitos espaços geográficos do planeta compartilham. O Nilo

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atravessa a África, do norte ao sul, enquanto o Amazonas percorre
a América do Sul. Dessa forma regam terras longínquas e, ao
mesmo tempo, a imaginação de milhões de pessoas que poderiam
cada uma falar do seu próprio Nilo, do seu Amazonas.
Avolumando-se aquelas águas com as tantas correntes em que se
meneiam as derivas humanas. Confundindo-se lágrimas, saliva
de amor, palavras viscosas. Pois dois homens jamais se sentarão à
margem de um mesmo rio.

Talvez você tenha reescrito Salbunda tal como gostaria que


fosse. Talvez você a tenha simplesmente reinventado. Ou sonhado.
Lugares físicos, Salbunda ou outro, em nada mudam. Ou muito
pouco. Quando já se partiu há muito tempo, amiúde se tem a
desagradável sensação de não mais reencontrar, no retorno, o
país que se deixara para trás. Tudo parece mudado: as coisas, as
pessoas; neste caso específico, o desastre ecológico, a arquitetura
selvagem das favelas, a arrogância sem limite dos abastados, fora
do alcance de Deus (dizia Ponte-Napoleão)… Tudo isso já não
existia antes? Na verdade, o tempo é que passou. Nosso olhar já
não colhe a ausência. Nada é verdadeiro às margens deste
conhecimento: saber que você não mais habitará esse outro país
de você mesmo. Faça o que fizer. O único absoluto. A menos que
regresse clandestinamente. Como um cão vadio. No voo suspenso
de um colibri. Nas raízes de um cajueiro. Ou paramentado com
asas de mosca… Teria você chegado a esse questionamento se
não tivesse partido de Salbunda, para em seguida receber, em plena
cara, o escarro de estupidez humana que acompanha, com
demasiada frequência, as migrações dos indivíduos? Em uma
palavra, se você tivesse ficado no lugar. Se você não tivesse
emigrado para a idade adulta, acossado constantemente pela
velhice. Outro mistério do qual nada saberá… A milhares de metros
de altura, o avião ronrona como um gato tuberculoso, devorando
o espaço. Nada além do espaço. Você olha para as belas pernas da
comissária antes de sacar, com a mão febril, o seu bloco de
anotações. Nessas páginas, se porventura o avião se destroça e
você perece no acidente, lerão os investigantes: “Da errância,

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cheguei a essa fase da humanidade em que o homem não tem
outro país senão o tempo em que habita.”

Roma/Villa Medici, inverno 1994-1995.

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Esta obra foi composta em Charter BT,
pré-impressão digital com tecnologia CTP,
impressa pela xxxxxxxxxxxx
para a Letra Livre Editora
em xxxxxxx de 20xx.

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