Tudo Ou Nada - Jennifer Lynn Barnes
Tudo Ou Nada - Jennifer Lynn Barnes
Tudo Ou Nada - Jennifer Lynn Barnes
Tudo pode ser contado. Os fios de cabelo na cabeça dela. As palavras que ela
dirigiu a você. Quantas respirações ela ainda tem.
É uma coisa linda, na verdade. Os números. A garota. Tudo o que você
planejou.
Aquilo que você está destinado a ser.
Capítulo 1
É
— A vida anda corrida — respondeu Michael. — É preciso levar em
conta a inflação.
Olhei primeiro para o carro novo e depois para Michael. O carro era
um clássico, um conversível vermelho-cereja com um estilo que me
parecia ser dos anos 1950 ou 1960. Estava em perfeito estado. Michael
também parecia em perfeito estado. Sem hematomas no rosto nem marcas
no braço apoiado no banco do passageiro.
O olhar de Michael permaneceu um instante no meu rosto.
— Não esquenta a cabeça, Colorado — disse ele, abrindo um sorriso
de canto. — Estou inteiro.
Era a primeira vez em semanas que ele respondia a uma coisa que eu
não tinha dito. A primeira vez que ele agia como se eu fosse alguém que
valia a pena ler.
— Na verdade — anunciou Michael —, estou me sentindo um
homem novo. Um homem novo incrivelmente generoso e bem conectado.
— Ele olhou para os outros até encarar Judd. — Espero que não se
importe, mas fiz umas reservas.
A muito elogiada suíte Renoir tinha cinco quartos e uma sala de estar tão
grande que poderia ser ocupada por um time inteiro de futebol. Janelas se
estendiam do chão ao teto ao longo de uma das paredes e davam uma vista
panorâmica da Strip de Las Vegas, que mesmo durante o dia vivia cheia de
brilhos e cores fluorescentes.
Lia subiu no balcão do bar e ficou ali balançando as pernas enquanto
analisava o lugar onde estávamos hospedados.
— Nada mau — ela comentou com Michael.
— Não me agradeça — ele rebateu, o tom de voz tranquilo. —
Agradeça ao meu pai.
Comecei a sentir um nó na garganta. Eu não queria agradecer ao pai de
Michael por nada, e, em circunstâncias normais, ele também não. Sem
dizer mais nada, Michael saiu andando na direção do quarto principal para
tomá-lo para si.
Dean veio se aproximando por trás de mim e passou o braço de leve
pelo meu ombro.
— Isso não está cheirando bem — falei baixinho.
— Não — disse Dean, com os olhos fixos em Michael. — Não está.
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Você tira a roupa e entra no chuveiro, deixa a água escaldante bater no
peito. A água não está quente o suficiente. Deveria doer. Deveria queimar.
Não acontece nada disso.
Houve sangue desta vez.
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É culpa dela. Se ela tivesse feito o que devia, não haveria necessidade de
sangue.
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É culpa dela por ficar vendo através de você.
É culpa dela por resistir.
Você fecha os olhos e se lembra de como foi se aproximar dela por trás. Se
lembra de fechar as mãos em volta da corrente. Se lembra de ela resistir.
Você se lembra do momento em que ela parou.
Se lembra do sangue. E quando abre os olhos e vê a superfície
intensamente vermelha da sua própria pele, você sabe que a água quente
assim deveria machucar. Você deveria senti-la queimar.
Mas não sente.
Um sorriso vai se abrindo lentamente no seu rosto.
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Nada pode te machucar. É questão de tempo até eles verem. Até todo
mundo ver.
E então você vai ser uma divindade.
Capítulo 15
Se Lia tivesse feito com Michael o que havia acabado de fazer comigo, ele
teria reagido. Se fosse com Sloane, ela ficaria arrasada. Eu, não. Era
questão de tempo até minha dor me acertar em cheio… mas Lia me dera
um motivo para enfrentá-la por mais um tempo. Ela não estava enganada
sobre Michael. Não estava enganada sobre Sloane. Alguém precisava
apoiá-los. Alguém precisava nos apoiar.
E eu precisava que essa pessoa fosse eu.
Lá no fundo eu tinha a sensação de que Lia sabia disso. Você podia ter
falado com mais jeitinho, pensei. Mas se ela agisse assim, não seria Lia.
Fiquei na sacada por mais dez minutos depois que ela saiu. Quando
finalmente voltei, Michael, Lia e Dean estavam reunidos em volta da mesa
da cozinha junto com o agente Briggs. Ele vestia roupas normais, o que me
deu a entender que o estava se esforçando para manter a discrição nas
visitas. O fato de a versão de Briggs de roupas normais continuar deixando-
o parecendo um policial refletia perfeitamente sua personalidade:
ambicioso e extremamente focado.
Briggs jogava para vencer.
— Houve outro homicídio. — Pelo visto, Briggs estava me esperando
chegar para dar a notícia. Nenhum de nós quatro nem tentou fingir
surpresa. — Com esse, temos o Apex, o Wonderland, o Desert Rose e o
Majesty em quatro dias. Talvez estejamos atrás de alguém com rancor de
cassinos ou de quem lucra com eles.
Dean olhou para uma pasta que Briggs tinha na mão.
— A última vítima?
Briggs jogou a pasta na mesa da cozinha. Eu a abri. Olhos azuis
vidrados me encararam, tão grandes que nem pareciam reais naquele rosto
em forma de coração.
— Essa é… — Michael começou a dizer.
— Camille Holt — terminei, sem conseguir afastar o olhar.
Você gosta de ser subestimada, Camille, pensei estupidamente, tocando
na borda da fotografia. Você é fascinada pelo jeito como a mente funciona,
pela forma como se quebra, pelo jeito como as pessoas sobrevivem a coisas a
que ninguém devia conseguir sobreviver.
A pele dela estava em um tom cinza-pálido; o branco dos olhos
separados marcados por manchas vermelhas, resultado das veias que
estouraram enquanto ela se debatia com o agressor.
Você tentou se defender. Você resistiu. Ela estava deitada de costas em
um piso de mármore branco, o cabelo loiro-alaranjado espalhado em uma
auréola em volta da cabeça… mas lá no fundo eu sabia que ela tinha
resistido ferozmente, com uma força quase animalesca que provavelmente
o agressor não estava esperando.
— Asfixia — comentou Dean. — Ela foi estrangulada.
— A arma do crime? — perguntei. Havia uma diferença entre
estrangular alguém com um fio e com uma corda.
Briggs tirou uma foto de um saco de provas. Dentro havia um colar,
aquela corrente grossa de metal que Camille usava enrolada duas vezes no
pescoço na noite anterior.
Na minha cabeça, eu a via sentada no bar, com uma das pernas se
balançando no banco. Eu a enxergava vindo na nossa direção e andando
em direção à saída.
Eu via Aaron Shaw de olho enquanto ela saía.
— Vocês vão precisar falar com o filho do dono do cassino. — O
raciocínio de Michael estava perfeitamente sincronizado com o meu. —
Aaron Shaw. O interesse dele na sra. Holt não tinha nada de profissional.
— O que você notou? — perguntou Briggs.
Michael deu de ombros.
— Atração. Afeto. Uma certa tensão.
Que tipo de tensão? Não tive a oportunidade de seguir em frente,
porque Sloane entrou na cozinha e foi tomar uma xícara de café. Briggs
olhou cauteloso para ela. A tendência de Sloane de dar início a uma
falação desenfreada quando estava sob efeito de cafeína era lendária.
— Te liguei ontem à noite — Sloane lhe disse em tom de reprovação.
— Várias e várias vezes, mas você não atendeu. Portanto, eu tomo café e
você não tem o direito de reclamar.
Pensei nos palitinhos que Sloane roubara na noite anterior. Você
precisava que Briggs te atendesse. Precisava ser reconhecida. Precisava ser
ouvida.
— Houve outro homicídio — disse Briggs para ela.
— Eu sei. — Sloane desviou o olhar para a xícara de café em suas
mãos. — Dois. Três. Três. Três.
— O que você disse? — perguntou Briggs, meio ríspido.
— O número no cadáver. É 2333. — Sloane se sentou à mesa com o
resto de nós. — Não é?
Briggs pegou uma nova foto na pasta. O número 2333 tinha
literalmente sido entalhado no pulso de Camille. Os números
ensanguentados estavam meio irregulares. De tatuagem de henna a isso. Os
números sempre foram uma maneira de passar um recado… mas aquilo?
Aquilo era violento. Era pessoal.
— Ela estava viva quando o fez isso? — perguntei.
Briggs fez que não.
— Post-mortem. Tinha um espelhinho na bolsa da vítima. Acreditamos
que o o quebrou e usou um caco pra entalhar os números no pulso
dela.
Mudei da perspectiva de Camille para a do agressor. Você planeja as
coisas. Se era isso que tinha em mente o tempo todo, poderia ter levado algo
para fazer o serviço.
Isso me deixava com duas perguntas: primeira, qual era o plano, e
segunda, por que o tinha desviado dele?
O que deu errado?, perguntei silenciosamente ao assassino. Ela estragou
seu plano? Foi mais difícil de manipular do que os outros? Me lembrei do
fato de que Camille estava presente nas cenas de crime de duas das
vítimas. Você a conhecia?
— Isso é pessoal. — O raciocínio de Dean estava perfeitamente
alinhado ao meu. — Os outros alvos podem até ter sido selecionados por
conveniência. Mas esse, não.
— Também foi assim que a agente Sterling interpretou — disse Briggs.
Ele se virou para Sloane. — Você decodificou os números?
Sloane pegou uma caneta no bolso do agente Briggs, fechou a pasta,
começou a escrever números na parte de fora e, enquanto escrevia, não
parava de falar:
— A sequência de Fibonacci é uma sequência de números em que
cada número subsequente é calculado pela soma dos dois anteriores. A
maioria das pessoas acredita que a sequência foi descoberta por Fibonacci,
mas suas primeiras aparições estão em escritos sânscritos centenas de anos
antes de Fibonacci.
Sloane colocou a caneta na mesa. Havia quinze números no papel:
Lia se jogou no sofá, a perna esticada pelo comprimento, a outra caída pela
lateral. Dean se sentou no sofá à sua frente, os antebraços apoiados nos
joelhos enquanto encarava o tablet apoiado na mesa de centro.
— Alguma novidade? — perguntei, me sentando ao lado dele.
Dean fez que não.
— Ali. — A postura de Lia não mudou, mas seus olhos se iluminaram.
No tablet, a imagem de uma mão dominou a tela quando Briggs ajeitou a
câmera disfarçada de caneta no bolso do terno.
— Michael… — comecei a chamar.
Ele apareceu antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa.
— Deixa eu adivinhar — disse, pegando uma garrafinha do bolso e
dando um gole. — É hora do show.
Fiquei com os olhos fixos na garrafa.
Dean tocou meu joelho. Se Lia e eu reparamos que Michael estava se
aventurando pelas beiradas de um território sombrio, era quase certo que
Dean também tinha reparado. Ele conhecia Michael havia mais tempo do
que eu, e me dizia para não insistir no assunto.
Sem uma palavra, coloquei o fone que o agente Briggs tinha me dado e
voltei a atenção para a transmissão de vídeo.
Na tela, vimos o mesmo que o agente Briggs viu: um palco com
colunas enormes dos dois lados. Quando ele chegou mais perto, reconheci
a pessoa à frente do palco, examinando a iluminação.
Tory Howard usava uma regata preta e uma calça jeans, o cabelo preso
num rabo de cavalo nem alto nem baixo. Sem dor de cabeça. Sem estresse.
Ela não ligava para sua imagem pessoal nem se esforçava em projetar uma
imagem baseada nisso.
Quando viu Briggs, limpou as mãos na calça jeans e o encontrou no
corredor central.
— Agentes — disse ela. — Em que posso ajudar?
Agentes, no plural, pensei. Isso significava que Sterling também estava
lá, só que fora da imagem.
— Temos só mais algumas perguntas sobre ontem à noite que
gostaríamos de fazer a você. — Briggs pareceu tomar a frente naquele
interrogatório, o que me dava a entender que Sterling tinha escolhido ficar
só olhando. Considerando que ela era a perfiladora, isso não me
surpreendia. Sterling ia querer analisar Tory antes de decidir exatamente
que caminho seguir.
— Já falei — respondeu Tory a Briggs, com uma pontinha de irritação
na voz. — Camille e eu saímos pra beber. Jogamos algumas rodadas de
pôquer e fomos embora cedo. Camille estava querendo ir pra uma festa.
Eu, não. Vou me apresentar hoje e gosto de estar bem nesses dias.
— Fiquei sabendo que os ingressos das suas apresentações andam
esgotando — disse o agente Briggs.
— Pode dizer o que está pensando, agente. — Tory o encarou, e foi
quase como se ela estivesse nos observando com aquele mesmo olhar
indiferente. — Minhas apresentações estão esgotando desde que o
Wonderland fechou o cassino deles.
Desde que a segunda vítima literalmente pegou fogo, corrijo-a
silenciosamente.
— Você parece estar na defensiva. — Foi a agente Sterling quem disse
isso. Eu a conhecia o suficiente para saber que ela só tinha escolhido
aquele momento para falar, além de ter feito exatamente aquela
observação, por um motivo.
— Já é a segunda vez que vocês me entrevistam no intervalo de duas
horas — rebateu Tory. — Vocês vieram até o meu local de trabalho. Não
fazia muito tempo que eu conhecia Camille, mas gostava dela. Então, sim,
quando vocês vêm aqui, supostamente dando sequência ao que eu falei
ontem à noite, mas também dando indiretas sobre meu rival morto, eu fico
meio na defensiva.
— Não só na defensiva — opinou Michael, mas não disse o que mais
estava vendo no rosto dela.
— Eu não fiz mal a Camille — disse Tory, sem rodeios. — E não
perderia meu tempo com Sylvester Wilde. Eu lamento por ela estar morta.
Mas não lamento por ele. Acabamos por aqui?
Lia assobiou baixinho.
— Ela é boa.
— Em mentir? — perguntei, me perguntando qual parte da declaração
que Tory tinha acabado de fazer não era verdade.
— Ela ainda não mentiu — disse Lia. — Mas vai. Os melhores
mentirosos começam te convencendo de que são diretos ou incapazes de
mentir. Ela está seguindo a primeira estratégia. E como eu falei, ela é
muito, muito boa.
Tory era ilusionista. Era fácil acreditar que ela estava montando o palco
para que, quando o desvio chegasse, Briggs e Sterling não percebessem.
A agente Sterling mudou a tática.
— Você consegue pensar em alguém que pudesse querer fazer mal a
Camille? Alguém que talvez guardasse rancor dela?
Um vislumbre de tristeza passou pelo rosto de Tory. Ela afastou o
sentimento. Sem dor de cabeça. Sem estresse.
— Camille era a única mulher com chance de avançar para a final
numa competição de alto risco dominada por egos e homens. Ela era
confiante e manipuladora e adorava vencer.
Você se identifica com ela, percebi enquanto Tory falava.
— Camille também era bonita, quase famosa e não tinha nenhum
problema em dizer não para as pessoas — continuou Tory sem nem hesitar.
— Devia ter muita gente querendo fazer mal a ela.
Ela falou de um jeito tão direto que entendi na mesma hora: Alguém,
talvez várias pessoas, te magoaram. Tory sabia como era ser vista como fraca
e sabia como era ser dominada. Eu conseguia entender por que Camille
tinha escolhido passar tempo com ela. Se fosse fictícia, Tory Howard seria
exatamente o tipo de personagem que Camille Holt escolheria interpretar.
— Camille comentou com você alguma coisa sobre Aaron Shaw? — O
agente Briggs mudou novamente a linha de interrogatório.
— Interessante — murmurou Michael, chegando mais perto da tela…
e de Tory.
— Camille e eu nos conhecemos numa festa de Ano-Novo —
respondeu Tory. — Nos demos bem. Saímos pra beber algumas vezes. Eu
não chegava a ser o tipo de pessoa para quem ela se abria.
Olhei para Lia. Ela está falando a verdade para eles de novo, pensei.
— Mais uma pergunta — disse a agente Sterling. — Você e Camille
foram ao Majesty ontem à noite.
— Ao novo restaurante japonês — ofereceu Tory. Mais uma verdade,
essa bem fácil de verificar.
— Quem escolheu o restaurante? — perguntou Sterling.
Tory deu de ombros.
— Ela.
Atrás de mim, Lia tirou as pernas de cima do sofá e se levantou.
— Aí está — disse ela. — Essa é a mentira.
Capítulo 20
— Vou mandar uma mensagem pra Sterling. — Dean esticou a mão para
pegar o celular. Havia uma grande chance de Sterling e Briggs terem
pescado a mentira, mas eles iriam querer que Lia confirmasse. — Tem
mais alguma coisa pra acrescentar? — perguntou Dean enquanto digitava.
Por algum milagre, Michael conseguiu sufocar sua mania de responder
a tudo que Dean dizia com um deboche.
— Duas coisas — disse Michael. — Primeiro, estar na defensiva não é
uma emoção. É uma combinação de emoções que acontece de jeitos
diferentes em pessoas diferentes em momentos diferentes. Nesse caso,
temos um coquetel impressionante de raiva, autodefesa e culpa.
Tory se sente culpada. Tentei encaixar isso com o que sabia sobre ela.
Me parecia ser uma pessoa pragmática. Assim como Camille, havia
chegado ao topo em um campo dominado por homens. Para ter sua própria
apresentação em Las Vegas, ela deve ter precisado ser ambiciosa.
Não me parecia o tipo de pessoa que se permitiria ficar tanto tempo
deprimida por seja lá o que fosse.
— E a segunda coisa? — perguntou Dean.
— A reação dela a Aaron Shaw — respondi antes de Michael.
Michael inclinou levemente a cabeça.
— Paralisação temporária dos músculos faciais, sobrancelhas resistindo
à necessidade de se franzirem, uma leve repuxada dos lábios. — Ele ficou
mexendo a garrafinha ritmicamente de uma das mãos para a outra e
explicou melhor. — Medo.
Do que você tem medo, Tory? Por que desconversou quando Briggs e
Sterling te perguntaram se Camille comentou alguma coisa sobre Aaron
Shaw?
Acabei pensando no que eu sabia sobre o meio-irmão de Sloane.
Crescera em uma família em que riqueza e poder eram presença certa. Eu
apostava que ele tinha sido criado para seguir os passos do pai. Não seria
difícil alguém assim se acostumar a limites morais difusos. Mas também
teve aquela pontada de gentileza no jeito como ele interagiu com Sloane, e
era isso me fazia hesitar.
É de você que Tory tem medo?, pensei, visualizando Aaron. Ou do seu
pai?
Dean enviou a mensagem. Logo depois ouvimos a agente Sterling pedir
licença do interrogatório. Em um minuto, Dean recebeu uma resposta.
— Mais alguma coisa? — leu ele em voz alta. — Cassie?
O fato de a agente Sterling ter dirigido a pergunta a mim me deu a
entender que ela estava atrás de algo específico, uma confirmação de
algum palpite dela ou algum aspecto da personalidade de Tory que seria
mais provável que eu pescasse do que Dean.
— Não sei — falei baixinho —, mas podemos estar diante de um
histórico de agressão. Verbal, física, sexual… ou talvez só uma ameaça
constante disso.
Dizer isso me deu a sensação de quebra de confiança. Michael deve ter
percebido pela minha voz, porque se inclinou sobre Dean e me passou a
garrafinha. O encarei, uma sobrancelha arqueada. Ele deu de ombros.
— Não tenho como ajudar vocês. — O aumento no volume chamou
minha atenção de volta ao tablet. Estava na cara que Tory tinha chegado ao
limite. — Se tiverem mais perguntas, podem enviar ao meu advogado.
— Tudo bem aqui? — Sterling voltou a participar da conversa,
entrando no campo de visão da câmera.
Briggs pigarreou.
— Eu estava perguntando à srta. Howard se alguém podia confirmar o
paradeiro dela depois que se separou da srta. Holt. — E foi aí que ela
mencionou o advogado. Briggs deixou a segunda parte da frase no ar.
Ela não confia em pessoas ocupando posições de poder, falei
mentalmente para ele. E não confia em você.
— Eu posso. — Uma voz masculina chegou pelo microfone vários
segundos antes de o dono aparecer na tela, ficando exatamente entre Tory
e os agentes do . Homem. Jovem. Vinte e poucos anos, no máximo. Meu
cérebro começou a catalogar o grupo demográfico antes mesmo de
reconhecer o rosto.
— Beau Donovan — disse Dean. — Um de nossos suspeitos. O
lavador de pratos de 21 anos que ganhou a vaga de amadores no torneio de
pôquer.
— Tory estava comigo — disse Beau. — Ontem à noite, depois que ela
e Camille se separaram, Tory esteve comigo.
— Que história engraçada — disse Lia, fingindo um sussurro. — Ela
não estava mesmo.
Você está mentindo. Só isso já bastou para Beau prender
completamente minha atenção. Ele e Tory tinham a mesma altura, mas ele
ficou um pouco à frente dela. Protetor.
— Você e Beau estavam juntos ontem à noite? — O agente Briggs
pressionou Tory.
— Isso mesmo — disse Tory, encarando os agentes. — Estávamos.
— Ela é realmente muito boa — comentou Lia. — Até eu poderia ter
deixado essa mentira passar.
— E como vocês se conhecem? — perguntou Sterling.
Beau deu de ombros, parecendo por um instante um garoto encolhido
nos fundos da sala de aula, sem nem prestar atenção direito no que era
dito na frente.
— Ela é minha irmã.
Houve um momento de silêncio.
— Sua irmã — repetiu a agente Sterling.
— Irmã adotiva. — Foi Tory quem ofereceu essa informação. Ela era
dois, talvez três anos mais velha do que Beau. Algo me deu a entender que
aquele jeito protetor era recíproco.
— Ainda está precisando de ajuda pra consertar as lâmpadas? —
perguntou Beau a Tory, como se o não estivesse presente. — Ou não?
— Sr. Donovan — disse a agente Sterling, forçando a atenção dele de
volta para ela —, você se importaria se fizéssemos algumas perguntas?
— Manda ver.
Tory não é a única que não gosta muito de gente em posição de poder.
— Fiquei sabendo que você avançou para as finais do torneio de
pôquer multicassinos de Las Vegas — disse a agente Sterling. — Você
anda recebendo bastante atenção.
— Todo mundo adora uma história de superação. — Beau deu de
ombros novamente. — Estou pensando em vender os direitos pra
Hollywood — disse ele. — Vai ser um daqueles filmes superinspiradores.
— Beau — disse Tory com um tom de advertência na voz. — Só
responde às perguntas.
Que interessante. Ela não queria que ele irritasse as autoridades. Por
uma fração de segundo tive a sensação de estar vendo Lia e Dean num
universo paralelo, em que ela era a mais velha e ele tinha aquele mesmo
jeito cínico de Michael.
— Tudo bem — disse Beau para Tory, virando-se para a agente
Sterling. — O que você quer saber?
— Há quanto tempo você joga pôquer?
— Um tempinho.
— Você deve ser bom.
— Melhor do que alguns.
— Qual é seu segredo?
— A maioria das pessoas é péssima mentindo — Beau disse, deixando
os agentes assimilando a frase. — E pra alguém que abandonou o ensino
médio, até que eu mando muito bem em matemática.
Vi Sterling arquivando essas frases para refletir mais tarde, e fiz o
mesmo.
O agente Briggs assumiu o interrogatório.
— Você estava na festa de Ano-Novo no terraço do Apex?
— Estava — disse Beau. — Pensei em dar uma olhada no jeito como a
outra metade das pessoas vive.
— Você conhecia Camille Holt? — perguntou a agente Sterling.
— Conhecia. Era uma garota legal — respondeu Beau.
— Mentira — cantarolou Lia.
— Bom — consertou Beau, como se tivesse escutado Lia —, Camille
era legal comigo. Éramos os excluídos naquela panelinha. Ela era uma
garota. Eu lavo pratos — disse, abrindo um sorrisinho torto. — Uma garota
como ela normalmente não daria nem dois segundos pra um cara como eu.
Mas quando eu entrei no torneio, ela se esforçou pra fazer com que eu me
sentisse bem-vindo.
— Ela estava tentando te entender.
Entendi o motivo da declaração de Sterling: era uma tentativa de ver
como Beau lidava com rejeição. Diga que Camille só foi legal com ele para
manipulá-lo e veja o que acontece.
Beau deu de ombros.
— Claro que estava.
— Bola fora — disse Michael, baixinho. Ou melhor dizendo: as
palavras de Sterling não conseguiram reação do alvo. Nenhuma.
— Camille era competitiva — disse Beau. — Eu respeitava isso. Além
do mais, logo no início ela se deu conta de que não era comigo que ela
precisava se preocupar.
A agente Sterling inclinou a cabeça.
— E com quem Camille estava preocupada?
Beau e Tory responderam à pergunta ao mesmo tempo:
— Thomas Wesley.
Capítulo 21
Enquanto Briggs e Sterling iam atrás de Thomas Wesley, nós ficamos por
nossa conta. Michael tirou o fone e o jogou no tapete com o mesmo
cuidado de quem joga um guardanapo amassado.
— Me chamem quando o show recomeçar — disse ele, pegando a
garrafinha de volta e indo para o quarto. Lia me lançou um olhar como
quem diz Falei que estávamos com problemas da cabeça aos pés, não falei?
Sim, pensei enquanto via Michael se afastando. Você falou.
— Vou dar uma olhada em Sloane — falei. Michael não fazia questão
da minha preocupação. Sloane pelo menos talvez ficasse feliz com a
companhia.
Quando cheguei ao nosso quarto, fui recebida pelo som de música
eletrônica animada tocando. Abri a porta, meio que esperando ver Sloane
de óculos de proteção e prestes a explodir alguma coisa. Isso me ajuda a
pensar, ela explicou uma vez, como se explosivos fossem uma forma
alternativa de meditação.
Mas, por sorte, na ausência do laboratório no porão, Sloane escolhera
um caminho diferente… e menos explosivo. Estava deitada de cabeça para
baixo na cama, a parte superior do corpo pendurada na ponta. Diagramas,
gráficos e mapas desenhados à mão formavam três camadas que cobriam o
chão ao redor dela.
— Treze horas. — Sloane gritou as palavras num tom mais alto que a
música, ainda de cabeça para baixo. Fui abaixar o volume e ela continuou,
dessa vez a voz mais suave, mais vulnerável. — Se nosso está
matando uma pessoa por dia, temos no máximo treze horas até ele matar
novamente.
Briggs pedira a Sloane que descobrisse onde o atacaria em
seguida. Ela levou o pedido a sério. Você quer ser necessária. Quer ser útil.
Quer ter importância, mesmo que só um pouco.
Andei na ponta dos pés em volta dos papéis e deitei na cama ao lado
dela. Ali, de cabeça para baixo, uma ao lado da outra, nos olhamos.
— Você vai conseguir — falei para ela. — E mesmo se não der certo,
ainda assim vamos te amar.
Ficamos um instante em silêncio.
— Ela estava de vestido — sussurrou Sloane um pouco depois. — A
garotinha. — Ela balançou a cabeça de leve, depois pegou uma caneta e
começou a marcar distâncias em um dos mapas, tão tranquilamente como
se não estivesse vendo tudo invertido.
Senti um aperto no peito. O jeito como Sloane segurava a caneta me
dava a entender que nem mergulhar em um projeto como aquele era
suficiente para fazê-la parar de pensar no pai dedicado e na filhinha dele.
— Estava com um vestido branco. — Sloane prosseguiu, em um tom
de voz bem baixinho. — Estava limpo. Você reparou?
— Não — falei, gentil.
— Crianças mancham roupas brancas até uma hora depois de vesti-las
em pelo menos 74 por cento das vezes — falou Sloane. — Mas não ela.
Ela não o estragou.
O jeito como Sloane pronunciou a palavra estragou me deu a impressão
de que ela não estava falando apenas de crianças manchando roupas.
Estava falando de si mesma. E as roupas eram só a pontinha do iceberg.
— Sloane…
— Ele foi com ela ao bar pra pegar uma cereja. — Ela parou de mover
a mão e se virou para me olhar novamente. — Ele levou cereja pra mim.
Só uma vez.
Sloane poderia ter me dito a quantidade de cerejas, o dia e a hora
exata, quantas horas tinham se passado desde então… eu conseguia ver
todas essas informações se repetindo sem parar na cabeça dela.
— Ajuda se eu sentir ódio dele por você? — perguntei. Dele. Do pai
dela.
— Deveria? — perguntou Sloane, franzindo a testa e se sentando. —
Eu não sinto ódio. Acho que talvez, um dia, quando eu estiver mais velha,
pode ser que ele não me odeie.
Quando estiver mais velha… e for uma pessoa melhor e normal e boa,
completei inconscientemente. Uma vez Sloane me contou que dizia e fazia
a coisa errada em 84 por cento do tempo. O fato de que seu pai biológico
desempenhou um papel lhe ensinando isso, o fato de Sloane ainda ter
esperanças de que um dia ele pudesse desenvolver o menor sinal de
afeição por ela se pelo menos fizesse as coisas direito, doeu de verdade.
Me sentei e passei os braços ao redor dela. Sloane se permitiu ser
abraçada e ficou uns segundos com a cabeça apoiada no meu ombro.
— Não conta pra ninguém — disse ela. — Sobre as cerejas.
— Não vou contar.
Ela esperou mais um pouco e se afastou de mim.
— Uma vez Al Capone doou duas cerejeiras pra um hospital como
agradecimento por ter lhe curado da sífilis. — Depois dessas palavras
inesquecíveis, Sloane se deitou de cabeça para baixo na beira da cama, os
olhos fixos nos mapas e desenhos que tinha reunido. — Se você não sair
— avisou ela —, existe uma probabilidade alta de que eu comece a te
contar algumas estatísticas sobre sífilis.
Rolei para fora da cama.
— Anotado.
De volta à sala, Michael achou que valia a pena retornar. Por motivos
que eu não fazia a menor ideia, ele e Lia estavam numa disputa de queda
de braço.
— O que… — comecei a dizer, mas, antes que pudesse terminar,
Dean explicou.
— O show recomeçou.
Lia se aproveitou da distração de Michael e bateu com a mão dele na
mesa.
— Ganhei!
Antes que Michael pudesse reclamar, ela voltou para onde estava no
sofá. Me sentei ao lado de Dean. Michael ficou nos observando por um ou
dois segundos, depois pegou o fone do chão e foi para trás de Lia.
Na tela, vi a mão de alguém (provavelmente de Briggs) bater à porta de
um quarto de hotel. Coloquei o fone a tempo de ouvir o assistente de
Thomas Wesley atender.
— Pois não?
— Agentes Sterling e Briggs — ouvi Sterling dizer, fora da tela. — .
Gostaríamos de dar uma palavrinha com o sr. Wesley.
— Infelizmente o sr. Wesley não está disponível no momento — disse
o assistente.
A expressão no rosto de Lia deixou claro que aquilo era mentira.
— Vou ter o prazer em passar o recado ou colocar vocês em contato
com o advogado do sr. Wesley.
— Se pudermos tomar só alguns minutos do tempo do sr. Wesley… —
tentou Briggs mais uma vez.
— Infelizmente, é impossível. — O assistente deu um sorriso e fuzilou
Briggs com o olhar.
— Tudo bem, James — disse uma voz e, um segundo depois, Thomas
Wesley surgiu na tela. Estava com o cabelo grisalho levemente bagunçado.
Usava um roupão de seda azul-petróleo e basicamente só isso. — Agente
Sterling. Agente Briggs. — Wesley cumprimentou cada um com um aceno
de cabeça, como um monarca graciosamente se dirigindo aos súditos. —
Como posso ajudar?
— Temos só algumas perguntas — disse a agente Sterling — em
relação ao seu relacionamento com Camille Holt.
— Claro.
— Sr. Wesley — disse o assistente, James, a voz carregada de desgosto.
— O senhor não tem nenhuma obrigação de…
— Responder a nada que eu não queira responder — concluiu Wesley.
— Eu sei. Acontece que eu quero responder às perguntas dos agentes. E
— acrescentou ele, voltando a atenção para a tela — eu sou um homem
acostumado a fazer o que quer.
Nesse momento, tive a estranha sensação de que ele estava dirigindo
as palavras menos para o agente Briggs e mais para a câmera.
— Você mudou de hotel — disse o agente, arrastando o olhar do
homem para cima. — Por quê?
Era uma pergunta inocente cujo único propósito era impedir que o
homem olhasse muito atentamente para a caneta no bolso do agente
Briggs.
— O outro ficou com o clima pesado depois daquela coisa toda de
homicídio — respondeu Wesley. — Ele falava num tom que parecia
casual, mas…
Michael preencheu as lacunas.
— Ele está mais incomodado do que quer demonstrar.
— Você sabe que houve… — respondeu a agente Sterling para Wesley.
— Outro homicídio aqui no Desert Rose? — disse Wesley sem nem
hesitar, depois deu de ombros. — Quatro corpos em quatro dias em quatro
cassinos diferentes. Entre ficar em um quinto cassino no dia cinco e ficar
em um dos quatro, achei que teria mais chances de me dar bem se
continuasse aqui.
Você está sempre jogando com as possibilidades, pensei, os olhos fixos em
Wesley. E com base no seu histórico no ramo, você costuma vencer.
— Podemos entrar? — Foi Sterling quem perguntou. Ela também
devia estar jogando com as possibilidades, especificamente com o fato de
ser menos provável que Wesley, um mulherengo assumido, recusasse o
pedido de uma agente mulher.
— Na verdade, hoje de manhã o sr. Wesley tem vários compromissos
marcados — disse o assistente.
— James, vai arrumar o armário de bebidas — ordenou Wesley
preguiçosamente. — Em ordem alfabética desta vez.
Após olhar de cara feia para os agentes pela última vez, o assistente de
Wesley fez o que o chefe mandou. Wesley abriu mais a porta da suíte e
gesticulou.
— Por favor — disse ele. — Entrem. Eu tenho uma vista excelente da
piscina.
Em três segundos, Briggs e Sterling estavam na suíte. Ouvi a porta se
fechar atrás deles. E então a imagem ficou preta.
Capítulo 22
O homem que Michael atacou retribuiu com outro soco. Michael caiu. Mas
não ficou no chão.
Dei um pulo, mas num piscar de olhos Lia entrou na minha frente.
— Dean cuida disso.
Tentei desviar dela.
— Pra trás, Cassie — disse Lia, a voz baixa, o rosto a menos de dois
centímetros do meu. — A última coisa de que eles precisam é você no
meio da briga. — Ela passou o braço pelo meu. Para quem visse de fora,
parecíamos melhores amigas, mas ela me segurava apertado como se seu
braço fosse feito de ferro. — Além do mais — acrescentou ela, a expressão
bem séria —, alguém tem que fazer o controle de danos.
Só então percebi que o áudio tinha sido novamente interrompido. A
sacada onde Sterling, Briggs e Thomas Wesley estavam momentos antes
estava vazia.
— Dois mais um dá três. Três mais dois dá cinco. Cinco mais três dá
oito…
Sloane continuou desenhando quadrados e, enquanto desenhava,
seguia no sentido anti-horário, até ficar sem espaço.
A faca é a próxima.
Água. Fogo. Atravessar o idoso com uma flecha. Estrangular Camille.
Agora vem a faca. É assim que se faz. É assim que tem que ser.
Você se senta no chão, de costas para a parede, a lâmina equilibrada com
cuidado no joelho.
Água.
Fogo.
Perfuração.
Estrangulamento.
Um, dois, três, quatro…
A faca vai ser o item número cinco. Você respira fundo, sentindo o
número das armas: o peso exato da lâmina, a velocidade com que você vai
cortar a garganta do seu próximo alvo.
Você expira.
Água. Fogo. Perfuração. Estrangulamento. A faca é a próxima. E aí… e
aí…
Você sabe como tudo isso termina. Você é como um bardo contando essa
história. É como um alquimista destruindo o padrão.
Mas agora tudo que importa é a lâmina e sua respiração regular e o
conhecimento de que tudo pelo que você tanto batalhou vai acontecer.
Começando pelo número cinco.
Capítulo 25
O FBI ficou vigiando o Grande Salão de Festas. Para aqueles de nós que não
estavam autorizados a participar de tocaias, o dia logo virou um jogo de
espera. A tarde foi lentamente tornando-se noite. Quanto mais escuro
ficava, mais fortes as luzes do lado de fora da nossa janela pintada de
vermelho pareciam ficar — e mais acelerado meu coração batia.
Primeiro de janeiro. Dois de janeiro. Três de janeiro. Quatro de janeiro.
Eu não conseguia parar de pensar que estávamos no dia cinco. Quatro
corpos em quatro dias. Agora vem o número cinco. É assim que você pensa
nelas, né? Não como pessoas. Como números. Coisas a serem quantificadas.
Uma parte da sua equação.
Minha mente foi até a foto que eu tinha visto no arquivo da minha
mãe, de um esqueleto cuidadosamente embrulhado num xale azul-royal.
Dean percebeu uma ponta de remorso no jeito como o corpo tinha sido
enterrado. Eu não conseguia parar de me lembrar do contraste.
Você não sente remorso. Me obriguei a focar no assassino de Las Vegas.
Com isso, sim, eu conseguia lidar. Disso eu dava conta. Por que sentiria?
Tem bilhões de pessoas no mundo, e você só matou uma porcentagem bem
pequena delas. Uma, duas, três, quatro…
— Pronto, chega. — Lia saiu do quarto, deu uma olhada na gente e foi
até a cozinha. Ouvi-a abrir o freezer e segundos depois ela já estava de
volta. Jogou uma coisa para Michael. — Pano de prato congelado — disse
ela para ele. — Coloca no olho e para de ficar emburrado, porque todo
mundo sabe que isso tem mais a cara do Dean.
Lia nem esperou para ver se Michael seguiria as instruções, foi logo se
virando para o alvo seguinte.
— Dean — disse ela, a voz oscilando um pouco. — Eu estou grávida.
A pálpebra de Dean tremeu.
— Não está, não.
— Quem pode garantir? — rebateu Lia. — A questão é que ficar aqui
esperando o telefone tocar pensando nos piores cenários possíveis não está
ajudando ninguém.
— E o que você sugere? — perguntei.
Lia apertou um botão e uma cortina blecaute começou a cobrir
lentamente as janelas… e tudo que estava escrito. Sloane soltou um
gritinho indignado, mas Lia cortou qualquer reclamação.
— Eu sugiro — disse Lia — passarmos as próximas três horas e 27
minutos fazendo nossas melhores imitações de adolescentes de verdade. —
Ela se sentou entre mim e Dean no sofá. — Quem está a fim de brincar de
Duas Verdades e uma Mentira?
O pai de Sloane esperou a porta fechar para voltar a atenção para a filha…
e para mim. Estava bem óbvio que eu não era vista como ameaça. Ou
talvez ele só tivesse percebido que Judd não deixaria Sloane sozinha e eu
era dos males, o menor.
O fato de ele ter expulsado Lia fez com que eu ficasse me perguntando
que mentiras planejava contar.
— Você está com uma cara boa, Sloane. — Shaw se sentou atrás da
mesa.
— Estou doze por cento mais alta do que na última vez que você foi
me ver.
Shaw franziu a testa.
— Se eu soubesse que você estaria em Las Vegas, eu teria feito
arranjos alternativos para o seu… grupinho.
Arranjos alternativos, ou seja, mais longe dele e de sua família.
Tomei a frente para que Sloane não precisasse responder:
— Você sabe o que nosso grupo faz. Como?
— Tenho amigos no . Fui eu quem sugeri Sloane para o
programinha do seu agente Briggs.
Sloane piscou várias vezes, como se ele tivesse jogado um balde de
água na cara dela. O pai de Michael o tinha trocado com o em troca de
imunidade envolvendo crimes de colarinho branco. O de Sloane, pelo
visto, só a quis fora da cidade e longe do filho dele.
— Você precisa ficar longe da minha família. — Shaw falava em um
tom de voz enganosamente gentil quando desviou o olhar novamente para
Sloane. Falava como Aaron, a voz calma e tranquilizadora, mas não dava
para se deixar enganar pelas palavras. — Preciso pensar na mãe de Aaron.
— E na garotinha. — As palavras escaparam de Sloane.
— É — disse Shaw. — Temos que pensar na Cara. Ela é só uma
criança. Nada disso é culpa dela, né? — perguntou ele, o tom ainda tão
gentil que tive vontade de dar um soco nele com a mesma força daquele
que Michael deu no cara da piscina.
Sloane também não tem culpa de nada.
— Me diz que entende, Sloane.
Sloane assentiu.
— Eu preciso te ouvir dizer.
— Eu entendo — Sloane sussurrou.
Shaw se levantou.
— Você vai ficar longe de Aaron — reiterou ele. — Seria uma ótima
ideia você encorajar seus amigos do a fazerem o mesmo.
— Isso é uma investigação de assassinatos em série — falei, rompendo
meu silêncio. — Não cabe a você decidir com quem os investigadores
falam ou deixam de falar.
Shaw desviou os olhos, do mesmo azul dos de Aaron, do mesmo azul
dos de Sloane, para mim.
— Meu filho não sabe de nada que possa ser útil. O está perdendo
tempo com ele, e também está perdendo tempo com essa ideia ridícula de
que um assassino que conseguiu escapar da prisão se complicaria
cometendo o próximo assassinato no Grande Salão de Festas do Majesty,
aconteça o que acontecer.
— Não é uma ideia ridícula. — Sloane se levantou, a voz tremendo. —
Você só não consegue ver. Não entende. Mas o fato de você não entender
uma coisa não quer dizer que pode ignorá-la. Você não pode fingir que o
padrão não existe e torcer pra que suma.
Do mesmo jeito que ele finge que você não existe, minha mente traduziu.
Do mesmo jeito que ele te ignora.
— Chega, Sloane.
— Não é uma ideia ridícula. — Sloane engoliu em seco e se virou para
a porta. — Você vai ver.
Você
Fomos nós seis. Judd parecia acreditar que aquele era dos males, o menor,
já que o pior cenário possível seria se Sloane acabasse dando um jeito de ir
sozinha.
Assim que encontramos nossos lugares, dei uma boa examinada no
auditório. Meu olhar pousou em Aaron Shaw um momento antes de ele
perceber a presença de Sloane. Num piscar de olhos sua postura mudou,
indo de perfeitamente polida, sem dúvida nenhuma o herdeiro de seu pai,
àquele cara que eu tinha visto de relance na segurança. A pessoa que se
importa com Sloane.
Ele veio abrindo caminho pela multidão até chegar a nós.
— Você veio — disse para Sloane, depois abriu um sorriso e hesitou.
— Me desculpa. Por mais cedo.
Durante aquele breve momento de hesitação ele lembrava Sloane.
Ao meu lado, nossa especialista em números pigarreou.
— Uma quantidade substancial de pedidos de desculpa é feita por
pessoas que não têm pelo que se desculpar. — Esse era o jeito de Sloane
de dizer a ele que tudo bem, que não o culpava por ter baixado a guarda
para o pai ou por tê-la deixado com ele.
Antes que Aaron pudesse responder, uma garota que devia ter a mesma
idade que ele apareceu ao seu lado. Usava calça jeans escura e uma blusa
larga estilosa. Tudo nela, acessórios, corte de cabelo, postura, roupas,
exalava dinheiro.
Dinheiro antigo, pensei. Discreto.
Após um instante de indecisão, Aaron a cumprimentou com um beijo
na bochecha.
Uma amiga?, me perguntei. Ou algo mais? E, se sim, o que é Tory?
— Senhoras e senhores. — Uma voz grave soou nos alto-falantes do
auditório. — Bem-vindos a Imagine, de Tory Howard. Enquanto se
preparam para serem levados a um mundo onde o impossível se torna
possível e você acaba questionando as profundezas da mente e da
experiência humana, pedimos que coloquem os celulares no silencioso.
Fotografias com flash são proibidas durante o espetáculo. Se violar as
regras, podemos ser obrigados a fazer você… desaparecer.
Assim que ele disse a palavra desaparecer, um holofote iluminou o
centro do palco e uma leve névoa subiu do chão. Num segundo o holofote
estava vazio, no seguinte Tory estava lá, vestindo uma calça preta apertada
e um casaco de couro que ia até o chão. Ela esticou o braço para o lado e
de repente, do nada, estava segurando uma tocha acesa. A luz do holofote
diminuiu. Ela levou a chama à parte de baixo do casaco.
Na mesma hora me lembrei da segunda vítima. Em um piscar de olhos,
Tory vestia um casaco de fogo. Com uma presença de palco bem mais
magnética do que eu poderia imaginar, ela levou a tocha aos lábios, soprou
a chama e desapareceu.
— Boa noite — disse ela lá do fundo do salão. A plateia se virou para
olhar; nesse momento seu casaco estava queimando num tom de azul. —
E bem-vindos a… Imagine. — Ela esticou os braços para os lados e de
repente as duas fileiras dos fundos também pegavam fogo. Ouvi alguém
gritar e depois cair na risada.
Tory foi lentamente abrindo um sorriso sexy. As chamas aumentaram,
depois desapareceram e, por fim, ela veio andando pela fumaça.
— Vamos começar — disse ela. — Que tal?
Os olhos da garota rolaram para trás. Ela desmoronou. Tory avançou até a
garota e, enquanto isso, na fileira à nossa frente Aaron começou a abrir
caminho até chegar ao corredor.
A cortina desceu e um cochicho inquieto se espalhou pela plateia. As
pessoas ao nosso redor não faziam a menor ideia do que tinha acabado de
acontecer. Não faziam ideia do que aquilo significava.
Você.
Precisa.
De nove.
Minha ficha foi caindo aos poucos. Forcei o ar de volta aos pulmões.
— Nove. — Consegui ouvir a voz de Sloane mesmo em meio à
barulheira da plateia. — Tertium. Tertium. Tertium. Três vezes três…
— Por favor, permaneçam em seus lugares — ordenou uma voz grave
pelo alto-falante. — O show vai voltar a qualquer momento.
Judd percebeu o caos que aquilo ali poderia se transformar e apontou
com a cabeça para a saída mais próxima.
— E o Townsend? — disse Dean quando começamos a abrir caminho
pela plateia. — Ele ainda está no palco.
Judd nos deixou em segurança no corredor.
— Vou buscar Michael — disse ele para Dean. — Fique aqui e cuide
das meninas.
O que fez com que Lia arqueasse a sobrancelha de um jeito bem
expressivo.
— Espero que meu dote seja grande o suficiente pra atrair um homem
viril — disse para mim, debochada. — Sou tão indefesa sozinha.
Dean teve a sabedoria de não responder.
Quando Judd já havia se afastado, Lia baixou o tom de voz:
— Então, o que estamos pensando? Que a namoradinha de Aaron é
nossa assassina e teve agorinha mesmo um ataque psicótico ou que o
assassino a hipnotizou pra passar aquele recado?
Fiz que sim. Dois segundos depois, Dean concordou.
— Sim.
— Tertium mais uma vez — comentou Lia. — Vocês acham que nosso
cara considera isso o nome dele?
Tertium, pensei. Significa terceira vez.
A terceira vez. A terceira vez. A terceira vez.
Eu preciso de nove.
— Não é um nome — falei para Lia. — É uma promessa.
Me virei para olhar para Sloane, para saber qual era sua interpretação
dos números… mas ela não estava do meu lado. Me virei e olhei ao redor.
Nem sinal de Sloane.
Lia falou um palavrão e voltou correndo para o teatro. Um instante
depois, Dean e eu fomos atrás. Sloane tinha a peculiaridade de ser fácil de
encontrar, mas entre tanta gente, o melhor que eu podia fazer era seguir
Lia e pensar: Sloane veio aqui pra ver Aaron. E na última vez em que a vi,
ela estava falando sobre os números.
Isso significava que ou ela estava atrás de Aaron ou tinha ido direto até
a fonte dos números. A garota. De um jeito ou de outro, ela provavelmente
estava…
— Nos bastidores — gritei para Lia, com dificuldade de acompanhá-la
abrindo caminho até a frente do auditório. Dois seguranças estavam
posicionados dos dois lados do palco. Lia se inclinou para a frente e
sussurrou alguma coisa no ouvido de um deles. O cara ficou pálido e
chegou para o lado, liberando nossa passagem.
Eu realmente não queria saber o que Lia tinha dito para ele, mas
precisava admitir que suas habilidades definitivamente tinham utilidade.
Nos bastidores, vi Michael agachado perto da garota, que, naquele
momento, estava sentada. Judd estava atrás de Michael. Sloane não estava
com ele. Só restava uma alternativa possível.
— Encontrem Aaron — falei — e vamos encontrar Sloane.
— Seu filho da puta.
Me virei a tempo de ver Beau Donovan pressionando Aaron Shaw
contra a parede. Aaron era uns oito ou dez centímetros mais alto e cerca de
quinze quilos mais pesado do que Beau, mas o homem foi para cima dele
como se não tivesse a menor noção disso.
— Encontrei Aaron — disse Lia.
Aaron empurrou Beau, que escorregou para trás e voltou para cima de
Aaron. Mas, desta vez, uma loira pequena se colocou na frente do
herdeiro.
Sloane.
Dean deu um pulo. Ele odiava violência e evitava-a a todo custo,
porque nunca podia ter certeza de que não acordaria um dia gostando
demais. Mas se alguém encostasse um dedinho que fosse em Sloane…
Aaron entrou na frente de Sloane um segundo antes de Beau acabar se
chocando contra ela. Dean passou o braço na cintura de Sloane e a puxou
para trás, em um gesto protetor. Então Beau voltou a empurrar Aaron, que
perdeu a cabeça e se lançou com tudo para a frente. Os dois caíram. Em
questão de segundos, Aaron estava por cima, inquestionavelmente no
controle. Beau encarou o herdeiro com uma expressão que era puro ódio.
— Qual o seu problema? — perguntou o irmão de Sloane.
Em resposta, Beau retomou a disputa pelo domínio da situação, e
Aaron o segurou como um lobo seguraria um filhotinho.
— Meu problema? — disse Beau. — Meu problema é você. O que
você tem na cabeça para trazer aqui a riquinha da sua namorada, que
nunca trabalhou um dia na vida? Aqui para o show da minha irmã? —
Beau não deu nem tempo de Aaron responder. — Acha que pode tratar as
pessoas como se não fossem nada…
Beau investiu novamente, mas, desta vez, conseguiu ficar por cima por
tempo suficiente para dar um soco pesado na mandíbula de Aaron antes de
a segurança os separar. Os guardas tiraram Beau de cima de Aaron (com
um pouco mais de força do que o necessário) e desviaram o olhar para
Aaron, como se estivessem pedindo instruções.
— Allison não é minha namorada — disse Aaron, o tom de voz calmo.
— É só uma amiga da família, e fiquei tão surpreso de vê-la aqui quanto
você.
— Corta essa.
Aaron e Beau se viraram ao mesmo tempo para olhar para Tory.
Continuava com o figurino do show, mas já tinha voltado a ser ela mesma.
Sem dor de cabeça. Sem estresse.
Nada pode te machucar se você não deixar.
— Foi você quem a chamou para o palco — disse Aaron para Tory. —
Que merda você estava pensando, Tory? — Ele fez uma pausa. — O que
você fez com ela?
— Ela não fez nada! — Beau disse, se debatendo nas mãos do
segurança. — Você deve ter armado tudo, seu doente, filho da mãe…
— Chega! — gritou Tory, e Beau se calou. Tory desviou o olhar dele
para Aaron, sua expressão ficando mais rígida. — Quero vocês dois fora
daqui. Agora.
O agora pareceu ser dirigido aos seguranças.
— Senhor — um deles disse para Aaron, visivelmente incomodado
com o que estava dizendo. — Vou ter que pedir que saia.
Aaron não tirou os olhos de Tory.
— Tory, me deixa explicar.
— Você não precisa me explicar nada. — A voz de Tory estava
desprovida de emoção, mas lá embaixo dava para perceber a firmeza. —
Nosso relacionamento é estritamente profissional. — Ela olhou para a
plateia reunida ali, incluindo Sloane, Lia, Dean e eu, e seu tom de voz
ficou ainda mais áspero. — Sempre foi.
— Você a ouviu — disse Beau para Aaron, a expressão determinada.
— Não faça isso. — Tory se virou para Beau, a voz estalando como um
chicote. — Não te pedi pra fazer isso, Beau, e já estou de saco cheio de
ficar consertando as merdas que você faz. — Ela engoliu em seco, e tive a
sensação de que mandar Beau embora era mais difícil do que terminar as
coisas com Aaron. — Saia — disse ela, a voz mais baixa. — Agora.
Sem esperar resposta, Tory se virou para o palco e começou a gritar
instruções para seus assistentes:
— Chamem um médico pra srta. Lawrence. Depois chamem o chefe
de segurança pra informá-lo que temos um problema. Quero esse show
recomeçando em cinco minutos.
— Isso não vai ser possível. — O agente Briggs sabia como fazer uma
entrada triunfal; nesse caso, com o distintivo erguido alto para que todo
mundo visse. — Agente especial Briggs, — disse ele, a voz ecoando. —
Vou precisar fazer algumas perguntas a todos aqui.
Você
Liguei para Sterling, depois para Briggs. Nenhum dos dois atendeu. Devem
ter passado a noite em claro, pensei, falando com testemunhas, tentando
descobrir se alguém — se é que alguém realmente fez isso — hipnotizou a
“amiga” de Aaron para dar aquele recado.
— Vou falar com Dean — disse para Sloane. — Contar a ele o que
você acabou de me contar. — Observei os círculos escuros sob os olhos
dela. — Tenta dormir um pouco.
Sloane franziu a testa.
— Girafas só dormem quatro horas e meia por dia.
Como eu sabia bem identificar uma batalha perdida, deixei para lá.
Andei pela suíte na ponta dos pés até estar diante do quarto de Dean. A
porta estava entreaberta, então toquei na madeira.
— Dean? — chamei. Como ele não respondeu, dei uma batidinha. A
porta foi se abrindo, e vi Dean dormindo. Ele tinha empurrado a cama para
o outro lado do quarto e estava dormindo com as costas para a parede. O
cabelo loiro caía delicadamente nos olhos. O rosto estava sereno.
Parecia em paz.
Comecei a recuar, mas o chão rangeu e Dean se sentou abruptamente
na cama, sem enxergar nada e esticando a mão. Curvava os dedos como se
estivesse segurando um fantasma pelo pescoço.
— Sou eu — falei rapidamente. Como ele não podia me ver, acendi a
luz. — Sou eu, Dean. — Dei um passo na direção da cama. Sou só eu.
Dean virou a cabeça e começou a olhar para além de mim. Um
instante depois, estava de volta, focando os olhos no meus.
— Cassie. — Ele pronunciou meu nome como alguém fazendo uma
oração.
— Desculpa — falei, me aproximando. — Por te acordar.
— Não precisa pedir desculpa — disse Dean, a voz rouca.
Me sentei ao lado dele na cama. Suas mãos foram delicadamente até
as pontas do meu cabelo; então, por um momento, ele fechou os olhos e
ficou só sentindo o calor do meu corpo. Quando os abriu, sua expressão
estava mais calma, mais tranquila.
— Tem alguma coisa errada — disse Dean, daquele jeito observador de
sempre. Fiquei me perguntando se ele conseguia reparar na tensão nos
meus ombros. Me perguntei se ele era capaz de sentir isso com seu toque
suave como uma pena.
— Sloane descobriu uma coisa — respondi, deixando o toque dele me
tranquilizar ao mesmo tempo que o tranquilizava. — Ela derivou uma série
de 27 datas a partir da sequência de Fibonacci. Depois fez uma busca na
base de dados do atrás de assassinatos em série em que um ou mais
homicídios aconteceram no dia do Ano-Novo.
— Briggs e Sterling deram esse acesso a ela?
A expressão do meu rosto deve ter respondido a pergunta.
— Ela hackeou o . — Dean fez uma pausa. — Claro. Ela é a
Sloane.
— Ela encontrou um caso de uma década atrás que encaixa no padrão
— falei. — Nove vítimas mortas em datas Fibonacci.
— ? — perguntou Dean.
— O assassino usou uma faca. Atacou as vítimas por trás e cortou a
garganta delas. A primeira vítima era uma prostituta. Não tenho
informação sobre as outras.
— Nove corpos — repetiu Dean. — Em datas derivadas da sequência
Fibonacci.
Mudei de posição, ficando mais perto dele.
— Ontem à noite, o recado foi “Eu preciso de nove”. Preciso, Dean,
não “quero”, não “vou matar nove”. Preciso.
O número de vítimas importava, da mesma forma que os números nos
punhos importavam. Assim como as datas.
— O caso que Sloane encontrou ainda está em aberto — falei para ele.
— Nunca foi fechado. Sterling disse que assassinos em série não param de
matar do nada.
Dean ouviu a pergunta que eu ainda não tinha colocado em palavras.
Será que era o mesmo assassino?
— Onze anos é tempo demais pra um assassino ficar negando seus
instintos — disse Dean. Percebi a mudança em sua expressão antes que a
frase seguinte a confirmasse. — Cada vez que eu mato, preciso de mais.
Passar tanto tempo sem…
— É possível? — perguntei a Dean. — Um pode matar nove
pessoas e depois só… esperar?
— Nosso acabou de matar quatro pessoas em quatro dias —
respondeu Dean. — E agora está esperando. Numa escala menor, sim, mas
o conceito é o mesmo.
Os números importam. Os números informavam ao onde matar,
quando matar, quanto tempo esperar. Mas fazer com que uma parte da
sequência ficasse à mostra no pulso de cada vítima?
Desde o começo interpretamos isso como um recado. E se o recado
fosse Eu já fiz isso antes?
De repente senti um nó na garganta. Tertium, me lembrei.
— Dean — eu disse, sentindo os lábios dormentes. — E se a palavra
na flecha não fosse só uma referência a Eugene Lockhart ser a terceira
vítima do desta vez?
Tertium. Tertium. Tertium. Não conseguia parar de ouvir a garota
dizendo isso. Visualizava o jeito como ela olhava para a plateia.
— Terceira vez. — Dean deslizou para a beira da cama e ficou sentado
lá em silêncio por um instante, e percebi que ele estava se colocando no
lugar do assassino, percorrendo o raciocínio dele sem dizer em voz alta. Até
que finalmente se levantou. — Temos que ligar para Briggs.
Capítulo 36
Briggs e Sterling pressionaram, mas Beau não disse mais nada. Eles
acabaram o deixando lá e ligaram para nós.
— Opiniões? — perguntou Briggs no viva-voz.
— Não é ele. — A voz de Sloane estava praticamente vibrando de
intensidade. — Vocês têm que ver isso. Os números? Errados. A
localização? Errada. O momento? — Sloane virou de costas para o
telefone. — Tudo errado.
O silêncio tomou conta. Dean preencheu o vazio.
— Ele tem potencial pra ser violento. — O jeito como Dean elaborou
essa frase me fez questionar se ele se via em Beau. — Está na parte mais
baixa de uma hierarquia que favorece aqueles que têm dinheiro e poder, e
ele não tem nenhuma das duas coisas. Se surgisse a oportunidade, ele
adoraria fazer um jogo em que pudesse sair por cima. — Dean se apoiou
na bancada, a cabeça abaixada. — Ele está com raiva, e imagino que tenha
passado muito tempo na vida sendo jogado de lado, tratado como se fosse
lixo. Se o chefe de segurança do Majesty morrer, Beau não vai se sentir mal
por isso. Considerando a alternativa, é mais provável que ele acabasse
pegando o tijolo de novo.
— Mas… — Sloane começou.
— Mas — disse Dean — Sloane tem razão. Os números nos punhos
das vítimas não fazem parte só do desse . Fazem parte da
assinatura. Ele precisa marcar as vítimas. E não engoli a ideia de estarmos
lidando com um que, depois de quatro mortes meticulosamente
planejadas, é pego escrevendo números no pulso da quinta vítima antes
mesmo de o homem estar morto.
— Os números errados — enfatizou Sloane.
Sterling pigarreou.
— Estou inclinada a concordar com Sloane e Dean. O do nosso
mudou a cada morte. Assim como o método com que as vítimas
foram marcadas. Até agora.
Eugene Lockhart também estava com os números escritos no pulso com
caneta permanente, percebi.
— Digamos que você tivesse matado alguém. — Na mesma hora Lia
atraiu a atenção de todos. — Ou, no caso de Beau, digamos que você
achasse que a pessoa em quem você tinha batido com um tijolo estava
prestes a morrer. — Ela se apoiou na base das mãos e me lembrei do Duas
Verdades e uma Mentira.
Quando eu tinha nove anos, matei um homem.
— Talvez você tivesse uma escolha. Talvez não. E depois — continuou
Lia, a voz tranquila e suave —, digamos que você não queria ser capturado.
O que você faz?
Segundos se passaram em silêncio. Foi Dean quem respondeu. Ele
conhecia Lia melhor do que todos nós.
— Você mente.
— Você mente — repetiu Lia. — Encobre. E se por acaso ficasse
sabendo que tem um assassino em série por aí… — Lia deu de ombros.
— Talvez Beau tenha ouvido falar dos números — falei, continuando
de onde Lia tinha parado. — Não que tenha escutado exatamente qual era
o padrão, só que havia números nos pulsos de todas as vítimas.
Sterling continuou.
— Ele pega o tijolo. Bate na vítima. Entra em pânico e, para encobrir,
tenta fazer parecer que é trabalho do nosso .
Raiva. Medo. Satisfação. Tudo que Michael tinha dito que Beau estava
sentindo encaixava naquela interpretação de como as coisas aconteceram.
Beau não era nosso . Ele só o estava imitando.
— Isso significa que o padrão não foi rompido — sussurrou Sloane. —
O padrão não está errado.
Você não está quebrada, traduzi. Não está errada.
— O Grande Salão. Dia 12 de janeiro. — Sloane esticou primeiro um
dedo, depois outro, como se estivesse contando. — O padrão informa que
o próximo assassinato vai acontecer no Grande Salão de Festas no dia 12
de janeiro.
Três dias. Se Sloane estivesse certa sobre as datas de Fibonacci, esse
não era nosso único problema.
— Falando em padrão — falei para Sterling e Briggs, o medo voltando
a tomar conta de mim —, tem outra coisa que vocês precisam saber.
Capítulo 38
— Sloane hackeou os arquivos do . Com base no que ela descobriu, você
acha que nosso pode ter feito isso antes. — A agente Sterling
deixou o resumo do que eu tinha acabado de dizer pairando no ar por
vários segundos antes de acrescentar: — Duas vezes.
— É só uma teoria — respondi antes que algum dos agentes
entendesse que aquela era uma boa hora para dar uma bronca em Sloane
sobre os benefícios de não hackear o . — Mas o caso que Sloane
descobriu não foi descoberto e encaixa no padrão.
— Com respeito ao local também? — perguntou Briggs. Eu
praticamente o ouvia massageando as têmporas. — O assassino trabalhou
em espiral?
— Espiral de Fibonacci — corrigiu Sloane. — E não, ele não trabalhou
assim.
— Números nos punhos? — perguntou Sterling.
— Não — disse Sloane novamente.
Sem número nos punhos. Sem espiral. Se estávamos lidando com o
mesmo assassino, então esse assassino tinha mudado. Não era nada
inédito, mas normalmente víamos mudanças no modus operandi de um
, nos elementos necessários de um crime. Escrever números nos
punhos das vítimas não era necessário. Matá-las em espiral era uma
questão de escolha. O de um assassino podia até mudar, mas
normalmente a assinatura se mantinha a mesma.
— Os números sempre estiveram lá — disse Sloane, o tom de voz
insistente. — Mesmo que ele não escrevesse no pulso de ninguém nem
matasse nos locais certos, eles estavam lá.
Nas datas, concluí em silêncio. Talvez a assinatura, a necessidade
psicológica profundamente arraigada manifestada no comportamento do
, era que as mortes precisavam ser motivadas pelos números. Vendo
por esse lado, os elementos adicionais dos crimes de Las Vegas não
configuravam nenhum afastamento da assinatura.
Configuravam, na verdade, uma intensificação. Mais números, mais
regras.
— Estou mais velho agora — disse Dean, testando essa possibilidade.
— Mais sábio, melhor. Eu esperei tanto tempo, planejei tanto… — A voz
dele ficava mais grave quando ele perfilava. — No passado, fui amador.
Agora sou um artista. Invencível. Implacável.
— E desta vez — falei lentamente — você quer levar crédito.
Foi por isso que você escreveu os números no pulso das vítimas, pensei.
Você queria que decifrássemos o código. Queria que víssemos a extensão do
que você tinha feito.
— Nós já tivemos dificuldade pra convencer a polícia local de que
Beau Donovan não é nosso assassino em série, isso sem mencionar um
caso de uma década atrás que, à primeira vista, parece não ter nenhuma
relação. — A voz de Briggs interrompeu meu raciocínio. — As autoridades
desta cidade querem que esse caso seja resolvido. Agora. Se forçarmos a
teoria de que esse último ataque não foi feito pelo nosso , podemos
ver a cooperação que tivemos até esse momento sumir num piscar de
olhos.
— O que significa — disse Lia — que vocês podem perder a suíte de
cortesia no Desert Rose. Fiquei sabendo que tem uns estabelecimentos
ótimos fora da Strip.
— O que significa — rebateu o agente Briggs — que, se quisermos
uma lista de hóspedes do hotel para comparar as testemunhas e os
suspeitos no caso de Nova York, essas mesmas autoridades provavelmente
se recusarão a entregar qualquer coisa sem mandado.
— Além do mais — acrescentou a agente Sterling, a voz séria —, é
quase certo que Grayson Shaw vai insistir em abrir o Grande Salão de
Festas do Majesty.
Meus dedos se curvaram, as unhas arranhando de leve a superfície das
palmas. Três dias. Era o tempo que tínhamos até o próximo assassinato. Era
o tempo que tínhamos para convencer o pai de Sloane que reabrir o salão
era um erro.
— O que vocês querem que a gente faça? — Dean perguntou,
completamente determinado.
— Por enquanto — disse o agente Briggs — só precisamos que fiquem
alertas. Fiquem no quarto e longe de confusão. Nós vamos resolver.
Tudo pode ser contado. Tudo, menos o verdadeiro infinito, chega ao fim.
Sem a faca na mão, tudo que você pode fazer é desenhar de leve o padrão
na superfície da sua camisa. Pode sentir os cortes embaixo, sentir a promessa
marcada na própria pele.
Ao redor. Para cima e para baixo. Para a esquerda e para a direita.
Sete mais dois dá nove.
Nove é o número. E Nove é o que você sempre se destinou a ser.
Capítulo 39
Dean abriu a porta. Aaron entrou, olhou para a faca e deixou a porta se
fechar sozinha.
— Fico feliz em saber que tem alguém cuidando de Sloane — disse
Aaron para Dean. — Mas também me sinto na obrigação de dizer que uma
faca dessas não adiantaria muito se a pessoa do outro lado da porta tivesse
uma arma.
Nem tudo que reluz é ouro, pensei, entendendo o aviso nas palavras de
Aaron. Você está acostumado com as pessoas ao seu redor estarem armadas. O
mundo em que você cresceu é um lugar perigoso e cintilante.
Dean encarou o irmão de Sloane.
— Talvez você se surpreendesse.
Aaron deve ter percebido alguma coisa que o deixou todo arrepiado.
— Não estou armado — garantiu para Dean — e não vim machucar
ninguém. Pode confiar em mim.
— Dean não é bem um cara que costuma confiar — disse Michael
com leveza. — Deve ser porque foi criado por um assassino em série
psicopata que adorava facas. — Ele abriu um sorriso gelado para Aaron. —
Entra.
Aaron desviou o olhar para Lia.
— É você que consegue detectar mentiras? — perguntou.
— Quem? — disse Lia. — Eu?
— Não estou armado — repetiu Aaron, dessa vez olhando nos olhos
dela. — E não vim machucar ninguém.
Sem mais nenhuma palavra, ele se sentou. Dean se sentou à sua
frente. Eu fiquei de pé.
— Como vocês já devem estar sabendo — declarou Aaron —, Beau
Donovan e eu tivemos um desentendimento ontem à noite.
A confusão nos bastidores do show de Tory parecia ter acontecido uma
vida antes… e considerando o que descobrimos depois, havia se tornado
quase dolorosamente insignificante.
— Você levou outra garota para o show de Tory — Sloane disse, sem
olhar para Aaron. Em vez disso, ficou observando a janela atrás dele, o
mapa, seus cálculos e a espiral de Fibonacci. — Beau vê Tory como uma
irmã. Desconfio que uma porcentagem nada trivial de pessoas como ele
reagiria de forma similar se estivesse sob as mesmas circunstâncias. —
Depois, como se ainda não tivesse ficado claro, Sloane explicou melhor: —
Segundo meus cálculos, havia uma chance de 97,6 por cento de você ter
merecido um soco no nariz.
Aaron deu um sorrisinho.
— Ouvi dizer que você leva jeito com números.
Não detectei nenhum toque de crítica no tom de Aaron. Pela expressão
de Michael, percebi que ele também não tinha detectado. Logo me
lembrei de Sloane dizendo que queria que Aaron gostasse dela.
Fiquei observando Aaron. Você gosta dela. Quer conhecê-la.
— Que tal focarmos nessa coisa misteriosa que você precisa que a
gente entregue ao ? — Lia se sentou no braço da poltrona de Dean. Ela
não gostava de estranhos e não confiava em estranhos… principalmente se
estivessem com Sloane.
Aaron enfiou a mão no bolso da jaqueta e pegou uma caixa
transparente. Dentro dela havia um .
— Imagens de câmera de segurança — disse ele. — De uma casa de
penhores do outro lado da rua de onde Victor McKinney foi atacado.
O silêncio de Lia pareceu confirmar que o realmente era o que
Aaron dizia ser.
— Victor era nosso chefe de segurança — prosseguiu Aaron. — Da
perspectiva dele e do meu pai, Beau Donovan oferecia um risco à
segurança.
Beau tinha atacado Aaron. Não chegou a machucá-lo de verdade, mas
para um homem como Grayson Shaw, eu duvidava que isso importasse. Se
para o pai de Sloane sua filha não passava de um bem inconveniente, seu
filho legítimo seria visto não só como uma propriedade, mas como uma
extensão de si mesmo.
Eu já tinha visto essa dinâmica antes… com o pai de Dean.
— Se derem uma olhada nas filmagens, vão reparar que foi Victor
quem seguiu Beau, e não o contrário. Foi Victor quem jogou Beau contra a
parede. E foi Victor — Aaron se obrigou a concluir — quem sacou uma
arma e apontou para a lateral da cabeça de Beau.
Dean entendeu tudo num piscar de olhos.
— Seu chefe de segurança não tinha intenção de puxar o gatilho.
Aaron se inclinou para a frente.
— Mas Beau não sabia disso.
O pai de Sloane adorava dar ordens e ultimatos. Bastava pouco para ele
partir para ameaças. Beau não era o tipo de pessoa que aceitaria
tranquilamente ser ameaçado. Tinha cabeça quente. Assim que viu a arma,
deve ter reagido.
— Ele pegou um tijolo jogado no chão — disse Aaron.
Trauma contuso.
— Legítima defesa — falei em voz alta.
Se Victor McKinney tinha sacado uma arma contra Beau, era um caso
claro de legítima defesa. E se Aaron reparou na conexão entre a prisão de
Beau e o que o chefe de segurança do Majesty fora enviado para fazer,
Grayson Shaw também deve ter reparado.
— Como seu pai deixou Beau levar a culpa pelos primeiros quatro
homicídios? — perguntei. — Ele não liga de haver um assassino em série
ainda à solta por aí?
— Meu palpite? — respondeu Aaron. — Meu pai acha que ele e o
espantaram o assassino original. Ele não é de ficar reparando em dentes de
cavalo dado. Do jeito que as coisas estão, Beau Donovan nunca mais vai
tocar um dedo em mim, e ninguém está questionando por que o chefe de
segurança do Majesty foi atrás de Beau.
— Por que trazer isso pra nós? — perguntou Lia. — O papaizinho
querido não vai ficar muito feliz com você.
— Ele raramente fica. — Aaron se levantou e fez um gesto como se
aquilo não importasse… o que, claro, me deu a entender que importava
mais do que ele conseguiria admitir.
Você é o menino de ouro. O primogênito. O herdeiro.
Fiquei um momento olhando para ele enquanto montava as peças
daquele quebra-cabeça. Você não vai contra seu pai se não tiver um motivo.
— Tory — falei. — Você fez isso por Tory.
Aaron não respondeu, mas Michael traduziu sua expressão.
É
— É — disse ele, parecendo abalado pela intensidade da emoção que
viu no rosto de Aaron. — Foi por isso.
Enquanto estava com os olhos fixos em Aaron, li nas entrelinhas das
palavras de Michael. Você a ama. Quando minha ficha caiu, senti o
estômago embrulhar.
O celular de Aaron tocou. Ele baixou o olhar, salvo de precisar
confirmar que correra o risco de sofrer as consequências da ira do pai para
salvar Beau porque Beau era irmão de Tory.
— Queremos saber o que a mensagem diz? — perguntou Sloane.
Aaron ergueu o olhar e encarou a irmã.
— Depende de como vocês se sentem sabendo que o homem que
Beau deixou em coma acabou de acordar.
Capítulo 41
Aaron foi embora. Não demorou muito para confirmarmos o que ele havia
nos contado. Victor McKinney, o chefe de segurança do Majesty e nossa
vítima mais recente, estava acordado. Briggs e Sterling estavam a caminho
do hospital para falar com ele, munidos das acusações de Aaron. Nós
vimos o vídeo, que era exatamente o que Aaron tinha dito, e
encaminhamos as imagens para Sterling e Briggs. Quando conversassem
com o chefe de segurança do Majesty, teriam perguntas bem objetivas para
fazer.
Meia hora depois, meu celular tocou. Quase atendi sem nem pensar,
achando que fosse Sterling ou Briggs, mas no último segundo vi a
identificação da chamada.
Meu pai.
Do nada, eu tinha doze anos novamente e estava andando pelo
corredor na direção do camarim da minha mãe. Não abre. Não entra lá.
Eu sabia o motivo da ligação.
Eu sabia que uma vez que a porta estivesse aberta, nada poderia voltar
a ser como antes.
Recusei a ligação.
— Essa não é a carinha que Cassie faz quando está feliz — disse
Michael, me cutucando.
— Bebe seu uísque — falei.
Sloane levantou a mão, como uma aluna esperando para ser chamada
na aula.
— Acho que eu gostaria de uísque agora — disse ela.
— Primeiro — disse Michael, o tom de voz sério — eu tenho que
verificar se você não está planejando dar o uísque para um alce.
— Ele está brincando — disse Dean antes que Sloane nos dissesse a
exata probabilidade de encontrar um alce em um cassino de Las Vegas. —
E ninguém vai beber mais uísque nenhum.
Dean foi até o balcão e pegou o bloco onde eu tinha feito as anotações
mais cedo. Deu uma olhada nos três nomes restantes.
O professor. Thomas Wesley. O pai de Sloane.
Me aproximei de Dean e olhei para a lista por cima do ombro dele.
Foca nisso, Cassie. Nesses nomes, nesse caso.
Não na ligação. Não na resposta que eu já sabia.
— Onze anos atrás — falei, me dirigindo em voz alta ao e
tirando todo o resto da cabeça —, você cortou a garganta de nove pessoas
em um período de quatro meses, de agosto a janeiro.
— Cinco anos atrás — respondeu Dean — eu fiz tudo de novo. Mas
dessa vez com veneno.
A mudança de método sempre foi um dos aspectos mais intrigantes
dos assassinatos de Las Vegas. A maioria dos assassinos tinha um único
método favorito para matar… ou, se não um método ou uma arma
preferida, pelo menos um tipo emocional de morte. Veneno significava
matar sem contato físico, o que não era lá tão diferente de planejar um
acidente em que uma jovem acaba se afogando. Já cortar a garganta de
alguém chegava mais perto de cravar uma flecha no peito de um idoso.
Nenhum dos dois métodos era tão doloroso quanto, digamos, queimar
alguém vivo.
— Na última vez em que tivemos um mudando tanto de um
assassinato pra outro — falei lentamente, me lembrando do caso
envolvendo o pai de Dean —, estávamos lidando com múltiplos s.
Dean contraiu a mandíbula, mas quando toquei em seu ombro, ele
relaxou.
— “Eu preciso de nove” — disse Dean logo depois. — Eu, não nós.
Por mais diferentes que fossem os quatro assassinatos com que
estávamos lidando em Las Vegas, alguma coisa neles parecia igual. Não só
os números nos punhos, não só os locais ou as datas, mas a meticulosidade
do método, o desejo compulsivo de a cada morte passar um recado.
Isso não me parecia trabalho de múltiplos s… a menos que um
deles estivesse arquitetando tudo.
Você quer ser reconhecido. Quer ser ouvido.
Esse desejo estava em todos os punhos, na mensagem que o
havia entalhado na flecha, no recado que uma pessoa de fora tinha sido
hipnotizada para passar. Você não quer ser parado. Mas quer, e muito, ser
visto. Quer ser o centro das atenções, pensei. Quer que o mundo saiba o que
você fez. Quer ser um deus entre os homens.
E para isso, pensei, você precisa de nove.
— Por que nove? — perguntei. — O que acontece depois do nono?
Dean botou em palavras a parte mais importante dessa pergunta.
— Por que parar?
Por que parar onze anos antes? Por que parar depois de matar Scarlett
Hawkins?
— Preciso ver o arquivo — falei para Dean.
— Você sabe que a gente não pode.
— Não o arquivo da Scarlett. Daquele outro caso que Sloane
encontrou. O de Nova York.
Sloane estava sentada diante da mesa de centro, segurando o que
Aaron tinha nos dado. Ela o guardara na caixa e observava-o. Na mesma
hora entendi que pensava em Tory e no que Aaron tinha feito por ela.
Estava pensando, de um jeito dolorosamente esperançoso, que talvez,
no fim das contas, Aaron não fosse igual ao pai deles.
— Sloane — falei —, você consegue hackear a base de dados do e
puxar o arquivo de Nova York?
Por ter uma memória impecável, Sloane não entendia a utilidade de
hackear novamente um arquivo que ela já tinha lido, mas ela fez o que eu
pedi e deixou o de lado. Seus dedos voaram pelo teclado. Alguns
segundos depois ela parou, pressionou algumas teclas e parou de novo.
— O que houve? — perguntei.
— O programa que eu desenvolvi mais cedo — disse Sloane —
terminou a busca.
— Deixa eu adivinhar — disse Lia. — Deu como resultado o caso de
Nightshade, que nós, sob ameaça de exílio, não podemos nem chegar
perto.
— Sim — disse Sloane. — Deu.
Lia inclinou a cabeça para o lado.
— Por que parece que você não está falando totalmente a verdade?
— Porque — disse Sloane, virando o computador para o resto de nós
— não foi o único caso que deu como resultado.
Capítulo 42
A busca de Sloane não tinha encontrado um caso. Nem dois. Nem três.
— Quantos? — perguntei, a garganta seca.
— Até os anos 1950 — respondeu Sloane —, quase doze. Todos
homicídios em série, nenhum solucionado.
Me encostei na bancada, agarrando a beira.
— Nove mortes a cada vez?
— Programei a busca pra pegar qualquer coisa acima de seis — disse
Sloane. — Pensando que algumas vítimas podem não ter sido descobertas
ou conectadas ao mesmo .
— Mas todas as vítimas em cada caso foram mortas em uma das 27
datas de Fibonacci que você identificou — disse Dean.
Sloane assentiu e, antes que surgisse outra pergunta, começou a passar
os olhos pelos arquivos.
— Em todo o país — informou ela. — Três na Europa. Facadas,
espancamentos, veneno, incêndio… está no mapa inteiro.
— Preciso de fotos — falei. — Qualquer coisa que você consiga, de
qualquer arquivo que não seja do Nightshade. — Judd tinha nos proibido
de chegar perto do caso de Nightshade. Mas dos outros…
Todas aquelas vítimas. Todas aquelas famílias…
Eu precisava fazer alguma coisa. Nada que eu fizesse seria suficiente.
— Tantos casos desde tanto tempo… — falei para Dean.
— Eu sei. — Ele me encarou. O pai de Dean era um dos assassinos
em série mais prolíficos do nosso tempo. Mas aquilo ia muito além até
mesmo dele.
No mundo todo, uns sessenta anos atrás… a cada segundo as chances
de estarmos lidando com um único diminuíam.
— Qual é a eficiência desse programa? — perguntou Lia a Sloane.
— Só está listando arquivos que encaixam nos parâmetros. — Sloane
pareceu meio insultada.
— Não — disse Lia. — Qual é a taxa de resultados? — ela perguntou,
o rosto todo tensionado. — Quantos o programa está deixando passar?
Os números mentem, percebi, seguindo o raciocínio de Lia. Ah, meu
Deus.
Sloane fechou os olhos, os lábios se movendo rapidamente conforme
ela repassava os números.
— Quando você leva em consideração a quantidade de bancos de
dados aos quais eu não tenho acesso, a probabilidade de registros antigos
estarem digitalizados, o papel do na investigação de assassinatos em
série ao longo dos anos… — Ela se mexeu na cadeira. — Metade — disse
ela. — Na melhor das hipóteses, talvez eu tenha encontrado cerca de
metade dos casos de 1950 até agora.
Quase doze era inimaginável. O dobro? Não era possível.
— Quantas? — falei. — O total de vítimas, de quantas estamos
falando?
— No mínimo? — sussurrou Sloane. — Cento e oitenta e nove.
Você precisa de nove porque é assim que se faz. São as regras do jogo. A
compreensão que eu tinha sobre o de Las Vegas mudou
completamente. Tem uma ordem. Você a está seguindo.
Mas ser um seguidor não é suficiente.
Os números nos punhos, a espiral de Fibonacci… nada disso estava
presente em nenhum dos outros casos que Sloane tinha encontrado. Cada
um dos casos à nossa frente havia empregado um dos sete métodos.
Você vai usar todos.
— Onde estamos no ciclo? — perguntei. — Nosso atual é parte
dele ou ele é quem o rompe?
— O último caso aconteceu há dois anos e meio — disse Sloane. —
Três anos antes, temos o caso Nightshade.
Completa seis anos em maio, pensei.
— Então o está adiantado — falei. — A menos que você se
baseie no ano do calendário, só aí, tecnicamente, encaixa no padrão.
Alexandra Ruiz morreu depois da meia-noite na véspera de Ano-Novo.
Primeiro de janeiro. Uma data para começos. Uma data para resoluções.
— Supondo que o tenha dado início aos assassinatos no início
do ciclo estabelecido — disse Dean —, quer dizer que esse ciclo começa
com afogamento.
O grupo mais recente de nove vítimas havia sido afogado.
— Esse não é o ponto alto da situação — traduzi. — Não é um grande
final. Se fosse, teria acontecido antes de eles recomeçarem o ciclo.
Eles. A palavra tomou conta de mim e se recusou a ir embora.
— Quem está fazendo isso? — perguntei, olhando para as fotos. — Por
quê?
Centenas de vítimas mortas ao longo de décadas. Assassinos
diferentes. Métodos diferentes.
— Estão fazendo porque alguém mandou. — Lia conseguiu falar como
se estivesse totalmente entediada, mas não conseguia afastar os olhos das
fotos espalhadas no chão. — Estão fazendo porque acreditam que é assim
que deve ser feito.
Quando eu tinha nove anos, eu matei um homem.
Eu cresci numa seita.
Aquelas frases de Lia do jogo de Duas Verdades e Uma Mentira
voltaram com tudo, e de repente passou pela minha cabeça que, pelas
regras do jogo, as duas declarações podiam ser verdade, desde que o que
ela tivesse dito sobre querer raspar a cabeça de Michael não fosse.
Seria a cara de Lia contar verdades absurdas e uma mentira engraçada
e trivial.
Teve uma época em que seu nome era Sadie. Aquele não era o melhor
momento para perfilar Lia, mas não consegui parar, assim como Sloane
não conseguiria parar de identificar datas Fibonacci. Alguém te dava
presentes por você ser uma boa menina. Antes dos treze anos você já estava
morando na rua. Em algum momento antes disso, você aprendeu a não
confiar em ninguém. Aprendeu a mentir.
Os olhos castanhos de Dean se fixaram em Lia. De repente dava para
sentir a história deles no ar. Por um momento, a impressão era de que não
havia mais ninguém ali.
— Você acha que estamos lidando com algum tipo de seita — disse
Dean.
— Você que é o perfilador, Dean — respondeu Lia, sem afastar o olhar
do rosto dele. — Me diz você.
A cada três anos uma série de vítimas mortas com métodos prescritos em
datas ditadas pela sequência de Fibonacci.
Havia inquestionavelmente um elemento de ritual aí.
— Supondo que estamos lidando com uma seita — disse Michael,
mantendo a voz casual, mas sem olhar para Lia. — Isso torna o cara de
quem estamos atrás um membro?
Fiquei refletindo sobre essa pergunta, até que Lia respondeu.
— É o básico de uma seita — disse ela. — Não falar com gente de
fora. — A voz dela soou estranhamente apática. — Não contar aquilo que
eles não são abençoados o bastante para saber.
Os números nos punhos. A espiral de Fibonacci. Se havia algum tipo de
grupo em atividade nos bastidores, eles conseguiram evitar serem
descobertos por mais de seis décadas… até Sloane se envolver na situação.
Lia não precisava de experiência com aquela seita para entender o
significado por trás disso.
— Vou jogar pôquer. — Ela se levantou e se desfez da emoção que logo
antes havia demonstrado com a mesma facilidade com que se tira um
vestido. — Se tentarem me impedir — disse com um sorriso tão real que
quase acreditei —, se tentarem ir comigo, vou fazer com que se
arrependam. — Ela foi até a porta, então Dean começou a se levantar e ela
o encarou. Os dois tiveram uma conversa em silêncio.
Ela o amava, mas, naquele momento, não o queria por perto. Não
queria ninguém por perto.
Lia raramente mostrava seu lado verdadeiro. Mas o que tínhamos
acabado de ver era mais do que isso. A voz apática, as palavras que ela
tinha dito… aquela não era só a verdadeira Lia. Era a garota de quem ela
tinha passado anos fugindo.
Era Sadie.
— Presente de despedida — disse Lia ao sair, enrolando o dedo no
cabelo preto, sem o menor resquício daquela garota — pra quem for meio
lento pra entender. Seja lá quem for nosso assassino, eu apostaria uma
grana alta que ele não faz parte desse grupo. Se fizesse, a seita estaria na
cola dele. E se estivessem na cola dele e descoberto que o cara contou
mesmo que fosse apenas um dos segredos deles? — Lia deu de ombros,
seu semblante exalando indiferença. — Aí ele não seria problema nosso. Já
estaria morto.
Você
Você sai para tomar ar fresco. Por dentro, está sorrindo. Por fora, mostra ao
mundo um rosto diferente. As pessoas têm suas expectativas, afinal de contas,
e você odiaria decepcionar.
Afogamento, incêndio, o homem perfurado pela flecha, o estrangulamento
de Camille.
A faca é a próxima.
Depois, espancar um homem até a morte com suas próprias mãos.
Veneno vai ser moleza. Convincente.
E aí as duas últimas, escolha do freguês. Deveriam ser nove maneiras
diferentes. Se você estivesse no comando, seriam.
Três vezes três vezes três.
Nove é o número de vítimas. Três são os anos de intervalo.
Nove lugares na mesa.
Você para na porta do Desert Rose. Não é seu lugar de caça favorito, claro.
Mas é um bom lugar para fazer uma visita. Um bom lugar para dar uma
olhada no que você fez.
Um bom lugar para consagrar o número cinco.
Tudo está indo conforme o plano. A notícia dos seus homicídios está se
espalhando. Você sabe que monitoram outras pessoas com tendências
similares. Procurando talento. Ameaças.
Finalmente os Mestres vão ver o que você realmente é.
No que se transformou.
Capítulo 44
Não deu nem um minuto depois da saída de Lia quando Michael anunciou
que ia atrás dela.
— Ela não quer você lá, Townsend — disse Dean, direto ao ponto. Lia
também não queria Dean lá. Ele estava se roendo por não poder ir atrás
dela, mas, mesmo protetor do jeito que era, não forçaria a barra.
— Pra nossa sorte — respondeu Michael alegremente —, nunca
esbarrei com uma ideia ruim que eu não abraçasse como se fosse minha
melhor amiga. — Ele foi para o seu quarto e, quando saiu, estava vestindo
um blazer casual, com toda a pinta de garoto rico filhinho de papai. — Eu
acreditei em Lia quando ela disse que vai fazer eu me arrepender de ir
atrás dela — disse para Dean. — Acontece que arrependimento é a minha
especialidade.
Depois abotoou o botão de cima do blazer e saiu.
— Michael e Lia se envolveram fisicamente pelo menos sete vezes. —
Pelo visto Sloane achou que essa informação pudesse ser útil.
Dean contraiu de leve a mandíbula.
— Não — falei para ele. — Ela está mais segura com ele do que
sozinha.
O que quer que Lia estivesse sentindo quando saiu por aquela porta,
Michael deve ter reparado. E minha intuição me dizia que ele também
tinha sentido o mesmo. De todos nós, Michael e Lia eram os que mais se
pareciam entre si. Por isso se atraíram um pelo outro quando ele entrou no
programa e por isso que, como casal, nunca tinham dado certo por muito
tempo.
— Você se sentiria melhor se soubesse aonde eles estão indo? —
perguntou Sloane. Dean não respondeu, mas mesmo assim Sloane
mandou uma mensagem para Lia. Não fiquei surpresa quando ela recebeu
a resposta. Foi Lia quem me disse que estávamos por aqui de problemas.
Ela não ignoraria Sloane, não em uma cidade onde Sloane tinha passado a
maior parte da vida sendo ignorada por gente de sua própria família.
— E aí? — perguntou Dean. — Aonde eles estão indo?
Sloane foi até a janela e olhou para fora através da espiral.
— Para o Desert Rose.
Foram quarenta minutos entre o momento que Michael saiu e o que Judd
entrou. A agente Sterling veio logo em seguida. Briggs por último. Ele
parou no meio da suíte e ficou olhando para os papéis cobrindo o chão.
— Expliquem. — Nunca era um bom sinal quando Briggs recorria a
ordens de uma única palavra.
— Com base nas projeções de Sloane, temos nove vítimas a cada três
anos por um período de pelo menos sessenta anos, com uma assinatura
diferente em cada conjunto — Dean resumiu, a voz incrivelmente serena
considerando o que ele estava dizendo. — Os casos estão espalhados
geograficamente, as jurisdições não se repetem. Os métodos de assassinato
seguem uma ordem previsível, e a ordem espelha os quatro primeiros
homicídios do nosso . Acreditamos estar lidando com um grupo
grande, muito provavelmente com mentalidade de seita.
— Nosso não faz parte da seita — continuei. — Esse não é o
tipo de grupo que fica promovendo sua existência, e é exatamente isso que
fazem os elementos adicionais da assinatura do nosso : os números
nos punhos, o fato de que a sequência de Fibonacci determina não só as
datas nas quais ele mata, mas também o local exato.
— Ele é melhor do que eles. — Sloane não estava perfilando; estava
afirmando o que, na mente dela, era um fato. — Qualquer um pode matar
em datas específicas. Isso aqui… — Ela indicou os papéis organizados
com cuidado no chão. — É simplista. Mas aquilo? — Ela se virou para o
mapa na janela, a espiral. — Os cálculos, os planos, cuidar para que a
coisa certa aconteça no lugar certo na hora certa. — Sloane pareceu quase
pedir desculpas ao continuar. — Aquilo ali é a perfeição.
Você é melhor do que eles. Esse é o ponto.
— Nós sabíamos que os números escritos nos punhos das vítimas eram
um recado — digo. — Sabíamos que tinham importância. Sabíamos que o
que ele queria não era só nossa atenção.
Mas a atenção deles.
— Já chega. — A voz de Judd estava rouca. — Acabou pra vocês. —
Ele não podia mandar a agente Sterling sair do caso. Isso estava fora do
escopo dele. Mas nós, não. A palavra final sobre nosso envolvimento em
qualquer investigação era dele. — Todos vocês. — Ele dirigiu as palavras a
Dean, Sloane e a mim. — A decisão é minha. Eu que mando. E estou
dizendo que acabou por aqui.
— Judd… — A voz de Sterling estava calma, mas achei ter percebido
também um tom de desespero.
— Não, Ronnie. — Judd virou de costas para ela e olhou pela janela de
Sloane, o corpo todo tenso. — Eu quero Nightshade. Sempre quis. E se
tem um grupo maior envolvido no que aconteceu com Scarlett, também
quero pegar todos eles. Mas não vou botar nenhum desses adolescentes
em risco. — A ideia de ir embora estava acabando com Judd, mas ele se
recusou a mudar de ideia. — Vocês já têm tudo o que precisam deles —
disse para Sterling e Briggs. — Sabem onde o vai atacar. Sabem
quando. Sabem como. Ora, vocês sabem até o porquê.
Eu conseguia ver um pouco do reflexo de Judd na janela. O suficiente
para ver o pomo de adão subir e descer quando ele engoliu em seco.
— A decisão é minha — repetiu Judd. — E eu digo que, se vocês
tiverem qualquer outra coisa que precise da opinião deles, podem enviar
pra Quantico. Nós vamos embora. Hoje.
Antes que alguém pudesse responder, a porta da suíte se abriu e Lia
apareceu com uma expressão extremamente satisfeita. Michael estava logo
atrás, encharcado de lama da cabeça aos pés.
— O que… — Briggs começou a dizer, mas logo se corrigiu: — Eu não
quero saber.
Lia entrou no saguão.
— Nem saímos da suíte — declarou ela, mentindo na cara deles com
uma convicção perturbadora. — E eu não dei um banho em um bando de
profissionais jogando pôquer recreativo no Desert Rose. A propósito, eu
não faço a menor ideia de por que Michael está coberto de lama.
Um montinho de lama caiu do cabelo de Michael no chão.
— Vai se limpar — disse Judd para Michael. — E todos vocês,
arrumem as malas. — Judd não esperou resposta antes de seguir para o
quarto dele. — Vamos zarpar em uma hora.
Capítulo 45
A pista particular estava vazia, exceto pelo jatinho que nos esperava para
nos levar de volta à segurança. Isso não acabou. Não está encerrado.
Daquela vez o protesto não passava de um sussurro na minha cabeça,
abafado por um rugido alto nos meus ouvidos e pelo torpor que tinha me
envolvido completamente.
A agonia de não saber o que havia acontecido com a minha mãe, de
nunca poder silenciar esse último resquício de talvez, tinha passado tanto
tempo comigo que já parecia uma parte do meu corpo. Mas, naquele
momento, essa parte de mim havia sumido. Naquele momento, eu sabia.
Não só instintivamente. Não só como resultado de pura dedução.
Eu sabia.
Me sentia oca, vazia por dentro, bem naquele lugar onde morava a
incerteza. Ela me amava mais do que tudo. Tentei me lembrar dos braços
dela ao meu redor, do cheiro dela. Mas tudo em que eu conseguia pensar
era que em um dia Lorelai Hobbes tinha sido minha mãe e médium e a
mulher mais bonita que eu já tinha visto e, no outro, ela não passava de
um cadáver.
E, naquele momento, nada além de ossos.
— Vamos — disse Michael. — O último a subir no avião vai ter que
raspar as iniciais na cabeça de Dean.
Cada vez que eu me sentia afundando, eles me puxavam novamente
para a superfície.
Quem subiu por último foi Dean. Fui na frente dele, tentando a cada
passo enfrentar aquela névoa de lembranças. Eu era capaz de superar
aquilo, capaz de superar o torpor e o vazio, porque eu tinha descoberto algo
que já sabia.
Eu sabia. Me obriguei a focar nisso. Eu sempre soube. Se tivesse
sobrevivido, ela voltaria para me buscar. De alguma forma, de algum jeito. Se
tivesse sobrevivido, ela não me deixaria sozinha.
Quando percorri o corredor, Lia, Michael e Sloane já estavam sentados
perto dos fundos do avião. No primeiro assento à minha esquerda havia
um envelope com o nome de Judd, escrito com uma caligrafia cuidadosa.
Por um momento, parei.
Em algum lugar embaixo de todo aquele torpor e de toda aquela névoa
eu tive um pressentimento.
Isso não acabou, pensei. Não está encerrado.
Peguei o envelope.
— Cadê o Judd? — falei. Minha voz soou rouca.
Dean olhou para o envelope na minha mão.
— Está falando com o piloto.
Meu coração deu apenas uma batida no tempo que levou para Dean
virar e ir até a cabine.
Aquela não era a caligrafia da agente Sterling. Nem do agente Briggs.
Meses antes eu tinha aprendido a parar de dizer para mim mesma que não
é nada, não deve ser nada mesmo quando sentia os cabelinhos da nuca
arrepiando.
— Judd. — Escutei a voz de Dean segundos antes de eu chegar à
cabine.
— Só um probleminha elétrico — garantiu Judd a Dean. — Estamos
resolvendo.
Isso não acabou. Não está encerrado.
Estendi o envelope para Judd sem dizer nada. Minha mão não tremeu.
Eu fiquei em silêncio. Judd olhou por um instante para o envelope e
depois para mim.
— Estava no assento. — Dean explicou por mim, já que a minha voz
havia desaparecido.
Judd pegou o envelope e virou de costas para nós para abri-lo. Quinze
segundos depois, se virou para nós de novo.
— Saiam do avião — ordenou Judd, numa voz seca, direta e calma.
Michael reagiu como se Judd tivesse dado um grito. Pegou a mala dele
e a de Sloane, depois deu um empurrãozinho nela e se virou para Lia. Não
disse nada. O que ela viu na expressão dele já foi suficiente.
Saiam do avião. Para o carro alugado de Judd. Michael nem comentou
nada sobre deixar seu próprio carro para trás.
— O envelope — disse Dean quando nos afastamos da pista. — De
quem era?
Judd trincou os dentes.
— Ele assinou como “um velho amigo”.
Fiquei paralisada, sem conseguir respirar, sentindo meu fôlego preso
nos pulmões.
— O homem que matou sua filha. — Lia foi a única que teve coragem
de falar em voz alta. — Nightshade. O que ele queria?
Me obriguei a voltar a respirar.
— Nos dar um recado — respondi, sem querer. — Nos ameaçar.
Aqueles problemas elétricos do avião. Não foram acidente, foram?
Quando disse isso, Judd já estava falando no celular com Sterling e
Briggs.
Nightshade está aqui em Las Vegas, pensei. E não quer que a gente vá
embora.
Eu havia temido que pensar no assassino de Scarlett pudesse conjurá-
lo, como um fantasma no espelho. Eu sabia que nosso estava
tentando atrair a atenção de Nightshade e de outros como ele. Mas não
cheguei a pensar no que significaria se o tivesse conseguido. A
organização… grupo… seita…
Eles estão aqui.
Em cinco minutos, Judd estava no balcão de embarque do aeroporto,
tentando arranjar um lugar no próximo voo comercial para qualquer lugar.
Mas assim que a mulher atrás do balcão digitou o nome dele no
computador, franziu a testa.
— Eu já tenho passagens reservadas no seu nome — disse ela. — Seis.
Antes mesmo de ter entendido completamente o que ela estava
dizendo, percebi que aquilo também era coisa de Nightshade. Você
escolheu Scarlett como nona vítima, pensei, sem conseguir me controlar.
Você a escolheu porque ela era importante para Sterling e Briggs, e eles
ousaram achar que poderiam te deter. Você a escolheu porque ela era um
desafio.
De todas as vítimas de Nightshade, Scarlett era seu maior feito. Era a
ela que ele voltaria. A que ele reviveria. Você estava de olho em Judd, não é?
De vez em quando, você gosta de se lembrar o que tirou dele… de todos eles.
Queria que esse meu palpite estivesse equivocado. Queria estar errada.
Mas o fato de que Nightshade queria que continuássemos em Las Vegas, o
fato de que Nightshade sabia que nós existíamos…
Seis passagens. A mulher atrás do balcão as imprimiu e entregou para
Judd. Antes de olhar já sabia que nossos nomes estariam impressos.
Nomes. Sobrenomes.
Era um voo para Washington.
Você sabe quem somos. Sabe onde moramos. As consequências daquilo
eram arrepiantes. Nightshade estava de olho, provavelmente desde que
matou Scarlett Hawkins e que Judd foi morar com Dean.
Assassinos não simplesmente param, pensei, mas, naquele grupo,
paravam. Nove e pronto. Essas eram as regras. Alguns assassinos levam
troféus, pensei. Para reviver o que tinham feito, para sentir de novo uma parte
da emoção.
Se Nightshade estava de olho de vez em quando, sempre que precisava
sentir novamente, se estava em Las Vegas, ele sabia bem o que estava
acontecendo ali.
Você não matou Judd, não nos matou, porque as regras dizem que você
para no número nove. Mas uma organização como a sua, uma seita como a
sua, teria um jeito de lidar com ameaças.
Lia mesma tinha dito: se o de Las Vegas fizesse parte do grupo,
ele já estaria morto. E se a seita percebesse que tínhamos feito a conexão,
se nos visse como ameaça…
Nightshade adoraria que os adolescentes de quem Judd cuidava
fossem exceção à regra.
Judd tacou as passagens no balcão, depois se virou e em um piscar de
olhos estava novamente falando no celular.
— Vou precisar de transporte, de segurança e de uma casa segura.
Capítulo 47
Acordei nas margens do rio Potomac. Levei um instante até me dar conta
de que estava de volta em Quantico e mais outro até perceber que não
estava sozinha.
Havia um fichário preto grosso aberto no meu colo.
— Curtindo uma leitura leve?
Olhei para a pessoa que tinha feito a pergunta e não consegui ver seu
rosto.
— É, mais ou menos. — falei, percebendo que já tinha dito isso antes.
O rio. O homem.
O mundo ao meu redor deu um salto, como um corte de filme
malfeito.
— Você mora na casa do Judd, né? — disse o homem sem rosto. —
Somos velhos amigos.
Velhos amigos.
Abri os olhos e me sentei, mas agora na cama. Agarrei o lençol. Estava
toda enrolada nele, tremendo.
Acordada.
Comecei a passar as mãos nas pernas, no peito, nos braços, como se
estivesse atrás de provas de que eu não tinha deixado nenhuma parte de
mim no Potomac, no sonho.
A lembrança.
O palco, eu correndo, sendo enterrada viva… isso tudo tinha sido obra
do meu subconsciente distorcido. Mas aquela conversa na margem do rio?
Aquilo foi real. E aconteceu logo depois que eu entrei no programa.
Eu nunca mais tinha visto aquele homem.
Engoli em seco, pensando no bilhete que Nightshade tinha deixado
para Judd no avião. Pensei na assinatura dele, “um velho amigo”.
Nightshade sabia o nome de todos nós. Tinha providenciado as passagens
porque queria provar a Judd: você poderia ter alcançado qualquer um de nós,
a qualquer momento.
Se eu estivesse certa sobre isso, sobre o motivo de Nightshade ter
deixado aquele bilhete, sobre a fixação dele em Scarlett como sua maior
realização e, por meio dela, em Judd… era fácil demais pensar que
Nightshade poderia ter passado para dar um oi assim que uma pessoa nova
entrou na vida de Judd.
As regras são específicas. Nove vítimas mortas em datas Fibonacci.
Assassinos normais continuavam matando até serem pegos, mas aquele
grupo era diferente. Aquele grupo não era pego.
Porque eles paravam.
Judd estava na cozinha. Assim como os dois agentes do nosso grupo de
proteção.
— Podem nos dar um minuto? — pedi a eles e esperei até terem saído
para voltar a falar. — Preciso te fazer uma pergunta — falei para Judd. —
E você não vai querer me dizer a resposta, mas preciso que você diga
mesmo assim.
Judd estava diante de uma revistinha de palavras-cruzadas. Ele colocou
o lápis na mesa. Isso era o mais próximo de um convite para ir em frente
que eu receberia.
— Considerando o que você sabe sobre o caso de Nightshade,
considerando o que sabe sobre o próprio Nightshade, considerando o que
estava escrito naquele bilhete no avião… você acha que ele veio aqui atrás
do nosso assassino e por acaso acabou te vendo quando estava aqui ou
acha que… — Minha boca ficou seca. Tentei engolir. — Você acha que ele
passou esse tempo todo nos observando?
Teorias eram só teorias. Minha intuição era boa, mas não impecável, e
eu tinha recebido tão poucos detalhes que não havia como saber o quanto
eu podia estar enganada.
— Eu não quero que você trabalhe no caso Nightshade — disse Judd.
— Eu sei — falei. — Mas preciso que você responda à pergunta.
Judd ficou imóvel, e, por mais de um minuto, só ficou me encarando.
— Nightshade mandava uma coisa para as pessoas que matava —
disse Judd. — Antes de matá-las, ele enviava uma flor. Uma flor tirada de
uma planta chamada beladona branca, white nightshade em inglês.
— Foi daí que ele tirou o nome — falei. — Nós supomos que ele tinha
usado veneno…
— Ah, ele usou — disse Judd. — Mas foi outro. O veneno que ele
usou era indetectável, incurável. — Um brilho sombrio passou pelos olhos
de Judd. — Doloroso.
Você mandou algo para eles para avisar que estava chegando. Você os
vigiou. Você os escolheu. Você os marcou.
— Nunca passou pela minha cabeça que ele ainda pudesse estar de
olho — Judd admitiu, a voz ainda mais severa. — Na melhor das
hipóteses, pensamos que a pessoa que matou Scarlett estivesse presa ou
morta. Mas sabendo tudo que eu sei? — Judd se encostou na cadeira, sem
tirar os olhos dos meus. — Eu acho que o filho da puta estava de olho.
Acho que, se deixassem, teria matado mais uns doze. Mas se precisou se
contentar com nove…
Ele deve ter aproveitado ao máximo.
Fechei os olhos.
— Eu acho que o conheci — falei. — No verão.
Capítulo 49
Você se planeja para cada imprevisto. Enxerga dez passos à frente. Isso não
deveria estar acontecendo.
Seu alvo estava com um quarto reservado até o final da semana. Ele não
deveria ter ido embora.
Nove.
Nove.
Nove.
Só de pensar nisso sua têmpora começa a latejar. Seu coração dispara.
Você sente seu plano indo por água abaixo, sente-o desmoronando. É isso que
dá seguir o caminho seguro. É isso que dá você se segurar. Será que você é ou
não o que alega ser?
— Sou — você diz. Precisa fazer um esforço enorme para não gritar. —
Sou!
Uma complicação é só uma complicação. Uma oportunidade. De pegar o
que você quiser. De fazer o que você quiser. De ser o que você nasceu para ser.
Você encosta a ponta da faca na barriga. O sangue forma gotas na
superfície.
Só uma pequena complicação.
Só um pouco de sangue.
Círculo. Círculo. Círculo. Em volta. Para cima e para baixo. Para a
direita e para a esquerda.
Faz logo, sussurra uma voz do passado. Por favor, Deus, só faz, de uma
vez por todas.
Tudo, menos o verdadeiro infinito, chega ao fim. Todo homem mortal
precisa morrer. Mas você não foi feito para ser mortal. Você nasceu para esse
tipo de coisa.
Amanhã é o dia, e o dia vai ser perfeito.
— Assim foi decidido — você murmura — e assim será.
Capítulo 50
Você abre caminho pela multidão na direção do palco. Como se devesse estar
aqui. Como se o lugar inteiro fosse seu.
A faca está escondida na sua manga.
Tem câmeras por toda parte. Agentes por toda parte. Eles acham que você
não sabe. Acham que você não consegue vê-los com muito mais facilidade do
que eles veem você.
Seus olhos pousam no alvo. Ele está de blazer. Os dedos brincam com o
botão de cima.
Tudo pode ser contado. Os passos até você alcançá-lo. Quantos segundos
sua lâmina vai levar para atravessar a garganta dele. E pensar que por pouco
aquilo quase transcorreu diferente.
E pensar que você quase aceitou uma imitação.
Três.
Três vezes três.
Três vezes três vezes três.
Essa é sua herança. É o que o destino sempre te reservou. Um homem
esbarra em você. Pede desculpas. Você nem escuta direito.
1/1.
1/2.
1/3.
1/4.
1/12.
Há nove assentos à mesa. Três segundos até começar.
Três… dois… e… a luz se apaga. Exatamente como você planejou. Sem
luz. Sem caos. Como você planejou.
Você anda com determinação. Se aproxima do número cinco por trás.
Agarra-o pelo pescoço e encosta a faca na garganta.
E começa a cortar.
Capítulo 54
O FBI prendeu Beau Donovan. Ele não tentou fugir. Não resistiu.
Não precisava.
Você sabe que não temos nenhuma prova. Você já construiu sua defesa.
Você vai se divertir com isso.
No momento da prisão, Beau não estava portando arma nenhuma.
Graças ao blecaute, ninguém o viu perto do corpo. Você é melhor do que
isso. Eu já tinha passado tempo suficiente na cabeça do nosso para
saber que Beau teria um plano para se livrar da arma. Você não esperava ser
preso, mas e daí? Ninguém pode provar nada. Eles não podem te tocar.
Nada pode te tocar agora.
— Setenta e duas horas — disse Sloane, a voz pouco mais do que um
sussurro rouco e áspero na garganta. As imagens de vídeo tinham sido
interrompidas, mas ela continuava encarando a tela preta, vendo o corpo
de Aaron do mesmo jeito que eu podia fechar os olhos e ver o camarim
sujo de sangue da minha mãe. — Na maioria dos estados, os suspeitos
podem ficar detidos por até 72 horas antes que a acusação seja arquivada
— continuou Sloane. — São 48 horas na Califórnia. Eu… eu… eu não
tenho certeza quanto a Nevada. — Os olhos dela se encheram de lágrimas.
— Eu devia ter certeza. Devia. Não consigo…
Me sentei no chão ao lado dela.
— Tudo bem.
Sloane balançou a cabeça sem parar.
— Eu avisei meu pai que isso ia acontecer — disse, ainda observando
a tela apagada. — Doze de janeiro. O Grande Salão de Festas. Eu avisei, e
agora… não sei. São 48 horas ou 72 horas em Nevada? — Sloane mexeu
no cabelo, as mãos tremendo. — Quarenta e oito ou setenta e duas?
Quarenta e oito ou…
— Ei. — Dean se ajoelhou na frente dela e segurou suas mãos. —
Olha pra mim.
Sloane ficou balançando a cabeça. Olhei para Lia, que não tinha saído
do lado de Sloane, sem saber o que fazer.
— Nós vamos pegá-lo — disse Lia, a voz tão baixa quanto a de Sloane,
mas letal.
De alguma forma, aquelas palavras permearam a mente de Sloane o
suficiente para ela parar de balançar a cabeça.
— Nós vamos pregar Beau Donovan na parede — continuou Lia, a voz
baixa — e ele vai passar o resto dos dias numa caixa com paredes em volta.
Sem esperança. Sem saída. Sem nada além da percepção de que ele
perdeu. — Lia pronunciou cada palavra com cem por cento de convicção.
— Se tivermos que fazer isso em 48 horas, vamos fazer em 48 horas, e se
forem 72 horas, vamos fazer em 48 horas de qualquer jeito. Porque somos
bons, Sloane, e vamos pegar esse cara.
Lentamente a respiração de Sloane foi se estabilizando. Ela finalmente
encarou Dean, os olhos transbordando de lágrimas, e reparei enquanto elas
desciam pelo rosto.
— Eu era irmã do Aaron. — Sloane foi direto ao ponto. — E agora não
sou. Eu não sou mais irmã dele.
Senti um nó na garganta por conta de todas as palavras que eu queria
dizer. Você ainda é irmã dele, Sloane. Antes que eu conseguisse responder
qualquer coisa, ouvi a porta abrir. Um momento depois, Michael surgiu na
entrada da sala.
A verdade nua e crua da situação me atingiu em cheio. Poderia ter sido
Michael. Se não tivéssemos saído de Las Vegas, se Beau não tivesse mudado o
plano, poderia ter sido Michael. Eu não podia me permitir ficar pensando
nisso. Mas não conseguia parar. A garganta do Michael sendo cortada com
aquela faca. Michael morto num piscar de olhos…
Michael fez uma pausa, os olhos fixos em Sloane. Ele observou a
marca de lágrimas no rosto dela, os ombros encolhidos, mil e uma pistas
que eu não conseguia ver. Ser Natural significava que Michael não tinha
como desativar sua habilidade. Ele não conseguia parar de enxergar o que
Sloane estava sentindo. Ele viu e sentiu, e eu o conhecia bem o suficiente
para saber que estava pensando Era pra ter sido eu.
— Michael — Sloane falou o nome dele meio engasgado, depois ficou
vários segundos apenas o observando. Suas mãos se fecharam em punhos
ao lado do corpo. — Você não tem permissão pra ir embora de novo —
disse, feroz. — Michael. Você não pode me deixar também.
Só por um momento Michael hesitou, mas logo deu um passo à frente,
depois outro, até desabar no chão ao nosso lado. Sloane passou os braços
em volta dele e o abraçou com força. Dava para sentir o calor passando de
um corpo a outro. Dava para sentir os ombros deles sacudirem com os
soluços de choro.
E tudo em que consegui pensar, sentada no chão junto com eles, em
meio a toda aquela bagunça de dor e raiva e perda, foi que Beau Donovan
achava que tinha vencido. Achava que podia pegar e matar e destruir vidas
e que nada nem ninguém conseguiria tocar nele.
Pensou errado.
Capítulo 56
Você teve menos de um minuto para fazer o que precisava ser feito.
Enquanto Sloane assistia às imagens de segurança que tinha hackeado,
murmurando números baixinho, entrei na perspectiva de Beau para tentar
imaginar o que ele pensava e sentia naqueles momentos.
Você sabia exatamente onde seu alvo estava. Sabia que Aaron não entraria
em pânico quando as luzes se apagassem. Aaron Shaw estava no topo da
cadeia alimentar. Você sabia que ele nunca pensaria que pudesse ser sua
presa.
— O suspeito estava andando na direção do palco a uma velocidade de
1,6 metros por segundo. A vítima estava a 24 metros de distância, num
ângulo de 42 graus da última trajetória do suspeito.
Você sabia exatamente aonde estava indo, exatamente como chegar lá.
Sloane pausou e fez uma captura de tela do exato segundo antes de as
luzes se apagarem. Repetiu o processo quando as luzes voltaram. Antes.
Depois. Antes. Depois. Sloane ficou indo de uma imagem para a outra.
— Em 59 segundos, o suspeito se moveu 6,2 metros, ainda virado para
o palco.
— As pupilas dele estavam dilatadas — observou Michael. — Antes de
as luzes se apagarem, as pupilas já estavam dilatadas: estado de alerta,
excitação psicológica.
— Se eu conseguir fazer isso — murmurou Dean —, eu sou
invencível. Se eu conseguir fazer isso, eu sou merecedor.
Aaron era o filho de ouro do Majesty, o herdeiro óbvio. Matá-lo foi uma
demonstração de poder. Essa é sua herança. É isso que você é. É isso que
você merece.
— A postura de Beau muda — continuou Michael. — É bem sutil,
mas dá para perceber, por baixo da cara de paisagem. — Michael indicou
primeiro uma imagem, depois a outra. — Expectativa antes. Logo depois,
euforia. — Ele voltou o olhar para a primeira foto. — Olha os ombros dele.
— Ele olhou para Sloane. — Dá play.
Sloane abriu o vídeo e deu play.
— Movimento restrito — disse Michael. — Está sentindo a tensão nos
ombros. Está andando, mas com os braços rígidos ao lado do corpo.
— A faca — murmurou Dean ao meu lado, o olhar grudado na tela. —
Eu estava com ela comigo. Dava para senti-la. É por isso que meus braços
não estão se mexendo. A faca está me segurando. — Dean engoliu em seco
e desviou o olhar para mim. — Eu estou com a faca — disse ele, a voz
grave de um jeito nada natural. — Eu sou a faca.
Na tela, tudo ficou preto. Ficamos alguns segundos em silêncio.
A adrenalina começou a correr pelas suas veias. Imaginei como seria ser
Beau. Imaginei chegar por trás de Aaron no escuro. Sem nem pensar duas
vezes. Ele é mais forte do que você. Maior. Você só tem o elemento surpresa.
Você só tem uma determinação sagrada.
Imaginei passar a faca pela garganta de Aaron. Imaginei deixá-la cair no
chão. Imaginei voltar no escuro. Imaginei saber, com uma certeza
sobrenatural e sufocante, que morte era o mesmo que poder. O meu poder.
Na tela, as luzes se acenderam, me arrancando daquele breve instante
em que eu tinha parado de falar com Beau e tinha me permitido ser ele.
Senti o calor do corpo de Dean ao meu lado. Senti o lugar escuro onde ele
estava havia pouco.
O lugar para onde eu também tinha ido.
— Olha os braços dele — disse Michael, apontando para Beau.
Eles balançam de leve quando você anda. Você está mais leve agora.
Equilibrado. Perfeito.
— Eu fiz o que precisava ser feito. — Dean olhou para as mãos. — E
me livrei da faca.
— A faca foi encontrada a menos de um metro do corpo. — Sloane
falou num ritmo hesitante, irregular. — O assassino a largou. Ele deve ter
andado para trás. Não podia correr o risco de acabar pisando no sangue de
Aaron. — Havia algo incerto na voz dela, algo frágil. — No sangue de
Aaron — repetiu.
Sloane olhava para cenas de crimes e via números: padrões de jorro de
sangue, probabilidades e sinais de rigor mortis. Mas, por mais que
tentasse, para ela Aaron nunca seria apenas o número cinco.
— O suspeito não está usando luva. — Foi Lia quem fez a observação.
— Duvido que ele tenha deixado digitais na faca. O que rolou?
Sloane fechou os olhos. Senti-a pensando nas possibilidades,
repassando repetidamente as provas físicas, sofrendo e sofrendo e mesmo
assim seguindo em frente…
— Plástico. — Judd nunca tinha opinado em nenhum dos nossos
casos. Ele não era do . Não era um Natural. Mas já tinha sido um
fuzileiro. — Algo descartável. Você embrulha a faca e se livra disso
separadamente.
Isso aí. Meu coração deu um salto. Essa é nossa prova irrefutável.
— E onde eu me livrei da faca? — perguntou Dean.
Não em uma lata de lixo, a polícia poderia procurar lá. Me forcei a
retroceder, a seguir passo a passo. Você vai cortando caminho pela
multidão… até Aaron. Chega por trás. Passa a faca rapidamente pelo pescoço
dele. Sem pensar duas vezes. Sem remorso. Você remove o plástico, larga a
faca.
Trinta segundos.
Quarenta segundos.
Quanto tempo passou? Quanto tempo você tem para voltar para onde
estava no momento em que as luzes se apagaram?
Você abre caminho por entre as pessoas.
— As pessoas — falei em voz alta.
Dean entendeu antes dos demais.
— Se sou um assassino que pensa em todos os imprevistos possíveis,
eu não jogo as provas fora. Deixo que outra pessoa faça isso por mim…
— De preferência depois que chegar em casa — concluí.
— Ele incriminou alguém com a prova do crime — traduziu Lia. — Se
eu sou o alvo dele e ao chegar em casa encontro um saco plástico no bolso,
o que eu faço? Jogo fora.
— A menos que tenha sangue — disse Sloane. — Uma gota, uma
mancha…
Visualizei a teia de possibilidades, a maneira como aquela história se
desenrolava.
— Dependendo de quem você for, você pode ligar para a polícia. —
Considerei uma segunda possibilidade. — Ou queimar a prova.
Por um instante um silêncio pesado, carregado de tudo aquilo que
nenhum de nós queria dizer, tomou conta do ambiente. Se não
encontrássemos, se não encontrássemos a pessoa que estava com essa prova…
Nosso assassino iria vencer.
Capítulo 57
Tory não atendeu na primeira vez que ligamos. Nem na segunda. Nem na
terceira. Mas Sloane tinha uma capacidade sinistra de persistência. Ela
conseguia fazer a mesma coisa repetidamente, presa num loop até o
resultado mudar a ponto de tirá-la do padrão.
Você não vai parar de ligar. Você nunca vai parar de ligar.
Sloane digitava um a um os dígitos do número que Sterling e Briggs
tinham lhe dado. Eu a conhecia bem o suficiente para saber que ela sentia
conforto no ritmo, no movimento, nos números… mas não tanto.
— Para de ligar. — Uma voz atendeu, alta o suficiente para que eu, ao
lado de Sloane, conseguisse ouvir cada palavra. — Só me deixa em paz.
Por uma fração de segundo, Sloane ficou paralisada, insegura agora que
o padrão tinha sido quebrado. Lia estalou um dedo na frente do rosto dela
e Sloane piscou.
— Eu avisei a ele. Eu avisei ao meu pai. — Sloane foi direto de um
padrão para outro. Quantas vezes ela tinha dito aquelas palavras? Com que
frequência deviam estar se repetindo em sua cabeça para que a cada vez as
pronunciasse daquele jeito tão desesperado?
— Quem é? — A voz de Tory falhou do outro lado da linha.
Com mãos trêmulas, Sloane colocou a chamada no viva-voz.
— Eu era irmã de Aaron. E agora não sou mais. E você era o amor dele
e agora não é mais.
— Sloane?
— Eu avisei ao meu pai que isso ia acontecer. Falei que havia um
padrão. Falei que o próximo assassinato ia acontecer no Grande Salão de
Festas no dia 12 de janeiro. Eu avisei a ele, Tory, e ele não me ouviu. —
Sloane respirou fundo, trêmula. Do outro lado da linha, ouvi Tory fazendo
o mesmo. — Então você vai ouvir — continuou Sloane. — Você vai ouvir
porque você sabe. Você sabe que ignorar uma coisa não faz com que ela não
aconteça. Fingir que uma coisa não importa não a torna menos importante.
Do outro lado da linha, nada além de silêncio.
— Eu não sei o que você quer de mim — disse Tory depois de uma
pequena eternidade.
— Eu não sou normal — disse Sloane, direta ao ponto. — Nunca fui.
— Ela fez uma pausa e disse: — Eu sou o tipo de pessoa não normal que
trabalha com o .
Desta vez, a inspiração de Tory soou mais intensa. Uma faísca no olhar
de Michael me deu a entender que ele percebeu camadas de emoção
naquilo.
— Ele era meu irmão — repetiu Sloane. — E eu só preciso que você
escute. — A voz de Sloane falhou algumas vezes quando ela pediu: — Por
favor.
Outra eternidade de silêncio, desta vez mais tenso.
— Tudo bem — Tory falou, a voz seca. — Diz o que você precisa dizer.
Senti Tory mudando de postura: de um luto vulnerável a um estado
defensivo até chegar a uma espécie de indiferença típica de Lia. As coisas
só importam se você permitir. As pessoas só importam se você permitir.
— Cassie? — Sloane colocou o celular na mesa. Eu me aproximei. Do
outro lado de Sloane, Dean fez o mesmo, até estarmos os dois um de
frente para o outro, com o celular entre nós na mesa de centro.
— Nós vamos te contar sobre o assassino que estamos procurando —
falei.
— Juro por Deus, se isso for sobre Beau…
— Nós vamos contar sobre nosso assassino — continuei, a voz firme.
— E depois você vai nos contar. — Tory permaneceu calada do outro lado
da linha, e não tinha certeza de que ela não havia desligado na nossa cara.
Olhei para Dean, que assentiu de leve, então comecei: — O assassino que
estamos procurando matou cinco pessoas desde o dia 1° de janeiro. Quatro
delas com idades entre 18 e 25. Ao mesmo tempo que isso pode significar
que nosso assassino tem uma fixação por essa faixa etária por causa de
alguma experiência anterior, nós acreditamos que a explicação mais
provável, e a que encaixa melhor com a natureza dos crimes, é que o
assassino também seja jovem.
— Estamos procurando uma pessoa de vinte e poucos anos —
continuou Dean. — Alguém com motivo pra mirar em cassinos em geral e,
em particular, no Majesty. É provável que nosso assassino tenha grande
experiência com Las Vegas e esteja acostumado a passar despercebido
pelos lugares. Essa é sua maior vantagem, além de ser um combustível pra
boa parte da raiva dele.
— Nosso assassino está acostumado a ser descartado — continuei. —
É quase certo que tenha o típico de um gênio, mas deve ter se saído mal
na escola. Nosso assassino sabe jogar seguindo as regras, mas não sente o
menor remorso em violá-las. Ele não é só mais inteligente do que as
pessoas acham que ele é. Ele é mais inteligente do que as pessoas que
fazem as regras, mais inteligente do que as pessoas que dão as tarefas,
mais inteligente do que as pessoas pra quem e com quem trabalha.
— Matar é um gesto de dominação. — A voz de Dean soou baixa e
controlada, mas havia uma convicção ali, o tipo de convicção específico da
experiência. — O assassino que estamos procurando não se importa com
dominação física. Ele não recuaria de uma briga, mas já perdeu muitas.
Esse assassino domina as vítimas mentalmente. Elas não perdem porque
ele é mais forte: perdem porque ele é mais inteligente.
— Elas perdem — continuo — porque ele crê cegamente.
— Beau não é religioso. — Tory se agarrou nisso, o que interpretei
como reconhecimento de que todo o resto que dissemos encaixava na
personalidade de seu irmão de criação.
— Nosso assassino acredita em poder. Acredita em destino. — Dean
fez uma pausa. — Ele acredita que alguma coisa foi tirada dele.
— Ele acredita — falei baixinho — que agora seja a hora de pegar isso
de volta.
Não contamos para Tory sobre a seita. Com a atenção de Nightshade
em Las Vegas, saber disso poderia colocá-la em perigo. Então parei de
contar a Tory sobre o estado mental atual do nosso assassino e comecei a
fazer deduções com base no passado.
— Nosso assassino é jovem — falei novamente —, mas, pelo nível de
organização dos homicídios, está claro que foram planejados por anos.
Havia um motivo para só termos conseguido identificar a idade do
após termos identificado Michael como a quinta vítima em
potencial. Muitos daqueles crimes tinham relação com planejamento;
experiência, grandiosidade, arte. Ter chegado àquele nível aos 21 anos…
— É bem provável que nosso assassino tenha passado por um ou mais
eventos traumáticos, provavelmente antes dos doze anos. Esses eventos
podem ter incluído abuso físico ou psicológico, mas considerando o
trabalho que o assassino está tendo para… — Para chamar a atenção,
pensei, sem dizer em voz alta. — Para se provar digno, também é possível
estarmos atrás de alguém que tenha passado por uma perda brusca e um
abandono físico ou emocional severo.
— A interrupção do abuso — disse Dean, tão calmo que chegava a ser
comovente — pode ter sido tão traumática e formadora de personalidade
quanto o que aconteceu antes.
— Parem. — Tory sussurrou a mesma coisa que disse quando atendeu
a ligação, mas desta vez a voz soou rouca, baixa e desesperada. — Por
favor, só parem com isso.
— Ele estava matando seguindo um padrão específico. — Sloane falou
de repente, o sussurro igual ao de Tory. — Ia acabar no teatro do Majesty.
No dia 13 de fevereiro, no teatro. Era lá que ia terminar.
— Você importa para o nosso assassino, Tory. — Dean abaixou a
cabeça. — Sempre ia ser você, assim como tinha que ser um dos seus
maiores rivais, assim como tinha que ser Camille, assim como, na primeira
noite, tinha que ser uma garota jovem de cabelo escuro.
— Assim como tinha que ser Aaron — disse Tory, engasgada, a voz não
passando de um sussurro.
Michael capturou meu olhar. Ergueu um bloquinho de notas. Ela está
no limite, dizia. Assenti para mostrar que tinha entendido. O que
disséssemos em seguida teria potencial para empurrá-la para um lado ou
para outro: acreditar ou reagir a cada palavra que dissemos, nos ajudar a
pegar Beau ou erguer um muro.
Escolhi cuidadosamente minhas palavras.
— Você já viu Beau desenhando uma espiral?
Aquilo era um jogo, mas a violência que tínhamos visto acontecendo
nos últimos dias era preparada havia anos. Se nosso perfil estivesse certo,
se Beau tivesse trabalhado naquilo por anos, se as necessidades e aquele
plano doentio pudessem ser conectados a um trauma do passado… Você
planejou, sonhou e praticou. Você nunca se permitiu esquecer.
— Ah, meu Deus. — Tory desmoronou. Consegui ouvir o exato
momento em que isso aconteceu. Quase conseguia vê-la tombando no
chão, puxando os joelhos para o peito, a mão que segurava o celular caindo
para o lado.
Dean capturou meu olhar e levou a mão até meu ombro. Fechei os
olhos e me recostei nele, sentindo seu toque.
Eu fiz isso com você, pensei, sem conseguir tirar a imagem de Tory da
cabeça. Eu quebrei você. Te fiz desmoronar porque podia. Porque precisava.
Porque precisamos de você.
— Ele desenhava na terra — disse Tory, a voz rouca. Tive vontade de
dizer que sabia como era quando arrancavam sua alma de você. Que sabia
como era se sentir vazia, como se não houvesse mais dor para sentir. —
Beau nunca desenhava no papel, mas desenhava espirais na terra.
Ninguém nunca reparou, só eu. Ele nunca deixava ninguém além de mim
ver.
Sempre seria você. Beau teria matado Tory. Ela era sua família. Ele a
amava e mesmo assim a teria matado. Ele precisava fazer aquilo, precisava,
por motivos que eu não conseguia entender.
— Você precisa falar com o — disse Dean delicadamente. —
Precisa responder às perguntas deles. — Ele deu um momento a ela para
entender aquelas palavras. — Eu sei o que estou te pedindo, Tory. Sei o
que isso vai custar a você.
Por experiência. Ele sabe disso por experiência própria. Dean tinha
testemunhado contra o pai. Nós estávamos pedindo a Tory para fazer o
mesmo com relação a Beau.
— Uma vez ouvi nossa mãe adotiva falando sobre ele — disse Tory
após um silêncio prolongado. — Eu a ouvi dizer… — Eu conseguia
escutar o esforço para ela formar as palavras. — Encontraram Beau quase
morto no deserto. Ele tinha seis anos e alguém o largou lá. Sem comida
nem água. Ele tinha passado dias no deserto. — Percebi um leve tremor
em sua voz. — Ninguém sabia de onde ele tinha vindo nem quem o havia
abandonado. Beau não conseguiu dizer. Ele passou dois anos sem dizer
uma palavra a ninguém.
Ninguém sabia de onde ele tinha vindo. Como dominós que caíam um a
um, tudo que eu sabia sobre a motivação de Beau, sobre os assassinatos,
começou a mudar.
Você
Sua casa não é um lugar, Cassie. Sua casa são as pessoas que você mais ama.
Na varanda dos fundos, olhando para o quintal de casa, deixei a lembrança
tomar conta de mim. Me perdi nela. Eu precisava lembrar. Precisava que
minha mãe fosse a minha mãe, não um corpo, não ossos, não uma vítima.
A minha mãe.
Estamos dançando, bem ali, no acostamento. O cabelo ruivo dela escapa
do lenço e emoldura seu rosto enquanto ela se move, selvagem, livre e sem
vergonha nenhuma. Eu giro em círculos, as mãos esticadas ao lado do corpo.
O mundo é um borrão de cores e escuridão e neve. Ela inclina a cabeça para
trás e eu faço o mesmo, com a língua para fora.
Nós podemos largar o passado. Podemos dançar até passar. Podemos rir,
cantar e girar… para todo o sempre.
Aconteça o que acontecer.
Aconteça o que acontecer.
Aconteça o que acontecer.
Eu não queria esquecer: o sorriso no rosto dela, o jeito como ela se
mexia, o jeito como dançava, como se ninguém estivesse olhando, onde
quer que estivéssemos.
Inspirei fundo e desejei com ferocidade e veemência não entender
como um estranho podia ter olhado para ela e pensado É ela.
Estavam te observando, pensei. Eles te escolheram.
Eu nunca cheguei a me perguntar para que o assassino da minha mãe a
tinha escolhido. Pensei na mulher que eu tinha visto com Nightshade, a
mãe da garotinha. Você sabe o que ele é?, perguntei para a mulher,
sustentando a imagem dela na cabeça. Você faz parte desse grupo? É uma
assassina?
Sete Mestres. A Pítia. E Nove. Pensei nas centenas de pessoas que
tinham passado pelos shows da minha mãe. Sete Mestres. Será que um
deles foi? Será que um deles a viu?
Vocês esperavam que minha mãe fosse por vontade própria?, perguntei
silenciosamente a eles. Vocês tentaram convencê-la? Ela resistiu?
Olhei para os meus punhos, me lembrando da sensação dos lacres os
apertando. Me lembrei de quando fui perseguida, caçada, encurralada. Me
lembrei da faca de Locke. Me lembrei de quanto lutei: menti, manipulei,
resisti, corri, me escondi, lutei.
Eu era a filha da minha mãe.
Eles não sabiam com quem estavam se metendo, pensei, enquanto na
minha cabeça minha mãe continuava dançando, destemida e livre. Minha
mãe e Locke tinham crescido com um pai abusivo. Quando minha mãe
ficou grávida de mim, ela saiu. Saiu da casa do pai dela na calada da noite
e nunca olhou para trás.
Dança que passa.
Minha mãe era uma sobrevivente.
A porta dos fundos se abriu. Um momento depois, Dean parou atrás de
mim. Me inclinei na direção dele, as mãos diante de mim com as palmas
viradas para cima, os olhos fixos nos punhos. Webber os tinha prendido nas
minhas costas. Eles prenderam seus braços, mãe? Te deram uma chance de
conquistar sua liberdade? Disseram que você tinha um propósito maior?
Eles te mataram por ter resistido?
Quando te mataram, você queria morrer?
— Eu ando tentando imaginar — disse Dean — como é tudo isso pra
você. Mas… — A voz dele ficou entalada na garganta. — Mas eu fico
imaginando vê-la, escolhê-la, pegá-la… — Dean parou de repente.
Você se odeia por imaginar. Odeia como é fácil se colocar no lugar do
assassino da minha mãe… ou assassinos.
Você odeia que faça algum sentido.
— Eu imagino levá-la — falei para ele. — Imagino ser levada. —
Engoli em seco. — O que quer que esse grupo seja, eles funcionam a
partir de regras determinadas. Possuem um ritual, uma tradição
inflexível…
Sete Mestres. A Pítia. E Nove.
Sem dizer nada, Dean me abraçou por trás. Segurou minha mão direita
com a dele. O polegar tocou meu punho, exatamente onde os lacres de
Webber tinham afundado na minha pele.
Tal mãe, tal filha…
Todos os pensamentos sumiram quando Dean levou meu pulso aos
lábios, dando um beijo suave e silencioso na mesma pele que antes havia
sido tão maltratada. Ele fechou os olhos. Eu fechei os meus. Conseguia
senti-lo respirando atrás de mim. Nivelei minha respiração com a dele.
Inspira. Expira. Inspira. Expira.
— Você não precisa ser forte agora — disse Dean.
Me virei, abri os olhos e o beijei. Sim. Preciso.
Tal mãe, tal filha… eu era uma guerreira.
Inclinei o pescoço para trás e me afastei de Dean, meu rosto a menos
de dois centímetros do dele.
— Vocês deviam botar uma gravata na porta, sei lá. — Lia entrou na
varanda, nem aí por ter nos interrompido. — Deixando seitas de assassinos
em série e caçadas de lado, um pouco de discrição nessas demonstrações
públicas de afeto sempre cai bem.
Interpretei o que ela disse como significando que Lia não havia tido
atualizações sobre o caso. Briggs e Sterling não tinham ligado. Nightshade
ainda está a solta. O FBI continua procurando.
— Lia. — O jeito como Dean falou deixou claro que ele queria que ela
saísse dali.
Lia o ignorou e se concentrou em mim.
— Eu mandei Michael crescer e encarar a situação de frente —
informou ela. — Acho que a experiência de quase morte pode ter
interrompido a espiral para o fundo do poço, e, além do mais… — Lia me
encarou. — Eu falei pra ele que estava na sua vez.
Ficamos um momento em silêncio enquanto eu absorvia o significado
completo das palavras de Lia. Ela estava comigo. Michael também. Sloane,
mesmo destruída e sofrendo, também.
Briggs salvou a minha vida, dissera Judd. Ele me salvou no dia em que
me trouxe Dean.
Eu queria Nightshade atrás das grades. Queria respostas… mas,
quando me permitia, o que eu queria mais era isso. Dean, Lia, Michael e
Sloane… sua casa são as pessoas que mais te amam.
Para todo o sempre.
Aconteça…
— Pessoal — chamou Michael, imóvel na porta dos fundos. Logo atrás
estava Sloane, com enormes olheiras escuras.
Foi então que percebi que havia uma novidade. O jeito como meu
coração disparou, o som ensurdecedor nos meus ouvidos… Percebi na
hora que havia uma novidade e estava apavorada de deixar Michael dizer
uma palavra que fosse.
— Pegaram ele.
Nightshade.
O homem do desenho.
Pegaram ele.
— E a mulher? — ouvi, como se estivesse longe. A minha voz. A minha
pergunta. — E a garotinha?
Michael fez que não, e entendi que elas não estavam com Nightshade.
A Pítia. A criança.
Meu coração disparou quando pensei no homem que eu tinha visto, o
homem de quem me lembrava.
Você matou a filha de Judd. Matou Beau. Você sabe por que aquele
símbolo foi entalhado no caixão da minha mãe.
— O que você está deixando de contar? — Lia perguntou, o tom de
voz baixo. — Michael.
Eu não conseguia ler Michael da mesma maneira como ele conseguiria
me ler, mas naquele segundo que ele demorou para responder à pergunta
de Lia, sua expressão foi suficiente para tirar todo o ar dos meus pulmões.
— Nightshade enfiou uma agulha em Briggs. — Michael olhou de Lia
para Dean e então para mim. — Injetou alguma coisa nele. Não sabem o
quê.
Minha boca ficou seca e o rugido nos meus ouvidos aumentou. Veneno.
Capítulo 62
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Copyright © 2015 by Jennifer Lynn Barnes
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Barnes, Jennifer Lynn
Tudo ou nada / Jennifer Lynn Barnes; tradução Regiane Winarski. - 1. ed. - Rio de Janeiro:
Alt, 2024.
(Os naturais ; 3)
1ª edição, 2024
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