Tese - Cristina Pedroza de Faria - 2020 - Completa
Tese - Cristina Pedroza de Faria - 2020 - Completa
Tese - Cristina Pedroza de Faria - 2020 - Completa
Rio de Janeiro
2020
Cristina Pedroza de Faria
Rio de Janeiro
2020
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CCS/A
CDU 333.326(815.31)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Cristina Pedroza de Faria
___________________________________________
Profa. Dra. Lia de Mattos Rocha
Instituto de Ciências Sociais - UERJ
___________________________________________
Prof. Dr. Mauro Henrique de Barros Amoroso
Centro de Educação e Humanidades - UERJ
_____________________________________________
Profa. Dra. Ilana Strozenberg
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Profa. Dra. Regina Célia Reyes Novaes
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2020
DEDICATÓRIA
Esta tese se tornou possível por meio das diversas trocas estabelecidas no seu percurso.
É fruto destes encontros, portanto, é uma tese feita de gente. O espaço aqui disponível
dificilmente será suficiente para expressar a minha gratidão em relação a todas as interlocuções
estabelecidas durante os cinco anos da jornada do doutorado - a maior parte delas na Rocinha,
lugar central do estudo que originou este trabalho. Por isso, antes de tudo, agradeço aos
moradores e moradoras locais, com quem convivi, pela receptividade, a mim e às tantas
propostas de conversa em torno do tema que conduzia minha pesquisa. Neste contexto, foram
geradas relações de afeto e respeito mútuo, por meio das quais também se reforçou o
compromisso de retribuir e retornar o material produzido ao território da favela.
Quanto aos demais agradecimentos, não poderia deixar de citar a minha família -
especialmente mãe, pai e irmã - pelo suporte, incentivo e por estar, literalmente, ao meu lado
em muitas ocasiões, torcendo a cada dia, ajudando-me nas tarefas mais simples e complicadas
que foram se impondo desde os estudos para o processo seletivo do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UERJ, ainda em 2014, até os momentos finais de escrita da tese. Não
poderia deixar de lembrar o cuidado de minha mãe, sempre de prontidão, com suas velas e
incensos acesos iluminando caminhos e túneis à frente, além da paciência de escutar inúmeras
vezes que a tese, um dia, ficaria pronta. Foi fundamental contar com o apoio de todos os
familiares, dos mais próximos aos mais distanciados.
Agradeço à Márcia Leite, minha orientadora, que, desde antes do início de tudo isso,
topou me acompanhar, mostrou-me entradas para abordar situações complexas e saídas para
muitas encruzilhadas que foram surgindo. Pela paciência de escutar as longas histórias, aflições
e alegrias trazidas do tal do campo de pesquisa, por relevar as teimosias, por respeitar processos
emocionais. Mas também por apontar brechas para aliviar as tensões, por entre caminhos nada
ortodoxos das praças e batucadas dessa cidade (antes dos tempos da pandemia). Sou, ainda,
muitíssimo grata por poder contar com as contribuições valiosas das professoras Lia de Mattos
Rocha, Ilana Strozenberg e Regina Novaes, além do professor, Mauro Amoroso como
integrantes da Banca de defesa desta tese. Seguramente, terão muito a acrescentar.
Quanto aos interlocutores que foram absolutamente fundamentais para a existência
deste trabalho, agradeço, em especial, a Beatriz Calado, Michel Silva e Michele Silva,
integrantes do jornal Fala Roça, que deram alma e suor a esse meio de comunicação durante
longo tempo (com diferentes períodos de permanência, entre 2012 e os dias atuais), abarcando
o tempo da minha pesquisa (2014-18). Serei sempre grata por me receberem, amavelmente,
desde os primeiros dias do nosso contato, até depois do término do trabalho de campo, que,
com Michel, Michele e Bia, tornou-se lugar de encontro, de arejamento de ideias, de janelas
para visões de mundo de novas gerações. Por aceitarem, generosamente, compartilhar suas
rotinas, seus modos de dar vida e cara ao jornal (ou de produzir informação sobre a Rocinha),
por toparem ideias que pareciam mirabolantes, como as conversas sobre fotografias. Com eles,
percorri tantos caminhos na Rocinha ao distribuírem o jornal, levando e sendo levados pelos
exemplares do Fala Roça. Sem a colaboração de Michel, Michele e Bia, essa tese não teria se
materializado.Junto deles, também tive acesso a suas casas – especialmente a dos pais de
Michele, Monique e Michel -, onde aconteceram muitas reuniões do jornal, e a infinitas trocas
de ideias, muitas vezes regadas a cafés e compartilhando almoços com seus familiares, sempre
receptivos e generosos. A todos, a gratidão se estende. Como não lembrar de Dona Josita, Seu
Paulo e Monique (mãe, pai e irmã de Michel e Michele), além de Tainara (companheira de
Michel), com quem estive inúmeras vezes por ocasião de encontros do Fala Roça, aniversários,
vésperas de anos novos etc. Foi sempre um prazer papear com todos sobre assuntos que iam
para além do jornal. Monique, Tainara e Seu Paulo reforçavam a equipe de distribuição. Dona
Jô, com sua imensa, bonita e protetora vontade de participar das histórias dos filhos e de prosear,
além de companhia agradável, foi se tornando também interlocutora deste estudo, com suas
lembranças de histórias familiares e memórias da Rocinha. Faziam parte dos agregados da
família, ainda, os gatos que foram sendo adotados, dentre os quais conheci Freixo, Flora,
Linguiça e Alfredo; em determinado momento, alguns passaram a se sentir à vontade para se
achegarem no meu colo. Pelo lado de Beatriz, conheci a mãe, Dona Rose, e a irmã, Bárbara
(com quem tive menos contato). Assim como Dona Jô, Dona Rose era também fã das filhas e,
junto com Bárbara, igualmente reforçou a equipe de entrega do jornal.
Agradeço, ainda, a outros comunicadores (jornalistas e fotógrafos) oriundos da Rocinha,
de diferentes gerações, que toparam compartilhar comigo e com este estudo suas experiências
relacionadas à comunicação: Amanda Pinheiro, Edu Casais, Fabiana Rodrigues, Flávio
Carvalho, Leandro Lima e Maurício Trajano. Todos foram importantes para uma compreensão
mais alargada de um campo de comunicação jornalística nessa favela – universo maior do que
foi possível incluir nesse trabalho (uma vez que o foco central era um estudo de caso) e que
conta com muito mais gente atuando em diferentes mídias. Edu, Flávio e Leandro eu já conhecia
por meio de outros trabalhos e tive o prazer de reencontrar; já Amanda e Fabiana conheci ao
longo da pesquisa e foi igualmente gratificante entrevistá-las. A história de Carlos Costa,
Carlinhos, jornalista “das antigas” da mesma favela, também foi inspiradora. Tive o prazer de
trabalhar com Carlinhos, Edu Casais, Landa Araújo (repórteres) e Nando Dias (fotógrafo) no
portal Viva Favela (realizado pela Ong Viva Rio), no início dos anos 2000; todos, então
moradores da Rocinha, integraram a equipe de “correspondentes comunitários” do portal, junto
com outros moradores de favelas do Rio. Nessa época, conheci esta e outras favelas,
trabalhando simultaneamente como editora de fotografia do Viva Favela e fotógrafa do Viva
Rio. Carlinhos e Edu serão mencionados também adiante, por sua participação no jornal
Rocinha Notícias e terem viabilizado a consulta aos exemplares remanescentes deste veículo,
cuja versão impressa circulou na primeira década dos anos 2000. Hoje, há muitos outros
comunicadores e comunicadoras “crias” da Rocinha, o que por si só já é uma conquista relativa
ao aumento de vozes das favelas no espaço público. Suas trajetórias vêm sendo igualmente
relevantes para a produção de informação por quem vive no lugar; essa pesquisa alcançou
apenas uma parte delas, por se tratar de um estudo de caso limitado. Mas quero expressar minha
admiração pelos trabalhos que realizam e esforços para se manterem “no ar”, apesar das
dificuldades. Espero (re)encontrá-los em momentos futuros, conhecer suas histórias e, quem
sabe, descobrirmos novas formas de contá-las.
Em 2014, o trabalho no projeto Regiões Narrativas, realizado pela organização O
Instituto na Biblioteca Parque da Rocinha, levou-me a frequentar a favela semanalmente. Fiz
parte da equipe de coordenação das oficinas de fotografia, vídeo e animação oferecidas pelo
programa, ao lado de Ilana Strozenberg e Teresa Guilhon, incansáveis articuladoras de espaços
de diálogos na (e sobre a) cidade do Rio de Janeiro. A elas sou, alegremente, grata pela chance
de ter participado dessa experiência única – por meio da qual conheci os integrantes do Fala
Roça, além de muita gente boa que circulava pelo C4/BPR na época.
Dentro da Rocinha, convivi com pessoas diversas que se tornaram importantes para a
construção da minha compreensão sobre o seu lugar de moradia – além de me fazerem sentir
em casa. Estive mais próxima, especificamente, de três espaços de convivência na favela,
criados por moradores locais, a partir dos quais formei vínculos fortes que, acredito, ficarão
para a vida. São eles: o Museu Sankofa, Memória e História da Rocinha e os movimentos
comunitários Rocinha Sem Fronteiras e A Rocinha Resiste. Todos se tornaram referências para
organizar minhas memórias sobre as relações que foram se constituindo no tempo da pesquisa.
Já conhecia algumas favelas da cidade, mas, junto desses grupos, aprendi sobre como se
constroem, nos dias de hoje, lutas comunitárias, laços sociais e diálogos sobre inúmeras
questões relevantes para a cidade e o país. Diante da desigualdade no acesso a direitos e
condições dignas relativas à infraestrutura urbana - mais nítida nas milhares de favelas
brasileiras -, esses movimentos coletivos ativaram (e ativam) vínculos afetivos, interações,
saberes e memórias, além de serem espaços de contato entre diferentes gerações de moradores.
Conheci organizadores que se tornaram amigos, além de frequentadores que transitavam por
encontros e atividades desses mesmos grupos. Expresso, aqui, minha imensa gratidão pelo
acolhimento e as trocas com todos os participantes desses espaços de convivência. A seguir,
cito algumas pessoas, com as quais tive mais contato, mas o mesmo sentimento vale para todos.
Nas reuniões do RSF e do Museu Sankofa, tinha prazer em ouvir José Martins Oliveira,
Antônio Firmino, Fernando Ermiro, Maria Helena Carneiro, Roberto Lucena, Simone
Rodrigues, Devaldo Oliveira, Dona Chica da Rocinha, André Batista, Seu João Guilherme e
Dona Jandira, Cleonice Lopes, Maria da Paz, Izabel Carvalho e tantas outras pessoas
admiráveis. Referências em suas áreas específicas de atuação, profissional e/ou comunitária,
acumulam conhecimentos, longas vivências, lutas e saberes históricos em relação à Rocinha e
à vida. As reuniões mensais do RSF trouxeram chance de discutir diversos temas votados pelos
moradores, conhecer seus pontos de vista, além de ser espaço de intercâmbios mútuos.
Agradeço imensamente a todos/as por podermos compartilhar aprendizados, dúvidas, revoltas,
medos, mas também momentos de descontração e colaboração.
Quanto ao ARR, vi nascer seus primeiros encontros no início de 2018. Em meio aos
tempos difíceis da Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, quando
aumentaram as operações policiais, conflitos armados nas favelas e violações de direitos, esse
grupo passou a ser lugar de encontros frequentes. Lá, estávamos juntos pela vontade de estar,
de trocar ideias, encontrar apoio e pensar ações; ali foram surgindo debates espontâneos sobre
temas ligados à Rocinha e à cidade. Uma galera de idades variadas se conheceu ou se
reencontrou; eixos de ação foram criados (educação, cultura, direitos etc) e práticas em prol da
favela traçadas de forma horizontal. Professores, educadores, diretores e alunos de escolas
locais, por exemplo, lá se encontravam ou por meio do “zap” do grupo. Juntos fomos criando
amizades. Assim conheci Pedro Paiva, Leandro Castro, Magda Gomes e Michelle Lacerda,
condutores de boa parte das articulações do ARR no momento em que escrevo, com quem
passei a conviver no grupo e fora dele. A todos agradeço demais por todas as vivências – em
reuniões, passeios pela Rocinha, bares, lanchonetes, escolas, lajes, casas, cachoeiras etc. É
sempre uma alegria encontrá-los e grande a vontade de somar forças.
Foram inspiradoras, para a tese e para a vida, as conversas com pessoas de quem me
aproximei nesses movimentos de moradores e em outros lugares conectados à Rocinha. Foram
muitas ocasiões de papos descontraídos com Martins e Roberto, brindados com a riqueza de
suas experiências de vida. Com longa trajetória de luta na favela, Martins é liderança
reconhecida dentro e fora da Rocinha. Roberto, professor de história, também tem forte
engajamento político centrado nas realidades das favelas e periferias da cidade. Já o querido
Leandro Castro me recebeu sempre com doçura e sagacidade, trazendo seu ponto de vista,
iluminado por vivências na Rocinha e em outros tantos contextos de atuação e engajamento.
Com Fernando Ermiro e Antônio Firmino, tive longos diálogos qualificados pelos trabalhos
que realizam relacionados à dimensão da memória dos moradores, de valorização e visibilidade
da história da favela. Além deles, outros conhecidos, que se tornaram amigos, contaram-me
suas histórias, ouviram as minhas e aceitaram gravar diálogos que tanto me ensinaram. Alguns
não puderam ser utilizados neste trabalho, por limitações de espaço, mas todos contribuíram
para formar as reflexões aqui presentes. A maioria das transcrições foi retornada e fica o
agradecimento imenso por suas entrevistas ou diálogos informais: Dayana Uchaki, Devaldo
Oliveira, Seu João Guilherme e Dona Jandira, Michelle Lacerda, Pedro Paiva, Shirley Muriel.
Além deles, foram também ricos os contatos com Erik Martins, Dona Rizonete, Naara Maritza,
João Eliel, Ághata, Olavo, Gabriel, Kevin e outras pessoas que os caminhos da Rocinha fizeram
cruzar.
Reforço a imensa gratidão e apreço ao Museu Sankofa Memória e História da Rocinha,
à época dessa pesquisa conduzido por Antônio Firmino, Fernando Ermiro, José Martins
Oliveira, Maria Helena Carneiro e José Ricardo Duarte - incansáveis em suas lutas por
melhorias na favela, cada um/a à sua maneira. Apesar das dificuldades enfrentadas, o Museu se
tornou indispensável para conhecimento e valorização dos saberes históricos dessa favela,
características que contribuíram para sua importância especial relacionada a esta pesquisa.
Dentre os materiais que reúne, tive oportunidade de consultar o acervo digitalizado do jornal
Tagarela, impresso mimeografado conduzido por moradores entre os anos de 1970 e 80, que,
entre outras coisas, registrou o trabalho comunitário da sua época e contribuiu para conquistas
importantes, como a construção da passarela em frente à favela. Fonte riquíssima de memórias
locais, tornou-se relevante para essa tese (concentrada em mídias impressas), ao oferecer uma
perspectiva histórica para conhecer melhor o cotidiano e a comunicação local. Ainda no que
diz respeito a questões de memória e história, expresso gratidão a Fernando e Firmino pelos
ensinamentos nos passeios maravilhosos do Rocinha Histórica pela favela.
Dentre os tantos jornais já produzidos na Rocinha, outra fonte de consulta também
ganhou importância: o impresso Rocinha Notícias, que resistiu desde o início dos anos 2000
até 2018 (metade desse tempo circulando em meio impresso e a outra em meio digital). Tive
oportunidade de trabalhar com dois dos seus fundadores, Edu Casaes e Carlos Costa, no início
dos anos 2000, e por meio da sua gentileza pude consultar os exemplares remanescentes do RN.
Com intenção de colaborar com os registros historiográficos relativos à Rocinha, realizei a
reprodução digital desse material (quase 40 exemplares) e doei o material para os queridos Edu
e Carlinhos. Agradeço muitíssimo a esses jornalistas veteranos e inspiradores de novas gerações
de comunicadores pelo acesso ao RN e a suas próprias histórias. Aqui acrescento gratidão
também a José Luiz Lima, historiador, da geração de Edu e Carlinhos, outro antigo morador da
Rocinha e colaborador do mesmo jornal, entrevistado nesse estudo; Zé Luiz deixou sua
contribuição, com igual generosidade e confiança, compartilhando sua visão sobre diferentes
projetos desenvolvidos na Rocinha. Gratidão também a Simone Rodrigues, pelos diálogos
enriquecedores e por me apresentar à equipe do projeto de extensão “A construção dos planos
populares como estratégias de resistência aos projetos urbanos hegemônicos”, realizado pelo
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (UFRJ), sob coordenação do professor
Alex Magalhaes e em parceria com moradores da favela no Laboriaux (na parte alta da
Rocinha). Fui voluntária no projeto entre agosto/2017 e março/2018 e estendo o agradecimento
ao professor pela receptividade e ensinamentos.
Prossigo com as lembranças de amigos e amigas com quem compartilhei angústias e
alegrias nos tempos do doutorado, cujos incentivos foram fundamentais para cruzar essa linha
de chegada. Sou profundamente grata a Lais Bernardes Monteiro, amiga-irmã de todas as horas,
emanando sempre carinho e amor, de perto ou de longe. À Beatriz Meirelles, agradeço pelas
trocas diversas, pelo apoio e confiança de sempre - ainda mais com a chegada da pandemia,
quando me emprestou literalmente o espaço da casa para a concentração na reta final da escrita
da tese. Não fosse essa generosidade enorme, as dificuldades seriam bem maiores. João Roberto
Ripper, grande amigo de tantos anos, me incentivou e acalmou, desde o início, com suas
palavras afetuosas, simples e sábias. Sua trajetória de vida, entrelaçando fotografia e Direitos
Humanos de forma incansável, era inspiração permanente. Erika Tambke foi companhia
atenciosa e agradável, sempre disposta a uma conversa boa, nos momentos finais de preparação
da tese; contribuiu de diversas formas, incluindo o apoio no manejo da plataforma online usada
na defesa da tese. Andrea Moraes e Claudia Braga (Claudinha) também botaram fé que ia dar
pé e estiveram na torcida pela finalização do ciclo. Cada qual com suas perspectivas, os queridos
Patrícia Rivero e Mazinho contribuíram para desanuviar os pensamentos.
Foram valiosas as trocas de ideias com Claudio Souza e Silva, que incentivou a minha
entrada no doutorado e sempre se entusiasmou com o tema da pesquisa; as escutas e
observações atenciosas de Patrícia Lanes e Carol Couto, companheiras do PPCIS, ajudaram a
arejar o meu olhar e a pensar muitas questões sobre a pesquisa. Lívia Abdalla, Suellen
Guariento, Raquel Carriconde, também colegas de doutorado, foram sempre incentivadoras. À
Tatiana Ferreira, agradeço muito pela generosidade e disposição de compartilhar seus
conhecimentos, ao ministrar uma oficina de cartografia social para nós – eu Michel, Michele e
Beatriz, do Faça Roça. A oficina aconteceu em 03/08/2019, na Rocinha, e deu origem a um
mapa de trajetos de distribuição do impresso pela Rocinha, construído a partir das fotos feitas
nesse estudo. Essa ideia pode ser replicada, em novos contextos definidos pelos moradores e
abre outros horizontes de compartilhamentos e possibilidades de diálogos na interseção entre
academia, mídias comunitárias, grupos e movimentos de favelas. Aos terapeutas Joana Mattos,
Ricardo Vaz e Selma Reis agradeço pelo apoio e escuta cuidadosa, fundamentais nesse longo
trajeto do doutorado. Ao trabalho vigoroso das revisões de texto de Claudia Manzolillo, que
aceitou realizar essa tarefa tão importante mediante prazos reduzidos.
Gratidão aos docentes do PPCIS, cujas contribuições foram valiosas para minha
formação acadêmica. Foram, ainda importantes as contribuições dos professores que
participaram do meu exame de qualificação - Lia de Mattos Rocha, Marcos Albuquerque e
Adriana Facina - para o andamento da pesquisa e a redação posterior da tese. Aos colegas do
Núcleo de Estudos Cidades, do PPCIS/UERJ, pelas trocas bem-humoradas e tantos
aprendizados. Sou grata pelas possibilidades de interlocução, no universo múltiplo da
comunicação comunitária, popular e alternativa, trazidas pelo Laboratório de Comunicação
Dialógica da UERJ. A Wagner, Sônia e funcionários da secretaria do PPCIS/UERJ agradeço
muito pelo auxilio e disponibilidade, desde o ingresso até o fim do curso de doutorado.
Agradeço, finalmente, à CAPES e à FAPERJ, pela concessão de bolsas de estudo que
foram essenciais para o ingresso e permanência no curso de doutorado. O presente trabalho foi
realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001 – nos dois primeiros anos do curso (2015-16); e teve
apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(FAPERJ), por meio de concessão da Bolsa Nota 10, durante os dois últimos anos do curso
(2017-18). Apesar dos problemas enfrentados, que estas agências de fomento à pesquisa possam
resistir e continuar a financiar estudos, com critérios democráticos, em todo o país.
Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido
usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também
ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a
dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa
dignidade perdida.
Chimamanda Ngozi Adichie
RESUMO
FARIA, Cristina Pedroza de. A cidade por entre as páginas do jornal Fala Roça: sobre fazer
comunicação “de favela” e formas de ser jovem na Rocinha. 365 f. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2020.
FARIA, Cristina Pedroza de. The city through the pages of the newspaper Fala Roça: about
making communication “from the favela” and ways of being young in Rocinha. 365 f. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
Quadro 3 - Cronologia (em construção): Rocinha e jornal Fala Roça (2012-2018) .............185
Quadro 5 - Manchetes de capa do jornal Fala Roça, por recorte temático ...........................189
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................23
1 SOBRE PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS COMBINADOS E
ETNOGRAFIA ...........................................................................................................54
1.1 Tudo já estava lá (antes de se tornar campo de pesquisa).........................................56
1.2 Entrevistas e análise documental .................................................................................60
1.3 Etnografia e ponto de vista situado ..............................................................................63
1.4 Sobre o uso da fotografia como instrumento de pesquisa ............................................69
1.4.1 Conjuntos de fotografias comentadas ..............................................................................74
1.4.2 Fotografias apropriadas e representações compartilhadas.............................................82
2 JOVENS JORNALISTAS/COMUNICADORES QUE DÃO VIDA E CARA
AO FALA ROÇA .........................................................................................................84
2.1 Sobre percursos biográficos, juventudes e história de vida ........................................86
2.2 Elementos autobiográficos: os comunicadores por eles mesmos ...............................93
2.2.1 Michel Silva..................................................................................................................93
2.2.2 Beatriz Calado.............................................................................................................107
2.2.3 Michele Silva...............................................................................................................120
3 NASCE UM JORNAL NA ROCINHA: circuitos entre sonhos e
sobrevivências ...........................................................................................................133
3.1 Jornal Fala Roça: antecedentes ..............................................................................135
3.2 Jornal em tempos de UPP ........................................................................................138
3.3 Jornal (impresso) em tempos de internet ...............................................................141
3.4 Jornal em tempos de projetos para jovens .............................................................147
3.5 Sobre interações e brechas ......................................................................................155
4 NAS PÁGINAS DO FALA ROÇA: “UM JORNAL ARRETADO” ......................161
4.1 Por dentro do jornal impresso.....................................................................................162
4.1.1 Linha editorial e objetivos.............................................................................................164
4.1.2 Autorrepresentações (“quem somos”, título, editoriais) ................................................166
4.2 Editorias, colunas e outras seções ................................................................................176
4.3 Representações da Rocinha, em capas e páginas internas: “problemas sociais”
coletivos e histórias individuais de superação.................…………….………..........182
4.3.1 Capas: “Problemas sociais”...........................................................................................183
4.3.2 Páginas internas: histórias de moradores........................................................................191
REFERÊNCIAS .......................................................................................................333
bibliográfico................................................................................................................354
INTRODUÇÃO
11 Naquele momento, o Jornal Fala Roça tinha cinco integrantes fixos, dos quais três jovens eram responsáveis
pela produção de conteúdo (Beatriz Calado, Michel Silva e Michele Silva) e duas desempenhavam atividades
de cunho mais operacional e administrativo (Monique Silva e Tainara Lima). O grupo é apresentado em
maiores detalhes ao longo da tese – mediante consentimento para citar seus nomes.
24
passei a conhecer melhor o grupo que dava vida àquele meio de comunicação da Rocinha,
trocando ideias ao longo das caminhadas de entrega. As fotografias, feitas de forma consentida
e cedidas ao jornal, foram, em certo sentido, intermediando nossa relação. Desde março de
2014, eu acompanhava as andanças dos comunicadores e comunicadoras do Fala Roça levando,
favela a dentro, o impresso que eles mesmos faziam, do início ao fim: da escolha das matérias
à entrega aos moradores. A ideia do veículo nasceu em 2012, voltada sobretudo para a produção
de um jornal em papel. No ano seguinte, a primeira edição foi lançada e, com ela, foram sendo
incorporados novos hábitos e trajetos nas vidas dos jovens realizadores, pois passaram a subir
e descer os caminhos íngremes (nem sempre conhecidos) do morro onde nasceram e cresceram
com uma nova motivação: descobrir os melhores “jeitos” de cativar seus leitores para com eles
compartilharem suas visões de mundo e do cotidiano em que viviam. A edição entregue naquela
tarde ensolarada de agosto de 2016 foi a última publicada pelo Fala Roça em suporte impresso
(até o término da escrita desse trabalho). Mas a sua história continua: no momento em que
escrevo, o jornal prossegue na internet, com site e perfis nas principais redes sociais on-line,
inventando novas formas de existir, circular e resistir nos tempos da pandemia do Corona vírus.
2 Conheci a Rocinha e outras favelas do Rio de Janeiro em 2001, no início da vida profissional, trabalhando
com comunicação e fotografia. Explicito melhor este percurso no capítulo 2, ao situar minha trajetória e o lugar
de onde parto para escrever a tese. Em 2014, voltei a trabalhar na Rocinha, participando da coordenação do
projeto Regiões Narrativas, realizado pela Organização O Instituto – projetos e pesquisa. Nele, três oficinas
gratuitas - de fotografia, vídeo e animação - visavam contribuir para que os moradores criassem narrativas de si
e sobre suas visões de mundo, a partir do aprendizado de linguagens da comunicação.
25
moradores dessa favela, no início da segunda década dos anos 2000. O jornal nasceu, em 2012,
voltado principalmente para o formato impresso e, em seguida, ganhou plataformas na internet
(website e páginas nas principais redes sociais on-line)3. Do ponto de vista dos jovens
moradores da Rocinha que o criaram foi “Um sonho que tomou forma”4, conforme o título do
texto que o apresenta em sua primeira edição. E para dar continuidade a este sonho, era preciso
também transpor desafios de sobrevivência ao criar a própria forma de comunicar. Dentre as
muitas questões que se colocavam para os participantes estava encontrar formas de conciliar
projetos de vida e maneiras de viabilizar o jornal. As edições do Fala Roça em papel circularam
entre os anos de 2013 e 2016, quando havia na Rocinha, considerada pelo Censo do IBGE de
2010 como a maior favela do país (em termos demográficos)5, ao menos 20 iniciativas locais
de mídia em funcionamento (ver mapeamento exploratório de mídias da Rocinha no anexo A).
Em 2016, a publicação impressa foi interrompida por diferentes razões, mas o veículo
permaneceu ativo em suporte digital, com esforços constantes voltados para aprimorar suas
plataformas online, prosseguindo no fluxo do seu processo comunicativo dinâmico, não
cristalizado. Do ponto de vista dos estudos de antropologia da mídia, práticas de mídia não se
separam da vida social, são “um aspecto da vida social contemporânea” (ASKEW, 2002, p. 10).
A exemplo da fotografia, que congela um fragmento visual, enquadrado entre múltiplas
abordagens possíveis acerca das realidades do mundo, estabeleci coordenadas para delimitar o
objeto conceitual desse estudo. Trata-se de um processo situado em espaço e tempo específicos:
a favela da Rocinha – lugar de múltiplas conexões locais e supralocais – e o período entre os
anos de 2012 e 2018 – abarcando desde a criação do projeto Fala Roça até a época aproximada
em que seus realizadores decidem formalizá-la como uma associação de comunicação6.
3 Plataformas digitais do Fala Roça e seus endereços: website (www.falaroca.com) e perfis nas redes sociais
Facebook (facebook.com/falaroca), Instagram (instagram.com/jornalfalaroca), Twitter (twitter.com/falaroca),
YouTube (youtube.com/channel/UCZ7liaSkdswGRJPvxTGaJ-g).
4 Matéria “O sonho que tomou forma”, publicada na 1ª edição do Jornal Fala Roça, de maio de 2013. A autora é
Michele Silva, publicitária, que participa do jornal desde a sua fase inicial. Nascida em 1989, morou na
Rocinha a vida toda (até 2019). Durante o tempo da realização dessa pesquisa (2014-2018), dedicou-se a
escrever matérias, além de atuar na coordenação do jornal, da mesma forma que o faziam os jovens Michel
Silva (seu irmão) e Beatriz Calado – todos “crias” da Rocinha.
5 De acordo com fontes variadas da Rocinha, há discrepâncias entre os números de moradores registrados por
fontes de dados oficiais e as projeções locais. Estas calculam algo em torno de 150 a 200 mil moradores.
Segundo o Censo/2010 do IBGE, a Rocinha é o maior “aglomerado subnormal” do Brasil, com 69.161
habitantes. Já o Censo PAC Domiciliar (encomendado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro) contabilizou
98.319 residentes na mesma favela em 2009.
6 Não acompanhei detalhes sobre a criação da associação de comunicação vinculada ao Fala Roça, concretizada
já no período final do tempo dessa pesquisa. Apenas notei que a ideia de formalizar o jornal como pessoa
jurídica (“PJ”) foi se tornando frequente entre os participantes do Fala Roça na medida em que as atividades da
mídia iam se consolidando, ocupando mais espaço nas vidas dos jovens e ser “PJ” é praticamente obrigatório
para obtenção de recursos na área de comunicação. A decisão levou tempo para ser tomada por demandar um
consenso coletivo, já que impactava nos rumos profissionais de todos. No site do jornal, a associação é descrita
26
Simultaneamente, tal processo faz parte de uma dinâmica em curso mais ampla, relativa a
iniciativas de comunicação que surgem em diversas favelas7 e se reconhecem como
pertencentes ao local. São práticas heterogêneas, assim como o são as próprias favelas e espaços
de periferias da cidade do Rio de Janeiro, possuindo elementos de diferenciação e semelhanças.
Constituir-se como voz de resistência, reivindicando direitos e melhores condições de vida, é
um traço que perpassa muitas delas, embora se expresse de formas diferenciadas e possa se
mesclar com outros aspectos e interesses pontuais. Neste trabalho, concentro-me no estudo de
caso do processo do jornal Fala Roça, em que esta e outras dimensões discursivas se fizeram
presentes.
De forma resumida, os objetivos propostos pelo Fala Roça se voltavam8 a fornecer
informações sobre a Rocinha para a população da favela, a partir de visões de quem vive no
lugar. Na sua primeira edição impressa, sua apresentação foi descrita da seguinte forma: “O
FALA ROÇA é um jornal destinado aos moradores da Rocinha e feito por moradores da
comunidade”. Outras características marcantes em suas páginas se voltavam para a valorização
das tradições nordestinas no cotidiano local e do pertencimento ao espaço da favela. Costumes
e tradições relacionados ao Nordeste historicamente se mesclaram ao ambiente urbano do Rio
de Janeiro junto aos fluxos migratórios intensos das capitais e interiores daquela região para
estados do Sul-Sudeste, ao longo do século passado – principalmente nos anos 1940 e 1950
(ABREU, 2013). mantendo-se ativos, embora com menos força, durante as décadas seguintes.
As favelas vêm sendo destinos frequentes de quem faz os caminhos do êxodo rural. Na Rocinha,
essas conexões se fazem presentes nas origens familiares de grande parte da população,
incluindo as dos jovens criadores do Fala Roça. Já o pertencimento ao local de moradia se
expressa, neste periódico, de diferentes formas, dentre elas, no uso da expressão comunicação
comunitária9 para identificar suas práticas - esta forma de autodenominação será examinada ao
longo da tese, principalmente à luz dos entendimentos oriundos do campo de pesquisa.
Produzido nessa favela da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, o Fala Roça foi iniciado
por meio da participação de residentes locais, com idades entre 19 e 21 anos, nas atividades de
um “projeto”/ “metodologia” voltado para jovens moradores de favelas e periferias - a Agência
de Redes para Juventude10, realizada por meio de uma organização da sociedade civil chamada
Avenida Brasil Instituto de Criatividade Social (tais organizações são conhecidas no senso
comum como ONGs). Quatro pessoas (um rapaz e três moças) fizeram parte do grupo inicial e,
posteriormente, a equipe passou por modificações, estabilizando-se com cinco jovens entre os
anos de 2014 e 2018 (período da pesquisa de campo) – três responsáveis pela produção de
conteúdo e duas concentradas em funções operacionais. Meu contato maior se deu junto aos
três autores do conteúdo do jornal no período mencionado: Michel Silva, então estudante de
jornalismo prestes a se formar, presente desde a fundação do veículo; Michele Silva,
publicitária, que também participou durante toda a trajetória do FR, embora de forma
diferenciada na fase inicial; e Beatriz Calado, jornalista, integrada à equipe entre o terceiro e
quarto números do jornal11. Michele e Michel são irmãos e conheceram Beatriz na época da
fundação do jornal - nas atividades da mesma organização onde o jornal foi elaborado.
Conforme detalharei ao longo da tese, Bia (como me acostumei a chamar), Michel e Michele
se tornaram os principais interlocutores desta pesquisa: seus percursos biográficos
(apresentados no capítulo 2) entrelaçam-se com os tempos do jornal e constituem parte
importante da narrativa desse trabalho. Além deles, duas outras jovens faziam parte da equipe
de apoio do jornal, no período mencionado: Monique Silva, formada em Gestão de Negócios
(irmã de Michel e Michele) e Tainara Lima, estudante de Pedagogia (companheira de Michel).
Durante os cerca de quatro anos da pesquisa de campo, estes cinco jovens aceitaram gentilmente
a minha companhia em muitos momentos e situações envolvendo a produção, distribuição e
circulação do Fala Roça.
O presente estudo se volta para o acompanhamento etnográfico do processo de feitura
dessa mídia, com objetivo de conhecer os múltiplos aspectos que contribuíram para que
10 Neste trabalho, irei me referir à Agência de Redes para Juventude usando a sua abreviação publicamente
conhecida “Agência de Redes” ou somente ARJ. A opção por adotar a expressão combinada
metodologia/projeto (dispensando as aspas daqui em diante) para me referir a este programa de atividades
voltado para jovens é abordada, mais detidamente, no capítulo 4. Por ora, vale dizer que essa iniciativa se
apresenta como uma metodologia, conforme seu site na internet (http://agenciarj.org/), mas é também
amplamente reconhecida como “projeto”, segundo textos de seus patrocinadores e coordenadores, incluindo o
publicado na primeira edição impressa do jornal Fala Roça.
11 A etapa da criação do jornal é abordada no capítulo 4, onde são citados os participantes desta fase inicial –
com base em textos publicados no próprio jornal, no “expediente” da mídia e nas narrativas dos jovens. A partir
de agora, irei me referir aos integrantes do FR com quem tive mais contato durante a pesquisa por seus
primeiros nomes (Beatriz, Michel, Michele, Monique e Tainara).
28
existisse em sua forma própria, com suas especificidades. Para tanto, optei por realizar um
estudo de caso, buscando perceber como a comunicação amplamente conhecida como
comunitária foi apropriada e produzida por este jornal, além dos sentidos que ela adquire para
seus/suas comunicadores/as (há outras formas usadas para denominar iniciativas de
comunicação localizadas em favelas, por seus realizadores, a exemplo de comunicação popular
e alternativa – ver capítulos 6 e 7). Questões sobre as quais reflito são: como é construído o
discurso dessa mídia e quais representações da Rocinha são predominantes nas edições
impressas do jornal? Há efeitos do cotidiano da cidade sobre dinâmicas do jornal Fala Roça?
Se sim, quais e de que forma? Como o estudo de caso do Fala Roça pode contribuir para o
conhecimento sobre a comunicação comunitária – também chamada de popular, alternativa,
“de favelas” etc – realizada, atualmente, em periferias e favelas do Rio de Janeiro?
A expressão comunicação “de favela” foi uma forma usada por um dos participantes
deste jornal para se referir à prática de comunicação que compreendia realizar. Ao buscar
explicá-la (o que considerou difícil resumir em algumas ocasiões), Michel a chamou também
de jornalismo “de favela”, feito “no cotidiano” desses espaços. Mas o que é e como seria
realizada esta prática, do ponto de vista dos integrantes dessa mídia? Estabelecer um
contraponto em relação a definições de textos acadêmicos sobre comunicação comunitária foi
a motivação inicial de Michel para utilizar o termo “de favela”. Retomarei esta discussão no
decorrer da tese, mas aqui já se anuncia um dos pontos associados à representação desta prática,
aos olhos de meus interlocutores: o direito de moradores locais construírem suas narrativas
sobre as favelas não só em suas mídias, mas em diferentes esferas do debate público, incluindo
a produção de conhecimento sobre comunicação considerada comunitária nos espaços
acadêmicos.
As concepções dos sujeitos de pesquisa sobre a sua forma de comunicar inspiraram a
redefinição dos objetivos originalmente pensados12 para o presente estudo, moldados durante a
convivência com os jovens do jornal, pessoas e grupos de moradores da Rocinha que conheci
na jornada da pesquisa e mesmo antes de iniciá-la13. A primeira mudança foi a concentração da
12 Em concordância com autores como Pierre Bourdieu, a definição do objeto de pesquisa, bem como dos seus
objetivos, remete a uma dimensão processual. Ao enfatizar a importância de pensar relacionalmente (de forma
contextualizada) aspectos teóricos e provenientes da aplicação de metodologias de pesquisa, Bourdieu
assinala que “a construção do objeto [...] não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie
de ato teórico inaugural, e o programa de observações ou de análises por meio do qual a operação se efetua
não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira do engenheiro [...]”(2004, p. 27).
13 Meu percurso profissional é explicitado no capítulo 1. Em resumo, atuei em atividades de mídia, pesquisa,
desenvolvimento institucional, fotografia, etc em favelas do Rio. Conheci a Rocinha em 2001, como fotógrafa
da ONG Viva Rio e editora de fotografia do portal Viva Favela (projeto da mesma instituição); mais
29
investigação apenas na Rocinha, após ter realizado pesquisa exploratória também no conjunto
de favelas da Maré. Por conhecer meios de informação impressos em ambas regiões e estas se
tratarem das áreas de favelas com grande concentração de meios de comunicação, conforme
alguns levantamentos (ANSEL; SILVA, 2012), cogitei fazer um estudo comparativo entre
jornais de favelas das zonas sul (Rocinha) e norte (Maré) da cidade. No entanto, meus contatos
foram se estreitando com os comunicadores da Rocinha, onde eu então trabalhava. Além disso,
a instalação das Forças Armadas na região da Maré em 2014, época inicial da minha pesquisa,
gerou violações de direitos de moradores, censura a veículos de informação locais (MARTINS,
2018) e contribuiu para a paralisação da produção do periódico que pretendia acompanhar.
Outro ajuste foi em relação à proposta inicial de estudar representações sobre a cidade nos
discursos dos dois jornais. Concentrar-me no processo de comunicação relativo ao Fala Roça,
com objetivo de conhecer como se constituiu a sua forma específica de produzir informação,
contemplava uma possibilidade maior de incluir as visões dos jovens sobre a própria prática,
além de uma gama maior de situações presenciadas junto à equipe do jornal. Ou seja, ao me
aproximar das atividades dos principais realizadores e do contexto da feitura dessa mídia, fui
“sendo afetada”14 (FAVRET-SAADA, 2005) pelos encontros, acontecimentos, vivências,
conquistas e dilemas que faziam parte da sua produção. De maneira a levar em conta o percurso
etnográfico do trabalho de campo, voltei-me, não só para as representações mobilizadas pelo
conteúdo do jornal, mas também para a percepção de um conjunto mais amplo de questões do
cenário social urbano que o envolviam e, em alguma medida, materializavam-se em seu
discurso. “Os meios de comunicação de massa e seus produtos são fundamentais para a
compreensão dos fenômenos urbanos contemporâneos”, como aponta Isabel Travancas (2008,
p.113). Mesmo não sendo meios “de massa”, veículos de comunicação oriundos de favelas
podem ser igualmente importantes para pensar a realidade urbana contemporânea, como espero
indicar a partir deste estudo.
Perceber a maneira como as vozes condensadas nesse periódico se colocavam no espaço
público, de um ponto de vista micro, mais aproximado, implicou em conhecer dinâmicas sociais
que se formaram em torno da construção das representações publicadas. Nesse sentido, coube
pensar em quais aspectos foram abordados e quais não ganharam relevância, como foram
escolhidas as pautas. Quais agentes sociais estiveram envolvidos na construção dos discursos
veiculados e como textos e imagens foram produzidos? Abordo esses pontos nas reflexões sobre
os diferentes itens que compõem a estrutura do jornal. Em outras palavras, busquei perceber
como foram elaboradas essas construções discursivas em torno da favela da Rocinha na “cultura
pública” local, ou seja, em concordância com Akhil Gupta, Stuart Hall e outros autores,
pensando a cultura pública como “uma zona do debate cultural conduzida através da mídia de
massa, outros modos mecânicos de reprodução e através das práticas visíveis de instituições
como o Estado” (GUPTA, 2009:221). Antropólogo indiano, Gupta se insere na abordagem das
perspectivas pós-coloniais (GUPTA, 2009)15. Sua pesquisa sobre a construção discursiva do
Estado na cultura pública leva em conta a análise de jornais impressos locais, além de outras
fontes de dados, por entendê-los como “textos culturais”, ou seja, ao serem produzidos por
residentes, constituem uma forma de “conhecimento situado”. Dessa maneira, têm muito a
oferecer “quando vistos como uma forma discursiva relevante através da qual a vida cotidiana
é narrada e coletividades são imaginadas” (GUPTA, 2009, p. 222). Essa perspectiva parece útil
para pensar manifestações de comunicação (nesse caso, jornalística) produzidas em favelas e
periferias como lugares que concentram saberes, conhecimentos, representações,
autorrepresentações, memórias coletivas, expressões subjetivas, entre outros aspectos relativos
ao ambiente onde se inserem.
Entendo que a contribuição dessa tese esteja justamente em apreender os sentidos
conferidos pelos jovens do jornal à sua própria forma de comunicar e, assim, chamar atenção
para o que têm a dizer sobre si, sobre as favelas onde nasceram e cresceram e, ainda, para suas
visões de mundo. Portanto, é fundamental escutá-los e, dessa forma, dialogar com debates já
existentes acerca da produção de informação a partir de espaços de favelas. Produção esta que
corresponde a um direito formalmente reconhecido na Declaração Universal dos Direitos
Humanos16, mas cuja efetividade não se exerce de forma fácil nem isolada: está atrelada ao
conjunto dos outros direitos fundamentais, além de ser um meio importante para reivindicá-los,
15 Os estudos pós-coloniais, em linhas gerais, podem ser entendidos como um campo heterogêneo de
pensamentos que foi se construindo a partir de meados da década de 1980, principalmente no mundo
acadêmico dos Estados Unidos e Europa. Por um lado, demanda análise crítica do discurso colonial
predominante em grande parte das disciplinas acadêmicas, e, por outro, concentra-se em processos de
hibridização, negociação e resistência que vêm sendo levados a cabo em contextos de colonialismo
(MEZZADRA, Sandro et al. Estudios postcoloniales: ensayos fundamentales. Madrid: Traficantes de
sueños, 2008).
16 Trecho do Artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo ser humano tem direito à
liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de
procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-19-direito-a-liberdade-de-opiniao-e-expressao/. Acesso: em
agosto/2020.
31
17 As denominações comunicadores/as e jornalistas são, atualmente, usadas por pessoas que trabalham com a
produção de informação em favelas da cidade para se autodefinirem. Há que se notar, contudo, que seus usos
variam de acordo com contextos específicos. Em tempos recentes, venho notando maior apropriação do termo
“jornalista” por moradores de favelas (abordo este tema no capítulo 2). Por ora, registro que houve oscilações
no campo de pesquisa quanto ao uso desses termos, entre meus interlocutores, o que também se refletiu neste
trabalho, sob a forma de alternâncias no uso dessas palavras para designar os jovens do Fala Roça.
32
Esse contexto, aos poucos, foi demonstrando que o estudo de caso sobre o processo de
comunicação do Fala Roça poderia abrir janelas para evidenciar entrecruzamentos de
circunstâncias que contribuíram para a sua existência. Entre eles, está a construção de caminhos
por meio dos quais jovens adultos, então com vinte e poucos anos, interessaram-se pela
produção de um informativo impresso (conectado a plataformas digitais) na favela onde moram,
em meio a decisões sobre seus projetos de vida, à elaboração de suas visões de mundo, dos
espaços de subjetividade desenvolvidos e de suas expectativas profissionais. Conforme
mencionado, todos/as fazem parte da primeira geração de suas famílias que acessou a
universidade, em contraste com a dos pais ou avós (i)migrantes que vieram para a favela, não
raro, em busca de um “eldorado” – conforme lembrou Michele –, e tinham entre suas
preocupações centrais garantir os estudos dos filhos18. Para abarcar algumas dessas
circunstâncias e suas interseções, busco olhar também para eventos da conjuntura sociopolítica,
de nível nacional e regional ocorridos no período de existência do jornal, afetando o dia a dia
das relações sociais na favela, com as quais os comunicadores tiveram que lidar. Entre as
situações e eventos considerados, estão a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora na
Rocinha em setembro de 2012; o desaparecimento do morador Amarildo Dias de Souza, em
2013, após ser levado por policiais da mesma UPP; as manifestações de 2013 que tomaram as
ruas do país, muitas delas incorporando o grito “Cadê o Amarildo” como símbolo de protesto
contra a violência policial; os megaeventos Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016;
os processos eleitorais de 2014 a 2018 e, finalmente, a Intervenção Federal no estado do Rio de
Janeiro, resultando na exacerbação do processo de militarização na favela da Rocinha,
transformada em “vitrine” da atuação de forças policiais no estado.
Embora o atual estudo não pretenda fazer generalizações, pode jogar luz sobre a
compreensão dessas dinâmicas contemporâneas da cidade por meio de “pistas” deixadas pelas
experiências de novas gerações (a partir de suas próprias perspectivas). Conforme Telles, “ao
perseguir os trajetos e percursos dos mais jovens, desenha-se um outro perfil da cidade” (2010,
p. 118). Como mencionado, o percurso do Fala Roça, do qual fazem parte as trajetórias de
Michele, Michel e Beatriz, foi atravessado por circunstâncias que se tornaram constitutivas das
mediações e sociabilidades por trás das páginas do jornal. Um dos eixos que pode ser pensado
18 Sobre a importância de estudar nas vidas de Michel, Michele e Beatriz: “Os meus pais sempre diziam: ‘Pobre
não tem nada, então você tem que priorizar a educação’. Foi isso que meus pais fizeram” (Beatriz, história de
vida, em 05/11/2016); “Eu falava: ‘vocês vão estudar e um dia vocês vão se formar’. E elas corriam atrás
também, eram muito esforçadas, não paravam, tinham muita vontade. [...] Eu falava pra eles ‘não quero que
vocês cresçam como eu cresci; nesse mundo de hoje, vocês vão crescer diferente, com uma educação diferente,
uma vida diferente, com estudo’. A gente conscientizava muito” (Dona Josita, mãe de Michel, Michele e
Monique, história de vida de Michel Silva, em 06/02/2017).
34
a partir daí é o da coexistência de duas situações ensejadas pelo processo do jornal, que refletem
dilemas já conhecidos, porém, este estudo pode permitir perceber como se concretizam na vida
contemporânea da cidade e, especialmente, da favela da Rocinha, no âmbito deste estudo. De
um lado, estaria a perspectiva afirmada pelo jornal de contribuir para as lutas em favor dos
direitos dos moradores, expressa tanto no título do jornal quanto em textos nele publicados,
fazendo alusão a ter voz e direitos19. A valorização dessas lutas é também um ponto em comum
nas entrevistas de história de vida dos três participantes do jornal. Por outro lado, a dimensão
do trabalho, “estruturante da vida social” (TELLES, 2010), também se colocava de forma
premente na vida do rapaz e das duas moças envolvidos de forma mais duradoura com o
periódico – além de produzi-lo, em paralelo, necessitavam encontrar meios para o seu sustento.
Nesse caso, uma opção seria contar com formas de remuneração por meio do jornal, o que não
havia até o momento e a mídia passou a ocupar um tempo considerável nas suas rotinas de vida.
Porém, seria necessário considerar o caminho da formalização jurídica, decisão que implicaria
em mudanças nos rumos profissionais de todos.
Vale salientar que a cidade do Rio de Janeiro passava por tempos de reestruturação
produtiva, desde ao menos os anos 1990, experimentando seus efeitos excludentes, por
exemplo, no mundo do trabalho – sob as formas de ocupações profissionais intermitentes,
precárias, do crescimento da economia de serviços, etc (TELLES, 2010; OLIVEIRA, 2003).
Portanto, esses três jovens nasceram e ingressaram no mercado de trabalho (entre início e
meados dos anos 2010) já nessas condições, intercalando estágios, trabalhos temporários e
outras ocupações, com períodos de desocupação. Em meio aos estudos ou logo depois de
finalizarem a graduação, faziam os primeiros estágios na área de comunicação, trabalhavam em
projetos de ONGs, em instituições com ou sem fins lucrativos, startups20, além de fazerem
serviços “frilas” (temporários). Simultaneamente, esses foram também os tempos de preparação
da cidade e do país para os megaeventos esportivos, entre os quais se destacaram a Copa do
Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. De acordo com Orlando Santos Junior e Patrícia
Ramos Novaes (2018, p.17), há fortes indícios da vinculação entre esses eventos e “profundas
mudanças na reestruturação urbana da cidade”. Pensando com autores acima, tais mudanças se
19 Em, pelo menos, 6 das 8 edições lançadas pelo Jornal Fala Roça, as manchetes de capa abordaram assuntos
relacionados à infraestrutura da Rocinha: transporte – edições 1 e 2; segurança pública – edição 3; custo de
vida – edição 4; lixo/saúde – edição 5 e o legado das Olimpíadas – edição 8. De forma mais, outras menos
direta, os textos trazem demandas por melhorias nas condições de vida na favela e, consequentemente, podem
ser entendidos como parte do contexto local de lutas por direitos.
20 O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) define startup como: “Um grupo de
pessoas iniciando uma empresa, trabalhando com uma ideia diferente, escalável e em condições de extrema
incerteza”. http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/Busca?q=%20startup. Acesso em: 16 out. 2019.
35
expressaram por meio de “ajustes espaciais” – conforme David Harvey (HARVEY, 2005) –,
decorrentes da “crescente adoção do empreendedorismo urbano e da urbanização neoliberal na
cidade do Rio de Janeiro” (SANTOS JUNIOR e NOVAES, 2018, p. 17), que apontaram “na
direção do aprofundamento das desigualdades socioespaciais da cidade e para possíveis
processos de gentrificação”. Nesse contexto, foram lançadas as oito edições do Jornal Fala
Roça (entre 2013 e 2016), onde os temas da supervalorização de imóveis na Rocinha, de um
casal de jovens “empreendedores”21 que decide abrir um negócio na favela após ficar
desempregado e as opiniões de moradores sobre o legado deixado pelas Olimpíadas de 2016,
por exemplo, foram abordados em suas manchetes de capa22.
Esses elementos abrem caminhos para pensar sobre aspectos mais específicos como a
questão do que chamo de gramática do empreendedorismo, que perpassa ações e projetos
sociais, sejam de cunho público, privado e/ou sem fins lucrativos, voltadas para juventudes de
favelas. Conforme vêm salientando alguns/mas autores/as (TOMMASI, 2014, 2016, 2018;
ROCHA, FREIRE-MEDEIROS, 2011; ROCHA, CARVALHO; 2018, LEITE, 2015, entre
outros), na esteira das UPPs, tornou-se frequente um modelo de investimento nesses locais de
criação e gestão de projetos, em escalas individualizadas, pautados na lógica do
empreendedorismo como solução expressiva na vida dos jovens. É um tema complexo e, aqui,
volto-me para uma abordagem a partir de efeitos no processo estudado. A questão da
formalização do jornal, já mencionada, tornou-se uma preocupação significativa para os seus
integrantes; por fim, decidiram se tornar uma associação de comunicação, pouco depois de
finalizado o trabalho de campo desta pesquisa. Tal cenário fará parte da análise desenvolvida
em outras partes desta tese, levando em conta também a existência de apropriações feitas pelos
jovens destas iniciativas, ao seu modo (NOVAES, 2006; SOUZA, 2018; STROZENBERG,
CONTINS, 2012).
No que diz respeito aos resultados deste estudo, circunstâncias sociais, culturais e
políticas que contribuíram para a existência do Fala Roça foram se evidenciando. Ao
21 Jornal Fala Roça, edição 7, matéria “Casal abre empresa de bolos após perder o emprego e conquista
clientela”.
22 Seguem as manchetes da versão impressa do Jornal Fala Roça e suas respectivas edições: n. 1: “Rocinha no
ar. Comunidade da Rocinha se prepara para receber o seu teleférico”; n. 2: “Sem escolha. Prefeitura do Rio
modifica trajeto de vans na Rocinha e Vidigal e ocasiona transtornos no cotidiano de usuários e moradores”;
n. 3: “Cadê o Amarildo”; n. 4: “Supervalorização. O aumento do custo de vida na Rocinha”; n. 5: “Lixo
acumulado a céu aberto pode causar doenças aos moradores. Casos mais comuns registrados são infecções de
pele e hepatite A”; n. 6: “Rio antigo: a fazenda Quebra Cangalha e a origem da Rocinha. Barracos começam a
subir o morro no início dos anos 50”; n. 7: “Casal abre empresa de bolos após perder o emprego e conquista
clientela. Allan e Bárbara decidiram investir no ramo da alimentação vendendo bolos de pote”; n. 8: “O que a
Olimpíada deixou para o Rio e a Rocinha? Veja a opinião de moradores”.
36
23 A noção de trajetória será inspirada, neste trabalho, em autores como Pierre Bourdieu, Regina Novaes e Vera
Telles.
24 Ver mapeamento de meios de comunicação da Rocinha, no Anexo B.
37
analisado de forma mais ampla me levou a estar atenta às mídias da Rocinha de forma geral.
Uma confluência de circunstâncias (felizes) possibilitou um contato maior com materiais
remanescentes dos dois informativos citados acima, cujos acervos foram gentilmente cedidos à
consulta no âmbito desta pesquisa25. Ambos desempenharam papéis relevantes, em seu tempo
e à sua maneira, seja na mobilização de moradores por melhorias nas condições de vida, seja
como mediadores para estimular a discussão sobre assuntos de interesse local no espaço público
da favela. Esses e outros tantos veículos de comunicação fizeram parte da constituição histórica
e cultural da favela, assim como os meios contemporâneos de informação hoje também
contribuem para construção do seu cotidiano.
Assim, os meios impressos produzidos na Rocinha se situam em um universo maior das
tradições discursivas letradas da favela, cuja relevância pode ser pensada com inspiração na
noção de genealogia proposta por Michel Foucault (1979). Esta, de forma breve, diz respeito a
abordar acontecimentos passados, mas partindo do que funciona no presente ou de temas e
questionamentos atuais sobre os quais tenhamos intenção de pensar/agir hoje. Trata-se de um
“modo de escrever a história como pergunta/problema” (...) “rompendo com uma história
contínua, linear, teleológica, que buscava origens e semelhanças entre os objetos e as tentativas
de estabelecer relações causais entre os acontecimentos” (LEMOS, JUNIOR, 2009, p. 353).
Dessa forma, a intenção é trazer à tona saberes considerados submissos ou dominados, o “saber
histórico da luta” (FOUCAULT, 1979, p. 96). A convivência com moradores, comunicadores,
grupos e organizações da Rocinha em luta pela sobrevivência de suas histórias e memórias
estimulou a busca por tornar esta pesquisa não só adequada às regras exigidas em termos
estritamente acadêmicos, como também de utilidade para a população da favela. Nesse sentido,
junto às reflexões aqui levantadas iniciei a construção de um mapeamento de veículos de
comunicação da Rocinha (extintos e contemporâneos), incluído no anexo A desta tese26. Além
disso, desenvolvi um método para colocar em diálogo veículos de outrora que carregam
registros da história da favela (ou saberes de lutas) e narrativas contemporâneas também feitas
25 A versão digitalizada do Jornal Tagarela foi cedida à consulta para esta tese pelo Museu Sankofa Memória e
História da Rocinha (museudarocinha.blogspot.com.br). O Museu é uma iniciativa de moradores da Rocinha
voltada para a valorização e reconhecimento da história da favela, assim como para trabalhos e atividades a
partir da sistematização de memórias locais. Quanto ao jornal Rocinha Notícias, os exemplares remanescentes,
em papel, foram cedidos para consulta por Edu Casaes, repórter e um dos fundadores dessa mídia (junto com
Carlos Costa e Déo Pessoa). Responsabilizei-me pela digitalização desse material, concluída em maio de 2020
e doada aos fundadores do RN.
26 Para esta pesquisa, realizei um mapeamento de mídias produzidas por moradores da Rocinha (grupos
ou indivíduos), voltadas para comunicação em geral (com e sem fins lucrativos). Mesmo ainda em etapa
exploratória, ajuda a registrar um campo expressivo de meios de comunicação oriundos dessa favela.
De acordo com o levantamento, havia 21 mídias ativas entre 2014 e 2018 (ver Anexo B desta tese).
38
por moradores. Realizei uma análise documental das capas da versão impressa do Fala Roça,
com ancoragem nos principais temas nelas abordados, e notei conexões ou contrastes destes em
relação aos temas abordados nas capas dos jornais Tagarela e Rocinha Notícias, de importância
reconhecida junto a moradores locais do seu tempo27.
No contexto específico de circulação da mídia aqui enfocada, foi ganhando contorno
um discurso que chamei de híbrido (visão compartilhada com as de comunicadores do FR),
relativo ao conteúdo dos oito números impressos lançados entre 2013 e 2016 - os últimos quatro
publicadas durante o tempo desta pesquisa. Tal ideia se relaciona a representações diferenciadas
sobre a Rocinha abarcados nas edições impressas, bem como à adoção de uma linguagem
jornalística cada vez mais qualificada e aos dilemas de lidar com riscos trazidos por
posicionamentos declaradamente “ativistas” (ou “engajados”)28 em causas políticas. Nesses
anos iniciais do periódico, houve distintas fases, experimentações e situações vividas
(abordados nos capítulos 3, 4 e 7), conectando-o às trajetórias dos comunicadores e à conjuntura
do entorno. Ou seja, não se tratava de um produto homogêneo e acabado, mas dinâmico,
passando por experimentações e sofrendo consequências por adotar alguns posicionamentos.
Em resumo, a análise documental das edições impressas aponta para duas representações mais
recorrentes da Rocinha em matérias das páginas do periódico: uma relacionada ao plano
coletivo da população, outra a um universo mais individual relacionada a perfis de moradores.
Na primeira, que ocupa mais as capas do jornal, estão presentes pautas abordando problemas
crônicos de infraestrutura da favela - remetendo ao conjunto dos moradores e seus direitos; na
segunda, as pautas abordam histórias, iniciativas e perfis de moradores, porém, frequentemente
destacando a sua capacidade de superar as dificuldades. De um lado, há direitos coletivos
desrespeitados, de outro, há moradores que conseguem superar todas as dificuldades. Trato
dessa questão no capítulo 4.
Ao falar em discurso, aqui me refiro sobretudo à perspectiva teórica e metodológica da
Análise de Discurso e à contribuição mais específica de Michel Foucault a esta linha de
pensamento. Para Foucault, o discurso é composto por um conjunto de práticas (cotidianas),
onde se inserem as expressões da linguagem, submetidas a procedimentos de controle e
organização socialmente estabelecidos. Segundo este raciocínio, vincula-se a dinâmicas de
27 Importante esclarecer que as análises documentais dos jornais Tagarela e Rocinha Notícias foram apenas
referentes às capas e não uma análise em profundidade de conteúdo destes veículos, o que fugiria ao foco
proposto neste estudo.
28 Entre os meus interlocutores, os termos ativismo e engajamento eram mais utilizados do que militância; esses
significados tinham variações, mas, em geral, se referiam a lutar por direitos. Abordo alguns dos significados
ao longo da tese.
39
poder e desejo: “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”
(1996, p. 10). O fato de mídias oriundas de favelas abordarem temas relativos a direitos não é
novo, principalmente nos anos pós-internet, quando esses canais de informação e
autorrepresentação se multiplicaram29. Mas a relevância para as Ciências Sociais e a sociedade
em geral está em compreender as trajetórias dos atores que os abordam, suas motivações, a
maneira como este tema e outros afins são narrados, representações a eles associados e efeitos
provocados. É também importante salientar que o universo das favelas é tratado pelos meios de
comunicação mais influentes a partir de um enfoque, quase sempre homogêneo, que associa
estes espaços a ideias pejorativas; assim, conhecer processos de comunicação realizados nesses
espaços remete ao reconhecimento de outros olhares e epistemologias, necessários, sobre a
cidade. Nesse caminho, compreender o que são consideradas notícias “boas” ou “ruins”, por
exemplo, pode indicar circunstâncias próprias a cada contexto social e histórico. Foi nesse
sentido que busquei transitar ao pensar sobre o processo de comunicação enfocado neste estudo.
Ao invés de perceber características como dicotômicas ou contraditórias, busco tomá-las como
faces de uma mesma realidade dentro da qual os jovens da Rocinha precisavam se movimentar.
Para apreender esta dinâmica, tentei notar circunstâncias que provocaram alternâncias entre as
abordagens mencionadas, mas principalmente invocar elos para além dos polos (como
“dentro”/ “fora”, “boa”/ “ruim” etc) que podem suscitar.
Em termos conceituais, o tema deste estudo ultrapassa fronteiras de uma área única de
conhecimento, dessa maneira, movimentar-me entre as muitas possibilidades de abordagens
teóricas configurou um desafio. Optei por referências sobretudo relativas às ciências sociais,
mas em diálogo com outras áreas, como a comunicação social, os estudos de mídia e a filosofia.
Antes de mencioná-las, porém, apresentarei brevemente o jornal enfocado, o pequeno grupo de
realizadores que o produziam entre 2014 e 2018, elementos do cenário urbano da Rocinha e da
cidade, além de alguns percursos da pesquisa.
29 Sobre o aumento da quantidade de mídias em favelas, alguns estudos buscam registrar esse crescimento.
Nesse sentido, o estudo Mídia e Favela, realizado pelo Observatório de Favelas em 2012, aponta um
crescimento no número de meios de comunicação oriundos de espaços populares na Região Metropolitana do
Rio de Janeiro: a pesquisa identificou a existência de 104 veículos de “comunicação alternativa” No universo
de 73 veículos investigados, 46 foram criados após os anos 2000, o que indica um incremento de iniciativas
em tempos recentes. A mesma pesquisa apontou, à época, que as regiões com maior concentração de mídias
eram Rocinha e Maré (ANSEL; SILVA, 2012).
40
Voltando ao Fala Roça, o jornal teve origem nos meses finais de 2012, a partir de um
processo coletivo de criação realizado nas oficinas da Agência de Redes para Juventude, a qual
havia iniciado sua atuação na Rocinha naquele mesmo ano - pouco tempo após a sua fundação
(em 2011). Em resumo, a Agência se apresenta como “uma metodologia que potencializa
jovens com idades entre 15 e 29 anos, moradores de favelas e periferias, a transformarem ideias
em projetos de intervenção em seus territórios”, cuja atuação se restringia a regiões de favelas
e periferias com Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)30. Elaborado por um pequeno grupo
de jovens “crias”31 da Rocinha, com apoio de integrantes da ARJ e consultores externos, o Fala
Roça se tornou um veículo de mídia impressa e digital, ao mesmo tempo em que seus
integrantes concluíam os estudos e/ou iniciavam seus percursos profissionais, buscando garantir
o próprio sustento. De maio de 2013 a agosto 201632, foram lançadas oito edições impressas,
com tiragens de cinco mil exemplares, distribuídas pelos próprios comunicadores nas ruas e
becos da favela. Embora as proporções da tiragem impressa fossem reduzidas face à população
local, os esforços da equipe (em geral, também reduzida), ao contrário, eram grandes para botar
o jornal “na rua”. Neste tempo inicial de existência do impresso, entre 2013 e 2016 (quando
houve uma interrupção maior), a periodicidade correspondeu, em média, a duas edições ao ano
– com exceção de 2015, quando foram publicados três números.
Pouco tempo depois do lançamento do primeiro número em papel, o FR estava presente
também na internet: os próprios jovens criaram o seu site, aos poucos aprimorado e ampliado,
usando plataformas gratuitas e perfis nas principais redes sociais on-line (Facebook, Twitter,
YouTube e Instagram). A despeito de o formato tabloide (impresso) ter mobilizado grande parte
dos esforços da equipe durante toda a sua trajetória – visando atingir principalmente (mas não
só) a população da Rocinha com acesso limitado à internet ou off-line -, o impresso deixou de
circular em agosto de 2016. A produção digital permaneceu ativa, com períodos de maior ou
30 O trecho entre aspas faz parte da apresentação da Agência de Redes em seu site na internet. Acessível em:
www.agencia.org. Consultado em: outubro de 2019. O texto citado foi publicado na edição de estreia do
jornal, com título “Geração Agencia”, informando “(...) O projeto [Agência de Redes Para Juventude], visa
formar e mobilizar jovens atores na cena da política pública social. (SIC) Atendendo jovens das 22
comunidades do Rio de Janeiro com Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs (...)”.
31 “Cria” é uma expressão usada, de forma autorreferida, por moradores de favelas geralmente para designar
quem nasce, cresce e mora nesses espaços da cidade. Por ser uma expressão de uso coletivo, abarca também
variações de sentidos. Para Gizele Martins e Renata Souza, está relacionada a pertencimento e participação em
prol das favelas onde moram: segundo Martins, remete a estar “inserida” (2018, p.18); Souza reconhece que
são “aqueles que nascem e se identificam de fato com uma transformação da favela por meio da garantia e
acesso a direitos fundamentais” (2018, p. 48). De agora em diante, irei usar essa palavra sem aspas no texto da
tese, exceto quando for citação direta de falas de interlocutores da pesquisa.
32 As oito edições impressas do Jornal Fala Roça foram lançadas nas seguintes datas: n. 1, maio de 2013; n. 2,
agosto de 2013; n. 3, fevereiro de 2014; n. 4, agosto de 2014; n. 5, fevereiro de 2015; n. 6, agosto de 2015; n.
7, dezembro de 2015 e n. 8, agosto de 2016.
41
33 O trabalho de campo de pesquisa desta tese se encerrou em 2018, antes da formalização do grupo do Fala
Roça como associação de comunicação. Portanto, não foram incluídos maiores detalhes sobre esta etapa mais
recente. Em seu site na internet, no trecho final da sessão “Nossa história”, há o seguinte registro: “(...)
Atualmente, o Fala Roça é uma associação de comunicação. Sempre pensando em novas narrativas de
comunicação na favela”. Disponível em: https://falaroca.com/nossa-historia/Acesso em: 05 nov. 2019.
34 Devido ao uso corrente do termo comunicação comunitária – em um espectro amplo de situações relativas ao
tema da mídia e dos meios de comunicação –, via de regra, não utilizarei aspas ao mencioná-lo nesta tese.
35 O espaço dos editoriais, conforme os padrões do jornalismo convencional, é destinado à opinião e à
exposição de princípios e valores (quando explicitados) que guiam um meio de informação. Os editoriais do
Fala Roça serão tratados de forma mais detalhada no capítulo 5.
42
comunicação –, acredito não ser necessário, neste trabalho, fazer uma revisão bibliográfica
exaustiva sobre a abordagem do tema na literatura acadêmica. Situo apenas as principais linhas
de discussão a respeito do tema e, neste sentido, sobretudo as contribuições recentes de
pesquisas feitas por jornalistas/comunicadoras oriundas de favelas do Rio.
A partir dessas considerações, relembro que abordo mais especificamente significados
acionados pelo grupo do Fala Roça, e atores sociais com os quais dialoga, acerca do
entendimento sobre comunicação comunitária e outras expressões que usam para definir suas
práticas. Alguns desses significados, não raro, coincidem com os de outros grupos de
comunicação situados em contextos semelhantes ao seu (embora cada qual mantenha suas
singularidades), o que pode fazer com que o estudo do caso desse processo de comunicação se
mostre útil para pensar sobre as realidades de meios de comunicação de favelas do Rio de
Janeiro, de forma mais ampliada. Na perspectiva dos participantes do FR, se era importante
estar conectado com um campo maior identificado com ideias e práticas reconhecidas como
integradas à comunicação conhecida como comunitária, também era importante estabelecer
uma singularidade dentro dele. Assim pode ser pensada a escolha da “linha editorial” do Fala
Roça, durante as oficinas de criação do periódico, voltada para a “cultura nordestina” 36. O
pertencimento ao campo das tradições nordestinas, remetendo ao expressivo contingente de
moradores locais com raízes advindas daquela região do país, foi considerado um “diferencial”,
para os fundadores desta mídia, em relação a outros veículos locais de informação.
São agentes centrais no processo de comunicação estudado jovens que exerceram papéis
ativos na feitura do Jornal Fala Roça, ao longo da sua história. Beatriz Calado, Michel Silva e
Michele Silva37, com idades entre 20 e 25 anos, no início do estudo (nascidos respectivamente
em 1994, 1993 e 1989) foram os principais responsáveis pela produção do conteúdo e tarefas
de edição da mídia no período da realização da pesquisa (2014-18), o que gerou maior
aproximação com esse grupo, considerando o universo da equipe então reduzido, com apenas
36 A valorização das tradições nordestinas é descrita no primeiro número do Fala Roça: “Sabemos que a
expansão da Rocinha se deu muito por conta da chegada dos nordestinos, por isso, o nosso jornal contará com
o toque especial do Nordeste”, conforme outro trecho do texto “O sonho que tomou forma” – Fala Roça,
número 1, página 4.
37 Os três jovens atuaram juntos no Fala Roça (em seus formatos impresso e digital) desde 2014, quando tinham
respectivamente, 20, 21 e 25 anos. Os irmãos Michel e Michele participaram da fundação do jornal (em 2012)
no contexto do projeto Agência de Redes Para Juventude. Beatriz também fez parte da Agência de Redes, em
2012, mas saiu antes da criação do jornal e retornou à equipe em 2014. Os três jovens foram os principais
interlocutores desta pesquisa. A decisão de identificar os seus nomes foi tomada em comum acordo com eles.
43
cinco participantes. As outras duas integrantes à época, mencionadas anteriormente neste texto,
tiveram participações igualmente relevantes, porém, de forma diferenciada em relação aos
primeiros, cuja dedicação era mais exigida levando em conta as funções que exerciam. Os
irmãos Michel e Michele, até o momento, foram os comunicadores que permaneceram no jornal
por mais tempo, tendo participado do processo de fundação do veículo (em 2012), de formas
diferenciadas; Beatriz se juntou à equipe a partir da terceira/quarta38 edição impressa (em 2014).
Suas trajetórias, parte significativa da narrativa desta tese, entrelaçam-se com a do Fala Roça
e são aqui tomadas como referências, ou “prismas” (inspirando-me em Vera Telles), através
das quais o mundo urbano vai ganhando forma: “A experiência das novas gerações e seus
circuitos, no nervo exposto das complicações atuais, nos dá pistas para tentar outra descrição
do mundo social” (TELLES, 2010, p.125). Chamo atenção para o fato de cada um desses jovens
possuir visões e atuações particulares junto a esse meio de informação, com semelhanças e
diferenças entre si. Portanto, o conjunto de discursos e práticas do jornal não se trata de um
todo homogêneo, mas fruto de entendimentos diferentes que dialogam (com mais ou menos
consensos, dependendo dos assuntos e circunstâncias que se apresentavam). Gentilmente, os
três jovens aceitaram compartilhar comigo suas histórias de vida, reflexões, visões de mundo,
assim como as rotinas de produção do periódico. Analiso suas trajetórias no capítulo 2 da tese,
em que suas histórias de vida são apresentadas separadamente, na tentativa de preservar ao
máximo suas próprias narrativas. Além deles, tiveram relevância nessa dinâmica de
comunicação, criada aos poucos, as múltiplas relações e redes estabelecidas – com atores e
instâncias “internas” e “externas” à favela – em função da publicação do impresso. Histórias de
outros comunicadores locais, de diferentes gerações (também entrevistados) serão
mencionadas, embora mais brevemente, de modo a evidenciar o quadro relacional existente.
Ao longo do trabalho de campo (que compreendeu o período da terceira à oitava edição
impressa do Fala Roça, totalizando cerca de quatro anos, entre 2014 e 2018)39, acompanhei o
desenvolvimento do periódico, feito a partir da “matéria viva”, e sempre em movimento, dos
debates, descobertas, dilemas e aprendizados acumulados pelos jovens participantes. Durante
esse tempo, eles foram ampliando saberes e conhecimentos relativos tanto à produção de
narrativas marcadas pela proximidade com o ambiente de convívio na favela onde moram,
quanto àqueles relacionados ao desenvolvimento de uma linguagem comunicativa voltada
38 Beatriz iniciou sua participação no Jornal Fala Roça no período entre a distribuição da terceira e a preparação
da quarta edição impressa.
39 Delimitei o trabalho de campo da pesquisa arbitrariamente entre 2014 e 2018, já que a minha convivência na
Rocinha se estende para antes e depois desse período. Abordo o tema em outros lugares da tese, especialmente,
no capítulo referente aos procedimentos metodológicos.
44
também para a atuação nos seus campos profissionais. Aqui me refiro ao Jornalismo – área em
que buscavam atuar (mas nem sempre conseguiam). Todos eram, então, universitários ou
recém-formados em Comunicação Social – nesse meio-tempo, Beatriz e Michel cursaram e
concluíram40 a faculdade de Jornalismo; já Michele havia se formado em Publicidade e
Propaganda, no ano anterior (2011) à criação do Fala Roça, e trabalhava em instituições sem
fins lucrativos e/ou privadas. No período anterior às vivências dos cursos de graduação, também
acumularam diferentes experiências de circulação pela Rocinha e outros locais da cidade. Em
suas infâncias, todos acompanharam, por exemplo, trajetos familiares proporcionados por
questões de moradia, trabalho (ou desemprego) dos pais e da vida escolar; as últimas ditadas
sobretudo pelo estudo em escolas públicas, seguindo a trilha das vagas (in)disponíveis nas redes
municipal e estadual. Mais tarde, também experimentaram a participação em projetos sociais
voltados para jovens que aportavam nas favelas do Rio de Janeiro. A dimensão familiar, como
se vê, também está presente no percurso dessa mídia e será levada em conta, em certa medida,
ao longo das análises a respeito do veículo.
No que se refere à comunicação, os irmãos Michele e Michel trazem bagagens relativas
a esse mesmo campo profissional e de expressão pessoal, mas vividas de formas distintas; em
resumo, abrangem a atuação em rádio comunitária e atividades interativas na internet – por
meio de jogos, blogs, sites e perfis criados nas redes sociais, por meio dos quais faziam
amizades e veiculavam relatos do seu cotidiano41. Já Beatriz destacou a influência significativa
da televisão em sua infância. Os três entraram nos ‘tempos do digital e da internet’ desbravando,
à sua maneira, o mundo tecnológico dos computadores e da internet que foi se tornando
presente, aos poucos, na Rocinha a partir dos anos 200042 – porém, de forma diferenciada, não
linear, dependendo de múltiplos fatores, como faixa etária, renda, escolaridade, a localidade
dentro da favela, percursos familiares e experiências individuais, que vêm influenciando
(im)possibilidades de acesso dos moradores a essas tecnologias.
40 Beatriz se formou em Jornalismo pela PUC-Rio, em 2016. Michel colou grau, no mesmo curso, mas devido a
algumas disciplinas pendentes, concluía o último período da faculdade de Jornalismo da PUC/Rio, em 2019.
41 Por volta de 2005, Beatriz, Michel e Michele (com idades entre 12 e 16 anos) já usavam redes sociais como
Orkut e Tumblr. Com a popularização dos aparelhos celulares smartphones, o uso se intensificou. Aos 17 anos
(em 2010), Michel criou o Tumblr “Vida na favela”, uma espécie de blog, onde falava sobre “coisas que
aconteciam no seu dia a dia”. Em 2011, criou o site “Viva Rocinha” (vivarocinha.org), logo integrado também
pela irmã mais velha, Michel, que também passou a produzir conteúdo para a página e os seus perfis no
Facebook e Twitter. Hoje desativado, voltava-se para divulgar informações e vivências na Rocinha e adquiriu
popularidade no local.
42 Em 2001, a ONG Viva Rio instalou na Rocinha o “Estação Futuro”, espaço aberto ao público, equipado com
computadores e acesso gratuito à internet. Foi a primeira iniciativa, de maior escala, nesse sentido na favela,
à qual estava vinculado o Portal Viva Favela, ambiente de notícias exclusivamente sobre favelas, também
criado em 2001, com uma equipe de 15 correspondentes comunitários e sites internos voltados para memória,
ecologia, gênero e apoio jurídico. Fui editora de fotografia do portal, desde a sua fundação até 2004.
45
[No início dos anos 2000, quando a família morou na região da Gardênia Azul, na
zona oeste do Rio] A gente não tinha nada, a única diversão era a televisão. Eu sempre
gostei muito de televisão, assistia muito jornal, programa na Globo, Record, SBT o
dia inteiro e sempre me apaixonei por Jornalismo vendo televisão (Entrevista de
história de vida, Beatriz Calado, 05/11/2016).
O ano de 2006 foi um dos auges da venda de PCs de mesa. Segundo uma pesquisa do
IDC43, cerca de 57,9 milhões de computadores foram vendidos [...]. No mesmo ano,
meus pais resolveram comprar um PC, porque eu vivia na lan house. Eram poucas as
famílias que moravam na favela e podiam comprar um computador naquela época
(Texto autobiográfico, intitulado Construindo mídia comunitária: as experiências de
Michel Silva, disponibilizado para esta pesquisa em 06/02/2017. No prelo).
[Em meados dos anos 2000] Comecei a ficar lá [na rádio Brisa, na Rocinha] muito
tempo; quando vi, já estava com programa pra mim. [...] ia pra lá, aí vinham os
famosos, pagodeiros, ficavam pra tirar foto, conhecer, tietar as pessoas – e tinha muito
jovem e adolescente que ficava lá por causa disso. Tinha computador, microfone,
mesa de som; eu não sabia mexer naquilo, mas era muito curiosa: a pessoa estava
sentada e eu ficava lá olhando (Entrevista de história de vida, Michele Silva,
02/03/2015).
43 PC é abreviatura de Personal Computer, como são conhecidos os computadores de mesa ou desktops. Michel
também se refere ao International Data Corporation (IDC), organização internacional voltada para estudos na
área de tecnologia da informação, consultorias nas áreas de inteligência de mercado, telecomunicações e
mercado de consumo de tecnologia.
44 Vários autores já se dedicaram a analisar a cobertura da chamada grande mídia sobre as regiões de favelas
brasileiras. Suas pesquisas apontam que temas de viés negativo, como as representações mencionadas acima,
são associados, de forma mais recorrente, aos espaços de favelas (ver ZALUAR e ALVITO, 1999; LEITE,
2000; VALLADARES, 2005; RAMOS e PAIVA, 2007, ANSEL e SILVA, 2012; FELIX, 2012, entre outros).
45 Para Foucault, heterotopias se referem à descrição de “espaços diferentes” e” lugares outros”, “uma espécie
de contestação simultaneamente mítica e real do espaço onde vivemos”. A forma atual dessa leitura se conecta
à ideia de “desvio”, onde estão situados indivíduos considerados “cujo comportamento é desviante em relação
à média, ou à norma exigida” (FOUCAULT, 2013, p. 80-81).
46
situados como “outros”, representantes de algum tipo de “ameaça” (LEITE, 2012; AGIER,
2015), cujo enfrentamento se concretiza, por exemplo, por meio da predominância de políticas
estatais (tanto de segurança quanto outras) pautadas em estratégias de controle da população e
de violência armada, voltadas para esses locais. Assim, muitos outros aspectos da vida nas
favelas do Rio de Janeiro continuam “invisíveis” aos olhos da grande imprensa e,
consequentemente, de amplos setores da sociedade.
Na Rocinha, por exemplo, uma convivência um pouco mais intensa revela uma grande
variedade de temas presentes no cotidiano, tais como: dificuldades enfrentadas diariamente no
sistema de transportes, uma quantidade expressiva de crianças que circula acompanhada por
pais ou responsáveis, turistas a pé ou nos transportes, gente estendendo roupas nas lajes, pés
encharcados de água logo que começa a chover, o cheiro de comida bem temperada ao passar
pelos becos na hora do almoço, a passagem incessante de pedreiros carregando material de
construção nas costas e de moradores carregando toda sorte de utensílios, compras, móveis e,
inclusive, saquinhos de lixo para serem descarregados na primeira lixeira à vista.
Surgida “no calor da luta”, em meados dos anos 1970, a “imprensa de favelas”46
(MOREL, 1985, p. 123), no Rio de Janeiro, teve suas origens ligadas a movimentos sociais que
reivindicavam direitos civis no início da abertura política, como é conhecido o período de
transição em que ainda vigorava a ditadura civil militar no país. Em tempos recentes, meios de
comunicação oriundos desses locais seguem sendo criados e alimentados, usando uma
variedade grande de suportes de mídia, desde as mais tradicionais (jornais e folhetos impressos,
rádios, carros de som, TVs de rua, etc) coexistindo com as que usam o suporte digital e a internet
para se difundir (sites, blogs, redes sociais variadas, streaming, etc.). Grande parte delas segue
destinando espaço para expressar demandas em prol de condições dignas de vida: segundo
Gizele de Oliveira Martins (comunicadora/jornalista, “cria” do conjunto de favelas da Maré)47,
o tema dos Direitos Humanos é “o que costuma estar mais presente” (MARTINS, 2018, p. 12).
Por outro lado, esses veículos são heterogêneos, desenvolvem formas próprias de tratar questões
46 Em um estudo que pode ser considerado entre os primeiros realizados exclusivamente sobre jornais
localizados em favelas do Rio de Janeiro, Marco Morel usa a expressão “imprensa de favelas” para designar
esses veículos. Para ele, a definição corresponderia “ao lugar social do veículo ou das relações sociais que ele
envolve”, a exemplo da “imprensa sindical” e da “imprensa camponesa”. Todas seriam expressões do
“jornalismo popular”, “feito por e para as classes trabalhadoras, numa ligação orgânica com os respectivos
movimentos sociais” (MOREL, 1985, p.120-1).
47 Formada em Jornalismo, com mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e
Comunicação em Periferias Urbanas/UERJ, Gizele Martins atua, há pelo menos 15 anos em meios de
informação oriundos da região de favelas da Maré (onde nasceu e mora), como o jornal O Cidadão, e mídias
independentes, além de participar “da militância interna”, em suas palavras, nesta favela. É também Assessora
da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), entre
outras ocupações profissionais.
47
ligadas à garantia de direitos e também incorporam outros assuntos (dependendo dos contextos
de atuação, objetivos, instituições aos quais estejam atrelados, perfis dos comunicadores, etc.).
Além disso, circunstâncias específicas às quais estão sujeitos geram efeitos sobre seus
conteúdos e podem provocar reavaliações nos rumos de suas coberturas.
Ainda de acordo com estudos das/os próprias/os comunicadoras/es locais (MARTINS,
2018; SOUZA, 2018)48, dentre os efeitos mais graves está o silenciamento49 diante de
determinados temas, como os relativos ao ambiente de militarização da cidade do Rio de
Janeiro, especialmente exacerbado nas áreas de favelas e espaços ditos periféricos,
apresentando-se nos dias de hoje como “uma forma de governo” das suas populações (LEITE
et al, 2018, p. 10). No que diz respeito às práticas de comunicação produzidas nesses locais, tal
situação adquire feições de “censura” e “autocensura”, conforme os estudos mencionados. As
duas autoras citadas anteriormente elencam uma variedade de veículos situados na região de
favelas da Maré, por exemplo, que convivem com o cerceamento da liberdade de expressão,
envolvendo, principalmente, abuso de poder e atentados aos Direitos Humanos cometidos por
agentes de segurança pública. Não é nova a existência de restrições a algum tipo de assunto no
âmbito dos veículos de informação em geral – como os considerados inadequados diante do
público almejado ou por envolver atores sociais cuja opinião seja considerada relevante para a
mídia (DARNTON, 1990, p. 41-57). No entanto, comunicadores de veículos menores,
especialmente de favelas, tornam-se mais vulneráveis em seus contextos de atuação, como
também demonstra o caso enfocado neste estudo.
Continuidades e descontinuidades
Durante seus anos de existência, o jornal passou por distintas fases e mudanças. Foi um
percurso marcado por experimentações, suores, alegrias, preocupações, divergências,
consensos, mudanças e aprendizados, assim descrito nas palavras de Michele: “A gente está
testando muito e também somos muito novos. Para o trabalho ser longo, vai passar por várias
mudanças” (trecho de entrevista com uso de fotografias). Atenta a esse contexto, desenvolvi a
percepção de estar diante de ‘descontinuidades contínuas’ que caminhavam em par com um
processo em fluxo, sempre em movimento, adquirindo formas próprias, singulares, frente aos
contextos que se apresentavam – muitos deles adversos. Alguns elementos forneciam pistas
48 Gizele de Oliveira Martins (2018) e Renata da Silva Souza (2018), moradoras da área de favelas da Maré,
estudaram o tema dos meios de comunicação comunitários produzidos nessa região, apontando processos de
censura e autocensura sofridos por esses veículos, relacionados ao contexto recente de militarização no
conjunto de favelas da Maré.
49 Vários autores tratam do “silenciamento”, no contexto das favelas, entre eles, Rocha (2013) e Cunha (2015).
48
para essa percepção: a periodicidade irregular do impresso diante dos recursos escassos para
sua manutenção; as mudanças na equipe de comunicadores (que passou por alterações durante
a primeira metade da sua trajetória); as reuniões de pauta itinerantes (uma vez que o jornal não
possuía sede fixa); as mudanças de concepção sobre o que devia ou não ser publicado,
lembrando especialmente dos tempos de conflitos armados na favela; as alterações na rota de
distribuição do jornal também em função desses conflitos; as interrupções de energia e sinal de
internet na favela que obrigavam a postergar prazos e fechamentos de matérias, entre outras
situações que se apresentaram. Não que esteja me referindo a fragilidades e inconsistências,
mas talvez a traços de insistência, pois, como afirma Marco Morel, “é preciso enxergar tal
imprensa de favelas como fruto da realidade local, seus anseios e suas limitações” (1985, p.
35).
Por outro lado, outros elementos podem ser lidos como continuidades nesse mesmo
cenário. A entrega do jornal nas mãos dos moradores, ou “de porta em porta” 50, pela sua própria
equipe, e as muitas reuniões realizadas no ambiente familiar dos seus integrantes guardam
semelhanças com práticas estabelecidas por jornais locais de outras épocas (como nos casos do
Tagarela e Rocinha Notícias, dentre vários outros). Porém, há que se atentar para as diferenças
entre os seus respectivos contextos históricos e sociais, obrigando-nos a refletir sobre cada uma
destas mídias – como processos sociais singulares que são – em seus respectivos tempos e
circunstâncias sociais específicas. Mudanças no espaço urbano e na vida social da Rocinha
(bem como na própria cidade do Rio de Janeiro) implicaram na existência de outras dinâmicas
de mediação e construção de identidades por parte das mídias contemporâneas. As diferentes
circunstâncias que originaram esses veículos de comunicação, por exemplo, levam a pensar em
distintas estratégias adotadas para que suas vozes fossem ouvidas – dentro e fora da favela.
Enquanto o Tagarela, por exemplo, foi criado a partir do pertencimento religioso dos seus
participantes à Associação Social Padre Anchieta (ASPA), grupo da igreja católica responsável
pelo jornal, o Fala Roça nasceu de uma metodologia/projeto, realizado por uma ONG de cunho
não religioso, alinhada com políticas públicas para juventude destinadas a favelas da cidade.
Outras diferenças podem estar relacionadas, ainda, ao adensamento populacional da
Rocinha – apesar das frequentes discrepâncias entre os dados apresentados por órgãos oficiais
e as estimativas de moradores51 –, às transformações na infraestrutura urbana, como o PAC-
50 Trecho inicial de apresentação do Fala Roça no Facebook: “O Fala Roça é um jornal impresso, entregue de
porta em porta, que existe desde 2012 na Rocinha [...]”. Perfil: facebook.com/jornalfalaroca. Acesso em: 23
out. 2019.
51 É preciso salientar que dados dos censos populacionais realizados por entidades como IBGE, PAC, entre
outras, são contestados por moradores locais da Rocinha, que, por sua vez, não possuem meios para realização
49
Favelas (realizado na Rocinha em 2009), ao acesso (desigual) à tecnologia (que criou distinção
entre públicos, das mídias, on ou off-line), entre outras. Assim, as práticas de distribuição dos
impressos também se alteraram: enquanto os realizadores do Tagarela escolhiam pontos fixos
para entregar aos passantes os cerca de 250 exemplares mimeografados do periódico (vendido,
embora a um preço reduzido), os jovens do Fala Roça mapeavam o morro e se dividiam em
grupos para entregar o jornal (gratuito) diretamente nas casas dos moradores, de preferência em
suas mãos, principalmente em lugares mais inacessíveis da favela, “onde nada chegava”
(conforme falas de Michele, Michel e Beatriz). Aos poucos, foram percebendo comportamentos
e perfis dos leitores que os levaram a elaborar “jeitos certos” e perceber os “errados”, de
entregar, visando assegurar que a publicação impressa fosse efetivamente lida, em vez de ir
parar no lixo. Para eles, a distribuição da tiragem de cinco mil exemplares passou a ser também
ocasião de assuntar e descobrir pautas para futuras matérias.
Ainda durante essa etapa da feitura do jornal, a interação com os potenciais leitores
ensejou a adoção de recursos simbólicos que foram contribuindo para a construção de
identidades, diferenças e autorrepresentações do grupo. O crachá, produzido por Michel, para
usar durante a entrega dos exemplares pela Rocinha na época inicial do veículo, “era uma forma
de ser profissional” e “dizer que era da Rocinha”, segundo ele. Ser profissional de jornalismo e
da própria favela, portanto, configuravam valores importantes de identidade e distinção. Já a
forma de vestir das meninas ao entregarem os exemplares demonstrava a intenção deliberada
de se diferenciarem do tabloide Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus,
presente em cada beco da Rocinha (conforme será tratado em outras partes da tese) e
considerado, pelos integrantes do FR, “uma das maiores barreiras” enfrentadas pelo jornal. As
jovens passaram a usar shorts curtos como estratégia corporal para evitar serem “confundidas”
(nas palavras de Beatriz e Michele) com entregadoras da IURD, cuja performatividade dos
modos de vestir, caracterizados pela “distinção do masculino” e pelos “princípios da modéstia
e discrição”, são amplamente conhecidos na favela como a “corporificação da identidade
de levantamentos substanciais. Sendo assim, entre os órgãos oficiais, tomarei como referência o Censo do PAC
Social, um dos mais recentes, realizado pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos do Governo do Estado
(órgão extinto) entre 2008 e 2009, que aponta a estimativa de 98.319 habitantes na favela da Rocinha. Quanto
aos jornais locais pesquisados, segundo o Tagarela, a favela possuía cerca de 100 mil moradores em meados
da década de 1970 (número 1, texto “Rocinha, uma cidade dentro da cidade”: “Por que uma cidade? Ora, já
sabemos que a Rocinha é uma das maiores favelas do Brasil em termos populacionais com aproximadamente
100 mil habitantes” [...]); já o site do Fala Roça, on-line, cita a referência do PAC Social e estimativas dos
“técnicos do Projeto Comunidade Cidade”, cuja projeção é de 120 mil moradores em 2019. Disponível em:
https://falaroca.com/obras-rocinha/. Acesso em: 18 nov. 2019. Nas reuniões de grupos de moradores que
frequentei, a estimativa em torno de 150 mil moradores era considerada adequada.
50
Elementos conceituais
52 GONÇALO, Rita. Moda Church – Performance e produções estéticas do vestir feminino nas igrejas
evangélicas cariocas. Mosaico, v. 7, n. 11, 2016.
51
ampliar a visibilidade das lutas e memórias de sujeitos cujos saberes têm sido desqualificados
ou, conforme Foucault, buscar tratar do “acoplamento do conhecimento com as memórias
locais, que permite a construção de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas
táticas atuais” (1979, p. 97).
O conceito de “enquadramento”, de Judith Butler, pode dialogar com a análise do
discurso do Jornal Fala Roça. Em Frames of war: when is life grieveble?, Butler retoma
questões que interrogam sobre o que está em jogo nos processos de constituição de uma vida
considerada vivível e outra marcada como “abjeta” e “precária”. Dialogando com filósofos
como Michel Foucault e Jacques Derrida, ela reflete sobre os mecanismos de poder “mediante
os quais a vida é produzida” (BUTLER, 2015, p. 14). Ao fazê-lo, aborda problemas
epistemológicos sobre o tema do “enquadramento”, discussão que interessa particularmente
abordar neste estudo. Basicamente, trata das condições sob as quais se torna possível apreender
vidas como precárias.
Os campos conceituais para pensar juventudes e trajetórias de vida são amplos. Vera
Telles contribui para reflexão sobre as conexões entre ambos, dialogando com o ambiente
urbano e o mundo do trabalho. Além dela, outros autores, como Pierre Bourdieu (1983) e
Regina Novaes, ajudam a pensar sobre o contexto das juventudes em favelas, sua
expressividade no espaço público e na aderência ou não a “causas” políticas e ligadas a direitos.
Bourdieu define trajetórias sociais como “uma maneira singular de percorrer o espaço social,
onde se exprimem as disposições do habitus e reconstitui a série das posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos”
(BOURDIEU, apud MONTAGNES, 2007, p. 254). Segundo Novaes, “Condicionadas por
vários fatores intermediários e relacionais, as trajetórias juvenis presentes no mesmo espaço
social (e, até mesmo, na mesma família) podem ser bastante diferenciadas”. Telles (2010, p.
118) usa alguns termos para se referir às vivências das gerações jovens nas cidades: “trajetos”,
“percursos” e “experiência urbana”. Eles expressam um entendimento de que as vivências
dessas gerações podem melhor evidenciar perfis contemporâneos das cidades, especialmente
após a reestruturação produtiva no mundo do trabalho nas últimas décadas do século XX.
“Trajetos e percursos dos mais jovens”, segundo a autora (p. 118), permitem ver “um ângulo
pelo qual a cidade vai se perfilando em todas as ambivalências e complicações que recobrem
os tempos atuais. Os percursos dos mais jovens (entre os 20 e 30 anos, pouco mais, pouco
menos) fazem ver o outro lado da modernização neoliberal dos anos 1990: os grandes
equipamentos de consumo pontilhando os espaços em um grande arco que chega próximo aos
bairros mais distantes da periferia”.
53
Não é o foco deste trabalho fazer uma ampla revisão da literatura teórica sobre o tema
da comunicação comunitária e outras denominações afins, mas principalmente perceber como
o Fala Roça produz a sua forma de informar e se apropria desta expressão, conferindo-lhe os
seus próprios significados. Sendo assim, faço apenas uma breve contextualização sobre
concepções acadêmicas a respeito das categorias comunicação comunitária, popular e
alternativa. Quanto à estrutura da tese, no capítulo 1, abordo aspectos metodológicos do estudo
realizado, concepções sobre etnografia e estudo de caso. Nesta sessão, incluo considerações
sobre o uso da fotografia como instrumento de pesquisa, especificidades e experimentações
adotadas de forma compartilhada com interlocutores/as. O segundo capítulo é dedicado às
trajetórias de Beatriz, Michel e Michele, os três jovens responsáveis pela produção de conteúdo
do Fala Roça e tarefas editoriais da mídia entre 2014-18. Nos capítulos 3, 4 e 5, analiso desde
o contexto do surgimento do jornal até a estruturação dos elementos do impresso – em que se
insere a sua autorrepresentação – suas principais reportagens e as representações que se
tornaram predominantes em suas páginas. No capítulo 6, trato de concepções de comunicação
jornalística na favela nas visões dos comunicadores do Fala Roça e de moradores da Rocinha;
abordo, ainda, as formas produção e distribuição do jornal. No capítulo sete, reflito sobre
algumas tensões presentes no percurso desta mesma mídia, como parte do universo discursivo
no qual se insere; parto das concepções teórico-metodológicas da Análise do Discurso de
Michel Foucault para pensar 1) atualizações de resistências das mídias de favelas; 2) efeitos da
militarização, silenciamentos e censura sobre o noticiário do jornal e 3) efeitos do universo das
políticas públicas e projetos sociais voltados para jovens de favelas no processo de comunicação
estudado, levando em conta suas interfaces com o discurso do empreendedorismo.
54
Legenda: Distribuição da 6ª edição do jornal Fala Roça, de agosto de 2015, na localidade do Laboriaux, na parte
alta na Rocinha. Data: 08/08/2015. Fonte: A autora, 2015.
53 Para Mariza Peirano, não há oposição entre empiria e teoria, uma vez que a teoria se aprimora e se confronta
com dados novos (pelo menos, deveria). Sobre empiria, Peirano compreende: “A empiria – eventos,
acontecimentos, palavras, textos, cheiros, sabores, tudo que nos afeta os sentidos –, é o material que
analisamos e que, para nós, não são apenas dados coletados, mas questionamentos, fonte de renovação”.
(PEIRANO, 2014, p. 380).
55
54 A ideia de construir um mapa da Rocinha contemplando trajetos de distribuição do Fala Roça ocorreu na fase
final da pesquisa. Abordo essa dinâmica no item 6.3 da tese. Serão feitos esforços para construir uma
plataforma digital onde os dados gerados nessa pesquisa possam ser disponibilizados – como depoimentos,
fotografias e o mapa da Rocinha -, visando facilitar o compartilhamento do conteúdo do estudo.
55 Ingressei no doutorado em março de 2015, cujo tempo regulamentar é de quatro anos. Contei com algumas
extensões de prazo por motivos diversos, inclusive já no período da pandemia do Coronavírus. O curso foi,
assim, concluído em 2020.
56
56 A equipe de fotografia do Portal Viva Favela era composta por cinco fotógrafos moradores de favelas do Rio
de Janeiro, além da editora e uma assistente. Os fotógrafos eram Deise Lane, da região da Maré; Nando Dias,
da Rocinha; Tony Barros, da Cidade de Deus; Rodrigues Moura, da região do Alemão e Walter Mesquita, de
Queimados, Baixada Fluminense. As editoras éramos eu e a fotógrafa Sandra Delgado. Posteriormente,
assumiram a frente da equipe, Sandra e Walter.
57 Inaugurada em 2012, a Biblioteca Parque da Rocinha/C4 é um lugar cuja história remete a reivindicações
antigas dos moradores pela construção de um centro cultural na Rocinha. Ainda no período anterior às versões
do Programa de Aceleração do Crescimento na favela, foi construído o projeto deste Centro, que se chamaria
C4 (Centro de convivência, comunicação e cultura), com participação dos moradores. O projeto foi
“encampado” dentro de planejamentos de diferentes governos para a favela. Finalmente, foi construído a partir
da sua inserção na proposta das Bibliotecas Parque do governo do estado do RJ, em 2012, com recursos do
PAC. Porém, a BPR foi entregue ao público antes de ter sua estrutura finalizada. Nos últimos anos, teve
57
repasse de recurso cortados, demitiu funcionários e fechou as portas por mais de um ano. Voltou a funcionar
em tempos recentes, com horários e atividades reduzidos.
58
É importante notar que a minha participação nos grupos RSF, MSMHR e ARR58 ocorreu
na medida em que os laços foram se estreitando com os moradores e havia identificação da
minha parte com as discussões e lutas relativas aos direitos ligados a espaços de favelas e
periferias da cidade. Minhas contribuições se davam na escuta, no diálogo e em habilidades
mais objetivas, como a fotografia, registros e auxílios em reuniões (quando necessário). Esta
convivência foi se ampliando devido a circunstâncias do cotidiano local, junto às afinidades, e
possibilitou o contato com diferentes gerações de moradores da favela que participavam dos
grupos, muitos deles considerados “lideranças” ou “articuladores” locais; enquanto o RSF e o
MSMHR eram frequentados sobretudo por pessoas, em média, acima dos 30 anos, o ARR, foi
criado por pessoas mais jovens (em geral, abaixo dos 30 anos), igualmente interessados na
existência de espaços de discussões e ações, porém, com formato mais flexível.
Na época em que iniciei o trabalho de campo, em fase exploratória, trabalhava na BPR,
na equipe de coordenação do projeto Regiões Narrativas, voltado para o aprendizado e a
experimentação de linguagens da comunicação (fotografia, vídeo e animação); como
mencionei, um dos jovens fundadores do Fala Roça, Michel Silva, era monitor do mesmo
projeto. Pela BPR circulava uma quantidade considerável de moradores e era, também, um dos
espaços de reunião do FR, que lá armazenava os fardos dos exemplares do impresso antes da
distribuição. Durante o tempo em que trabalhamos juntos, Michel comentava sobre as
caminhadas que fazia pela favela entregando os exemplares do Fala Roça e chamou minha
atenção, por conta da experiência rica de trabalho com o Portal Viva Favela, anos atrás. Tive
curiosidade de saber como seria produzir um impresso, hoje em dia, em um espaço de favela e
o que motivava jovens da Rocinha a fazê-lo já em “tempos de internet”. Em 2001, o início do
meu contato com o universo dos Direitos Humanos havia sido, justamente, em um contexto em
que crescia a insatisfação de moradores de favelas diante da criminalização destes espaços, por
setores da sociedade como a grande imprensa, responsabilizando seus habitantes pelo aumento
58 Essas instâncias de participação coletiva local são chamadas de ora “movimento”, ora de “grupos” por seus
integrantes. Faço uma contextualização maior do Rocinha Sem Fronteiras no capitulo 6. Por ora, segue uma
visão geral: o RSF e o MSMHR são mais antigos e seus participantes coincidiam na época em que os conheci,
sendo o Museu (fundado, aproximadamente, em 2010) realizado por um número mais reduzidos de moradores
e voltado, sobretudo para questões relativas à memória e história local. Criado em 2006, o RSF teve origem por
meio de jovens integrantes de um grupo da igreja católica e, atualmente, é coordenado principalmente por
antigas lideranças locais, como José Martins Oliveira, junto a alguns jovens como Simone Rodrigues. Por ser
aberto à participação de moradores e não moradores locais, passei a frequentá-lo em 2015: suas reuniões
mensais acontecem na Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, com um formato fixo. O objetivo é “discutir
direitos e deveres dos cidadãos”, conforme explica José Martins. O ARR se formou em janeiro de 2018,
agregando principalmente uma geração mais jovem; também é um grupo aberto a participações externas, mas o
formato dos encontros e discussões é mais flexível e variado. Nasceu sem uma causa específica, tendo como
motivação predominante ser um espaço de diálogo e fortalecimento de laços afetivos, num período de
intensificação dos conflitos armados na Rocinha. Comecei a frequentá-lo desde o período inicial.
59
de crimes violentos na cidade (LEITE, 2000). A época era do surgimento da internet, trazendo
novas possibilidades de criação de meios de comunicação por essa população. E era forte
também a reivindicação de lideranças de favelas por mudanças na cobertura dos grandes
veículos, assim como por apoio à realização de suas próprias mídias, conforme ocorreu na
história da criação do Viva Favela (RAMALHO, 2007).
Após ser aprovada na seleção para o doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da UERJ, pude iniciar de fato a pesquisa junto ao Fala Roça. Os sábados eram
os dias destinados às atividades pela equipe. Assim, grande parte dos meus sábados, de 2015 a
2016, também foi destinada ao jornal. Mas, na medida em que o tempo passava, eu não estava
lá somente em função da pesquisa; passei a estar igualmente pelo prazer da companhia das
pessoas que realizavam o jornal, alguns dos seus familiares e muitas outras pessoas com quem
interagia na Rocinha. Além dos “sábados do jornal”, havia eventos na BPR, reuniões dos grupos
de moradores, projetos nos quais participava, visitas a conhecidos que trabalhavam na Rocinha,
refeições nos diversos restaurantes e cervejinha nos bares. Era a extensão de casa.
As fontes empíricas de análise sobre o Fala Roça, portanto, são provenientes das
interações, entrevistas e conversas informais com comunicadores do jornal, alguns de seus
familiares e outros tantos interlocutores (as) mencionados. A maior parte dos dados incluídos
da tese provém das entrevistas feitas com participantes do núcleo responsável pelas tarefas de
produção do FR, composto por cinco pessoas no período da pesquisa: Beatriz, Michel, Michele,
Monique e Tainara – os três primeiros encarregados das reportagens, edição e coordenação
editorial, com o apoio das duas últimas, na parte da produção geral, ou seja, administração e
distribuição do impresso. Dentre estes, concentrei as entrevistas junto aos três primeiros
Beatriz, Michel, Michele, cujas funções desempenhadas no cotidiano do jornal são melhor
descritas no capítulo 4. Contribuiu para a escolha das entrevistas voltadas para estes três jovens
o fato de serem os produtores de conteúdo do FR e, aos meus olhos, terem maior influência na
tomada de decisões relativas aos rumos da mídia. A equipe do jornal teve mais alterações no
seu período inicial (entre 2012 e 2013), quando outros jovens moradores locais atuaram, mas
acabaram se distanciando (assunto abordado no capítulo 3), a ponto de permanecer apenas um
integrante - Michel -, por um breve período. Somente ele e sua irmã, Michele, participaram do
jornal desde a sua fundação; Beatriz ingressou na equipe no período da produção entre a terceira
e a quarta edições impressas (em 2014).
Considerando o fato de muitas reuniões acontecerem na casa onde então moravam os
irmãos Michel, Michele e Monique, com os pais, aproximei-me também de sua mãe, Dona
Josita. Amável, generosa, protetora, sempre disposta a trocar um dedo de prosa, ela também se
60
tornou interlocutora frequente, participando inclusive de entrevistas que fiz com seus filhos.
Por conta da grande vontade de falar sobre suas raízes familiares, fiz questão de escutá-la,
realizando com ela uma entrevista de história de vida. O pai, Seu Paulo, era igualmente amável,
porém, um problema auditivo provocava maior dificuldade em dialogar.
(escassos) dos comunicadores e também por me dispor a ir até eles, onde estivessem (sem que
necessitassem se deslocar até mim). Houve, ainda, respeito aos tempos da Rocinha, ou seja, a
situações que se impuseram à favela e causaram efeitos devastadores aos moradores. Exemplos
foram os conflitos armados iniciados em 17 de setembro de 2017 e as enchentes de fevereiro
de 2019 na Rocinha. Quanto aos conflitos, tiveram início a partir da disputa de grupos
criminosos pelo domínio do comércio varejista local de drogas ilícitas, pela atuação das forças
policiais e armadas do Estado na favela e, na sequência, pela instalação da Intervenção Federal
na Segurança Pública do Rio de Janeiro (de fevereiro a dezembro de 2018), cujas ações foram
questionadas por organizações da sociedade civil60 e moradores locais, por não terem resultado
objetivamente na redução dos conflitos; mas, ao contrário, terem produzido números recordes
de operações policiais, com registros de diversas violações de direitos 61. Nesse período, de
acordo com o jornalista Edu Carvalho, jovem oriundo da Rocinha, em setembro de 2018 (um
ano após o início dos conflitos armados de 2017 e já nos tempos da Intervenção Federal), houve
217 confrontos, 58 mortes, 25 feridos, 596 interrupções de serviços de saúde e três incursões
das Forças Armadas nessa favela62. Quanto às enchentes, causaram novas perdas e traumas para
a população local. Em vez de optar por fazer uma grande cobertura dos efeitos das chuvas na
favela, integrantes do Fala Roça foram para a “linha de frente” organizar e participar de
mutirões de limpeza das casas e campanhas de doação para centenas de famílias.
A análise documental do Fala Roça foi realizada com base em algumas escolhas
relacionadas ao universo do seu noticiário. Diante da impossibilidade de abarcar toda a sua
produção de conteúdo (crescente, diga-se de passagem), propus concentrar a atenção no suporte
impresso que, então, compreendia um total de oito edições publicadas entre maio de 2013 e
agosto de 2016. Destas, acompanhei percursos de produção e distribuição das últimas quatro.
Em 2016, houve uma interrupção, não programada, do formato impresso, tratada nesta tese
como uma paralisação sem previsão de retorno – seguindo entendimento a partir dos
comunicadores do FR. Dificuldades de conciliar as atividades do jornal (em geral, não
remuneradas) com trabalhos e estudos dos realizadores, junto ao medo de percorrer a favela
distribuindo os exemplares em meio aos intensos conflitos armados iniciados a partir de 2017
na favela foram algumas das razões que contribuíram para a interrupção da versão impressa.
Por sua vez, a versão online da mídia prosseguiu, com períodos de maior ou menor atividade
de acordo com as disponibilidades da equipe. Já em 2020, após o término desta pesquisa e em
meio à pandemia do Coronavírus, a nona edição foi publicada; desta vez, distribuída na Rocinha
junto com cestas básicas arrecadadas por meio de uma campanha de doações organizada pelo
Fala Roça.
Ainda no que diz respeito às escolhas relativas ao meio impresso para análise, está o
fato de o Fala Roça ter sido concebido, no processo que o originou, inicialmente voltado para
o formato em papel (conforme menciono no capítulo 4). Saber o que moveu o grupo de jovens
da Rocinha a pensa-lo dessa forma (diante das possibilidades mais acessíveis de plataformas de
informação na internet) já seria relevante. Afinal, na primeira década dos anos 2000, “Os jovens
já estavam decretando o fim do jornalismo impresso com o avanço tecnológico”63, na percepção
de Michel Silva, um dos fundadores do jornal, então com 17 anos. Mas não só o meio impresso
permanecia ativo em diferentes contextos, como Michel também parava, nos intervalos de suas
aulas ainda no ensino médio, para ler as notícias “que estampavam matérias sobre as ocupações
militares nas favelas do Rio, em 2010”, conforme a narrativa de sua história de vida por ele
mesmo. Ler o que, pouco depois, seria escrito no Fala Roça impresso, em par com o contexto
de produção do veículo, traria a possibilidade de conhecer melhor também a estruturação do
ambiente urbano da cidade e das suas relações sociais na década que agora se encerra – partindo
do prisma de olhares de dentro da Rocinha.
Junto a isso, é fundamental perceber, ainda, que a mídia “em papel”, produzida e
distribuída batendo perna pelos becos da favela, também dialoga com as plataformas digitais e
redes sociais da internet vinculadas ao mesmo jornal. Matérias produzidas para o impresso eram
reproduzidas no site e divulgadas nas mídias sociais digitais do jornal, por exemplo. Essa
questão guarda maior complexidade, entretanto, creio ser apropriada, nesse caso, a concepção
articulada por Jair de Souza Ramos, de que as relações na internet são potencializadas com a
existência dos vínculos também face a face (RAMOS, 2015), ensejando uma ideia de
continuidade entre os mundos on-line e off-line64, longe de uma oposição ou separação entre
tais dimensões da vida social. Isso não significa dizer que todos os moradores da Rocinha
63 Trecho do livro autobiográfico de Michel ‘Construindo mídia comunitária: as experiências de Michel Silva’,
em fase de redação.
64 On-line e off-line são expressões frequentemente usadas no meio jornalístico, designando inclusive um de
seus setores mais recentes, o “Jornalismo on-line”, que diz respeito à produção de informação voltada para
plataformas de comunicação digital. No senso comum, estas expressões designam interações realizadas no
ambiente da internet e fora dele. Trataram-se de termos muito usados por meus interlocutores, integrantes de
mídias de favelas. Por terem se tornado já recorrentes na linguagem coloquial, não irei usá-los entre aspas.
63
possuem acesso à internet e, muito menos, que os “conectados” fazem o mesmo tipo de uso
desta rede e dispõem das mesmas habilidades para tanto, conforme discutido no capítulo 3 desta
tese. Porém, dentre aqueles que fazem uso intenso dessa tecnologia, na localidade, estão os
grupos que lidam com atividades de comunicação, a exemplo dos participantes do Fala Roça,
apesar de também estarem expostos a dificuldades relativas à infraestrutura urbana local, como
as oscilações frequentes no sinal da rede de computadores e na rede elétrica.
Dialoguei, ainda, com outras mídias locais contemporâneas e do passado, na medida em
que ajudavam a iluminar o caso do Jornal Fala Roça e a sua inserção em um campo maior de
meios de comunicação da Rocinha. Nesse sentido, analisei, de forma mais genérica, acervos de
outros dois jornais impressos da Rocinha, já extintos – O Tagarela (1976-1981) e Rocinha
Notícias (2001-2011). Considero relevante explicitar, ainda, escolhas como a de levantar e usar
fontes de conhecimento produzidas localmente sobre a Rocinha (publicações acadêmicas e
documentais, periódicos, produções audiovisuais, páginas na internet, fontes orais, romances,
etc.) e a de não seguir um formato mais convencional na organização da estrutura da tese,
evitando, por exemplo, incluir um capítulo dedicado à história da favela. A Rocinha, que há
muito tem seu chão pisado por pesquisadores, escritores, jornalistas, fotógrafos, produtores
audiovisuais, documentaristas, etc. brasileiros e de várias partes do mundo, também
(felizmente) já conta com uma produção crescente de visões (acadêmicas ou não) locais sobre
o seu próprio cotidiano e história – além de trabalhos feitos em parceria entre olhares endógenos
e exógenos. No que diz respeito à sua história, por exemplo, considero obrigatória a leitura do
Varal de Lembranças: histórias da Rocinha65, publicação dos anos 1980, reunindo relatos de
moradores sobre o seu cotidiano e memórias que costuram as suas histórias com as da favela.
Portanto, os aspectos históricos aqui referidos serão aqueles encontrados nas fontes acima
mencionadas, com pretensão apenas de agregar sentidos ao processo de comunicação deste
estudo.
A narrativa deste trabalho foi construída a partir de um ponto vista subjetivo (COELHO,
2016, p. 10) e situado. Alguns traços de universos aos quais me considero pertencente, além de
marcadores identitários, situam o lugar de onde parto para escrever este trabalho: mulher,
65 Ver SEGALA, Lygia; SILVA, Tania Regina da (orgs). Varal de Lembranças: histórias da Rocinha. Rio de
Janeiro: União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha, Editora Tempo e Presença, SEC/MEC/FNDE,
1983.
64
66 “Lugar de fala” é um conceito de origens imprecisas que, aqui, será compreendido a partir da proposta de
Djamila Ribeiro, em O que é lugar de fala, conforme mencionado anteriormente. Ribeiro se baseia nos
entendimentos de Patricia Hill Collins sobre feminist stand point (ou ponto de vista feminista), relacionado
às condições sociais que permitem ou não que determinados grupos acessem “lugares de cidadania”.
Complementando: “Não se trata de experiências individuais, mas de entender como o lugar social que
determinados grupos ocupam restringem oportunidades” (2017, p. 61).
65
não) o acesso de determinados grupos a “lugares de cidadania” (2017, p. 61). Mas explicitar a
dimensão situada implica assumir responsabilidades (HARAWAY, 1995). Nesse sentido, um
deles é seguramente o meu compromisso de compartilhar os debates que proponho nestes
espaços de produção de conhecimento (tanto do doutorado como da tese) com os interlocutores
da pesquisa, outros moradores e atores sociais da Rocinha (de acordo com seus interesses,
claro). Outro compromisso é o que diz respeito à contribuição para a ampliação do direito de
os moradores de favelas falarem por si – este pode ser realizado de diversas formas, como já
venho fazendo há alguns anos.
Mas como lidar com essa dimensão que se tornou comum nomear de engajada? Trata-
se de uma questão complexa sobre a qual muitos autores/as já se debruçaram. Um olhar mais
aprofundado sobre ela será possível em momentos futuros; por ora, destaco somente alguns
poucos pontos relacionados à experiência específica desta pesquisa. A primeira era um
incomodo de não saber como abordar situações que eu temia que pudessem prejudicar os
sujeitos da pesquisa. Como explicitou Cunha (2009) a respeito da antropologia e sociologia
reflexivas, embora conheçamos exemplos de “pesquisadores engajados que tomam quase como
uma missão olhar para a vida social, na cidade ou no campo, assumindo o desafio de se
posicionarem a partir do saber cientifico, sem hesitarem em se posicionar no campo político,
não é fácil assumir posições”. Uma saída encontrada no meu caso, embora não resolvesse
completamente o problema, foi compartilhar ideias com os principais interlocutores e buscar
explicitar o rumo das minhas reflexões. Nesses momentos, frisei para eles outro ponto também
mencionado por Cunha e Souza, retomando considerações de muitos outros pesquisadores/as:
“o discurso e a produção acadêmicos é há décadas um conhecimento entre muitos” (grifo da
autora) (SOUZA, 2017, p. 277).
Embora busque aqui uma construção textual dialógica, tomando como base, tanto
quanto possível, as perspectivas dos sujeitos com quem interagi e siga procedimentos
metodológicos diversificados, o meu ponto de vista prevalece ao final. Trocando em miúdos,
acredito ser disso que se trata: compreender o texto etnográfico como uma construção e,
portanto, já adentrando o universo da ficção, ou das “verdades parciais”, conforme Clifford
(2016, p.31), é o caminho para o qual muitos antropólogos já vêm apontando há alguns anos
(CLIFFORD e MARCUS, 2016), no sentido de assumir este lugar da escrita etnográfica. Esta
concepção me parece dialogar com a ideia de etnografia não como método, mas como fonte de
contribuições teóricas (PEIRANO, 2014, p. 381). Encarar os procedimentos em torno deste
fazer/saber etnográfico a partir de um ponto de vista crítico (já explicitado) foi um dos
ensinamentos obtidos com a presente experiência de pesquisa, junto às reflexões em torno dos
66
desafios atuais suscitados pelos estudos realizados em favelas e nas chamadas periferias do Rio
de janeiro. Ao longo desse tempo, além de atentar para a dimensão de processo e
intersubjetividade da etnografia (PATRIARCA, 2012), questões éticas, políticas e de
representação me fizeram pensar sobre os modos de realizar a minha própria pesquisa. Quem
fala, como fala e para quem fala? E, ainda, quais são as implicações e utilidades do que o/a
pesquisador/a fala? Embora essas perguntas nem sempre me tenham sido feitas explicitamente,
tornaram-se uma meta reflexão - que apenas se insinuara durante o trabalho de campo do
mestrado (no conjunto de favelas da Maré, em 2003/5) - que se fez definitivamente presente
dez anos depois, nos tempos do doutorado. Afinal, é forçoso reconhecer que a reivindicação de
um “lugar de fala”, através da própria existência do Jornal Fala Roça, assume uma dimensão
de grande relevância no âmbito desta pesquisa. Sendo assim, além de explicitar o lugar de onde
parto para fazer as reflexões deste trabalho, optei pelo texto escrito em primeira pessoa e me
comprometi com o retorno dos debates aqui levantados aos meus interlocutores.
Ainda no que diz respeito aos aprendizados obtidos, percebi, na prática, a importância
de questionar a “autoridade etnográfica” (CLIFFORD, 2002) e a entender que, além de serem
respeitados, os incômodos e as reivindicações externados por moradores/as e movimentos de
favelas e periferias67 – diante de pesquisadores/as que por lá chegam com suas propostas de
investigação – devem ser visibilizados, discutidos e também incorporados aos percursos
etnográficos. Por outro lado, explicitar incômodos e emoções sentidos por parte dos
pesquisadores/as, durante a realização de seus estudos, podem também cumprir o papel de
chamar atenção para a existência de suas subjetividades (CLIFFORD; MARCUS, 2016, p.
10)68. Reflexões críticas em torno do fazer antropológico há muito vêm sendo feitas e, em
tempos mais recentes, se voltaram para o texto etnográfico propriamente dito. Avanços vêm
ocorrendo no sentido de problematizar essa escrita, evidenciando, por exemplo, sua dimensão
ficcional (no sentido de construção, fabricação) – conforme já salientaram muitos autores/as
(CLIFFORD, 2002; RABINOW, 2016; MARCUS, 2016, entre outros), em especial, na
coletânea A escrita da cultura69, em que as etnografias se tornaram elas mesmas objeto de
67 Ao longo dos anos desta pesquisa, deparei-me, muitas vezes, com questionamentos, por exemplo, sobre a
utilidade das pesquisas acadêmicas em/sobre favelas – na Rocinha ou em outras favelas do Rio que frequento.
Alguns me foram feitos de forma direta, outros colocados de forma mais genérica em situações em que estive
presente. Como parte desse contexto, surgiu, em 2016, o “Espaço” Pra que e pra quem servem as pesquisas
sobre favelas? (conforme sua autodenominação), que realizou uma de suas apresentações no núcleo de
pesquisa Cidades, do PPCIS/UERJ, do qual faço parte.
68 COELHO, Maria Claudia. “Sobre tropas e cornetas: apresentação à edição brasileira de Writing Culture”.
In: CLIFFORD, James; MARCUS, George E. (orgs) A Escrita da Cultura. Ed. UERJ, Papéis Selvagens, 2016.
69 CLIFFORD, James; MARCUS, George E. (orgs). A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio
de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2016.
67
análise. Lançar um olhar crítico para a “autoridade etnográfica”, evidenciando os jogos de poder
inseridos na construção de narrativas sobre a alteridade, junto aos perigos trazidos pela noção
de cultura, quando empregada de forma homogeneizante, estão entre as principais contribuições
desses autores/as. Outro ponto sensível nesta discussão é a naturalização da centralidade do
trabalho de campo como garantia de autenticidade dos dados obtidos. Nesse sentido, Akil Gupta
ressalta que combinar a observação de campo com outros métodos, tal como a análise
documental, pode ajudar a desmistificar a ideia de que o “estar lá”, por si só, garante um
pretenso conhecimento global ou “autêntico” da situação investigada (GUPTA, 2006, p. 213).
Sobre a minha fala, é importante frisar que não busco aqui ser porta-voz de nenhum
grupo. Não é possível me despir da minha subjetividade e do meu lugar social, como mencionei.
Falo sobre uma mídia e acredito que com ela (em alguma medida), mas não por ela. Ela fala
por si. Tenho por este jornal um sentimento de admiração, desde o início da pesquisa de campo
explicitado, ao menos, através da minha alegria ao acompanhar os/as meninos/as (como, por
vezes, aparecem no meu imaginário) entregando o jornal pela Rocinha. E mantive com estes
jovens da equipe uma relação, sobretudo, de diálogo desenvolvida ao longo do tempo (a meu
ver). O formato e a linguagem usada na escrita deste trabalho talvez não sejam muito usuais
para um trabalho acadêmico, mas busquei torná-lo mais acessível, dessa forma. Faço um
parêntese para me referir a conversas com minhas/meus interlocutoras e interlocutores em que
busquei esclarecer o que seria um “objeto de estudo”; em poucas palavras, expliquei se tratar,
efetivamente, de uma criação conceitual do/a pesquisador/a, não de uma pessoa ou uma “coisa”
em si, mas de uma ou mais questões teóricas que formulamos sobre pessoas, grupos, relações
e processos sociais etc. E este universo de pessoas, grupos ou processos é, em geral, um recorte
de uma realidade muito maior. Conversamos também sobre a escrita da tese; fizemos uma
espécie de pacto de buscar redigir um texto com linguagem acessível também para leitores não
especializados no universo acadêmico. Outro aspecto relativo às vozes presentes neste trabalho
é o desafio que assumo de buscar uma forma mais dialógica entre as minhas falas e as de meus
e minhas interlocutoras. Nesse sentido, faço o exercício, por exemplo, de reproduzir parte
considerável de suas narrativas de história de vida, além de partir das vozes dos jovens
comunicadores para conduzir temas tratados nesta etnografia – apesar de saber que o preço
disso pode ter sido um maior volume de páginas.
No período inicial do trabalho de campo, deparei-me com o contexto desafiador de lidar
com relações de proximidade já construídas na Rocinha e outras que se formavam. Ou seja,
laços sociais estavam ali antes de o estudo chegar. E, a partir deles, foram surgindo diferentes
situações de convívio que não passavam diretamente pela pesquisa – por exemplo, participando
68
construindo, junto com o fluir das suas vivências, sem ser imposto de antemão. Além disso,
retornar o material da pesquisa, quando ganhasse forma, passou a ser não só um compromisso,
mas uma nova oportunidade de estreitar diálogos.
Nas reuniões de movimentos de moradores das quais participava (inicialmente o
Rocinha Sem Fronteiras e, depois, o A Rocinha Resiste), ao me apresentar, dizia estar ali para
tentar contribuir como pudesse com as minhas ideias, independentemente de estar
desenvolvendo um estudo sobre um processo de comunicação na favela. Os assuntos que
agregavam as pessoas nestas reuniões, não raro, pareciam muito mais relevantes e urgentes do
que a minha pesquisa, como os momentos críticos dos conflitos armados na Rocinha, entre
2017 e 2018, e os problemas cotidianos de transporte e infraestrutura. De qualquer forma,
sempre que surgiam curiosidades sobre o meu estudo, estava pronta a responder; a única
ressalva era o limite ético de não poder comentar sobre detalhes específicos relativos ao Fala
Roça enquanto não desse retorno, primeiro, à própria equipe do jornal sobre assuntos que seriam
tratados na tese. Tais esclarecimentos eram compreendidos.
Conforme sintetiza Milton Guran, “Uma fotografia pode ser o ponto de partida de uma
reflexão antropológica ou o resultado dessa reflexão” (2011). Na pesquisa sobre o processo de
comunicação do jornal Fala Roça, a fotografia foi um dos pontos de partida para a reflexão
sobre a forma específica de comunicação estabelecida, ou inventada, no contexto de realização
deste periódico na Rocinha. Logo que conheci os jovens comunicadores, propus à equipe do
periódico fotografar a dinâmica da distribuição dos exemplares impressos do Fala Roça,
entregues na favela pelos seus próprios integrantes. A ideia foi bem recebida e, assim, comecei
a acompanhar as atividades desta mídia: caminhando pelas ruas, becos e vias estreitas,
conhecendo mais a Rocinha, seus moradores, os comunicadores e o seu jornal. Não havia um
direcionamento específico sobre o que fotografar, apenas o contexto da distribuição; meu olhar
seguia as trilhas dos jovens espalhando suas narrativas por diferentes partes do morro, umas
mais, outras menos conhecidas para eles. Ao protagonizar esta ação, foram retratados, além de
pessoas que participavam da equipe da entrega, moradores que recebiam o impresso e o seu
entorno. Aos poucos, a distribuição se tornou uma das principais atividades relacionadas a este
periódico acompanhadas durante a pesquisa, ao longo de cerca de quatro anos de convivência
(de 2014 a 2018). Das oito edições lançadas, estive na entrega de cinco (da 3ª à 8ª, com exceção
70
da 4a), publicadas entre 2014 e 2016. A realização das imagens foi feita sempre de forma
consentida e as fotos cedidas para a equipe do jornal.
Nestes momentos, estavam presentes os comunicadores que se tornaram os principais
interlocutores da pesquisa - Beatriz Calado, Michel Silva e Michele Silva. Michel organizava a
logística dessa atividade e, muitas vezes, saía sozinho com a mochila cheia de fardos do
impresso, para entregar ou colocar em pontos fixos na favela. Cada edição, tinha em média
cinco mil exemplares, portanto, necessitava de vários dias de distribuição. Inicialmente, a
intenção da atividade fotográfica foi conhecer como acontecia a forma de comunicar do Fala
Roça no dia a dia e, assim, conhecer melhor a própria favela conduzida pelo trajeto da entrega
dos exemplares para os moradores, correspondendo à dinâmica de fotografar para descobrir,
conforme assinala Milton Guran em relação ao uso da fotografia em pesquisas de Ciências
Sociais (2011). Além disso, tornou-se uma forma de interação com os integrantes do jornal por
meio da troca de experiências relativas ao universo da comunicação jornalística e do
conhecimento mútuo de visões de mundo. Outro aspecto relevante foi a fotografia ter
contribuído para que eu me integrasse, de certa forma, às atividades do Fala Roça, evitando que
a pesquisa tomasse o tempo já escasso dos integrantes.
Devido à minha atividade profissional na área da fotografia, supus que as imagens
cedidas pudessem ser úteis e contribuir para dar visibilidade ao jornal. Ao que tudo indica,
assim aconteceu: as fotos foram usadas principalmente em materiais de divulgação da mídia,
além de se tornarem parte da metodologia do estudo, incorporadas às técnicas de entrevista
realizadas. O fato de terem sido usadas como forma de apresentação do jornal ao seu público
agregou às representações contidas nas fotos a dimensão de uma construção coletiva,
compartilhada.
Como instrumento de pesquisa, o uso das imagens se deu da seguinte forma (acordado
com os interlocutores): selecionei conjuntos de fotografias das situações de entrega do jornal
(compreendendo quatro edições publicadas, de um total de oito), tendo como critério principal
evitar repetições de cenas semelhantes. Estes conjuntos de imagens foram comentados por
Beatriz, Michel e Michele, de acordo com a livre escolha das fotos que lhes instigassem a falar.
Organizei as fotografias que tirei da distribuição das edições do jornal de acordo com as datas
em que foram tiradas. No total, havia seis conjuntos de imagens, retratando igualmente seis
ocasiões de distribuição do jornal. Apresentei os conjuntos de fotos para cada integrante do
jornal, em separado, devido à dificuldade de conciliar as agendas de todos para sessões
conjuntas de entrevistas; desde o início das nossas interações, minha atitude sempre foi ir até
onde estivessem, ao invés de demandar que se deslocassem até mim, demonstrando meu
71
interesse, valorização e respeito pelos esforços para “colocar o jornal na rua”, como diziam.
Nas entrevistas, solicitava apenas a escolha das imagens que mais lhes chamassem atenção para
comentarem livremente. Os comentários se tornaram parte de um diálogo fluido entre nós.
Minha principal intenção era compreender os sentidos que os jovens formavam sobre as
imagens e, a partir daí, perceber relações entre estes sentidos e discursos (entendidos também
como práticas) relativos ao Jornal Fala Roça.
A dinâmica dessas entrevistas aqui é denominada de fotoentrevista, com inspiração em
Achutti e Hassen (2004) e nos estudos pioneiros em antropologia visual de Collier e Collier
(1986). Segundo os primeiros, “As fotoentrevistas são uma técnica que implica usar, em visitas
sucessivas, as fotografias já tiradas como meio de propor e/ou balizar novas entrevistas e, com
isso, ao mesmo tempo em que se vai aprofundando o trabalho, vai-se fazendo a restituição dos
dados” (ACHUTTI; HASSEN, 2004, p. 287). Já Collier e Collier ressaltam que falar sore as
fotos permite aos interlocutores explicar e identificar conteúdos, bem como “educar o
entrevistador com a sua sabedoria” (dos entrevistados), além de “contarem suas próprias
histórias espontaneamente” (1986, p. 106). Entretanto, a própria natureza da produção da
imagem fotográfica – complexa, subjetiva e carregada de camadas de significados - demanda
refletir sobre as representações nelas contidas, a forma como são criadas e interpretadas por
quem as vê, além dos usos feitos dessas imagens (em contexto). Aqui, assinalo alguns aspectos
dos fundamentais da linguagem fotográfica, que merecerão maior aprofundamento em
momentos futuros.
Parto do pressuposto, junto com muitos pensadores, de que as imagens fotográficas não
são neutras, muito menos cópias da realidade, mas fruto de “processos de construção de
realidades”, conforme Kossoy (2000, p. 41). Esse processo reúne, de um lado, a construção de
representações por parte do fotógrafo e a construção de interpretações por parte do leitor da
imagem. O processo de produção da fotografia diz respeito ao
representação dos sujeitos sobre o seu próprio universo (Peixoto, 1995). Conforme aponta
Peixoto: “Nesse processo de observação conjunta, a posteriori, realizado a partir da percepção
fílmica do antropólogo, o que está em jogo, em primeiro plano, é a representação dos
personagens sobre seu espaço de sociabilidade, sobre seus parceiros e, principalmente, sobre
eles mesmos”. Isso posto, não significa que as imagens realizadas por um antropólogo ou
sociólogo tragam características distintivas dessas áreas de conhecimento, mas que se
estabelece uma relação de intersubjetividade entre os sujeitos (pesquisador e interlocutores).
Como assinala José de Souza Martins, “a composição fotográfica é também uma construção
imaginária, expressão e momento do ato de conhecer a sociedade com recursos e horizontes
próprios e peculiares” (Martins 2011, p.11). Ainda segundo este autor, desde que não se acredite
numa pretensa objetividade que as fotografias possam trazer para uma análise das realidades
sociais, a reflexão sociológica sobre a fotografia “pode contribuir para desvendar aspectos do
imaginário social e das mediações nas relações sociais que de outro modo seriam encarados
com maior déficit de informação” (Martins, 2011, p. 6).
Diante do meu relato visual (inscrito nas fotografias) sobre suas atividades, os jovens
moradores da Rocinha agregaram as suas próprias reflexões ao comentarem as fotos, apontando
diversos aspectos sobre a prática de comunicação que realizam e o cotidiano da favela, além de
outros temas que emergiram. Dentre eles estão: escolhas de conteúdos publicados e não
publicados, enfoques e repercussões das matérias, jeitos “certos” e “errados” de entregar o
jornal, objetivos e barreiras enfrentados pelo jornal, influências da “cultura nordestina” na
favela, lutas dos moradores por melhorias urbanísticas, comunicação comunitária e outros
assuntos. Portanto, tal procedimento permitiu o mapeamento de uma série de temas que foram
sistematizados e objeto de análise ao longo da pesquisa. Eles permeiam práticas,
experimentações e dúvidas que, aos poucos, ia constituindo a forma particular de fazer
“comunicação comunitária” deste grupo – na qual estão presentes assuntos que vão para o jornal
e que não vão, as mídias às quais se contrapõem, suas visões sobre a Rocinha e a cidade etc.
Diante dessas considerações, é possível afirmar que o apoio em dados empíricos foi
fundamental no âmbito desta pesquisa, considerando seu foco em um fenômeno sociocultural
de comunicação no qual se envolvem processos de construção de conteúdos discursivos que
vão muito além das páginas do jornal, fazendo-se também antes e depois do produto
materializado impresso. Afinal, trata-se de um meio de comunicação, onde a instância da
mediação está ativamente presente, agenciando conceitos e representações, que se tornam atos
em si. Neste sentido, as ciências sociais têm muito a contribuir para compartilhar o
conhecimento deste processo cultural dinâmico, em que as representações concebidas e
74
Para representar os conjuntos de fotos comentadas pelos três jovens, criei diagramas
com as imagens. Neles, as fotografias em tamanho maior indicam terem sido escolhidas por
mais jovens para serem comentadas e vice-versa: as menores foram escolhidas por menos
jovens. Os números ao lado das fotos remetem às legendas abaixo das imagens, com os nomes
dos jovens que comentaram cada fotografia. Por exemplo, no diagrama de fotos nº1: a fotografia
70 As entrevistas usando fotografias foram feitas até a publicação da 7ª edição do jornal. Portanto, não os
comentários dos jovens não abrangem a última série de fotos, referente à distribuição da 8ª edição.
75
nº1, localizada no centro do diagrama, em tamanho maior, foi comentada por Beatriz, Michel e
Michele; a foto nº 2 foi comentada por Beatriz e Michele, a nº 3 por Michel e Michele, a nº4
por Beatriz, a nº5 por Beatriz e a nº6 por Michel.
76
Legenda: Primeiro conjunto de fotografias comentadas por Beatriz, Michel e Michele nas fotoentrevistas. As
imagens foram feitas em uma das ocasiões da distribuição da 3ª edição do jornal, no dia 28/03/2014.
Nota: A autora desta tese, Cristina Pedroza de Faria, é fotógrafa e assina seus trabalhos como “Kita Pedroza”.
Portanto, imagens publicadas da autora, reproduzidas nesse trabalho, podem trazer esta denominação.
Fonte: A autora, 2014.
77
Legenda: Segundo conjunto de fotografias comentadas por Beatriz, Michel e Michele nas fotoentrevistas. As
imagens foram feitas em uma das ocasiões da distribuição da 5ª edição do jornal, no dia 21/02/2015.
Fonte: A autora, 2015.
78
Legenda: Terceiro conjunto de fotografias comentadas por Beatriz, Michel e Michele nas fotoentrevistas. As
imagens foram feitas em uma das ocasiões da distribuição da 5ª edição do jornal, no dia 28/02/2015.
Legenda: quarto conjunto de fotografias comentadas por Beatriz, Michel e Michele nas fotoentrevistas. As
imagens foram feitas em uma das ocasiões da distribuição da 6ª edição do jornal, no dia 08/08/2015.
Legenda: Quinto conjunto de fotografias comentadas por Beatriz, Michel e Michele nas fotoentrevistas. As
imagens foram feitas em uma das ocasiões da distribuição da 7ª edição do jornal, no dia 12/12/2015.
Fonte: A autora, 2015.
81
Legenda: Sexto conjunto de fotografias comentadas por Beatriz, Michel e Michele nas fotoentrevistas. As
imagens foram feitas em uma das ocasiões da distribuição da 7ª edição do jornal, no dia 09/01/2016.
Fonte: fotos da autora (Kita Pedroza).
82
Legenda: Fotografia da autora, feita junto com a equipe da distribuição do impresso na parte baixa da Rocinha.
Ao receber o exemplar, o senhor logo se sentou para ler. A imagem foi incorporada ao perfil do Fala Roça na
rede social Facebook.
Legenda: Fotografia da autora, feita junto com a equipe da distribuição do impresso na parte alta da Rocinha.
Publicada na 6ª edição impressa do Fala Roça, na sessão Editorial, em agosto de 2015.
Fonte: Jornal Fala Roça, 6ª edição impressa. Disponível em:< http://falaroca.com/>. Acesso em: janeiro, 2019.
Legenda: Fotografia da autora, feita junto com a equipe da distribuição do impresso na parte alta da Rocinha.
Publicada na 7ª edição impressa do Fala Roça, na sessão Editorial, em dezembro de 2015.
Fonte: Jornal Fala Roça, 6ª edição impressa. Disponível em:< http://falaroca.com/> Acesso em: janeiro, 2019.
84
Legenda: Os/as integrantes do Fala Roça Beatriz Calado, Michel Silva e Michele Silva se preparam para iniciar
a distribuição da 5ª edição do jornal na Rocinha. O ponto de encontro foi na Biblioteca Parque da Rocinha/C4
(na localidade da “Fundação”), onde faziam reuniões e estocavam exemplares do impresso. Data: 21/02/2015.
Fonte: A autora, 2015.
Nas inúmeras vezes em que encontrei os participantes do Fala Roça, escutava sempre
muitas histórias – de situações na favela, em outras favelas, na cidade, no país, de pessoas, de
suas vidas. Às vezes, não cabiam no tempo da reunião do jornal. Sempre voltava para casa com
a sensação de que a vida jorrava naquelas narrativas intensas, múltiplas. A forma de narrar era
de quem tinha gosto em contar, sentia-se implicado de alguma forma. Quando pedi que Beatriz,
Michele e Michel me contassem suas próprias histórias de vida, entendi que ninguém poderia
contá-las melhor do que eles mesmos. Esse foi um grande estímulo para buscar, ao máximo,
incluir suas próprias vozes para falarem sobre si (especialmente), neste trabalho.
Além disso, “falar por si”, “de nós pra nós mesmos”, ou na forma mais conhecida “nós
por nós” foi uma expressão dita e repetida por muitos comunicadores em conversas informais,
85
as respectivas entrevistas para os jovens, com intuito de realizarem as observações que lhes
parecessem pertinentes e de termos feito encontros de checagem desse material.
Ouvir e conhecer histórias de vida são situações que, particularmente, me trazem alegria,
o que contribuiu para que esses momentos fossem muito agradáveis. Junto a isso, todos foram
receptivos à proposta de me contarem suas histórias. A primeira entrevista foi feita com
Michele, em 02 de março de 2015. Apesar de estarmos, então, em contato frequente, em função
das atividades do jornal, um segundo encontro para checar algumas passagens dessa entrevista
aconteceu somente em abril de 2019. Além das rotinas movimentadas e ocupadas dos três
jovens – entre trabalhos, estudos, tarefas do jornal, eventos ligados a atividades de comunicação
e vida pessoal –, Michele morou no exterior (Indonésia), em duas ocasiões, onde passou alguns
meses a trabalho71. Beatriz (a quem todos chamamos de Bia e, portanto, irei chamá-la também
dessa forma nestas páginas) foi a segunda entrevistada, em 05 de novembro de 2016, após uma
reunião de pauta do jornal. Um segundo encontro para tratar de dúvidas e fazer atualizações
aconteceu em junho de 2019. A última entrevista em formato de história de vida foi feita com
Michel, mas outros diálogos sobre o jornal já vinham acontecendo anteriormente. Realizamos
três encontros, no total, sendo o primeiro em 06 de fevereiro de 2017, o segundo em 10 de
março de 2018 e o terceiro em 26 de fevereiro de 2019. No primeiro, sua mãe (Dona Josita, ou
Dona Jô) esteve presente em boa parte da entrevista, uma vez que moravam na mesma casa,
portanto, suas memórias também fizeram parte da conversa. E Dona Jô se tornou também
interlocutora da pesquisa. Quanto à condução das entrevistas, elaborei um roteiro simples,
semiestruturado. A orientação inicial era apenas contar a própria história a partir das lembranças
mais antigas das origens familiares, deixando a narrativa fluir a partir daí; além disso, outra
questão solicitada foi abordar o envolvimento com atividades relacionadas à comunicação. O
restante da entrevista foi conduzido pelo desejo dos caminhos que os jovens quisessem trilhar.
Alguns pediram para fazer perguntas, pois não estavam acostumados a falar sobre si sem
nenhuma orientação ou limitação. O importante era não tornar esse tipo de atividade invasiva,
o que guiou os passos da pesquisa em geral.
71 Esse trabalho era em uma empresa de tecnologia, que desenvolvia sistema operacional de computador para
populações de baixa renda, cuidando de toda parte de comunicação em redes sociais (entre outras coisas).
87
cada uma dessas instâncias da vida social, há contrastes relativos à maneira como vivenciavam
essas experiências. No capítulo 7, dedico-me, de forma mais específica, às referências teóricas
em torno da reflexão sobre juventudes que ajudam a pensar caminhos traçados pela “galera” do
Fala Roça. Por ora, acompanho Regina Novaes (2017), quando ressalta que:
mais longa de Michele com comunicação na Rocinha (conforme ela aborda em sua própria
narrativa), somada com histórias específicas de sua família, tenha contribuído para que
assumisse posição de “comando”, em momentos variados, das atividades do jornal. Michel
nasceu com lábio leporino, uma má formação congênita que exige muita atenção e cuidados,
principalmente, nos primeiros anos de vida. Toda a família cuidou do caçula, e Michele, em
especial, por ser a irmã mais velha, assumiu o “papel de mãe”, cuidando do irmão quando a
mãe precisou voltar a trabalhar e em muitos outros momentos.
Já quanto ao local de moradia, apesar de todos serem “cria” da Rocinha, ou seja,
morarem na favela desde que nasceram ou bem pequenos e lá terem sido criados, as
experiências relacionadas às formas como os três lidaram com o lugar foram diferentes. Bia,
por exemplo, morou em dois outros lugares no estado do Rio, além da Rocinha na infância: no
bairro Gardênia Azul, na zona oeste da cidade, e em Saquarema, na região dos lagos. Por essa
e outras razões, ela frisou, em alguns momentos da sua narrativa, não ter estabelecido uma
relação intensa de convívio no espaço da favela, desde a infância até a vida adulta. Quando
criança, a mãe não a deixava ficar “na rua”, preferindo que brincasse perto ou dentro de casa –
tanto na Rocinha quanto na Gardênia. Quando adulta, ela trabalhava de dia e só chegava em
casa para dormir. Os pais de Michele, Monique e Michel adotaram medidas semelhantes com
os filhos: não queriam que ficassem na rua, ou nas lan houses. Por isso, os pais resolveram
comprar o primeiro computador da casa e destiná-lo especialmente para o caçula, Michel, para
tirá-lo das lan houses e mantê-lo em casa. Segundo ele, quando ganhou o computador, “acabou
a [sua] vida social”. Esses e outros relatos estão na narrativa de Michel, com participação de
sua mãe, Dona Jô – ambos contam essas e outras histórias, cada qual do seu ponto de vista.
Dona Jô, frisa, de forma explícita, que “tinha muita gente de arma na mão”, por isso queria o
filho em casa. Inclusive, as diferenças entre as visões de ambos sobre as histórias familiares
foram explicitadas em alguns momentos, mesmo que em tom de brincadeira. “É a minha
história!”, Michel reivindicou, quando ambos divergiram se ele havia sido “expulso” ou
“transferido” de uma das escolas onde estudou. Aqui vemos que as disputas relativas à memória
familiar também evidenciam a “ilusão biográfica” da qual fala Bourdieu.
Quanto à escolaridade, seus percursos se aproximam de novo. Na maior parte da
trajetória escolar, Bia, Michele e Michel estudaram predominantemente em escolas públicas.
Todos puderam concluir o ensino médio, mas não sem muitos esforços para se manterem
estudando e, igualmente, com muitos esforços dos pais para proverem as condições para os
filhos estudarem (que vão muito além de somente custear as escolas). “Os meus pais sempre
diziam: ‘pobre não tem nada, então você tem que priorizar a educação’, lembrou Beatriz. Nesse
89
sentido, Michele também recordou: “a gente passou por todas as dificuldades do mundo, mas a
única coisa que eles não deixavam era a gente faltar na escola”.
A passagem pela universidade, igualmente, faz parte dos percursos vividos por todos.
Estudos sobre universitários moradores de favelas, como o de Mariz, Fernandes e Batista
(1999), observam que “o aparecimento desses universitários indica uma tendência de mudança
nas favelas”, já nos anos 1990. Estudos mais recentes sobre políticas públicas de incentivo à
educação superior no Brasil (como o ProUni e o Reuni)72, voltadas para o público jovem e
implantadas a partir da primeira década dos anos 2000, demonstram uma ampliação das vagas
em instituições de ensino superior em geral naquele período (conforme apontam Da Cunha et
al, 2014). Porém, o tema é complexo e precisa ser analisado com cautela, uma vez que “a
expansão quantitativa é uma das faces da questão da ‘democratização’ da educação superior”
(SOBRINHO, 2010). Além dela, assegurar meios de acesso mais igualitários e a permanência
nas instituições, junto ao ensino de qualidade, são algumas variáveis, entre muitas, que também
necessitam de políticas continuadas por parte do estado. Em tempos recentes, esse desafio se
tornou ainda maior, no contexto de governos que concebem investimentos no setor da educação
(além de áreas também essenciais como a saúde) como “gastos” públicos e congelam os
recursos para esses setores. Voltando ao caso aqui estudado, os três jovens do jornal fizeram
faculdade em instituições de ensino privadas, o que só foi possível por meio da obtenção de
bolsas de estudo integrais. Bia e Michel cursaram graduação em Jornalismo, na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com bolsa filantrópica 100%; já Michele
cursou Publicidade e Propaganda, na UniverCidade, com bolsa do ProUni, integrando a
primeira geração de jovens contemplados por essa política pública (em 2008).
Outro aspecto que pode ser visto como ponto de aproximação nas trajetórias dos três é
a dimensão do trabalho, seja em suas áreas de especialização profissional ou em outras. Vimos
acima que todos conseguiram acessar o ensino superior, porém, mesmo tendo sido
contemplados com bolsas de estudo, necessitavam de trabalhos remunerados para se manterem
na faculdade. Esse aspecto foi crucial para Michele optar pela faculdade privada, já que a
instituição oferecia curso só na parte da manhã, enquanto as públicas, onde ela também havia
sido aprovada no exame do vestibular, oferecia aulas em mais de um turno, ou seja, os horários
se configuravam incompatíveis com o acúmulo das atividades de trabalho. Conseguir estágios
72 Respectivamente, Programa Universidade para Todos (ProUni), voltado para instituições privadas de ensino
superior, e Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni),
voltado para universidades públicas. Ambos os programas, além de outros, foram implantados, em nível
federal, durante os dois primeiros governos de Luís Inácio Lula da Silva, do PT.
90
entrevistas que realizei com os três jovens. Portanto, não me pareceu que coubesse a mim trazê-
los à tona, nem me sentiria a vontade em fazer isso unilateralmente, sem acesso às
autorrepresentações dos meus interlocutores no que diz respeito a esses assuntos. Ao mesmo
tempo, mesmo sem ter acesso a essas formas explícitas de reconhecimento, obviamente formei
minhas representações sobre a composição desses marcadores na equipe do jornal e acho
pertinente expressá-las nesse espaço da tese: quanto ao universo racial, enxergo Beatriz como
negra, Michele e Michel, como brancos, as duas “moças”, como mulheres, e Michel, como
homem. Quanto a questões envolvendo o universo dos gêneros, vejo Bia e Michele no campo
do feminino, e Michel, no masculino. Quanto aos elementos da minha própria representação, já
os abordei no capítulo 1.
Embora os assuntos acima não tenham sido muito pronunciados no período da pesquisa
de campo, a composição da equipe do FR como tendo maioria de mulheres chegou a ser
comentada, por exemplo, em tom descontraído, por Michel em uma de suas entrevistas (mas
não desenvolveu muito). Michele e Bia expressaram desconforto em relação aos momentos em
que havia referência ao “jornal do Michel”. Embora não tenham colocado essas situações,
especificamente, no campo das questões de gênero, podem vir a ser observadas cogitando esse
sentido futuramente. Já questões envolvendo raça não foram abordadas de forma significativa
em minhas interações com o grupo ou em separado, com cada jovem. Aprendemos no campo
das Ciências Sociais que os silêncios também são significativos. Dessa forma, uma
consideração me ocorreu após minha última conversa com Bia. Naquela ocasião, em fevereiro
de 2019, nosso encontro tinha o intuito de checar sua entrevista de história de vida e “botarmos
os papos em dia”. Entre muitos assuntos da conversa, Bia se referiu a uma sensação de “medo”
exacerbado, que vinha desde a época da instalação da UPP na Rocinha, mas havia se agravado
na época dos conflitos armados de 2017/2018 na favela, estendendo-se até aquele momento.
Em resumo, passei a cogitar que o fator racial poderia estar envolvido nos seus medos de
circular por alguns lugares na Rocinha e, ainda, de voltar a participar da distribuição do jornal
pela favela. Se levarmos em conta a predominância da incidência de violência letal entre jovens
negros de favelas e periferias, faz sentido cogitar uma hipótese nesse sentido (o que pode ser
abordado futuramente).
Outro aspecto que pode ser entendido entre semelhança e diferença é a forma de
autoidentificação pelos/as interlocutores/as em relação ao emprego das categorias
“comunicador/a” e “jornalista”, que variou dependendo dos contextos e épocas durante o tempo
da pesquisa. Além disso, outras formas de autorreconhecimento também foram utilizadas, como
a profissão de publicitária, no caso de Michele Silva. Assim, no âmbito deste trabalho, precisei
92
Já tivemos muitos dias de luta, de luta, mais luta e segundos de glória. Na favela a
gente escolhe ser comunicador e vira malabarista, equilibrista, ativista,
assistencialista, vários istas. Mas não se esqueça, somos jornalistas. Respeita o bonde!
(Facebook de Michele Silva. Trecho de postagem, maio de 2020).
Por último, vale mencionar particularidades nos percursos biográficos explicitados nas
entrevistas dos jovens para esta pesquisa envolvendo pertencimento religioso e o campo do
engajamento/ativismo/militância. A dimensão da religiosidade ganhou pouca relevância nos
relatos de história de vida dos três jovens: apenas Beatriz a citou e, mesmo assim, por meio da
negação de pertencimento a denominações religiosas, no momento atual. No passado, a família
se aproximou das religiões católica e “umbandista”, mas atualmente ela não se identifica com
nenhum deles. Já Michel e Michele não abordaram esse tema. Esse “silêncio” também se fez
sentir nas páginas do Fala Roça, onde a questão religiosa quase não entrou em pauta. Ao mesmo
tempo, o Jornal Folha Universal, da IURD, entregue em toda a favela, é visto como a principal
ameaça ao Fala Roça.
Quanto ao campo dos engajamentos, ativismos e militâncias, em primeiro lugar, não
parece haver distinção significativa entre essas categorias para os jovens do jornal, além disso,
não eram temas frequentes no jornal impresso. Ao longo da maior parte do tempo da pesquisa
93
de campo, esses temas foram pouco mencionados por meus interlocutores. Por outro lado, este
assunto foi levantado pelos três nos encontros mais recentes que tivemos – em 2019. Michele
se referiu aos planos coletivo (relativo a posicionamentos do Fala Roça) e individual; no que
diz respeito aos seus próprios parâmetros, comentou: “Não sei bem a diferença entre militante
e ativista” e, em seguida, definiu: “eu me considero ativista, militante das causas da favela, das
causas dos direitos humanos”; quanto ao jornal, lembrou: “na minha cabeça, quando a gente
começou a fazer isso, não tínhamos noção do papel da comunicação comunitária. Tinha noção,
mas com os anos passando e o amadurecimento chegando, a gente entende o papel social de
estar fazendo isso”. Portanto, papel social e as “causas da favela e dos direitos humanos” são
os significados de ativismo/militância, na sua visão. Essas dimensões se tornaram mais
presentes após o 17 de setembro de 2017, quando foi desencadeado o último conflito armado
na favela e todas as operações policiais e das forças armadas subsequentes – incluindo o decreto
da Intervenção Federal no Rio de Janeiro.
Já Michel usou, particularmente, a palavra engajamento na última etapa de sua
entrevista e entende que engajamento político é “mobilizar pessoas por direitos”. Além disso,
sobre si mesmo, reflete: “Olha, por muito tempo, eu atuei por trás, nas articulações. Mas nesses
últimos anos, não fui uma pessoa central, onde as pessoas falam ‘o Michel é um legitimo
representante’”. Entretanto, atualmente, se considera “engajado”: “Eu sou engajado. Pensando
na Rocinha: eu luto por saneamento básico, por educação, luto pelos direitos básicos que, no
dia a dia, ali deveria ter e não tem”. Já Beatriz demonstrou interesse pelo trabalho com direitos
humanos, também em nosso último encontro, em fevereiro de 2019, e não utilizou nenhum dos
termos mencionados anteriormente. Mas afirmou ter interesse pelos Direitos Humanos: “Eu
gostaria de trabalhar com atuação em Direitos Humanos”, resumiu.
“Dizem que os filhos devem seguir a mesma profissão que seus pais exerceram. Nada
contra, mas eu sempre fui sonhador. Na minha infância, eu imaginava ser um jogador de
futebol, empresário, médico ou até um militar. Meu pai sempre foi a minha inspiração. Mal
sabia ele que eu me tornaria um jornalista. Minha mãe demorou um certo tempo para entender
o que eu fazia, pois eu vivia circulando pela favela. Aliás, o bom jornalista – prefiro
correspondente local – deve saber de tudo o que está acontecendo, ainda que superficialmente.
Antes de eu falar sobre os projetos que desenvolvi no jornalismo comunitário, é
impossível não falar da minha história de vida. Eu nasci em 1993 na favela da Rocinha, Zona
Sul do Rio de Janeiro. Meus pais se conheceram no Rio, nos anos 80. Ambos são migrantes,
assim como boa parte da população da Rocinha. Ele é mineiro da cidade de Rio Pomba, na
Zona da Mata Mineira, e ela é paraibana da cidade de Boqueirão, na região metropolitana de
Campina Grande, na Paraíba. Eles trabalharam a maior parte de suas vidas como faxineiros
em condomínios ou em casas de famílias.
Eu sou o filho caçula e tenho mais duas irmãs: Michele Silva e Monique Silva. Nós
tivemos a oportunidade de estudar e concluir os estudos. Michele se formou em Comunicação
Social pela UniverCidade e Monique concluiu a graduação em Gestão de Negócios na
universidade Castelo Branco. Nossos pais são de outra geração e não conseguiram concluir
os estudos por questões similares às de muitos brasileiros da época deles: tiveram que priorizar
o trabalho porque ‘estudo não enche barriga’”.
73 Título do primeiro capítulo do livro Construindo Mídia comunitária: as experiências de Michel Silva, ainda
no prelo, mas cuja escrita, provavelmente, data de antes de fevereiro de 2017, quando ele me mostrou seus
escritos. Os dois primeiros capítulos me foram entregues por Michel em fevereiro de 2017, ao final da
primeira fase da sua entrevista de história de vida para esta pesquisa. As falas de Michel, Michele e Beatriz,
neste capitulo, estão em itálico. Este trecho está entre aspas por se tratar da reprodução do livro escrito por
Michel. As demais falas não terão aspas, apenas marcação em itálico, indicando a autoria dos jovens.
74 Michel autorizou a reprodução deste conteúdo em meu trabalho de pesquisa, devidamente creditado.
95
Rocinha. Quando reencontramos, em fevereiro de 2019, para conversar sobre este assunto, a
redação do livro estava paralisada, por falta de tempo: “Mas o desejo não morreu. Em algum
momento da vida, vou lançar. Pretendo lançar quando terminar a faculdade, porque vou ter mais
tempo pra me dedicar a outras coisas”, contou.
Em minha concepção, o sentido da entrega desses escritos a mim passa pela dimensão
de ter direito à voz, de querer contar sua própria história75, que tanto permeia as narrativas de
veículos jornalísticos produzidos por moradores de favelas e também está presente nos
discursos do Jornal Fala Roça76. Outro aspecto é que essas passagens já estavam escritas, não
foram contadas a mim especificamente, mas, como lembra Bourdieu, são também uma forma
de construção de uma autoimagem, como ocorre com as autobiografias em geral. Já o nosso
diálogo em torno do seu texto autobiográfico se aproxima da ideia de etnobiografia, uma vez
que se trataram de novas interpretações a partir deste encontro específico. Nesse sentido, Michel
explicou que o livro se iniciava com uma influência do grupo Racionais, ao dizer que admirava
a trajetória dos pais, mas sempre foi “sonhador”: queria ter a chance de viver um destino
diferente.
A letra da música Rap do Silva77 conta a história de um jovem personagem, morador de
favela. “Era só mais um Silva que a estrela não brilha / Ele era funkeiro, mas era pai de família”,
diz o refrão. Trabalhador, “que pegava o trem lotado”, bem considerado na vizinhança, morre
assassinado a caminho de um baile funk, onde ia pra curtir, dançar, “com a melhor camisa, tênis
que comprou suado”. Mas Michel não se vê como “só mais um Silva”, conforme evidencia no
título do primeiro capítulo do seu livro, que faz alusão ao Rap. Pelo contrário, ele quer ver a
sua “estrela” brilhar. Este sonho passa por seguir uma trajetória – em termos de trabalho –
diferente da dos pais, como mencionado, ou por “furar a bolha”, que não é só familiar, “mas
social e ela está ligada com a questão da educação também”. Assim, o sonho estaria ligado à
possibilidade de uma profissão diferente da dos pais e, nesse caso, à profissão de jornalista,
Mas, se este era o pensamento no tempo do início da escrita do livro, em 2016/7, já em 2019,
dava lugar a uma certa desilusão:
Eu pensava que, pelo jornalismo, denunciando as mazelas que a gente vivia na favela
eu poderia obter justiça social através do jornalismo. Mas conforme foi passando o
tempo, eu percebi que a caminhada era muito longa, pra chegar até a tão sonhada
75 Não há espaço suficiente para incluir aqui os dois capítulos na integra, mas definitivamente para continuar
este diálogo.
76 “A comunicação comunitária tem como principal característica a participação do povo como gerador de
conteúdo e não só como receptor”, escreveu Michele, na matéria “O sonho que tomou forma”, na primeira
edição do jornal, referindo-se à atuação do Fala Roça.
77 O funk Rap do Silva, de autoria de Moyses Osmar da Silva (ou Bob Rum), foi lançado em 1995.
96
justiça social. Claro que há algumas conquistas ao longo desse tempo, mas ainda é
muito pouco pra nossa realidade”, explicou Michel na última etapa da sua história de
vida.
Quando iniciei a pesquisa, Michel morava ainda com os pais, na Vila Verde. Depois se
mudou duas vezes dentro da Rocinha: primeiro para a localidade do Trampolim (com sua
companheira, Tainara); entre fevereiro e março de 2018, mudaram-se de volta para a Vila
Verde, dessa vez, para a casa onde antes morava a irmã (Michele), que passou uma temporada
no exterior. As etapas das entrevistas foram feitas em suas casas e na PUC-Rio, onde estuda.
Esses momentos abrangeram dos seus 24 aos 26 anos, época em que cursou a faculdade de
jornalismo, fez estágios, dentre eles, em telejornalismo na TV Record, além de trabalhar como
“frila” em atividades de comunicação/jornalismo e dedicar-se ao Fala Roça (incluindo eventos
relacionados, como os promovidos pela Agência de Redes). Essas não eram todas as atividades
das quais participava; havia muitas outras, incluindo viagens ao exterior e o trânsito intenso no
mundo on-line.
Michel se considerava jornalista, mesmo antes de concluir a graduação em Jornalismo;
ou seja, este reconhecimento não passa necessariamente pelos bancos da faculdade. Além disso,
considerava-se também “correspondente local”. Em suas palavras, trata-se de “uma pessoa com
conhecimento da região. É porque quando a gente fala correspondente, a gente pensa em alguém
que está falando as coisas de dentro pra fora”. E complementa: “Foi isso que pensei: queria
denunciar através do jornalismo as nossas mazelas. Então, correspondente local é também uma
brincadeira com correspondente internacional. É como um meio de socorro, tipo “nós estamos
abandonados”. Diante dessa explicação, ponderei em nossa conversa: “Esse jornalismo, que
compreendo totalmente, tem a ideia de falar de dentro pra dentro, mas talvez não seja só pra
dentro”. Ele concordou: “Muda a todo momento, tem hora que é local, tem hora que é pra
dentro, hora que é pra fora, hora que é pra dentro e pra fora.” Eu digo: “É dinâmico”, ele
complementa: “É dinâmico. Depende do que você está tentando comunicar”.
Telles vê as trajetórias/percursos biográficos como parte de mobilidades urbanas, que
são “facetas de um processo único de reorganização das condições de existência” (2006, p. 69).
Assim sendo, há que se situar eventos em tempos e espaços onde as histórias se passam. Nessa
concepção, três linhas atravessam esses eventos: a linha das cronologias (das famílias,
gerações), das espacialidades (onde se dão as práticas) e dos eventos políticos (que inscrevem
certos marcos no espaço/tempo, como as consequências de políticas públicas, etc.). No caso de
Michel, a reorganização dessas condições se faz perceber por meio da narrativa do seu livro.
Esta se inicia com a menção à possibilidade de poder sonhar com uma profissão diferente das
97
dos pais. Poder escolher o Jornalismo se tornou possível pela via dos estudos, ao qual os pais
não tiveram acesso. Portanto, as expectativas da geração mais antiga dos pais, migrantes que
chegaram ao Rio no fim dos anos 1970 vindos do interior rural, de chegar ao “eldorado” 78 e
ganhar a vida na cidade grande, contrastam com as dos seus filhos que já nasceram no Rio de
Janeiro no início dos anos 1990. Se estudar antes não “enchia barriga”, passou a ser o caminho
perseguido para traçar outras rotas ocupacionais por Michel e suas irmãs, nascidos e criados na
Rocinha entre os anos 1990 e as primeiras décadas dos anos 2000. Os próprios pais enxergaram
as mudanças que se impunham na vida da cidade ao não deixarem faltar estudos para os filhos.
“Eu falava pra eles ‘não quero que vocês cresçam como eu cresci; nesse mundo de hoje, vocês
vão crescer diferente, com uma educação diferente, uma vida diferente, com estudo”, contou
Josita Maria da Silva, mãe de Michel (de 1993), Monique (de 1991) e Michele (de 1989).
Filho caçula de Dona Jô (como me acostumei a chamar) e Seu Paulo (Paulo Afonso da
Silva), foi criado com auxílio das irmãs, já que os pais precisavam sair para trabalhar. Todos
estudaram em escolas públicas e cursaram faculdades privadas, contando com algum tipo de
bolsa no ensino superior, para estudantes de baixa renda. Por ter nascido com lábio leporino, o
caçula recebeu cuidados extras de toda a família na infância. Mas esta má formação congênita
também lhe rendeu dificuldades que ultrapassavam a dimensão corporal, como o preconceito
de amigos sob a forma de apelidos, por exemplo, que o acompanharam por longos anos.
Dificuldades com a oralidade foram aos poucos sendo transpostas com diversos tratamentos.
Nesse meio tempo, Michel aperfeiçoava a habilidade com a escrita.
Destaco, brevemente, aspectos que Michel ressalta (mais à frente nos escritos do livro)
terem contribuído para o seu interesse por cursar Jornalismo: por um lado, o seu “mergulho”
no mundo digital e da internet e, por outro, a leitura dos jornais trazidos para casa pelo pai,
quando trabalhava como porteiro. Em meados da primeira década dos anos 2000, seus pais
compraram o primeiro computador da família. O intuito era tirar o filho “da rua e das lan
houses” (segundo Dona Jô).
De acordo com Baltar, Souen e Souza Campos, ocorreu um período de “crescimento
com inclusão social” na economia brasileira entre 2004 e 2013, tendo como aspecto marcante
“a forte ampliação do emprego formal acompanhado de expressivo aumento de poder de
compra dos salários nesse tipo de emprego” (2018, p. 171). Nas lembranças de Michel, na
época, ainda eram poucas as casas com computadores na Rocinha e havia estourado um grande
78 Expressão usada por Michele ao narrar a vinda de seus pais do interior para o Rio de Janeiro. “Ela (sua mãe)
queria vir pra cá, mas só era um sonho, todo mundo de lá tem esse ‘eldorado’ de achar que vai vir pro Rio e
vai ficar rico assim”.
98
conflito armado na favela, conhecido pelos moradores como “a guerra da Semana Santa”. Aos
treze anos, ele vivia entre a casa e a escola e passava a maior parte do tempo livre “fuçando” o
computador, onde sua principal diversão era o jogo irlandês Habbo Hotel (coincidência ou não,
habbo significa eu falo). Seu personagem, no jogo, era um repórter que criava as notícias
relativas aos demais participantes na brincadeira do hotel. Na adolescência, quando passou a
“pegar mal” se dedicar a um “jogo de crianças”, passou a ler os jornais que o pai trazia para
casa, depois de descartados pelos assinantes do condomínio onde trabalhava.
No fim do ensino médio, criou um primeiro espaço voltado para relatar o dia a dia na
Rocinha (o Tumblr Vida na favela); no mesmo ano, criou, com a irmã Michele, a mídia
eletrônica Viva Rocinha e, no ano seguinte, ambos iniciaram a atuação no Fala Roça. Junto
com essas mídias, intensificava-se a circulação e proximidade do então adolescente com o
ambiente onde morava. De início, o primeiro blog parece ter sido uma forma de contar o que
vivia no dia a dia. Depois, aos poucos, as mídias criadas passaram a ser também novas formas
de viver e circular pela favela. No Fala Roça, desde o início, Michel foi repórter e, aos poucos,
aumentou sua participação, por exemplo, ao se tornar responsável pela diagramação do
impresso. Como a mídia também abarcava a parte digital, ele passou a ter uma dedicação
crescente ao universo on-line do FR. No expediente da oitava edição do impresso, além de
repórter, acumula o cargo de “Diretor de produção”. Sobre os cargos do jornal, Beatriz resumiu:
“A gente que inventa, né? (risos). Não tem ninguém para mandar em você, você inventa um
cargo. Michel inventou esses cargos aí”.
Quanto à dimensão da participação política, Michel se considera engajado
politicamente, o que, para ele, significa “mobilizar pessoas por direitos”. Participou do DCE da
PUC, em épocas mais recentes, e também pelos direitos de alunos “periféricos e favelados”,
mas seu maior engajamento é com a Rocinha: “luto por saneamento básico, por educação, pelos
direitos básicos que no dia a dia ali deveria ter e não tem; acho que é um absurdo. Por exemplo,
20 mil jovens estão sem vaga na escola estadual. O que vai absorver esses jovens? Essa é uma
forma de engajamento: lutar por uma vaga na escola estadual”. Na última etapa de sua
entrevista, já em 2019, fazia planos de “caminhar mais para a política”, incluindo se candidatar
a vereador em 2020, pois acreditava que só seria possível “mudar algo no estado, estando dentro
do estado”. Conheci Michel ao trabalharmos em um mesmo projeto voltado para introdução a
linguagens de comunicação, realizado na Biblioteca da Rocinha/C4 em 201479. Transcrevo a
79 Realizado nas Bibliotecas Parque criadas pelo governo do estado do Rio de Janeiro, o projeto Regiões
Narrativas, na Rocinha, ofereceu oficinas de fotografia, vídeo e animação aos moradores locais. Trabalhei na
equipe de coordenação do projeto e Michel foi monitor das oficinas.
99
Dona Josita, então com 62 anos, entrou para as páginas do Jornal Fala Roça em agosto
de 2015: foi levada pelas mãos, ou pela escrita cuidadosa, dos filhos, Michel e Michele Silva,
que contaram a sua história na matéria “De volta para a minha terra: paraibana retorna à terra
natal após 30 anos sem visitar familiares”. Na fotografia feita por Michel, que complementa o
perfil da mãe, Dona Jô posa, em sua laje com vista, ao fundo, para o Morro Dois Irmãos e as
casas da Rocinha, diante do olhar do filho. Está encostada ao muro que faz limite com a casa
ao lado, com vestido florido, simpatia e altivez. Naquele instante, seus olhares se encontram e
ela sorri. A história contada também é a história de quem escreve, da própria família. O
“gancho” para frequentar o jornal foi a possibilidade de Dona Josita retornar à sua “terra”, no
interior da Paraíba, pela primeira vez, depois migrar para o Rio de Janeiro 30 anos atrás.
Conforme a matéria publicada na 6ª edição, viajar de avião se tornou mais barato para as
80 Dona Jô, mãe de Michel, Michele e Monique, é comunicativa e seu estilo de vida, caseiro, fez com estivesse
presente em muitos momentos da minha pesquisa de campo, ou melhor, na verdade, eu é que passei a
frequentar a sua casa, onde morava com o marido (Seu Paulo) e, na época, com os filhos. Depois, aos poucos,
os filhos, já adultos, foram saindo de casa. Seu Paulo também era comunicativo, porém, mais ‘rueiro’: gostava
muito de sair, caminhar, fazer exercício, andar de metrô pra ler o jornal no ar condicionado, como me contou!
Um problema de saúde em sua infância fez com que tivesse dificuldade de articulação na fala; portanto, acabei
trocando mais ideias com Dona Jô. Inúmeras vezes fui à sua casa para acompanhar, reuniões do Fala Roça,
fazer entrevistas ou passar para trocar ideias com Michel e Michele. Aos poucos, entre cafés e almoços
gostosos que ‘filei’, feitos por ela, o que relação de pesquisa, pensando nos moldes mais tradicionais, passou a
ser outra relação, mediada pelo afeto, pela vontade de conhecer as histórias, pela saudade de ficar longe, pela
preocupação nos momentos difíceis.
100
❖ Infância na Rocinha
M: Meus pais se conheceram no Rio. Tiveram três filhos, primeiro Michele, depois
Monique e sou o caçula. Sou nascido e criado na Rocinha, na localidade da Vila Verde, na
mesma casa há vinte e poucos anos. Depois a gente mudou de casa, recentemente. A maior
parte da infância passei na rua, brincando, como uma criança normal, porque naquela época
tinha internet, mas não era tão comum como é hoje. A gente brincava de futebol, gude, ping
pong; brinquei mais de futebol. Na favela, quando você é moleque, garoto, joga muito em
escolinha de futebol (um dos únicos lazeres que tinha na época), até uns treze anos, quando
ganhei um computador. Aí acabou a vida social. Na nossa rua, a gente foi a primeira família
a ter computador. Eu fazia de tudo no computador – jogava, tinha internet, assistia vídeos no
YouTube”. Gastava muito dinheiro com lan house, com uns 12, 13 anos; vivia lá e esse dinheiro
já daria pra comprar um computador.
Naquela época, o salário mínimo era uns R$ 400, era muito dinheiro. Eu ia muito e as
minhas irmãs raramente. Era submisso a elas, um “faz tudo”. Minha mãe trabalhava fora e as
minhas irmãs cuidavam de mim. Quando eu ia pra lan house, elas não me achavam (risos),
ninguém conseguia me tirar de lá. Nessa época, entre 2001-03, era época de Copa do Mundo81.
A rua ficava muito bonita, enfeitada. A seleção era seleção!
J: Tinha muita gente de arma na mão.
M: É, muita gente de arma na mão. E a Vila Verde era barra pesada mesmo. Na época,
a Copa do Mundo era de madrugada, no Japão. Os jogos, alguns a gente assistia na nossa rua
mesmo. Uma vizinha tinha uma televisão grande (era meio a rica da rua), colocava na rua e
todo mundo assistia o jogo na frente da casa dela; meio virava uma festa no meio da rua. Era
também uma época muito ruim porque era transição de poder do tráfico; tinha uma guerra
interna na Rocinha entre os donos do morro. Eu tinha os amigos da rua mesmo – de onde eu
morava, da escolinha [de futebol] em que a gente jogava. Ali, todo mundo foi criado junto, a
molecada toda. Os vizinhos e os das redondezas também. A gente sempre brincava junto – de
pique pega, de correr, pique ajuda; pique esconde. E não era restrito a homem, tinha mulher
também.
M: Morei a vida toda na Vila Verde. Isso aqui tudo era Floresta da Tijuca. Esse terreno
todo era de dois paranaenses e um pedaço era da Light. Esses paranaenses não tinham
interesse nessas terras e os moradores, naquela época de alta de aluguéis, que não tinham
onde morar, invadiram o terreno. E começaram a construir as casas. Pessoas da Rocinha
mesmo. O próprio MST ajudou na invasão, segundo relatos históricos - dos moradores da
região. E, como tinha uma nascente aqui perto (ainda tem o resto dela), era uma nascente de
água limpa, então se tornou Vila Verde, em alusão à floresta. Era muito verde, mas de verde
não tem mais nada, agora é só tijolo. Surgiu em 1991 e a gente chegou em 1993. Água e luz
era muito precário, a ladeira ainda era de barro. Ainda lembro da ladeira, o meu pai ajudou:
aconteceu um mutirão, cada um deu uma graninha (os moradores de lá) e todo mundo, num
dia só, ajudou a asfaltar a rua. Se você for até a rua e fizer um buraco no chão, vai ver o barro
puro ainda. Lembro que os moradores colocaram uma tela de ferro, depois jogaram o concreto
por cima. Acho que essa é a memória mais antiga que tenho na minha infância – do mutirão
de asfaltamento. Trouxeram o material – terra, pedra, água – tudo nas costas; não tinha muito
material. Ah, a água, agora lembrei! A água a gente buscava no Pueirão [campo de futebol da
Vila Verde, na época da infância de Michel].
J: A gente tinha uma água que não era potável, mas era já encanada.
M: Mas quando não tinha, buscava água no Pueirão também. Aquilo antigamente era
um campinho de barro puro. Ali embaixo, tinha uma cisterna muito grande onde os moradores
pegavam água, quando não tinha. Lembro que ali perdi, muitas vezes, a tampa do dedão,
jogando futebol. Porque era tudo de barro e a gente jogava de pés descalços. Mas foi muito
bom jogar ali; quando chovia e o barranco caía, tínhamos que fazer mutirão pra tirar o barro
do lugar.
82 A Classe de Alfabetização (CA) fazia parte da educação básica no Brasil até 2006, quando o ensino
fundamental foi ampliado para nove anos (Lei Ordinária 11.274/2006). O antigo CA foi, então, substituído
pela primeira série do ensino fundamental (para crianças entre 6 e 14 anos).
103
não gostava da escola. Ou seja, perdi um ano de escola, porque eu matava aula. Perdi o
primeiro ano, repeti. Aí, minha irmã Monique estudava em uma escola no Leblon [Colégio
Estadual Professor Antônio Maria Teixeira Filho], consegui a transferência. Lá eu realmente
comecei a estudar, porque tinha muita gente da Rocinha e Vidigal. Só que estava
desestimulado, porque perdi um ano de estudo. E repeti mais um, o primeiro ano; fiquei dois
anos atrasado. Aí fiz o primeiro de novo, pela terceira vez – quase uma graduação do primeiro
ano [risos]. Estudei, passei pro segundo ano, depois pro terceiro e terminei a escola. Tudo em
rede pública.
M: Eu era cardíaco, mas corria igual a um toro, naquela época, e não sentia nada. É
em decorrência do lábio leporino. A maioria das pessoas que nasce com lábio leporino, com
parte do sistema respiratório aberto, tem tendência a ter arritmia cardíaca. Mas nunca tive
muito problema.
J: Você tem que ver isso aí!
M: Começou a chegar na idade adolescente e fui perdendo o gás da infância. Também
o coração começou a acelerar muito.
C: E como foi essa questão do lábio leporino?
M: Nasci com lábio leporino. A infância foi dura, porque a galera não sabia o que era
isso e eu acabava ganhando muito apelido, muita zoação. Mas não condeno ninguém, porque
naquela época a galera não tinha acesso à informação. Então meio não sabia o que era aquilo
ali – achavam que eu tinha caído, levado porrada, sei lá. Eu também não sabia explicar direito
o que era o problema. Aí ganhava um monte de apelido: no futebol, eu era “Gaguinho”, mas
nunca fui gago, era fanho. Eu sofri muito bullying, naquela época não chamava assim, era
“sacanagem” que a gente falava. E, de tanto que recebi, aprendi a respeitar as pessoas.
Reverteu: ao invés de praticar o ódio, pratiquei o bem. Fui mais bondoso por querer praticar
o bem; adquiri através disso querer ajudar as pessoas. Fiz tratamento a vida toda em hospital
público. Tem tratamento dentário, fonoaudiológico, psicológico também. A pessoa que nasce
com lábio leporino, mexe com o psicológico, é muita pressão o tempo todo. Ia operar esse ano,
mas o hospital entrou em greve e desandou tudo de novo. Estou com o tratamento interrompido.
J: Ninguém tinha internet, quando chegou [na Rocinha], porque ninguém tinha
computador. Os primeiros que tiveram foram eles!
M: No morro não, na Vila Verde.
J: Ele era muito inteligente, sabia mexer que era uma coisa! Quando viram, as mães
disseram “também quero, Michel tem um computador, Michel tem internet” e começaram a
correr atrás. Michel deu aula pra todo mundo de graça!
M: Quando não tinha internet, eu ficava em casa fuxicando o computador. Clicava num
botão e prestava atenção no que acontecia. Aí fui descobrindo o computador.
C: Mas como o computador chegou, você pediu pros seus pais?
M: Não, ela comprou o computador pra me tirar da rua, da lan house.
J: Ele queria ficar na rua, viver na lan house e eu não queria.
M: Agora lembrei que, antes de criar o Viva Rocinha, criei um blog de relatos da
Rocinha – eram “causos e fatos” da Rocinha. O nome é “vida na favela” 84 [na rede social
Tumblr]. Estava quase saindo do ensino médio, porque quando criei o Viva Rocinha já tinha
terminado o terceiro ano, em 2011. Terminei no final de 2011 e, em 2012, estava livre. Entrei
na faculdade em 2014. Aí foi o auge do Viva Rocinha, porque eu ficava 24h na Rocinha. Acabei
virando um andarilho aqui. Era noite e dia, dia e noite aqui na Rocinha.
84 “A vida na favela” é o título de um blog criado por Michel Silva, na rede social Tumblr (fundada em 2007,
perdeu popularidade para redes sociais posteriores, como o Facebook). O conteúdo do blog, ainda disponível,
indica ter sido breve, com postagens feitas principalmente em 2011. Disponível em: https://vidanafavela-blog-
blog.tumblr.com/. Acesso em: 10 fev. 2020.
106
M: [Ao terminar o ensino médio] Eu não tinha nenhuma perspectiva do que ia fazer na
vida. Não tinha nem ideia do que ia fazer na faculdade. Alguns garotos que cresceram comigo
foram pro tráfico. Tive ideia de seguir carreira militar. Eu até tinha participado do alistamento,
que é obrigatório; fui lá na triagem, só que chegou na hora eu desisti, voltei pra casa. Eu já
não trabalhava, então acabei ficando num ano sabático. Só dependendo da minha mãe. Então...
como já fazia uns negocinhos de jornalismo, pensei em estudar na UFF, queria fazer
Comunicação Social. Aí vi que tinha o curso na PUC. Então decidi prestar faculdade de
Jornalismo, fiz o vestibular de inverno da PUC. Não estudei nada e fui fazer a prova, na cara
e na coragem com o conhecimento que eu tinha mesmo, da vida. Recebi o resultado e fui na
Vice-Reitoria Comunitária tentar ganhar a bolsa. A Vice-Reitoria Comunitária fornece bolsas
para pessoas de baixa renda.
[Michel conseguiu, inicialmente, isenção de matrícula para estudar apenas um período; depois
conseguiu a Bolsa de estudos Filantrópica, modalidade integral].
M: A minha ideia inicialmente, quando entrei na faculdade de jornalismo, era estudar
jornalismo para trazer melhorias para o Fala, Roça; não só pro Fala, Roça, mas para os
jornais locais de favelas. Trazer o conhecimento que eu ganhava na faculdade e ir repassando.
Devolver à favela; uma forma de agradecimento ao que a favela me proporcionou, porque,
sem a favela, eu não teria chegado onde eu tô hoje: quase concluindo a faculdade, trabalhando
num veículo tradicional, ter chegado até onde cheguei – isso eu devo à Rocinha.
C: E a sobrevivência, como é que foi?
M: Isso era através de trabalhos “freelas”, conforme as coisas iam acontecendo na
Rocinha. A grande imprensa dependia de comunicadores locais para adentrar na Rocinha.
Seja eu fazendo as matérias ou guiando os repórteres, entendeu?
C: Foram os primeiros trabalhos remunerados que você fez?
M: É, produzindo conteúdo ou guiando os jornalistas na Rocinha. Fazia isso no
decorrer da faculdade. E também antes. Fiz muito isto no período da “pacificação”; também
no período da Copa do Mundo, dos Jogos Olímpicos e agora, mais recentemente, com as
operações militares na Rocinha.
107
A gente pode discutir as pautas e escrever o que quiser e eu achei isso muito
interessante desde o início, acho ainda, essa questão da liberdade. Liberdade com
responsabilidade. Você vai escrever o que você quer, mas vai ter que segurar o
resultado disso. Aí eu vim, gosto muito e me apaixonei pelo jornal.
Beatriz Calado
A primeira entrevista com Beatriz foi realizada após uma reunião de pauta do Fala Roça,
da qual participaram também jovens locais que haviam frequentado as oficinas de comunicação
comunitária organizadas pelo jornal naquele ano de 2016. Conversamos na varanda da
Biblioteca Parque da Rocinha/C4, onde a equipe costumava se reunir, e posteriormente passou
mais de um ano fechada devido à falta de investimentos do governo do estado e da prefeitura.
O papo durou de cerca de uma hora. Levada pelas palavras da Bia, então com 22 anos, pude
conhecer e dialogar mais sobre os seus percursos de vida. Havíamos nos conhecido em uma
reunião do jornal no mesmo lugar onde estávamos na entrevista, a BPR; a ocasião foi uma
reunião de pauta e planejamento do Fala Roça em outubro de 2014. A jornalista, que havia se
formado naquele mesmo ano, era um pouco mais tímida e reservada do que os demais
integrantes do jornal. A segunda etapa da entrevista aconteceu só em fevereiro de 2019, após
encontrarmos muitas outras vezes em atividades do jornal. No Fala Roça, fazia reportagem
além de assumir outras tarefas condensadas informalmente sob o cargo de “Editora de redação”,
no expediente do jornal. Por exemplo, era sua a responsabilidade de fazer o velho e bom
copidesque de todo o conteúdo do impresso. Disposta e bem-humorada, adquiria facilmente ar
de seriedade diante das tarefas a serem cumpridas e levou para o jornal a experiência que já
acumulava nos trabalhos/estágios em Jornalismo.
Beatriz nasceu na Rocinha e passou a infância entre a favela, o bairro da Gardênia Azul,
na zona oeste do Rio, e Saquarema, na região dos lagos. O avô construiu a casa da família, na
Rua 2, onde moram até hoje, a partir de “um barraquinho e foram construindo pedra sobre
pedra”, contou. A mãe, auxiliar de consultório dentário, e o pai, cozinheiro, tiveram duas filhas,
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Bia e Gabi, irmã mais velha. Ambas concluíram o ensino fundamental e médio em escolas
públicas, ingressaram no ensino superior e se formaram: Bia em jornalismo, na PUC-Rio, e a
irmã em pedagogia, na UERJ. Os pais se separaram ainda na sua infância, ela e a irmã passaram
um período em Saquarema na casa dos avós, depois a mãe as trouxe de volta para o Rio; estavam
de volta, juntas, à Rocinha. O período longe dos pais fortaleceu os laços entre as irmãs e,
independente das dificuldades, não deixaram de estudar. Ainda pequena, Bia foi se encantando
por quem lhe trazia “o mundo”, com um microfone na mão, através da telinha da TV, uma de
suas poucas diversões. “Eu sonhava em ser aquela que ia segurar o microfone atrás da televisão
entrevistando as pessoas, por isso escolhi o Jornalismo”, resumiu. Mais tarde, ao terminar o
ensino médio, viu-se diante da escolha profissional entre cursar Direito ou Jornalismo, uma vez
que já sentia que os direitos não vinham fácil, era preciso conquista-los e preservá-los: “O
Direito, na época, fiquei interessada porque tenho uma questão muito forte com os Direitos
Humanos, com direito do cidadão, de você ter o seu direito, mas ter que preservar ele”.
Batalhou e conseguiu uma bolsa de estudos integral que lhe permitiu cursar Jornalismo
na PUC-Rio, próxima a sua casa, o significou uma economia de gastos com passagem para a
família, uma vez que a irmã já estudava longe de casa e qualquer gasto extra ameaçaria a
permanência na universidade. Iniciou os estudos ainda sem a confirmação da bolsa filantrópica
da PUC, acumulando dívidas de taxas que não sabia se teria de pagar depois; a única certeza
era de ser completamente “inviável” pagar os boletos da mensalidade que chegavam, em torno
de R$ 2 mil. Ao final de três meses e do cumprimento da burocracia exigida, saiu a confirmação
da bolsa de 100%. Aproveitou cada instante na faculdade, onde conseguiu realizar o sonho de
ver o seu rosto “na telinha” ao estagiar na TV PUC. Ao mesmo tempo em que colegas de turma
e professores se tornaram uma espécie de ‘segunda família’ para Bia, ela também sentia o peso
do contraste com o mundo elitizado de uma das universidades mais caras do Rio de Janeiro.
Garimpou estágios remunerados na área de Jornalismo, onde as poucas redações ainda
existentes realizavam demissões coletivas. Mesmo assim, conseguiu, além do estágio na TV da
PUC, estagiar no Sindicato dos Bancários, no jornal O Dia e na Multirio (empresa de
comunicação da prefeitura do Rio). Nessa época, já começou a entrar em contato com a
realidade de uma profissão profunda e velozmente afetada pelas mudanças nas tecnologias de
informação. Para os jornalistas, o quadro das novas tecnologias era bem menos faiscante do
que fazia imaginar a propaganda e do acesso cada vez mais ilimitado à informação do mundo
on-line: tratava-se muito mais de sentir na pele as condições de trabalho precarizadas. Bia sentiu
na pele ao ver seus colegas sendo demitidos em O Dia e ao não poder ir “para a rua” fazer
matéria. Fora as restrições relativas ao trabalho de estagiários, ir para a rua demandava uma
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estrutura de apoio da redação, cada vez mais enxuta. Segundo Caldas, “Em seu novo figurino
de feições modernas, a redação tornou-se mais elitizada e foi se distanciando da rua e dos
leitores” (2002, p. 20). E não era apenas isso. O jornalista descreve um pouco do que se passava,
na virada dos anos 2000, no mundo do jornalismo, da seguinte forma:
❖ Origens familiares
Meu nome é Beatriz Anchieta Calado Barcelos, tenho vinte e dois anos e moro na
Rocinha. Morei na Rocinha, em parte, minha vida toda – fiquei fora seis anos. Sobre meus
avós: minha avó por parte de mãe é do Recife e veio morar aqui no Rio quando era muito
pequena; trabalhou em casa de família. Meu avô por parte de mãe é de Saquarema, a família
dele é de lá, então foi criado lá. Minha avó por parte de pai é de Portugal, ela veio de lá quando
era pequena também, devia ter uns seis, sete anos, não me lembro muito bem a idade dela. E
meu avô por parte de pai eu não conheci, porque ele morreu antes de eu nascer. Sei muito
pouco da vida dele, do que ele era. Sei que morreu de infarto, mas não sei quem era, o que
fazia da vida. Meu pai também conheceu muito pouco o meu avô, porque ele morreu quando
meu pai era pequeno ainda. Minha avó, desde quando eu me entendo por gente, é viúva – há
pelo menos uns quarenta anos.
A minha ligação mais próxima aqui com a Rocinha, no caso, é porque a gente viveu
aqui a vida toda. Quando eu nasci, minha mãe morava aqui, minha irmã também, por conta da
minha família por parte de mãe. Quando minha avó se casou com meu avô, eles vieram para
cá e foram morar na Rua Dois, ali perto da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] da Rua
Dois. E foi ali que construíram a vida toda: eles vieram com um barraquinho e foram
construindo pedra sobre pedra, carregando material de construção nas costas. Meu avô foi
construindo um primeiro andar, que é a casa da minha mãe hoje, uma casa pequena: quarto
sala, cozinha e banheiro, bem pequena. Depois ele construiu uma casa em cima, que é a casa
da minha prima hoje em dia. A parte de baixo era a cozinha da minha avó e a parte de cima
era onde ficavam os quartos. Bem depois, eles construíram um terceiro andar – hoje é a casa
das minhas primas. A minha mãe e minhas duas tias passaram a adolescência e a infância toda
aqui, na Rua Dois; nunca moraram em outro lugar enquanto eram solteiras.
Minha mãe conheceu meu pai aqui dentro da Rocinha mesmo. Minha avó, por parte de
pai, também morava aqui, mas eu não sei como ela chegou, não tenho a menor ideia. Só sei
que minha avó morava perto da Jaqueira85. Eles se conheceram aqui e namoraram. Depois se
casaram e minha mãe foi morar perto do [clube] Emoções, onde hoje em dia é um espaço
aberto ali em frente, que pertencia à família do meu pai. E nasceu a minha irmã, cinco anos
mais velha do que eu; ela ainda chegou a morar nessa casa [quando] pequena. Depois de um
tempo, eles subiram para a Rua Dois de novo, para morar onde é a casa da minha mãe, aquela
primeira casa que meu avô construiu. Foi lá que eu nasci, vivi até uns quatro anos e minha
85 As árvores “jaqueiras” são referências antigas de localização, usadas até hoje, na Rocinha.
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irmã já tinha nove. Depois a gente foi morar numa casa de aluguel ali na Estrada da Gávea,
na Praça do Skate. Era uma casa grande, tinha dois quartos, sala, cozinha, banheiro, varanda,
uma casa maravilhosa. Depois daqui... a gente foi morar na Gardênia86, Jacarepaguá.
Saímos da Rocinha quando eu era pequena, não lembro o ano, acho que era início dos
anos dois mil, eu nasci em 1994. Isso foi no início dos anos dois mil porque, quando a gente
saiu da Gardênia, era dois mil e quatro, deve ter sido em 1999-2000 que a gente foi para lá,
ficamos cinco anos. A gente ficou um ano na Rua A, na Gardênia, depois fomos morar num
terreno que era da mãe de santo do meu pai.
C: Vocês têm religião na família?
B: O meu pai é umbandista, a minha mãe já foi muitos anos, mais por conta dele
também. Mas minha mãe não frequenta mais nenhuma religião, não tem mais nada, nem a
gente. Mesmo morando nesse terreno, eu fiz Primeira Comunhão, minha irmã fez Crisma, na
Igreja que tinha lá, a gente nunca foi dessa religião – umbandista. Meu pai sempre foi, a gente
foi criada nesse meio, dentro, vendo tudo, com todo o simbolismo que tem, mas a gente nunca
seguiu e nem pretendo seguir.
C: Você se considera de alguma religião?
B: Não. Eu acredito em Deus, acredito que tem uma força maior, mas não acredito em
nada daquilo: que Deus criou o mundo, essas coisas. Acredito que existe um ser supremo que
esteja olhando por nós, mas não sigo nenhuma religião. Respeito todas, cada um com a sua fé,
mas não tenho nenhuma.
C: Depois da Gardênia, voltaram para a Rocinha?
B: Não, meu pai se separou da minha mãe em 2004. Meu avô, que morava em
Saquarema antes de conhecer minha avó, decidiu voltar para lá porque ele já estava
aposentado; foi porteiro a vida toda, se aposentou e decidiu que ia morar em Saquarema. É
uma casa que tem três quartos, uma cozinha enorme, varanda, quintal, tudo, então nossas
férias sempre eram lá. E acabou que coincidiu, porque a minha mãe se separou do meu pai no
mesmo ano que a minha tia, por parte de mãe. Então, em 2004, toda família, por parte de mãe,
foi morar em Saquarema. Eu, minha mãe e a minha irmã, minha madrinha, que tinha duas
filhas na época, e meu primo fomos morar lá. Só que a minha mãe conseguiu emprego aqui,
em 2005. Ela sempre trabalhou em consultório dentário; pediu demissão do emprego e foi
morar em Saquarema com a gente. Conseguiu outro emprego e a gente já estava matriculada
na escola lá, já íamos começar a estudar. Veio pro Rio de Janeiro de novo. A gente ficou um
ano sem minha mãe e sem meu pai lá, morando com nossos avós, eu e minha irmã. Para a
gente, foi uma fase muito difícil. Então a gente ficou muito próxima, eu e minha irmã; ela
assumiu o papel de mãe completamente, cinco anos mais velha. E é assim até hoje. Eu a
considero, às vezes, mais minha mãe do que minha própria mãe. A gente tem uma ligação muito
forte. Minha mãe, como já estava estabelecida aqui, no final do ano de 2005, tinha prometido
que ia trazer a gente de volta e trouxe. A gente veio morar na primeira casa que o meu avô
construiu (e é da minha mãe) quando chegou na Rocinha. Ele construiu o primeiro andar, que
era da minha mãe, e ficou para ela. Ficou um andar para cada filha, o da minha mãe era o
primeiro – uma casa bem pequenininha, mas a gente veio morar com ela de novo. Ficamos eu,
minha mãe e minha irmã morando aqui na Rocinha de novo.
C: Vocês não pararam de estudar?
B: Continuamos estudando. A gente nunca parou de estudar. Fechamos o ano escolar
de 2005 lá. Mas em 2006 a gente já veio. Eu fui estudar no George Pfisterer [Escola Municipal,
no bairro da Gávea], na sexta, sétima e oitava séries (era até a oitava na época), depois fui
para o Michel Maurois [Colégio Estadual Michel Maurois, no bairro do Leblon]. A única que
estudou em colégio particular foi a minha irmã, no segundo e no terceiro anos, mas sem pagar
também, com Bolsa. Estudei o primeiro, segundo e terceiro anos no Michel Maurois. No
terceiro ano, fiz o pré-vestibular do Santo Inácio, para estudar mais, porque o ensino era muito
fraco, para poder passar. Eram dois anos o pré-vestibular, só que eu não fiquei no segundo
ano, passei logo de primeira, pelo Enem. Passei na PUC pelo Enem duas vezes e passei na
última reclassificação da UERJ – para Jornalismo, nos dois, mas inicialmente não era
Jornalismo, era Direito.
C: Fala um pouquinho da sua escolha, como é que foi pensar isso nessa época?
Na verdade, eu sempre quis trabalhar com gente. Quando morávamos na Gardênia, a casa
muito pequena – nem era casa, era quarto e cozinha, o banheiro era à parte, tipo uma coisa
coletiva. Então, a gente não tinha nada, a única diversão era a televisão. Eu sempre gostei
muito de televisão, assistia muito jornal, programa na Globo o dia inteiro, Record o dia inteiro,
SBT o dia inteiro e me apaixonei por Jornalismo vendo televisão. Na época do vestibular, fiquei
entre Jornalismo e Direito. Fui para o Jornalismo por conta dessa minha memória afetiva,
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emocional de ter sempre visto aquilo a minha vida inteira, estava acostumada. Eu sonhava em
ser aquela que ia segurar o microfone atrás da televisão entrevistando as pessoas, por isso que
eu escolhi o Jornalismo. O Direito, na época fiquei interessada porque eu tenho uma questão
muito forte com os Direitos Humanos, com direito do cidadão, de você ter o seu direito, mas
ter que preservar ele. Então, achava que aquilo era uma coisa que podia me fazer feliz, ainda
acho até hoje. Vou fazer.
Eu acabei meio juntando, porque no Jornalismo tem a parte de serviço, de prestar um
serviço para a população, apesar de que isso está sumindo. Tinha essa questão dos direitos
também, de você ter acesso à informação, brigar pelo direito das pessoas, aí fui para o
Jornalismo para trabalhar com televisão – não pensava em Jornalismo impresso, na internet,
nada disso. Comecei no Jornalismo na PUC; na época, era até meio estranho porque eu não
tinha o resultado da Bolsa [Filantrópica]. Passei pelo Enem, mas não sabia se ia ser bolsista
ou não. E só conseguiria continuar meu curso se fosse bolsista, porque não passei pelo ProUni,
passei pela nota de classificação, que a PUC aceita. Tem duas formas: tem o ProUni, que é
assim: ‘você foi classificado pelo Enem para estudar aqui’, aí pode pagar ou ter uma Bolsa.
Eu passei para como se fosse pagar a PUC. E era inviável! Nunca vou esquecer desse dia,
quando recebi uma carta da PUC com a primeira mensalidade: R$ 2.034,00. Isso em 2012, aí
falei: “Não tem a menor condição!”. Na época, como fiz o pré-vestibular no Santo Inácio,
existia uma carta de recomendação que eles davam pros alunos da PUC; peguei essa carta,
toda documentação para poder fazer o processo seletivo da Bolsa e fui aceita, depois de uns
três meses.
C: Na PUC, você faz esse processo de concorrência à Bolsa só depois que entra?
B: Sim, só depois que entra. Na verdade, quando você faz a matrícula, tem que pagar
uma taxa. Por conta do vestibular, eu também tive essa isenção da taxa de início; peguei um
papel falando que eu não tinha condições de pagar e ia concorrer à Bolsa. Caso não
conseguisse pegar a Bolsa, eu tinha que pagar essas taxas. Então foi um período meio difícil,
porque a gente não tinha certeza se ia continuar ou não na PUC e eu não tinha passado até
então para nenhum outro vestibular. Na UERJ, só passei em junho de 2012 e comecei a estudar
em fevereiro na PUC. Eu não me sentia parte daquele lugar, não queria me apegar àquilo,
porque não sabia se ia continuar. E deu tudo certo, consegui a Bolsa cem por cento. Em junho,
soube do resultado da última reclassificação da UERJ.
C: Também tinha tentado para Jornalismo lá?
B: Também para Jornalismo e era a única turma – a UERJ só tem uma turma de
Jornalismo, acho que com cinquenta vagas na época. Escolhi a PUC. Já estava acostumada,
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já tinha feito um período, já estava tudo certo, minha Bolsa estava lá; não me arrependo até
hoje de ter feito essa escolha. Foi a melhor coisa que eu poderia ter feito na vida. A
infraestrutura é ótima, os professores são ótimos, conheci pessoas incríveis na PUC,
professores que viraram amigos e amigos que viraram irmãos. Claro que existe isso em outras
faculdades também, mas tem a proximidade de casa, não tenho todo o estresse com
deslocamento, até porque, na época que entrei, não tinha como pagar passagem, minha mãe é
que pagava; para ela, ficaria inviável pagar a passagem da minha irmã, que ia para UERJ, e
mais a minha. Depois que entrei na PUC, consegui a passagem e o direito de almoçar lá. E fui
fazendo estágio, conseguia me manter.
Meu primeiro estágio foi em agosto de 2013, no Sindicato dos Bancários do Rio de
Janeiro, lá no Centro. Tinha um jornal, que saía toda terça e quinta, o Bancários RJ. Só que
não tinha nenhum tipo de abertura pro estagiário fazer nada naquele jornal. O que o estagiário
fazia lá era copiar e colar matérias que tinham a ver com bancos que saíam na mídia.
C: Clipping.
B: Exatamente isso, copiar e colar, no site da empresa, e depois botar a fonte. E era um
estágio de quatro horas. Foi o primeiro trabalho. Até então, até agosto de 2013, eu nunca tinha
trabalhado na vida, nem a minha irmã. Ela só foi começar a trabalhar quando entrou para a
faculdade, a gente só começou a trabalhar aí. Os meus pais sempre diziam: “pobre não tem
nada, então você tem que priorizar a educação”. Meu pai era cozinheiro, trabalhou em
restaurante a vida toda. Ele prestou o exército e não ficou. Depois foi trabalhar no Bradesco,
depois trabalhou em restaurante como cozinheiro, chefe de cozinha. A minha mãe começou a
trabalhar muito cedo, ela conta essa história até hoje: começou a trabalhar com treze anos
fazendo entrega em farmácia. Não terminou os estudos, parou na sexta, sétima série. Meu pai
foi até o terceiro ano do ensino médio, mas também não concluiu. Minha mãe acho que “caiu
meio que de paraquedas”, não sei como, na área de consultório dentário, desde que minha
irmã é pequena ela trabalha com consultório dentário. É ACD, assistente de consultório
dentário “auxilia em cirurgia, marca consulta, compra material. Fiquei seis meses no
Sindicato dos Bancários, como estagiária, de agosto a fevereiro. Então fiz prova e passei para
trabalhar na TV PUC, que era o meu grande sonho – o mais próximo do que eu cheguei –, para
ser repórter da TV. Passava o dia inteiro na faculdade, foi o melhor período da minha vida.
C: Era um estágio também?
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B: Era um estágio de quatro horas e eu fui para ser repórter da TV. Finalmente estava
eu vendo minha carinha na televisão! (risos).
C: Como foi a experiência?
B: Foi incrível! Minhas melhores amigas da faculdade eu conheci na TV e minhas
melhores professoras viraram as minhas chefes na TV, são amigas até hoje. E foi muito difícil
sair da TV. Quando entrei, estava no quinto período e saí no sétimo, porque até então eu ia me
formar em quatro anos – assim, só tinha o sétimo e o oitavo e, na TV, não tem como ser
contratado. A TV da faculdade é só de estagiário, é do Projeto Comunica – onde todo mundo,
que trabalha em rádio, TV, impresso, é estagiário. Cobre tudo que tem na PUC e de fora
também.
C: E basicamente o pessoal que trabalha é da área de Comunicação da PUC?
B: É. Jornalismo, Publicidade e Cinema. Lá é uma TV mesmo, tipo, desde você construir
a pauta, de você, como um repórter, entrevistar, trabalhar como produtor, decupar. Quando
saí da TV, estava no início do sétimo período. Fui pro jornal O Dia, em abril de 2015. Fui com
o coração apertado sabendo que tinha que sair da TV, porque não era uma área que eu queria
ir. Fui pro impresso... trabalhei com cultura, no Caderno D.
C: Você não queria trabalhar com cultura?
B: Não, eu queria Cidade [editoria do jornal O Dia, hoje chamada de Rio de Janeiro].
Por conta de tudo que já falei, tudo que eu já via na televisão, o que era mais próximo para
mim. E fiquei no jornal O Dia até outubro de 2015, trabalhando como estagiária e às vezes
como estagiária repórter, mas eu peguei uma fase do jornal que não estava muito boa. Tinha
dia que em você não tinha mais motorista, chegou uma época que os salários dos próprios
estagiários começaram a atrasar. E o trabalho que eu fazia, basicamente, eu tinha liberdade
de sugerir pautas, mas não tinha liberdade de sair da redação, tudo era feito por telefone ou
e-mail e isso para mim (que tinha trabalhado com TV, onde ia para a rua sempre, tinha contato
com as pessoas), foi a morte: ficar trancada seis, sete, oito horas dentro de uma redação
entrevistando por telefone ou por e-mail, ou por internet às vezes também.
Mas lá eu fiz colegas com quem tenho contato até hoje, apesar de não tão próximos
quanto os que fiz na TV. Tive oportunidade de fazer matéria de capa, do Caderno D Mulher,
de sábado; fiz matérias grandes, mas tudo por telefone ou e-mail; só a matéria de capa do D
Mulher, que foi num sábado, eu fui para a rua fazer. Durante uns sete, oito meses, eu fiquei
dentro da redação. A situação do jornal já estava muito difícil e eu já estava de saco cheio
daquilo dali, porque, além das matérias eu tinha que fazer... sabe quando você pega o resumo
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do final de semana de cinema, que são aquelas quatro páginas? A programação de todos os
cinemas? Eu fazia aquilo e adquiri duas tendinites nos meus braços. Era terrível.
Era bem complicado, mas hoje me arrependo de ter saído do Dia, porque era o local mais
próximo que eu estava do Jornalismo. Na época, como o jornal estava mal das pernas, muita
gente saiu e tinha vaga em outra editoria, mas eu chutei o balde, falei assim: ‘Ah, eu vou sair
disso aqui mesmo, estou cansada, o jornal está acabando mesmo, não vai terminar esse ano’.
Muita gente que tinha entrado no Dia, muitos dos meus chefes, já não estavam mais no D
[Caderno D Mulher], muitos dos colegas repórteres já tinham sido demitidos. Eu saí, por
vontade própria e fiquei sem saber o que ia acontecer. Mas quando saí de O Dia, já sabia que
não ia me formar no fim do ano. Em teoria, eu tinha que me formar no final de 2015, pelos
meus quatro anos certos. Só que eu já tinha estendido um período, então saí sabendo que
poderia ficar, sabe lá Deus até quando, sem emprego – quem é que ia me contratar no final da
faculdade, no último período? Ninguém. Aí, fiquei em casa, botando currículo e vi uma vaga
na MultiRio87. Fiz a prova pra lá em início de dezembro; logo de imediato, já soube que tinha
sido aprovada para começar o estágio. Era um Núcleo de Publicações e Impressos. Acho que
comecei em 22 de janeiro [de 2016]. Lá também não tinha a possibilidade de sair da redação,
porque, não sei se é uma norma da Prefeitura, mas estagiário não podia sair ou só podia sair
quando algum repórter saísse também.
alguma coisa depois – de fazer alguma coisa dentro do projeto já, dentro da Agência. Fui e
passei. Mas não cheguei a fechar o ciclo da Agência, não cheguei à ideia de montar um jornal,
saí antes. E a Michele [do Fala Roça] sempre foi amiga da minha irmã, então acompanhei o
jornal de longe. Em 2014, quando teve uma das mudanças de equipe do Fala Roça (saiu o
pessoal inicia), me chamaram para fazer parte do jornal, em abril de 2014. Aí eu vim, mais ou
menos na mesma época em que entrei na TV. Eu sempre morei na Rocinha, mas nunca vivi
dentro da Rocinha, eu vinha para dormir e, às vezes, quando tinha festa; mas não andava, não
conhecia, não fazia muita coisa dentro da Rocinha. E até hoje sou meio assim. Nunca tive essa
cultura de ficar na rua, de ficar andando na rua, de brincar na rua. Desde quando morava na
Rocinha ou na Gardênia, eu morava, estudava e brincava perto da minha casa; com os meus
amigos dentro de casa. Nunca foi fora. Minha mãe sempre odiou esse negócio de ficar na casa
dos outros, de ficar na rua brincando. Então a gente não teve essa cultura. Voltando ao Fala
Roça, quando entrei, estava na terceira edição. Tenho foto aqui segurando aquela edição do
Amarildo, a terceira edição. E já são cinco edições, de lá para cá. A gente vai para a nona.
C: Você disse que não tinha muito essa convivência na rua, na Rocinha e tal. O que fez
você entrar no Jornal Fala Roça, então?
B: Como eu trabalhava já com comunicação, achei que seria uma boa trabalhar a parte
escrita, porque eu trabalhava com TV na época. E tive experiências interessantes [no Fala
Roça], principalmente de ter a liberdade de escrever o que você quiser, porque a gente nunca
teve e não tem ninguém que mande fazer algo, tipo: “Você vai escrever sobre isso”. Não. A
gente pode discutir as pautas e escrever o que quiser e eu achei isso muito interessante desde
o início, acho ainda, essa questão da liberdade. Liberdade com responsabilidade. Você vai
escrever o que você quer, mas vai ter que segurar o resultado disso. Aí eu vim, gosto muito e
me apaixonei pelo jornal. Às vezes, é um pouco sacrificante sim, porque – a gente até brinca –
são quase três anos sem sábado. O sábado todo é do jornal. Por mais que a gente às vezes não
trabalhe o dia inteiro, sabemos que aquele dia está dedicado à alguma coisa, então, temos que
deixar de viajar, deixar de fazer coisas, de ir pra praia pra estar no jornal. Mas é muito bom,
gostamos bastante de fazer o que a gente faz, de ter esse contato com o morador. Às vezes acho
que devíamos ser – até discutimos isso internamente já – mais presentes dentro da Rocinha,
mais presentes em eventos, essas coisas. O Michel e a Michele são muito mais do que eu,
porque eles já trabalham com comunicação há muito tempo, então já conhecem outras pessoas,
mas às vezes tem um pouco de preguiça mesmo (risos). Às vezes fazemos tanta coisa... Aí você
não quer ficar indo em evento. Eu já trabalho de nove às sete, às oito e, quando eu chego em
casa, não quero ficar marcando presença em evento da Rocinha (risos).
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“A guerra de 2017”. Foi um período difícil, a gente ficou bem cerceado, com medo de
sair na rua. Ficou aquele clima depois: tomou o morro ou não tomou? Alterou a rotina de certa
forma; você fica com medo de sair, de ficar na rua até mais tarde. Hoje está até mais calmo,
mas se você me perguntar qual é a facção que está dominando o morro, eu não sei.
“Em 2018, comecei a fazer terapia”. Foram várias questões: a saída do emprego,
questões financeiras, problemas do passado, presente e futuro! Acho que a guerra não teve
relação com isso, porque a Rocinha pra muita gente é dormitório, como pra mim. Chego na
Rocinha pra dormir, passo o período da noite e, no dia seguinte, saio cedo. Mesmo trabalhando
em frente à Rocinha. Fico muito pouco na Rocinha, não sou de ficar circulando. E há muitos
anos eu não passo em determinados lugares na Rocinha – desde quando começou a UPP. Tem
um caminho da minha casa, na Rua 2, que chega aqui no Valão e pra mim seria ótimo, mas eu
não passo. Nem sozinha nem acompanhada. Morro de medo, o tráfico está sempre ali. Penso
que se acontecer alguma coisa e eu estiver por ali, não sei onde me jogar, não sei mais andar
ali naqueles becos.
“A nona edição impressa do Fala Roça não saiu”. Vamos ver se conseguimos dar um
gás. Hoje em dia, não faço mais revisão no jornal. E praticamente nem escrevo mais. Talvez
passe também pelo meu desinteresse por jornalismo. Eu me questiono muito se era essa a
faculdade que eu queria ter feito.
Reavaliação de rumos profissionais. Hoje passa muito mais pela minha cabeça [fazer]
Direito do que Jornalismo. Fico pensando: se eu tivesse feito Direito, o que estaria
acontecendo na minha vida agora? Não sei. A questão da lei sempre me interessou muito, de
cumprir a lei, ter direitos e deveres, tipo “isso está na Constituição, tem que cumprir”. E muito
mais por causa dos Direitos Humanos. Eu achava, na época, que o jornalismo seria uma ponte
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pra isso – que eu poderia usar o jornalismo pra falar de Direitos Humanos. Mas isso não me
aconteceu. Eu gostaria de trabalhar com atuação em Direitos Humanos. Eu achava que o
jornalismo de serviço entraria aí e o meu sonho era trabalhar em televisão cobrindo buraco!
Não sei se, por conta das frustrações da vida, isso nunca aconteceu, fui deixando de lado e
hoje olho pro jornalismo e falo: não sei se é isso. Tenho interesse em Direito de Família
também – acho que estou assistindo muita serie de advogado [risos]. Fico pensando: será que
eu seria mais bem-sucedida do que em jornalismo hoje? Vão batendo as frustrações, você quer
fazer alguma coisa e não consegue porque não tem dinheiro.
Aqui [no Instituto Reação, seu trabalho atual], eu adoro o que faço; não é jornalismo, é
comunicação institucional. Mas não passa na minha cabeça voltar pra uma redação – nem de
jornal, nem televisão, nem rádio. Por desilusão com jornalismo e por questão financeira. A
gente tem uma visão muito idealizada do jornalismo. E, na prática, você quebra a cara, porque
não é aquilo.
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A gente passou por todas as dificuldades do mundo, mas a única coisa que meus
pais não deixavam era a gente faltar na escola. Nem que fosse com o sapato furado,
sem mochila, não sei, mas tinha que ir. De qualquer jeito, a gente ia.
(Michele Silva)
Michele Paula da Silva, carioca, 31 anos (em 2020) é publicitária de formação e morou
praticamente a vida toda na Rocinha. Participa da equipe do Jornal Fala Roça desde a sua fase
inicial; suas qualificações profissionais são diversificadas e incluem, ainda, outras atividades
relacionadas à comunicação, no espectro mais amplo das mídias digitais e redes sociais on-line,
além de atividades de produção cultural. Habilidades construídas desde cedo, nas experiências
de rádio comunitária na Rocinha, iniciadas como diversão ainda na adolescência, mas que
foram abarcando cada vez mais tempo e responsabilidade. Bem antes de cursar faculdade, já
tinha o seu programa de rádio, sabia como funcionava a produção de grandes shows de artistas
e percebeu que era preciso lutar pelo reconhecimento do seu trabalho em qualquer lugar –
mesmo dentro da favela. Participou ativamente da produção de conteúdo para as mídias Viva
Rocinha (criada em 2011) e Fala Roça (criada em 2012) em parceria com o irmão Michel.
Juntos, os irmãos, crias da favela, aos poucos, foram dando vida e cara a esses meios de
comunicação voltados para o cotidiano da Rocinha (contando também com a participação de
outras pessoas). O percurso profissional de Michele inclui o trabalho de produção na Agência
de Redes para Juventude, em seu ciclo de atividades na Rocinha, em 2012. Neste mesmo ciclo
foi criado o projeto do Jornal Fala Roça, bem como projetos de outros jovens moradores que
entraram para a Agência via processo de seleção. É importante distinguir as duas coisas88.
É a filha mais velha de Dona Josita e Seu Paulo (ambos nascidos no início da década de
1950), migrantes vindos do Nordeste e de Minas Gerais cujos caminhos se cruzaram no Rio de
Janeiro, na década de 1980 na zona sul da cidade, onde trabalhavam – ele como porteiro, ela
com serviços domésticos. Em seus primeiros anos de vida, vivenciou situações contrastantes:
morou com os pais em Ipanema, um dos bairros mais ricos do Rio, no condomínio onde
88 O processo de criação do Jornal Fala Roça e sua relação com a Agência de Redes para Juventude estão
descritos no capítulo 3.
121
trabalhavam; em seguida, mudaram-se para a Rocinha, para locais na favela com pouquíssima
infraestrutura, onde ainda “era mato real” pois foram os lugares onde a condição social permitiu
se estabelecerem. Seus irmãos Monique e Michel nasceram, respectivamente, em 1991 e 1994.
Condições difíceis de vida marcaram o percurso da família na Rocinha, passando pelos mutirões
que deram origem à localidade mais recente da favela, a Vila Verde, que a ajudaram a construir
com as próprias mãos. Estudou a maior parte do tempo em escolas públicas e fez parte da
primeira geração de jovens que teve acesso à bolsa do ProUni, formando-se em Publicidade em
2012.
A atuação na vida comunitária da Rocinha se manteve ao longo da sua história. Desde
os tempos da adolescência, na época do trabalho em rádio comunitária, foi conhecendo
caminhos de acesso a serviços públicos ou outros e divulgando na favela, através dos meios de
comunicação que também desbravava: “tinham polos da prefeitura que ofereciam emprego,
documentos, vagas de escola; eu estava sempre pegando informativos e levando pra divulgar
na rádio, dar pra outras pessoas”, contou. Em tempos mais recentes, tem participado de diversos
eventos relacionados à comunicação comunitária, além de atuar na linha de frente, em situações
tragédia e dificuldades na favela como a organização mutirões e campanhas de doação. Prefere
ser reconhecida como “articuladora comunitária” ao invés de “liderança comunitária”.
Começou a trabalhar cedo. Sua trajetória profissional também a levou a viajar para o
exterior, morar durante alguns meses na Indonésia (em 2017 e 2018) e fazer um intercâmbio de
40 dias, nos Estados Unidos, realizado pelo International Center for Journalists (ICFJ), em
parceria com o Departamento de Estado Americano. Em 2019, tiveram três brasileiros no grupo
e Michele estava entre eles. Em 2019, mudou-se da Rocinha pela intranquilidade com as rotinas
da circulação ostensiva tanto de policiais quanto de grupos armados e temia a iminência de
novos conflitos.
Conheci Michele em outubro de 2014, em uma reunião de pauta do Fala Roça na
Biblioteca Parque da Rocinha/C4, onde o grupo se reunia com frequência. A ocasião era a
despedida de um antigo editor; a partir daquele momento, as principais funções ficariam a cargo
apenas de Michele, Michel e Beatriz. A primeira etapa de sua entrevista de história de vida foi
feita no bairro de Botafogo, no jardim de um centro cultural, próximo ao seu local de trabalho
na época (a empresa Endless Computers89). Foram quase três horas escutando suas histórias,
dialogando, ao longo de uma manhã. Extrovertida e comunicativa, Michele contou sua história
com entusiasmo.
89 https://endlessos.com/pt-br/sobre-nos/
122
❖ Origens familiares
Quando nasci, meus pais moravam em Ipanema: meu pai era porteiro lá e a gente
morava dentro do condomínio. Minha mãe não trabalhava, só cuidava de mim. A gente
brincava muito por lá, com os filhos dos moradores, frequentava a casa de todo mundo.
Quando eu já tinha uns cinco anos, meu pai perdeu esse trabalho e a gente veio morar na
Rocinha. Meu pai é de Minas e minha mãe da Paraíba. Ele veio pra cá já com uns 35 anos. Ela
também chegou nessa faixa etária, perto dos 30. Morava numa cidade chamada Boqueirão e
trabalhava lá, era professora de artes. Queria vir pra cá, mas era só um sonho. Todo mundo
de lá tem esse eldorado de achar que vai vir pro Rio e ficar rico. Tinha muito, hoje em dia
menos, mas ainda tem. Só que ela era muito apegada com a família, mas a mãe adoeceu e
resolveu ir embora quando a mãe faleceu, largar tudo. Lá, menina que não casa fica morando
com os pais (ou ficava), não tem esse negócio de morar sozinha, embora trabalhe e tudo.
Um tio dela veio de carro, de um dia pro outro, e perguntou se queria vir. Ela juntou
as trouxinhas e veio. Foi trabalhar de babá, ali por Ipanema, Copacabana, morando na casa
da patroa. Conheceu ele [seu marido] ali por Copacabana, Ipanema, onde trabalhavam. Ali,
antigamente (ainda é assim), as pessoas se conheciam, ainda mais a galera migrante: tinham
os points de encontro: “praça tal, tal hora da tarde”, todo mundo ia pra lá. Aí se conheceram,
começaram a ter um relacionamento. Ela foi morar com ele, mas ainda continuava
trabalhando. Quando engravidou de mim, já estava com mais de trinta anos, idade avançada.
Então preferiu ficar em casa – ela podia na época. Em seguida, engravidou da minha irmã, aí
não tinha mais como trabalhar – com duas crianças sem ninguém pra olhar. Só que meu pai
foi demitido.
Um tio meu, já falecido, morava no Laboriaux, na Rocinha [parte alta]. Hoje em dia, é
um lugar pouco acessível, imagina vinte anos atrás. Era tudo mato. Esse irmão dele falou que
tinha um lugar legal, maneiro lá. A gente já tinha vindo visitar a família e não tinha gostado
do lugar. Tipo: “não é um lugar pra morar”. Minha mãe tinha uma condição de vida boa lá
onde morava. Meu pai não: tinha dez irmãos, era o décimo. Tinha pai, mãe, família perto, mas
era muita gente, difícil cuidar de todo mundo. Ele teve meningite, com uns doze anos, e ficou
com sequela. Já sabia ler, escrever, sempre foi muito estudioso, então isso permitiu que
continuasse se comunicando, porque escuta muito pouco. Agora está com aparelho [de surdez],
mas ficou quase cinquenta anos num mundo meio vazio, meio... silêncio. Então, pra botar o
123
aparelho e ficar, principalmente na Rocinha que é super barulhenta, ele não aguenta. Fica
atordoado, estressado, prefere não usar. Ele é de Rio Pomba, no interior de Minas, na Zona
da Mata. Um belo dia, resolveu vir pra cá também [para o Rio de Janeiro]; os irmãos já
estavam aqui, trabalhando no mesmo prédio onde meu pai conseguiu emprego. Teve uma briga
e eles foram pra Rocinha. Chegou lá, a casa era muito pequena, sem banheiro, de madeira.
Eles levaram o que tinham: cama, fogão, geladeira, coisas poucas, porque não cabia e não
dava pra subir – hoje tem kombi, moto; antigamente, era só a pé e uma lama absurda, uma
ladeira gigantesca. Muito mato.
Era meio do mato real e essa parte eu já lembro mais, muitas coisas: minha mãe não
podia trabalhar, logo em seguida, engravidou do Michel. Morava lá em cima, já estava com
quarenta e poucos anos, gravidez de risco, pouco acompanhamento. E muitas dificuldades:
financeira, necessidade de tudo. Aí teve chuva, enchente que matou um monte de gente, de
vizinho, levou a casa. Levou pedaços, não a casa toda. Na semana seguinte, meu pai já tinha
arrumado emprego – ele não fica sem trabalho, isso é bom. Não tem tempo ruim pra ele, o que
for ele faz: pesado, leve, paga bem, paga mal, ele vai, porque não gosta de ficar parado. E ela
[a mãe] não podia, porque tinha as duas crianças e um na barriga.
Meu pai construiu um pedaço da casa que a água tinha levado e um banheiro. A casa
era um quadradinho assim, um cômodo, e ele construiu um banheiro agarrado. Na segunda
chuva, depois da primeira que já tinha levado, levou tudo de novo. Aí minha mãe falou: “A
gente tem que sair daqui, vamos acabar morrendo”. Tinham uns barrancos enormes em volta,
muito bicho – galinha, cachorro, papagaio, periquito, tudo – dos vizinhos. Ficavam soltos.
Tinha cobra, macaco, uns macaquinhos absurdos que levavam as coisas, sinistro. Meu pai já
estava trabalhando e resolveram sair de lá, que era deles [a casa], vender aquele pedacinho
que compraram com a rescisão do outro trabalho de Ipanema e pegaram um aluguel em outro
lugar, mais pra baixo, na Cachopa. Quando a gente foi pra lá, minha mãe tinha acabado de
ganhar meu irmão. Ficou internada muitos dias, ele nasceu com um problema nos lábios.
longe dos barrancos, um pouco mais estruturado. Meu pai continuou trabalhando, Michel já
começou a crescer e eles ganharam muito apoio no hospital, lugar pra fazer tratamento, apesar
de longe – Hospital Universitário do Fundão. Minha mãe saía, levava nós duas e ele pra Ilha
do Fundão, pra se tratar. Eu, como era mais velha, tinha que dar conta, ajudar a cuidar dos
dois. Trocava fralda dele, dava banho. Até começar a andar, ficava muito com ele no colo. Já
fez quatro ou cinco operações, faltam as últimas.
Comecei a estudar na Rocinha mesmo, minha irmã também, porque, como a minha mãe
precisava de tempo pra cuidar do Michel, a gente foi pra escola. Ficávamos lá o dia todo:
fazíamos as refeições, tomávamos banho, dormíamos. Eu voltava pra casa praticamente só pra
dormir e esperar o outro dia, era turno integral: entrava 8h da manhã e saía às 4h da tarde.
Meu pai saiu de um emprego e conseguiu um valor – tenho certeza do ano, por causa do
dinheiro que mudou, mudou a moeda em 199390. Quando saiu do trabalho, tinha acabado de
ter a troca, então achou que estava rico e o dinheiro valia muito. Na época, o real valia muita
coisa, ele conseguiu comprar uma casa. Ficou dois anos num trabalho novo, no Leblon, em
condomínio – desde que veio pro Rio, só trabalhou em condomínio (com faxina, zelador, essas
coisas). Conseguiu um dinheiro de rescisão. E tinha um cara, amigo da nossa família, que
estava vendendo uma casa na Vila Verde. Uma casa grande e queria vender acho que por R$
3 mil, mas a gente só tinha dois mil e pouco, aí o cara falou: ‘Vou passar uma parede aqui no
meio, você fica com a metade. Fica com o lado da cozinha, do banheiro’, que já tinha alguma
estrutura. O outro lado, ele ia vender pra outra pessoa, porque achava um absurdo dar aquela
casa grande por tão pouco. Meu pai aceitou. A gente estava precisando sair do aluguel de
qualquer jeito, a casa [anterior] estava super pequena pra cinco. Então fomos pra essa. Era
melhor porque era nosso, só que também era no meio do mato e não tinha água encanada.
Tinha que buscar todo dia, ia todo mundo com garrafa, balde. A gente era miudinho ainda, ia
carregar pra estocar. Isso em meados de 1990.
90 Em julho de 1993, no governo do presidente Fernando Collor de Melo, a moeda cruzado foi substituída pelo
cruzeiro real.
125
A Vila Verde era super perto da rua, só que é um dos lugares mais novos [da Rocinha],
era mato e as pessoas iam cavando. Todo domingo, os homens pegavam enxada e iam cavando,
nisso, abriu uma rua, onde hoje passa carro, van; quem não chegou lá nessa época não se
lembra. Hoje em dia, a rua já cresceu, isso tudo porque as pessoas fizeram com a mão. Depois
abriu [a rua], era aquele chão batido. Quando não chovia, era ótimo, porque a criançada
brincava, corria, mas quando chovia... era lama aqui assim, enterrava o pé no chão! E tinha a
ladeira que o pessoal construiu, entrando. A gente andava por um beco, por baixo, atrás de
uma vala horrível. Aí o pessoal resolveu fazer vaquinha pra jogar cimento naquela rampa. E
assim foi: jogaram cimento, terra, ferro, pedra, não sei o que mais, fizeram a rua. Só que toda
chuva forte que dava, a água levava o cimento todinho, voltava pro barro de novo e assim foi
durante alguns anos. Até que teve um asfaltamento, não sei se foi da prefeitura, e deu uma
melhorada na rua; aí, realmente, começou a subir carro, material de construção. E cresceu
absurdamente. Se você passasse lá com um mês de diferença, não reconhecia mais. A gente
ficou lá uns quinze anos, até mais – fomos pra escola, continuamos na escola.
Estudamos no Ciep Bento Rubião, os três irmãos, e continuávamos a ficar o dia todo
lá. Minha mãe voltou a trabalhar assim que conseguiu botar o Michel na escola com seus cinco,
seis anos. Fazia diária [como diarista] e também trabalhou em firma de limpeza em
condomínio, igual ao meu pai. Ele, nessa época, entrou num condomínio no Humaitá, ficou um
tempão, quinze anos. Foi o tempo que a gente ficou morando naquela casa [na Vila Verde]. Eu
estudava nesse colégio, as professoras de lá adoravam a gente. Meu pai saía pra trabalhar às
6h e já deixava a gente na escola, mas só abria às 7h. Ficávamos lá, sentados na porta até
abrir - eu, Michel e Monique, sempre os primeiros a chegar. Minha mãe também ia trabalhar.
Depois, de tarde, esperávamos alguém chegar pra buscar. Meus pais não deixavam irmos
embora sozinhos, de jeito nenhum (eu já com oito, nove anos), então tinha que esperar. Eu
sempre gostei muito de estudar. Nessa escola, da quarta, quinta série, as professoras queriam
que a gente fizesse prova pro Pedro II, Faetec e os colégios particulares. Eu fiz, não passei; aí
fui estudar num outro colégio público, na Gávea, o George Pfisterer. Foi bom, porque lá
tinham as turmas comuns e as de aplicação, que preparavam pra passar pros colégios de
aplicação da UFRJ, da UERJ, pra outros colégios particulares com bolsa. Fiz todos também,
não passei em nenhum.
Mas eu queria estudar melhor, num colégio melhor. Meus pais também queriam, porque
a gente passou por todas as dificuldades do mundo, mas a única coisa que eles. Eu gostava
126
muito de ficar lá; meu horário às vezes acabava depois do almoço e não podia ir pra casa.
Então ficava lá, ajudando as professoras, na biblioteca ou na quadra jogando e assim ia
ficando. Tomei um gosto muito grande por estar dentro da escola – nós três, né? Aí, não
conseguia nada.
Era a Rádio Brisa. Comecei a ficar lá muito tempo, quando vi, já estava com programa
pra mim. Ia pra lá, aí vinham os famosos, pagodeiros, ficavam pra tirar foto, conhecer, tietar
as pessoas – e tinha muito jovem e adolescente que ficava lá por causa disso. Tinha
computador, microfone, mesa de som; eu não sabia mexer naquilo, mas era muito curiosa: a
pessoa estava sentada e eu ficava lá olhando. Num belo dia, acho que alguém faltou e tinha
que mexer [nos equipamentos]; o José91 deixou e eu fiquei: mexendo na mesa de som, botando
programação, falando no microfone. Não sabia nem falar direito no microfone, alguém
ensinou, não lembro mais como. Aí a gente começou a fazer a programação da rádio – botar
música, falar de cachorro que sumiu e não sei o quê mais. Aquilo foi virando meio que um
trabalho. Vários amigos adolescentes na época começaram a fazer isso. Pra quem gosta da
comunicação, vislumbra, porque você consegue falar com muita gente. Naquela época, não
tinha Facebook, Orkut, não tinha nada e aquela era a única diversão. A rádio escutava a favela
toda, a favela toda escutava, então aquilo ali era uma plataforma, assim, de ser popular, de
conhecer todo mundo.
Essa rádio começou de caixinha92, depois conseguiu um transmissor e colocou na laje
onde ainda fica. Começou a transmitir na rádio FM e ficou assim durante um bom tempo,
depois montou um site, começou a transmitir on-line. Hoje, transmite on-line, pela caixinha e
pela FM. Eu andava muito com o pessoal da rádio. Michel era muito pequeno, não andava
com a gente nessa época. Começamos a fazer praticamente tudo lá dentro, de montar a
programação a lavar o chão. Isso era eu, minha irmã e algumas outras amigas e amigos da
mesma faixa etária, uns 14, 15 quinze anos. E estudávamos: eu estudava de manhã e ia pra lá
de tarde. Quem estudava de tarde, ia pra lá de manhã, quem estudava de noite ficava lá o dia
todinho. A rádio se tornou uma coisa acessível. A gente já tinha noção do que era meio de
comunicação – pensando com a cabeça de hoje, né? Tinha uma TV comunitária, a TV Roc,
que também começou a abrir espaço e fazia programas voltados pro pessoal lá de dentro –
noticiário e propagandas locais. A TV Roc era TV a cabo. Mas a maioria das pessoas assiste
TV a cabo, na Rocinha, pra ter acesso à TV Globo.
E, na rádio, a gente produzia muito evento, mas depois que começaram essas obras
públicas93, tiraram o espaço das festas. Isso foi antes da UPP, dos condomínios do PAC, da
UPA, foi tudo antes. E isso aí acabou com espaços de lazer – espaços grandes: as duas
garagens da empresa de ônibus eram os espaços onde usavam pra fazer essas coisas.
C: Vocês tinham responsabilidades na rádio?
M: Todas as responsabilidades. Mas não tinha nada de pagamento. E tinha muita
oportunidade. Era muito assim: já tinha inaugurado esse prédio da prefeitura, o Centro de
Cidadania Rinaldo De Lamare, em frente à Rocinha. Eu ia muito lá porque tinham polos da
prefeitura que ofereciam emprego, documentos, vagas de escola; eu estava sempre pegando
informativos e levando pra divulgar na rádio, dar pra outras pessoas. A gente fazia locução,
botava a programação inteira: tem uns programas que você deixa prontos, dá pra ficar dias
sem ir à rádio; deixar tudo pronto, esquematizado, soltar e ir embora. A gente programava
tudo. Tipo: programava de sexta de noite até segunda de manhã; ficava aquilo tudo lá - música,
anúncio, música, anúncio. Às vezes gravava alguns programas da gente conversando, falando
besteira, piada, qualquer coisa, horóscopo, falando resumo de novela... tudo: notícia, vaga de
escola, vaga de emprego. A gente mesmo gravava nossa própria voz e jogava esses trechinhos
dentro da programação. Parecia que tinha gente lá, mas não tinha.
E tinha o telefone que as pessoas ligavam pra falar: “Ah, eu quero falar... eu quero
ouvir a música tal e quero que você ofereça pra mim, pra minha mãe e pro meu irmão”. Nesse
período, apareceu a ONG Viva Rio, pra capacitar todo mundo. Botamos todo mundo pra fazer
o curso de rádio jornalismo: eu fui, uma galera foi e a gente entrou com tudo – eu, muito nova,
nem tinha identidade ainda, fazendo documentação da rádio pra mandar pra Brasília94. Até
hoje está lá em trâmite.
C: Bom, já perguntei sobre as atividades que você fazia na rádio, mas é interessante
saber se você tinha autonomia mesmo, que tipo de conteúdo você produzia?
93 Michele se refere, provavelmente, às obras do Programa de Aceleração do Crescimento voltadas para favelas
do Rio de Janeiro e, especialmente, à sua primeira versão – o chamado PAC 1. Segundo o Jornal Rocinha
Notícias (n. 38, de maio/junho de 2009; matéria “1 ano de PAC – Rocinha: conquistas e tropeços no caminho
do crescimento”), o “PAC das Favelas” foi iniciado em meados de 2008 e a matéria registra a criação do
“Canteiro Social do PAC Rocinha” em julho de 2008 – época que coincide com este relato de Michele.
94 Michele se refere aos trâmites legais para conseguir a concessão de funcionamento para a rádio, ou
“concessões de outorgas para prestar o Serviço de Radiodifusão Comunitária”, conforme informações do atual
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Disponível em: https://www.mctic.gov.br.
Acesso em: 06 fev. 2020.
128
M: Podia tudo, não podia falar palavrão... Aí, a gente fazia tudo. O que pediam era: se
fechasse um anúncio, queriam que a gente falasse do anúncio, botasse pra rodar várias vezes,
porque quem pagava ficava de olho. Se deixasse, a gente falava sem parar! Íamos muito atrás
de oportunidades pros outros. A gente não tinha noção do que isso significava na época, mas
íamos atrás da prefeitura, integrávamos com as campanhas de Posto de Saúde, de “Use
Camisinha”, de “Faça o Seu Pré-Natal”, vacina de gripe, vacina de dengue. Essas pessoas, a
gente começou a procurar; depois de certo tempo, elas iam procurar a gente. Com o acesso à
internet isso melhorou: conseguíamos falar com funcionários da prefeitura, mais facilmente e
eles com a gente, sem precisava se deslocar. Por e-mail, por Flogão95, por Orkut conseguíamos
comunicar com mais gente, ter acesso às informações, vaga de emprego. E as vagas de escola.
Começava a aparecer também tipo: “Fulano que perdeu a identidade na rua”, “Fulano que tá
vendendo casa”.
No começo era assim, não tinha muita divulgação de serviço [na rádio], era só música
e comercial. Aí, como a gente estava muito na rua e começou a ser muito popular, as pessoas
sabiam que você falava na rádio, então pediam pra você anunciar: “Meu cachorro sumiu, leva
lá o nome dele, é tal, raça tal, foi tal dia”. A gente começava a falar e isso foi chamando
atenção das outras pessoas que também queriam usar aquele serviço. Então elas começaram
a ir lá, bater lá, falar: “Meu filho sumiu, não chegou da escola até agora, me ajuda a achar”,
aí a gente falava o nome da criança, as características. Como ouvia na favela toda, achava.
C: Na favela toda pega?
M: A rádio pega. A caixinha não, a caixinha é só na Via Ápia, Boiadeiro, Valão e na
Rua Dois também, não sei se ainda pega. Às vezes os bandidos ficavam com raiva porque o
volume da caixinha ficava alto, davam tiro na caixa. Dava um prejuizão. Hoje não tem tanto
mais isso. Quando não tinha ninguém na rádio, ficava no looping, repetindo o que tivesse. A
gente era diferente, porque éramos novos, gostávamos muito de ouvir música, rádio, essas
coisas, então fazíamos uma coisa diversificada. Fazíamos o que queríamos ouvir. Aí
começamos a botar um monte de música, gente falando pra entreter as pessoas.
C: Vocês faziam uma rádio pra vocês, basicamente?
M: Praticamente.
C: O termômetro eram vocês.
95 “Flogão” era um serviço de compartilhamento de fotos na internet. Criado em 2004, no mesmo ano do Orkut,
foi um dos primeiros lugares de compartilhamento de fotos brasileiros na internet. Foi extinto em 2019, mas
com o lançamento das redes sociais como Facebook e Instagram, já foi perdendo boa parte dos seus usuários
desde essa época.
129
M: Exatamente.
C: Então tinham promoções, tinha a programação voltada mais pra lazer,
entretenimento, tinham os anunciantes e essa coisa de utilidade pública. Tinha noticiário?
M: Muito pouco – on-line, no Facebook, isso é recente. Em 2011, terminei a faculdade.
Queria botar a programação certa, incluir noticiário, tudo o que achava que uma rádio normal
tinha que ter, como aprendi na graduação. Pensei assim: ‘Eu terminei a faculdade, agora vou
devolver o que aprendi’. Aí procurei a rádio pra voltar e falei: ‘Olha, eu aprendi um monte de
coisas, agora quero botar na prática’, muito diferente do que eu achava que era quando
comecei a aprender. Voltei, comecei a administrar tudo de novo. Só que eu queria colocar do
meu jeito, do jeito que aprendi. Tipo, saber da documentação, do certificado da rádio. Eles
toparam e falei: “Vai precisar de investimento, de gente e gente não trabalha de graça; é gente
formada, estudante”. “Quero”, o dono da rádio disse, “Tá bom”, respondi. Passei a receber
um pequeno valor por mês.
C: De onde vinham os recursos da rádio?
M: Dos anúncios, tinha muito. São valores pequenos, só que, com a rotatividade, o
volume é muito grande.
C: E você ficava lá quanto tempo?
M: O dia todo. Aí ganhei uma bolsa do Observatório de Favelas e fui estudar Produção
Cultural e Pesquisa Social [no Projeto] Solos Culturais96. Complementava a renda, já
formada. Um dia, acabou o Solos, em 2012, e fiquei esse tempo todo lá na rádio – 2011 todo e
início de 2012. Já tinha trabalhado lá uns três, quatro anos – antes de entrar na faculdade, a
adolescência toda e o segundo grau todo. Tinha feito inclusive uma parte da burocracia que
precisava pra resolver as coisas da concessão. Construí site pra rádio, Facebook, tudo deles
on-line, botei bonito; concertava o computar, microfone com fio desencapado dando choque.
C: A rádio está no ar, hoje?
M: Está.
96 O Solos Culturais, foi um projeto realizado, entre 2011 e 2013, em parceria entre o Observatório de Favelas
(organização da sociedade civil) e o Governo do Estado do Rio de Janeiro, com patrocínio da Petrobras.
Voltou-se para o “mapeamento dos agentes, dos hábitos e das demandas culturais de cinco comunidades do
município do Rio de Janeiro, realizado por cem jovens moradores da Cidade de Deus, Rocinha, Manguinhos,
Complexo do Alemão e Complexo da Penha”. Fonte: http://observatoriodefavelas.org.br/wp-
content/uploads/2013/05/SolosCulturais_ISSUU-2.pdf. Acesso em: 04 mar. 2020.
130
Eu já fui levada pela polícia. Um dia, assim que a Rocinha tinha sido “pacificada”, lá
em 2011, no final do ano, a gente estava conversando na rádio. Não podia mais ter baile, nada,
rolou aquela repressão braba, no começo, e a gente falando na rádio. Acessei um site, não
lembro qual, e tinham vários direitos do cidadão – direito de ir e vir, diversão, várias coisas –
aí comecei a falar. E algumas pessoas que estavam lá começaram a falar mal da polícia no ar,
ao vivo. O Bope97 estava no morro nessa época, aí a polícia chegou. Eu não sabia quem era,
abri a porta. O cara falou: “Aqui é a Rádio Brisa?”, eu falei: “É”, ele foi entrando, me tirou
da frente e perguntou: “Quem tá falando mal da polícia?”, falei: “fecha o microfone!”, mas o
pessoal da rádio não fechou... e a discussão foi todinha pra todo mundo escutar.
Falei: “E agora, o que vai acontecer?” O policial levou todo mundo lá pra baixo, pra
conversar com o comandante que estava lá e queria saber que porcaria era aquela. Aí
perguntou: “Vocês são legalizados? O que vocês estão fazendo aqui?”. Falei: “Dá licença. A
gente não é legalizado ainda; tem um processo que está rolando, ainda está arquivado porque
teve um problema”, expliquei. E o cara falou: “Você tá fazendo o quê? Você vai ser presa, sai
daí”, aí eu falei: "Não, imagina, o que é isso”. Na minha cabeça, pensava: “Nunca vou ser
presa”. Aí eles foram falando, falando e o policial virou pra mim, com essas palavras: “Minha
filha, vai procurar um emprego descente”. Fiquei olhando pra cara dele... fiquei quieta, não
falei mais nada. A gente voltou, arrumou, botou as coisas no lugar e tudo.
C: Como você se apresentava “no ar” [na rádio]?
M: Eu falava meu nome, nada demais. Ia nas reuniões - na reunião da UPP, na reunião
da associação [de moradores]. Quando fui pro terceiro ano do segundo grau, não consegui
mais ter compromisso lá [na rádio], porque estava fazendo pré-vestibular, um monte de coisas
e não conseguia mais ir, nem pra brincar, passar tempo. Eu não tinha mais tempo. Aí, me
afastei totalmente. Mas acompanhava.
Saiu o informativo de um colégio particular que estava dando bolsa naquele ano de
2005 e selecionando gente da Rocinha. Falei: “Tô aqui estudando pra caramba pra ganhar
uma bolsa, vou tentar nesse colégio”. Fiz a minha inscrição e comecei a divulgar também;
vários amigos foram, a gente fez a prova e passou – para cursar o segundo grau. Era o CEL
[Centro Educacional Da Lagoa], só que não era só passar, tinha que pagar passagem – antes
estudávamos em colégio público e, a partir de então, tínhamos que pagar –, alimentação,
uniformes e livros caríssimos, tudo: respirava pagava. E eu não tinha como, de jeito nenhum.
Minha mãe e meu pai ganhavam muito mal.
Nessa época, falei com o pessoal da rádio: “Eu trabalho pra caramba aqui, não ganho
nada e ganhei bolsa no colégio particular. Preciso que me ajudem a pagar a passagem”. Se
comprometeram a pagar minha passagem, mas uniforme, livro, tudo, não. Eu tinha que me
virar, algumas pessoas da família ajudavam como podiam e assim foi indo. Não ganhava nada,
mas consegui aguentar lá os três anos, fiquei o tempo do colégio todinho lá.
Aí passei pra faculdade. Na época que fiz vestibular, passei pra todas que eu prestei,
mas acabei escolhendo Comunicação na UniverCidade, por causa da bolsa e era em Ipanema
– ia gastar menos de passagem e estudar só de manhã. Largava [a faculdade] onze e meia e
podia arrumar um emprego, porque, a essa altura do campeonato, a rádio não ia mais ajudar
com passagem e a faculdade era muito mais cara (livros, tudo mais). Eu tinha passado pra
Geografia na UERJ; Turismo na UFF e Serviço Social na UFRJ. Mas não fui pra nenhuma
das públicas. Eu queria muito ter ido fazer Geografia, na UERJ, mas não fui, porque era
período integral, não ia conseguir trabalhar de jeito nenhum e eu precisava.
Acabei indo pra UniverCidade. Foi bom assim. E não sabia que aquilo era valioso.
Entrei na faculdade fazendo Jornalismo, em 2008. Eu era bolsista, ganhei bolsa pelo ProUni.
Fui da primeira leva de pessoas que conseguiu bolsa pelo ProUni. Logo saiu um projeto de lei
dizendo que não precisava ser formado em Jornalismo pra trabalhar na área. Aí eu pensei:
“Vou trocar pra Publicidade, porque vou estudar Jornalismo quatro anos e meu diploma não
vai servir pra nada”. Troquei, mas me arrependi, porque isso de não ter formação e continuar
trabalhando é pra William Bonner da vida, não é pra mim, que estou começando agora.
Publicidade não tinha nada a ver comigo, apesar de ser a mesma turma até o segundo ano
(depois é que muda).
98 É importante ressaltar que Michele trabalhou como produtora da Agência de Redes, na Rocinha em 2012.
Mas esta atuação não teve relação com a criação do projeto do Jornal Fala Roça. Este foi criado na mesma
época, mas são duas coisas independentes. Ela fez parte da equipe da Agencia, assim como outros produtores,
132
olhando, não entendia muito o que estava acontecendo, mas comecei a conhecer um monte de
gente. Consegui entrar na produção pra cuidar da parte da Rocinha. A gente foi atrás dos
jovens; tiveram 40 jovens selecionados e começaram as oficinas em 2012.
Terminou o ciclo [da ARJ] de 2012 e passou pra 2013. A Endless queria que eu
trabalhasse pra eles. Eu queria continuar na Agência – só que já tinham assinado nosso aviso
prévio porque era... por contrato [de trabalho por tempo determinado]. Acabou o contrato,
estava aquela dúvida se ia conseguir [patrocínio] de novo ou não. E pensei: “Vou fazer um
frila lá e continuar analisando”. A gente foi demitido pela Agência em agosto de 2013.
[Em seguida, Michele foi contratada pela Endless Computers, lá permaneceu até 2018].
Eu faço as pesquisas, teste de usuário com as ferramentas novas, aplicativos, se as pessoas
entendem, o que precisa melhorar. Faço a parte de comunicação também no mundo, nas redes
sociais (Instagram, Facebook, Twitter e Pinterest). E tem o Brasil. Aumentou, mais do que
duplicou o trabalho, por isso não consigo mais me dedicar tanto ao Fala Roça – consigo ainda
fazer muita coisa, mas com menos tempo.
responsáveis pela execução das oficinas e demais atividades de suporte à estruturação nas favelas onde acontecia
(como a mobilização dos jovens para participarem do processo de seleção etc). Por outro lado, como o jornal foi
criado na mesma época, ela acompanhou o seu processo de criação, assim como também acompanhou outros
projetos que se formaram no mesmo ciclo da Agencia. Era parte da atribuição dos produtores locais realizar
tarefas de produção para que estes projetos fossem realizados. Outra situação, ainda, foi o fato de membros da
Agência escreverem textos no jornal na sua fase inicial, quando ele ainda estava se estruturando e os jovens
ainda não tinham experiencia – na primeira edição, houve textos de três pessoas da Agencia, Michele foi uma
delas.
99 A maior parte das falas a respeito do processo de criação do Fala Roça foi organizada no capítulo 3.
133
Legenda: Distribuição da 3ª edição do Jornal Fala Roça na localidade Terreirão da Rua 1, parte alta na Rocinha.
Data: 28/03/2014. Fonte: A autora, 2014.
Neste capítulo, dedico-me ao período do nascimento do Jornal Fala Roça, com objetivo
de “avivar” a fase de criação e estruturação desse jornal, ancorando-me, para tanto, em
narrativas de alguns dos jovens comunicadores que participaram da sua fundação e
permaneceram no veículo durante a maior parte da sua história. No contexto da metodologia de
uso da fotografia como instrumento de pesquisa nas Ciências Sociais, a fotografia que abre este
capítulo foi uma das inspirações dos jovens para comentar sobre este assunto (mais adiante,
seguem as falas a esse respeito). Busco articular a época do surgimento desse jornal, atribuída
pelos seus fundadores ao ano de 2012100, com eventos e “tempos” vivenciados no cotidiano da
Rocinha (que vieram de mais atrás ou começaram a correr em paralelo com o percurso do
veículo). A categoria “tempos de” é aqui usada em alusão à expressão que organiza as memórias
orais de moradores da Rocinha sobre a história da favela, registradas no livro Varal de
100 O ano de criação do Fala Roça, nos textos de apresentação do jornal, assim como nas palavras dos seus
comunicadores, leva em conta o início do processo de criação do veículo, nas oficinas da Agência de Redes
para Juventude, em 2012, na Rocinha. Portanto, o evento que marca seu surgimento não é a data da
publicação da primeira edição, em maio de 2013, mas o período da sua elaboração, a partir do ano anterior.
134
Lembranças: histórias da Rocinha101. Tempos esses que não são estanques, mas podem perdurar
e/ou se entrelaçar com outros, no vai e vem das memórias dos moradores. No caso do Fala
Roça, certos tempos, referentes a situações e acontecimentos na cidade, são concomitantes à
época da criação do jornal – levando em conta também uma narrativa de Michel, reproduzida
abaixo, sobre o período que antecedeu a criação do jornal. Ressalto alguns: tempos do acesso
(desigual) à internet; tempos do programa da Unidade de Polícia Pacificadora na Rocinha (UPP)
– ou de “pacificação” – na região, atrelados aos tempos da realização de projetos sociais na
favela e da realização dos megaeventos esportivos na cidade. Podemos pensar que estes
“tempos” (mesmo com suas contradições) não são meramente pano de fundo de um contexto
onde nasceu o Fala Roça, mas fizeram parte da sua constituição.
Ao pensar, especialmente, nos tempos da comunicação digital e da navegação na
internet nessa favela, perceberemos particularidades que dizem respeito a como experiências
relacionadas ao uso dessa tecnologia foram (e continuam a ser) vividas. Um parâmetro para
localizar seus começos foi a instalação na Rocinha, em 2001, da primeira Estação Futuro
(projeto da ONG Viva Rio), que consistia em “telecentros com banda larga e cursos de
computação” voltados para ampliação do acesso à internet nas favelas do Rio (RAMALHO,
2007, p. 48). Uma das singularidades mencionadas foi o fato de lá ter surgido, já em 2012, um
meio de comunicação voltado para produção de informação em suporte impresso – o Jornal
Fala Roça. Singularidade esta que aponta, de fato, para a desigualdade do acesso a essa
ferramenta de comunicação cada vez mais fundamental no mundo contemporâneo.
Quanto aos tempos da UPP, dizem respeito à época da vigência deste programa na
Rocinha (de 2012 aos dias de hoje) e que se tornou condição de possibilidade para a realização
do projeto social que deu origem ao jornal (como vermos adiante). Neste ponto, entrelaçam-se
os tempos da política de “pacificação” e dos projetos para jovens na Rocinha – vinculação que
será tratada no capítulo 7 deste trabalho. Além disso, conforme aponta uma série de estudos a
implantação das UPPs também teve vínculos estreitos com a realização dos grandes eventos
esportivos no Rio de Janeiro (FARIAS et al, 2018; SOUZA, 2018; MARTINS, 2018, entre
outros).
Por fim, mas não menos importante, também ganham destaque no período do
surgimento do jornal aqui narrado as trajetórias de vida dos seus jovens realizadores e suas
vontades de criação e envolvimento no projeto desta mídia. Dessa forma, ao considerar esse
101 Maiores informações em: SEGALA, L. e FERREIRA, T. (org.). (1983). UNIÃO PRO-
MELHORAMENTOS DOS MORADORES DA ROCINHA. Varal de lembranças: histórias da Rocinha. Rio
de Janeiro: Editora Tempo e Presença/ SEC/MEC/FNDE.
135
conjunto de elementos, percebo a maneira como o “sonho” do impresso foi tomando forma -
conforme dito no título da matéria “O sonho que tomou forma” 102, que apresenta o veículo, na
sua primeira edição, na voz dos jovens participantes.
Abro as sessões deste capítulo com falas dos jovens comunicadores que se tornaram
importantes interlocutores desta pesquisa – Beatriz Calado, Michele Silva e Michel Silva. Os
dois últimos fizeram parte do grupo que criou o jornal, já Beatriz entrou no período entre a
terceira e quarta edições, portanto, haverá mais falas de Michele e Michel concernentes ao
período inicial do FR Michele e Michel já tinham tido contato com práticas de comunicação na
Rocinha antes da criação do Fala Roça, Michele havia participado da Rádio Brisa durante
alguns anos, entre o ensino médio e os primeiros anos da faculdade de Comunicação Social.
Michel havia criado dois espaços para falar sobre a Rocinha na internet: o Tumblr103 Vida na
Rocinha.
Em seguida, prossigo com considerações que as situam em contexto e as incorporam às
análises em torno do Jornal Fala Roça. Para melhor compreender os momentos iniciais do
processo que envolveu a criação do jornal, suas relações com dimensões subjetivas dos jovens
a ele relacionados e do ambiente social à sua volta, tratarei de circunstâncias que antecederam
ao surgimento dessa mídia. Concentrei-me, por exemplo, em alguns elementos mencionados
como os relativos a ‘estados de espírito’, interesses e atividades que mobilizavam os
comunicadores que acompanhei, além de eventos relatados do cotidiano ou que o atravessaram.
MICHEL
[...] Eu jovem, na hora do intervalo escolar, parava para ler jornal. Os jovens já
estavam decretando o fim do jornalismo impresso com o avanço tecnológico. Naquela
época, os jornais estampavam matérias sobre as ocupações militares nas favelas do
Rio, em 2010, como o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio.
Para entendermos o contexto das intervenções policiais nas favelas do Rio, a
população vivenciava os reflexos dos Jogos Pan-americanos em julho e os Jogos
Parapan-americanos em agosto de 2007 [...]
[...] Após a ocupação das favelas no Complexo do Alemão, a ocupação da Rocinha e
do Vidigal, em São Conrado, era questão de tempo104. E não demorou para acontecer.
Os moradores, assustados com as notícias da ocupação, lotaram os mercados em busca
de alimentos pensando que teriam dias de guerra. Mas não. Em 2011, a chamada
“Operação Choque de Paz” mobilizou centenas de policiais apoiados por carros
102 “O sonho que tomou forma” é o título de uma matéria, escrita por Michele Silva, publicada na primeira
edição do Jornal Fala Roça (na página 4), apresentando o veículo aos moradores da Rocinha em 26/05/2013.
103 Plataforma de blogs criada em 2007 (https://www.tumblr.com).
104 Michel se refere à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas regiões de favelas do
Complexo do Alemão (em 2010), Rocinha e Vidigal (em 2012).
136
Essas falas fazem parte do texto autobiográfico escrito por Michel intitulado
“Construindo mídia comunitária: as experiências de Michel Silva”105. Os trechos mencionados
estão incluídos no capítulo 2, “Da diversão à realidade”, em que Michel narra a fase inicial do
seu interesse pela leitura, além do gosto e do envolvimento em atividades de jornalismo
propriamente ditas. Portanto, são aspectos considerados relevantes na representação de si para
o mundo. Por ser um dos fundadores do jornal, tais percursos da sua história ajudam a
compreender motivações e circunstâncias presentes na sua criação.
105 Dois capítulos deste livro de Michel Silva, ainda em fase de escrita, foram entregues a mim ao longo da
pesquisa de campo deste trabalho.
As circunstâncias estão descritas mais detalhadamente no capítulo sobre metodologia de pesquisa.
Os trechos transcritos fazem parte do capítulo 2 “Da diversão à realidade”. Na última vez em que falamos
sobre o assunto, em 26/02/2019, o livro se encontrava paralisado (portanto, ainda não havia sido lançado).
137
As escolhas desses trechos se pautaram pelas experiências mais específicas desse jovem
ligadas à comunicação e jornalismo, contextos e circunstâncias associados a elas.
Cronologicamente, a narrativa chega até meados de 2012 e ao momento em que “a ideia de
criar um jornal impresso na Rocinha estava sendo lapidada”, mas ainda não menciona o Fala
Roça. Por outro lado, aborda sua segunda experiência106 de criação e participação em uma mídia
relacionada à favela onde nasceu: o portal Viva Rocinha (composto por um site e páginas nas
redes sociais) – para o qual passou a criar conteúdo, na internet, junto com a irmã, Michele. O
Viva Rocinha foi uma mídia digital (composta por um site e uma fanpage na rede social
Facebook – vivarocinha.org e facebook.com/VivaRocinha) criada por Michel, em 2011, e
alimentada por ele e a irmã até 2017 (ano da última postagem no Facebook). seu texto de
apresentação se refere aos autores e sua relação de parentesco, vincula o surgimento da mídia
com a instalação da UPP na Rocinha e fala da “apreciação por jornalismo”:
106A primeira experiência de Michel com meios de comunicação pode ser considerada o Tumblr Vida na favela,
criado em setembro de 2011 e de curta duração (alguns meses). Era uma espécie de diário que foi também se
assemelhando à linguagem jornalística.
138
pública do jornalismo, e do acesso à informação como uma forma de lutar por direitos. Quanto
à Michele, suas primeiras experiências com comunicação aconteceram, por diversão, ainda na
adolescência em uma rádio, na Rocinha. Em seguida, ela passou a pilotar um programa e a
cuidar de diversas atividades, inclusive administrativas da rádio.
MICHELE. Eu comecei a ficar lá [na rádio] muito tempo, muito tempo, quando vi já
estava com programa pra mim.
CRISTINA. Como foi isso, assim, tão rápido?
MICHELE. Não sei também, ia pra lá, ficava... Aí vinham os famosos, pagodeiros,
ficavam lá pra tirar foto, pra conhecer, pra tietar as pessoas e tinha muito adolescente,
jovem e adolescente que ficavam lá por causa disso. Tinha computador, microfone,
mesa de som; eu não sabia mexer naquilo, mas era muito curiosa. Então a pessoa
estava sentada e eu ficava lá olhando. Num belo dia, não sei como isso aconteceu,
mas, acho que alguém faltou, que alguém tinha que mexer, o [dono da rádio] deixou
e eu fiquei, não ganhava nada (Michele. Entrevista História de vida. Data:
02/03/2015).
Nos trechos anteriores da narrativa de Michel, ele se refere aos tempos da implantação
da UPP, em 2012, na Rocinha. Tempos interligados com situações imediatamente anteriores e
posteriores (conforme menciona acima) a esta presença militar na favela. Quanto aos efeitos
anteriores na vida da população, cita o medo causado pelo noticiário dos grandes jornais sobre
a instalação da unidade de polícia, levando-os a estocar alimentos em casa; os confrontos não
acontecem na ocasião da operação policial de nome “Choque de paz” (em novembro de 2011)
que prepararia o “terreno” para a UPP. Mas o clima de tensão continuou a ser alimentado pela
“ênfase” dos meios de comunicação às notícias policiais ao tratar da Rocinha. O desejo de
Michel de criar o seu primeiro veículo de notícias – o site Viva Rocinha – se tornou mais forte
ao ver o “engajamento” dos jovens do Alemão na postagem de conteúdo nas redes sociais da
internet sobre a entrada da UPP naquele conjunto de favelas da zona norte, e ao vislumbrar o
“o uso do jornalismo como ferramenta de transformação social”. O sentido de “engajamento”,
para ele, nesse caso, relaciona-se principalmente ao fato de moradores, como o jovem Renê
Silva, terem exposto visões a partir da favela em que viviam sobre o episódio da instalação da
UPP (através de redes sociais na internet). Um dos resultados foi terem se tornado fonte
139
privilegiada de notícias – ao menos naquele momento – para a grande imprensa, que costuma
se ancorar, predominantemente, na perspectiva da polícia, quando o assunto é favela107.
Enxergar o “jornalismo como forma de transformação social” também parece se
relacionar com a questão da incorporação dos habitantes de favelas como fontes pela mídia
convencional. Ao expor as suas visões, outras formas de representação das favelas poderiam
surgir – embora também pudessem reforçar o estereótipo da favela como lugar de violência
armada e criminalidade. A menção feita por Michel ao portal Viva Favela, criado em 2001,
também pode se relacionar a este aspecto. O portal foi um dos primeiros veículos existentes na
internet de notícias exclusivas sobre favelas do Rio de Janeiro, feitas por moradores desses
locais. Ao lado desta, outra influência citada por Michel foi o Jornal Tagarela, produzido entre
as décadas de 1970 e 1980 por moradores da Rocinha, cujas pautas se voltavam para a
“mobilização social” por meio da conscientização sobre problemas de infraestrutura, como o
saneamento básico, que segue sendo uma das principais reivindicações de moradores e pautas
dos movimentos sociais locais atualmente. Por fim, Michel se refere à percepção que a
experiência de produção do Viva Rocinha lhe proporcionou, ao percorrer o morro durante a
apuração das matérias, no sentido de notar a existência de uma parcela da população da favela
ainda desconectada do acesso à internet. A seguir, detenho-me no programa das UPPs e,
especialmente, em sua relação com a Rocinha. Mais adiante será possível perceber melhor
algumas implicações desta unidade de polícia a partir da vivência de mídias como o Viva
Rocinha e o Fala Roça.
O programa das UPPs constituiu a principal ação implantada na área de segurança
pública do estado do Rio de Janeiro, iniciado no primeiro mandato do governador Sérgio Cabral
(2007-2010), estendendo-se pela sua segunda gestão (2010-2014) e a de Luiz Fernando Pezão
(2014-2018), até os dias atuais. Teve início, em 2008, no Morro Santa Marta, zona sul do Rio
de Janeiro, e chegou a outras 38 favelas do estado até 2014, quando o programa já seguia
“instável, com um conjunto de crises”, de acordo com Marielle Franco (2014, p. 126). Diversos
estudos vêm sendo realizados sobre as UPPs, como os desenvolvidos pelo Cidades – Núcleo de
Pesquisa Urbana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, grande parte deles destacando
o caráter de exacerbação da militarização nesses espaços, entre as suas principais características
(ROCHA, 2018; LEITE, 2018; CARVALHO, 2018; BARROS, 2018). Num cenário em que a
abrangência desse programa se restringiu a apenas cerca de 10% das áreas de favelas da cidade
(FRANCO, 2014, p. 52), e especialmente as localizadas nos perímetros do Rio de Janeiro onde
107 Tema abordado por Michel, com mais detalhes, no capítulo 2 do livro Construindo mídia comunitária: as
experiências de Michel Silva”, que ele está escrevendo sobre a própria história.
140
108 Franco cita declarações do próprio Secretário de Segurança Pública do Estado do governo de Sérgio Cabral,
José Mariano Beltrame, em entrevista ao Jornal O Globo, em maio de 2011: “Nada sobrevive só com
segurança. Não será um policial com um fuzil, na entrada de uma favela, que vai segurar, se lá dentro das
comunidades as coisas não funcionarem. É hora de investimentos sociais”. O secretário conclui mais adiante,
sobre o projeto das UPPs: “O sucesso do projeto depende de investimentos maciços, e estes não estão sendo
feitos na velocidade necessária” (BOTTARI; GONÇALVES, 2011, apud, FRANCO, 2014, p. 75).
141
complicado, a julgar pelo clima de medo, uma vez que a UPP continuava sediada na favela109.
A despeito disso, em fevereiro de 2014, o Fala Roça abordou o caso Amarildo na matéria de
capa da sua terceira edição – a última fotografia do pedreiro, com vida, havia sido feita por
Michele Silva, durante a entrega da edição anterior e foi publicada também na primeira página
do impresso. Retorno a esse assunto nas considerações sobre o terceiro número do jornal, ainda
neste capítulo.
Uma das primeiras características que provocou curiosidade em relação ao Fala Roça
foi a opção pelo suporte impresso: o que teria motivado os jovens fundadores do veículo a
escolherem esse formato? Afinal, a geração desse grupo, situada na faixa etária dos 19 aos 21
anos (na época da criação do jornal), em tese, já havia sido socializada em tempos da
comunicação digital e da navegação na internet. Mas de que forma isso ocorreu e como seriam
as experiências dos moradores da Rocinha em relação ao uso de tecnologias de comunicação?
Diferenças em relação às formas de viver esses tempos e experimentar as chamadas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), na Rocinha, foram sendo evidenciadas, de
certa forma, nas narrativas dos jovens ao falarem sobre a escolha pelo suporte da mídia em
papel (embora não descartando o suporte digital), bem como de suas experiências pessoais.
Algumas pistas fornecidas por eles demonstraram, por exemplo, uma não linearidade
em relação à vivência local de um tempo da comunicação digital e navegação na internet – da
mesma forma, outros tempos narrados no Varal de Lembranças: histórias da Rocinha110
também não ocorrem de forma linear. O Varal reúne memórias de antigos moradores locais
condensadas em diversos tempos ou “as histórias do morro e as histórias da vida” que “correm
num mesmo amarrado” (SEGALA; SILVA, 1983). Alguns desses tempos citados no Varal,
como o “tempo de antes da vinda para a Rocinha”, o “tempo dos políticos”, o “tempo das
enchentes”, o “tempo do medo da remoção” e o “tempo do mutirão” se entrelaçam, vão e vêm
109 Quanto aos trâmites do caso na Justiça, já em 2013, o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou 25
policiais militares, lotados na UPP Rocinha, pela morte de Amarildo. Em março de 2019, foram libertados 4
dos 12 policiais militares que haviam sido condenados em primeira instância por tortura, morte e ocultação de
cadáver no caso. A investigação comprovou que o pedreiro foi torturado e morto numa unidade da UPP desta
favela. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/18/Quem-foi-condenado-e-quem-
foi-absolvido-no-caso-Amarildo. Acesso em: 09 de mar. 2020.
110 Ver SEGALA, Lygia; SILVA, Tania Regina da (orgs). Varal de Lembranças: histórias da Rocinha. Rio de
Janeiro: União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha, Editora Tempo e Presença, SEC/MEC/FNDE,
1983.
142
COSTA L. e RIBEIRO, M. C., 2013) – e do local de moradia em áreas de periferias e/ou favelas.
Em poucas palavras, o estudo confirma a tendência da estratificação do acesso às TICs, já
observada em países considerados desenvolvidos e descrita por Manuel Castells como
“infoexclusão” (CASTELLS, 2007, apud RIBEIRO, L.C, de Q.; SALATA, A.; COSTA L. e
RIBEIRO, M. C., 2013), ou seja, a despeito de reconhecer vantagens trazidas pela “revolução
tecnológica dos meios e serviços de produção”, como a diminuição dos seus preços, aponta
para a “permanência da distância entre conectados e uma massa de desconectados” (2013, p.
290) aliada às diferenças de capacidades dos indivíduos para usar os meios de produção e
difusão de informação e conhecimento. Uma vez que essas capacidades são desiguais, o acesso
à internet, por si só, não resolveria o problema da “infoexclusão”. Como essas capacidades
passaram a condicionar cada vez mais o acesso à renda, riqueza e poder, refletem-se também
na reprodução das desigualdades sociais.
Nas metrópoles brasileiras, este estudo demonstra haver ainda grandes desigualdades
no acesso às TICs, entre os setores com rendas mais altas e baixas da população. A posse do
microcomputador no domicílio, local em que foram registrados os maiores percentuais de
acesso à internet, expressou-se como um dado significativo dessa desigualdade. Em 2009, 86%
dos domicílios com maior renda possuíam computadores, enquanto somente 13% dos
domicílios de menor renda possuíam esse equipamento. Já o acesso à internet, dentro desse
universo de domicílios com computador, foi de 93% para o primeiro grupo e de 67% para o
segundo (no mesmo ano de 2009). Quanto ao fator do território, a localização do domicílio em
área de favela reduzia em 37% as chances de possuir computador, ou seja, o nível
socioeconômico e a localização territorial se constituíram como fatores que revelaram
desnivelamento em relação à posse de computadores e acesso à internet. Já quanto ao uso da
internet, o estudo (nesse caso, baseado também em dados qualitativos da PNAD) evidenciou
novamente a importância dos dois primeiros elementos, agregando-lhes o fator da idade, como
determinantes no aproveitamento das inúmeras oportunidades oferecidas por meio do mundo
on-line. Portanto, seriam os mais jovens (com menos de 20 anos), com mais anos de
escolaridade (12 anos ou mais) e não moradores de favelas os que teriam maiores chances de
aproveitar o potencial da internet.
Outros estudos se aproximam mais das complexidades internas da Rocinha no que diz
respeito ao acesso e uso das TICs. A mesma direção da perspectiva crítica da “infoexclusão” já
tinha sido apontada por SORJ e GUEDES em uma ampla pesquisa sobre internet nas favelas
do Rio de Janeiro, realizada em 2003 (SORJ; GUEDES, 2008). O seu foco é também
concentrado no acesso individual a computadores e internet, sendo a Rocinha uma das favelas
145
usam o micro, quase a metade estuda em escola (47%); sobre a maneira como aprenderam a
usar o computador, a predominante foi por meio “cursos especializados” (55,2%), seguida por
“sozinho, por tentativas” (17%) e “com ajuda de amigos” (15,7%). Os dados sobre uso da
internet são os seguintes: 67,7 % dos usuários de computador usam a internet; entre eles, a
maior frequência de uso é de uma vez por semana 31,1%), seguida de mais de uma vez por
semana (23,5%) e uma vez por mês (19,3%). Entre os motivos para não acessar a internet, o
principal é “não possuir local onde possa acessar”.
Note-se que essas pesquisas ainda não consideravam os telefones celulares como
dispositivos integrados às novas dinâmicas comunicação, acesso e uso da internet, o que pode
ter modificado as dinâmicas de uso de computador e acesso à internet nos últimos anos. Mas
um estudo realizado na favela da Rocinha por uma residente local, em tempos mais recentes,
embora em menor escala, trata das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICs),
que incluem as tecnologias móveis, conexões sem fio, entre outras111. Mais especificamente,
discute se é possível considerar o surgimento de uma “nova classe média”, na Rocinha, e a sua
relação com o “paradigma das novas mobilidades”, onde o uso das NTCIs diluiria fronteiras e
ampliaria mobilidades, incluindo a diminuição de desigualdades sociais. O estudo de caso tem
como base entrevistas realizadas com sete jovens e se realiza na época de preparação e
instalação da UPP na Rocinha (2011-2012). Conclui que tanto o paradigma mencionado quanto
a existência de uma “nova classe média”, no caso da Rocinha, podem ser questionados, uma
vez que nessa favela (como possivelmente em outras) há imobilidades “preexistentes e
persistentes”, citando como exemplos condições de moradia e infraestrutura urbana
inadequadas. Quanto às condições socioeconômicas, há percepção por parte do grupo estudado
de que o seu poder de consumo “vem aumentando”, mas também de que seus gastos vêm
igualmente aumentando. O período da chegada e pós UPP é especialmente percebido sob a
ótica das mudanças no custo de vida, para cima:
111 Segundo Gabriela Franco Duarte, “as novas tecnologias de informação e comunicação reúnem os
computadores pessoais e outros equipamentos de armazenamento de dados e uso pessoal, a internet,
a telefonia móvel, os serviços integrados de correio eletrônico e de conversação, as redes tecnossociais,
as tecnologias digitais de captação, tratamento e reprodução de imagens e sons e as tecnologias de acesso
remoto” (DUARTE, 2013, p. 1).
147
Enquanto isso, a autora ressalta que, no mesmo período, não houve melhorias nos
serviços como abastecimento de água e luz e na infraestrutura de esgotamento sanitário. Por
fim, ela questiona o acesso às NTCIs, na Rocinha, como forma de “trabalhar pela exigência de
direitos”; seu entendimento é de que “essa dinâmica não se realiza” e acrescenta: “ter acesso a
novas ferramentas técnicas que lhe possibilitam uma maior organização e exigência de direitos
não é garantia de que essa população esteja, de fato, voltando-se para tais questões sociais, que
afetam diretamente sua vida e seu cotidiano”.
O Jornal Fala Roça nasce, em 2012, através de um processo de criação realizado por
jovens da Rocinha, então com idades entre 18 e 21 anos, em oficinas da Agência de Redes para
Juventude – no primeiro período em que esse projeto/metodologia desenvolveu atividades nesta
favela da zona sul do Rio de Janeiro (entre agosto e dezembro)112. O jornal circulou durante
três anos e três meses (de maio de 2013 a agosto de 2016), com periodicidade irregular e tiragem
de 5 mil exemplares. Foram lançados oito números, todos com 8 páginas, publicados nas
seguintes datas: n. 1, em maio de 2013; n. 2, em agosto de 2013; n. 3, em fevereiro de 2014; n.
4, em agosto de 2014; n. 5, em fevereiro de 2015; n. 6, em agosto de 2015; n. 7, em dezembro
de 2015 e n. 8, em agosto de 2016. O tabloide impresso foi o formato principal escolhido para
a mídia, considerado também como um diferencial frente à maioria dos meios de informação
então existentes na Rocinha – entre 2014 e 2019, foram mapeados 21 canais de comunicação
112 As atividades da ARJ são denominadas, por seus realizadores, de “ciclos”; houve dois na Rocinha com o
mesmo formato, um, em 2012, e outro, em 2013.
148
relativos a essa favela e, entre eles, os meios prioritariamente voltados para informação não
possuíam suporte impresso ou essa não era sua plataforma principal de circulação113.
No entanto, a presença no ambiente das mídias digitais não deixou de mobilizar os
realizadores do Fala Roça, uma vez que, no ano do lançamento da primeira edição impressa do
jornal, o seu site já estava no ar e o primeiro tweet da mídia (na rede social Tweeter), em
20/11/2013, foi para divulgá-lo: “Nosso primeiro tweet. Vocês conhecem nosso site? Olhem lá,
http://www.falaroca.com”. Ainda com poucos recursos e uma formatação “básica”, o site era,
então, principalmente voltado para replicar as edições impressas no mundo on-line. Da mesma
forma, funcionaram as redes sociais na internet associadas ao veículo num período mais inicial
– seus endereços no Facebook e Twitter aparecem no expediente do impresso a partir da sua
terceira edição. Na época, eram voltadas para ‘publicizar’ o impresso, por meio de links para as
matérias do impresso replicadas no site do veículo. Posteriormente, o site foi sendo aprimorado
e os jovens passaram a produzir conteúdo específico para essa mídia, em diálogo com o
impresso: matérias mais curtas, abordando temas com maior agilidade do que o ritmo do
tabloide. Ou seja, nos intervalos da produção do impresso, o FR continuou funcionando na
internet – com site e presença nas redes sociais Tweeter, Facebook, Instagram e YouTube114. E
assim permaneceu até tempos recentes, mas com a diferença de que, quanto mais o tempo passa,
o futuro do impresso parece se tornar mais incerto. Nos cerca de dois anos posteriores à
publicação da oitava edição, a equipe chegou a produzir matérias para o número seguinte e, em
2018 (quando se encerrou o período desta pesquisa), fazia planos de lançamento do número
nove. Mas esbarrou em dificuldades que os mantiveram em compasso de espera.
Na fala acima, Beatriz narra como conheceu a Agência de Redes para Juventude em seu
ciclo de atividades, em 2012, na Rocinha. Bia se referiu à sua impressão de que aquele seria um
espaço de “oportunidade de fazer alguma coisa dentro da Rocinha”, que a fez decidir participar
do processo seletivo. Lá, aproximou-se de outros jovens pela afinidade de interesse na área de
comunicação Por outro lado, optou por deixar a oficina, por estar cursando graduação (em
Jornalismo) e não encontrar tempo para conciliar com as atividades do novo programa para
jovens da favela. “Eu estava no começo da faculdade, achava aquilo dali meio louco, falei
assim: ‘Estou cansada de todo sábado ter que vir para cá’. Aí eu saí.”, como disse em outro
113 O mapeamento de mídias da Rocinha realizado para esta pesquisa abrangeu canais de comunicação oriundos
dessa favela ativos entre os anos de 2014 e 2019, totalizando 21 mídias, e o registro de mídias consideradas
“inativas”, ou seja, que funcionaram e foram descontinuadas antes deste período, somando 10 meios de
comunicação. Esse levantamento se encontra no Anexo A da tese.
114 Endereços do Fala Roça na internet: site (www.falaroca.com), Facebook (facebook.com/falaroca),
Instagram (instagram.com/jornalfalaroca), Twitter (twitter.com/falaroca) e canal no YouTube (youtube.com/
channel/ UCZ7liaSkdswGRJPvxTGaJ-g).
149
trecho da sua entrevista. Em 2014, aceitou participar da equipe do Fala Roça, quando a terceira
edição estava sendo distribuída. Quanto à sua motivação, mencionou a vontade de exercitar a
linguagem escrita do jornalismo (ela fazia estágio na TV da PUC naquele momento): “Como
eu trabalhava já com comunicação, achei que seria uma boa trabalhar a parte escrita, porque eu
trabalhava com TV na época”.
Não acompanhei a época da formação do jornal, visto que o trabalho de pesquisa desta
tese começou em 2014, embora tenha ido a eventos da Agência de Redes já durante a realização
do estudo, junto com os integrantes do Fala Roça. Para me reportar a esse momento, apoiei-me
nos relatos dos participantes do jornal, em matérias do próprio veículo, documentos e materiais
da ARJ. A complexidade dessa situação seguramente foi maior do que será possível descrever
neste trabalho, envolvendo detalhes que aqui escapam. Considerando a situação, no que diz
respeito a essa fase, interessa acima de tudo perceber como os jovens vivenciaram o processo
de elaboração da mídia. E, não, fazer uma análise em profundidade sobre a atuação da Agência
de Redes, mas apenas pontuar elemento de conexão com este estudo de caso e seus possíveis
efeitos.
Gracilene Firmino (18 anos), Michel Silva (19), Raquel Magalhães (19) e Vanessa
Santos (21)115 participaram de um processo seletivo, junto com outros moradores da Rocinha
da mesma faixa etária, que os habilitaria a entrar para a Agência de Redes – frequentar suas
atividades e aprender uma metodologia específica destinada a criarem projetos a serem
desenvolvidos na própria favela. Quem ingressasse contaria com uma bolsa-auxílio, participaria
de uma oficina (que exigia tempo de dedicação) e de outras etapas até a criação de um projeto
em conjunto com outros jovens. Os projetos aprovados em uma “banca” de seleção seriam
contemplados com recursos financeiros para dar início à sua realização. Após essa fase,
passariam ainda pela “banca do selo”, não mais seletiva, mas destinada a prestar suportes que
pudessem contribuir para a continuidade do projeto. Depois, se quisessem prosseguir com a
ideia, teriam que fazê-lo por conta própria.
Os integrantes do Fala Roça, todos moradores locais, conheceram-se nessas oficinas,
assim como outros jovens que formaram outros projetos no mesmo contexto. Eram eles:
Gracilene Firmino, Michel Silva, Raquel Magalhães e Vanessa Santos, citados na matéria “O
sonho que tomou forma”, publicada na primeira edição, apresentando o jornal. Fazia parte da
dinâmica e da metodologia expor e desenvolver ideias que pudessem ser reunidas por algum
Durante esse percurso inicial, duas características me chamaram atenção e podem ajudar
a pensar a situação como um todo: o fato de integrantes da Agência de Redes (“tutores”,
produtores, coordenadores e consultores), ao prestarem apoio aos projetos, também
participarem da fase de elaboração, com sugestões, levando em conta, por exemplo, suas
expertises nas áreas específicas das propostas apresentadas pelos jovens. Além disso, o caráter
de competição (presente, por exemplo, por meio das fases de seleção), entre jovens e seus
projetos, também pode ser observado. Acrescento as falas de Michel e Michele, mais abaixo,
sobre essa fase.
Minha proximidade com as três jovens que participaram da fase inicial do jornal foi
bastante limitada, uma vez que comecei a acompanhar o Fala Roça a partir da entrega da
terceira edição – quando uma delas, por exemplo, já havia saído da equipe, e as outras duas
moças estavam deixando o jornal. Do grupo inicial, apenas Michel permaneceu na equipe
durante todo o trajeto do jornal. Michele, sua irmã, foi produtora da Agência de Redes na
Rocinha, no período em que o jornal foi criado; portanto, viu o periódico nascer e o incentivou,
assim como fez com os outros projetos que estavam se formando, mas não participou das
oficinas, pois sua função na Agência era outra. Após a fase de seleção dos projetos do primeiro
ciclo, atuou na produção de todos eles e, assim como outros integrantes da ARJ, escreveu textos
publicados na primeira edição do Fala Roça. Conforme relatou em sua entrevista de história de
vida, ela passou a integrar a equipe do jornal, de fato, depois do seu desligamento da Agência,
em agosto de 2013.
Ao consultar o expediente do jornal, vê-se a seguinte configuração referente à produção
de conteúdo: Michel e Michele participaram de todas as edições; Gracilene Firmino participou
151
das três primeiras e da oitava (como colaboradora); Fabricio Souza e Raquel Magalhães das
quatro primeiras; Beatriz Calado participou da quarta à oitava edição. A partir da sexta edição,
novos colaboradores são acrescentados, alguns fixos: Rafael Araújo, na coluna “Lendas da
Rocinha”, e o Museu Sankofa Memória e História da Rocinha, na coluna “Memória”, atuam do
6º ao 8º números; Jorge Kadinho, no 6º e 7 º números. A oitava edição contou com a colaboração
de onze participantes de duas oficinas de Comunicação Comunitária realizadas pelo Fala Roça.
Quanto aos motivos do afastamento de integrantes que participaram da fundação do jornal,
soube apenas que teriam sido por falta de tempo para se dedicarem à produção das matérias.
Transcrevo narrativas de Michele e Michel sobre a época da fundação do jornal:
MICHEL. O jornal Fala Roça surgiu no final de 2012, durante o ciclo da Agência de
Redes para Juventude, aqui na Rocinha; eu já atuava com jornalismo aqui na Rocinha,
jornalismo comunitário, só que era na internet. [...] A Agência de Redes chegou com
a proposta de dar R$10 mil para as melhores ideias de projetos. Aí vi que, na Rocinha,
muita gente não usava internet e tive a ideia de criar um jornal impresso. Entrei pra
Agência de Redes, conheci outros jovens, só que cada um tinha uma ideia. Minha
ideia era um jornal, o outro gostava de fotografia, outro gostava de escrever, cada um
tinha uma ideia. Eu contei a minha pra eles, gostaram e a gente formou um grupo na
Agência (Michel Silva, entrevista em 17/07/2015).
Nessa fala, Michele chama atenção para a existência do portal Viva Rocinha, voltado
para informações sobre a Rocinha na internet, em que ela e o irmão já atuavam antes e durante
a época da oficina da Agência de Redes na favela. Composto por um site e páginas nas redes
sociais Facebook e Twitter, o portal foi criado por Michel, no fim de 2011, e logo passou a ter
também a participação de Michele na produção de conteúdo. Iniciada na época da entrada da
UPP na Rocinha, essa mídia foi a primeira iniciativa voltada exclusivamente para informação
em que ambos participaram. Ganhou visibilidade e quantidade razoável de seguidores em pouco
tempo; o reconhecimento veio também por meio de um prêmio da Fundação Natura. A chegada
de uma organização voltada para realizar projetos de jovens na Rocinha, naquele momento,
adquiriu um sentido de oportunidade de dar prosseguimento ao caminho, já experimentado por
152
116 Maiores detalhes sobre a metodologia desenvolvida pela Agência de Redes Para a Juventude estão
disponíveis em: http://agenciarj.org/a-agencia/.
117 Realizei cinco tentativas de entrevistas com a equipe da Agência de Redes para Juventude para esta
pesquisa, mas não tive sucesso. Em setembro e outubro de 2018, fiz contatos para marcar uma entrevista com
uma pessoa integrante da sua coordenação, mas houve três adiamentos e duas vezes fui aos locais, nos
horários marcados, mas houve contratempos e a pessoa não compareceu.
153
lugar na cidade, onde estes jovens sejam potentes, e não só representados como
carentes. Onde eles sejam reconhecidos como sujeitos criadores, não só como objetos
de ação social (Disponível em: http://agenciarj.org/a-agencia/. Acesso em: 05 mar.
2020).
Ao todo, três projetos foram contemplados no primeiro ciclo da ARJ na Rocinha: além
do Fala Roça, o Rociclagem (de reciclagem a partir de garrafas pet) e o Teatrar (voltado para
oficinas de teatro). Os dois últimos não prosseguiram por razões contextuais que acabaram
desmobilizando suas equipes. Para além dessas circunstâncias específicas118, outro aspecto foi
considerado relevante por um dos integrantes da Agência de Redes para o término dessas
iniciativas: os participantes eram muito jovens e acumulavam muitas responsabilidades. O Fala
Roça, embora submetido às mesmas condições, foi adiante – até o lançamento da oitava edição
impressa e, depois dessa, prosseguiu no ambiente da comunicação digital; o que instiga pensar
em elementos que possam ter contribuído para isso e de que forma foi possível prosseguir.
Dedico-me a pensar alguns deles no item ‘Sobre interações e brechas’.
Outro aspecto evidenciado nas falas foi o de que a fase de produção de conteúdo para
o site e as redes sociais do Viva Rocinha foi identificada por Michel como o seu início no
“jornalismo comunitário”: “Entrei no jornalismo comunitário e, na época, eu nem sabia o que
era jornalismo comunitário. Isso era uma coisa que fazia porque gostava”. Ainda na
adolescência, o seu interesse por “se aventurar” no mundo da criação de narrativas escritas já
tinha se manifestado, assim como a vontade de compartilhá-las. A forma inicial encontrada foi
usar o espaço do Tumblr, plataforma de blogs na internet, criada em 2007. O meio on-line já
era familiar para Michel e, nesse ambiente, começou a publicar textos e imagens em formato
de diário. Batizado de “Vida na favela!”, o Tumblr foi uma experiência curta, de cerca de um
mês, mas nela Michel já expunha sua visão sobre assuntos do cotidiano da Rocinha, narrando
acontecimentos – alguns deles ligados a situações de violência armada – na primeira pessoa.
As postagens foram feitas em setembro de 2011, e sua apresentação nesse espaço era a seguinte:
“Meu nome é Michel, tenho 17 anos. Nascido e criado na maior favela da América Latina, a
Rocinha. A noção de criar um tumblr foi para expressar as coisas que acontecem no meu dia a
dia nessa ‘cidade’ dentro do Rio de Janeiro, rs”. Segundo sua própria percepção, no entanto, foi
com o Viva Rocinha que a prática de compartilhar experiências por meio de narrativas on-line
ganhou mais amplitude.
118 Os motivos que levaram à interrupção destes outros dois projetos também aprovados no ciclo da Agência de
Redes para Juventude realizado na Rocinha em 2012 não foram objeto de estudo nesta pesquisa. Embora
tenha tomado conhecimento de algumas dificuldades enfrentadas por suas equipes, em conversas informais,
seria necessário obter maiores informações junto aos integrantes dessas iniciativas.
154
locais por intermédio das atividades de uma ONG, cujos objetivos se voltavam para estimulá-
los a desenvolverem projetos para o seu local de moradia; 2) a faixa etária dos participantes,
perto dos 20 anos, situava-os no começo de suas trajetórias profissionais; 3) o evento de maiores
proporções para os moradores da Rocinha, entre os anos de 2011 e 2012, havia sido a instalação
da Unidade de Polícia Pacificadora, com reflexos sobre o cotidiano da favela. Tratarei, a seguir,
dos dois primeiros itens, uma vez que o último já foi abordado no capítulo anterior.
Havia uma espécie de script a ser seguido, de acordo com o cronograma e a metodologia
da Agência de Redes para Juventude, quando suas atividades aportaram pela primeira vez na
Rocinha (em 2012) – diga-se de passagem, o mesmo formato adotado também em outras
favelas. A partir daí e nos entremeios das atividades a serem seguidas, somaram-se as vivências
da conjuntura local, contribuições dos colaboradores que apoiavam as ações programadas, além
das vontades dos jovens participantes. Para que fosse possível concretizar o projeto, o grupo
deveria chegar a um consenso sobre uma única ideia a ser realizada, ou seja: expectativas e
desejos diversificados precisariam ser acomodados em torno de uma só proposta – que veio a
se tornar o impresso. Além disso, fazia parte da programação das atividades uma dinâmica de
competição entre os projetos criados pelos jovens: somente aqueles aprovados por uma “banca
de seleção” poderiam receber o prêmio em recursos financeiros para começar a ser realizado.
Diferentes pontos de vista de teorias das Ciências Sociais poderiam ser úteis para ajudar a
pensar esse momento. Porém, aciono-os com cautela, uma vez que essa etapa do percurso do
jornal ocorreu antes do início da pesquisa que originou o presente trabalho, portanto, os
elementos de que disponho para analisá-la são mais limitados. Em razão disso, não me
proponho a um maior aprofundamento sobre essa etapa. As fontes empíricas são provenientes
de relatos dos integrantes do jornal que participaram das atividades mencionadas e,
posteriormente, tornaram-se meus interlocutores de pesquisa, além da consulta a documentos
da Agência de Redes sobre a sua metodologia de trabalho.
Pois bem, no campo teórico acerca das interações sociais há a contribuição, por
exemplo, de George Herbert Mead, que integrou uma geração de pensadores voltados para
refletir sobre a interação em sociedade nas primeiras décadas do século XX (além de ser
considerado um dos pioneiros a contribuir para o campo da psicologia). Em linhas gerais, Mead
reconhece o grande poder exercido pela sociedade sobre os indivíduos, mas também ressalta
que as pessoas não estão inertes a tal poder, pois sua capacidade simbólica lhes permitiria
“imaginar outra realidade, outros cenários sociais”, havendo possibilidade de “reagir, individual
156
119 Informações consultadas a partir da página da Agência de Redes para Juventude na internet e do documento
“Catálogo”, disponível no mesmo endereço: http://agenciarj.org. Acesso em: 21 dez. 2014.
157
MICHEL. O Jornal Fala Roça surgiu no final de 2012, durante o ciclo da Agência de
Redes da Juventude, aqui na Rocinha; eu já atuava com jornalismo aqui na Rocinha,
jornalismo comunitário, só que era na internet” (Michel, trecho de entrevista. Tema:
Jornal Fala Roça. Data: 17/07/15).
158
MICHEL. A Agência de Redes chegou com a proposta de dar 10 mil reais para as
melhores ideias de projetos aqui na Rocinha. Aí vi que, na Rocinha, muita gente não
usava internet; tive a ideia de criar um jornal impresso. Entrei pra Agência, conheci
outros jovens, só que cada um tinha uma ideia. A minha ideia era um jornal, o outro
gostava de fotografia, outro gostava de escrever, cada um tinha uma ideia. Eu contei
a minha pra eles, gostaram e a gente formou um grupo na Agência (Michel, trecho de
entrevista. Tema: Jornal Fala Roça. Data: 17/07/15).
tabloide120, como era o caso, demandou certas condições: no mínimo, era preciso ter mão de
obra especializada em diagramação (ou design gráfico) desse tipo de veículo editorial, mão de
obra relativa à produção do conteúdo (dos repórteres, de texto e fotografia, ao editor, passando
pelas funções administrativas), além da contratação dos serviços de gráfica para impressão.
Mesmo sendo o tabloide um formato menor (portanto com custos mais baixos) em relação ao
standard, característico dos veículos da imprensa escrita chamada de mainstream, tradicional
etc, trata-se de uma operação que demanda mais especialização do que os veículos impressos
de outrora, que eram bem artesanais. Nas favelas do Rio de Janeiro, o tabloide passou a ser
mais adotado, possivelmente, a partir da década de 1990 e início dos anos 2000, conforme
apontam alguns indícios121. Com essas circunstâncias em mente, irei me deter sobre o conteúdo
do periódico.
Legenda: Distribuição da 7ª edição do Jornal Fala Roça, na Rua 1, localidade na parte alta da Rocinha. Data:
12/12/2015. Fonte: a autora, 2015.
O Jornal Fala Roça faz parte de um conjunto de elementos e práticas culturais que
compõem uma realidade relativa à experiência de produção de informações em um determinado
contexto de espaço-tempo, envolvendo diferentes atores sociais, suas subjetividades e redes de
relações. Conhecer as especificidades da vivência desse jornal é fundamental para apreender a
trajetória, o discurso e (por que não?) o ‘espírito’ dessa mídia, que remete aos próprios modos
de vida da Rocinha. Por um lado, a meu ver, conecta-se com a história da favela, suas tradições,
memórias de ações coletivas e estratégias de sobrevivência; por outro, é expressão da produção
162
impressos), assim como em outros meios editorias122. Em 26 de maio do mesmo ano, o jornal
estava “na rua”, com festa de lançamento na Biblioteca Parque da Rocinha: a fase de elaboração
do periódico finalmente se materializava no seu primeiro número, com suas especificidades. A
primeira edição trazia oito páginas, oito seções internas (incluindo dois editoriais) e quatro
colunas123. Durante o ‘tempo do jornal’ (da primeira à última edição, em 2016), o número de
páginas se manteve fixo, a tiragem era de 5 mil exemplares e os seus espaços eram praticamente
todos dedicados à favela da Rocinha. Se considerarmos a população da favela em torno de cem
mil moradores (conforme o Censo PAC-Domiciliar da Rocinha, de 2009), teremos uma
proporção aproximada de um exemplar para cada 20 pessoas da favela. De maio de 2013 a
agosto de 2016, foram lançadas 8 edições – duas em 2013, duas em 2014, três em 2015 e uma
em 2016. As matérias eram, em geral, assinadas, preservando as individualidades dos
comunicadores por meio das autorias. Ao mesmo tempo, as fotografias passaram a ter maior
destaque, padronização quanto aos créditos e à qualidade da sua produção, a partir do número
quatro e principalmente do quinto.
Quanto à diagramação, houve reformulações, maiores ou menores) na maior parte das
edições – acréscimo ou supressão de seções, editorias e colunas, mudanças de nomes de
editorias; colunas se tornaram editorias, seções mudaram de lugar, etc. Essas características
podem refletir alguns fatores. Entre eles, as experimentações relativas ao início da experiência
de produção de um jornal impresso, junto a aprendizados, por parte da equipe, sobre elementos
gráficos que podiam chamar mais atenção dos moradores no dia a dia da favela. Ao mesmo
tempo, também havia limites relativos a diferentes dificuldades enfrentadas para manter o
veículo – desde operacionais (relativas ao tempo demandado pelas suas atividades), financeiras
e, ainda, relativas a contextos de conflitos armados na favela ocorridos durante a trajetória do
FR, ou seja, o jornal era “forjado nas práticas sociais”, conforme já situava Marco Morel em
relação à “imprensa de favelas” das décadas de 1970 e 1980 (MOREL, 1985, p. 124). Ao longo
dos três anos e três meses de existência do tabloide, houve uma dinâmica frequente de
(re)avaliação em relação à atuação do jornal e à produção de informação sobre o cotidiano da
Rocinha, muitas vezes, ocasionada por situações contextuais que levavam a equipe a refletir
122 Sobre a estreita relação entre a programação visual e o conteúdo do jornal impresso, Juarez Bahia esclarece
a função da diagramação, que abrange tudo que se insere na proposta visual do veículo. Trata-se do modo
de “arranjar textos e ilustrações na página” ou “recursos artísticos e técnicos usados para dar peso gráfico à
comunicação do veículo”. Em resumo, “é o design [...] que se destina a afetar e sensibilizar”.
123 As classificações referentes às seções internas do Jornal Fala Roça (editorias, colunas, etc.) foram
elaboradas no âmbito desta pesquisa.
164
sobre os rumos da publicação. Em última instância, situações como essas levaram à interrupção
da circulação do Fala Roça impresso, em agosto de 2016.
Falaram que tinha que ter algo novo – novo, criativo e original. Aí fiquei triste, né?
Mas começamos a estudar a história da Rocinha – como surgiu, qual contexto
histórico e tal. E constatamos que, na Rocinha, tinha uma grande quantidade de
nordestinos; o Nordeste estava muito ligado, tinha uma raiz muito forte. E tivemos a
ideia de criar um jornal dedicado à cultura nordestina na Rocinha (Michel. Entrevista.
Tema: Jornal Fala Roça. Data: 17/07/15).
Ainda na fase de elaboração do projeto do jornal, foi escolhida uma linha editorial para
o veículo. Conforme as lembranças de Michel, inicialmente, ele tinha expectativa de que o meio
de informação gestado na oficina da Agência de Redes para Juventude pudesse, de alguma
forma, conectar-se com experiências de mídia em que já participava na favela (em especial, o
portal Viva Rocinha). Porém, durante o processo de criação do Fala Roça, o grupo foi
aconselhado a criar um jornal “novo, criativo e original”. Conforme relatos de Michele e
Michel124, estimulados pela ideia de fazer um veículo “diferente” dos outros, os jovens foram
pesquisar características sobre a favela na internet e encontraram informações apontando a
presença significativa de nordestinos na Rocinha. Aparentemente, houve frustração pela
impossibilidade de dar continuidade a um meio de comunicação já existente, onde já haviam
conquistado interações consideráveis com os moradores; ao mesmo tempo, houve uma
‘descoberta’ ou maior consciência sobre as características regionais das raízes locais que, até
então, passavam um tanto despercebidas (no caso desses jovens).
Depois de tudo [de os projetos passarem na fase de seleção], tem a banca de avaliação,
pra ver se o projeto está dentro, dá “caldo” ou não. Ai, [perguntaram] pro Michel:
“Você vai fazer um jornal. Jornal tem um monte, qual a diferença do seu jornal pros
outros?”. Michel falou: “Pô, não sei”. Eu falei: “Entra na internet, vai procurar as
características da Rocinha que você não conhece e tal”. Não lembro mais como foi,
só sei que a gente, numa pesquisa, achou esses dados do Censo dizendo que mais da
metade das pessoas [residentes na Rocinha] era de origem nordestina. E falei: “Isso é
irado, porque não tem ninguém que faz, é uma característica que pode explorar”; ele
disse: “É ...” (Michele, trecho de entrevista. Tema: história de vida. Data: 02/03/2015).
A gente pensou assim: “Tá, valeu, fazer um jornal do Nordeste, mas o que a gente
sabe sobre o Nordeste? Ah, meu pai é isso, o meu é aquilo, minha mãe é aquilo. Então
a gente tá em casa, dá pra estudar com o que a gente tem aqui, pelo menos do começo”.
Tudo que tem na primeira edição é relacionado à nossa família. E tudo da festa de
lançamento também (Michele, trecho de entrevista. Tema: história de vida. Data:
02/03/2015).
124 Relatos referentes às entrevistas de história de vida de Michele Silva e Michel Silva.
165
Michel: O jornal tinha [um objetivo] e até hoje tem, que é contar a história de
nordestinos, contar a história de pessoas do Nordeste que moram na Rocinha, de
projetos sociais; é como se fosse jornalismo cultural mesmo.
Cristina: O que é jornalismo cultural pra você?
Pra mim, é falar de arte, lazer, música, pessoas. Então [o jornal] mistura um pouco de
jornalismo cultural com problemas da comunidade. A gente não pode negligenciar
que existe um problema ocorrendo ali e os moradores dão essas sugestões de
conteúdo. Se a gente não colocar, perdemos credibilidade, representatividade (Michel.
Entrevista em 17/07/2015. Tema: Jornal Fala Roça).
Nas falas de Michel localizadas acima, ele expressa o seu entendimento sobre os
objetivos do jornal vinculados à linha editorial da fase inicial do jornal focada num universo de
temas que remetiam à região do Nordeste. Agrega, ainda, o seu entendimento de esta pratica se
tratar de “jornalismo cultural”, o qual naquele contexto não se dissociava de falar dos
125 É importante ressaltar o fato de meus interlocutores terem sido sempre muito receptivos às minhas
solicitações e propostas de participação nesta pesquisa, o que não me impedia de perceber o quão ocupadas
eram suas rotinas de vida. Esse foi um dos poucos motivos que fez com que, em alguns momentos, não
solicitasse a sua colaboração. A elaboração das classificações referentes ao conteúdo do jornal foi um deles.
166
126 O estudo “Jornalismo popular nas favelas cariocas”, de Marco Morel, trata-se de um dos raros existentes
com relação a jornais impressos produzidos em favelas do Rio de Janeiro. A sua importância é descrita por
Claudia Santiago Giannotti, coordenadora do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC)
(https://nucleopiratininga.org.br/about/npc-quem-somos/): “Assim surgiu o importante Jornalismo Popular nas
Favelas Cariocas (Rio Arte, 1986), fundamental para quem deseja conhecer melhor essa história. Ele conta
que a pesquisa foi feita nas favelas da zona sul que produziam seus próprios jornais impressos” (GIANNOTTI,
2016).
127 Outros exemplos de jornais incluídos nesta definição de “jornalismo popular” proposta por Marco Morel são
os jornais de sindicatos e de camponeses, ligados diretamente a movimentos que os representavam (MOREL,
1986).
167
nos discursos de apresentação de mídias de favelas – como no caso do Jornal Fala Roça – e
também de uma pluralidade de movimentos sociais em lutas diversas no campo dos Direitos
Humanos e de cidadania. Djamila Ribeiro, com base na epistemologia do pensamento feminista
negro, entende lugar de fala como lugar social, ou as condições sociais às quais grupos,
coletividades, populações estão (historicamente) submetidos e, portanto, não diz respeito a um
plano individual. Diferentes condições sociais de vida e existência, mais ou menos
privilegiadas, irão proporcionar diferentes formas de experimentar e ver o mundo, o que não
significa que apenas indivíduos de dentro do próprio “lugar” possam falar de temas
relacionados a ele.
O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar
de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes
consequente da hierarquia social. Quando falamos de direito à existência digna, à voz,
estamos falando de lócus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade
de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que
somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo (RIBEIRO, 2017, p. 64).
Por outro lado, há relações de poder que conferem maior legitimidade a discursos de
grupos privilegiados ou, no que diz respeito à produção dos saberes, “[...] quem possui o
privilégio social, possui o privilégio do epistêmico [...]” (RIBEIRO, 2017, p. 24-25). É nesse
sentido que afirmar o lugar de fala do morador na mídia de favela é também disputar o poder
de criar as próprias representações de si, bem como o direito a ser escutado. Tais representações
são acionadas lançando mão da adesão a determinadas causas e pertencimentos identitários e à
diferenciação ou oposição em relação a outros.
Busquei perceber as dimensões dos pertencimentos identitários acionadas pelo grupo do
Fala Roça em textos de apresentação da mídia (editoriais e matérias do impresso, além da seção
“quem somos” em redes sociais e página on-line), em falas dos comunicadores e por meio do
trabalho de campo da pesquisa. Com base nessa consulta, notei elementos de pertencimento
identitário e diferenciação no plano simbólico – a partir da adesão ou oposição a narrativas,
causas etc – que se mantinham ao longo do tempo. Além disso, notei também abertura para
mudanças, incorporação de novos elementos e experimentações às apresentações do jornal, na
medida em que os jovens também incorporavam aprendizados diversos e constituíam seus
saberes. Estudos contemporâneos sobre pertencimentos identitários ressaltam as construções de
identidades e diferenças como processos indissociáveis, não cristalizados e não essencializados,
como é o caso do campo dos estudos culturais e dos pós-estruturalistas. Nesse sentido, Tomaz
Tadeu da Silva resume: “identidade e diferença estão em uma relação de estreita dependência”
(TADEU DA SILVA, 2000). Por sua vez, Michael Pollack, entende a construção identitária do
168
ponto de vista coletivo, chamando atenção para o fato de tal construção ser realizada em um
processo de permanente negociação com a alteridade. Ambas perspectivas dialogam com o
estudo de caso da presente pesquisa. Assim, busquei pensar sobre formas de apresentação do
jornal Fala Roça sobre si acionando, por um lado, a ideia da produção de identidade como uma
questão de performatividade, conforme propõe a filósofa Judith Butler e, por outro,
aproximando-me da concepção de identidade social utilizada por Pollack (1992).
Nesse sentido, as apresentações do Fala Roça passaram por algumas alterações ao longo
do tempo, como veremos, além de haver também relações de diferenciação e adesão que não
mudaram ao longo do seu percurso. Um elemento de diferenciação em relação a outros veículos
de mídia se manteve desde o início nas apresentações do jornal: o pertencimento ao lugar de
quem produz as narrativas – a favela. Já em termos de mudanças, houve acréscimos, como o
que diz respeito às novas gerações nascidas em favelas e as diferenças de expectativas de
trabalho em relação ao tempo dos seus pais. Antes de abordar essas formas de identificação
propriamente ditas, são úteis considerações a respeito do tema da autorrepresentação.
No contexto do uso de linguagens de comunicação e arte por moradores de favelas,
Fabiene Gama, pesquisou sobre dinâmicas em torno de formas de expressão criadas por grupos
que utilizavam principalmente a fotografia. Seu trabalho investigou duas agências de fotografia
em lugares distintos – uma situada no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, e a outra
em Bangladesh. Em comum, os grupos que formaram a Imagens do Povo e a Drik Picture
Library possuíam o incômodo trazido pelas imagens produzidas por profissionais da imprensa
que não viviam em seus territórios e tendiam a representar esses lugares de forma (que os grupos
consideravam) pejorativa. A partir daí, criaram iniciativas propondo, nas palavras de Gama, “a
elaboração de imagens endógenas” ou “autorrepresentações”, que produzissem representações
mais ‘profundas’, ou ‘mais verdadeiras’ dos ‘seus’” (GAMA, 2012, p. 2-4). Outro elemento
observado nos dois casos foi o fato de essas representações suscitarem visões homogeneizantes
em relação aos grupos aos quais se contrapunham e aos próprios grupos retratados. Em sua
pesquisa, a análise se concentrou nas imagens produzidas por fotógrafos sobre o ambiente onde
viviam. Já no presente estudo, a análise de conteúdo se concentra na versão impressa do Fala
Roça, ou seja, uma forma de comunicação predominantemente letrada, na qual a escrita se
insere como linguagem principal (embora fotografias estejam presentes no impresso e em suas
plataformas de mídia digital, além de haver a intenção de uso crescente do audiovisual).
Registre-se também a existência de elementos gráficos na diagramação do jornal e de
infográficos para apresentar informações, combinando texto e imagem (elementos visuais
169
também são levados em conta nestas análises, porém, um aprofundamento maior demandaria
esforços futuros de pesquisa).
Inicio por marcadores de identidade e diferença presentes na forma como o Fala Roça
se define em alguns espaços de apresentação do veículo, em seguida, abordo algumas ausências
percebidas nas formas de autorrepresentação do jornal. Quanto à forma de denominar o meio
de informação em si, pelo que foi possível notar, não houve muitas variações nas suas
autoclassificações – apenas “jornal” ou “jornal impresso” eram as principais; houve também
menções a “projeto”, no início da sua trajetória e, em tempos mais recentes, usam a expressão
“ferramenta colaborativa” para se definirem. No caso de veículos jornalísticos, elementos de
apresentação da mídia, em geral, são explicitados em espaços tradicionalmente destinados à
exposição de opinião, como os editoriais128; mas outros lugares, como matérias, imagens e
colunas, também indicam posicionamentos, ideologias, pertencimentos identitários etc. Os
espaços consultados foram editoriais, matérias e apresentações da mídia na sessão “quem
somos” em suas páginas na internet. Atentei também para mudanças que ocorriam nessas
formas de apresentação.
Na edição de estreia do jornal, a organização dos espaços de apresentação de propostas
e dos responsáveis pela mídia nos informam sobre algumas características e relações nesse
período inicial da mídia. Dois textos trazem o título de “editorial”, escritos respectivamente na
segunda e na última páginas: o primeiro assinado por uma pessoa que ocupa o cargo de “editor-
chefe” e o segundo por um “coordenador” da Agência de Redes para Juventude. Ou seja, ambos
não escritos pelos jovens moradores da Rocinha que participaram da elaboração do projeto do
jornal. Enquanto o primeiro traz uma visão distanciada da vida local, o segundo tem um formato
aproximado ao chamado “institucional”, apresentando principalmente a ARJ. Portanto, noto
que os editoriais – principais espaços de opinião/apresentação do jornal – deste número não
foram destinados à fala dos jovens da favela, fundadores do veículo. No que se refere à
apresentação dos jovens da favela integrantes do grupo que formou o jornal e aos seus objetivos,
interessa olhar para outro texto, publicado na página 4 dessa mesma edição impressa, onde
estão presentes elementos que indicam pertencimento à Rocinha, dentre outros aspectos
identitários. Assim, suas falas e rostos (por meio de duas fotografias) se fizeram representar no
texto intitulado “O sonho que tomou forma” (já mencionado no capítulo 4 da tese), cuja
introdução o situa como inserido na coluna “Baião de Dois”, conforme trecho reproduzido
128 Segundo Ana Arruda Callado (jornalista e professora de jornalismo desde a década de 1970), “o editorial é o
artigo não assinado que transmite a opinião da empresa jornalística como um todo e não de algum redator ou
colaborador em particular” (CALDAS, 2002, p. 53).
170
abaixo. Nesta narrativa, a autora, Michele Silva, nascida e criada na Rocinha, apresenta a mídia
– seus realizadores, objetivos, a quem se destina e o tipo de comunicação que pretende realizar.
Acreditamos que o acesso à informação é um bem a que todos devem ter acesso. Nossa
comunidade é rica em histórias e pessoas interessantes. Sabemos que a expansão da
Rocinha se deu muito por conta da chegada dos nordestinos, por isso o nosso jornal
contará com o toque especial do Nordeste. Iniciamos hoje uma parceria entre o FALA
ROÇA e a Rocinha [...]. (Parte inicial do texto “O sonho que tomou forma”, publicado
na coluna “Baião de Dois”. Jornal Fala Roça, 1 ed. p. 4. Data: 26 de maio de 2013.
Autora: Michele Silva)
Logo de início, o texto destaca a intenção de produzir informação a partir de uma visão
interna da Rocinha e direcionada aos moradores, enfatizando que o público e os produtores da
mídia fazem parte do mesmo lugar de origem. A mesma ideia é reiterada ao tratar do objetivo
do jornal – “oferecer informação sobre a comunidade da Rocinha para os moradores” – e na
sua concepção como uma iniciativa de comunicação comunitária, onde o povo participa como
“gerador de conteúdo” e não só como “receptor”. A informação é vista como um “bem” ao qual
todos devem ter direito de acesso. Além disso, a característica do pertencimento regional, das
raízes da população local relacionadas ao Nordeste é também apresentada como parte do
enfoque do impresso. Na parte final do mesmo texto (reproduzida no capítulo 4), Michele
descreve como foi o surgimento do Fala Roça.
Uma diferença significativa desse texto para os editoriais publicados nessa mesma
edição é a sua perspectiva de pertencimento à favela. Enquanto os editoriais apresentam uma
perspectiva distanciada da Rocinha, neste, o pertencimento de quem escreve é evidenciado. Na
época (pouco antes de maio de 2013), a jovem moradora ainda atuava como produtora da
Agência de Redes para Juventude, portanto, não fazia parte da equipe do jornal. Em suas
palavras, fez parte de um “conselho” consultivo do jornal, junto com outros integrantes da
Agência e consultores externos, que prestaram apoio pontual ao jornal e também escreveram
171
textos na primeira edição. Essa narrativa mais distanciada da equipe do jornal se mostra
presente ao usar a terceira pessoa do plural, ‘eles’, quando apresenta os participantes. Seu
ingresso na equipe se daria somente a partir de agosto do 2013. Porém, ela não deixa de
expressar o seu pertencimento à Rocinha em trechos como “Nossa comunidade é rica em
histórias e pessoas interessantes”.
“Quem somos”
O Fala Roça se difere dos veículos de comunicação tradicionais por apresentar uma
visão da comunidade sobre ela mesma. Para isso, o jornal se propõe uma ferramenta
colaborativa, que objetiva a participação de moradores da Rocinha na produção de
conteúdo, frisando o contato com as novas gerações que têm grande interesse nessa
participação por dominarem com bastante habilidade as ferramentas de comunicação
contemporâneas. Se a herança nordestina na Rocinha e, mais amplamente, na cidade
do Rio de Janeiro, é inegável, as gerações dos descendentes de imigrantes nordestinos
ou as gerações mais recentes dos que chegam mostram uma transformação na
perspectiva de busca por oportunidades de estudo e trabalho na cidade129
(www.falaroca.com, seção “Quem somos”. Acesso em: 15 abr. 2017).
129 Apresentação do Fala Roça no seu site na internet. Disponível em: www.falaroca.com, na seção “Quem
somos”. Acesso em: 15 abr. 2017.
173
lateralmente e que demandam uma agenda de pesquisa mais específica, a ser explorada em
momentos futuros.
Por fim,
Escolhida a linha editorial, era preciso encontrar um título para a publicação. Após um
novo exercício de trocas de opiniões, saberes, brincadeiras e negociações, o grupo chegou a um
consenso: Fala Roça. O direito a ter voz aparece, de imediato, nos dizeres e na logomarca,
composta pelas palavras do título em vermelho e preto, incorporando um alto-falante no lugar
da letra ‘o’. Seguem as memórias de Michele e Michel sobre a escolha do nome do jornal:
Os projetos passaram [na banca de seleção], eles [integrantes do Jornal Fala Roça]
passaram, aí a Agência contratou um designer pra fazer a marca gráfica de todo
mundo. Botaram um galo pra representar o Fala Roça... Falei: “Um galo? Meu Deus
do céu, um galo não, tem que ter alguma coisa a ver com comunicação!”, e fizeram
aquele alto-falante [o megafone que passou a fazer parte da marca do jornal]. Achei
bom; achava que aquela cor – preto, branco e vermelho – era muito Flamengo e eu
odiava, mas todo mundo queria [saber] minha opinião. Só que quando eu chegava na
reunião, só descia o sarrafo: “Nome feio, muito ruim” [risos] (Michele, entrevista de
história de vida, em 02/03/2015).
O nome Fala Roça é justamente isso: “Fala” – o morador tem voz, pode ter voz, pode
ser protagonista do jornal – e o “Roça”, de Rocinha, porque a Rocinha surgiu através
de uma roça, né? E roça também é negócio de nordeste. Aí o nome pegou: Fala Roça
(Michel, entrevista em 17/07/15).
Editoriais
Foram publicados dois textos com título de “editorial” na primeira edição do Jornal Fala
Roça: um, na página 2, e outro, na página 8. O primeiro, “Energia que renova”, é assinado por
uma pessoa que aparece no expediente do jornal como “Editor-chefe”. Pelo que pude perceber,
tratou-se de uma colaboradora presente na fase inicial do jornal, quando as suas práticas ainda
estavam se estruturando. O segundo, “Geração Agência”, é assinado por um dos coordenadores
da Agência de Redes para Juventude, cuja identificação no expediente é “Coordenador”. O
texto da página 2 é o que ganha maior destaque, por ocupar página inteira, incluindo os
elementos gráficos que o acompanham. É escrito em linhas brancas sobre fundo preto e há um
retrato da autora, de 9cmx9cm. Complementam a diagramação uma ilustração de serpentinas
de carnaval e o ano “2013”, escrito em letras grandes.
Dessa forma, a edição que primeiro materializou as ideias dos moradores voltadas para
a criação do jornal trouxe dois editoriais (texto que, em geral, carrega a opinião do veículo),
mas nenhum deles escrito pelos jovens que haviam participado da sua elaboração. Essa
175
circunstância específica não foi abordada nas entrevistas feitas com os comunicadores e pode
comportar algumas nuances. Dois aspectos que foram mencionados em suas falas dizem
respeito ao fato de a maior parte dos integrantes ter se conhecido nas oficinas da Agência de
Redes e não possuir experiência na feitura de um jornal impresso. Além disso, estavam
previstos apoios e orientações da Agência para os projetos que se formavam. De acordo com as
descrições do seu programa de atividades130, ao longo das fases dos “Estúdios de criação”, havia
interações frequentes entre os jovens e outros atores sociais variados que acompanhavam os
projetos. Os “Estúdios” são compostos por quatro fases – “Ciclo de estímulos”, “Banca de
formadores de opinião”, “Incubadora” e “Execução dos projetos”. Na fase final, há a seguinte
descrição: “Os jovens trabalham na realização de todas as etapas do seu projeto, tendo o tutor
como apoio”. Nos primeiros números do Fala Roça, a equipe do jornal contou com a
participação de editores “externos” (em relação ao grupo de jovens que participou da criação
da mídia).
Destaco, a seguir, trechos iniciais do editorial “Geração Agência”, publicado na
primeira edição do Jornal Fala Roça (maio de 2013), escrito por um dos coordenadores da ARJ
na época. A intenção é perceber as informações que foram consideradas relevantes para
constarem no jornal.
Você tem em suas mãos a primeira edição do jornal FALA ROÇA. Iniciativa fruto do
trabalho do projeto Agência de Redes Para Juventude, realizado pela Avenida Brasil
– Instituto de Criatividade Social. O projeto visa formar e mobilizar jovens atores na
cena da política pública social. Atendendo jovens das 22 comunidades do Rio de
Janeiro, com Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs [...]. O objetivo é contribuir e
alargar o conceito de pacificação e segurança, desenvolvido nestas comunidades
através da instalação das chamadas UPPs, através da construção de práticas sociais
territorializadas no âmbito da produção de linguagens culturais, técnicas e cientificas.
[...] (Jornal Fala Roça, impresso, n. 1, p. 8, maio de 2013).
130 Tais informações fazem parte do documento “Catálogo”, baixado da página da Agência de Redes para
Juventude na internet. Atualmente, esse documento não se encontra mais disponível na página.
(http://agenciarj.org/)
176
Quanto ao editorial “Energia que renova”, o texto possui um tom de comemoração com
o lançamento da nova mídia. Destaco dois trechos abaixo, que podem ser conectados com
análise posteriores a respeito das representações presentes no conteúdo das páginas internas do
jornal. Nestas representações, sobressaem-se características de superação de dificuldades dos
moradores.
As tabelas abaixo pretendem fornecer uma noção sobre as principais seções internas do
jornal, aqui separadas em editorias e colunas, nas quais é possível notar, por um lado, uma
dinâmica de variações e, por outro, de permanências. Algumas seções são descontinuadas ou
alteradas, porém, caso não consideremos a existência de uma distinção entre editorias e colunas,
grande parte dos temas que nomeiam essas seções se manteve de um número para o outro,
apesar de mudarem os formatos de diagramá-las e seus sinais gráficos. De qualquer forma,
mudanças e permanências podem (e devem) ser entendidas como parte e à luz das
circunstâncias cotidianas (ASKEW, WILK, 2002). Voltarei a tratar desse assunto nas análises
das capas e de cada edição do jornal, mencionando conteúdos abordados também nos seus
espaços internos.
Nesta tese, foi elaborada uma forma própria de classificação desses conteúdos (da
maneira como a apreendi), mas é importante frisar que há outras interpretações possíveis – por
mais óbvio que possa parecer fazer a ressalva131. O critério que adotei na minha interpretação
foi o dos traços da linguagem jornalística convencional, relativa ao meio impresso. Desde logo,
é preciso destacar que a intenção de usar essa ‘régua’ de medida não teve intuito de comparar
131 Guiei-me pela apresentação gráfica do jornal para deduzir o que eram editorias e colunas no jornal:
considerei editorias os títulos que aparecem no alto das páginas, com fonte em tamanho maior, ganhando
mais destaque; por sua vez, considerei como colunas seções cujos títulos são antecedidos por um mesmo
sinal gráfico e uma linha a divide do restante do conteúdo na página. Outras seções aparecem com as
mesmas características gráficas, mas não são assinadas (como “Cursos”); considerei-as como “outras
seções”.
177
Editorias
E aí como é Colcha de Reportagem Guia cultural Você Megafone
1ª edição
[formato [formato de
de editoria]
editoria]
Reportagem Você Megafone Esportes Delícia
3ª edição
Reforma gráfica
Colcha de Reportagem Guia Você Da minha Queremos Delícia
retalhos ímpar cultural conhece? janela saber [formato de
6ª edição
ver [formato
de
editoria]
Legenda: Sublinhadas - editorias que permanecem em 3 ou mais edições do jornal.
Fonte: Jornal Fala Roça impresso (edições 1 a 8). Data: maio/2013 a agosto/2016. Disponível em:
http://falaroca.com/.
179
Dois
Dois editoria]
Delícia Colcha de
[formato de Retalhos
4ª edição
editoria] [formato
coluna]
editoria] empregos
Nordesti úteis
nês
Fonte: Jornal Fala Roça impresso (edições 1 a 8). Data: maio/2013 a agosto/2016. Disponível em:
http://falaroca.com/
página, destacados pelo tamanho maior da fonte (letras), posicionados junto a linhas que
pareciam demarcar grande parte do conteúdo como pertencentes a um mesmo assunto. Na
linguagem jornalística tradicional, as editorias são as principais divisões temáticas de um
veículo de informação, portanto, seus títulos aparecem com algum tipo de destaque e identidade
visual entre si. As colunas, costumeiramente, localizam-se dentro das editorias. Cada número
do Fala Roça teve entre 6 e 8 editorias (incluindo aí o editorial). Considerei como “colunas” as
descritas com esta classificação pelo próprio jornal e outras de tipologia e diagramação
semelhantes. Quanto ao restante do conteúdo, chamei de “outras seções”.
Considerando essas divisões, as editorias, colunas e demais seções, mudaram de formato
com certa frequência, dando a entender que algumas editorias se assemelhavam a colunas e
vice-versa, a julgar pelo tamanho dos espaços que ocupavam incialmente (encolhendo ou
aumentando de um número para o outro) e elementos gráficos que a identificavam, como linhas
e cores. Por esse motivo, algumas editorias são apresentadas também como colunas no Quadro
2. Um exemplo é o caso da seção “Baião de Dois”: na primeira edição, apresentada como
“coluna”, ocupando meia página, descrita da seguinte forma: “Os idealizadores deste projeto
criaram a coluna “Baião de Dois” com o propósito de esclarecer possíveis dúvidas sobre o
projeto FALA ROÇA. A intenção é que você morador colabore conosco (...)”. Na segunda
edição, o título da seção aparece maior, no alto da página, e o conteúdo sob a mesma ‘retranca’
é de página inteira, sugerindo ter se aproximado do formato de uma editoria. A matéria que
aparece sob essa retranca é a do lançamento do Jornal Fala Roça, portanto, há uma clara
intenção de dar maior importância a esse conteúdo, por meio do tamanho que ocupa na página.
Já, no terceiro número, a seção aparece de forma similar ao primeiro, assim como no quarto e
no quinto, quando volta a ocupar meia página. A partir do sexto número do jornal, “Baião de
Dois” não aparece mais.
No tocante às editorias, especificamente, aquela que se manteve em todos os números,
sem alterações, foi “Reportagem ímpar”, que, à exceção do número três, foi o local destinado
às matérias de capa do jornal e, excluindo a sexta e a sétima edições, tratou de problemas
crônicos de infraestrutura enfrentados na favela. Quanto às outras editorias, são elas:
“Megafone” é o espaço destinado aos leitores, também presente em todas as edições, sendo que,
a partir da quarta edição, passa a se chamar “Da minha janela posso ver” e muda a linguagem,
de mensagens escritas, para fotografias enviadas pelo público; “Você conhece?” está presente
em sete edições, remetendo a diferentes assuntos, conforme a interrogação do nome da seção
pode sugerir: temáticas nordestinas, perfis de pessoas e grupos ligados a atividades
artísticas/culturais, o consumo de roupas usadas na Rocinha e atividades gratuitas de cultura e
181
educação oferecidas por uma ONG, que também cede seu espaço para uso dos moradores;
“Delícia”, dedicada a receitas e assuntos culinários, saiu em sete edições, embora alternando
aspectos de editoria e coluna, e passou a se chamar “Culinária” na sétima edição; o “Editorial”
deixou de sair na segunda e quarta edições; o “Guia cultural” saiu em três edições e, na sétima,
aparentemente, mudou de nome para “Passatempo”, saindo também na oitava; “E aí como é
que fica?” aparece em três números e também se tratou de um espaço para discussão de
problemas do cotidiano; “Mostra Nordeste” e “Esportes” saem em três edições; “Colcha de
retalhos” aparece em duas, abordando histórias de moradores; “Sociedade” surge nas últimas
duas edições, referindo-se à história de uma moradora que passa no exame da Ordem de
Advogados do Brasil (OAB), em sua 8ª tentativa, e à oficina de comunicação comunitária do
Fala Roça.
Quanto às colunas do jornal, no primeiro número, presumo terem sido quatro:
“Queremos saber”, “Baião de Dois”, “Delicia” e “Mostra Nordeste”. Segundo consta nos textos,
“Baião de Dois”, “Queremos saber” e “Delícia” são apresentadas como colunas; “Mostra
Nordeste” segue o mesmo estilo da tipologia do título e das marcas gráficas usados das demais
colunas, por isso a sua inclusão nessa classificação. “Delícia” é uma seção que aparece em
quase todos os números do jornal, à exceção do último, a despeito da variação em seu formato.
Inicialmente, é apresentada como coluna, mas ganha ares de editoria do terceiro ao sexto
números; no sétimo, volta a ocupar meia página e ganha outro nome: passa a se chamar
“Gastronomia”. Uma das razões para o maior destaque que essa seção foi tomando pode ser
sugerida a julgar pelo número expressivo de pessoas (ambulantes, donos de barracas) e
comércios na Rocinha voltados para o ramo alimentício em geral 132, “Mostra Nordeste” foi
publicada na primeira e segunda edições, com formatos distintos, e vale salientar que a temática
nordestina aparece em muitas outras seções (mesmo que os nomes das seções não identifiquem
esta especificidade). “Queremos saber” apresenta histórias de moradores da Rocinha – um
nordestino; um carioca que foi morar no Nordeste; mãe e filha, nordestinas, que se
reencontraram depois de 40 anos sem contato e um estrangeiro que foi morar na favela. “Colcha
de retalhos” também varia o formato e traz histórias e perfis de moradores locais – todos
132 Dados sobre as atividades empresariais na Rocinha foram levantados pelo Censo Empresarial da Rocinha,
que fez parte do Censo Favelas PAC, realizado em 2009, pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos,
órgão então ligado à Secretaria da Casa Civil do Governo do Estado do Rio de Janeiro (EGP-Rio). Esse
levantamento apresenta, quanto aos ramos de atividades empresariais, 12 relacionadas ao comércio de
gêneros alimentícios em geral. No universo de 6.529 empresas ou empreendedores, formais ou informais,
identificadas em toda a Rocinha, esses setores, somados, representam a maior porcentagem de atividades
encontradas, totalizando 19% delas. Os setores aqui considerados foram: bebidas, alimentos, doces, carne,
lanches, pão, frutas-verduras-legumes, salgados, bolos, balas, biscoitos e sorvetes.
182
nascidos no Nordeste -, sendo que uma das retratadas é familiar de Michel e Michele: Josita
Maria da Silva, sua mãe, paraibana, que foi visitar sua terra natal pela primeira vez 30 anos
depois de ter vindo morar no Rio. “Oportunidades e empregos” é publicada somente na quinta
edição. “Lendas da Rocinha” está presente da sexta à oitava edição, assim como o espaço
dedicado à “Memória” – no número 6, o texto apresenta o Museu Sankofa Memória e História
da Rocinha e a partir do sétimo número, esse espaço passa a se chamar “Memória” e é de autoria
do mesmo Museu. “Lendas” também se refere a antigos moradores da favela.
Entre as demais seções, novamente surgem temáticas nordestinas: “Aprendendo
Nordestinês” traz expressões ou gírias que têm raízes regionais, em tom bem-humorado. E há
os espaços para anúncios, que aparecem em quatro edições, ou seja, grosso modo, em metade
do seu percurso, o veículo recorreu (ou teve possibilidade de recorrer) a este tipo de recurso
para contribuir com a sua sustentabilidade. As mudanças mencionadas, principalmente de
nomenclaturas ou formatos relativas à estrutura do impresso, são compreendidas neste trabalho
como formas de experimentações em relação à linguagem jornalística e à sua interseção com
saberes tradicionais da favela.
Analisar as edições do Jornal Fala Roça se tornou um desafio pelo fato de, durante o
tempo da pesquisa, a produção do impresso ter sido paralisada, sem intencionalidade, pela sua
equipe após a última edição publicada (a oitava). Os planos para o lançamento da edição
seguinte continuaram, mas esse processo não chegou a ser finalizado até o encerramento do
trabalho de campo desta pesquisa (2018). Portanto, considerei o impresso interrompido – não
encerrado – em agosto de 2016, data da última edição. Junto a isso, enfatizo que as
representações contidas nos oito exemplares lançados dizem respeito a um período específico,
vinculado a um determinado contexto, não se tratando de um planejamento deliberado e
encerrado. Para pensar sobre a forma como o jornal representou a Rocinha, farei uma breve
consideração sobre o conceito de representação social, importante em diferentes áreas de
conhecimento.
Segundo Denise Jodelet, representações sociais são “sistemas de interpretação, que
regem nossa relação com o mundo e com os outros, orientando e organizando as condutas e as
comunicações sociais”. Ana Lucia Enne apresenta um panorama sobre concepções relativas às
representações sociais ao analisar a categoria de “vândalo”, usada por veículos da grande
183
imprensa, mas também apropriada por vozes “contra hegemônicas”, durante as manifestações
de 2013 em todo o país. Suas considerações podem ser úteis para refletir sobre o caso do FR.
Por um lado, de fato, como demonstra Moscovici, elas [as representações] garantem
a coesão social, alicerçando identidades, memórias e narrativas de pertencimento e
reconhecimento da realidade. Mas de outro, são objetos de disputa por sujeitos e
grupos, em torno dos sentidos. São discursos em conflito, negociação, acomodações,
processos, evidenciando seu caráter de construção, bem como seu importante papel
na constituição das identidades coletivas. Desempenham, portanto, papel de mediação
cultural importante, por isso o seu aspecto comunicacional, de partilha, ser tão
decisivo (ENNE, p. 179, 2013).
Toda a edição tem uma reportagem na capa que é um problema social na Rocinha ou
uma história muito interessante. Mas o foco mesmo é um problema social, pra dar
mais visibilidade ao jornal. Aí, aqui, a gente colocou uma reportagem inteira sobre o
teleférico Michel (Entrevista. Tema: Jornal Fala Roça. Data: 17/07/15).
Escolhi priorizar, na análise documental do Jornal Fala Roça, o conteúdo publicado nas
capas das edições impressas pela necessidade de estabelecer um recorte analítico mais restrito
e viável de abarcar na pesquisa. Outra motivação considerada foi o fato de as capas (ou
primeiras páginas) serem um espaço de síntese dos elementos contidos nos veículos de
informação e editoriais em geral. “Ao almejar a captura da atenção do leitor, a capa é o espaço
de síntese do jornal e da revista. Cabe a ela veicular, como se fosse um display ou cartaz
publicitário, o que há de diferente no conteúdo da mídia em questão e a informação que o leitor
não deve ficar sem consumir” (CUNHA, 2007, p. 4). Guardadas as devidas dimensões de
diferenças existentes entre jornais da chamada grande mídia e veículos menores - de circulação
mais reduzida e com objetivos distintos -, os seus formatos têm aproximações no que diz
184
Legenda: Edições 1 a 4 do jornal - Na parte superior da página, n.1 (maio/2013), à esquerda, n. 2 (agosto/2013),
à direita. Na parte inferior, n. 3 (fevereiro/2014), à esquerda, n. 4 (agosto/2014), à direita. Edições 4 a 8 - Na
parte superior da página, n. 5 (fevereiro/2015), à esquerda, n. 6 (agosto/2015), à direita; na parte inferior, n. 7
(dezembro/2015), à esquerda, n. 8 (agosto/2016), à direita.
Fonte (a) e (b): Jornal Fala Roça impresso. Acesso em: http://falaroca.com/
188
Em relação às capas das oito edições lançadas, pode-se considerar que quase todas as
matérias em destaque abordaram diretamente assuntos de interesse coletivo e que diziam
respeito à vida no âmbito local da favela. Na visão de um dos integrantes do jornal, Michel, os
temas predominantes na primeira página remetem a uma expressão: “problema social”. Já para
Michele, também comunicadora do FR, são temas “polêmicos”. Quanto às motivações para a
escolha desses temas, Michel acrescentou: “A gente não pode negligenciar que existe um
problema ocorrendo ali e os moradores dão essas sugestões de conteúdo. Se a gente não colocar,
perdemos credibilidade, representatividade”. Quanto ao que entende por tema polêmico,
Michele exemplifica, em alusão ao assunto da construção do teleférico na Rocinha: “era um
tema que mobilizava todas as rodinhas de conversa, tanto da galera mais politizada quanto da
galera mais leiga, mais desabastecida”. Com base também nos relatos dos comunicadores,
percebi que o conjunto das matérias de capa do jornal remete a uma representação quanto aos
problemas sociais enfrentados pelo conjunto dos moradores da Rocinha, sendo assunto de
interesse dos diferentes grupos de moradores, desde os “politizados” até os mais “leigos”,
conforme as palavras de Michele. No quadro ‘manchetes de capa, por recorte temático’, noto
que 07 reportagens de capa remetem a assuntos que abrangem o plano coletivo dos moradores
da favela. E outra característica é fato estes assuntos serem reconhecidos por comunicadores
como “problemas sociais” e “polêmicos”.
Vejamos um panorama dos títulos e subtítulos das manchetes publicadas nesses espaços:
Edição 6 “Rio antigo: a fazenda Quebra “Barracos começam a subir o morro no início dos
agosto/2015 Cangalha e a origem da Rocinha” anos 50”
189
“Casal abre empresa de bolos após “Allan e Bárbara decidiram investir no ramo da
Edição 7 perder o emprego e conquista alimentação vendendo bolos de pote’
dez/2015 clientela”
Edição 8 “O que a Olimpíada deixou para o Rio “Veja a opinião de moradores”
agosto/2016 e a Rocinha?”
Fonte: Jornal Fala Roça impresso (edições 1 a 8). Data: maio/2013 a agosto/2016. Acessível em:
http://falaroca.com/
133 No jargão jornalístico, “factual” se refere ao assunto que está acontecendo no momento. A cobertura
jornalística desses assuntos costuma ser mais ágil e mais superficial.
190
(Des)emprego/empreendedorismo - Trabalho 1 7
Fonte: Jornal Fala Roça impresso (edições 1 a 8). Data: maio/2013 a agosto/2016. Acessível em:
http://falaroca.com/
Ao longo de três anos e cerca de três meses, os temas abordados pelo Fala Roça, de uma
forma geral, cobriram um espectro amplo em que praticamente cada edição abordou um assunto
relevante do cotidiano da Rocinha. Foram eles: preocupações com obras de infraestrutura do
PAC, mobilidade pública (transporte), segurança pública, custo de vida (associado à moradia),
questões de saúde face ao problema crônico do destino do lixo, a valorização da história local,
o desemprego ou o “empreendedorismo” entendido como uma via “para enfrentar a crise” e os
grandes eventos esportivos, com seus impactos para a favela e a cidade. As questões de
infraestrutura urbana podem ser entendidas como tema que perpassa, mais diretamente, quatro
das oito pautas que ocuparam as capas do jornal.
Outra observação pode ser feita em relação ao conjunto de temas mais destacados por
esse jornal: é possível notar uma proximidade entre tais assuntos e os que mobilizaram
“movimentos populares” atuantes no Brasil entre 1970 e 1990, conforme estudo de Ana Maria
Doimo134. Sem pretender um aprofundamento nas categorias de movimentos denominados de
“populares” ou “sociais” (com suas contradições, ambiguidades etc.) analisadas por Doimo, por
ora interessa notar a proximidade entre as “causas” que se tornaram seus principais emblemas
de atuação e os temas destacados pelo Fala Roça. Não desconhecendo o caráter “diverso,
fragmentado e localizado” dessas mobilizações, os movimentos “reivindicativos”
representativos de 1975 a 1990 se agruparam em torno das seguintes denominações:
134 Em A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70, de 1995, Ana
Maria Doimo observa a importância de as interpretações de tais fenômenos levarem em conta as distinções
entre os “movimentos sociais em geral”, em voga nos anos 1990, e o “movimento popular” no Brasil da
década de 1970 e meados dos anos 1980. Enquanto os últimos “constituíram um complexo ciclo
reivindicativo, desprovido de institucionalidade própria e orientado por certa ‘pedagogia popular’ refratária à
institucionalização política, ancorado em uma complexa interação seletiva entre determinadas instituições,
formações e tradições”, os primeiros, geralmente entendidos como portadores de uma “novidade”, situam-se
numa “posição liminar (grifo da autora) entre o Estado, o mercado e a cultura, o que os torna profundamente
oscilantes entre a defesa do estatismo e a reivindicação das vantagens do mercado” (DOIMO, 1995, p. 221).
191
Legenda: Não inclui os editoriais. “Espaço do leitor”, “Culinária” e “Memória” podem ser considerados espaços
“fixos” no jornal, embora não tenham sido publicados em todas as edições.
Fonte: Jornal Fala Roça impresso (edições 1 a 8). Data: maio/2013 a agosto/2016. Acessível em:
http://falaroca.com/
As páginas internas do jornal são repletas de histórias de moradores locais. Estes foram
os temas mais frequentes em todo o veículo, exceto na capa, onde predominaram grandes
problemas coletivos presentes na favela. Ao todo, foram 22 histórias distribuídas pelas oito
edições, que não trazia um número fixo de narrativas – em geral, eram entre duas e quatro por
edição. Em todo o conteúdo, os temas que ocuparam mais espaço (em números absolutos)
foram: histórias de moradores (22); Nordeste (19); memória/história da Rocinha (11) e
infraestrutura urbana (10). Abaixo, segue uma lista das histórias publicadas, por edição, com os
nomes dos personagens. Emocionantes, as histórias abordadas pelo jornal são todas verídicas e
cumprem o importante papel de contribuir para tecer o “amarrado” que compõe histórias e
memórias relativas à favela. Ao mesmo tempo, outra característica deste conteúdo produzido
pelo jornal é o desfecho predominantemente positivo das histórias selecionadas para serem
contadas, levando em conta as oito edições impressas, nas quais este estudo se concentra. Com
exceção das histórias de Amarildo e, dependendo do ponto de vista, a do Tio Lino, todas
possuem enredos marcados por situações de superação de dificuldades. Nesse cenário, ficava
de lado um contraponto com outras histórias de habitantes, cujos desfechos nem sempre
apontavam para situações favoráveis aos problemas enfrentados.
Em seguida, reproduzo dois perfis publicados: o de Nilton Oliveira, ambulante, carioca
e “cria” da favela, que percorria a Rocinha vendendo doces, especialmente, sonhos; e a história
de Josita Maria da Silva, paraibana, professora e empregada doméstica, mãe de Michel e
Michele, moradora da Rocinha desde o início dos anos 1990. A história de Nilton foi contada
na terceira edição (em 2014), época em que circulava pela Rocinha vendendo seus doces.
Alguns anos depois (em 2017), enfrentou dificuldades para realizar o seu trabalho: devido aos
193
conflitos armados, parou de circular pela favela e passou a vender doces sob encomenda. Já
Dona Josita, teve a história contada nas páginas do Fala Roça por seus filhos, que assinam a
matéria “De volta para minha terra”. Ambos narram a primeira viagem de “Dona Jô” de volta
à sua terra natal (Paraíba), para visitar a família, depois de mais de três décadas morando no
Rio de Janeiro.
Michele e Michel notaram a existência do predomínio de histórias em que os moradores
superam suas dificuldades no jornal. Em momentos de retorno do conteúdo desta tese, em que
conversamos sobre o tema das histórias de moradores, expuseram a intenção de iniciar
mudanças nesta questão específica, a partir do nono número. Mas o próprio jornal passou por
momentos difíceis – principalmente entre 2017 e 2018, com os conflitos armados e a
Intervenção Federal no Rio de Janeiro (melhor analisados, à luz deste estudo de caso, no
capítulo 7) – e teve que parar de circular. Em relação a este tema, seguem considerações de
Michele, a partir de uma conversa em fevereiro de 2018. Naquele momento, ela comentou sobre
a situação de Nilton, o “vendedor de sonhos”, que passava por dificuldades: “Cada história que
acontece tem muita coisa por trás, pessoas que estão envolvidas, grandes histórias. Cada pessoa
envolvida tem uma história de vida”. Ela cita o exemplo do “moço do sonho”, com quem eles
já têm contato há um bom tempo. Conversaram recentemente e ele disse que precisou “mudar
100% o meu trabalho”. Na ocasião, não podia mais andar para vender doces, como fez a vida
toda: estava trabalhando sob encomenda, teve que se “reinventar” e sua renda diminuiu muito.
“São os efeitos dessas coisas na vida real, entendeu?”. As “coisas” às quais Michele se refere,
nesse caso, se relacionaram aos confrontos na favela, que ocorreram entre 2017 e 2018,
seguidos por violações de direitos por parte de agentes de segurança do estado (situação
abordada mais adiante na tese). Ela concorda. E diz que também não quer colocar “a gente”
como “coitados”. “Mas infelizmente coisas ruins estão acontecendo e a gente precisa falar
disso”, explicou. Citou o exemplo das escolas que atendem à população da Rocinha: “as escolas
particulares aumentaram muito o valor porque muita mãe não conseguiu fazer a matrícula nas
escolas públicas, no tempo que tinha que ser feito. Então, as particulares meteram a mão. Não
todas, algumas. Porque a oferta de crianças é grande e as vagas são poucas”.
Lista de moradores cujas histórias foram abordadas nas páginas internas do jornal impresso
Há 15 anos, o doceiro percorre os becos da Rocinha carregando uma caixa com 60kg de doces,
como sonhos, maçãs do amor e balas de cocos caramelizadas que oferece por R$ 2,00 cada.
Com seus gritos, Nilton anuncia sua chegada: “Quem quer sonhar, quem quer! – ou então: Olha
a maçã do amor freguesa!”. A vida do doceiro é digna de aprendizado.
Os primeiros empregos foram como entregador de farmácia, entregador de jornais e feirante. O
envolvimento com os doces começou quando Nilton conseguiu um emprego como lavador de
195
Muitas vezes, viajar de avião é mais barato do que viajar de ônibus. Desde 2011, as
classes C e D impulsionaram o mercado de turismo no Brasil com a ampliação do crédito. O
nordeste brasileiro é um dos principais destinos nacionais, entretanto, a viagem da moradora
Josita Maria da Silva, de 62 anos, foi por um motivo diferente. Ela visitou os familiares após
30 anos longe da terral natal, na Paraíba.
Criada na roça, a paraibana nasceu em Boqueirão, uma cidade do interior paraibano. Ela
veio para o Rio de Janeiro na metade dos anos 80 após a morte da mãe. Antes de vir para o Rio,
ela trabalhou durante oito anos como professora de artes em uma escola municipal na própria
cidade. Assim que chegou no Rio, ela foi morar em Copacabana na quarto de uma prima que
trabalhava em um prédio. Em poucos meses, a prima conseguiu um emprego de doméstica para
Josita em Ipanema.
Os passeios que ela fazia na Praça General Osório, em Ipanema, fez com ela conhecesse
o futuro marido. “Estava na Praça General Osório com a minha amiga e ele chegou perto de
mim. Começamos a conversar e ele disse que procurava um relacionamento. Era bom de papo”,
196
conta ela que é casada há 25 anos com Paulo Afonso, de 64 anos, natural de Rio Pomba, em
Minas Gerais.
Em 1988, Josita e Paulo decidiram alugar uma casa na Glória, atrás do prédio da extinta
revista Manchete. “Estávamos morando há oito meses na Glória e engravidei dele. Eu perdi o
emprego por conta da gravidez e ele ganhou uma pequena casa no playground do prédio em
que ele trabalhava na Avenida Vieira Souto, em Ipanema, aí fomos morar lá”, explica ela.
Paulo trabalhava como porteiro e ela tinha que ficar em casa porque precisava cuidar da
filha. A primeira filha ia bem até que veio a notícia de que estava grávida pela segunda vez, em
1989.
Mãe de duas meninas aos 32 anos de idade e desempregada, Josita viu a situação da
família se agravar com a demissão do marido do prédio em Ipanema. “Meu marido teve
problemas no trabalho e tivemos que nos mudar para Laboriaux, em 1992, por indicação do
filho de uma moradora do prédio”, conta ela. Josita estava grávida do terceiro filho quando se
mudou para a Rocinha.
Depois de um viver um período conturbado na casa em que vivia no Laboriaux, Josita
e Paulo venderam o imóvel e alugaram um porão na Praça do Skate, na Curva do S. “Era muito
ruim porque a gente não podia ficar em pé dentro de casa. Tinha que andar agachado”, relembra.
Na metade dos anos 90, seu marido recebeu um dinheiro de uma rescisão contratual de
um trabalho e compraram uma casa na parte alta da Vila Verde por indicação de uma amiga.
“A casa era boa, naquela época tinha muito mato e a ladeira era de barro. Depois eu me
arrependi porque o dinheiro que ele tinha recebido dava para comprar uma casa na parte baixa
da Rocinha”, explica.
Desde que ela veio para o Rio, não havia visitado nenhuma vez os familiares na Paraíba.
A família dela pensava que ela não queria mais contato com eles porque enviavam cartas para
ela e não recebiam respostas. Porém, um primo de Josita morava na Glória e tinha telefone.
Quando podia visitar o primo, ela ligava para as irmãs que esperavam ansiosamente por
notícias.
Os trabalhos que ela fazia na área de limpeza não geravam uma renda suficiente para
viajar. Além disso, os filhos precisavam estudar. Depois de crescidos, os filhos resolveram
recompensar a mãe por toda a dedicação e organizaram a viagem dela para a Paraíba através da
internet.
A viagem aconteceu no início de 2015 junto com seu marido. Foi a primeira vez que ela
viajou de avião. “Eu nunca tinha visto um aeroporto. Foi tudo muito novo. Quando iam para o
Rio, foi uma viagem de três dias em um ônibus. A viagem de avião foi menos de duas horas.
Quando o avião decolou, eu pedi ajuda para Jesus abençoar a viagem”, conta ela.
A paraibana que veio para o Rio iniciar uma nova vida voltava para a cidade em que
nasceu para reviver a velha vida na roça. “Quando cheguei em Boqueirão, foi uma alegria muito
grande. Minhas irmãs me buscaram no aeroporto e fomos embora de carro para casa. Chegamos
em casa às 2h e todo mundo estava acordado. Meus familiares soltaram fogos muitos de artifício
comemorando minha chegada na cidade”, lembra ela.
De volta ao Rio, ela já faz planos para a próxima viagem. “Antes de voltar eu prometi
para as minhas irmãs que iria retorna à Boqueirão todo ano. Na próxima viagem quero levar
meu filho mais novo”, conta ela com um sorriso no rosto e segurando um celular que comprou
para manter contato com os familiares.
197
Legenda: Moradores se reconhecem em uma fotografia da década de 1990, publicada na Coluna Memória,
escrita por integrantes do Museu Sankofa Memória e História da Rocinha. A foto observada é um retrato de
pessoas brincando carnaval na Rocinha, entre elas, homens fantasiados de mulheres. Moradores da região do
Laboriaux, na parte alta da favela., reconheceram-se ao receberem o jornal. Um deles (atrás, à direita) ,
posteriormente, converteu-se a uma denominação da religião evangélica, por isso não pode mais brincar
carnaval, como explicou. Junto à esposa, olham a foto, ao lado de outros moradores que também se
reconheceram, e dos jornalistas Michel e Michele. Data: 08/08/2015. Fonte: A autora, 2015.
Houve um tempo, na Rocinha, em que um dos principais jornais impressos feitos por
moradores, o jornal Tagarela, era fruto do “trabalho comunitário”135, entendido como “o
135 Lygia Segala analisa, em sua dissertação O Riscado do Balão Japonês: trabalho comunitário na Rocinha
(1977-1982), o trabalho comunitário realizado na Rocinha entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980.
De acordo com seu o entendimento à época, trabalho comunitário era compreendido, naquele contexto, da
seguinte forma: “Por trabalho comunitário (TC) entenda-se o conjunto de representações e atitudes articuladas
em torno da crença em um projeto de reforma social com caráter nivelador e igualitário, inspirado no texto da
198
Igreja Renovada. A proposta do TC é desenvolvida no morro, junto aos moradores, por agentes cristãos
(religiosos ou leigos) e intelectuais ligados à Capela N. Sra. Aparecida do Largo do Boiadeiro e à Associação
Social Padre Anchieta” (SEGALA, p. 159, 1991).
136 Instituição filantrópica ligada à igreja católica, a Associação Social Padre Anchieta (ASPA) foi criada em
1964 “para expandir e consolidar a assistência social da capela” (SEGALA, p. 168, 1991). O Jornal Tagarela
registra, no número 1, de 1976, que a Rocinha acabava de ganhar “uma obra de grande alcance social, que é a
Associação Social Padre Anchieta (ASPA)” e prossegue: “dando oportunidade de melhorar seu nível escolar,
bem como formação profissional, por exemplo, corte e costura, arte culinária, trabalhos manuais e catequese”.
Atualmente, a Creche ASPA é uma das principais atividades da instituição.
Disponível em: https://www.facebook.com/amigosdaaspa2.br/
137 Informações sobre a metodologia de pesquisa e entrevistas no capítulo 1 e nos anexos da tese.
199
dos diferentes contextos relativos à Rocinha em que os textos foram publicados, em suas
respectivas épocas históricas, desenhando um movimento de idas e vindas no tempo. Como
mencionado, são vozes de comunicadores da Rocinha, moradores e seus interlocutores, aqui,
muitas vezes expressas através de meios de informação. Falam sobre assuntos diversos do
cotidiano, sobre a geografia da favela, infraestrutura urbana, gostos, cheiros, dilemas,
enfrentamentos, resistências, lutas, sabedorias, desejos, direitos, violências. Serão trazidas
também outras vozes presentes na sociedade em geral, por exemplo, a partir da mediação de
veículos da grande imprensa, na medida em que são produtores de discursos que interagem no
processo de comunicação estudado.
Nas páginas a seguir, concentro-me nas reportagens que foram destaque nas capas das
edições do Jornal Fala Roça, de modo a compreendê-las como parte de uma realidade cultural
e social mais ampla em que estão inseridas, conforme já mencionado. Portanto, os textos
publicados podem ser entendidos como práticas culturais cujas representações se integram ao
universo das construções discursivas produzidas na Rocinha sobre a própria favela e outros
assuntos. No capítulo anterior, foi possível notar que a maioria das manchetes destacadas nas
capas do impresso remeteu à representação da Rocinha no sentido de coletividade, em que os
“problemas sociais” (conforme as palavras de Michel Silva) narrados nos textos são
vivenciados de forma coletiva, uma vez que se tratam de problemas estruturais enfrentados na
favela – cujos efeitos atingem ao conjunto de moradores como um todo. A intenção desse
capítulo é olhar mais de perto, acompanhar como esses sentidos foram criados pelos jovens
comunicadores, em diálogo com suas narrativas, seus contextos de vida e relativos ao ambiente
urbano da cidade na época de sua publicação, além de tomar em perspectiva também outras
temporalidades que dizem respeito à favela, por meio da alusão ao conteúdo de jornais já
extintos da Rocinha – em especial dos jornais Tagarela, existente aproximadamente de1976 a
1981e Rocinha Notícias, cujo período total de duração foi de 2001 a 2018 e sua versão impressa
circulou entre 2001 e 2012. Agregarei a esse conjunto de aspectos a experiência de
acompanhamentos variados de atividades do Fala Roça, de cunho etnográfico, assim como de
situações do cotidiano em geral que vivi na Rocinha. Conforme menciono mais adiante, fui
desenvolvendo a percepção, na prática, de que o jornal não é composto apenas por notícias e
reportagens nele inseridas, mas também pelas vidas, experiências, relações e todo o percurso
realizado até que lá pudessem se materializar (no caso, estar impressas).
O diálogo com outros meios de informação escrita da Rocinha foi feito a partir dos temas
abordados pelo FR, na tentativa de melhor contextualizar o processo de comunicação tratado
neste estudo, assim como de perceber suas relações com (e ampliar o conhecimento sobre)
200
138 Nesta pesquisa, trato apenas do universo letrado dos meios de informação, com atenção concentrada em
meios impressos. Ver o mapeamento de mídias da Rocinha em anexo a esta tese para uma noção aproximada
sobre o universo mais específico das mídias atuais e extintas da Rocinha. Trata-se de um mapeamento “em
construção”, uma vez que seria necessário um esforço maior de pesquisa, fora do escopo deste trabalho, para
um registro mais acurado destes veículos. Provavelmente, o número de canais de informação existentes
na favela é maior, por exemplo, pelo fato de o ambiente da internet ter proporcionado a criação (e também
extinção) mais rápida de suportes de informação on-line. De acordo com relatos de moradores, o boom
do uso das redes sociais na favela aconteceu, principalmente, a partir dos anos 2010.
139 Nem todas as reportagens foram comentadas pelos comunicadores do jornal, levando em conta o fato de
os diálogos sobre o conteúdo do veículo terem sido feitas em formato aberto, respeitando, sobretudo, os
tempos que dispunham para falar. Em algumas ocasiões, as histórias envolvendo a realização das matérias
eram longas e instigantes, o que me levava a não interromper as narrativas.
201
A escolha dos dois jornais mais antigos se deu inicialmente pela circunstância fortuita
(e feliz) da possibilidade de acessar seus acervos e exemplares remanescentes ocorrida durante
o período da pesquisa de campo140. Apesar de não prevista inicialmente no âmbito desta
pesquisa, a consulta a esses materiais trouxe a possibilidade de uma perspectiva mais ampla de
análise, evidenciando relações entre mídias de favelas (especificamente, as impressas, aqui
analisadas) e as instâncias das narrativas de memórias que podem ser entendidos como “saberes
históricos das lutas” (FOUCAULT, 1989). A importância da valorização desses conteúdos se
constituiu como uma percepção compartilhada com os interlocutores de pesquisa que
permitiram a realização desta consulta141. Junto a isso, ambos os jornais proporcionaram
acessar, em certa medida, a Rocinha dos tempos em que circularam (ou seja, abarcando de
meados da década de 1970 ao início dos anos 1980 e, em seguida, a primeira década dos anos
2000). Vale lembrar que se trata de pontos de vista e representações desses meios de informação
acerca do dia a dia da favela durante seus anos de circulação. As reportagens de alguns números
do FR ganharam análises mais extensas do que outras em razão de terem suscitado comentários
mais alongados dos comunicadores nas entrevistas para esta pesquisa e pelo fato de outras terem
sido acompanhadas mais de perto durante a realização do presente estudo.
Um dos principais aspectos percebidos por meio das análises a partir do cruzamento
dessas fontes é já conhecido de moradores que acompanharam ou conhecem as histórias de
mídias mais antigas da favela: a recorrência de determinados temas em jornais de diferentes
épocas. Tal “persistência” ocorreu, no caso estudado, especialmente em relação a assuntos
relativos a problemas crônicos de infraestrutura na favela, que foram maioria nas capas do Fala
140 Para maiores detalhes sobre o trabalho com memória na favela da Rocinha, ver FIRMINO, Antônio Carlos;
SEGALA, Lygia. “Memória Social, Museu e Trabalho Comunitário na Rocinha”. Artigo produzido para
ProextCultura. Disponível em:
https://www.museusdorio.com.br/joomla/index.php?option=com_k2&view=item&id=47:
_k2&view=item&id=47:museu-da-rocinha-%E2%80%93-sankofa-%E2%80%93-mem%C3%B3ria-e-
hist%C3%B3ria
141 Os materiais remanescentes dos jornais Tagarela e Rocinha Notícias, cedidos para consulta nesta pesquisa,
encontram-se sob guarda, respectivamente, do Museu Sankofa Memória e História da Rocinha e de Edu
Casaes, um dos fundadores do jornal Rocinha Notícias (ao lado de Carlos Costa e Déo Pessoa). Conforme a
definição em seu blog, o Museu Sankofa é “composto por moradores da Rocinha, que vêm realizando ações
no sentido da valorização e constituição de acervo da Memória e História da Favela da Rocinha e políticas
públicas de cultura para Rocinha”. A versão digitalizada do Tagarela, jornal então rodado em mimeógrafo,
está disponível para consulta também por meio do Acervo Lygia Segala, integrado ao Laboratório de
Educação e Patrimônio Cultural da Universidade Federal Fluminense. A professora Lygia Segala (Faculdade
de Educação e Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Cultura e Territorialidade da Universidade
Federal Fluminense) realizou, entre muitas atividades na Rocinha, a organização (com Tânia Regina Silva) do
livro Varal de Lembranças: Histórias da Rocinha (SEGALA; REGINA, 1983). Já Edu e Carlos Costa foram
meus colegas de trabalho na equipe do site Viva Favela, no início dos anos 2000, na mesma época em que
iniciaram a produção do Rocinha Notícias. Atualmente, há 36 números remanescentes em papel, material que
propus a digitalizar. Em 2020, finalizei essa tarefa e doei para os seus fundadores.
202
Roça; podemos pensá-la como indicadora de formas históricas de atuação do estado nesses
espaços, assim como de seus efeitos sobre as vidas dos habitantes locais, além das reações e
movimentos deles frente a tal situação cotidiana (em cada tempo específico). Pensando com
Akhil Gupta, prestar atenção em discursos de jornais locais é uma forma de compreender como
o estado e suas práticas são construídos no nível cotidiano (GUPTA, 2009). Esse aspecto será
levado em conta dentre as características que perpassam mídias impressas da Rocinha, mas
merecerá maior aprofundamento em estudos futuros.
Nos termos propostos por Michel Foucault acerca da concepção de genealogia, meios
de informação de favelas (objeto específico desse trabalho) podem ser pensados como lugares
onde se inscrevem saberes que devem ser buscados para conhecer visões e versões da história
da cidade do Rio de Janeiro (também componentes do mosaico das histórias do país) que não
estão nos livros escolares e tampouco ainda não estão presentes na maior parte do noticiário
dos grandes veículos de mídia. Portanto, mesmo considerando suas heterogeneidades e
diferenças, veículos de mídia produzidos a partir de pontos de vista e vivencias relacionadas a
favelas e periferias, em alguma medida, incorporam o “saber histórico da luta” e constituem
“memória dos combates”, para usar expressões sugeridas por Foucault (1989). Essa perspectiva
se assenta em reflexões do autor sobre a necessidade de incorporação das críticas à produção
de um saber teórico totalizante, global e, mesmo preguiçoso, que caracterizaria uma “erudição
inútil” de pesquisas e escritos históricos produzidos nas sociedades ocidentais. Para romper
com essa tradição que reforçava velhas estruturas de poder, seria importante realizar o que ele
denominou de “pesquisas genealógicas múltiplas”, as quais seguiriam no sentido de reconhecer
a importância de acontecimentos pontuais, heterogêneos, descontínuos e de acoplar ao saber
erudito o “saber das pessoas”. Realizar uma genealogia de uma determinada prática se trataria,
portanto, de fazer o “acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a
constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais”
(FOUCAULT, 1989, p. 97). Ainda segundo Foucault, dois pontos teriam contribuído
fortemente para as tentativas de contraposição a teorias unitárias e totalitárias impermeáveis a
saberes considerados menores e hierarquicamente inferiores. O primeiro seria o caráter local da
crítica ou uma “espécie de produção teórica autônoma, não centralizada”; o segundo seria o que
denominou de “insurreição dos saberes dominados”, entendendo tais saberes como “conteúdos
históricos que foram sepultados, mascarados” e, além disso, uma série de saberes
historicamente subjugados e considerados desqualificados.
No âmbito do processo de comunicação objeto de estudo deste trabalho, acredito ser
oportuno pensar a prática cultural da realização de jornais impressos na Rocinha também em
203
agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela
haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito
abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a
fala de seu povo” (EVARISTO, p. 147, 2006).
Desde o período inicial do trabalho de campo, tomei contato com diversas mídias
existentes na Rocinha e decidi mapeá-las, a partir de entrevistas, conversas informais e buscas
no ambiente da internet142. Os nomes das mídias, de acordo com algumas classificações
elaboras e outros detalhes se encontram no Anexo A dessa tese. Mas é preciso salientar, desde
logo, que se trata de uma tarefa complexa realizar um levantamento de grupos voltados para
142 A classificação, feita neste levantamento, dos veículos de acordo com suas finalidades deverá ser
complementada e revista de acordo com autodefinições dos veículos.
204
144 Nos anexos B e C, reuni informações a respeito do perfil dos impressos Tagarela e Rocinha Notícias sob a
forma de um “cadastro” desses veículos; portanto, outros dados disponíveis a partir da consulta aos acervos
desses jornais podem ser encontradas lá.
145 Estimativas com base nos jornais impressos remanescentes e em textos neles publicados. No exemplar mais
antigo, consta “ano 1, n. 3 – março de 2001”, portanto, o jornal aparenta se iniciar em 2001; em julho de
2018, foi publicada a “Última edição”, uma edição impressa marcando o encerramento das atividades do
jornal
206
favelas para a memória desses lugares e como “saberes da luta” (conforme sintetiza Michel
Foucault) ou, ainda, lugares de saberes.
Buscarei, com apoio nestas fontes históricas impressas, correlacionar os temas
abordados nas capas dessas duas mídias, mas tomando como referência os assuntos abordados
pelo Fala Roça, também em suas capas. Dessa forma, acredito ser possível agregar
conhecimento sobre temas considerados relevantes por moradores locais, suas formas de agir
(agências) em relação a eles, bem como de narrá-los – com ancoragem no momento atual (a
partir da abordagem do Fala Roça). Além de também agregar informações históricas objetivas
a respeito dos assuntos abordados, como a política de transportes relativa à Rocinha;
informações estas que estarão à disposição dos moradores para serem usadas, por exemplo, em
reivindicações de melhorias na infraestrutura urbana local. A seguir, apresento breves perfis
dos jornais Tagarela e Rocinha Notícias. Muitos outros meios de comunicação fizeram parte
da história Rocinha
Carlinhos e Edu também fizeram parte do Portal Viva Favela: Carlos Costa foi o
primeiro “correspondente comunitário” da Rocinha neste portal de notícias (que funcionou
207
também entre 2001 e 2010, aproximadamente) e Edu Casaes o sucedeu (além de outros
comunicadores da Rocinha que também passaram pelo Portal, como Landa Araújo e Nando
Dias, fotógrafo). O Rocinha Notícias era vinculado à ONG Rocinha XXI, sua periodicidade era
mensal (com períodos de instabilidade) e a tiragem de 8 mil exemplares. Sua estrutura robusta,
com 12 páginas em média, com noticiário variado e reportagens de folego sobre diversos
assuntos locais, era mantida principalmente com a venda de anúncios para comerciantes e
instituições locais. A seguir, o editorial de sua “Última edição” – como diz a manchete principal
na capa -, número impresso publicado em julho de 2018 para marcar o fim da sua circulação ou
“Rito Final”. Dentre as suas muitas características marcantes, duas merecem destaque: a
existência de notícias sobre o mundo da política partidária, além do posicionamento (ao menos
de alguns de seus fundadores) em relação a políticos; a segunda é a presença de pautas
relacionadas à polícia e à violência armada na Rocinha (embora estas últimas não fossem
frequentes).
146 As datas referentes à circulação do Tagarela foram estimadas a partir da consulta ao acervo digitalizado do
jornal, ressaltando que em muitas edições não consta o registro da data de sua publicação – como é o caso da
primeira. A edição nª 5, por exemplo, cita o aniversário de 01 ano do jornal em outubro de 1977, portanto,
cheguei à conclusão de o lançamento da 1ª edição ter ocorrido em outubro de 1976. Já o término do jornal foi
deduzido com base no último exemplar que se encontra no acervo digitalizado, de nº23, onde consta a data de
maio de 1981.
147 Informações sobre a ASPA, disponíveis em sua página no Facebook: “Ação Social Padre Anchieta foi
fundada em 1963, pelo Padre Jesuíta Paulo Machado Barbosa, professor da PUC - RIO – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, em conjunto com outros professores e moradores do bairro da Gávea.(...)”. Fonte:
https://www.facebook.com/amigosdaaspa2.br
209
Para esta pesquisa, foram concedidas algumas entrevistas, além de conversas informais,
relativas ao tema do jornal Tagarela, com pessoas que tiveram algum tipo de participação nessa
mídia, porém, sem haver pretensão de apontar quem foram seus fundadores ou, ainda, todos os
que nela tiveram envolvimento. A intenção foi de apenas registrar algumas experiências de
participantes que pudessem, de certa forma, contextualizar a atuação deste jornal no seu tempo.
Aqui reproduzo considerações feitas por José Martins de Oliveira (ou Martins, como é mais
conhecido), mas ressalto que outras contribuições148 feitas a este estudo foram igualmente
importantes para compreender sobre o “espírito” e a importância do veículo. Martins é antigo
morador da favela, que devido à sua participação, ao longo de muitos anos, em diversas
dimensões de lutas locais, é reconhecido dentro e fora da Rocinha como liderança significativa
na história da favela. Nascido no Ceará, em 1946, veio morar na Rocinha em 1967, onde se
engajou em mobilizações locais como a luta pela água, ou o direito a ter água encanada dentro
das casas, e saneamento básico. Atualmente, é um dos coordenadores do movimento Rocinha
Sem Fronteiras - um resumo da história de Martins (e também do RSF) está incluído no capítulo
6. É necessário ressaltar o fato de outros moradores (as) também serem (ou terem sido)
importantes no contexto da história local. Houve e há muitos (as), seja de gerações antigas ou
atuais; alguns se reconhecem como “lideranças”, outros como “articuladores locais”. Seria
injusto citar alguns nomes e deixar de mencionar outros, portanto, faço menção apenas de
lugares onde informações nesse sentido podem ser encontradas, do ponto de vista dos
moradores149.
148 Uma vez que o foco principal desta tese é o estudo de caso do jornal Fala Roça, foi necessário reduzir a
quantidade de depoimentos referentes aos outros jornais mencionados. Portanto, aqui incluí trechos de
depoimentos de uma das pessoas entrevistas a respeito do jornal Tagarela. Os entrevistados foram: Maurício
Trajano, José Martins de Oliveira e Devaldo Oliveira, a quem agradeço imensamente pela gentileza e tempo
dedicados às nossas agradáveis conversas. Tão logo esse material seja sistematizado, novas contribuições,
incluindo os outros depoimentos, serão feitas por meio de artigos e publicações futuras.
149 A esse respeito ver a coluna “Memória” publicada no jornal Fala Roça impresso, a partir do número 6; outra
fonte de histórias de moradores da Rocinha: PANDOLFI, Dulce; GRYNSZPAN, Mario (orgs). A favela fala:
depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro, FGV, 2003. Por fim, ver a publicação REDE DE MUSEOLOGIA
SOCIAL DO RIO DE JANEIRO, MUSEU SANKOFA MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ROCINHA, MUSEU DO
HORTO. Coordenação: Inês Gouveia. A participação das mulheres na construção do território: Rocinha e
Horto. Territórios Culturais. Programa Favela Criativa, da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro.
210
5.3 Fala Roça, Rocinha Notícias e Tagarela: jornais e tempos diferentes, temas recorrentes
211
A publicação da primeira edição do Jornal Fala Roça ocorreu em maio de 2013, pouco
antes das grandes manifestações de junho do mesmo ano (ou as “jornadas de junho”) que
tomaram as ruas da maioria dos centros urbanos do país. A reportagem em destaque na capa da
edição de estreia trazia a manchete “Rocinha no ar”, acompanhada pelo subtítulo “Comunidade
da Rocinha se prepara para receber o seu teleférico”. Em linhas gerais, a matéria abordava o
tema da construção do teleférico, então (ainda) prevista como parte da segunda etapa do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) na Rocinha150. A narrativa se estrutura a
partir de uma descrição da obra que seria implantada na favela, conforme informações
veiculadas por diversos veículos de imprensa e por autoridades do poder público em uma
solenidade na própria Rocinha, seguida por entrevistas com moradores sobre o assunto, ou seja,
os dois principais conjuntos de atores sociais (ou “lados”) envolvidos no tema abordado estão
representados – o estado (por meio do anúncio oficial do Programa feito pelos governantes) e
os moradores, por meio das entrevistas. Segundo lembranças de Michele, o texto foi escrito por
ela com a colaboração do irmão, Michel. Destaco o trecho inicial do primeiro parágrafo:
150 Para maiores informações sobre o Programa de Aceleração do Crescimento, em sua versão voltada para
favelas e periferias brasileiras, ver: TRINDADE, Claudia Peçanha da. Não se faz omelete sem quebrar
ovos: política pública e participação social no PAC Manguinhos. Tese (Doutorado), Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Rio de Janeiro, 2012.
151 Exemplo de matéria publicada por veículos da grande imprensa, à época, sobre o evento de lançamento do
PAC2 na Rocinha: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/dilma-anuncia-na-rocinha-obras-do-pac-2-em-tres-
favelas-cariocas-14062013. Acesso em: 08 jun. 2020.
213
– pelo menos até o momento atual. Essa conjuntura será examinada em maiores detalhes nas
páginas a seguir, visando a uma compreensão maior da complexidade do contexto à época da
publicação da reportagem do Fala Roça.
Quanto ao texto, a matéria do jornal prossegue com depoimentos de moradores, que
ocupam a maior parte do espaço, compondo um número equilibrado de opiniões otimistas e
pessimistas em relação à obra. Entre os cinco entrevistados, havia moradores da Rocinha e do
conjunto de favelas do Alemão (onde o teleférico já tinha sido construído); duas opiniões eram
críticas, duas esperançosas com eventuais benefícios trazidos e um último relato se mostrava,
de certa forma, conformado com a situação, mas não convencido de que o teleférico foi, de fato,
uma melhoria: “É melhor aproveitar do benefício do que reclamar. Já que está aqui, eu uso
todos os dias. Se eu não usar, ele vai continuar lá e o esgoto no meu beco também. Mas se as
pessoas não concordam, não adianta se calar. Aí é que as coisas não acontecem mesmo”,
resumiu um senhor, então com 55 anos e morador da favela Nova Brasília há 20, sobre o
teleférico então em funcionamento no Complexo do Alemão. A reportagem mencionava, ainda,
uma enquete, feita através de um formulário simplificado na internet, que apontou um número
significativo de moradores da Rocinha a favor da nova obra (82%).
De forma geral, não houve um posicionamento explícito, nesta matéria, a favor ou contra
“o assunto polêmico” da construção do teleférico – o que não foi o objetivo do grupo do jornal,
como explicaram comunicadores que escreveram o texto na época. O objetivo foi levantar
discussão sobre o assunto, conforme o relato de Michele, uma vez que moradores se
posicionavam, mas com pouca “base” para argumentar. Essa abordagem dada ao assunto pelo
grupo que formava a equipe do jornal aparece principalmente no subtítulo “Construção do
teleférico da Rocinha tem causado opiniões distintas entre os moradores”.
Vejamos algumas considerações sobre o contexto da publicação da matéria de capa da
primeira edição do Fala Roça. Ao lembrar aquele momento (início de 2013), os irmãos Michel
e Michele comentaram sobre os objetivos, a produção do texto e sua repercussão.
[...]
Porque quando começou essa discussão, vieram com esse negócio de resolver o
problema de mobilidade. Todo mundo achou maneiro porque “vai poder chegar na
214
Rua 1 em dez minutos com o teleférico”. Mas o que tem por trás disso as pessoas não
estavam pensando. A maioria das pessoas não entendia disso, então, a gente queria
trazer essa discussão.
Essa discussão já existia em vários grupos articulados dentro da Rocinha, mas nos
grupos – não é a maioria da população que frequenta esses grupos. Então a gente
queria projetar esse tema pra que ele entrasse no nosso público, por exemplo, que
estava muito desinformado; na época a gente achava isso dessas pessoas, que eles
eram desinformados, que achavam que o teleférico era bom porque ia levar eles de
um ponto pro outro, mas não entendiam as consequências que teriam por trás dessa
obra – como a remoção. Começaram a marcar as casas que iam sair – o governo, os
responsáveis pela obra, começaram a marcar as casas que iam sair e isso deu um
pânico em muita gente (que morava nas áreas que iam sair). Michele (Entrevista,
tema: Jornal Fala Roça. Data: 08/08/2015).
Ao pensar com Michele, a concretização da primeira edição do Fala Roça pode ser
entendida como resultado do processo iniciado em 2012, quando o jornal “começou a virar
realidade” e demorou alguns meses até ser lançado. Segundo suas lembranças sobre a época em
que a matéria foi escrita, o anúncio da construção desse equipamento de transporte “mobilizou
a Rocinha toda”. Porém, nem todos pensavam da mesma forma. Por um lado, o tema era muito
abordado “na televisão”, de um ponto de vista externo, frequentemente apontando benefícios
das obras a partir de falas do poder público152. O público que consome notícias prioritariamente
a partir desses veículos (canais de TV, principalmente da chamada TV aberta) é, na visão de
Michele, considerado mais “desabastecido”, em termos de informação, pela comunicadora. Por
152 Exemplo de matéria publicada em grandes meios de comunicação, em 2013, sobre o teleférico da Rocinha:
https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/dilma-vai-ao-rio-anunciar-construcao-de-teleferico-na-
rocinha,c873c490dcf3f310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html
215
outro lado, havia moradores que discutiam o tema em “vários grupos articulados dentro da
Rocinha”, como o Rocinha Sem Fronteiras, frequentados por “ativistas mesmo” e que “chamam
a galera pra discutir”, mas “não é a maioria da população que frequenta esses grupos”. A
discussão do teleférico, portanto, circulava entre os dois grupos, os “desabastecidos”, mais
“leigos” e os mais “politizados”, tornando-se “polêmico”.
A decisão de abordar um tema “polêmico” na favela, portanto, se vinculou a algumas
intenções: buscar tratar de um assunto que já circulava pela maior parte da favela, mas cujo
acesso à informação sobre ele era desigual; alertar às pessoas mais “humildes” para
consequências graves que poderiam sofrer com a instalação do teleférico, como a remoção – o
medo das remoções foi mencionado nas falas dos comunicadores algumas vezes (as mais
recentes tinham acontecido pouco tempo antes, por ocasião da primeira fase do PAC na favela);
e chamar atenção para a própria mídia (o Fala Roça) que estava sendo lançada. Também fizeram
parte das circunstâncias que geraram a matéria, as trocas de ideias entre as pessoas que
começavam a formar a equipe do jornal, no ambiente da Agência de Redes para Juventude,
onde o veículo foi criado. “Como o jornal começou na Agência e eram no sábado as dinâmicas,
a gente manteve o sábado pra nós [para o jornal]. [...] Tinham pessoas no grupo que não eram
do Fala Roça propriamente, mas do ciclo da Agência, tanto os alunos como outros
influenciadores, como os tutores, os coordenadores, que davam muito pitaco”, recorda Michele.
Quando o jornal foi lançado, encerrou-se a etapa de produção e teve início a dinâmica de
comunicação dessa mídia com o seu público. Aí se abriu um novo espaço de mediação, diálogo
e comunicação de sentidos que ganharam vida ao serem compartilhados com outras pessoas e
se tornarem fonte de novas interações discursivas. Segundo o filósofo e linguista Mikhail
Bakhtin, as trocas dialógicas tratam do próprio terreno de existência da linguagem, a qual, para
ele, deve ser entendida como um discurso e não apenas a partir dos elementos internos que
dizem respeito à estrutura da língua. De acordo com esse pensamento, um de seus princípios
fundamentais é o “dialogismo” (integrado à proposta de uma abordagem social da linguagem),
entendido como um compartilhamento de sentidos, em que esses últimos “projetam-se como
efeitos, sendo assim, irredutíveis a uma só possibilidade, apesar de, em determinados contextos
enunciativos, haver sentidos predominantes” (BAKHTIN, apud FANTI, 2003, p. 98). Junto a
isso, qualquer que seja a discussão suscitada, ela “é o lugar onde se cruzam, se encontram e se
separam diferentes pontos de vista, visões de mundo, tendências” (2003, p. 98).
Ao comentarem sobre a publicação dessa matéria, Michele e Michel lembraram de
reações causadas pelos enunciados que compuseram a manchete da capa da primeira edição.
Antes de pensar sobre a adesão ou não de leitores às ideias manifestadas nessa primeira
216
reportagem de maior fôlego do jornal, é importante notar que a mídia foi lida, ou seja, havia
gente na favela interessada em ler as informações que chegaram às suas mãos, em papel –
apontando para a decisão acertada de produzir um veículo impresso. Quanto às reações,
segundo os comunicadores, houve críticas e falta de compreensão. De acordo com seus relatos,
“as pessoas não entenderam muito” o “sentido duplo” do título “Rocinha no ar” (nas palavras
de Michele) e a frase do subtítulo “A Rocinha se prepara para receber o seu teleférico” foi
criticada (de acordo com Michel). Sobre esses efeitos de crítica causados pela matéria após seu
lançamento, ambos comentaram:
Essa matéria do teleférico, de capa, surgiu com o anúncio do governo federal falando
que ia construir um teleférico na Rocinha. [...] O nosso diagramador editou um
negócio sem a nossa autorização. Colocou ‘Comunidade da Rocinha se prepara pra
receber o seu teleférico’ [como subtítulo da matéria]; tem muitos moradores e contra
o teleférico e aqui deu a entender que o jornal é a favor do teleférico. Pegou muito
mal. Michel (Entrevista, tema: Jornal Fala Roça. Data: 17/07/15).
“Rocinha no ar” é que o teleférico é aéreo, né? E a “Rocinha no ar” era a Rocinha no
ar no jornal, está no ar no modo de projetar a Rocinha no meio de comunicação,
basicamente. A gente usou essa frase com sentido duplo. As pessoas não entenderam
muito não, isso era uma coisa entre nós. Michele (Entrevista, tema: Jornal Fala Roça.
Data: 08/08/2015).
como os jornais da favela deveriam se posicionar. À época, grupos locais críticos ao teleférico
organizavam campanhas na Rocinha voltadas para a conscientização dos moradores sobre a
existência de obras mais importantes para a qualidade de vida da população, como o
saneamento básico – que, por sinal, há décadas eram objeto de luta por parte de moradores mais
antigos e engajados. Críticas ao enfoque da matéria partiram desses grupos. O entendimento de
que “pegou mal” aponta que os comunicadores também não se sentiram confortáveis com o
entendimento de que o jornal seria a favor do teleférico (o que já havia ficado claro, por
exemplo, ao externarem seus temores em relação às remoções). Portanto, aparentemente, havia
um consenso em relação às necessidades mais básicas de infraestrutura da favela; então, duas
questões parecem merecer atenção: o fato de, num momento inicial, versões apresentadas pelo
estado sobre intervenções nas favelas parecerem ser benéficas; e entendimentos diferenciados
de como esses temas (aqui o tema específico do teleférico) deveriam ser tratados por um jornal
local (ou comunitário) na visão dos moradores.
Vejamos a seguir outros elementos do contexto, em escala mais ampliada, relativo ao
PAC e conexões com a sua realização no cotidiano da Rocinha, além de questões do cotidiano
na Rocinha, naquele ano de 2013.
No dia 26 de junho (um mês após o lançamento do jornal), houve uma manifestação de
moradores da Rocinha que percorreu a zona sul, descendo a Avenida Niemeyer e caminhando
por ruas de alguns dos endereços mais caros para se morar na cidade, até chegar à casa do então
governador Sérgio Cabral. Lá chegando, sentaram-se no chão e disseram ao que vieram:
reivindicavam condições dignas de moradia, pois sequer tinham saneamento básico enquanto
eram anunciadas outras obras mais midiáticas; portanto, também protestavam contra a
construção do teleférico. O contexto era o das chamadas Jornadas de junho de 2013, que vinham
acontecendo em todo o país. E, diferente das interpretações de que o conjunto dos protestos foi
episódico e teve pautas difusas, esse teve pauta própria, específica, e seguiu um certo roteiro de
lutas que ocorriam desde, ao menos a década de 1970, – conforme registros de um pequeno
jornal que circulava na Rocinha nessa época, o Tagarela.
Sem pretender um aprofundamento sobre esse tema, de modo geral, as manifestações
de 2013 tiveram como impulso inicial protestos contra o aumento de passagens dos transportes
públicos em São Paulo (com grande participação de camadas médias da população) e se
espalharam por centenas de municípios brasileiros. Alguns analistas entendem (BRAGA, 2013;
ANTUNES, 2013; SINGER, 3013, entre outros) que tais atos foram adquirindo pautas mais
diversificadas à medida que agregaram multidões cada vez maiores.
218
Outros autores ressaltam a ideia de ter sido um momento chave para propiciar o avanço
de tendências de extrema direita (SAFATLE, 2018)153, motivado por uma conjunção de fatores,
somados a sensações de “medo” e “desordem” que teriam sido provocadas pelas manifestações.
E há, ainda, quem argumente “que as jornadas de junho de 2013 não surgiram de repente, nem
foram tão espontâneas”. Envolvem uma “ação coletiva” (composta por “ciclos de protestos” e
“movimentos sociais”) que, a despeito do seu ineditismo em termos da rápida disseminação das
manifestações que foram agregando pautas heterogêneas e ganhando corpo nas ruas, são fruto
de processos menos visíveis de indignação que já vinham se acumulando e inclusive tomando
as ruas, como no caso de movimentos sociais “por direitos sociais ou contra perdas salariais”
(GONDIM, 2016, p. 2, 3, 6).
No Rio de Janeiro, cidade que havia sido escolhida para sediar grandes eventos
esportivos na segunda década dos anos 2000, manifestações nas ruas não constituíam
exatamente uma novidade, à época. Em artigo escrito em 2013, Oliveira lembra:
153 SAFATLE, Vladimir. Protestos de 2013 foram o 11 de Setembro da direita brasileira. Folha de São Paulo,
2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/protestos-de-2013-foram-o-11-de-
setembro-da-direita-brasileira.shtml. Acesso em: 31 maio 2020.
219
Sobre o PAC/Rocinha154
154 Nesta seção, serão abordadas apenas características gerais do PAC, bem como questões relativas ao
planejamento urbano da Rocinha que auxiliem no entendimento do contexto em que a reportagem do
Fala Roça foi produzida.
220
155 Jornal Rocinha Notícias, impresso, n. 35, de maio/junho de 2008, e n. 42, de jul/ago de 2011.
156 Para maiores detalhes, ver: TOLEDO, Luiz Carlos; SILVA, Jonathas Magalhães P.; TÂNGARI, Vera
Regina. Derrubando os muros: planejamento participativo e integração social na comunidade da Rocinha no
Rio de Janeiro. CADERNOS PROARQ, p. 37, 2007.
157 O arquiteto Luiz Carlos Toledo, com sua equipe, cujo escritório venceu o Concurso Nacional de Ideias para
Urbanização do Complexo da Rocinha, em 2006, foi o responsável pela criação de bases importantes para
elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Sócio Espacial da Rocinha.
221
Seu relato sobre esse processo e sua interrupção, às vésperas do início do PAC, está disponível em:
http://casadeestudosurbanos.com.br/folhetim.html#_ftn2
158 Relatos do arquiteto Luiz Carlos Toledo, cujo escritório foi responsável pela elaboração do Plano Diretor de
Desenvolvimento Sócio Espacial da Rocinha, no Folhetim da Rocinha. Disponível em:
http://casadeestudosurbanos.com.br/folhetim.html#_ftn2. Acesso em: maio/2020.
159 Jornal Rocinha Notícias, n. 22, março/abril de 2004.
222
mobilidade, e alguns projetos pontuais”. As diretrizes urbanísticas foram então criadas, mas,
ainda conforme o arquiteto, dois aspectos foram determinantes para a interrupção do trabalho
em 2007 – que também incluía a implantação propriamente dita do Plano Diretor. a não
concretização de um apoio financeiro que havia sido negociado com a prefeitura do município
e o abandono gradual dos técnicos do governo do estado das reuniões com os moradores, nas
quais eram detalhadas as ações e pactuadas as consequências que seriam causadas nas suas
rotinas de vida.
Em 2008, os recursos do PAC 1 permitiram retomar as obras previstas no Plano Diretor,
porém, não em sua totalidade e contendo alterações não pactuadas com a população. Além
disso, moradores denunciaram o abandono de canteiros de obras pelas empreiteiras
responsáveis, após causarem desapropriações de imóveis e antes de sequer iniciarem os
trabalhos160. Essa situação foi relatada ao Ministério Público Estadual por participantes dos
grupos Rocinha Saneamento e Rocinha Sem Fronteiras (criado em 2006), resultando em uma
Ação Civil Pública pedindo indenização à população pelos danos causados pelas obras
abandonadas, além da condenação do governo do estado e do consórcio responsável pelas
intervenções. Segundo um dos coordenadores do RSF, o antigo morador e mobilizador de
longas lutas comunitárias na Rocinha José Martins de Oliveira, o objetivo do grupo “sempre
foi, e continua sendo, ampliar o conhecimento de direitos e deveres [dos participantes], porque,
se você tem conhecimento dos seus deveres você também pode brigar pelos direitos”. Em 2013,
o grupo iniciou uma campanha contra a construção do teleférico e em favor do saneamento
básico na Rocinha, estendendo-se por anos depois e sempre que o governo do estado voltava a
anunciar as obras do PAC2. Batizada de “Telefante” ou “O elefante branco da Rocinha”, essa
mobilização ganhou as ruas da favela, por meio da distribuição de panfletos, foi divulgada em
redes sociais na internet e também resultou numa ação judicial, por parte do grupo e intermédio
do Ministério Público do Rio de Janeiro, questionando o Estado sobre o não cumprimento das
obras previstas no PAC 1.
Em 2018, novas denúncias foram feitas ao Conselho de Direitos Humanos da
Organização dos Advogados do Brasil pelo representante destes grupos José Martins Oliveira.
O ano de 2012 foi a época em que o Jornal Rocinha Notícias encerrou as atividades da sua
versão impressa (migrando para as redes sociais na internet) e, no mesmo período, estava sendo
fundado um novo jornal na favela: o Fala Roça. Ao menos quatro edições do RN e uma do FR
160 Uma série de matérias realizadas pelo site “Eu, Rio” detalha irregularidades envolvendo as obras do PAC na
Rocinha, contendo depoimentos de moradores locais. Disponível em: https://eurio.com.br/noticia/3276/pac-
da-rocinha-consorcio-abandona-canteiros-com-ob.html. Acesso em: 03 jun. 2020.
223
trouxeram, em suas capas, manchetes sobre o mesmo assunto: as obras do PAC na Rocinha. O
fato de ter ocupado as primeiras páginas desses jornais, em seus respectivos tempos, pode
indicar a relevância do tema no cotidiano dos moradores. O período de circulação do RN (no
formato impresso) abrangeu a maior parte do tempo de realização dessa política pública na
favela (entre 2008 e 2011, de acordo com o tempo das matérias do jornal). Na capa da sua 35ª
edição, em maio/junho de 2008, o jornal estampou a primeira manchete sobre o tema
(esperançosa): “Olha o PAC aí, gente!” e, cerca de três anos depois, na 42ª edição, de julho/ago
de 2011, registrou, em tom questionador, a paralisação do Programa: “PAC: Por que parou?
Parou por quê?”. Além dessas duas edições, o RN destinou, pelo menos, mais duas capas ao
mesmo assunto, nas quais o PAC ganhou destaque principal161. E não foi por menos: esse
conjunto de obras constituiu a última grande intervenção urbana do poder público na Rocinha
em cerca de 20 anos, apesar de as ações previstas/anunciadas não terem sido realizadas na sua
totalidade e, no final, não terem atendido a reivindicações históricas de seus habitantes junto ao
poder público, em termos de infraestrutura para a favela, como é o caso do esgotamento
sanitário.
No caso do Jornal Fala Roça, o assunto principal de sua edição de estreia, de maio de
2013, foi a construção do teleférico. E assim como o Jornal Rocinha Notícias, o FR também
voltou a abordar o mesmo tema em outras ocasiões – não no impresso, mas em sua página na
internet. Em ambos os casos, é possível notar que o primeiro texto de cada jornal sobre o PAC
trazia um tom, de certa forma, esperançoso com o cumprimento das ações previstas e os
benefícios anunciados. As manchetes das primeiras matérias de capa de ambos os jornais
tendem a causar essa impressão: “Olha o PAC aí, gente!” (RN, n. 35, 2008) e “Rocinha no ar.
Comunidade da Rocinha se prepara para receber o seu teleférico” (FR, n. 1, 2013). Outra
semelhança em suas abordagens é a mudança de tom que acompanha a (re)publicação dos
mesmos temas (ou a “suíte” no jargão jornalístico) tempos depois por ambas as mídias. Três
anos depois de sua primeira matéria, o RN perguntou em uma nova capa “PAC: Por que parou?
Parou por quê?” (RN, n. 42, 2011) e, cinco anos depois de sua manchete de estreia, o FR publica
em seu site um texto atualizando as informações sobre o PAC 2, em tom de desconfiança: “Sem
a conclusão do PAC 1, Governo do Rio quer iniciar o PAC 2 na Rocinha”162. Sendo assim, a
161 Ver a listagem das manchetes de capa do Jornal Rocinha Notícias no Anexo D - Jornal Rocinha Notícias:
manchetes de capa. Em tempo: esse levantamento se refere aos 39 exemplares remanescentes desse jornal,
gentilmente cedidos à consulta, por seus fundadores, no âmbito desta pesquisa. Maiores informações sobre o
conjunto dos exemplares (período de abrangência, datas, etc.) no Anexo B - Jornal Rocinha Notícias:
cadastro.
162 Texto publicado, na página do Fala Roça na internet, em 24 de agosto de 2018. Disponível em:
https://falaroca.com/sem-a-conclusao-do-pac-1-governo-do-rio-quer-iniciar-o-pac-2-na-rocinha/
224
cobertura do tema das obras do PAC por esses veículos de informação da Rocinha sugere uma
relação de falta de compromisso por parte do estado, no que diz respeito às ações de urbanização
planejadas, desde, pelo menos, 2007 (ano do primeiro anúncio das obras dessa política pública).
225
Com o título “Sem escolha” e subtítulo “Prefeitura do Rio modifica trajeto de vans na
Rocinha e Vidigal e ocasiona transtornos no cotidiano de usuários e moradores”, a reportagem
de capa da segunda edição do Fala Roça, lançada em agosto de 2013, tratou do tema do
transporte na Rocinha e, mais especificamente, do chamado transporte complementar (vans e
kombis), vital para a circulação dos moradores tanto em trajetos internos no morro quanto em
conexões com outros transportes para acessar a favela. O assunto se transformou em pauta para
o jornal, naquele momento específico, por conta dos transtornos causados pelas alterações da
prefeitura no sistema de funcionamento de vans e kombis que atendiam (e permanecem
atendendo) à Rocinha, como explicou uma das comunicadoras do FR. As alterações, sem
nenhum tipo de consulta à população, também tiveram como consequência reflexos nas linhas
de ônibus que circulavam pela favela.
Reproduzo trecho inicial da matéria: “Há três meses o trajeto das vans da Rocinha e
Vidigal vem sofrendo alteração. A população ainda está se adequando ao novo percurso. Se
antes era possível ir até o Leme ou Botafogo de van, hoje só se chega até o Leblon”.
A administração municipal, sob comando do então prefeito Eduardo Paes, realizou
diferentes mudanças no sistema viário relacionado à Rocinha ao mesmo tempo, tais como as
exigências repentinas de adequação do transporte complementar a novas regras, a implantação
do bilhete único (ainda pouco usado), a proibição de circulação de vans em trechos da zona sul,
e mudanças em trajetos de ônibus. O resultado foi a sobrecarga nas linhas de ônibus até que as
vans e kombis se adequassem ao novo sistema proposto (ou imposto, já que não houve consulta
prévia). Entre os impactos gerados para os moradores, foram meses de dificuldades para entrar
e sair da Rocinha, ônibus superlotados, imensas filas de espera nos pontos na favela, maiores
gastos e atrasos para chegar ao trabalho. Na época, ainda não havia sido construída a linha 4 do
metrô, que se tornaria outro meio de locomoção acessível para os moradores, com uma estação
localizada na parte baixa da favela. A seguir, a contextualização sobre a realização da matéria,
por sua autora, Michele Silva:
[Em relação] à matéria das vans, aconteceu mais uma vez um caso bem complicado,
quando a prefeitura resolveu regularizar o transporte complementar, que eram vans e
kombis. A comunidade da Rocinha sentiu um impacto muito grande, porque essas
vans faziam a ligação da Rocinha com boa parte da zona sul. Tanto pela orla, quanto
por dentro, por Botafogo. Resolveram acabar com isso da noite pro dia, muito rápido.
E, pra legalizar [vans e kombis], e entrar no projeto deles [da prefeitura], sairia mais
da metade dos carros e seria um custo muito maior pra que continuassem sendo
prestadores de serviço. Só que, paralelo a isso, vieram outras mudanças anunciadas –
as maquininhas de Riocard, mudanças de itinerários, várias coisas. Ia reduzir 70% ou
mais [do transporte complementar]. Na hora, disseram que iam dobrar a quantidade
227
de ônibus na rua, o que não aconteceu. E depois que acabou a polêmica163, voltou tudo
pro normal: poucos ônibus na rua, zero van e as pessoas sem conseguir chegar no
trabalho e na escola (Michele. Entrevista, tema: Jornal Fala Roça. Data: 08/08/2015).
O transporte é uma questão que afeta de forma sensível no dia a dia dos moradores da
Rocinha (como também o é para outras regiões de favelas, subúrbios e periferias da cidade;
justamente as que mais necessitam usar o transporte público no Rio de Janeiro). Além de
“render” duas das oito capas do Jornal Fala Roça, foi também assunto persistente nos jornais
Tagarela e Rocinha Notícias e é tema constante em outros meios de comunicação atuais da
favela (on e off-line). Para dar uma ideia do cenário, no que diz respeito à mobilidade interna,
milhares de pessoas precisam se deslocar por dentro dos espaços da favela, em suas rotinas
residenciais, além de haver um volume grande de circulação decorrente de atividades
comerciais e do transporte de mercadorias164. Para agregar mais elementos à composição desse
cenário, podemos pensar em características demográficas e da estrutura viária local. Quanto ao
adensamento populacional, a Rocinha registrava o maior índice entre os bairros do Rio de
Janeiro, em 2010 – em média 1.000 hab/ha, segundo estudo da Fundação Bento Rubião
(GOUVEA; SOARES, 2010); a circulação desses moradores é feita por uma única via de acesso
principal ao tráfego rodoviário, que corta a favela de cima abaixo – a Estrada da Gávea, no
trecho entre os bairros de São Conrado e Gávea, com suas curvas sinuosas e espaços
comprimidos por carros estacionados na pista (estacionamentos são escassos). Vias menores
perpendiculares (em geral, de mão única) levam ao interior do morro, mas grande parte das suas
“artérias” é composta por becos e escadarias.
Esses são alguns aspectos desafiadores, junto a muitos outros existentes em relação ao
fluxo interno de pessoas e veículos na favela. O tema ocupa, além dos meios de informação
locais, o “boca a boca” das “rodinhas” de moradores, as conversas cotidianas dentro de ônibus
e vans lotados na hora do rush, são frequentemente discutidos em reuniões de movimentos
comunitários e alvo de cobranças desses grupos e outros residentes à XXVII Região
Administrativa (que atende à Rocinha). Outro dado relevante é o fato de a questão da
mobilidade urbana já ter sido alvo de programas de urbanização implementados na favela, onde
se destaca o PAC Favelas, programa dos governos federal e estadual mencionado nas páginas
163 Michele se refere aos impactos iniciais causados pelas alterações da prefeitura no sistema das vans da
Rocinha.
164 Dados do “Censo Favelas PAC”, referentes à atividade empresarial da Rocinha registraram a existência de
“6.529 empresas ou empreendedores, sendo formais ou informais” na Rocinha. O levantamento foi realizado,
entre 2008 e 2009, pelo Escritório de Georreferenciamento de Projetos do Governo, vinculado à Secretaria
Casa Civil do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Informações disponíveis em:
http://arquivos.proderj.rj.gov.br/egprio_imagens/Uploads/Apres_censo.pdf
228
Considero o tema da passarela relacionado à questão dos transportes pela seguinte razão:
uma das principais funções desse equipamento urbano era (e ainda é) proporcionar acesso
seguro a pontos de ônibus (meios de transporte) situados do lado oposto à entrada da favela.
Para chegar às paradas da maioria dos coletivos que levavam os moradores ao trabalho e ao
principal destino para se conectar de forma mais rápida com o resto da cidade (ou seja, via zona
sul), no fim da década de 1970, era necessário atravessar as pistas da Autoestrada Lagoa-Barra,
na saída do túnel em frente à favela, então chamado de Dois Irmãos (atual Túnel Zuzu Angel),
no bairro de São Conrado. De acordo com relatos dos moradores, publicados no Tagarela,
atropelamentos e mortes no local se tornaram constantes ao longo de quase uma década –
exatamente desde a abertura do túnel, e da sua autoestrada, em 1967-1968. A construção dessa
165 Em alguns números do jornal Tagarela, não constam as datas de publicação, que foram, portanto, deduzidas
com base no conjunto das suas 23 edições digitalizadas.
229
via expressa, que desembocava nos pés de uma área densamente povoada, sem ter sido
projetada acompanhada pela instalação de uma passarela destinada à circulação de pedestres,
tornou-se um fardo para os moradores da favela – que pagaram com muitas vidas o preço de
mais uma obra voltada para um processo urbano evolutivo “altamente estratificado” (ABREU,
p. 139, 2013).
Esse assunto esteve presente nos números 7, 12 e 13. No número 7, de março de 1978,
o texto “A passarela” registra o início da organização dos moradores pela construção da
passarela. Transcrevo os parágrafos iniciais:
negativos da construção do túnel são mencionados, como a alta no preço “da terra e dos
aluguéis”, assim como o detalhamento da organização dos moradores e as críticas aos políticos
então candidatos que “estão dizendo que são os pais da criança, que foram eles que deram a
passarela”. Destaco trecho inicial da matéria:
Eu acho que essa passarela devia ter vindo antes porque teria evitado muitas mortes”,
falou um morador ao Tagarela. Nem os jornais sabem o número exato de mortos na
pista do túnel Dois Irmãos. Tem morador que diz ser ‘quase uma morte por dia’. A
construção do túnel em 1967/68 e da pista custou milhões e milhões aos cofres
públicos, beneficiando os passeios do pessoal da zona sul e os novos e luxuosos
bairros dos granfinos como o Village. E os moradores da Rocinha????.
168 A primeira passarela da Rocinha já foi reformada em, ao menos, duas outras ocasiões. Na última, sua
estrutura foi completamente substituída pela versão atual, construída de acordo com projeto do arquiteto
Oscar Niemeyer, no contexto das obras do PAC 1 na Rocinha, em 2010. Recentemente, a matéria “Justiça
bloqueia contas de Pezão e mais 7 por superfaturar obras do PAC na Rocinha”, publicada no Fala Roça on-
line, tratou do superfaturamento das obras do PAC na Rocinha. Disponível em: https://falaroca.com/justica-
bloqueia-bens-pezao-pac-rocinha/ Acesso em: 08 jul. 2020.
231
mencionaram esse tema no próprio jornal Fala Roça. Ganharam o espaço da coluna “Memória”,
a partir da 6ª edição. Ressalto o primeiro parágrafo da coluna publicada na oitava edição:
O transporte coletivo foi abordado nas edições 7 e 14 do Tagarela, de 1978. Como não
foram encontradas menções a outros tipos de transporte coletivo (como as kombis) no material
de acervo do jornal, aparentemente, os ônibus eram o principal sistema de transporte (se não o
único) existente na favela naquele período. Ambos os textos, de março e novembro do mesmo
ano, denunciam a quantidade insuficiente de ônibus para atender à população local. Os títulos
são: “Redução dos nossos coletivos”, publicado no número 7, em março de 1978, e “Não somos
sardinha em lata: faltam ônibus na Rocinha”, no número 14, em novembro de 1978. Transcrevo
trechos iniciais dos textos: “Quem ficar parado ali mais ou menos perto da saída do túnel Dois
Irmãos verá uma enorme e constante quantidade de pessoas que atravessam as pistas, que são
por demais perigosas, a fim de pegarem os ônibus que ali circulam” [...] (Jornal Tagarela, n.14,
nov-dez/1978); “Vamos analisar o ônibus 545: pertence a uma grande empresa que bem poderia
colocar no local condução suficiente para o pessoal, pois o que fatura aqui, fazendo um percurso
de 15 minutos e cobrando um absurdo, deveria dar valor a esse povo sofredor” [...]. (Jornal
Tagarela, n.14, nov-dez/1978).
O primeiro texto descreve a cena vivida pelos moradores da favela diariamente para
pegar os ônibus no bairro de São Conrado, antes da construção da passarela: moradores
aglomerados no ponto de ônibus à espera do transporte, após se arriscarem para atravessar as
pistas de alta velocidade. Em seguida, relata a redução na quantidade de ônibus, das linhas 591
e 592, que serviam à região da Rocinha no trajeto São Conrado-Leme, sem nenhum tipo de
comunicação aos moradores, causando ainda mais dificuldades na sua locomoção. O segundo
texto menciona “uma deficiência total no transporte” durante o dia todo, filas enormes e, quando
chegam, os coletivos lotam rapidamente. Estimula a ação conjunta dos moradores: “vamos
pedir mais ônibus, é uma necessidade pública”, além de defender que “o transporte de massas
populares é obrigação a ser cumprida independente do lugar”.
O tema do transporte na Rocinha foi abordado pelo Jornal Rocinha Notícias em, pelo
menos, cinco matérias durante os cerca de doze anos de existência do seu suporte impresso
232
(2001 a 2012). De acordo com os exemplares consultados, o assunto não ocupou as manchetes
principais do jornal, mas tiveram chamadas na capa. Três matérias abordaram questões relativas
aos ônibus que serviam à população local, duas falaram sobre mototáxis e uma sobre kombis.
Na primeira década dos anos 2000, o grosso da população continuava refém das linhas
de ônibus (ainda o principal sistema de transporte coletivo local), mas outras modalidades então
chamadas de “transporte alternativo” – fruto de iniciativas locais – já começavam a aumentar,
mas oferecendo pouca segurança. No final da década, ambas as modalidades de transporte
“alternativo” (kombis e mototáxis) já haviam sido legalizadas. Vans também já circulavam
nessa época, apesar de ainda sem regulamentação. Regras nesse sentido vieram a ser
estabelecidas já nos “tempos do jornal Fala Roça”, como vimos na matéria que foi capa da sua
segunda edição (agosto/2013).
As duas primeiras reportagens foram publicadas em 2001, ano de estreia do jornal,
respectivamente em fevereiro e março. Como apenas o exemplar de março está disponível para
consulta, é possível saber que o jornal questiona a empresa Transporte Amigos Unidos, antes
dessa edição, a respeito da qualidade dos ônibus que circulam na favela, “velhos e sujos”, além
de apontar que eram insuficientes. Na edição de março, a terceira, o jornal publica a resposta
da empresa, então situada na Rocinha, aos seus questionamentos. O título sinaliza a posição da
empresa: “Empresa de ônibus promete aproximação com a comunidade e melhora dos
serviços”. A fala do representante da TAU é a principal – apresenta justificativas para os
problemas (falta de investimento na unidade da Rocinha, etc.), fala da relação com as kombis,
dos problemas da Estrada da Gávea (principalmente o estacionamento irregular), dos números
da frota, de funcionários e da política de mão de obra local. Promete ônibus para crianças em
horário escolar e melhorias nos serviços. O jornal adota um tom de diálogo.
Na mesma edição, os mototáxis são tema de outra matéria: “Mototáxi: rapidez e
insegurança”. O ponto central da matéria é a preocupação com a segurança de motociclistas,
passageiros e pedestres da Rocinha, do ponto de vista da população local, diante da circulação
crescente de mototáxis na favela – à época “mais de 150” e, então, sem nenhuma
regulamentação. Já em maio de 2003, o tema publicado na edição 19 é a Estrada da Gávea com
seus constantes engarrafamentos, sob o título: “Sinal vermelho para a Estrada da Gávea”. A
matéria é sobre o trânsito sobrecarregado na principal via que corta a Rocinha de cima a baixo.
O primeiro parágrafo apresenta o cenário e um diagnóstico:
veículos que passa pela via nos horários do rush é inacreditável. Transitam hoje na
Estrada da Gávea 40 kombis da COOPETRAR (Cooperativa de Transportes da
Rocinha); uma empresa de ônibus com quatro linhas rodando, a TAU (Transporte
Amigos Unidos); nove pontos de mototáxi, além dos ônibus escolares e veículos de
entregas (Jornal Rocinha Notícias, n.19, maio de 2003).
Diário de campo
Na primeira vez em que vi o Jornal Fala Roça, o impresso estava na sua terceira
edição, de fevereiro de 2014169, e trazia uma capa gráfica, com fundo preto sobre o
qual se sobressaía um grande ponto de interrogação em letras brancas, acima das
palavras “Cadê o Amarildo”170. Na hora, atentei para a complexidade do processo de
mediação que poderia estar em curso por trás das páginas daquele exemplar. Algumas
questões me vieram à cabeça, trazidas pelas lembranças do trabalho com mídia171, em
conjunto com moradores de favelas e, nesse caso, pensando na extrema dificuldade
que era, para jornalistas e fotógrafos desses lugares da cidade, lidar com os temas das
violências armada e policial no dia a dia da produção de informação locais. De um
lado, havia a revolta com a cobertura estigmatizante dos grandes veículos de imprensa
sobre as favelas, concentrada em episódios de violência armada, com predomínio de
versões policiais; de outro, a luta dos moradores e jornalistas locais pelo direito de
falar – e ser ouvido –, inclusive nessas situações, mas que era (e ainda é) atropelada
pela censura (internalizada como autocensura) explícita ou velada às suas vozes, no
contexto da militarização dos ambientes de favela. Conforme a
comunicadora/jornalista Gizele Martins, que relata inúmeros casos de silenciamentos
impostos aos comunicadores da Maré por forças policiais ou militares, “a censura e a
autocensura fizeram parte do cotidiano dos moradores comunicadores da Maré”
(MARTINS, p. 74, 2018).
Naquele momento, com o Fala Roça nas mãos, o caso que havia atingido ampla
repercussão, nacional e internacional, relacionando a imagem da Rocinha à violência policial
de forma talvez sem precedentes, estava estampado ali, na capa de um jornal local – sete meses
após o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Sousa (ocorrido em julho de
2013), retomando a mesma interrogação. Como seria, para um meio de comunicação da própria
favela e para seus integrantes, moradores locais, relembrar esse acontecimento, em seu contexto
traumático que ainda guardava muitos silêncios? Como teria sido a produção dessa edição e sua
circulação pela favela? Ao meu olhar, muitas camadas de sentido estavam sobrepostas naquela
capa de jornal.
Amarildo desapareceu no dia 14 de julho de 2013, após ser levado por policiais da UPP-
Rocinha para averiguações. Somente em 2016, treze PMs dessa unidade foram condenados pela
morte e tortura do pedreiro (o corpo nunca foi encontrado). Em 2019, a Justiça do Rio de Janeiro
absolveu 4 desses policiais. Alguns cumpriam pena em regime fechado, outros, em regime
169 Um dos pontos em que o jornal era distribuído era o C4/Biblioteca Parque da Rocinha, onde trabalhei em
2014. Havia um móvel, na entrada da BPR, onde ficavam expostos itens impressos. Um dia, entre fevereiro
e março daquele ano, vi ali pela primeira vez um exemplar do Jornal Fala Roça. A capa preta com o grande
ponto de interrogação e a pergunta “Cadê o Amarildo?” chamou atenção, pela capa tão expressiva, de um
assunto tão brutal. Guardei um exemplar; havia outros impressos, dos quais não me lembro.
170 A ilustração da capa da terceira edição do Fala Roça se encontra no capítulo 5 dessa tese.
171 Entre os principais trabalhos com comunicação em favelas dos quais participei, estão o site Viva Favela
(como editora de fotografia, em 2001-04) e a Agência-Escola Imagens do Povo (como coordenadora da
Agência e do Programa como um todo, em 2006-10).
237
semiaberto, como o major Edson dos Santos, comandante dessa UPP na época, que migrou para
a prisão domiciliar também em 2019172. Muitíssimo já se falou sobre este caso, do ponto de
vista das mídias externas à favela. Entre os estudos sobre o assunto, Marielle Franco agregou
importantes contribuições sobre este episódio específico ao tratar dos “desaparecidos das
UPPs” (FRANCO, 2014).
Para a família de Amarildo, a superexposição do caso na mídia trouxe efeitos nada
homogêneos: por um lado, ecoaram suas vozes, junto com as de milhares de manifestantes que
incorporaram o grito “Cadê o Amarildo?”, nas Jornadas de Junho de 2013 (em meio aos
diferentes matizes ideológicos presentes), como símbolo de reivindicação de direitos frente à
violência policial do Estado. Por outro lado, também expôs os familiares à insistente procura
de repórteres e mídias. Suas reportagens, em alguns casos, descumpriam o roteiro inicialmente
informado, mudavam de rumo na edição final apresentada ao público e acabavam colocando
em risco parentes do pedreiro, por exemplo, ao evidenciarem o local de suas moradias,
tornando-os potenciais alvo de represálias173. Nas páginas do Fala Roça, dois textos foram
dedicados ao assunto: um reproduzia matéria feita pela Agência Pública (agência de jornalismo
investigativo), de julho de 2013, e o outro era uma carta, escrita para aquela edição do jornal
pela sobrinha do pedreiro Michelle Lacerda, moradora da Rocinha.
A seguir, incluo um trecho da carta de Michelle (a versão integral da carta se encontra
na reprodução das páginas da terceira edição do jornal acima – na qual também está o texto da
AP). Nascida (em 1987) e criada na Rocinha, Michelle é integrante da coordenação do
movimento A Rocinha Resiste, formada em Gestão de Recursos Humanos, produtora cultural
e assessora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro. Mãe de duas crianças, sua família tem origens que remontam aos
tempos da escravidão, sendo extensa e antiga a ligação dos familiares com o lugar onde mora:
“Como minha família é muito grande e disseminada pela favela, a gente acabava cada domingo
em uma área da favela, mas sempre na favela”, resume. Com fala afetuosa, agregadora,
irrequieta e combativa, atuou em uma série de projetos culturais na Rocinha. Os pertencimentos
racial e religioso também são marcantes em sua trajetória de vida; entre muitas atividades,
trabalhou com relatos de mães de santo e rezadeiras da Rocinha, com intuito de registrar seus
A leitura dos textos publicados no Fala Roça, junto às conversas com a equipe do jornal
e outros interlocutores da Rocinha fizeram perceber que as respostas para algumas das questões
acima vinham de lugares por eles conhecidos: das relações de proximidade e das lutas por
direitos ou seja, as duas dimensões se tornaram expressivas diante do contexto que envolveu a
publicação do caso Amarildo na terceira edição do Fala Roça, fazendo pensar que essas
narrativas cumprem, além do papel de informar, o de reforçar elementos identitários, laços de
pertencimento e lutas coletivas. Nesses textos, em conjunto com o editorial do jornal,
publicados alguns meses depois do evento brutal que permanecia sem resposta, a pergunta
incômoda sobre o paradeiro de Amarildo foi feita novamente, a partir de lugares próximos e
familiares174. A dimensão da proximidade também se expressa na fala de Michele Silva ao
descrever sobre como ocorreu a decisão de incluir essa pauta no jornal. Ela e o irmão, Michel,
participaram da elaboração da terceira edição do jornal (junto a outros integrantes). Destaco
algumas de suas percepções sobre como esse número se concretizou.
A gente resolveu falar sobre ele, porque tínhamos uma ligação muito forte com o caso:
fizemos esse último registro dele em vida e a gente quis mostrar pras pessoas em tom
de protesto; não só por parte de nós, que éramos amigos da família (ainda somos),
mas por parte da comunidade, porque isso virou um tema nacional, não só um tema
brasileiro, não só da Rocinha. E abriu um precedente pra que outras famílias falassem
que isso aconteceu – porque a Rocinha teve um aumento de mais de 100% dos casos
de desaparecimentos depois que entrou essa UPP. [...]
Quando esse caso aconteceu, logo depois do sumiço dele, não tinha nem metade da
proporção que tem hoje. Foi uma coisa muito do nosso sentimento, do sentimento da
comunidade em relação ao caso. Todas as capas têm uma aceitação boa na
comunidade. Mas essa aí, é disparado a mais famosa entre as pessoas. Isso porque não
tem ninguém na Rocinha que não conheça esse caso. [...] É uma coisa de uma
comoção muito grande e o senso de comunidade tem muito isso. Não sei como é, se
morrer uma pessoa do seu prédio: ‘ah, que pena, morreu’. Aqui não, a morte de uma
pessoa, por mais que você não conheça o seu vizinho, todo mundo quer saber o que
aconteceu, do que ele morreu, o dia do enterro; se brincar, você vai até na missa de
sétimo dia do cara sem nunca ter trocado uma palavra com ele (Michele Silva,
entrevista temática: capas do Fala Roça. Data 08/08/2015).
174 Desde os primeiros dias do desaparecimento de Amarildo, familiares e moradores começaram a perguntar
pelo seu paradeiro, mas, no início, a repercussão foi pequena. Somente depois da insistência nesta divulgação
inicial por moradores e algumas mídias locais, por exemplo, usando as redes sociais, o caso ganhou
visibilidade (junto a outros aspectos).
239
Aí o diagramador sugeriu esse preto [o fundo preto da capa]. [...] Porque essa frase ia
entrar, a gente só não sabia como. Aí ele tirou quase tudo da capa, deixou as manchetes
sem foto, a única que tinha era a dele e tomou esse espaço todo pra fazer essa frase.
Quando a gente viu, adorou. [...] E essa capa chocou muito as pessoas, porque na
época estava bem recente, tinha mais de 6 meses que ele estava desaparecido, mas
ainda recente, porque toda semana surgia um fato novo sobre a investigação.
É muito estranho, porque essa é a única capa que a gente botou uma notícia trágica.
Nas outras, nem no miolo do jornal, tinha tido esse tipo de coisa. Teve assim,
tuberculose, dengue, mas era a única matéria que tinha coisas relacionadas a crime,
morte, segurança. É a única, de todas as edições. E a gente já ter esse feedback
negativo – negativo não, mas uma coisa importante de saber é que a notícia ruim mexe
muito mais com as pessoas do que a notícia boa. As pessoas têm um quê de
sensacionalista dentro delas; o tema em si de ter sumido uma pessoa já seria
impactante, mas uma pessoa daqui é que despertou mais. E a gente entregou essa
edição pela área onde ele circulava e foi muito marcante. Isso pra mim foi sinistro
(Michele Silva. Entrevista: comentários sobre fotografias feitas para a pesquisa. Data:
01/02/2016).
Legenda: Michel Silva distribui a terceira edição do Jornal Fala Roça, na localidade Terreirão da Rua 1, na parte
alta da Rocinha. Data: 28/03/2014. Na fotoentrevista, esta imagem foi escolhida para ser comentada por Michele
Silva, gerando os comentários acima.
Fonte: A autora, 2014.
Em suas memórias sobre a época da terceira edição do jornal, Michel destaca que
moradores pediram para “colocar” o Amarildo no jornal.
Não só nós achamos relevante, mas a própria comunidade pediu isso. Não é à toa que,
quando a gente entrega, as pessoas falam ‘olha aí ó, o Amarildo aí’.
[C] Mas como aconteceu de vocês entenderem que a comunidade queria?
É porque o jornal é dos moradores. Não é meu, não é do grupo. Quem decide o que
quer colocar no jornal são os moradores, a gente depende deles. A ideia é que o jornal
atenda às necessidades dos moradores. Durante a entrega da segunda edição, muita
gente falou: pô, cadê o Amarildo no jornal? Foi daí que surgiu a ideia de colocar ‘Cadê
o Amarildo?’ De tanto ouvir. Na reunião da terceira edição, eu deixei claro: tem que
colocar o Amarildo de qualquer jeito. Se a gente não colocasse, a população não ia
querer ler o jornal. É como se a gente ocultasse uma informação (Michel Silva.
Entrevista exploratória. Data: 28-03-2014).
Temas vinculados a questões de segurança pública ocuparam apenas uma das capas do
Fala Roça impresso, com o caso Amarildo, e esse também não foi um tema frequente nas
páginas do Tagarela e do Rocinha Notícias. Para compreender em maior profundidade os
motivos da pequena incidência na abordagem desses assuntos, seria necessário conhecer melhor
cada contexto histórico correspondente aos períodos de circulação destes jornais, assim como
sobre a atuação de suas equipes, etc. (o que foge aos objetivos desta tese). Aqui, limito-me a
registrar temas coincidentes e/ou contrastantes que foram possíveis de identificar nestas
publicações. Por ter acompanhado o Fala Roça mais de perto, foi possível acessar o contexto
que marcou esse tipo de situação. Um motivo foi determinante para a opção por não voltar a
publicar assuntos relacionados à violência armada na favela, especialmente vinculada a ações
policiais: ameaças e intimidações recebidas pelos comunicadores, que se concretizaram em
censura e foram internalizadas em forma de autocensura, ou seja, na opção por evitar publicar
pautas semelhantes no jornal. A mesma autocensura se reflete neste trabalho, de forma a não
detalhar elementos que possam trazer riscos aos integrantes do jornal. Por ter se tornado um
documento público, apenas mencionarei a listagem de organizações consideradas
“subversivas”.
Quanto ao Jornal Tagarela, em relação à dimensão da segurança pública, os temas
encontrados diziam respeito à repressão à liberdade de expressão nos números 16 (março/1979),
17 (data não identificada), 22 (agosto/1980) e 23 (data não identificada). Dentro desse assunto,
houve menção a dois episódios de violência policial: um relativo à proibição de reuniões entre
241
os moradores (no contexto de vigência do regime de ditadura civil militar) e outro ao tratamento
diferenciado da abordagem da polícia a moradores de bairros de maior poder aquisitivo e
moradores de favelas: “nas favelas a repressão não é mole”. O trabalho “contraditório da
polícia” consistia em levar o favelado no camburão caso fosse pego sem carteira assinada. O
título sugestivo deste texto, na capa do n. 23 é “Os playboys estão na área”. Além disso, houve
menção a atentados contra bancas de jornais que vendiam jornais da “imprensa alternativa” e
ao atentado do Riocentro. Destaco nota do número 16: “Queremos ter o direito de nos reunirmos
e organizar as nossas lutas sem ser molestados pela polícia, como vem sendo feito até então
com aqueles que resolvem abrir a boca”. Não foram encontrados registros referentes a conflitos
armados no jornal.
Já o Rocinha Notícias dedicou duas capas a assuntos ligados à segurança pública –
dentro do universo dos exemplares (39) consultados no âmbito dessa pesquisa. Em uma delas,
fez denúncias concernentes à violência policial relativas ao episódio do conflito armado de 2004
na favela, conhecido como “guerra da Semana Santa”, e, na outra, abordou a inauguração de
uma unidade da polícia militar na parte alta da favela, destacando o fato de representantes da
Rocinha não terem sido convidados para a solenidade. Quanto ao primeiro tema, a 22ª edição
do RN, de março-abril de 2004, publicou na capa uma situação de violência armada intensa que
perdurou por cerca de um mês, abalando as vidas dos moradores de diferentes formas. Ocorrido
entre fevereiro e março daquele ano, o conflito se iniciou com uma disputa entre facções
criminosas pelo domínio do comércio de drogas ilícitas, no varejo, na Rocinha, e culminou com
uma explosão de violência policial. Representantes da secretaria de segurança do governo do
estado reconheceram, em entrevista ao RN, que o BOPE entrou na favela “sem ordens
superiores” e que era preciso “dar uma controlada nas ações da polícia durante as incursões na
Rocinha”. Essas ações resultaram não só no aumento do terror na favela quanto em mortes de
moradores.
O evento ganhou ampla cobertura dos grandes veículos de imprensa, por eles
frequentemente denominado de “guerra da Semana Santa”. No programa Globo Repórter, da
Rede Globo, de abril de 2004, todo dedicado à “guerra da Rocinha”, a repórter definiu: “O
morro se tornou sinônimo de guerra. Um Iraque bem perto de nós”. E não houve qualquer
menção à violência policial. Nas lembranças do jornalista/comunicador Michel Silva, então
com 11 anos, o episódio foi recordado, em sua entrevista de história de vida175, como a pior
175 Trecho de entrevista de história de vida com Michel Silva, realizada para essa pesquisa em 06/02/2017,
portanto, antes da ocorrência de outro conflito armado de grandes proporções na Rocinha, já em tempos pós
UPP e durante a Intervenção Federal instalada no Rio de Janeiro em fevereiro de 2018. E um número elevado
242
“guerra” já vivida, que obrigou moradores a se confinarem em casa por cerca de uma semana:
“Essa guerra explodiu na Semana Santa de 2004. Foi a pior guerra que eu tinha vivido. Ninguém
podia sair de casa; foi uma semana de guerra mais ou menos”.
Ao abordar o assunto, o Rocinha Notícias estampou, no n. 22, a manchete “Tiros na
cidadania”. O subtítulo da matéria complementava: “Foram 24 dias de tiros, confusões,
violências. Três pessoas foram mortas e uma ferida durante as incursões noturnas e desastrosas
do Batalhão de Operações Policiais (BOPE) e a Coordenadoria de Recursos Especiais
(CORE)”. O assunto ocupou 2/3 da primeira página, incluindo três fotografias que se fundiam
em uma espécie de mosaico de imagens: na primeira, o rosto de uma senhora aparece por entre
o vidro quebrado de uma janela; na segunda, jovens atores realizam uma performance, tendo
as mãos acorrentadas com uma corda e olhos ensanguentados; e a terceira mostra um detalhe
de uma arma de fogo.
Acredito ser possível fazer a leitura de que predomina nessa reportagem o tom de
denúncia e crítica em relação às ações policiais, que ocorreram durante o período dos conflitos
amados de 2004, por meio do somatório de signos verbais e visuais presentes na capa da edição
e no texto referente ao assunto no interior do jornal. Na capa, o agente responsável por ações
violentas, abordadas de forma indireta nas imagens e no título principal, é explicitado no
subtítulo, ao mencionar que pessoas foram mortas e feridas “durante as incursões noturnas e
desastrosas” do BOPE e CORE. Já no conteúdo publicado no interior do jornal, junto à cobrança
por respostas feita às autoridades policiais, há, ao mesmo tempo, uma tentativa de interlocução
com os responsáveis pela área de Segurança Pública do governo do estado do Rio de Janeiro.
Assim sugere o conjunto de elementos que compõe a matéria: o título – “Rocinha ‘chama a
polícia’ para a Polícia” –, o subtítulo – “Enquanto a Mídia anunciava guerra do tráfico, BOPE
e CORE aterrorizavam a Comunidade. Subsecretário, Marcelo Itagiba, garantiu a volta da
tranquilidade”176 – e o próprio texto. Sua ênfase se concentrou na realização de reuniões entre
moradores, grupos culturais e instituições da Rocinha com autoridades públicas para chegar “a
uma solução para o conflito”, além de medidas anunciadas pelo governo do estado e a realização
de uma manifestação de moradores como um “grito em busca da paz”. Porém, não tardou para
que as promessas de que “não haveria mais excessos nas operações [policiais]”, feitas por
representantes da área de segurança pública, não fossem cumpridas. Cerca de uma semana
de operações policiais, resultando em mortos e feridos, também foi registrado pelo Observatório da
Intervenção.
176 A grafia do texto, com letras maiúsculas e minúsculas, foi reproduzida conforme o exemplar original do
jornal.
243
depois, na véspera do dia da manifestação dos moradores, o BOPE retornou à favela de noite
“e até às 4 horas da manhã, atirou a esmo em casas, ruas, becos e até nas encanações de água
potável”, segundo a publicação. “Amedrontados”, moradores realizaram a manifestação, que
teve ampla cobertura da imprensa; no mesmo dia, o subsecretário de segurança convocou nova
reunião com representantes da associação de moradores e anunciou novas medidas de segurança
para a Rocinha.
Já na segunda matéria relativa a questões de segurança pública, veiculada na capa do n.
23, de março-abril/2005, a manchete foi “Rocinha ganha reforço policial”, junto a uma
fotografia de um grupo de policiais militares próximos a uma fita de inauguração (tendo à frente
o então secretário de segurança Marcelo Itagiba). O tema foi a inauguração de uma unidade do
23º Batalhão de Polícia Militar na área do Laboriaux, no alto da Rocinha, mas o destaque
principal foi para o fato de nenhum representante de grupo ou instituição local ter sido
convidado para a solenidade, praticamente foram impedidos de chegar, por conta do aparato de
segurança montado em torno do evento, enquanto a “grande imprensa” foi chamada pelas
autoridades para fazer a cobertura e teve transito livre ao local. Portanto, o tom dos textos é
novamente de crítica às autoridades de segurança pública.
244
coisas”. São mencionados apenas itens de alimentação, considerados muito caros em relação a
um salário-mínimo que não aumenta. “O governo faz contas fantásticas para mostrar que com
salário-mínimo uma família pode viver bem... bem que podia...”, ironiza a “Sra Ligia”, que
assina o texto. Já nos exemplares do Rocinha Notícias, não foram encontrados temas relativos
ao tema do custo de vida nas capas do jornal (esta pesquisa abrange, fundamentalmente, as
capas destes veículos).
247
5ª Edição – “Lixo acumulado a céu aberto pode causar doenças aos moradores”
(manchete publicada na capa do jornal)
O descarte do lixo é uma das discussões mais antigas que atravessa gerações de
moradores da Rocinha. Em sua sexta edição, publicada entre o fim de 1977 e início de 1978177,
o jornal Tagarela já mencionava: “Esta talvez seja a história mais antiga desta comunidade”,
referindo-se às “valas – maior problema da Rocinha” e o mesmo texto terminava apelando à
população: “Não jogue lixo nas valas”. O assunto foi abordado na capa da quinta edição do
Fala Roça, de fevereiro de 2015, em reportagem de Beatriz Calado, com enfoque principal na
dimensão da saúde pública – sob o título “Lixo acumulado a céu aberto pode causar doenças
aos moradores”. O texto se inicia da seguinte forma:
Cerca de 36 mil toneladas. Essa foi a quantidade de lixo retirada da Rocinha em 2013
pela COMLURB (Companhia Municipal de Limpeza Urbana). Apesar de a coleta ser
regular, o volume de resíduos sólidos que estão espalhados por toda a comunidade
assusta os moradores. Todo esse lixo, que não é retirado, pode ser o ponto de partida
para algumas doenças, como infecções de pele, hepatite A, leptospirose e dengue.
Com reflexos em diversos aspectos da vida cotidiana, o lixo segue sendo assunto sério,
sobre o qual cada morador tem experiência e opinião, permanecendo recorrente nos variados
meios de comunicação hoje existentes na Rocinha. No Fala Roça, ganhou a capa da 5ª edição,
que chegava aos moradores “de cara nova”: o design gráfico reformado privilegiava imagens e
cores mais vivas. Dar maior ênfase à linguagem visual, utilizando mais fotografias no jornal,
trouxe mais facilidade de identificação dos moradores com os temas tratados, conforme
entendimento de Michele sobre o sentido das alterações feitas na diagramação:
Depois que a gente botou mais foto na capa, ficou mais fácil, até pra pessoas que não
têm muita leitura, identificar que aquela foto ali faz parte da vida dela, em algum
momento. Se a pessoa não souber ler, ela vai reconhecer aquela lixeira porque passa
todo o dia por ali pra ir ou voltar do trabalho, por exemplo. Então, dá pra ela entender
do que se trata (Michele Silva. Entrevista com fotografias. Data: 01/02/2016).
Foi uma experiência legal. E nessa matéria eu fiz justamente aquilo que eu falava: que
você tem que falar com todos os lados. Por exemplo, aí, era um problema de lixo
relacionado à Comlurb, então tive que ficar insistentemente ligando e mandando e-
mail pra Comlurb pra eles mandarem uma nota ou qualquer coisa. Ou, por mais que
não mandasse, eu falaria: “Tentamos entrar em contato com a Comlurb, mas não
177 Vale lembrar que não constam datas de ‘publicação’ (ou quando forma rodados em mimeógrafo) muitos dos
exemplares digitalizados do Jornal Tagarela. Portanto, algumas datas foram estimadas a partir de datas
mencionadas em exemplares anteriores ou posteriores aos que não possuíam essas informações.
249
Os problemas das valas / É algo a se pensar / Não jogue entulhos grandes / Os que
moram em cima / para os de baixo não prejudicar / Pensemos nos vizinhos de baixo /
Eles não têm culpa / de lá estar / E assim todos que virem vão dizer / Aprenderam a
ser cristãos / Aprenderam a favorecer / (ref.) Eu sou daqui / vou cooperar / entulhos
grandes / não vou jogar [...] (Trecho da letra “Falando de vala”, compositor Quintino).
250
“Você se lembra....
Da preparação do Natal na capela do Largo do Boiadeiro? Cada um foi pra casa
pensando no que poderia nascer entre nos. Daí saiu a ideia da limpeza das valas que
logo contou com a participação de todos, pois a vala é problema de todos [...]
“Você se lembra...
– Passamos na sua rua batendo fotografias da vala.
– Entramos na sua casa perguntando coisas da vala.
– Distribuímos folhetos sobre os problemas da vala.
– Pregamos cartazes convidando para a reunião da vala.” (...)
“Você se lembra...
Dizia: “quando começar o serviço, pode me chamar”. Agora chegou a hora e estamos
chamando para se juntar num grande MUTIRÃO” [....]
O tema do processo histórico de ocupação da área onde se situa a favela da Rocinha foi
abordado pelo Fala Roça, em sua 6ª edição, de agosto de 2015. À época, a cidade Rio de Janeiro
estava em meio às comemorações oficiais dos seus 450 anos, o que motivou o jornal a abordar
a história da favela (conforme menciona o texto). Escrita por Michel Silva, a matéria apresenta,
logo no início, a proposta de contar “a origem da Rocinha por meio da memória do assessor
comercial João Castro Guidão, 52 anos, herdeiro da família Castro Guidão”. Portanto, o
enfoque se concentra no tempo da ocupação da favela a partir do início do século XX.
Transcrevo o primeiro parágrafo: “Em homenagem aos 450 anos do Rio de Janeiro, o jornal
FALA ROÇA revirou o baú e contará a origem da Rocinha por meio da memória do assessor
comercial João Castro Guidão, 52 anos, herdeiro da família Castro Guidão”.
Em resumo, a matéria se refere ao tempo em que a Companhia Castro Guidão (cujos
negócios envolviam fazendas, bancos, indústria de tecidos, etc.) recebe, como pagamento de
uma dívida, a fazenda Quebra Cangalha, em 1915, – suas terras ocupavam grande parte do
terreno onde hoje se assenta a Rocinha. Perto dos anos 1930, a fazenda é loteada, alguns lotes
são vendidos, praticamente sem qualquer tipo de infraestrutura e, em seguida, a Companhia vai
a falência. O restante do espaço foi, então, sendo ocupado ao longo dos anos, em grande medida,
por levas de trabalhadores migrantes que chegavam à cidade em busca de ganhar o seu sustento.
Estão incluídas na matéria, ainda, duas fotografias da região, reproduzindo pontos de vista de
ângulos semelhantes, tomados da parte alta da favela: uma, colorida, de autoria de Michel, dos
tempos atuais; outra, em preto e branco, do arquivo pessoal da Família Castro Guidon, de 1958.
O uso dessas imagens remete a um recurso para representar a passagem do tempo.
Outras contribuições de moradores e suas pesquisas (algumas de forma conjunta com
iniciativas acadêmicas ou por meio de diferentes trabalhos e parcerias) sobre a história da favela
recuam mais no tempo, considerando as origens da Rocinha desde a presença de povos
indígenas na região e, posteriormente, de escravos que usavam o local como rota de fuga.
É sempre importante lembrar que, o lugar hoje habitado por nossas famílias e
instituições, já foi terra indígena. Com a invasão dos portugueses a partir do século
XVI, a dizimação dos indígenas e as mazelas da escravidão inseriam o território no
drama da exploração colonial. A chamada Freguesia da Gávea (propriedade que deu
origem à Favela da Rocinha e que foi o nome dado à região até a atual Barra da
Tijuca), era também rota de liberdade para os escravos que fugiam para os Quilombos
do Sacopã e das Camélias, conforme Cleonice Lopes178.
178 LOPES, Cleonice. “A participação das mulheres na construção da Rocinha”. In: REDE DE MUSEOLOGIA
SOCIAL DO RIO DE JANEIRO; MUSEU SANKOFA MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ROCINHA; MUSEU
DO HORTO (orgs). Participação das mulheres na construção do território: Rocinha e Horto. 2019.
254
Iniciativas voltadas para a dimensão das memórias locais (individuais e/ou coletivas)
também vêm sendo crescentemente valorizadas, trabalhadas e sistematizadas de diferentes
formas, ao menos, desde os anos 1970. De acordo com Antonio Carlos Firmino e Lygia Segala:
7ª Edição – “Casal abre empresa de bolos após perder o emprego e conquista clientela”
(manchete publicada na capa do jornal)
A 7ª edição do Fala Roça saiu em dezembro de 2015, fechando o ano com o lançamento
de três números, a maior quantidade de publicações no período de um ano. O tema escolhido
como destaque na capa do jornal pode ser situado entre alguns assuntos, a exemplo do mundo
do trabalho ou do que é considerado como mundo do empreendedorismo (conforme
mencionado no texto), além de aspectos relativos à economia. O título da reportagem (repetido
na capa do jornal e na matéria interna) traz três ideias combinadas, por meio de três verbos de
ação: “Casal abre empresa de bolos após perder o emprego e conquista clientela”. Em sequência
cronológica, estão presentes eventos que provocam, ao menos em alguma medida, impactos
importantes e duradouros sobre percursos individuais de vida: perder emprego, abrir empresa,
conquistar clientela.
Inicialmente, inclusive, um primeiro aspecto pode ser observado em relação a esse texto:
o fato de se referir, mais diretamente, a trajetórias individuais, diferenciando-se das outras, cujas
abordagens, em sua maioria, partiam de questões sociais mais amplas para, por meio delas,
“chegar” aos indivíduos atingidos por elas, ou, como se diz no jargão jornalístico, adotavam
um ponto de vista do “geral para o particular”. Já o enfoque principal da história desse casal
inverte a mão, partindo de uma história particular para representar um nível mais geral, coletivo.
Essas são duas formas recorrentes nas narrativas jornalísticas (ou no campo da mídia). Aqui o
que interessa é perceber como se dá a adoção dessa ou daquela forma/opção de construir a
narrativa (e não indicar qualquer tipo de julgamento sobre elas). Sendo assim, noto que histórias
individuais de moradores da favela, que ganhavam mais lugar nas páginas internas do jornal
(conforme o balanço de assuntos abordados pelo jornal), são trazidas para a capa nesta edição.
A ênfase no enfoque de situações positivas também acompanhou a narrativa.
A matéria narra a história de um casal de jovens moradores da Rocinha que consegue
superar a dificuldade de ter ficado desempregado ao se tornarem “empreendedores”, por meio
da abertura de um negócio voltado para o ramo de confeitaria (bolos de pote e decorados) na
favela. Conforme o texto escrito por Beatriz e Michele, a moça e o rapaz, então com 23 anos,
perderam os empregos, provavelmente de carteira assinada, respectivamente de vendedora e
gerente de padaria, na mesma época (abril de 2015). Após os primeiros meses de “gosto
amargo”, a situação é descrita como “só doçura” após fundarem a BC Bolos e conseguirem
“colocar as contas em dia”. Reproduzo a seguir o primeiro parágrafo do texto:
O ditado “fazer do limão uma limonada” nunca fez tanto sentido para o casal Bárbara
Araújo e Allan Alves, ambos de 23 anos. Em abril desse ano, a vida deles deu uma
reviravolta. Ela era vendedora e ele trabalhava como gerente em uma padaria até que
os dois foram demitidos no mesmo mês e ficaram sem renda fixa. Se nos primeiros
meses a vida de desempregado teve um gosto amargo, hoje, é só doçura. Para enfrentar
257
a crise que o país atravessa e para colocar as contas em dia, os dois viraram
empreendedores ao fundar a BC Bolos, um negócio que aposta na venda de bolos de
pote e em bolos decorados.
Uma das autoras do texto, Michele, comentou sobre essa matéria na entrevista com uso
de fotografias para esta pesquisa – as imagens comentadas eram referentes à entrega da 7ª
edição do jornal. Ao pensar sobre esse número, ela entende que há textos “parecidos”; dois
deles são o do casal que abre a empresa de bolos, e outro que conta a história de uma moradora
que passa no exame da Ordem dos Advogados Brasil depois de muitas tentativas. A maneira
em que esses textos se assemelham é descrito da seguinte forma: “no sentido de falar que a
pessoa teve uma vida difícil, família pobre e a oportunidade de crescimento na vida que tiveram
– uma pelo estudo, outra pelo talento que tem com os bolos”. Além disso, também acredita que
“cada edição tem um sentimento ali”; no caso dessa edição, pensa ter influenciado no
“sentimento” que prevalece o fato de ter sido produzida perto do fim do ano, então “teve uma
coisa de “vamos trazer notícia legal, inspiradora, pra melhorar o início do ano das pessoas”.
O contexto da perda de emprego do casal de jovens retratados na matéria, no ano de
2015, foi de indicadores econômicos difíceis que tiveram impacto sobre o mercado de trabalho
no país. Segundo o IBGE, considerando a série histórica entre 2012 e 2017, “Os indicadores
econômicos apresentaram expansão, desaceleração e estagnação até 2014, decrescimento no
biênio 2015-2016 e pequena recuperação em 2017”. Esses indicadores se referem ao PIB e per
capita à taxa de variação de consumo das famílias; ambos tiveram queda em 2015 e 2016 e
“durante os últimos três anos da série, tais resultados trouxeram impactos negativos para o
mercado de trabalho brasileiro, como o aumento da desocupação, da subutilização da força de
trabalho e da informalidade”179.
A reportagem de capa dessa edição do Fala Roça traz a oportunidade de refletir sobre a
circulação do tema do chamado “empreendedorismo” na Rocinha à luz do estudo de caso desse
processo de comunicação, suas conexões com visões de mundo dos comunicadores e suas
formas de comunicar. Considerando o contexto específico dessa matéria, assim como o balanço
dos temas publicados no jornal impresso, faço algumas reflexões. O sentido de
empreendedorismo aparece, na fala de Michele, associado à ideia de “oportunidade de
crescimento” para quem teve “uma vida difícil, pobre”. Na reportagem, o casal empreendedor
também tem sua história associada à ideia de superação de uma situação difícil de trabalho (ou
da condição de desemprego). Superação é também um enfoque frequente relacionado às
179 Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018/IBGE,
Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. 151 p. (Estudos e pesquisas.
Informação demográfica e socioeconômica, ISSN 1516-3296; n. 39).
258
sozinho) em múltiplas funções e atividades, para conseguir “pagar as contas”. Retomo esse
tema no capítulo 7, ao analisar tensões presentes no universo discursivo do processo de
comunicação do Fala Roça.
260
A oitava edição do Jornal Fala Roça foi publicada em agosto de 2016. Como todas as
outras edições do impresso, essa também teve suas singularidades – a começar pela matéria que
ganhou destaque na capa. No ano em que foram realizadas as Olimpíadas na cidade do Rio de
Janeiro, a manchete perguntava “O que a Olimpíada deixou para o Rio e a Rocinha?”. Foi o
único número do impresso lançado durante todo aquele ano e, de forma não deliberada, também
se tornou o último número publicado em todo o percurso de existência do jornal (ao menos, até
o presente momento). Algumas circunstâncias contribuíram para ambas as situações. Aqui, não
pretendo explicá-las, mas junto a elementos de contextualização do tema, busco narrar uma
experiência de acompanhamento da feitura do Fala Roça ao longo de 2016, quando estive
próxima de suas rotinas e vivências (não só nesse momento, mas me refiro especificamente ao
tempo relativo à realização da oitava edição). E foi assim que presenciei também uma parte do
processo de realização dessa matéria de capa relacionada às Olimpíadas. Esses períodos de
proximidade despertaram muitas reflexões. Entre elas, talvez uma das principais tenha sido: o
Fala Roça não se tratava apenas de um impresso feito de notícias, mas de um jornal feito de
experiências de vida, de suas possibilidades e impossibilidades, do cruzamento de relações, dos
percursos de apuração das notícias, de aprendizados que viravam saberes. Havia previsões e
planejamentos, mas também imprevistos. Era, portanto, um jornal feito não só de notícias, mas
de vidas bastante próximas a elas. Nesta parte, não tratarei dos jornais Tagarela e Rocinha
Notícias, por avaliar terem sido inexistentes assuntos nesses jornais que pudessem suscitar
alguma forma de relação com o tema dos Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro (tratado
na capa da edição do FR).
Diversos estudos vêm analisando a realização dos grandes eventos esportivos na cidade
do Rio de Janeiro e no Brasil, nos últimos anos; por si só, esse tema demandaria um
aprofundamento maior na literatura já produzida (no âmbito das ciências sociais e dos estudos
urbanos, entre outras áreas de conhecimento). Para pensar o contexto de publicação dessa
edição do FR, em especial, irei me referir a alguns entendimentos, decorrentes de investigações
empíricas, sobre efeitos trazidos para as favelas do Rio decorrentes da instalação de eventos
como a Copa do Mundo e as Olimpíadas na cidade. A preparação da cidade para os
megaeventos trouxe impactos profundos relativos à reestruturação urbana do espaço, de acordo
com Santos Junior e Novaes (2018). Uma das principais consequências do “ajuste espacial”,
com características neoliberais, realizado para recepção dos Jogos, seria o aprofundamento das
desigualdades sociais, junto a “processos de gentrificação” relacionados às favelas.
262
Diário de campo
[10/12/2016]
Marquei com o pessoal do Fala Roça de encontrarmos, naquele sábado de manhã, pra
ser uma espécie de despedida do ano de 2016 e também propus falar sobre como
andava a minha pesquisa. Inicialmente, marcamos na Biblioteca Parque da Rocinha,
mas Michele propôs mudar pra casa da mãe dela, Dona Josita, por conta da situação
da BPR, que está ameaçada de fechar devido a problemas de gestão financeira dos
governos do estado e da prefeitura, que mantêm as Bibliotecas Parque atualmente.
Quando cheguei, lá estavam Michele, sua irmã, Monique, Bia e Dona Jô conversando
com uma vizinha. Monique tem participado do jornal, na parte administrativa, e ajuda
na apuração de matérias, pelo que pude perceber. Michel não pode ir. Por uma
263
Naquele ano, o assunto das Olimpíadas predominou na maior parte dos veículos de
imprensa seja regionais, nacionais ou internacionais. No Fala Roça, a equipe também decidiu
falar do assunto, abordando um ponto de vista da população local, e a reportagem teve
colaboração dos jovens que participaram das oficinas de comunicação comunitária realizada
pelo jornal. As oficinas ocorreram em fevereiro e julho, portanto, a produção daquela edição
do veículo coincidiu com o período da segunda oficina de comunicação comunitária realizada
pelo jornal – mesmo período em que aconteciam os Jogos Olímpicos na cidade. O tema era,
então, já comentado por todos. O curso teve objetivo “formar” novos comunicadores
comunitários, conforme notícia publicada no próprio jornal, o que contribuiu para propor como
atividade prática, aos participantes, fazer parte do processo de produção do jornal, incluindo a
reportagem sobre as Olimpíadas. De forma conjunta, foi definido o enfoque do tema e a forma
de realizá-lo. A ideia principal era saber a opinião dos moradores da Rocinha sobre as
consequências trazidas pelos Jogos Olímpicos (ou o “legado”). Os jovens moradores foram a
campo, fizeram suas apurações e entrevistas, e esse material foi incorporado ao 8º número do
jornal. O texto de introdução da reportagem traz uma visão crítica à realização dos grandes
eventos esportivos, fundamentando-se em dados objetivos sobre a realidade da Rocinha.
Quanto às opiniões dos moradores, são diversificadas. Ao longo do mesmo ano, um dos
integrantes do jornal, Michel, produziu uma série de artigos para o jornal inglês The Guardian,
em formato de diário, contando sobre a rotina de vida na Rocinha no período pré e pós
“Olímpico”. Além dele, jovens moradores das regiões de favelas da Maré e do Alemão também
escreveram seus relatos para a mesma série, chamada “Rio Olympics: view from the favelas”181,
que se iniciou em agosto de 2015 e prosseguiu até agosto de 2017. Senso crítico forte, baixas
esperanças em relação a benefícios que pudessem ser trazidos, para as favelas, face à realização
dos Jogos Olímpicos, denúncias de antigos e novos problemas nesses lugares, junto à
consciência sobre os direitos concernentes aos seus espaços de moradia foram a tônica dos
relatos de todos os jovens.
181 Os artigos da série do jornal The Guardian “Rio Olympics: view from the favelas” estão disponíveis em:
https://www.theguardian.com/global-development/series/rio-voices-our-olympic-odyssey
265
Essa abordagem contrastou com uma situação onde foi explicitada a opinião de uma
pessoa que integrava a Agência de Redes sobre o conteúdo que “deveria” ser publicado no
jornal. Novamente, registro ser importante notar o conteúdo do aconselhamento para os
comunicadores do jornal, não importando a autoria da fala (aqui não identificada). Quanto ao
conteúdo, tratou-se de uma crítica à matéria que estampava a capa da oitava edição – descrita
no parágrafo anterior. Segue a descrição da situação, que presenciei em outubro de 2016, no
evento descrito no diário de campo.
Este episódio pode servir para pensar sobre a dinâmica discursiva do jornal,
interferências e tensões, que é tema do próximo capítulo da tese. A situação foi durante um
evento do qual participaram o Fala Roça e outros jovens integrantes de projetos realizados em
favelas e periferias do Rio. Era um dia de festa. Ao passar pelas barracas onde os projetos
dispunham seus materiais de apresentação e ver a capa da última edição do Fala Roça, uma
pessoa comentou que a reportagem da capa “não devia estar ali [no caso ‘aqui’]”. O motivo de
tal afirmação foi fato de entender a matéria em questão como uma “pauta de militância”.
Relembrando, a manchete era a seguinte: “O que a Olimpíada deixou para o Rio e a Rocinha?
Veja a opinião de moradores”. “Militância”, como esta pessoa explicou em seguida, tratava-
se de “movimento social” e, portanto, as pautas ligadas a movimentos sociais não deveriam
estar no jornal. Essa afirmação foi complementada com sugestões sobre assuntos que deveriam
ser abordados no periódico, como “histórias de quem vive na Rocinha”, o que elas fazem ou
produzem, “porque quem lê o jornal quer saber quem é o cara que vive na Rocinha, o que é
típico de lá. As coisas boas.”182.
O contexto que envolveu essa situação pode ajudar a perceber aspectos relativos à
construção dos discursos deste jornal. Ao ouvir esse comentário, indaguei a essa pessoa o que
considerava ser “militância”, já que os jovens do jornal não esboçaram reação, ficando em
silêncio diante daquela opinião a respeito da reportagem. Ali estavam membros da equipe, além
de boa parte dos integrantes de duas Oficinas de Comunicação Comunitária (também
convidados para o evento) organizadas pelo Fala Roça. Assim, a maioria deles tinha
participado, de alguma forma, da elaboração da matéria em questão, assinada por Michel e
outros três novos “colaboradores” (conforme citado no expediente do jornal). A pauta surgiu
nos encontros que compuseram a segunda Oficina e foi sugerida como tema a ser trabalhado
como uma espécie de laboratório coletivo de criação da matéria. Alguns foram para a rua colher
entrevistas de moradores da Rocinha sobre os impactos das Olimpíadas, outros participaram
das discussões da pauta e Michel redigiu o texto final (revisado por Juliana). Ou seja, a matéria
foi produzida a partir de discussões coletivas durante a Oficina; ali foram decididos seus
principais encaminhamentos e alguns palestrantes ajudaram com orientações jornalísticas – eu
mesma sugeri técnicas de entrevista para abranger diferentes localidades da Rocinha.
A reação dos jovens foi permanecer em silêncio. De minha parte, surgiram dúvidas
sobre os sentidos de militância que estavam sendo acionados - quem seriam os militantes da
Rocinha? Quais seriam suas pautas? Por que não poderiam ter voz no jornal? Como a matéria
tinha sido criada por muitos ali, a partir daquela fala todos podiam estar sendo considerados
militantes. Foi após este silencio que decidi indagar à mesma pessoa o que era “militância” em
sua visão. Sua reação foi receptiva, em tom de orientação sobre o que pensava ser produtivo ou
não abordar no jornal. Neste momento, ele explicou que “militância era coisa de movimento
social”. Todos escutamos com atenção e não me recordo de ninguém ter feito qualquer colocado
a respeito daquelas considerações. Tudo se deu de forma rápida, já que o evento estava
acontecendo. Houve muitas atividades ao longo do dia e todos ficaram entretidos.
Posteriormente, algum tempo depois, ao encontrar novamente com a equipe do jornal, perguntei
se recordavam dessa situação. Não se recordavam. E a descrevi. Os jovens não ficaram
surpresos. Disseram que muita gente dava “pitaco” sobre os rumos do jornal; muitas vezes não
davam atenção.
A situação anteriormente tratada traz uma questão que pode ser remetida a formas ativas
de agência desenvolvidas pelos comunicadores do jornal Fala Roça. Nesse sentido, é possível
pensar que os jovens não exerceram uma crítica explícita às considerações feitas pelo
coordenador do programa, naquela ocasião específica. Mas a abordagem de “problemas
sociais” nas capas do periódico, conforme enfatizou Michel em várias ocasiões, pode apontar
para uma forma de posicionamento crítico. Se assim o for, a crítica não verbalizada dos jovens
aparece na escolha dos assuntos destacados no jornal. Nesse sentido, aparentemente, o tema das
Olimpíadas está sendo remetido por ele à ideia de um “problema social”, assim como ocorreu
com a maioria das edições lançadas. Por mais que tenha desagradado a algumas opiniões, a
matéria, no fim, estava ali.
267
Legenda. Cenas da distribuição do Fala Roça pela Rocinha, entre 2014 e 2016.Indicam características do processo
de comunicação relativo ao impresso. Tríptico 1: jornal entregue de mão em mão; tríptico 2: moradores se
reconhecem no jornal; tríptico 3: leitores idosos; tríptico 4: jornal deixado no comércio e a indumentária como
forma de distinção.
Fonte: a autora, 2014 a 2016.
183 Período referente às edições acompanhadas: distribuição da terceira (fev/2014) à oitava edição (ago/2016) e
produção, da quarta (ago/2014) à oitava edição. Houve intervalos nessa dinâmica de acompanhamentos, devido
às rotinas ocupadas dos comunicadores (entre trabalhos, estudos, o jornal e a vida pessoal) e necessidade de
conciliação das nossas agendas. A despeito disso, foram muitas as ocasiões de convivência, uma vez que
estabelecemos um contato fluido, com base na relação de confiança e afeto que foi se formando.
184 Para maiores detalhes sobre rotinas de produção jornalística em meios de informação voltados para notícias
sobre favelas, ver BARONI; AGUIAR; RODRIGUES, 2011. Os autores estudaram o processo de produção de
conteúdo do portal Viva Favela, projeto realizado pela organização não governamental Viva Rio a partir de
2001 a, pelo menos, 2010. Uma das primeiras iniciativas brasileiras existentes na internet de produção de
informação exclusivamente sobre favelas, passou por diferentes fases e formatos, sempre com envolvimento de
moradores locais no trabalho jornalístico e fotojornalístico. O artigo mencionado acima se refere ao período de
funcionamento do portal a partir de 2009.
269
popular, comunitária, alternativa, “de favela”, dentre outras formas de nomeação. Isso não
significa dizer que são práticas homogêneas, realizadas da mesma forma na Rocinha ou em
outras localidades – há aproximações e distanciamentos entre as formas de atuação das diversas
mídias existentes. Cada experiência de comunicação (no caso estudado, a jornalística – também
múltipla) carrega seus próprios saberes, heranças e tradições, sua maneira de falar e de
reivindicar o direito de narrar o cotidiano do local de moradia, o qual, em última instância, trata-
se do direito à liberdade de opinião e expressão, descrito no artigo 19º da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Já mencionado em nota de rodapé neste trabalho, não é demais
reproduzir um trecho deste artigo no corpo do texto: “Todo ser humano tem direito à liberdade
de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de
procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente
de fronteiras” 185.
185 Trecho do Artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Importa fazer a ressalva de que
outros documentos e tratados subsequentes à DUDH condicionaram esse direito à não propagação de
discursos de ódio e incitação à discriminação e a violências. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-
19-direito-a-liberdade-de-opiniao-e-expressao/. Acesso: em agosto/2020.
270
regional). Além disso, há grupos de mídia provenientes de favelas que não utilizam tais
expressões. De qualquer forma, em se tratando de categorias discursivas, de uso coletivo, estas
sofrem mutações, adquirem sentidos diversificados dependendo da situação e do aspecto da
atividade que se deseja enfatizar. Assim, há gramáticas e conteúdos diferenciados sob a mesma
denominação – muitas vezes autorreferida; um mesmo grupo pode, ainda, rever determinados
elementos com os quais se identificava inicialmente e que, em dado momento, passam a não
mais se adequar aos seus fazeres.
Seguem falas dos comunicadores - pontuadas por observações breves - onde surgiram
expressões para qualificar suas próprias formas de comunicar. Tratam-se de trechos de
entrevistas, foto entrevistas e/ou conversas sistematizadas de acordo com os temas
mencionados pelos interlocutores (não necessariamente a partir de perguntas abordando o tema
especifico da “comunicação comunitária”).
O que diferencia a gente dos outros veículos, das outras mídias é aquela história da
gente falar para a gente. Não é ninguém de fora falando. A gente, de dentro de locais
em que moramos, falando pra pessoas que moram ali. Se eu fosse definir, seria
basicamente isso. Mídia comunitária é aquela de uma comunidade que fala pra uma
determinada comunidade. Os próprios moradores seriam os agentes, por assim
dizer186[grifo meu].
Beatriz, inicialmente, qualifica o tipo de mídia que reconhece ser o Fala Roça usando a
expressão “mídia comunitária”. Para ela, há diferença clara entre esta e as “outras
mídias”/”outros veículos” (por sua vez, indiferenciadas nessa fala) e se trata da comunicação
endógena, feita por moradores de uma determinada localidade. Enfatizada de várias formas, diz
respeito a “a gente falar para a gente”, “ninguém de fora falando”, “a gente, de dentro de locais
em que moramos, falando pra pessoas que moram ali”. Já Michele usou a expressão “jornalismo
comunitário” para falar da prática do Fala Roça e a conectou ao tema da
parcialidade/imparcialidade:
Acho que só de fazer jornalismo comunitário a gente já está sendo parcial, porque
você está defendendo uma bandeira. Quem faz jornalismo comunitário tem esse
discurso, de que estou falando o que a mídia tradicional não fala. Aí você já está sendo
parcial, eu acho. Paralelo a isso, a gente quer que as pessoas cheguem nesses temas
porque identificamos no nosso público, não só nele, mas nas pessoas, o senso crítico
das coisas que estão acontecendo ao nosso redor muito baixo – de aceitar tudo. Então
a gente quer dar pra elas a oportunidade de pensar com a sua própria cabeça e chegar
na sua própria opinião se seguir a nossa; se pudesse botava a minha, mas eu não posso.
Então a gente quer dar indícios pra que ela possa pensar em casa, com a família,
despertar nela uma capacidade de pensar no ambiente em que ela vive. 187
187 Trecho de entrevista com Michele sobre matérias de capa do Fala Roça impresso, realizada em 08/08/2015.
Comentários sobre a manchete da segunda edição “Sem escolha”, cujo subtítulo é “Prefeitura do Rio modifica
trajeto de vans na Rocinha e Vidigal e ocasiona transtornos no cotidiano de usuários e trabalhadores”.
272
assume, é algo que está sendo construído a partir de concepções variadas e em processo.
Vejamos a concepção de Michel.
Nessa fala, Michel expressa uma percepção de “jornalismo comunitário” como uma
sabedoria que, apesar de não se dar conta, já fazia no seu entorno próximo (portanto, dominava).
Ele foi adquirindo mais conhecimentos sobre essa atividade a partir de leituras e de práticas de
outros comunicadores de favelas, que conhecia, como Rene Silva, jovem criador da mídia Voz
da Comunidade, no conjunto de favelas do Alemão, em 2005. Esta fala de Michel também leva
a pensar nessa forma de fazer jornalismo como uma construção processual, conectada a um
duplo movimento: de identificação com o local de origem – de qual Michel fala porque conhece
e gosta, sem precisar frequentar um curso formal para isso; e, ainda, no sentido da incorporação
de conhecimentos, tanto a partir do contato com práticas semelhantes em outras favelas, quanto
de leituras que remetem à prática do jornalismo profissional.
A expressão comunicação “de favela” foi mencionada por Michel durante a última
rodada de conversas a respeito de sua história de vida (em abril de 2019). A intenção foi explicar
o tipo de comunicação que entendia ser feita no contexto do Fala Roça. Para tanto, recorreu a
uma diferenciação relativa à ideia de comunicação comunitária, quando apropriada por textos
acadêmicos. Em sua visão, esses textos traziam definições teóricas um tanto descoladas da
realidade dos meios de comunicação produzidos em favelas. A expressão comunicação “de
favela” remetia, em sua visão, a iniciativas de comunicação feitas por moradores “no cotidiano”
das favelas. Observo que o termo comunicação comunitária é também adotado em textos de
apresentação do Fala Roça, de acordo com seus próprios entendimentos. Entendo que exista
uma reivindicação epistemológica em torno do significado dessa expressão, lembrando que os
jornalistas do Fala Roça alcançaram o ensino superior, portanto, já podem se localizar também
no campo da produção acadêmica de conhecimento.
Uma vez por mês (aos sábados), José Martins de Oliveira abre a reunião do grupo
Rocinha Sem Fronteiras quase sempre com as mesmas palavras: “Boa noite, queria agradecer
a presença de vocês. O Rocinha Sem Fronteiras existe há dez anos e o nosso objetivo é ampliar
o conhecimento de direitos e deveres dos participantes desse grupo”. Esta foi a apresentação
feita no dia 11 de março de 2017, cujo tema em discussão era o Dia da mulher. Criado em 2006,
o RSF é coordenado por um conjunto de moradores, a maior parte deles pertencente a gerações
mais antigas, considerados e respeitados como lideranças locais. Dentre estes, estão: José
Martins, Roberto Lucena, Maria Helena Carneiro, Antônio Carlos Firmino, Cleonice Lopes e
Simone Rodrigues (Simone se situa em faixa etária mais jovem do que os demais). O local, o
horário e a dinâmica da reunião são fixos: a Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, antiga
igreja católica da Rocinha situada na Fundação, localidade na parte média da favela, sempre às
17hs; quanto à dinâmica, Martins (como é conhecido) também explica no início de cada
encontro:
“A gente chama sempre alguém pra falar sobre o nosso tema e essa pessoa fala trinta
minutos; depois abrimos pra inscrição de perguntas e ela responde, em tempo
limitado, porque a gente tem até às 19hs pra ficar aqui. Começa às 17h em ponto e
temos 2 horas. Antes disso, a gente faz uma apresentação rápida, pra nossa convidada
saber quem é cada um de nós”.
Quanto aos temas de cada reunião, a escolha é feita, por votação, no fim de cada
encontro. Martins, que costuma desempenhar o papel de mediador dos encontros do RSF, e
Roberto Lucena concederam entrevistas para esta pesquisa, narrando o surgimento do grupo e
seu funcionamento, cada qual com o seu ponto de vista. Nas palavras de Roberto: “Nós
fundamos o Rocinha Sem Fronteiras. O nome já indica, um pouco, o nosso interesse. É uma
pluralidade, um grupo suprapartidário, em que cabe todo mundo - gente do PDT, PT, sem
filiação partidária -, mas de uma concepção progressista”. Sobre os objetivos e o funcionamento
do grupo, ele complementa:
“[O RSF] tem demonstrado, senão forças, mas, pelo menos, organização pro
enfrentamento, que é isso que você está chamando de ação: a organização dos
trabalhadores e trabalhadoras. E a nossa principal bandeira é a favor do saneamento
básico, mas a gente discute educação, na localidade, discutimos saúde, o papel da
região administrativa e de todas as suas demandas, discutimos o fluxo do transporte,
a precariedade do transporte e, sobretudo, o papel da segurança. Depois que entrou a
UPP na Rocinha, tivemos muitos problemas, como mortes, assassinatos, torturas e
opressão de uma maneira mais ampla”.
274
“O Rocinha Sem Fronteiras começou porque dois jovens, inclusive um deles era meu
filho, apareceu no grupo que a gente participava, o grupo político, dizendo que eles
não queriam mais participar do grupo. Eles queriam participar de um grupo que não
fosse partidário; que fosse político sim, mas que tratasse das questões internas da
comunidade e gostariam que a gente ajudasse a eles. Nós, então, combinamos e
ficamos fazendo reuniões do nosso grupo partidário e do grupo deles - uma no terceiro
sábado e outra no primeiro sábado. Com o tempo, as pessoas foram saindo do partido,
era o PT (Partido dos Trabalhadores) e acabou que eram as mesmas pessoas que
estavam num grupo e no outro. Então pra quê ficar dois grupos, entendeu? Optamos
por ficar no Rocinha Sem Fronteiras. E os jovens acabaram mudando de ideia, porque
era questão de momento deles, né? (...) Depois de um ano de existência, foi que surgiu
a ideia de pensar num nome e demos o nome de Rocinha Sem Fronteiras. Aí os jovens
saíram, a gente ficou e acabou assumindo a coordenação”.
Outras características também estão presentes desde as origens do RSF – que pode ser
entendido como uma forma de ação coletiva na Rocinha - ou foram sendo agregadas. Dentre
elas: a proximidade com a igreja católica (os encontros acontecem em um dos seus principais
espaços na favela); o fato de ser aberto à participação de pessoas de fora da Rocinha e de sua
atuação não se limitar apenas às reuniões. Quanto ao pertencimento religioso, Martins lembra
que os jovens participantes da fase inicial eram de um grupo ligado à igreja católica. “Então a
ideia deles era criar um movimento em que os jovens da igreja participassem, só que, da igreja,
vieram poucos”. Essa baixa adesão, para ele, ocorreu por conta das rotinas de vida dos jovens,
sem muito tempo livre: “Eles se casaram, se formaram…”. Atualmente, há de fato
predominância geracional de moradores mais antigos (embora, empiricamente, eu tenha notado
que a participação não se limitava a faixas etárias mais elevadas; ao contrário, jovens
“engajados” em ações de melhorias na favela estavam presentes, embora, em menor número.
Quanto à atuação para além dos encontros mensais, o RSF encaminhou, por exemplo, denúncias
relativas a obras do PAC na favela não condizentes com os planejamentos e melhorias para a
população local. Tais denúncias geraram uma ação judicial contra a construção do Teleférico,
em 2013.
Transporte, saúde, lixo, educação, criança, o papel da Região Administrativa, segurança
pública e falência das finanças do Estado do Rio de Janeiro foram alguns dos diversos temas
275
debatidos nas reuniões. Em junho de 2016, um dos encontros discutiu188 o tema “O papel das
mídias comunitárias”. Na ocasião, estiveram presentes representantes das mídias Fala Roça,
TV Tagarela, Favela Da Rocinha.com e Rocinha News. O público presente, de cerca de trinta
pessoas, fez perguntas e explicitou suas expectativas em torno dos veículos. Seguem registros
da ata da reunião sobre a apresentação inicial de Michel Silva, do Fala Roça:
188 Informações colhidas na ata desta reunião do grupo Rocinha Sem Fronteiras, disponível em seu blog
http://rocinhasemfronteiras.blogspot.com.br/. Acessado em 23/03/2017.
276
“Uma coisa é um jornal de fora falar alguma coisa negativa da Rocinha; outra coisa é
alguém daqui falar: ‘O Nem fugiu num carro, não sei o que lá’. Aí já é ruim pra gente,
porque moramos aqui, né?. A grande mídia fala desses assuntos de guerra, morte e
tal, mas não podemos reforçar a criminalização da favela. Então a gente não contribui
com essa lógica de raciocínio”.
condensam singularidades e, em si, podem ser reveladores de certas performances que integram
e produzem significados relativos aos processos de comunicação elaborados/inventados.
Acompanhei a distribuição do jornal Fala Roça desde o seu terceiro número (de
fevereiro de 2014) até a oitava edição, lançada em agosto de 2016, além da preparação da nona,
em maio de 2017. Ao longo desse período, aos poucos, fui tomando contato com elementos
significativos que perpassavam tais momentos e suscitavam a possibilidade de um encontro,
em alguma medida, com as principais fases de feitura de qualquer jornal – ou seja, a produção,
a própria distribuição e a recepção189. Acredito contribuir para a possibilidade de encontro
dessas dimensões, no caso do Fala Roça, o fato de tratar de um processo de produção em menor
escala. Em poucas palavras, explico como as outras dimensões (produção e recepção) desse
processo comunicativo se fizeram presentes nos momentos de distribuição do impresso pela
Rocinha: a etapa da produção está representada na própria figura dos comunicadores, pois
participam da entrega dos exemplares, tornando este um dos elementos que singulariza a
gramática do jornal190; já os “jeitos” de entregar nos falam sobre a sociabilidade dos
comunicadores com/em seu ambiente de moradia e, portanto, com o seu público em potencial,
ou seja, os receptores do conteúdo da mídia.
Em meio a essa dinâmica, outras características da gramática do jornal também se
configuravam: observei, por exemplo, questões relativas à sociabilidade e à mediação relativas
ao ambiente da Rocinha. Quanto à sociabilidade, a entrega do jornal proporcionou a
possibilidade de os jovens conhecerem lugares que nunca tinham ido ou pouco frequentavam
na favela. A partir desse movimento, novos laços sociais foram criados, mas também surgiu a
sensação de ser “de fora” de alguns lugares dentro da própria Rocinha. Quanto à mediação, uma
característica própria à mídia foi o fato de interagirem especialmente com moradores mais
idosos, que apreciavam a leitura do meio impresso. Portanto, o jornal desempenhou um papel
importante de mediação intergeracional – dimensão já percebida pelos jovens jornalistas antes
da realização desta pesquisa. As fotografias ajudaram a reforçar essa percepção, uma vez que
muitas pessoas idosas estavam presentes nas imagens lendo o jornal que recebiam dos
entregadores.
Ao longo do percurso das caminhadas pela favela, formaram-se, ainda, concepções dos
comunicadores sobre maneiras mais ou menos adequadas de entregar um exemplar. Entregar o
189 Conforme Marco Morel “Em termos esquemáticos, qualquer veículo de comunicação, ao existir, passa por
três fases: produção, distribuição e recepção” (Morel, 1986:127).
190 Ao longo do tempo, outras pessoas têm sido incorporadas a esta tarefa para auxiliar no escoamento das edições.
Estas eram inicialmente voluntárias e, mais recentemente, uma pequena ajuda de custo passou a ser oferecida,
atrelada à conquista de novos recursos (variáveis e inconstantes) pelo jornal.
278
jornal nas mãos do morador, forma vista como mais adequada para a maioria dos integrantes,
cumpre diferentes funções e simbologias (sob seus pontos de vista); entre as primeiras, estão as
de garantir maiores possibilidades de leitura e de obter sugestões de pauta para o jornal; entre
as últimas, está a de configurar um elemento de identificação do jornal, estabelecido pela
distinção que os comunicadores buscam criar frente a uma outra mídia impressa muito presente
na Rocinha, apesar de não ser uma produção local, que é o caso do jornal Folha Universal191.
Para os jovens do Fala Roça, esse jornal da Igreja Universal do Reino de Deus é considerado
seu maior concorrente. Por ser colocado nas frestas de portas e janelas das casas e, via de regra,
não ser entregue de “mão em mão” aos moradores, buscar outros modos de entrega se tornou
também uma importante estratégia de distinção em relação a esse veículo. Vestir short curto
(no caso das meninas), no dia da entrega, faz parte dessas formas de diferenciação para não
serem confundidas com os adeptos da igreja.
Por esses motivos, e por ser uma atividade que acompanhei desde o início da pesquisa
de campo, tendo desenvolvido junto a ela registros escritos e visuais (usados conforme
metodologia explicitada adiante), incluo abaixo o relato de campo da primeira e da última
distribuição que acompanhei do jornal Fala Roça.
191 Foi possível observar que esse jornal possui presença significativa nos lares da Rocinha, mesmo nos locais de
mais difícil acesso. Informações como a periodicidade a tiragem deste jornal que circula na Rocinha poderão
ser coletadas posteriormente.
279
por cima do portão, vinham em disparada para atacar. Marcas de mordidas nas mãos
do jovem não deixavam dúvidas.
No início do longo caminho de descida, o jornal foi entregue a um senhor,
sentado na calçada em frente a um pequeno comércio. Havia poucas pessoas
circulando pela rua, talvez por conta do sol e por ainda ser hora de almoço. Ao pegar
o jornal, ele imediatamente começou a ler, atraído pela manchete. Em seguida, duas
meninas que estavam pelo caminho também receberam. Uma delas pegou primeiro,
olhou a capa, pediu outro exemplar para a outra que estava ao seu lado. Esta ficou
olhando, calada, então perguntei se sabia ler; ela respondeu que sim. Seguimos em
frente e, quando retornamos, a mesma menina perguntou se o nome que estava escrito
na capa era Amarildo, evidenciando que não sabia ler. Respondi que sim (Michel e
Pedro caminhavam um pouco mais à frente, acelerados) e fui surpreendida pelo
comentário da outra: “ela é sobrinha do Amarildo”. Não sei se os jovens ouviram esse
comentário, parei e fiquei na expectativa de ver a reação deles por estarem diante de
uma familiar de Amarildo, o personagem principal daquela edição do jornal. Eles
continuaram caminhando, afastando-se aos poucos. Apesar da vontade de ficar ali e
tentar ouvir o que a menina teria a dizer sobre o jornal, fiquei com receio, já que não
avistava mais os jovens e estávamos atrás da praça onde tínhamos visto o grupo do
tráfico.
Segui os jovens, que foram se afastando da localidade com certa pressa.
Continuamos a descer, entrando em cada viela e beco para deixar os jornais. Àquela
altura, havia tirado umas poucas fotos na parte mais alta da favela, com consentimento
de Michel, já que ele havia sinalizado que não fotografasse por ali. Quando chegamos
a uma localidade mais abaixo, ele me disse que podia fotografar, pois era “rota
turística”. Estávamos em uma viela um pouco mais larga, onde havia mercadorias à
venda expostas dos dois lados (objetos de decoração, artigos femininos, bichos de
pelúcia, pufs coloridos entre outros). Moças sentadas por ali receberam o jornal; uma
era vendedora e, outra, dona de um salão de beleza mais adiante. Ambas
demonstraram interesse no jornal, mas a vendedora disse que ia guardar pra ler mais
tarde, acrescentando que estava ocupada. Michel disse a elas que se tratava de um
jornal voltado somente para assuntos da Rocinha e continuou a entregar. Fiquei por
perto e conversamos em pouco. Perguntei à dona do salão se conhecia o jornal. Ela
respondeu que não, acrescentando que também não conhecia outros meios locais de
comunicação e elogiou a iniciativa, pois era uma forma de os moradores dizerem o
que pensavam ser importante. Ao ser indagada (por mim) sobre o que gostaria de dizer
no jornal, mencionou situações relacionadas ao problema do lixo perto da sua casa:
ela e outros moradores “se juntam” para pagar a uma pessoa para varrer a rua onde
moram (cada uma contribui com R$ 10 por mês); além disso, reclamou que faltam
lixeiras na rua. Em seguida, perguntou quais eram os canais para “falar com o jornal”.
Michel tinha retornado e mostrou os contatos de comunicação na última página do
jornal – havia apenas endereços de e-mail, nessa edição. Ela pareceu satisfeita com a
resposta. Mais adiante, Michel comentou que não parava para falar com cada morador
que recebia o jornal, porque acabava atrasando a distribuição.
Continuamos a descer, passando pela Rua 2, perto do local onde o pedreiro
Amarildo foi visto pela última vez. Há duas unidades de apoio da UPP só na Rua 2,
onde Michel disse ser um lugar tenso. Por sugestão dele, fomos até as imediações da
casa da família de Amarildo, para entregar o jornal, mas a viúva não estava e disseram
para voltar depois. Há dois textos nessa edição sobre o caso Amarildo, um da Agencia
Pública e o outro é uma carta de uma sobrinha do pedreiro, Michelle Lacerda,
conhecida de algumas pessoas do jornal. Na mesma rua, encontramos com um moto
taxista (na época, participante da equipe do Fala Roça). Ele e Michel conversaram
sobre o financiamento do jornal, já que, da verba inicial conquistada para custear as
três primeiras edições, restava pouco. Com os recursos chegando ao fim, alguns dos
jovens esperavam conseguir sustentabilidade por meio de anunciantes. Ainda não há
parcerias fechadas nesse sentido, mas Michel disse estar confiante, já que conhece
“muita gente”. Já o moto taxista foi mais cético, enfatizando as dificuldades de fechar
com comerciantes locais, muitos deles concorrentes entre si. Todos os exemplares
levados pelos jovens foram entregues antes de chegarmos de volta à biblioteca e
chegou ao fim a distribuição da terceira edição do Fala Roça.
281
192 A equipe do Fala Roça passou por mudanças, desde a sua criação (em 2012). Uma das principais razões foi
a necessidade de conciliar o trabalho voluntário no jornal com outras atividades remuneradas. O veículo
chegou a ter apenas um integrante, mas, a partir de 2014, Beatriz (nascida em 1994), Michele (nascida em
1989) e Michel (nascido em 1993) se fixaram nas principais funções ligadas à elaboração de conteúdo dessa
mídia. Michel e Michele são irmãos. Além deles, outros integrantes assessoravam em tarefas de produção.
193 Este será um ponto a ser desdobrado e melhor pensado ao longo da escrita da tese.
194 Irei abordar em maior profundidade, no texto da tese, como se desenvolveram os modos de fotografar, assim
como as interdições ao registro de imagens durante a distribuição do jornal.
195 Desde o início do acompanhamento da atividade de distribuição, eu e os jovens do jornal estabelecemos um
entendimento mútuo de que certos lugares na Rocinha não poderiam ser fotografados. Eles me avisariam
quando eu deveria guardar a câmera. E assim fizemos, sem problemas, respeitando esses limites. Pela minha
experiência de trabalho, lidando com fotografia e comunicação em outras favelas, eu sabia daquele ‘regime’
de interdição que regulava o ato de fotografar nesses lugares. Aqui é preciso lembrar duas coisas: 1) As
interdições à atividade fotográfica em geral são frequentes, podendo inclusive ser pensadas como intrínsecas a
ela. Esta é uma visão predominante, sobretudo tomando como parâmetro a percepção da comunicação como
Direito Humano, segundo a qual respeitar os limites éticos dessas interdições é crucial. A respeito, ver o artigo
19º da Declaração dos Direitos Humanos (https://nacoesunidas.org/artigo-19-direito-a-liberdade-de-opiniao-e-
expressao/). 2) Em situações de estudo, a orientação de onde é permitido ou não fotografar pode ser um dado
de pesquisa, portanto, pretendo refletir sobre ele, no contexto especifico desse estudo.
282
Outros efeitos deste contexto foram sentidos no dia a dia da população local, dentre eles,
a superexposição da Rocinha na mídia: grandes emissoras jornalísticas montaram o seu “cerco”
na entrada da favela desde os primeiros dias desse período de conflitos. Equipes fixas de
reportagem faziam transmissões diárias ao vivo sobre “a maior favela do Brasil”, agora “em
guerra”, vizinha de bairros nobres da cidade. No dia a dia, moradores montavam suas redes de
autoproteção através da comunicação via grupos de WhatsApp e conviviam com a sensação
aumentada de terror que chegava, em grande medida, por aparelhos de TV instalados em todas
as regiões da favela – praticamente em cada casa, comércio, restaurante, bar, birosca, padaria,
salão de beleza, barbearia, lanchonete e outros estabelecimentos.
6.3 Mapa da Rocinha: esboço de uma cartografia social a partir de trajetos do Fala Roça
Para complementar a metodologia de uso da fotografia nesta pesquisa, propus aos jovens
do Fala Roça realizar uma dinâmica exploratória que situasse, no mapa da Rocinha, as imagens
da distribuição do jornal feitas entre 2014 e 2016. A geógrafa Tatiana Sá se entusiasmou com
a ideia e ministrou uma oficina de cartografia social para nós (eu e o grupo do jornal).
Posteriormente, Michel cedeu para a pesquisa um mapa online da Rocinha que costumava
utilizar. Apenas ele e Beatriz encontraram tempo na rotina ocupada para inserir, na plataforma
online, as fotos que haviam selecionado na atividade da fotoentrevista. No corpo da tese, a
inclusão de ilustrações deste mapa cumpre o papel de explicitar o cruzamento dos percursos da
pesquisa de campo com os trajetos de distribuição do jornal. Trata-se do início de um diálogo -
196 Entre fevereiro e agosto de 2018, foram registradas 12 operações policiais na Rocinha, de acordo com dados
do Observatório da Intervenção (http://observatoriodaintervencao.com.br/dados/apresentacao-de-infograficos/
Acesso em 20/03/2019). Até julho de 2018, houve ao menos 50 mortes na favela, segundo o comunicador Edu
Carvalho, morador da Rocinha (informações provenientes da matéria “Uma bula para tentar se proteger da
violência”, publicada no site #Colabora em 16/07/2018 (https://projetocolabora.com.br/cidadania/bula-para-se-
proteger-dos-tiroteios/ Acesso em: 20 mar. 2019). Esses números serão conferidos e atualizados no texto da
tese.
283
Legenda: Mapa da Rocinha onde foram inseridas fotografias indicando trajetos de distribuição do Fala Roça,
elaborado a partir da dinâmica de cartografia social feita com integrantes do jornal. As localidades internas da
favela estão demarcadas com cores diferentes e foram delimitadas por Michel Silva.
284
Fonte: https://www.google.com/maps. Indisponível para consulta pública por estar em processo de construção.
Legenda: Visão aproximada do primeiro mapa, mostrando informações que aparecem ao clicar em cada
fotografia; no caso, trata-se de uma cena da entrega da 6a edição do Fala Roça, de agosto de 2016. No painel, do
lado esquerdo, informações sobre as edições entregues.
Fonte: https://www.google.com/maps. Indisponível para consulta pública por estar em processo de construção.
285
Legenda: Distribuição do Jornal Fala Roça na Rocinha, 5ª edição. Michel entrega o jornal para moradora da
favela. Data: 21/02/2015.
Fonte: a autora, 2015.
Neste capítulo, proponho-me a refletir sobre alguns pontos que percebi, sob a forma de
tensões, ao pensar sobre um universo discursivo relacionado aos percursos do jornal Fala Roça.
Alguns desses tensionamentos já foram mencionados ao longo do texto da tese, outros
ganharam contornos mais explícitos neste capítulo. De início, é importante esclarecer o que
estou considerando como tensão no âmbito dessas reflexões e, em seguida, situar a concepção
de discurso que tomo como inspiração. Quanto às tensões, refiro-me a cenários que fizeram
parte do percurso de atuação do jornal Fala Roça, percebidos durante o tempo de aproximação
com as suas rotinas, compostos por relações sociais, contextos, conjunturas e outros elementos
que possibilitaram notar conexões entre situações sociais, ou da vida cotidiana, e seus reflexos
286
sobre a prática discursiva do jornal. Exemplos são mudanças na linha editorial e silenciamentos
frente a intimidações sofridas. Daí a metáfora do jornal como “janela” para pensar sobre a
cidade do Rio e efeitos da sua dinâmica urbana manifestados no dia a dia da produção dessa
mídia. Alguns desses cenários foram narrados pelos próprios comunicadores do jornal, outros
foram fruto de percepções a partir da convivência e dos dados coletados durante este estudo;
apesar de organizados aqui, em separado, boa parte deles se entrelaça.
O que chamo aqui de cenário faz parte da arena discursiva por onde o jornal se
movimenta e, para abordá-la, levo em conta concepções sobre discurso propostas por Michel
Foucault. Esses cenários tensionaram, de alguma forma, o “acontecimento” desse processo
discursivo, remetendo à hipótese de Foucault, em A ordem do discurso (1996), segundo a qual
a produção do discurso é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e remível materialidade” (1996, p. 9). Tais
referências teóricas ajudaram a pensá-los, conforme mencionado, como elementos presentes na
trajetória desse jornal da Rocinha que possibilitaram fazer conexões com contextos sociais,
locais e mais amplos, nos quais esteve inserido, atentar para outros discursos presentes na
sociedade com os quais dialogou e seus posicionamentos ideológicos, além de algumas “regras”
socialmente criadas que condicionaram muitos desses dizeres, interligados com fazeres.
As tensões aqui enfocadas fazem parte dos seguintes cenários: 1) representações de
estudos acadêmicos sobre comunicação comunitária, popular e alternativa e visões de
comunicadores de favelas sobre suas próprias práticas; 2) a continuidade do papel de resistência
das mídias de favelas frente aos estereótipos construídos ou reproduzidos por veículos da
grande imprensa; 3) efeitos do contexto de militarização no processo de comunicação do Fala
Roça, pré e pós a realização dos megaeventos na cidade, implicando em silenciamentos e
dilemas na escolha entre notícias “boas” ou “ruins”; e 4) efeitos do universo das políticas
públicas e projetos sociais voltados para jovens de favelas no processo de comunicação
estudado, levando em conta suas interfaces com o discurso do empreendedorismo.
É preciso observar o fato de estas tensões terem incidido sobre a composição discursiva
do Fala Roça, mas não se tratarem da totalidade de elementos que dela fizeram parte,
obviamente. Algumas delas coincidem com situações enfrentadas por outros meios de
comunicação de favelas em tempos recentes, como a censura (MARTINS, 2018; SOUZA,
2018) em contextos de militarização. Mas desejo enfatizar que os efeitos destas tensões ocorrem
de formas diferenciadas, uma vez que as favelas são heterogêneas, assim como o são as mídias
presentes nesses locais. No caso do Fala Roça, argumento que as tensões contribuíram para a
287
7.1 Aportes teóricos e metodológicos para pensar tensões: Análise do Discurso e Michel
Foucault
Uma forma de ação (verbal e/ou social), um conjunto de práticas, uma forma de poder.
Essas são algumas ideias que vêm sendo propostas acerca do conceito de discurso (e práticas a
ele associadas), buscando ir além das ferramentas de análise predominantes até a década de
197 ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única história. Tradução de Eri a Barbosa. Original disponível
em: http://www. ted. com/tal s/lang/pt-br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story. Html [s/d].
Tradução disponível em: http://www. google. pt/url, 2009.
288
1960, para pensar uma ampla gama de assuntos relacionados aos usos dinâmicos da linguagem.
Tais ferramentas, assim como pontos de partida teóricos, concentravam-se principalmente na
área da linguística. Nos anos 1960, formou-se o campo de estudos da Análise do Discurso (AD),
em sua vertente francesa, sob influência de pensamentos das ciências sociais e da filosofia,
afastando-se dos princípios estruturalistas, até então, frequentes em investigações neste terreno.
A partir de uma perspectiva crítica, propôs uma abordagem interdisciplinar, reivindicando a
compreensão da produção das linguagens – e da formação de sentidos – em seu entrelaçamento
com a dimensão das práticas históricas e sociais. Segundo Maria do Rosário Gregolin (2007),
esse campo de estudos está solidamente instalado no Brasil, com interesse cada vez maior em
tomar a mídia como objeto de investigação, e destaca que “a análise do discurso é um campo
de pesquisa cujo objetivo é compreender a produção social de sentidos, realizada por sujeitos
históricos, por meio da materialidade das linguagens” (2007, p. 11).
Neste trabalho, apoio-me na perspectiva teórica e metodológica da Análise do Discurso
para pensar sobre o universo relacionado ao processo de comunicação do Jornal Fala Roça e,
mais especificamente, nas contribuições de Michel Foucault para esse campo de estudos. Ao
lado dessa forma de análise, utilizei também elementos de análise de conteúdo para
complementá-la (como quantificação e categorização de temas abordados nas edições
impressas do Fala Roça), com objetivo de ter uma visão de conjunto sobre o conteúdo da mídia
estudada. Farei uma breve contextualização sobre conceitos acionados a partir dessa
perspectiva para, então, abordar relações que parecem úteis para pensar o caso aqui enfocado.
Michel Pêcheux, filósofo e linguista, teve papel importante na formulação da base teórica da
AD, ao propor que as análises da linguagem levassem em conta a língua “em uso” e não apenas
o seu sistema estrutural. Ainda conforme Gregolin, a complexidade do discurso como objeto
de estudo, “no qual confluem a língua, o sujeito e a história”, levou Pêcheux a propor um campo
“transdisciplinar” de estudos, sob influência de autores como Mikhail Bakthin, Michel
Foucault, Louis Althusser e Jacques Lacan (2007). Bakhtin, que concebe a linguagem a partir
de um fundamento dialógico, já havia apontado em direção similar anteriormente, criticando
análises de conteúdo em pesquisas científicas pautadas estritamente em elementos textuais.
Conforme Bruno Deusdará e Décio Rocha, a maior parte das críticas a essa forma de análise
aponta para a preocupação com uma separação do contexto sociocultural em que os discursos
foram produzidos – sob justificativa, com inspiração positivista, de alcançarem um patamar de
“neutralidade” através de dados “objetivos” que permitiriam chegar a uma “verdade escondida”
por trás dos textos (2005, p. 309).
289
198 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.
290
Desde a introdução deste trabalho, sinalizei a percepção de que pode ter importância
secundária, para este estudo, realizar uma extensa revisão bibliográfica sobre o tema da
comunicação comunitária e outras denominações afins (como comunicação popular,
alternativa, cidadã e outras). Conforme já mencionei nas páginas anteriores, algumas dessas
expressões são usadas, de maneira autorreferente, para designar formas de comunicação
realizadas em favelas do Rio de Janeiro e, visto que cada iniciativa adquire feições próprias de
acordo com seus contextos particulares, parece-me ser enriquecedor, para o diálogo com o caso
aqui estudado, principalmente conhecer os sentidos que alguns/mas comunicadores/as desses
espaços da cidade dão às suas práticas. Na medida em que fui desenvolvendo a escrita que
resultou nesta tese, dei-me conta de que o próprio fato de entender como secundária a reflexão
sobre o que diz a literatura acadêmica a respeito do tema da comunicação comunitária (e outras
denominações acionadas em artigos, teses e dissertações) constituía uma primeira tensão
referente aos cenários discursivos por onde transitei durante os longos quatro anos do trabalho
da pesquisa de campo. Faço um parêntese para dizer que a tensão inicial estava presente também
em minha própria visão crítica sobre certos rótulos e definições “categóricas” a respeito de
práticas de comunicação em favelas, das quais eu também já havia participado. Senti um duplo
incômodo: ao ler autores/as que davam a entender sabedorias herméticas a respeito dos temas
que abordavam (o que e como era ou deveria ser “a comunicação comunitária”, por exemplo);
por outro lado, ao fazer parte do curso de doutorado, eu acumulava também a posição de
pesquisadora, entre os pertencimentos profissionais em que me reconhecia – e, potencialmente,
corria o risco de produzir ou reproduzir outros saberes que viessem a rotular e cristalizar
entendimentos sobre uma prática dinâmica cujos saberes de quem a constrói precisam ser
respeitados e objeto de aprendizado.
Mas incômodo semelhante também me foi relatado por Michel Silva, comunicador do
Fala Roça, já em fevereiro de 2019199. O assunto eram as experiências em relação ao Fala Roça
e suscitou considerações acerca da expressão comunicação comunitária. Em sua memória, o
199 Nessa ocasião, realizei uma entrevista sobre o livro “Construindo mídia comunitária: as experiências de
Michel Silva”, que está sendo escrito por Michel há alguns anos. Aproveitei a oportunidade para tirar dúvidas
sobre a sua trajetória. Conversamos em 26/02/2019, no campus da PUC-Rio, onde Michel estuda.
292
trabalho com iniciativas de comunicação na Rocinha veio antes de ter formado uma opinião
sobre essa prática. Em suas palavras, “ao mesmo tempo que estava fazendo o Viva Rocinha
estava pesquisando o que era comunicação comunitária. Mas ainda não tinha opinião formada
do que era comunicação comunitária”. As leituras de teorias a respeito desse tema ajudaram a
formar o seu entendimento sobre o que se tratava, sendo que a maior parte desses textos não
era escrito por quem morava ou tinha experiências relacionadas à comunicação feita a partir de
favelas. Resumo o seu raciocínio: “É muito fácil a pessoa de fora falar pela favela. A nossa
sociedade em geral é muito europeia. As visões são muito eurocêntricas; a gente não para pra
imaginar de dentro pra fora, é sempre de fora pra dentro”. E complementa dizendo que não é
simplesmente uma questão de ser contra ou a favor de um/a outro autor/a, “mas é estranho
quando alguém chega e fala pra mim, por exemplo, a [cita uma autora] fala que isso é isso. Mas
o que estou tentando dizer é que isso, pra mim, não é bem como é. A gente é um ponto fora da
curva”.
Decidi “assumir” esses incômodos como forma de lidar com eles. Foi assim que
considerações relativas à bibliografia a respeito dos temas da comunicação comunitária,
popular, alternativa, etc, foram inseridas neste capítulo, como parte das tensões presentes no
cenário da pesquisa realizada e das reflexões sobre o processo comunicativo específico do
jornal Fala Roça. Sendo assim, busquei (para além da pesquisa que desenvolvi), nas referências
bibliográficas, contatos com experiências empíricas relativas a atividades de comunicação em
favelas do Rio de Janeiro e perceber como definem a si próprias e suas principais características.
Outros motivos também contribuíram para essas escolhas, como o fato de revisões semelhantes,
na literatura acadêmica, já terem sido realizadas200 (entre as recentes, estão as de GIANNOTTI,
2016; PERUZZO, 2009; CHAGAS, 2009; POLIVANOV, 2008; PAIVA, 2007), implicando a
possibilidade de me tornar um tanto redundante. Um levantamento bibliográfico de trabalhos
acadêmicos de cursos de pós-graduação de universidades públicas presentes no Rio de Janeiro
que realizei previamente a esta pesquisa pode ajudar a localizar melhor esta produção (ver o
Anexo F desta tese). Esse estudo exploratório apontou para um reduzido interesse, em especial
das Ciências Sociais, em relação à investigação de conteúdos e processos comunicativos
chamados comunitários (e denominações afins). No universo das bases digitais de teses e
dissertações de nove cursos de pós-graduação, nas áreas de Comunicação, História e Ciências
Sociais, de três universidades públicas presentes no Rio de Janeiro – UFRJ, UERJ e UFF –,
questões relativas à “defesa da identidade local, além de trabalhar a autoestima dos moradores”
e se dedicam à atividade de “mobilização local”. Por fim, acrescenta que “todos estes veículos
têm como característica a produção feita por moradores locais” e demarcam diferenciação em
relação a “mídias comerciais”.
perspectivas atuais. O que mais interessa reter do panorama apresentado em seguida, para a
reflexão da presente pesquisa, é a percepção de como se estruturaram os discursos da
“comunicação popular”, em alguma medida também influentes sobre as mídias presentes em
favelas do Rio de Janeiro.
Entre os autores das ciências sociais que analisaram os movimentos sociais dos anos
1970, Vera Telles, no artigo Movimentos sociais: reflexões sobre a experiência dos anos 70
(Telles, 1987) analisa os olhares da produção intelectual sobre os “movimentos sociais urbanos”
(de fins dos anos 1970) e indica que partem de uma perspectiva diferenciada em relação ao
pensamento dos sociólogos, até então voltados para os trabalhadores urbanos no Brasil. A
“novidade”, percebida com o surgimento de novas práticas reivindicatórias de moradores de
periferias, dizia respeito ao nascimento de uma “sociedade civil”, embora no momento pouco
provável do regime militar, de certa forma desvencilhando-se de preceitos tecnocráticos e
repressores que traziam consigo a despolitização da vida social, para criar suas próprias ações
e formas de organização201. Entre os temas que passaram a qualificar a compreensão do
significado político destes movimentos, estavam o da “autonomia das classes populares” e o
das “novas formas de participação”, vinculadas aos espaços da moradia e do “urbano”. Sem
desconhecer a complexidade do tema da autonomia, a ênfase nesses novos atores sociais traz
outra forma de pensar a sua presença na sociedade, ou seja, como “trabalhadores sujeitos de
práticas cotidianas de resistência, que elaboram seus próprios códigos de autoreconhecimento
e identidade” (TELLES, 1987:63). Ainda segundo Telles, suas reivindicações ultrapassavam
seu sentido imediato, dando visibilidade a dois elementos, que destaco: 1) as “condições de
vida como terreno de luta”, que fizeram parte de um “campo comum de interesses” e geraram
a exigência de direitos frente ao Estado, evidenciando, ainda, 2) as relações de poder inscritas
nessas condições de vida, em torno das quais os moradores construíram novas formas de
participação e ação coletiva, constituindo-se também como “força coletiva” frente ao Estado.
Em suas conclusões, a autora enfatiza que, para refletir sobre a constituição dos
trabalhadores como sujeitos, é preciso levar em conta o “tempo, o lugar e os acontecimentos”
em meio aos quais suas experiências são construídas. A nova percepção do lugar onde se
organizavam as práticas coletivas dos trabalhadores permitiu levar em conta a própria noção de
autonomia, já que se passou a pensar a “classe” enquanto “sujeitos constituídos a partir de suas
práticas na dinâmica mesmo do conflito”, ou seja, o significado da ação coletiva passou a ser
201 Essa nova visão da literatura acadêmica sobre as classes trabalhadoras se afastou dos sentidos que a
vinculavam à experiência passada do populismo, em seu sentido mais pejorativo – ou entendendo as classes
populares como subjugadas aos esquemas do clientelismo político (TELLES, 1987).
297
remetido à “reabertura de um espaço coletivo” (negado pelo Estado), por meio da ação desses
sujeitos. Por sua vez, tais sujeitos sociais, que constituíam os movimentos populares, deviam
ser vistos em suas especificidades, em que não cabia sua limitação como “classe operária”, mas
como trabalhadores urbanos submetidos a uma heterogeneidade de condições de trabalho, à
qual alguns autores viam superpostas a exclusão política e a segregação urbana, atreladas à
condição de “morador pobre” ou em luta pela ampliação dos direitos de cidadania; outros
autores enfatizavam a sua situação de trabalho, marcada pela instabilidade no mercado de
trabalho. Ainda quanto aos atores sociais, é importante notar também que vários personagens
interagiram e se cruzaram na constituição desses movimentos – entre eles, pessoas ligadas à
esquerda católica, ex-militantes de esquerda e agentes das comunidades eclesiais de base
(1987:80).
Quanto à dimensão do “tempo” relativa a esses movimentos populares, muitas foram as
mudanças na sociedade sentidas nos anos 1970, com a instauração da Ditadura na década
anterior. Em resumo, as questões mais importantes desse período se relacionam “com o poder
disciplinador de um Estado cada vez mais presente na vida cotidiana”. E, finalmente, ao tomar
os movimentos populares na sua relação com as práticas de poder, pode-se pensar a dimensão
da política a partir da ideia da abertura de espaços “nos quais o conflito ganha visibilidade
enquanto acontecimento” – onde os moradores/trabalhadores podem se constituir em sujeitos
(1987:81). Outra contribuição para o pensamento sobre os movimentos sociais populares é a de
Ana Maria Doimo, que, já nos anos 1990, retoma a análise da multiplicidade de movimentos
sociais que se espalhou pelo Brasil entre os anos 1970 e 1980. Em “A vez e a voz do popular:
movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70”, suas atenções também se voltam
para o surgimento e a intensidade adquirida pela ideia de “povo como sujeito” no âmbito desses
movimentos, mas acrescenta alguns “achados” (como indica o prefácio de Pierre Sanchis).
Entre eles, está o de buscar os sentidos adquiridos pelas noções de povo e popular nesse
contexto, ou seja, como afinal esses sentidos se expressaram nas “lutas pontuais por melhores
condições de vida”, podendo se configurar na “recuperação da capacidade ativa do povo”,
criando um “substrato comum de linguagem” manifestado no espaço público (1995:123)
Segundo a autora, esses tais sentidos são reelaborados frente à recusa da ideia de “povo”, usada
nos anos anteriores, remetida à “tradição populista de alianças de classe”. O povo passa a ser
percebido como “aquele que não se deixa cooptar e manipular”, “um coletivo organizado
predisposto à participação continuada na luta por seus interesses”; não mais subordinado ao
“Estado-nação”, nem às “vanguardas políticas”. Surge o ser “autônomo e independente”, “o
sujeito realizador da democracia de base e direta”, que propõe “políticas alternativas em torno
298
dos direitos humanos e sociais”. Assim, inicia-se o tempo da “vez e voz do povo”. Por todo o
país, expressam-se comunicados de movimentos com amplo uso do termo “povo” como forma
de autodenominação e reforço de sua condição de sujeito ativo. Isso significou perceber o
movimento popular como um campo “ético-político”, captando o uso de uma linguagem
comum que caracterizava um ethos, que lhe conferia um sentimento de pertença a um mesmo
espaço compartilhado, embora distinto quanto à sua base social e às demandas formuladas
(1995:126).
Apoiando-se em uma extensa pesquisa empírica e documental, a autora foi além de
algumas dessas percepções já anunciadas em outros estudos. Dois dos principais pontos
acrescentados a essa discussão dizem respeito ao reconhecimento das “conexões ativas”, na
figura dos diversos atores sociais relevantes que fizeram parte das “ações diretas” desses
movimentos, e à ambiguidade que compôs a natureza mesma dessas ações. Quanto aos atores
presentes, os mais expressivos foram a Igreja Católica, especialmente os seus setores
progressistas, o ecumenismo, principalmente o ligado ao compromisso social, setores da
intelectualidade acadêmica e grupos de esquerda – em grande parte os envolvidos nas lutas
contra a Ditadura. A existência de interesses distintos no âmbito dos movimentos
reivindicativos abriu espaço para a convivência entre duas posições políticas antagônicas: a que
contestava o caráter excludente do Estado, buscava vantagens do mercado e, portanto,
alimentava um sentimento de recusa da institucionalidade pública; e outra, voltada para a
demanda de direitos no campo do bem-estar social, dessa forma, requisitando o lado provedor
do Estado, cujas práticas dependem do funcionamento de suas instituições.
Esse paradoxo evidenciou a existência de uma “sociabilidade cambiante” por entre as
ações movimentalistas de então, uma vez que as posições anteriormente mencionadas
oscilavam entre os polos “expressivo-disruptivo” e “integrativo-corporativo”, dependendo dos
vários fatores conjunturais que se apresentavam. Doimo, junto a outros autores (como Luiz
Antônio Machado da Silva), aproxima-se da crítica à idealização dos movimentos como
autônomos, ou como organizações voltadas exclusivamente para “dentro”, sem interferências
“de fora”. Ainda segundo a autora, esse período de atuação do movimento popular coincide
com uma ampla produção referente à “chamada pedagogia popular”, entendida como “educação
popular, comunicação popular, dinâmica de grupo e pesquisa participante” (1985:129). Essa
pedagogia buscou um fazer político a partir da participação entre iguais e se apoiou amplamente
na filosofia educacional de Paulo Freire, que “identifica a alfabetização com um processo de
conscientização, capacitando o oprimido tanto para a aquisição dos instrumentos de leitura e
299
escrita quanto para a sua libertação”202. Diversos pequenos grupos se apropriam dessa
concepção, incentivando a “organização popular”. Junto às iniciativas de educação popular,
ampliou-se também o universo da chamada comunicação popular, incluindo a discussão teórica,
a capacitação prática e atividades como a imprensa popular, o audiovisual e o teatro popular.
Essas atividades estimularam as redes dos movimentos populares principalmente nos anos
1980. Nessas elaborações, o povo surge como protagonista, possui aspirações libertárias e de
luta contra condições precárias de sobrevivência, com intuito de gerar reflexão por meio de
mensagens que também adquirem sentido educativo. Outros autores, muitos deles jornalistas
que atuaram nessas iniciativas de comunicação, pontuam os elementos em que se apoiavam as
práticas comunicativas dos movimentos de então. Nesse sentido, Mário Kaplun afirma:
fora da localidade/região que se identifiquem com as aspirações do grupo”, quanto aos recursos,
devem vir “da própria comunidade”, com apoio de sindicatos, universidades, “anúncios do
comércio local e políticas públicas” e, no caso do jornal, pode ser comercializado, em relação
à distribuição, “o ideal” é ser feita por quem produz o material, além de pessoas da localidade
onde se insere.
No estudo “Jornalismo popular nas favelas cariocas”, de 1986, Marco Morel realizou
um levantamento de jornais em funcionamento na zona sul do Rio de Janeiro. Compilou os
perfis de oito jornais impressos (O mensageiro do Vidigal, do Vidigal; O Azul, do Morro Azul;
O canto do galo, do Morro do Cantagalo; O Chapéu, do Morro Chapéu Mangueira; O Vinte,
do Morro dos Guararapes, Vila Candido e Cerro Corá; O Favelão, jornal da Pastoral de Favelas;
O Eco, do Morro Santa Marta e O Tagarela, da Rocinha). Preferiu adotar para esses veículos a
definição de “imprensa popular”, explicando ser escolhida “a partir do lugar social do veículo,
ou das relações sociais que ele envolve. Segundo sua concepção, trata-se de um “jornalismo
feito por e para as classes trabalhadoras”. Percebeu que essa imprensa de favelas que encontrou
foi “gerada no ventre dos movimentos populares” que começaram se organizar na metade da
década de 1970, com os primeiros “indícios da abertura política” (MOREL, 1986: 121).
O apogeu desses veículos foi no início dos anos 1980 e, já em 1985, apenas dois estavam
circulando. Quanto aos motivos desse declínio, quem fazia os jornais argumentava que isso se
devia à falta de tempo, já que os responsáveis precisam se dedicar aos problemas imediatos do
dia a dia, cujas tarefas cresceram com as novas possibilidades de reivindicação. Mas Morel
também apresenta outras explicações para a descontinuidade desses jornais. Entre os
obstáculos, estaria a desvalorização do saber do próprio favelado, expressa na frase: “favelado
não lê jornal feito por favelado”. Numa mistura de “saber com poder, os doutores, os políticos,
os intelectuais são os que sabem e, portanto, os únicos aptos a mandar”, afirmou. Outro
problema seria a velha questão da distância entre as “vanguardas” e suas bases, já que muitos
responsáveis pelos jornais assumiam participação nos movimentos sociais, transformando-se
em lideranças e surgiam relações “tensas entre lideranças e bases”. A hipótese final seria a de
que, a partir dos anos 1980, “a mídia de massa” passa a abrir espaço para os movimentos
populares, que começam a ocupar tais espaços e a esvaziar os das mídias existentes nas favelas.
Já a noção de “jornalismo cidadão” é acionada por Viktor Chagas ao analisar
experiências de comunicação realizadas na região de favelas da Maré, no fim da primeira
década dos anos 2000. Nesse ponto de vista, o jornalismo cidadão também seria um “estreitador
de laços”, diluindo a ideia de mediação: “No jornalismo cidadão, o público é não apenas fonte
ou pauta, nem tampouco debatedor, a ênfase está, ao meu ver, em seu caráter de produtor de
301
conteúdo jornalístico. Assumindo os meios de produção, o cidadão torna-se ele próprio mídia”.
Segundo o autor, as práticas de comunicação por ele analisadas podem ser denominadas de
“jornalismo cidadão de base comunitária” (CHAGAS, 2009:21), já que entende que o
jornalismo feito nas favelas se aproxima do conceito de “jornalismo cidadão”. Marcelo E.
Macedo e Lívia Gonçalves enfatizam o “caráter horizontal”, de troca, na “percepção do fluxo
informacional a partir de uma perspectiva democrática”, traduzido na ideia de “dialogia”
(retomando uma acepção de Mikhail Bakhtin).
7.3 [Tensões 2] Mídias de favelas: existir ainda é resistir aos discursos de estereótipos
sobre favelas
É quase impossível falar sobre mídias que produzem informação com os pés no chão
das favelas do Rio de Janeiro – e, nos dias atuais, com extensões dessas “pegadas” no mundo
on-line – sem falar em algum tipo de relação com discursos que reproduzem estigmas em
relação a estes espaços da cidade. Melhor dizendo, não são poucas as mídias oriundas de
favelas, auto reconhecidas enquanto tais, que incluem em suas formas diversificadas de
autorrepresentação, e/ou suas narrativas, alguma forma de contraposição a esses discursos
públicos, frequentemente presentes no noticiário de veículos grande circulação e/ou alcance
midiático. Não raro, a alusão a esses meios se volta para críticas à cobertura realizada sobre
favelas, associada rotineiramente a pautas de crime e violência armada (mesmo considerando a
heterogeneidade tanto da mídia corporativa quanto dos meios comunitários). Os jornais da
Rocinha enfocados nesse trabalho são exemplos da existência dessa relação discursiva, em
diferentes tempos. O Fala Roça, em matéria de Beatriz Calado na sua 8ª edição, de agosto de
2016, mencionou: “Na contramão dos grandes grupos jornalísticos, que têm seu trabalho cada
vez mais questionado, fortalecem-se as mídias comunitárias”204. O Tagarela, no seu n. 22, de
agosto de 1980, disse: “Nos é útil a imprensa, não as impostas, mas as necessárias e autênticas”.
Na edição que marcou o encerramento do jornal Rocinha Notícias, de julho de 2018, uma das
204 Matéria “Fala Roça forma cinco comunicadores comunitários”, 8ª edição do Jornal Fala Roça impresso.
302
colaboradoras do jornal, Renata Sequeira, escreveu em seu texto homenageando a mídia, que
funcionou aproximadamente entre 2001 e 2018:
Nesses 20 anos, o Rocinha Notícias esteve presente no dia a dia dos que moravam na
comunidade da zona sul carioca e se tornou referência. A informação vinha de dentro.
Era o morador se vendo nas páginas do jornal. Muita coisa que foi veiculada ao longo
desse tempo não tinha espaço (ou seria interesse?), na grande imprensa.
chamada grande imprensa e também circularam a partir de outros atores sociais, como
governantes e administradores de perfis em redes sociais on-line. Nesse sentido, interessa
perceber como se atualizam determinadas representações, tomando o caso do Fala Roça como
lugar para observá-los. Antes de me referir a exemplos notados durante a pesquisa, convém
situar brevemente o contexto histórico mais amplo da (re)produção de discursos sobre favelas
do Rio de Janeiro na chamada grande imprensa.
Os anos passam, e as representações sobre favelas, áreas pobres e periferias do Rio de
Janeiro, em meios de informação da mídia brasileira, permanecem atreladas
predominantemente a aspectos pejorativos. Essa afirmação não é novidade e estudos, tanto
antigos quanto recentes – alguns incluindo veículos da mídia internacional – continuam a
demonstrar a persistência de discursos estigmatizantes em relação a esses espaços (ZALUAR
e ALVITO, 1999; VALLADARES, 2005; RAMOS e PAIVA, 2007; FELIX, 2012; ANSEL e
SILVA, 2012; ROCHA, 2018, entre outros). A mídia jornalística, obviamente, não é o único
ator social responsável pela produção dessas ideias, difundidas também por outros setores da
sociedade, conforme aponta Lícia Valladares em sua análise sobre a construção de
representações em torno das favelas, desde o surgimento desses espaços populares de moradia
na cidade, ainda em fins do século XIX. Entre as formas que passaram a predominar no
imaginário social sobre esses lugares, está a de se tratar de um problema a ser “resolvido”.
Segundo Valladares (2005), escritores, jornalistas, médicos sanitaristas, engenheiros, cientistas
sociais, entre outros atores, ajudaram a formar essa concepção, embora nem todos permaneçam
sempre reforçando esse estereótipo e não circulem apenas ideias de cunho negativo relativas às
favelas. Ocorre que fatores específicos potencializam o discurso difundido pela mídia de maior
alcance: também com o passar do tempo e a difusão de conceitos autorreferentes como
objetividade e neutralidade, os meios de comunicação foram sendo compreendidos, em escalas
cada vez maiores, como lugares de produção de enunciados verdadeiros sobre a sociedade,
vistos como “espelho da realidade” (RIBEIRO, 2003). Em consequência, o que não aparece na
mídia não ganha importância, e o que aparece pode gerar grande repercussão. Além disso, antes
ou agora, o contato entre moradores das favelas do Rio e de outros lugares da cidade ocorre,
muitas vezes, através da mediação dos meios (redundância proposital) de informação (ROCHA,
2018), evidenciando a importância do discurso da imprensa na produção de sentidos neste
contexto.
Vejamos os resultados de alguns estudos que incluem análises da cobertura da imprensa
sobre regiões de favelas do Rio de Janeiro. Alba Zaluar e Marcos Alvito observaram que a
associação de morros e favelas da cidade à noção de perigo e crime é antiga e tal representação
304
já era veiculada em jornais da então capital federal no começo do século XX: “[...] já no início
deste século, os morros da cidade eram vistos pela polícia e alguns setores da população como
locais perigosos e refúgios de criminosos” (ZALUAR e ALVITO, 1999). Assim como os textos,
as imagens também são formas de representar visões de mundo, porém, seu uso atrelado à
linguagem jornalística, se associa, historicamente, à controversa função de elevar o caráter de
veracidade dos acontecimentos narrados. Mauro Amoroso analisou fotografias do acervo do
Jornal Correio da Manhã relativas às favelas do Rio de Janeiro (entre os anos de 1946 e 1972);
suas conclusões demonstraram “uma constante” relativa à produção de sentidos por meio destas
imagens, em que há uma associação “das más-condições do espaço habitado à precariedade
moral do indivíduo, à deturpação dos ‘valores civilizados do asfalto’, e ausência de aspirações
a melhorias das condições habitacionais e empregatícias” (AMOROSO, 2005). Na extensa
pesquisa “Mídia e violência”, realizada pelo CESeC em 2007, um dos poucos consensos foi o
“mea culpa da imprensa pela cobertura estigmatizante que realiza sobre favelas e periferias”
(RAMOS e PAIVA, 2007, p. 77). Entre os estudos feitos na última década, Carla Baiense Felix
constatou que a “retórica do risco” (mencionando VAZ, 2005) se tornou hegemônica nos
discursos jornalísticos sobre as favelas, ao estudar o noticiário dos jornais O Globo e Jornal do
Brasil, dos anos 1980 a 2010 (FELIX, 2012). Já Daniella Rocha analisou o “enquadramento”
sobre favelas na imprensa carioca, entre o fim do século XIX e a primeira década de 2000,
encontrando relação com a implantação de políticas públicas nesses lugares em cada período;
a predominância de representações negativas sobre as favelas também foi verificada (ROCHA,
2018, p. 4). E o relatório “Favelas na Mídia”, da organização Comunidades Catalisadoras
(ComCat) analisou a cobertura de veículos da imprensa internacional a respeito das favelas
cariocas nos períodos pré e pós Olimpíadas. No total, foram analisados oito veículos de “mídias
globais” e 1.094 matérias publicadas entre 2008 e 2016; entre as conclusões, nas matérias em
que as favelas foram o assunto principal, “violência ou drogas” foi o tópico mais
frequentemente mencionado, seguido por “polícia” e “pacificação” (Relatório de pesquisa:
ComCat, 2016).
Durante o período do trabalho de campo desta pesquisa, circularam, no debate público,
uma série de discursos suscitando preconceitos em relação à favela da Rocinha e seus
moradores. Não foram poucos; como não se tratava do foco desta pesquisa, registrei apenas
alguns que pudessem auxiliar a compor o contexto da produção das práticas discursivas do Fala
Roça. Os três exemplos mencionados a seguir circularam nas redes de moradores com as quais
tenho contato, causando indignação. O primeiro foi uma matéria publicada pelo Jornal O Globo,
em sua versão on-line, em 20/05/2016, com a seguinte manchete: “Troca de tiros na Rocinha
305
assusta alunos da PUC”. O texto, breve, fazia menção a uma operação do Batalhão de
Operações Especiais (BOPE) “de repressão ao tráfico de drogas” na Rocinha, citando
“explosões e barulhos de tiros” que “assustaram alunos da PUC”. A narrativa mencionava
apenas efeitos da operação policial do ponto de vista de estudantes da PUC-Rio, universidade
particular situada no bairro da Gávea, no entorno da favela. Moradores da Rocinha
manifestaram indignação por meio das redes sociais na internet, incluindo alguns dos
comunicadores do FR, já que, em nenhum momento, a matéria mencionou efeitos da operação
policial para a própria população da favela. A possibilidade de existência desse discurso pode
ser relacionada a uma naturalização da ocorrência de tiros dentro da favela, uma vez que seus
habitantes (ignorados nessa lógica discursiva) não se assustariam; tal situação apenas causaria
temor na perspectiva de quem morasse em outros lugares da cidade, como a maioria dos alunos
da PUC. De acordo com esses olhares, os favelados são completamente ignorados – não entram
nos seus “enquadramentos”. As vidas na Rocinha, portanto, não seriam passíveis de
preocupação, nem de nota na imprensa ressaltando os seus medos, como os de quaisquer
cidadãos; em última instância, elas seriam inexistentes ou sequer seriam merecedoras de luto
(BUTLER, 2009). A época era véspera das Olimpíadas de 2016 e, durante os meses de
preparação para esse e outros megaeventos, a cidade passou por uma reordenação em que as
favelas foram alvo de ações do poder público visando “retirá-las de cena” ou controlá-las.
Foram inúmeras as estratégias de “limpeza social e de embelezamento”, conforme Renata
Souza, “desde remoções à utilização de barreiras acústicas”, a exemplo dos muros instalados
em torno de favelas situadas ao longo de importantes vias de acesso ao Rio de Janeiro (2018,
p. 8).
O segundo discurso foi uma declaração do prefeito Marcelo Crivella à mídia local
Rocinha Alerta205, em 19/03/2018, anunciando a pintura de fachadas na entrada da favela, com
intuito de passar uma ideia de “comunidade arrumada e bonita” para quem a olhasse de fora,
uma vez que “está muito feinha”. Quanto ao contexto, o veículo de informação, que funciona
em suporte digital e aparenta ter equipe bem reduzida (um comunicador/apresentador e técnicos
de audiovisual), havia acompanhado uma visita do prefeito à favela. No final do percurso pela
parte baixa, houve este diálogo:
205 O Rocinha Alerta se apresenta da seguinte forma, em seu site (rocinhaalerta.com.br): “Página voltada para
população da Rocinha com informações e sugestões. Façam parte curtindo e enviando suas opiniões e
reclamações”. O vídeo com a entrevista de Marcelo Crivella gerou mais de três mil reações na rede social
Facebook e segue acessível em seu canal do YouTube:
https://www.facebook.com/watch/?v=893976574113620
306
RA. Bom dia moradores da Rocinha, nós estamos aqui com o prefeito Marcelo
Crivella, que veio fazer uma visita à nossa comunidade, sobre as obras que estão sendo
feitas. Eu vou falar com ele. Bom dia, prefeito.
MC. Bom dia.
RA. O que está sendo feito hoje pela prefeitura na nossa Rocinha?
MC. Se a sua câmera puder mostrar, toda essa fachada vai ser pintada, as esquadrias
trocadas para ficarem padronizadas, arrumadas e bonitas. Também as marquises que
estão em cima das lojas e essa fiação feia nós vamos trocar e postes também vamos
melhorar. A ideia nossa é que, as pessoas, quando passem na [Estrada] Lagoa-Barra,
olhem pra cá e tenham uma ideia de uma comunidade arrumada, bonita, de um povo
trabalhador. Enfim, hoje ela tá muito feinha. Então nós vamos mudar tudo (RA:
Rocinha Alerta; MC: Marcelo Crivella).
O período, próximo às eleições gerais de 2018, pode ter contribuído para o vídeo,
postado no canal do YouTube do Rocinha Alerta, gerar grande repercussão: foram mais de 3
mil reações na página do Rocinha Alerta na rede social Facebook e muitos veículos da grande
imprensa replicaram a mesma declaração. Aparentemente, apenas alguns veículos locais, além
da assessoria de comunicação da prefeitura, foram cobrir a ida do prefeito à Rocinha, naquele
dia. A proximidade com políticos e governantes, principalmente em épocas de eleições, é vista
com cautela por muitos moradores e mídias locais, que não desejam ser confundidos com cabos
eleitorais de candidatos. Por outro lado, há moradores e mídias internas que recebem políticos
e dão cobertura a suas agendas na favela, como foi o caso do Rocinha Alerta, neste episódio. É
interessante notar, ao ver as imagens do vídeo do diálogo reproduzido acima, que o prefeito age
como editor, dizendo o que a câmera da mídia da Rocinha deveria mostrar. E o que ele indica
de fato é mostrado, o que faz com que Crivella direcione o sentido do que está sendo mostrado:
na medida em que vemos as fachadas, esquadrias e fiações, ouvimos sua voz dizendo que
ficarão “padronizadas, arrumadas e bonitas”, pois hoje “tá muito feinha. Então nós vamos
mudar tudo”. Se a intenção é mudar tudo para que as pessoas “olhem pra cá e tenham uma ideia
de uma comunidade arrumada, bonita, de um povo trabalhador”, obviamente é porque essas
características não estariam presentes naquele momento.
Nas redes sociais on-line, muitos moradores da favela expressaram indignação com a
proposta de obras de embelezamento feita pelo prefeito. O grupo Rocinha Sem Fronteiras
elaborou um abaixo-assinado repudiando as palavras de Marcelo Crivella: “O prefeito deve
realizar obras de forma democrática e estrutural em concordância com os moradores”. Formado
por antigas lideranças comunitárias e frequentado por gerações mais jovens, desde 2006, o
grupo promove reuniões mensais com o seguinte objetivo: “Fomentar a cidadania através da
informação com debates mensais sobre questões pertinentes ao desenvolvimento humano e
social dos moradores da Rocinha, panfletagem e campanha pelos 100% de saneamento na
307
206 Informações registradas na ata de um dos encontros mensais do Rocinha Sem Fronteiras e publicadas em seu
blog. No caso, tratou-se da reunião do dia 25 de junho de 2016. Disponível em:
http://rocinhasemfronteiras.blogspot.com.br/2016/06/reuniao-papel-das-midias-comunitarias.html. Acesso
em: 28 mar. 2017.
207 Seria necessário um aprofundamento maior para notar as influências também do campo religioso e suas
interseções com grupos de mídia, em situações específicas envolvendo o prefeito Crivella – cujo
pertencimento à Igreja Universal do Reino de Deus traz consequências para a cobertura de suas ações no
campo midiático.
208 Relatório “Intervenção Federal: um modelo para não copiar”, n. 10, Edição especial, de 16/02/2018 a
16/02/2019. Editora: Anabela Paiva. Pesquisa realizada pelo Observatório da Intervenção, coordenado pelo
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes.
209 Após o “17 de setembro” (como passou a ser chamado pelos moradores) até o fim da Intervenção, em
dezembro de 2018, continuei a ir aos grupos de moradores e às atividades voluntárias, etc., embora com mais
cautela, além de manter contato com todos os amigos, interlocutores, enfim, conhecidos, apreensiva com a sua
segurança e bem-estar – a pesquisa, então, passou para um segundo plano.
308
Enquanto escrevo este texto, escuto tiros sendo disparados. Mais uma vez, sou
atingido. Talvez porque parto de um local onde mesmo depois de terem sido tomadas
medidas como aumento de efetivo, ou simplesmente a continuidade dos trabalhos da
Polícia Militar, não se obteve bons resultados210.
A postagem reproduzida a seguir foi feita pelo administrador da página Alerta Leblon,
em meio a cinco meses de traumas e abalos no cotidiano da Rocinha. O ordenamento que
caracteriza este discurso de segregação em relação à favela não foi um acontecimento isolado,
uma vez que comentários com conteúdo semelhante foram feitos também em sites de mídias de
grande audiência ao noticiarem este período de conflitos armados na Rocinha.
Que povo engraçado, falando como se fosse um absurdo ter tiro na Rocinha né? Vão
pro inferno, tem tiro todo dia aí nesse Iraque e agora temos que saber se são tiros ou
fogos, eu hein. Os moradores do Leblon não são obrigados a saber diferenciar não, e
vocês deveriam agradecer que jogamos luz a esse problema aí na comunidade. Mas
sinceramente? Tem gente que merece passar por isso mesmo, que fiquem aí sendo
baleados, assassinados, etc, tô nem aí Perfil Alerta Leblon, na rede social Facebook211
(grifo meu).
210 http://www.observatoriodaintervencao.com.br/os-numeros-que-me-atingem/
211 A postagem foi apagada da página, ainda acessível no link: https://www.facebook.com/leblonalerta/
212 O Leblon ocupa a segunda posição (0,809) no ranking do Índice de Desenvolvimento Social (IDS) por
bairros do município do Rio de Janeiro, enquanto a Rocinha ocupa a 151ª posição (0,458), de acordo com
dados do Instituto Pereira Passos, a partir do Censo IBGE/2000.
309
213 Informações publicadas em 18/08/2018 no jornal Extra on-line, posteriormente, retiradas do ar. Informo o
link consultado: https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/
310
Assim sendo, nota que a ideia da “guerra” vem sendo fundamental na construção dessa
representação, ao ser inserida ou reproduzida no debate sobre segurança pública pelo estado e
outros agentes sociais como a mídia corporativa – que, frequentemente, tem como fonte as
forças policiais para assuntos relacionados às favelas, onde também entra, inúmeras vezes,
seguindo os passos desses agentes estatais. Mas a “guerra” passa a assumir, para além apenas
do sentido metafórico, uma “modalidade de governo dos “inimigos” (LEITE e FARIAS, 2018)
em tempos recentes. Essa forma de gestão consiste na legitimação de ações – especialmente por
meio da força desmedida, em contextos de militarização – contra os considerados “inimigos”,
que passam a abranger um espectro maior de atores sociais.
Principalmente a partir dos anos 1990 “a metáfora da guerra” se configurou, no Rio de
Janeiro, como “dispositivo” discursivo central na dinâmica de representação das áreas de
favelas essencialmente como espaços de produção da violência (associada à criminalidade) e
insegurança para o restante da cidade. Mudanças no cenário urbano em todo o país, nas últimas
décadas do século passado, relacionadas à expansão do comércio de drogas ilícitas (LEITE,
2012, entre outros autores) geraram uma reação discursiva, reduzindo o debate a dois polos de
uma “cidade partida” (VENTURA, 1994, apud LEITE, 2012). De um lado, estariam “os
cidadãos”, “de bem”, sem qualquer vínculo com as instâncias geradoras dessas atividades
ilícitas (especialmente de camadas sociais médias e altas), cujas vidas deveriam ser preservadas;
de outro, estariam “os inimigos” (provenientes das camadas de renda mais baixas), localizados
na “favela” e percebidos indistintamente como criminosos (idem). Como consequência, a
demanda articulada pelos primeiros pela restauração “da ordem” e de respostas imediatas no
campo da segurança pública foi se concretizando (notadamente a partir do período citado) em
respostas também violentas por parte do estado, concentradas sobretudo em ações de repressão
policial e das forças armadas sobre favelas e periferias da cidade. Os reflexos se fizeram sentir,
ainda em tempos recentes, em altas taxas de letalidade policial naqueles espaços, atingindo
especialmente a população jovem e negra214.
Neste trabalho, acompanho este argumento e ressalto a importância da percepção sobre
o papel da mídia de maior prestígio social (nos termos de Bourdieu) nesta construção simbólica.
A partir do processo de comunicação estudado, foi possível perceber, no período dos conflitos
armados entre 2017 e 2018 uma superexposição da Rocinha na mídia que significou o aumento
das sensações de medo e pânico por parte dos moradores. Dentro da favela, a convivência era
não só com tiroteios operações policiais e aparatos bélicos (tanques, caveirões, helicópteros
214 No Rio de Janeiro, de 2002 a 2008, morreram 96,9 % mais jovens negros do que brancos (Instituto Sangari,
apud LEITE e FARIAS, 2018, p. 252).
311
rasantes, soldados mascarados, etc.) – do lado de fora das casas –, mas também com a
transmissão, ao vivo, incessante dos conflitos e da sua “suíte” (no jargão jornalístico, se trata
da repetição da mesma narrativa com seus novos desdobramentos), entrando pela tela das
emissoras de televisão – dentro das casas ou do comércio local.
Entre 2012 (ano de criação do Fala Roça) e 2018 (fim do período de análise desta
pesquisa), o país, o Rio de Janeiro e a Rocinha passaram por eventos e situações com
repercussões nas vidas dos moradores e nos meios de comunicação dessa favela – alguns se
tornaram manchetes de mídias de amplo alcance (inclusive internacionais). Entre as situações
e eventos considerados estão: a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora na Rocinha em
setembro de 2012, concomitante com o início das oficinas do projeto que deu origem ao Fala
Roça; o desaparecimento do morador Amarildo Dias de Souza, comprovadamente ocasionado
por uma operação deflagrada pela UPP/Rocinha dentro da favela (FRANCO, 2014), em julho
de 2013, período em que também ocorreram manifestações populares de grande escala na maior
parte do país (as chamadas Jornadas de Junho); três processos eleitorais (em 2014, 2016 e
2018), dois deles nos mesmos anos de realização dos megaeventos esportivos (Copa do Mundo,
em 2014, e Olimpíadas, em 2016), da abertura da linha 4 do metrô (com uma estação situada
aos pés da Rocinha), e do impeachment (ou golpe) que destituiu a presidente Dilma Rousseff
(os dois últimos eventos também em 2016); a explosão, em 17 de setembro de 2017, de um
conflito armado de grandes proporções na Rocinha, seguido pela ocupação da favela pelas
Forças Armadas, no mesmo mês, e pelo Decreto da Intervenção Federal na área da segurança
pública do Estado do Rio de Janeiro, de fevereiro a dezembro de 2018.
Os reflexos da Intervenção na Rocinha se fizeram sentir por meio de um número recorde
de operações policiais na favela, resultando nas mortes de 59 pessoas (segundo moradores) e
em muitas outras violências e traumas severos vividos no cotidiano da favela. Em 2018,
ocorreram ainda os seguintes eventos relacionados à mesma favela: a criação de movimentos
de moradores – a exemplo do A Rocinha Resiste e Movimenta Rocinha – como espaços de
trocas, fortalecimento de vínculos, discussão e reivindicação de direitos, em meio à tensão
constante e à interrupção das rotinas dos moradores diante das operações policiais;
manifestações de moradores da Rocinha pedindo paz e garantia de direitos; o assassinato da
vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes (em março de 2018) – a perda
312
violenta de Marielle se fez sentir no ambiente das favelas, incluindo a Rocinha, na forma do
aumento do medo e do silêncio face às violências cometidas pelo estado.
A dinâmica das relações discursivas no caso do Fala Roça, que envolveram contextos
e outros discursos com os quais dialogava (entre outros elementos), influenciou em decisões
sobre notícias a serem publicadas, avaliações sobre notícias “boas” e “ruins”, como e quando
abordá-las, além de cogitarem mudar a linha editorial. Ao mesmo tempo em que também
implicou a interação com discursos de ameaça e intimidação, resultando em silenciamentos.
Parece óbvio dizer que notícias consideradas ruins se referem a situações consideradas
desagradáveis, mas essas podem assumir diferentes significados, de acordo com os contextos
específicos no qual estão inseridas, para pessoas mais ou menos próximas aos eventos relatados
por veículos de informação. Alguns cenários percebidos neste estudo etnográfico, além de
eventos, acontecimentos e narrativas dos comunicadores sobre suas próprias experiências
suscitam refletir sobre esse processo de comunicação em diálogo com o debate em torno da
concepção de militarização e as formas diversas que assume no ambiente urbano
contemporâneo.
Pesquisas relativas às áreas de sociologia e antropologia urbanas vêm apontando, nos
últimos anos, para o entendimento de que dinâmicas não apenas restritas ao âmbito das forças
armadas e seus desdobramentos em termos de segurança pública fazem parte do entendimento
sobre o campo da militarização, que diz respeito a uma “forma de governo” (FARIAS et al,
2018, p. 11), com inspiração no pensamento de Michel Foucault, e à circulação de poder em
circunstâncias e contextos diversos, não apenas vinculados às instâncias estatais. “Os
governados são, sobretudo, os pobres urbanos, os moradores de periferias e favelas, os
considerados insuficientemente civilizados” (idem). Portanto, este tema diz respeito a situações
tanto ligadas à convivência próxima da população da Rocinha com forças e aparatos militares
propriamente ditos, tratadas nesta sessão, quanto a tensões relativas à grande imprensa e a
projetos sociais para favelas. Nesse sentido, Leite e Farias ressaltam, recuperando o conceito
de “novo urbanismo militar”, de Stephan Graham (GRAHAM, apud LEITE e FARIAS, 2018),
para pensar o caso do Rio de Janeiro:
215 Na ocasião, encontrei com Michele para dar retornos da pesquisa, checar alguns pontos da sua entrevista de
história de vida e saber como todos estavam, em meio às operações policiais constantes e o clima de tensão na
favela, com o início do período da Intervenção Federal.
314
editorial do jornal. Cogitavam fazer mudanças. “Aproveitar esse momento que está
acontecendo e colocar a nossa maneira de nos posicionarmos em relação a esses fatos”. Ainda
seria preciso aprofundar essa discussão no grupo, mas havia consenso em reavaliar. E mudar
talvez não se tratasse de uma questão de escolha, conforme Michele:
Às vezes, temos oportunidade de optar em fazer uma linha mais amiga, menos
violenta, porque a gente achava que tinha essa opção de escolha, mas, olhando
friamente, sabemos que não. Essa opção nunca existiu de fato; a gente subentendeu
ela e era meio confortável pra nós – combinando com a nossa personalidade também,
de ser mais pro lado da positividade, das coisas boas.
216 Trecho do livro Construindo mídia comunitária: as experiências de Michel Silva, de autoria de Michel
Silva. (No prelo).
315
Na época da criação do portal Viva Rocinha (2011), onde Michel e Michele atuavam
produzindo informações sobre a Rocinha, antes da existência do Fala Roça, a intenção já era a
de não abordar “as questões de violência”.
Convidei minha irmã Michele Silva, graduada em Comunicação Social, para investir
na ideia de um jornal comunitário. Ela trabalhou como locutora em uma rádio
comunitária, tinha conhecimento sobre a favela e sempre gostou de comunicar. A
primeira providência que tomamos foi excluir as questões de violência da linha
editorial do projeto que ainda não tinha nome. Os jornais comunitários, por motivos
bem compreensíveis, não tratam explicitamente dessa questão. Os grandes veículos
de comunicação já realizam o trabalho de noticiar esses fatos (Trecho do livro
Construindo mídia comunitária: as experiências de Michel Silva. No prelo).
A mesma ideia foi mantida, posteriormente, com o Fala Roça. Não só a mídia de maior
alcance prosseguia abordando esses assuntos, mas continuavam a existir, também, implicações
em relação à segurança dos comunicadores, conforme Michel descreveu: “Nunca aceitei
colaborar para uma pauta que envolvesse o tráfico de drogas por causa da minha integridade
física”, explicou em outro trecho do seu livro autobiográfico (em fase de redação). Esse tema
atualiza uma preocupação em relação à abordagem tanto de assuntos relacionados à atuação de
grupos envolvidos com a venda de drogas e outras atividades ilícitas quanto da atuação de
agentes estatais militares encarregados de ações de segurança pública em favelas do Rio de
Janeiro (polícias e forças armadas, etc.). Hoje e em outros tempos, representa uma zona perigosa
para comunicadores/as. Ramalho (2007), Martins (2018) e Souza (2018) evidenciaram essa
situação em diferentes épocas. No começo dos anos 2000, esse se tornou um dos grandes temas
de discussão – e impasses – da cobertura jornalística do portal Viva Favela (realizado pela ONG
Viva Rio), um dos primeiros veículos da “era” da internet voltado exclusivamente para a
produção de conteúdo sobre favelas, onde trabalhavam em parceria comunicadores/jornalistas
locais e profissionais com experiência de atuação na imprensa convencional – em sua primeira
fase (RAMALHO, 2007). Fui editora de fotografia do portal, entre 2001 e 2004, participando
da sua fundação e integração da rotina fotográfica ao direito humano fundamental do respeito
à dignidade do retratado, mas esta é uma outra história. Aqui cabe lembrar, por meio da
narrativa de Cristiane Ramalho, editora-chefe do portal naquele primeiro momento, que “falar
de violência era um tabu para os correspondentes comunitários” (moradores de várias favelas
do Rio), mas também não tocar no assunto “era ignorar uma parte da história da própria cidade,
em última instância do país” (RAMALHO, 2007, p. 134). A solução encontrada para sair do
“clima água com açúcar” (idem) foi a criação da sessão “Vidas perdidas”, para tratar dos efeitos
da violência armada na vida da população das favelas – cuja cobertura, em geral, era feita por
jornalistas não residentes no local.
316
Em tempos mais recentes, tais questões se atualizam com outros fatores em jogo: um de
seus principais componentes é a dinâmica de militarização expressa no Rio de Janeiro cuja face
mais evidente se vincula aos “dispositivos” (FARIAS, 2018) de segurança estatais que
radicalizam, nas favelas, as ações voltadas para o combate a conflitos armados – que lá não se
originam, nem tampouco terminam. A realização dos grandes esportivos na cidade (desde 2007
a 2016), com seus vínculos junto à política de “pacificação” das UPPs, instaladas em
determinadas favelas a partir de 2008, passaram a configurar um cenário de maior naturalização
da militarização da vida nesses espaços urbanos. Renata Souza (2018) e Gizele Martins (2018)
descrevem efeitos desse processo na região de favelas da Maré e, particularmente sobre meios
de comunicação locais, na forma de censura e ameaças, que se transformam em silenciamentos.
Na trajetória do Fala Roça, situações de ameaça e censura também ocorreram.
Individualmente, alguns comunicadores sofreram intimidações, que não serão relatadas por
questões de segurança. No que diz respeito ao jornal, a sua inclusão em uma lista de grupos,
considerados “permeáveis a ideias extremistas”, citados no inquérito judicial217 que condenou
23 manifestantes, no Rio de Janeiro, pela participação nas Jornadas de 2013 gerou
consequências e reavaliações. Conhecido como o “caso dos 23” ou “grupo dos 23” o processo
de criminalização e condenação de 23 manifestantes por participarem de protestos, em 2013,
ensejou uma lista de “grupos organizados”, “denominados de coletivos ou movimentos sociais,
permeáveis a ideias extremistas e manipulações políticas que são cooptados para agir como
forças de pressão que transitam pela esfera da violência deliberada”. O Fala Roça foi incluído
nessa lista, onde constam 73 grupos, entre movimentos ligados aos Sem Teto, sindicalistas,
meios de comunicação de favelas, mídia ativistas, estudantes, ONGs, indígenas, etc. Entre as
consequências, podem ser considerados o medo e a insegurança em relação à abordagem de
assuntos vinculados à segurança pública – uma vez que reivindicar direito à voz e falar por si,
para esse jornal que circulava na Rocinha, foi suficiente para ser classificado pelo Tribunal de
217 Conhecido como o “caso dos 23” ou “grupo dos 23” o processo de criminalização e condenação de 23
manifestantes por participarem de protestos, no Rio de Janeiro, no ano de 2013 ensejou uma lista de
“grupos organizados”, “denominados de coletivos ou movimentos sociais, permeáveis a ideias extremistas
e manipulações políticas que são cooptados para agir como forças de pressão que transitam pela esfera da
violência deliberada”. O Fala Roça foi incluído nesta longa lista, onde constam 73 grupos, entre movimentos
ligados aos Sem Teto, sindicalistas, meios de comunicação de favelas, mídia ativistas, estudantes, ONGs,
indígenas, etc. Sobre o “Caso dos 23”, ver https://www.vice.com/pt_br/article/mb4bzq/o-caso-dos-23-e-a-
criminalizacao-dos-protestos-no-brasil, https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/07/19/O-que-
h%C3%A1-na-senten%C3%A7a-que-condenou-23-ativistas-de-protestos-de-rua, https://ponte.org/justica-do-
rj-condena-a-prisao-23-pessoas-que-participaram-de-protestos-em-2013-e-2014/. Acesso em: 18 jan. 2020.
O documento do inquérito e a citação da lista de movimentos “extremistas” podem ser vistos em:
https://drive.google.com/file/d/180KHUD4QK_y2ksdIz0WnXWzjyWoOUZMS/view e
http://ww5.us.twitcasting.tv/olhodarua1/movie/82918843 (a partir de 7 min).
317
Justiça carioca como uma forma de ameaça (junto com outros 73 “grupos organizados”). A
condenação ocorreu em julho de 2018, portanto, assuntos abordados pelo FR, como o
desaparecimento de Amarildo, podem ter motivado a inclusão na lista dos grupos considerados
perigosos.
Circunstâncias como essas provocaram reavaliações, por exemplo, no tocante à linha
editorial do jornal. Tais reconsiderações de rumos, longe de apontarem incoerências no
processo estudado, podem ser entendidas como formas contemporâneas de agência e mediação
construídas pelos jovens comunicadores a partir dos seus locais de origem. Como sujeitos
políticos ativos, buscaram brechas negociando caminhos discursivos possíveis em meio a um
fluxo permanente, frenético, de circunstâncias, informações e eventos presentes na condição
urbana da cidade. Haveria brechas ou modulações que pudessem ser buscadas fora dos extremos
dos discursos das notícias “boas” ou “ruins”? Michele apontou, em 2018, para a direção de
aproveitarem “o que está acontecendo e colocar a nossa maneira de nos posicionarmos em
relação a esses fatos”. O impresso permaneceu interrompido até o término deste estudo,
portanto, os caminhos ainda estão por vir.
7.5 [Tensões 4] Efeitos de políticas públicas e projetos sociais para jovens de favelas nos
caminhos do Fala Roça
O contexto do surgimento do Jornal Fala Roça remete à reflexão sobre a sua relação
com a dimensão das políticas públicas voltadas para favelas, assim como, dos projetos sociais
que têm nos/nas jovens seu foco principal e na cultura sua área específica de atuação. Interações
relativas ao programa das UPPs na época da criação do jornal foram abordadas anteriormente
no âmbito deste trabalho (no capítulo 3), assim como o contexto do programa social por meio
do qual essa mídia foi elaborada. Nesta sessão, reflito sobre efeitos e tensões, no campo
discursivo do FR, relacionados a políticas e projetos (mencionadas acima) – que, em tempos
recentes, vinculam ações de segurança pública e o estímulo a iniciativas voltadas para o
empreendedorismo entre os jovens; discuto o fato de este caminho para a vida profissional ser
apresentado de forma simplificada, por vezes romantizada, deixando de apontar os potenciais
riscos e perdas que pode significar. Para tanto, abordo contribuições de estudos e concepções
sobre políticas públicas e programas sociais voltados para jovens brasileiros, sobretudo,
tentando pensar o contexto das favelas cariocas.
Falar em favelas do Rio de Janeiro implica reconhecer suas gigantescas diversidades,
suas configurações sociais, históricas, geográficas; suas populações heterogêneas; sua presença
que funda, alicerça e participa da cidade; seus mapas afetivos; suas redes de solidariedade; seus
318
direitos (incluindo o de falar por si) e suas lutas incessantes para conquistá-los. Há muito mais
a ser dito e escutado, obviamente, mas, no que diz respeito a ações do estado e em parceria com
instituições da sociedade civil – cujas fronteiras, conforme Gupta (2009) são “borradas” – têm
sido frequentes as políticas públicas voltadas para segurança e a população jovem nesses
espaços. Quanto ao caso do processo de comunicação objeto deste estudo, pode-se pensar que
o Fala Roça teve início, na Rocinha, a partir do cruzamento entre ambas. Irei recuperar algumas
noções, discursos e aspectos tratados em pesquisas que vêm abordando esses temas, antes de
me concentrar em tensões presentes no cenário aqui esboçado. Diante da complexidade dessas
situações sociais, busquei enxergar para além de “representações binárias que cristalizam e
essencializam”, como sugere Tommasi (2018) a respeito de questões que tangem oportunidades
de trabalho, projetos sociais e políticas para jovens de favelas.
Inicialmente, faz-se necessário enfatizar consensos já formulados na literatura
(considerando principalmente contribuições das ciências sociais) em torno da categoria
“juventude”, como a ideia de se tratar de uma construção social, cultural e histórica, implicando
perceber a existência de diferentes representações sobre o assunto, que variam ao longo do
tempo e dos espaços de referência (BOURDIEU, 1983). Ao lado disso, agregam-se os
entendimentos de que os limites entre as idades são arbitrários e os significados acerca das
concepções dos períodos etários estão sempre em disputa (NOVAES, 2006; SOUZA, P. 2018;
DOS PASSOS, ENNE, 2018). Conforme Dos Passos e Enne:
Ao concentrar o foco apenas sobre a cidade do Rio de Janeiro, não seria menos complexa
a tarefa de buscar delimitar quais seriam as características das juventudes dessa metrópole. As
mesmas autoras enfatizam a heterogeneidade desse grupo, diante da “arena” conflituosa da
cidade (idem):
Na cidade do Rio de Janeiro contemporânea, também são muitos os critérios que serão
usados para a definição do ser jovem, processo ainda mais acentuado por se tratar de
uma metrópole globalizada, arena de disputas e conflitos diários, avassalada por ações
especulativas e do poder público que atuam de forma incisiva sobre a cidade e seus
habitantes, fazendo que a compreensão da multiplicidade, diversidade e ambiguidades
acerca das juventudes que a compõem se coloque como um desafio ainda mais
complexo.
De acordo como dados do último censo do IBGE (2010), também registrados por essas
pesquisadoras, jovens do Rio de Janeiro que tem entre 15 e 29 anos, representam cerca de 25%
319
segmento, bem como na sociedade brasileira como um todo (NOVAES, 2019). Formaram-se
(ou mantiveram-se) “hiatos” entre sujeitos jovens e seus direitos, conforme expressão usada por
Novaes (2019, p. 12).
Nos anos 1990, como é amplamente conhecido, passado o longo período de repressão
política que caracterizou a ditadura civil-militar no Brasil (de 1964 a 1984), houve um aumento
substancial da atuação do segmento conhecido como “ONGs” (organizações não
governamentais), ou “OSCs” (organizações da sociedade civil), conforme classificação
recente218, no país. Atualmente, trata-se de um setor consolidado, responsável pela execução de
grande parte dos programas ou projetos sociais, elaborados de acordo com as diretrizes de
política públicas nacionais e regionais. Heterogêneo, é composto por organizações privadas e
sem fins lucrativos e incorpora uma dupla representação, sob os olhos da população em geral219:
podem ser vistas com desconfiança, face a denúncias variadas envolvendo algum tipo de
ilicitude, ou, ao contrário, serem vistas como apoiadoras de atividades em prol dos direitos de
populações empobrecidas. Sua atuação e seus discursos em favelas do Rio se tornaram
frequentes (mais em umas do que em outras), por meio da realização de projetos sociais (por
vezes, em parceria com empresas e/ou organizações estatais), sendo também crescentemente
geridas por moradores locais.
Dentro dessa dinâmica, Novaes (2006) e Souza (2018) observam que o incremento das
políticas públicas para a população juvenil vem ensejando a apropriação de suas gramáticas
pelos jovens locais, criando, por exemplo, formas de pertencimento remetidas ao “projeto” –
os “jovens de projeto”, conforme Novaes – ou uma nova “chave” para o entendimento sobre
“ser jovem em uma favela do Rio”, conforme Souza (2018). Mas há que se atentar também para
efeitos preocupantes da atuação dos projetos sociais, como o “enquadramento” em certos
discursos, como é o caso da retórica do “risco” ou da salvação de caminhos que estariam
fadados ao envolvimento com o tráfico e a violência armada – reforçando o estigma do jovem
como perigo e da favela como lugar de violência, como também notei em um estudo de caso
no conjunto de favelas da Maré, ainda no início dos anos 2000 (FARIA, 2005). Nesse sentido,
218 De acordo com pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “os termos organizações
não governamentais (ONGs) e OSCs definem entidades enquadradas simultaneamente em cinco critérios: i)
são privadas e não estão vinculadas jurídica ou legalmente ao Estado; ii) não apresentam finalidades lucrativas;
iii) são legalmente constituídas, têm personalidade jurídica e inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica
(CNPJ); iv) são autoadministradas e gerenciam suas atividades de maneira autônoma; e v) são constituídas
voluntariamente (IBGE, 2019; Lopez, 2018). MELLO, J.; PEREIRA, A.; ANDRADE, P. Afinal, o que os
dados mostram sobre a atuação das ONGs. Uma análise das transferências federais e dos projetos executados
pelas OSCs no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 2019.
219 (Idem)
321
tais projetos, por meio de determinados “repertórios”, ou discursos, reforçam esses estereótipos
e remetem à ideia de oferecer “solução” para o “problema da favela”, conforme Rocha (2015).
Entre esses “repertórios dos projetos sociais”, foram ganhando força, também nos anos
2000, aqueles que ofereciam formas de ingresso ao mundo do trabalho, como capacitações e
atuação por meio do empreendedorismo. Não eram raros os discursos de ONGs e projetos que
tratavam esses caminhos como saídas alternativas, para jovens de regiões de baixa renda, ao
ingresso no mundo do crime. (ROCHA, 2015, p. 320). Tal momento coincide com os
preparativos da cidade para os grandes eventos esportivos e da reestruturação produtiva das
condições de trabalho, com as perdas progressivas de direitos, já em curso anteriormente. Ainda
de acordo com Rocha, “o incentivo ao empreendedorismo é cada vez mais presente no trabalho
realizado por ONGs em favelas e está relacionado a novas modalidades de inserção das favelas
cariocas e de seus moradores no cenário de uma cidade em mutação como o Rio de Janeiro em
tempos de grandes eventos (Copa do Mundo e Jogos Olímpicos)” (2015, p. 326). Espaços de
projetos sociais são diversificados; podem ensejar encontros diversos – como o que deu origem
a esta pesquisa. E também podem ser espaços de disputa. No caso estudado, os jovens
escolheram criar um jornal e, a partir desse meio de comunicação, tradicionalmente um espaço
de afirmação de direitos e lutas das populações de favelas, outras disputas também se tornaram
presentes, para além do projeto social. Estava em jogo a elaboração de um discurso, que se trata
de uma forma de poder (conforme Foucault), e a apropriação do instrumento em que, naquele
momento, poderia se materializar.
No contexto de atuação do Jornal Fala Roça, discuto algumas nuances em relação a esse
cenário, concentrando a análise em alguns pontos específicos. O primeiro são as representações
contidas no conjunto das edições impressas, relações com o universo discursivo do
projeto/metodologia em que foram produzidas e efeitos sobre a gramática do jornal. Nesse caso,
abordo também a situação de um “aconselhamento” a respeito do noticiário do jornal e falas
dos comunicadores sobre notícias do jornal. Chamei de “híbrido” o conjunto do discurso do
jornal que reúne diferentes representações da Rocinha, nos planos coletivo e individual. Discuto
que fazem parte dessa dinâmica de representações afinidades com discursos que coincidem com
os repertórios de projetos sociais que lançam mão da ideia do empreendedorismo, mencionados
acima, na escolha de algumas histórias contadas no jornal. Procuro perceber, ainda, como o
jornal se refere a “projetos” e “escuto” falas dos comunicadores a respeito de notícias “boas”
publicadas no impresso.
Ao longo do trabalho de campo da pesquisa, na Rocinha, notei que era incomum ouvir
falar em “ONG”, por outro lado, falar em “projeto” era frequente. E também circulavam
322
A Prefeitura do Rio pediu ao Google para reduzir a presença das favelas no mapa da
cidade. Uma espécie de remoção virtual. O que era favela foi substituída por “morro”.
Outras favelas foram completamente apagadas. Em contraponto, o Fala Roça mapeou
mais de 100 pontos de práticas culturais, como centros sociais, espaços educativos e
áreas de lazer.
Portanto, mapear os projetos culturais foi uma forma de “fazer aparecer” a favela no
mapa, trazê-la de volta à cartografia da cidade. A abordagem do tema do empreendedorismo
propriamente dito pelo FR ganhou a capa da 7ª edição, de dezembro de 2015, conforme já
contextualizado no capítulo 5. Aqui, recupero brevemente um histórico relacionado ao
vocabulário do empreendedorismo na Rocinha. Em 1996, foi inaugurado, nesta favela, o
escritório do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) 221, uma das
principais agências de fomento a pequenas empresas e negócios do país. José Luiz Lima,
historiador e morador da Rocinha durante boa parte da vida, foi um dos responsáveis pela
implantação do escritório e permaneceu trabalhando no Sebrae até a segunda década dos anos
2000. “Em 1996, ainda não ouvia falar na palavra empreendedorismo”, relembrou. A partir de
2001, Sebrae e prefeitura do Rio realizaram o projeto Favela Bairro (no governo de César
Maia), que também incentivava negócios pequenos, por meio do projeto Favela Bairro
Empresa, realizado de 2001 a 2005. Nesse momento, já circulavam ideias em torno do fomento
220 Matéria “Fala Roça lança Mapa Cultural”, publicada na 8ª edição, de agosto de 2016. O mapa está acessível
no site do jornal: https://falaroca.com/mapa-cultural-da-rocinha/
221 O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) é uma entidade privada sem fins
lucrativos. É um agente de capacitação e de promoção do desenvolvimento, criado para dar apoio aos
pequenos negócios de todo o país. Desde 1972, trabalha para estimular o empreendedorismo e possibilitar a
competitividade e a sustentabilidade dos empreendimentos de micro e pequeno porte. Disponível em:
https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/canais_adicionais/o_que_fazemos. Acesso em: 12 set. 2020.
323
superam as facilidades). “Para quem deseja empreender, Bárbara dá um conselho. ‘Tem que
lutar, porque tudo o que era fácil se torna difícil. Mas é preciso acreditar que você é capaz’”.
A intenção desta análise é atentar para sinais dos tempos e das circunstâncias sociais e,
de forma alguma, julgar as escolhas feitas no texto escrito por Michele e Beatriz. A história
contada nessa reportagem novamente nos coloca diante de trajetos de trabalho da geração mais
jovem nessa parte da cidade. Vera Telles nos ajuda a pensar que “são jovens que se lançam no
mundo em um momento em que o encolhimento dos empregos e a precarização do trabalho
acontecem ao mesmo tempo e no mesmo passo em que os circuitos da vida urbana se ampliam
e se diversificam” (2010, p. 119). E, portanto, as “experiências de trabalho (e não trabalho) se
entrelaçam com a experiência da própria cidade” (idem). Há um jogo de acessos e bloqueios e
ao olhar para essas experiências, vemos como os mais jovens fazem suas passagens pela
“dobradura” dos mundos do trabalho, que estruturam relações sociais e modos de vida.
Lembremos que “ser empreendedor” é também um modo de autoreconhecimento, “uma
maneira de formular esperanças de construir uma vida plausível” (2010, p. 140).
Nessa reportagem, há uma aproximação com alguns “aconselhamentos” do que deveria,
ou não, ser abordado no jornal, segundo um dos integrantes do projeto que elaborou o jornal.
Em um evento (descrito no capítulo 5), houve uma crítica à matéria sobre o legado das
Olimpíadas de 2016, publicada na capa da 8ª edição do Fala Roça: foi dito que aquele assunto
não deveria estar no jornal, pois o “público do jornal” queria ver histórias de sucesso dos
moradores e não pautas do “movimento social” – que, em geral, expressam lutas por melhorias
de vida e remetem ao cenário macro de desrespeito aos direitos coletivos. Mas, olhando para as
representações da Rocinha no Fala Roça, vemos que, apesar da crítica, a abordagem
predominante nas capas do impresso (espaço de maior relevância nas mídias jornalísticas) é de
assuntos em torno de situações que remetem à luta por direitos coletivos dos moradores da
Rocinha. Já na parte interna, predominam as “boas notícias” na forma das histórias de
moradores (extremamente ricas e emocionantes, há que se reconhecer), que sozinhos, se
responsabilizam pelo seu sucesso ou fracasso e, em geral, superam as dificuldades.
Nesse caso, percebi a influência de noções/paradigmas que sustentam o discurso do
empreendedorismo na construção das notícias “boas”. A coexistência dessas representações
remete (entre outros elementos), a meu ver, à ideia de um discurso que chamei de “híbrido”.
Abaixo, transcrevo um diálogo com Michel Silva sobre o assunto.
K: Existem muitas histórias, de pessoas que superam problemas, outras que não
superam os diversos problemas pelos quais passam.
M: Sim, tem pessoas que ficam lá, na miséria, em situações ruins...
325
K: Existem pessoas que superam sim. E vocês escolhem contar essas histórias, mais
do que outras.
M: É, eu já refleti também.
K: Vou chamar isso, na tese, de um conteúdo híbrido, que junta coisas diferentes.
M: Eu já cheguei a pensar nisso e acho que o Fala Roça tem até um mea culpa, de
que em alguns momentos faz uma romantização falando das coisas boas da Rocinha.
Por exemplo, realmente, eu nunca fiz uma matéria ou um perfil de uma pessoa que
vive na miséria. Falo tanto da desigualdade na Rocinha, mas nunca publiquei uma
matéria mostrando uma miséria. E tem miséria na Rocinha sim. Uma vez acho que
publiquei algo assim no on-line, não me lembro agora.
K: Entendi. Mas essas coisas são complexas e não são fixas, também mudam, de
acordo com as cabeças de vocês, os interesses que têm nas diferentes épocas, as
preocupações e por aí vai. Às vezes é difícil controlar esse processo; um processo
social que envolve muitas coisas.
M: Michel / K: Kita (Cristina)
Conversa-entrevista com Michel, na PUC-RIO. Fevereiro, de 2019.
222 Na última avaliação do IDEB, em 2013, a Rocinha apresentou o pior índice registrado (4,11) em
comparação com todas as regiões da cidade do Rio de Janeiro. O índice é dividido em anos iniciais, do 1º ao
5º do ensino fundamental, e anos finais (6º ao 9º anos). A medição é realizada a cada dois anos.
Fonte: www.riocomovamos.org.br. Acesso em: 26 set. 2019.
326
crítico. Busquei examinar relações que foram se evidenciando entre cenários como esse, da vida
cotidiana na favela, e o processo de comunicação do Fala Roça.
A Agência de Redes para Juventude realizou ações voltadas para jovens moradores de
favelas, no período de implantação da política das UPPs, assim como o fizeram muitas outras
iniciativas e/ou projetos que transitam no campo das ONGs. Apesar de não possuir vínculos
formais com instituições de governo, um critério importante de sua inserção nas favelas foi a
presença dessas unidades de polícia (conforme o texto acima), que passaram a ser a principal
ação voltada para segurança pública em favelas do Rio realizada pelo governo do estado, a
partir de 2008. Assim, aportou na Rocinha junto com a chegada da UPP na Rocinha em 2012223.
De fato, a existência de um “braço” social foi previsto no âmbito da atuação das UPPs –
denominado UPP Social e, posteriormente, Rio + Social, que seria voltado para o aporte de
serviços e melhorias nas condições sociais de vida das populações faveladas; porém, a reduzida
realização dessa parte do programa, no que diz respeito ao efetivo provimento destas itens de
qualidade de vida, constituiu uma forte crítica – entre muitas outras – à forma como foi
implantada (FRANCO, 2014). Além disso, Rocha e Carvalho argumentam que um dos efeitos
da UPP Social foi a “disseminação da ideologia do empreendedorismo”.
No caso estudado, vimos alguns efeitos desse discurso no universo de comunicação do
Fala Roça; mas também, diversos outros aspectos que caracterizaram a construção da mídia
Fala Roça. Lembro também que não tive contato com a ação da UPP Social na Rocinha, durante
o período desta pesquisa (2014-2018), e pouco ouvi falar sobre sua atuação específica; mas há
que se considerar que muitos silêncios passaram a vigorar no que diz respeito à UPP na Rocinha,
após o episódio do Amarildo.
Entre as características do discurso da ARJ, havia o estímulo à realização de projetos
elaborados pela própria população de favelas e periferias para os seus locais de moradia,
invertendo a lógica de programas trazidos “de fora”, sem a interlocução necessária com quem
vive nestes espaços. Junto a isso, havia grande incentivo e valorização das capacidades
inventivas e dos potenciais dos jovens. Por outro lado, engajar-se na realização desses projetos
poderia significar estar atrelado/a a um leque de escolhas restrito, por exemplo, à criação de um
negócio (ou pessoa jurídica) que exigiria grande dedicação, risco considerável, remuneração
incerta. A atuação dos idealizadores da ARJ, posteriormente, foi se direcionando de forma mais
específica para o trabalho com jovens no campo da cultura e das artes224.
Acho que o nosso trabalho tem total a ver com o movimento do empreendedorismo,
mas acho que a gente tem que politicar o empreendedorismo. Eu acho que a Agência
politiza. Porque o empreendedorismo está localizado no que se chama de start ups e
saúda tudo o que vem do universitário. E o empreendedorismo para pobre, no olhar
hegemônico é abrir salão de beleza. Então, quando você inventa mais um lugar para
o moleque jovem de 15 anos ter sua produtora, para fazer seu jornal, para fazer sua
ação, você está disputando esse campo do empreendedorismo para que ele tenha
significado para a vida. O foco da Agência não é a adequação para o mercado, mas a
invenção de um projeto de vida e de um ambiente que faça com que esse jovem possa
se jogar na vida. 225
depoimentos de jovens dos Pontos de Cultura participantes deste “Pontão”, que constitui uma política pública
apoiada pela prefeitura do Rio de Janeiro (Secretaria Especial de Cultura) e governo federal (Ministério ida
Cidadania). Foi “resultado do trabalho realizado entre os anos de 2015 e 2019 pelo Pontão de Cultura Rede
de Formação e Articulação dos Pontos para Trabalho com Infância e Juventude”.
225 COSTA, Eliane; AGUSTINI, Gabriela. De baixo para cima. Aeroplano Editora, 2014.
226 O projeto Empreendedorismo em Comunidades Pacificadas, criado pelo Sebrae, em 2011, com objetivo de
atuar em favelas com UPPs existe até os dias de hoje, mas com o nome de Comunidade Sebrae.
328
Sendo assim, é possível pensar que a “metodologia” (como é chamada por seus
realizadores) da ARJ apontava227 a via do empreendedorismo como caminho relevante para a
execução dos projetos dos jovens participantes de suas oficinas. Ocorre que, na prática, tais
projetos, não raro, precisavam se tornar projetos de vida desses jovens para terem chance de
sair do papel, considerando o alto nível de dedicação e esforço individual necessário à criação
e manutenção de uma empresa ou negócio. “Olho para os jovens na comunidade, que às vezes
não têm nem o ensino médio e num Estado que diz que o mercado é a solução da vida pra todo
mundo. Como esses jovens vão resolver a vida deles então? Não acho que é o
empreendedorismo que vai resolver. O empreendedorismo é uma ponta num projeto de vida
que você tem, que é empreender”, ponderou.
No caso do Fala Roça, os caminhos mais recentes se direcionaram para a sua
formalização como uma associação de comunicação e a busca da sustentabilidade por meio de
financiamentos coletivos e doações voluntárias para o jornal. Dessa forma, a cobertura
jornalística está ativa e tem tido ganhos significativos de qualidade, mesmo sob o impacto dos
tempos da pandemia do Coronavírus. Engajou-se em campanhas locais e ações humanitárias,
atuando em conjunto com movimentos comunitários, como o A Rocinha Resiste, e outras 25
organizações parceiras. Para quem acompanhou o jornal desde 2014, o amadurecimento dos/as
jovens adultos/as jornalistas /comunicadores/as, agora já mais adultos/as do que jovens, é
notório. Em setembro de 2020, anunciaram a novidade mais recente: a volta da circulação do
jornal impresso, depois de quase quatro anos de interrupção. Os exemplares serão distribuídos
junto com as cestas básicas que vêm sendo entregues, desde o início da pandemia por essas
organizações na favela.
Não podemos ir na casa das pessoas como gostaríamos e sempre fizemos, mas o jornal
Fala Roça não pode deixar de chegar. Uma população bem informada é mais do que
necessário, diz uma postagem na página do jornal na rede social Instagram
(@jornalfalaroca, 04 de setembro de 2020).
227 Procurei os coordenadores da Agência de Redes para Juventude para explicar as linhas gerais desta pesquisa
e entrevistá-los. Após cinco tentativas sem sucesso, presumi que não havia disponibilidade para me receber, já
que foram enviadas justificativas. Datas marcadas: 11, 12 e 27 /09/18, 04 e 05/10/18.
329
O início dos anos 2000, com o impulso da internet, marca uma intensificação do discurso
da narrativa das favelas pelos próprios moradores e a reivindicação da representação do
cotidiano das favelas de forma mais plural, muitas vezes, buscando enfatizar notícias “boas”
sobre esses locais. Notícias “ruins”, em geral, são entendidas como as concentradas na
representação majoritária desses lugares vinculada à violência e criminalidade, frequentemente
divulgadas pela imprensa convencional/comercial. As notícias “boas” fazem um contraponto a
essas representações negativas, a partir das vozes “de dentro”. Há nuances nesse processo de
construção de sentidos, uma vez que está inserido em um contexto complexo em que, muitas
vezes, a liberdade de escolha sobre o conteúdo a ser publicado é limitada, ou sofre interdições,
como define Foucault, ou censuras, como denunciam os/as comunicadores/as das favelas.
Aparece uma ‘novidade’ na concepção do que são consideradas notícias “boas”, no Fala
Roça: maior relevância para histórias de ‘sucesso’ e ‘superação’ dos moradores (categorias que
são representadas, por exemplo, por meio da ideia de moradores “empreendedores” – que ganha
uma capa no jornal). As histórias de fracassos e dificuldades de sobrevivência ganham pouco
espaço. O plano individual destas representações ganha destaque. No nível coletivo, predomina
a abordagem de situações precárias vividas pelo conjunto da população da Rocinha – na forma
dos problemas crônicos de infraestrutura da favela, por exemplo, que ganham a maioria das
capas do Fala Roça impresso. Por um lado, individualmente, nestas representações, os
moradores são responsáveis pelo próprio sucesso – o fracasso individual não aparece.
Coletivamente, os moradores sofrem com a insuficiência de infraestrutura adequada de vida
(moradia, transporte, saneamento básico, coleta de lixo, etc.) e reivindicam o reconhecimento
dos seus direitos e das responsabilidades do Estado com o provimento destas estruturas dignas
de sobrevivência. Busquei mostrar nuances dessa situação, os dilemas dos comunicadores
frente à situação de violência armada na Rocinha durante os conflitos armados iniciados em
setembro de 2017, estendidos até o período da Intervenção Federal na Segurança Pública do
Rio de Janeiro; nos bastidores, há dúvidas entre os comunicadores e alternância de visões sobre
como abordar essas situações.
Sobre os “tempos” que atravessam a época da publicação do Jornal Fala Roça, neste
estudo, representei-os como três aspectos presentes na mesma época da realização desta mídia.
Foram eles os tempos da interne, da UPP e de projetos sociais na Rocinha. Quanto aos tempos
da internet (e da comunicação digital) o lançamento de um jornal impresso, por uma geração
de jovens moradores, leva a pensar no contexto de persistência de desigualdades sociais vivido
330
pela população local, refletido não só na falta de acesso à internet, mas também de outros
direitos que, hoje em dia, chegam por via digital. É inegável que uma ampla parcela da
população local tenha acesso a essa tecnologia, mas tal acesso não é homogêneo, nem tampouco
o é o uso feito da internet pelos que lá chegam a navegar (como também acontece em outras
favelas do Rio de Janeiro). Mais do que dados quantitativos, é importante – creio que,
principalmente, para os próprios moradores – o conhecimento mais esmiuçado sobre a realidade
das chamadas TICs, no dia a dia, da favela, uma vez que “no Brasil, o acesso à tecnologia é
fundamental para noções de democracia e participação cívica que são inerentes aos direitos
civis”, conforme o pesquisador Jeffrey Omari228. As dinâmicas do Jornal Fala Roça nos ajudam
a conhecer melhor esta realidade.
Já quanto aos tempos da UPP na Rocinha e seus efeitos vistos a partir das experiências
de mídias mencionadas neste estudo, foi possível perceber também alguns aspectos. O Viva
Rocinha nasceu, em 2011, sob influência do advento da instalação desta unidade de polícia na
favela. Nas narrativas de Michel, há menção de que a apuração das notícias para o novo site
implica numa nova rotina de circulação pela favela. Em outros momentos, menciona que se
sentir mais a vontade para fotografar após a chegada da UPP. A expectativa de que esta nova
presença na favela pudesse trazer bons resultados se expressa no próprio nome “Viva Rocinha”,
criado por inspiração no grito de moradores no evento de inauguração da unidade na favela.
Outra expectativa narrada pelo jovem era de que haveria conflitos armados com a “ocupação”
da Rocinha; neste caso, a favela seria noticiada pelo Viva Rocinha a partir de uma visão ‘de
dentro’ e também do tema dos conflitos armados. Sabemos que há modulações nas formas de
narrar que vão além de visões dicotômicas sobre qualquer situação, mas haveria risco de ganhar
notoriedade novamente por meio de notícias que vinculavam a favela à violência armada –
podemos pensar a experiencia de Rene Silva no Complexo do Alemão sob esta ótica.
Porém, os conflitos armados não ocorreram na Rocinha com a chegada UPP. O Viva
Rocinha prosseguiu com notícias sobre o dia a dia na favela e ganhou popularidade entre o
público da favela que navegava na internet. Lembremos a concordância com a ideia de que os
mundos on e off line são complementares e não isolados (RAMOS, 2015). Porém, essa dinâmica
iria se alterar nos tempos do jornal Fala Roça, que nasce um ano depois do VR. Essa mídia
também tem o seu percurso marcado pela existência da UPP na Rocinha, de diferentes formas.
228 Jeffrey Omari produziu uma série de textos, em 2015, para o site Rio on watch sobre tecnologia da
informação e comunicação nas favelas do Rio. Na época, era doutorando da Universidade da Califórnia,
Santa Cruz, em 2015, estudava o acesso à internet e direito digital no Rio de Janeiro. Disponível em:
https://rioonwatch.org.br/?p=16853.
331
O seu surgimento, em 2012, ocorreu inicialmente sob condição da presença da UPP na Rocinha,
uma vez que foi elaborada a partir de um programa voltado para jovens que só podia atuar em
áreas com UPP (a Agência de Redes para Juventude). Mas, ao menos, dois episódios
demonstraram que essa mídia passou a vivenciar um processo de intimidação e censura à
publicação de conteúdo, sendo um deles claramente relacionado também à presença da UPP na
favela. A saber: as ameaças sofridas, por meio de “recados” enviados ao jornal, após a
publicação da matéria de capa da terceira edição sobre o desaparecimento de Amarildo
(Amarildo foi levado pela UPP em julho de 2013 e a matéria é publicada em fevereiro de 2014);
e a inclusão do jornal no “caso dos 23”, como ficou conhecido o processo judicial que condenou
de 23 manifestantes por participarem de protestos, em 2013. O jornal foi considerado um grupo
“subversivo”. Esses fatos levam a crer que os tempos da UPP, para o Fala Roça, ocorreram
atrelados a uma dinâmica de militarização mais ampla na cidade, que também cerceou a
liberdade, por exemplo de comunicadores/jornalistas do conjunto de favelas da Maré
(MARTINS, 2018).
Esses contextos também nos levam a pensar em questões como: qual é a favela que mais
vende, na grande mídia? Historicamente, temos visto que é a que a relaciona à da representação
da violência armada e criminalidade, que continua a vincular o coletivo dos moradores à ideia
de “inimigos” (LEITE e FARIAS, 2018). Para contrapor essa representação coletiva que
desperta grande parte dos interesses da sociedade, vimos ganhar relevância, no processo de
comunicação examinado, histórias de sujeitos que assumem individualmente as
responsabilidades por seu fracasso ou sucesso, em iniciativas de trabalho, e “superam” as suas
condições adversas de sobrevivência. E o que isso quer dizer? Essa é uma questão chave sobre
a qual busquei refletir neste trabalho. Não há resposta simples, por essa razão, não busquei
respondê-la, mas apontar caminhos para um debate conjunto. Para os moradores, essa é uma
forma contemporânea de representar positivamente a si próprios, de dizer que eles podem ser
bem-sucedidos e superar dificuldades. O que me parece plausível argumentar diante disso é o
seguinte: a predominância de representações de histórias individuais de superação se torna
homogeneizante, invisibilizando outras nuances das histórias de moradores/as; bem como
outras histórias de pessoas que experimentam dificuldades variadas sem, entretanto, conseguir
superá-las.
Por esses caminhos, a representação do morador, individualmente, caso não seja
acrescida por outras, deixa em segundo plano a ideia de um sujeito que tem direito a ter direitos,
sendo bem-sucedido ou não. Esse cenário se torna ainda mais complexo quando percebemos
que os mais jovens já nascem numa condição de direitos diminuídos e precisam dar conta da
332
sua sobrevivência neste mundo altamente competitivo. Para isso, precisam aprender novos
instrumentos que os habilitem a participar de uma lógica de vida cada vez mais em ‘solo
neoliberal’, especialmente no mundo da comunicação jornalística, em que as condições de
trabalho há muito vêm se tornando cada vez mais instáveis. Entre esses, a via do
empreendedorismo frequentemente lhes vêm sendo oferecida como solução, por exemplo, por
meio de programa sociais que enfatizam o lado bom e potente do empreendedorismo, mas
deixam em segundo plano o preço a pagar (muitas vezes literalmente) pela escolha do caminho
da criação de negócios); um preço que pode ser muito mais alto para jovens de baixa renda.
Nesta tese, busquei pensar sobre forças, discursos e agências dos jovens que atuam neste
processo de comunicação, a partir do meu ponto de vista situado. Junto a isso, conhecer as
formas de comunicação que estes inventam, no contexto contemporâneo das favelas do Rio de
Janeiro. A “comunicação de favela” realizada pelo grupo do Jornal Fala Roça é fruto dessas
invenções, mas também de tradições e memórias de gerações e mídias anteriores da Rocinha.
Sofre influências e censuras. É também formada pelas experiências que constituem as
trajetórias dos jovens comunicadores interlocutores desta pesquisa e suas visões de mundo.
Continua a interagir com discursos estigmatizantes que circulam na chamada grande imprensa,
de governantes e discursos de ódio que “viralizam” na internet. Mais recentemente, dialogam e
criticam as produções acadêmicas que têm se interessado pelos saberes da comunicação
comunitária, popular e/ou alternativa. Ou seja, movimentam-se em meio à arena discursiva de
poderes que os cercam e o qual também querem disputar – como forma de sobrevivência.
Por fim, uma última reflexão ocorre em relação a todo este contexto. A publicação de
notícias que abordam dores e dificuldades vividas pela população implicada diretamente nestes
sofrimentos é um assunto delicado. De minha parte, nutro respeito a dúvidas e reavaliações
constantes de veículos de favelas sobre a cobertura de temas que remetem ao seu próprio
sofrimento. Existem limites em relação à narrativa da própria dor, conforme abordam muitos
autores, dentre eles/as Gama229 e Sontag230, que refletem implicações sobre denúncias de
violências, especialmente física e letal, para quem é parte do grupo contra o qual são praticados
estes atos (sejam quais forem). Em resumo, é necessário respeitar “a dor dos outros” (SONTAG,
2003).
229 GAMA, Fabiene. A violência vista de perto: os limites da documentação da dor, da denúncia e da demanda
por justiça. CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA, v. 6, n. 2, p. 49-64, 2017.
230 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Editora Companhia das Letras, 2003.
333
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2016. Disponível em: https://catcomm.org/ (relatório).
341
6. Tv Tagarela
Produção de notícias (formato jornalístico)
1. Jornal Fala Roça
2. Favela da Rocinha.com
3. Jornal Rocinha Notícias
Divulgação (repasse) de informação/notícias (produzida por outros)
1. “Sistema” Rocinha.org
2. Viva Rocinha
Entretenimento e produção/divulgação de informação
1. Rádio Brisa
2. Rádio Katana
Fins publicitários
1. Agência Rocinha Publicidade Elefante Verde
Fins históricos
1. Memória Rocinha
Produção/divulgação de fotos e vídeos
1. Morro da Rocinha
231 Conforme página do Jornal Rocinha Notícias na rede social Facebook. Endereço:
https://www.facebook.com/jornal.rocinhanoticias/ Acesso em 17/04/2020.
345
Título: Tagarela
Slogan: “O jornal da Rocinha”
Suporte de mídia: impresso em mimeógrafo
Período (referente aos exemplares digitalizados): outubro de 1976 a maio de 1981232,
aproximadamente.
Periodicidade: variável (pretendida: mensal; citação no editorial do nº 7)
Edições publicadas: 23 (edições digitalizadas, que fazem parte do acervo do Museu Sankofa
Memória e História da Rocinha)
Tiragem: 250 exemplares (citação no editorial do nº número 2: tiragem “aumentou para 250
exemplares”)
Realizadores: “Grupo de jovens da ASPA” - Associação Social Padre Anchieta (equipe : citação
no número 3)
Sede: Associação Padre Anchieta (ASPA); Bairro Barcelos / Rocinha (conforme citado)
Redação: Centro Comunitário / Travessa Luz nº13 – Bairro Barcelos – RJ (conforme citado)
Sustentabilidade: jornal vendido; “C$ 1,00” (menção na ed. 3)
Distribuição: feita de mão em mão, pelos integrantes do jornal, em pontos fixos da favela
(informação sobre assinatura no número 7, pg 3: “Seja assinante do Tagarela”)
Número de páginas (em média): entre 4 e 9 (exceções: nº 11: 17 pg; nº17: 20 pg; nº22: 14 pg)
Material disponível para consulta
Instituições: Museu Sankofa Memória e História da Rocinha; Laboratório de Educação e
Patrimônio Cultural da Universidade Federal Fluminense (Laboep/UFF)
Suporte: digitalizado
Número de exemplares: 23
Edições: 1 a 23 (atenção: os arquivos da edição nº 1 estavam na pasta da edição nº 7)
Período de abrangência: (aproximado) outubro de 1976 a maio/1981
232 Datas deduzidas a partir da consulta aos exemplares digitalizados do jornal Tagarela, conforme citado na
nota de rodapé 145.
347
233 Elaborada, entre janeiro e junho de 2020, como parte da pesquisa de doutorado de Cristina Pedroza de Faria,
inscrita no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
348
2006 Voluntários
criam escola de
futebol na
localidade do
Laboriaux e
realizam ações
sociais
25. Ano 5/nº32 Dez, janeiro de “Feliz Natal e feliz 2007” Data
2007 Chamada em destaque: comemorativa:
“Região administrativa natal e ano
autoriza CONSTRUÇÃO novo. +Região
IRREGULAR!” Administrativa /
denúncia
26. Ano 6/nº32 Março, abril de “Via Sacra da Rocinha: Uma Arte/cultura. Via
2007 paixão ‘debutante’ “. Sacra da
Subtítulo: “Espetáculo da Rocinha. Grupo
morte e ressurreição de Cristo de teatro local
completa 15 anos de sucesso e encena a Paixão
critica social, luta por verbas e de Cristo pelas
reconhecimento ruas da favela na
internacional”. Semana Santa.
27. Ano 6/nº33 Maio, junho de “Olha o Bradesco aí gente!” Evento.
2007 Inauguração do
Banco Bradesco
na Rocinha, com
presença do
governador
Sérgio Cabral.
28. Ano Dez, janeiro de “Rocinha vem pra ganhar!” Carnaval. Escola
6/nº34** 2007/8 de samba
Acadêmicos da
Rocinha.
29. Ano 7/nº34 Abril, maio de “Perdemos a guerra!!!” Saúde. Epidemia
2008 Subtítulo: “60.000 casos e de dengue no
quase 70 mortos, sendo 20 município do
delas por dengue hemorrágica. Rio de Janeiro.
A maioria das mortes, 31, se
deu na cidade do Rio de
Janeiro”
30. Ano 7/nº34 Abril, maio de “16 anos de Via Sacra da Edição Especial.
2008 Rocinha” Via Sacra da
Rocinha
[encarte?]
31. Ano 7/nº35 Maio, junho “Olha o PAC aí, gente!” Obras de
2008 urbanização.
Início das obras
do Programa de
Aceleração do
Crescimento na
Rocinha, em sua
primeira etapa
(“PAC 1”)
32. Ano 7/nº37 Set, out de 2008 “Gabeira X Eduardo Paes. Política.
Você decide!!!!” Candidatos à
prefeitura do
Rio de Janeiro,
nas eleições de
2008.
33. Ano 8/nº38 Maio, junho de “Especial!!!! 1 ano de PAC Obras de
2009 Rocinha”. Subtítulo: urbanização. O
350
6ª edição
Editorias:
1 – Reportagem ímpar (“Rio antigo: a fazenda Quebra Cangalha e a origem da Rocinha”)
2 – Você conhece? (“Brechós fazem sucesso na Rocinha”)
3 – Colcha de retalhos (“De volta para minha terra”)
4 – Queremos saber (“Mãe e filha se reencontram depois de quase 40 anos de separação”;
“Fala Roça é incluído nas comemorações do Rio450”)
5 – Guia cultural (“Você sabia?”; “A extinta Soreg”)
6 – Delícia (“Paraibana ensina a fazer prato típico do Nordeste”)
7 - Da minha janela posso ver
8 - Editorial
Outras seções: ‘Aprendendo o Nordestinês’; ‘Telefones úteis’.
Coluna: ‘Lendas da Rocinha’; ‘Museu Sankofa da Rocinha’ (“Museu Sankofa da Rocinha
ganha coluna no jornal”)
Alterações: nova editoria: Queremos saber; não há anúncios.
354
bibliográfico
Levantamento bibliográfico234
Tema: mídia/comunicação comunitária, popular e alternativa
Teses e Dissertações
Método – busca em acervos digitalizados de teses e dissertações dos programas de Pós-
Graduação das universidades públicas do Rio de Janeiro, nas áreas de Comunicação, Ciências
Sociais e História235.
Data de realização do levantamento – maio, junho / 2014
Período de abrangência - 2000-2014236
Resultados -
Foram encontrados 35 trabalhos acadêmicos (teses e dissertações) com temas relacionados à
comunicação comunitária, alternativa e popular em programas de pós-graduação das áreas de
comunicação, ciências sociais e história de três universidades públicas presentes no Rio de
Janeiro - UFRJ, UERJ e UFF -, além de um estabelecimento de ensino privado (Fundação
Getúlio Vargas). Foram encontrados, no total, 35 trabalhos, sendo 26 na área de comunicação;
7 de história; 2 de ciências sociais.
OBS: não foram consultados os cursos de História da UERJ e UFRJ.
234 Realizado por Cristina Pedroza de Faria (graduação em Jornalismo, ECO-UFRJ, mestrado pelo Programa de
Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da UFRJ; especialização em Fotografia Como Instrumento de
Pesquisa nas Ciências Sociais pelo Instituto de Humanidades da UCAM).
235 Foi incluída, no levantamento, a pós-graduação de uma instituição de ensino privado, a Fundação Getúlio
Vargas.
236 No caso do PPGHPBC / FGV, o período entre 2000-2014 foi integralmente verificado; nos demais casos
pesquisados, o levantamento se limitou ao acervo digitalizado disponível para consulta pública (que, em geral, se
inicia nos anos 2000).
355
Ciências sociais
- Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais / PPCIS – UERJ (1)
- Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia / IFCS – UFRJ (1)
- Programa de Pós-Graduação em Antropologia / UFF – (0)
- Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social / PPGAS / Museu Nacional – UFRJ
(0)
Resultado total - 35
1.2 TEMÁTICA
Temas
1. Recepção de mídia e informação (como o morador se informa sobre a Rocinha e
outros temas)
2. Meios de comunicação da Rocinha (atuais e antigos); comunicação e cultura na
Rocinha, relação da mídia tradicional com a Rocinha
3. Mídia Fala Roça
357
4. Mídia Faveladarocinha.com
5. Mídia Favela em foco
6. Mídia Jornal Rocinha Notícias
7. Mídia Jornal O Tagarela
8. Empreendedorismo
2. Flávio Carvalho
3. Amanda Pinheiro
Tema – Mídia Favela em Foco
Entrevistados:
1. Fabiana Rodrigues
Tema – Mídia Jornal Notícias da Rocinha
Entrevistados:
1. Edu Casaes
Tema – Jornal O Tagarela
Entrevistados:
1. Maurício Trajano
2. Devaldo Oliveira
Devaldo Oliveira
3) TOTAL / ENTREVISTAS
1. Michel Silva
2. Michele Silva
3. Beatriz Calado
4. Leandro Lima
5. Flávio Carvalho
6. Maurício Trajano
7. Devaldo Oliveira
8. Edu Casaes
9. Fabiana Rodrigues
10. Amanda Pinheiro
11. José Martins de Oliveira
12. Roberto Lucena
13. Fernando Ermiro
14. Seu João Guilherme
15. Shirley Muriel
16. Leandro Castro
17. Pedro Paiva
18. Dona Jandira
19. Sônia
20. Advogado
21. Dona Josita
360
“A partir de hoje, o leitor do EXTRA passará a encontrar, em nossas páginas do jornal impresso e no site, uma
expressão que, até então, nossos jornalistas evitavam: guerra do Rio. Não se trata de uma simples mudança na
forma de escrever, mas, principalmente, no jeito de olhar, interpretar e contar o que está acontecendo ao nosso
redor.
O EXTRA continuará a noticiar os crimes que ocorrem em qualquer metrópole do mundo: homicídios, latrocínios,
crimes sexuais... Mas tudo aquilo que foge ao padrão da normalidade civilizatória, e que só vemos no Rio, estará
nas páginas da editoria de guerra.
Um feto baleado na barriga da mãe não é só um caso de polícia. É sintoma de que algo muito grave ocorre na
sociedade. A utilização de fuzis num assalto a uma farmácia não pode ser registrada como uma ocorrência banal.
A morte de uma criança dentro da escola ou a execução de um policial são notícias que não cabem mais nas
páginas que tratam de crimes do dia a dia.
A criação da editoria de guerra foi a forma que encontramos de berrar: isso não normal! É a opção que temos
para não deixar nosso olhar jornalístico acomodado diante da barbárie. Temos consciência de que o discurso de
guerra, quando desvirtuado, serve para encobrir a truculência da polícia que atira primeiro e pergunta depois.
Mas defendemos a guerra baseada na inteligência, no combate à corrupção policial, e que tenha como alvo não
a população civil, mas o poder econômico das máfias e de todas as suas articulações.
Sabemos que não há solução fácil nem mágica para o problema. Guerra pressupõe vitórias, derrotas, avanços,
recuos, acertos e erros. É preciso paciência e consciência de que nada será resolvido a curto prazo. Mas temos a
esperança de perder, um dia, o título de ser o único diário do planeta a ter uma editoria de guerra num país que
se recusa a reconhecer que está em guerra.”
361
B: 0]
[Parcerias – Me: 2 / B: 1 / M: 0]
[Com Ongs – B: 1 / M: 0 / Me: 0]
[Com a polícia e bandidos – Me: 1 / M;
0 / B: 0]
6 Jornalismo [Jornalismo nas redes sociais – Me: 2 / Beatriz Calado,
(tradicional) e M: 0 / B: 0] Michele Silva
comunicação [Jornalismo / Ser jornalista – B: 1 / Me:
comunitária 0 / M: 0]
(popular, [Jornalismo/comunicação comunitária
alternativa etc) B: 1 / Me: 0 / M: 0]