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Resumo: A Educação de Jovens e Adultos (EJA) ainda é uma modalidade de ensino que
necessita de novos estudos e insights para que o seu funcionamento seja, de fato, po-
sitivo e produtivo para os alunos. Esses jovens-adultos necessitam da criação de novas
atividades didático-pedagógicas que estejam de acordo com a bagagem cognitiva des-
ses sujeitos, (KOCK 1997, 2002), (re)construída por meio de interação face a face (GUI-
MARÃES; MACHADO; COUTINHO, 2007). Poucos sabem que boa parte do conhecimento
linguístico desse público-alvo, reflete as práticas sociais exercidas durante as ativida-
des cotidianas em várias esferas sociais. Logo, atividades escolares que estejam cen-
tradas nas postulações evidenciadas pelo Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART,
1999) seriam, de início, uma boa medida para a solução de vários problemas no ensino
dessa modalidade.
Palavras-chave: Educação de jovens e adultos. Interacionismo sociodiscursivo. Ativi-
dades Pedagógicas.
1. Introdução
L
evando em consideração algumas abordagens evidenciadas no Projeto Instituci-
onal de Bolsas de Iniciação à Extensão – PIBIX (2010-2011) intitulado “A impor-
tância do tratamento dado à variação linguística no ensino de língua materna”,
da Universidade Federal de Sergipe (UFS), propomos um trabalho à luz de uma pers-
pectiva sociointeracional da linguagem, cujo propósito reside principalmente no plane-
jamento de atividades pedagógicas para a Educação de Jovens e Adultos (doravante
EJA) na área de língua portuguesa. É fato que, atualmente, essa modalidade de ensino
carece de abordagens de ensino-aprendizagem que deem oportunidade à sistematiza-
ção e valorização do conhecimento prévio dos jovens-trabalhadores construído nas
atividades mais comuns do cotidiano. Portanto, neste texto, trataremos da possibilida-
outras ciências as quais têm se vestido de solução para alguns problemas no tocante ao
ensino-aprendizagem de línguas na EJA; entre elas, elencamos a Linguística Textual, a
Psicologia Cognitiva e Social, a Filosofia da linguagem, a Antropologia, a Semântica
Argumentativa, o Interacionismo, a Análise da Conversação, a Literatura, a Etnografia
da Fala, as Ciências da Cognição, a Ciência da Computação, entre outras contribuições
que vão dando feição específica hoje ao ensino de língua portuguesa.
Atualmente, grande parte das propostas pedagógicas no ensino de nossa língua
ainda continua inserida numa concepção que privilegia a materialidade linguística, em
outras palavras, no aspecto formal, muito longe da possibilidade de diálogo com essas
outras ciências. O presente estudo, portanto, solidifica-se e ganha destaque no exato
momento em que se lança o seu objetivo principal – o de conceber ao ensino de língua
materna alternativas didático-pedagógicas que dialoguem com as competências, habi-
lidades e saberes desses aprendizes da EJA. Moura (2009, p. 45) intensifica esse argu-
mento ao dizer que hoje os professores “utilizam metodologias (técnicas, recursos, ati-
vidades) sem qualquer significado para os alunos-trabalhadores, desconsiderando o
contexto e a historicidade desses sujeitos”. Os professores então não possuem referen-
ciais teórico-metodológicos eficazes e próprios à área da EJA e, se possuem, não os uti-
lizam devidamente.
Os sujeitos sociais atuantes desse programa de ensino, “possuem saberes pré-
vios, inatos e intuitivos, nos contextos em que estão inseridos e na cultura marcada-
mente letrada, antes mesmo de ingressar no sistema formal” (MOLLICA; LEAL, 2009, p.
7). Diante disso, a escola ainda precisa rever seus conceitos e visões perante essa reali-
dade e começar a construir caminhos que tenham como premissa o respeito ao desen-
volvimento sociocognitivo e interacional diferenciado desses alunos. Nesse sentido, é
importante salientarmos a questão do letramento social para a criação de atividades
didático-pedagógicas que tenham como foco principal as experiências de mundo des-
ses jovens-adultos.
O desafio o qual almejamos se concentra estrategicamente no uso e na valoriza-
ção desse conhecimento adquirido no exercício da cidadania e, especialmente, dos pa-
péis sociais que cada sujeito revela nas suas práticas sociointeracionais. A ênfase no uso
desse conhecimento permitirá “a compreensão das características e especificidades dos
alunos nos aspectos antropológico, histórico, filosófico, cultural, psicológico, sociolin-
guístico” (MOURA, 2009, p.47). Para isso, é importante que o professor crie e desenvol-
va, juntamente com os alunos, numa perspectiva de mediação, processos metodológi-
cos exclusivos e inovadores que possibilitem aos sujeitos a ampliação de suas habilida-
des de leitura e escrita, como também de interpretação, compreensão e construção de
sentidos para o texto.
Essas práticas continuam a ser um dos maiores desafios para a educação brasi-
leira e, sobretudo, para os próprios educadores, porém, elas ainda não fazem parte dos
Projetos Político-Pedagógicos das escolas e, se fazem, os próprios gestores, professores,
silenciam, passando a questão como um problema despercebido e irrelevante. Moura
(2001, p. 105) tem essa mesma visão e, como educadora, mostra-se inconformada com a
situação do ensino brasileiro ao dizer muito bem que “não é possível continuar impro-
visando educadores e alfabetizadores de Jovens e Adultos. Não é possível continuar-
mos ‘zarolhos’ olhando enviesados como se a Educação e Alfabetização de Jovens e
Adultos fossem uma prática extemporânea e passageira”. Pelo fato de essa modalidade
de ensino ter um curto prazo para formação escolar, os professores acabam por impro-
visar suas aulas, destacando apenas aquilo que é essencial em cada área de ensino, sem
considerar, portanto, as especificidades e particularidades de cada atividade educativa
ou mesmo dos próprios alunos-trabalhadores.
Ainda, neste século, permanece essa despreocupação e o silêncio de muitas ins-
tituições de ensino em rever seus métodos de ensino-aprendizagem. A prática pedagó-
gica, desse modo, fica à mercê da boa vontade ou não dos educadores de crianças e
adolescentes do Ensino Fundamental que atuam, também, na Educação de Jovens e
Adultos. Segundo Moura (2009, p. 49), a consequência disso “é o desenvolvimento de
uma prática pedagógica pobre para alunos tratados como pobres cognitiva e cultural-
mente”. Se o cognitivo e o social constituem o ponto central das discussões sobre esse
programa de ensino, é quase impossível discutir sobre a criação dessas novas ativida-
des escolares sem levar em consideração o conhecimento de mundo desses jovens. Mas
o grande problema disso tudo está na escolarização a qual pesa e muito sobre o conhe-
cimento enciclopédico. Mollica e Leal (2009), ao discutirem sobre essa temática, susci-
tam a importância de se buscar formas pedagógicas inovadoras a fim de se fixarem
habilidades tipicamente aprendidas na escola. Porém, essa possível abordagem precisa
estar inserida nas situações reais de vida desses alunos. A aprendizagem deles advém e
é moldada conforme as exigências básicas do mundo do trabalho, consequentemente,
pela necessidade de interagir com as diferentes situações sociocomunicativas. É, então,
a partir dessa dinâmica de convivência que esses sujeitos sociais começam a ampliar
suas estratégias de aprendizagem e passam, posteriormente, a assimilar e internalizar
os conhecimentos construídos coletivamente dentro e fora da escola.
Não obstante, é a variedade da faixa etária desses jovens/adultos que também
influi no nível de letramento escolar. A origem social e econômica marca, pois, de ma-
neira fatal e inevitável, a carreira escolar desses indivíduos. Diante disso, podemos
considerar que o letramento social afeta significativamente o letramento escolar. “Não
é possível, então, pensar uma ação educativa para esses sujeitos sem que os conheci-
mentos herdados pelo letramento social sejam valorizados e compreendidos pelo pro-
fessor-alfabetizador” (MOLLICA; LEAL, 2009, p. 58). Se esse professor começasse a com-
preender como esses alunos distribuem, argumentam, estabelecem e transferem o co-
nhecimento da vida fora da escola, evitar-se-iam conflitos na relação ensino-
aprendizagem e começariam a criar atividades cujo foco principal seria a bagagem
cognitiva desses indivíduos construída por meio de processos sociointeracionais.
Segundo Soares (2003), além das exigências formativas, o preparo do professor
que trabalha na EJA deve envolver as necessidades relativas à complexidade diferencial
dessa modalidade, em outras palavras, às particularidades cognitivas e sociais desses
jovens-aprendizes. Atualmente, os vários núcleos de formação desses professores apre-
Após algumas discussões em torno dos estudos sobre a questão da interação so-
cial na EJA, criamos esse tópico com o objetivo de instrumentalizar essas reflexões teó-
rico-analíticas e utilizá-las na sala de aula dessa modalidade de ensino. Para isso, sele-
cionamos um texto para a análise da fala espontânea desses alunos e escolhemos, tam-
bém, um gênero textual que melhor dialogasse e que respeitasse não só o domínio lin-
guístico-discursivo desses sujeitos, como também a bagagem sociocognitiva que eles
trazem do mundo externo, pois essa poderia servir de base para uma melhor compre-
ensão do texto.
Desse modo, preferimos utilizar o gênero textual autobiografia para o trabalho
com esses jovens e adultos por ser um tipo de texto coerente com a vida desses indiví-
duos. O tema “história de vida” (autobiografia) está presente nas atividades cotidianas
de linguagem, de interação e do próprio público-alvo – os alunos da EJA. Contar/ es-
crever a sua própria história de vida ou ouvir/ler a nossa história e a de outros sujeitos
é bastante interessante. Ao contar e/ou ler histórias de vida, o indivíduo aprende a criar
e reconhecer realidades singulares mobilizadas pela linguagem. Apesar de uma histó-
ria nunca ser igual à outra, todas têm um ponto em comum, isto é, ao serem
(re)contadas ou (re)lidas ganham vida por meio do uso da linguagem.
Partindo dessa premissa, o ponto crucial para a escolha do gênero autobiografia
se fez na fácil busca de sentidos para o texto, ou melhor, para a melhor compreensão
da realidade a qual vivenciam os alunos da EJA. Em contrapartida, atualmente, muitos
professores de línguas, por exemplo, assemelham a capacidade cognitivo-discursiva
desses aprendizes com a dos alunos do curso regular, seja do ensino fundamental, seja
do médio. Essa realidade seria, portanto, inviável para o trabalho com a língua e suas
manifestações nos processos interativos. Levar algum texto de entendimento complexo
à sala de aula, e que fosse de encontro aos níveis cultural, histórico, social e cognitivo
desses sujeitos sociais, dificultaria a compreensão do texto e, sobretudo, a (re)cons-
trução dos sentidos nos processos de interação discursiva.
No primeiro contato com esses estudantes jovens e adultos, percebemos ampla
insegurança quanto ao exercício de compreensão/interpretação de textos. Muitos che-
garam até a desistir quando descobriram que teriam de argumentar, comentar, sobre o
texto elencado para análise. Até antes mesmo da leitura do texto, muitos questionaram
se o texto seria de difícil compreensão ou que fosse de escrita complexa. Esta é, pois, a
realidade vista nas práticas de escrita e, sobretudo, de leitura, na modalidade de ensino
EJA. Muitos desses jovens só têm acesso a textos de autores renomados e que configu-
ram e/ou expressam temáticas amplamente distantes e distintas da realidade EJA. Esse
fato se torna tão verídico que quando começamos a descrever que o texto para análise
se trataria de um relato de vida, muitos alunos ficaram curiosos, pois queriam logo
saber de quem e/ou do que se tratava. Uma prova de que eles conhecem o gênero tex-
tual autobiografia e de que esse contexto de leitura seria adequado para o trabalho com
esse público-alvo, sobretudo, em se tratando do aspecto sociointeracional.
O texto elencado para análise intitulado “Um navio, um naufrágio” é o primeiro
capitulo da autobiografia de Valéria Piassa Polizzi (2003), que contraiu Aids aos 16
anos e que resolveu escrever sua história como um alerta autobiográfico para que mui-
tos outros jovens não se exponham as mesmas consequências da desinformação. Ela
expõe, sem meias palavras, como a doença mexeu com a sua vida e com seus sentimen-
tos na busca de uma identidade para si mesma. Após a leitura em sala de aula de tal
texto, os alunos da EJA aos poucos foram construindo e atribuindo sentidos para o tex-
to, como podemos observar nas três principais falas registradas com uso de gravador
de voz:
Texto 1
Eu acho que assim, se eu fosse, na parte dela, se eu fosse fazer um exame e descobrisse
que eu tinha pegado AIDS do meu namorado, eu deveria chegar pra ele, conversar e di-
zer que eu peguei, claro que foi dele e que pudesse fazer um exame pra ter uma certeza
e a ajudar entendeu? a outras pessoas a cuidar pra que não aconteça isso e que quando
tivesse relações usasse camisinha.
Texto 2
Eu acho interessante assim, o que ela imaginava, todos sonham com a primeira vez só
que foi tudo ao contrário do que ela esperava né? Como muita gente, muitas mulheres
ainda hoje, sonha com pétalas de rosa, uma música de fundo, coisa desse tipo e foi tudo
ao contrário. E junto com o sonho vem o pesadelo. E assim, eu, no caso dela, não teria
coragem de fazer o exame e se eu fizesse e dê-se positivo eu acho que, no meu caso, eu
entraria em depressão ou uma tentativa de suicídio devido à sociedade, pois a socieda-
de da gente é muito preconceituosa, sendo que eu tenho a mente muito aberta, pois eu
tenho conhecimento de que a AIDS não se pega com um aperto de mão, beber uma
água com o mesmo copo, isso eu tenho conhecimento, só que a sociedade tem esse co-
nhecimento e não usa, critica, se afasta, faz, em vez de ajudar, faz com que a pessoa se
afunde cada vez mais [...].
Texto 3
Eu acho que ela não contou a ninguém porque estava com AIDS para não decepcionar
os pais dela. Os pais não iam assim aceitar esse problema que ela ia passar num é? E ela
ia ficar um pouco afastada tanto dos amigos como a família poderia também afastar e se
ela não tivesse apoio ela podia se afundar. A violência também pode ser vista no texto,
eu conheço uma tia minha que passou a ser agredida pelo marido, mas ela não fala que
apanha, as pessoas presenciam, só que ela não toma iniciativa porque ele bate aí no ou-
tro dia, chega bonzinho, ai pega dá carinho a ela, ai ela acha que ele vai mudar e sempre
fica naquela esperança que ele um dia vai mudar, entendeu? achando que ele pode mu-
dar a cabeça dela e o tempo se passando e ela apanhando mais.
6. Conclusão
dores nas experiências de serem leitor e escritor, ativamente partícipes do vasto diálo-
go cultural e ideológico, ancorado e estabelecido nas práticas sociais do nosso dia a dia.
No interior dessa nova perspectiva, os pressupostos teórico-analíticos sobre a interação
social e discursiva serviram de suporte para possibilitar a concretização de tal desafio.
Se tomamos como público-alvo a Educação de Jovens e Adultos, foi com a finalidade
de alertar os educadores, gestores, pesquisadores etc. para a necessidade de criação de
novas abordagens para o ensino-aprendizagem e para que reflitam sobre a consciência
linguística e social desses jovens-trabalhadores partilhadas nos vários e vastos núcleos
de convivência a que cada um deles pertence; e para que, se educadores, gestores e
pesquisadores se julgam vozes sociais dominantes e introspectivas, que participem das
relações dialógico-interativas, seja no cotidiano do trabalho diário (papéis sociais), seja
na escola (práticas escolares e sociais).
Essa reflexão garante, no final das nossas discussões, a construção da cidadania,
da formação e valorização de crenças e valores existenciais individuais e coletivos e,
sobretudo, a inserção e reconhecimento social e cognitivo desses alunos na tentativa de
orquestrar suas realizações linguístico-discursivas nos espaços sociointeracionais aos
que lhe são submetidos. Diante de toda essa problemática no ensino, torna-se preciso,
então, como professores de línguas, elaborarmos exercícios de linguagem cujo propósi-
to diz respeito à capacidade de cada sujeito-trabalhador de apreender os aspectos do
universo do qual ele provém (conhecimento enciclopédico), e os organizar em mundos
representados (produção textual) via processos sociointeracionais. Desse modo, a ma-
neira pela qual esses sujeitos se estabelecem nesses mundos e as formas dinâmicas de
seus comportamentos das próprias ações delimitariam o propósito didático-
pedagógico de cada educador, nesse caso, de língua materna. Se a Educação de Jovens
e Adultos é sinônimo de interação social, partimos então para uma metodologia de
ensino-aprendizagem coerente e imersa neste fenômeno.
7. Referências
Depois daquela viagem: diário de bordo de uma jovem que aprendeu viver
POLIZZI, V. P.
com a Aids. São Paulo: Ática, 2003, p. 9-15.
VAN DIJK, T. A. Cognição, discurso e interação. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2004.
Resumo: Neste trabalho descrevemos como a instituição midiática Época produz sen-
tidos no discurso político ao construir uma leitura sobre as candidaturas à Presidência
da República de Marina Silva, Dilma Rousseff e José Serra, nas eleições de 2010. Parti-
mos da hipótese de que essa instituição midiática se coloca no lugar discursivo das eli-
tes sociais para enunciar o discurso político e, ao se colocar nesse lugar, exerce uma
tomada de posição que marca seu lugar de enunciação. Analisamos, assim, sequências
discursivas referentes aos candidatos Dilma Rousseff, Marina Silva e José Serra. Nesta
análise, tomamos como arcabouço teórico a Análise do Discurso de linha francesa, pois
examinaremos como uma instituição midiática é capaz de constituir-se em determina-
da ideologia e quais são as condições de produção dos seus enunciados acerca das
candidaturas.
Palavras-chave: discurso político; enunciação; ideologia
Considerações iniciais
O presente estudo tem como objetivo geral verificar os sentidos produzidos por
uma instância enunciativa sujeitudinal jornalista sobre uma instância enunciativa sen-
tidural candidato à presidência da República, e como objetivo específico descrever co-
mo uma instituição midiática produz sentidos do discurso político, ao construir uma
leitura sobre as candidaturas à presidência da República. Nessa perspectiva, tomare-
mos como corpus reportagens compiladas da revista Época referentes aos principais
candidatos à Presidência da República das eleições de 2010.
A hipótese aqui diz respeito à existência de uma parcialidade explícita, por par-
te dessa instância midiática, que coloca o direcionamento de uma posição de vincula-
ção político-fisiológica dessa instância à eleição do candidato José Serra do PSDB, por
ser o partido que sempre atendeu às necessidades das elites brasileiras no que tange ao
favorecimento político e econômico de determinados segmentos dessa sociedade, como
os banqueiros, os industriais, os latifundiários, os empresários do ramo de serviços e
transportes, entre outros segmentos de profissionais liberais que são sempre beneficia-
dos pela política fisiologista e clientelista do PSDB e dos Democratas.
Silenciamento
Análises
Foram selecionadas para o trabalho de análise três capas da revista Época, que
remetem aos candidatos à presidência da República Marina Silva, Dilma Rousseff e
José Serra. A análise dessas capas será feita de acordo com a ordem de publicação.
A primeira delas, publicada em 15 de agosto de 2009, traz a foto da candidata
do PV, Marina Silva, e a seguinte epígrafe: “Presidente Marina? Como a candidatura
de Marina Silva – a ambientalista admirada pela sua biografia e temida por suas ideias
radicais – embaralha o jogo eleitoral de 2010”.
Quanto à foto, é relevante descrever o ângulo em que foi posicionada. A candi-
data está com o pescoço inclinado para o lado e olha para cima, ao mesmo tempo em
que sorri. Além disso, essa capa tem o plano de fundo em tons verde, que constrói um
sentido de relação com o partido político da candidata, Partido Verde.
O fato de que Marina parece estar olhando para algum lugar distante produz
um sentido de que ela tem uma visão mais além, que ela enxerga à frente. Consideran-
do-se que as propostas de governo da candidata se baseiam em um desenvolvimento
sustentável, a direção do olhar da candidata, assim como o sorriso dela, representam a
crença que ela tem na possibilidade de promover o desenvolvimento do país de forma
diferente das propostas pelos demais candidatos.
No que concerne à epígrafe da foto, é relevante percebermos os sentidos que
emergem do enunciado “Presidente Marina?”. A interrogação colocada traz um senti-
do de dúvida em relação à possibilidade de a candidata ganhar a eleição. Há uma ten-
tativa, pela instância enunciativa sujeitudinal Época, de induzir o leitor a pensar: “Será
que ela ganharia a eleição?”. Esse sentido de dúvida, construído pela instituição midiá-
tica, silencia um sentido de certeza que esta tem de que Marina não ganhará a eleição,
mas que ela é capaz de provocar alterações nos resultados.
Em seguida, temos a presença do termo “ambientalista”, que se relaciona ao já
descrito plano de fundo da capa, e do enunciado “temida por suas ideias radicais.”
Este enunciado produz o sentido de que a candidata é uma ameaça aos demais devido
às suas propostas.
O adjetivo “radicais”, conferido às propostas, nos remete às formações discursi-
vas nas quais a candidata se inscreve para enunciar sua candidatura. Filiada ao Partido
Verde, de acordo com o que já foi dito, a candidata tem propostas que vão ao encontro
dos ideais dos ambientalistas e dos jovens brasileiros. Os ideais são considerados radi-
cais pela dificuldade encontrada nas tentativas de se promover o crescimento do país
sem devastar o meio ambiente.
Assim, a partir do momento em que a candidata aproxima suas ideias das de
um público consideravelmente grande, ela se torna uma candidata em potencial que
“embaralha” a disputa presidencial.
É relevante, aqui, explicitar as condições de produção do acontecimento discur-
sivo Eleições 2010, uma vez que o termo “embaralha” alude ao fato de que os candida-
tos de maior representação, em termos de intenção de votos, são Dilma Rousseff e José
Serra. Nesse sentido, ao conquistar um grupo definido de eleitores, Marina Silva recebe
votos que poderiam ser de um desses candidatos, o que coloca em dúvida a ideia que
estava sendo construída pela mídia: o ganhador seria Serra ou Dilma. Essa incerteza
quanto ao resultado da eleição silencia o sentido de que Época percebe a possibilidade
que a candidata do PV tem de ganhar, o que evidencia uma tentativa da instituição de
enfatizar seu apoio ao candidato tucano e sua desidentificação com a candidata petista.
Passemos, agora, à análise da capa da edição publicada em 14 de agosto de
2010. Nesta, verificamos a foto da candidata do Partido dos Trabalhadores Dilma Ro-
usseff, e a inscrição “Dilma Rousseff: aos 22 anos, fichada pelo Dops em São Paulo”, e a
epígrafe “O passado de Dilma: documentos inéditos revelam uma história que ela não
gosta de lembrar – seu papel na luta armada contra o regime militar.”
À primeira vista, chama-nos a atenção a foto da candidata aos 22 anos. A foto,
assim como o fundo da capa, está nos tons preto e branco e, do lado direito da foto,
notamos a presença de uma figura que lembra uma parte de um carimbo. É relevante
explicitar que essa figura é o único detalhe colorido da foto: o carimbo é vermelho.
As cores utilizadas e o carimbo nos remetem a fichas, ou seja, a imagem ilustra
a informação contida na inscrição, a de que a candidata foi fichada no DOPS – Departa-
mento de Ordem Política e Social – de São Paulo. Este órgão, criado em uma época em
que o regime político brasileiro era centralizado e autoritário, tinha a função de contro-
lar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.
A escolha da imagem da ficha da candidata constrói um sentido de remissão ao
passado de Dilma, o que é uma evidência da tentativa, por parte da instituição midiáti-
ca, de chamar a atenção do leitor para algo comprometedor que a candidata teria feito
em sua juventude. Há, também, a produção de um sentido que confere um caráter pe-
jorativo a ela, pelo fato de já ter sido fichada.
Em seguida, temos a epígrafe da foto. O título “O passado de Dilma”, escrito de
forma bem destacada, produz, assim como a imagem, a evidência de que há um desejo
da instituição midiática de tornar público o passado da candidata. O próximo enuncia-
do, “Documentos inéditos revelam”, produz o sentido de que há provas da veracidade
do que será publicado por Época, além de evidenciar, por meio do uso do item lexical
“revelam”, uma tentativa de polemizar algum acontecimento relevante que teria sido
acobertado no passado de Dilma. Essa expectativa criada pela instituição produz o
sentido de que algo ilícito teria sido feito pela candidata e o partido dela não divulgou.
Essa tentativa é um indício de que a instituição midiática se desidentifica com a candi-
data.
É relevante explicitar, também, que há um diálogo entre o termo “revelam”, que
significa “fazer conhecer algo que estava encoberto”, e o próximo enunciado, “uma
história que ela não gosta de lembrar”. A construção desse diálogo evidencia uma ten-
tativa de Época de reiterar a relevância do que será lido na edição sobre a candidata,
por se tratar de algum escândalo, além de intensificar um efeito de curiosidade, cuja
produção é perceptível nos itens já analisados. Percebemos, aqui, outra regularidade
que aponta para um processo de desidentificação entre Época e Dilma.
Para finalizar, temos o enunciado “seu papel na luta armada contra o regime
militar”, cuja construção intensifica ainda mais a expectativa do leitor, uma vez que
relaciona a candidata Dilma Rousseff a um dos períodos mais críticos e polêmicos pelo
qual o Brasil passou, a ditadura.
Assim, ao afirmar que fará uma revelação sobre algo obscuro do passado da
candidata, cria uma expectativa em torno disso, colocando uma foto em que ela apare-
ce como uma pessoa fichada, enunciando que se trata da representação de Dilma na
época da ditadura, a instituição midiática Época constrói uma imagem negativa da can-
didata.
Podemos afirmar que há, então, um posicionamento de desidentificação da ins-
tituição com a candidata do Partido dos Trabalhadores Dilma Rousseff, uma vez que
são evidentes as tentativas de se construir uma imagem negativa da candidata.
Analisaremos agora a capa da edição publicada em 4 de setembro de 2010, que
se refere ao candidato José Serra. Na capa, com um plano de fundo completamente
negro, temos uma foto do candidato com um semblante sério, vestido formalmente e
com a face direita levemente sombreada. A epígrafe dessa foto é “A cartada de Serra –
em queda nas pesquisas, o tucano vai ao ataque e explora o crime cometido contra sua
filha para tentar chegar ao segundo turno.”
Começando a análise pela foto, podemos afirmar que o fato de o plano de fun-
do ser negro e a face direita do candidato estar um pouco sombreada constrói um sen-
tido de surgimento do candidato, como se este estivesse “saindo das sombras”. Um
detalhe relevante é que as vinhetas da capa, que em outras edições tendem a receber
uma faixa colorida que as distingue do restante da capa, estão dispostas sobre o mesmo
fundo negro da foto e contêm somente palavras, o que produz um efeito visual de
maior destaque.
Quanto à epígrafe, podemos afirmar que seu título, “A cartada de Serra”, es-
crito em tom laranja escuro, produz um efeito de imponência e decisão, como se o can-
didato tivesse descoberto algum recurso que decidiria as eleições.
No enunciado seguinte, “Em queda nas pesquisas”, temos uma informação que
complementa e explica o título analisado anteriormente. Juntamente com o próximo
enunciado, “o tucano vai ao ataque”, percebemos um diálogo que é construído entre os
enunciados e a foto. Como foi explicitado anteriormente, na imagem, o candidato pare-
ce estar “surgindo das sombras”, metáfora essa que representa o fato de José Serra es-
tar em segundo lugar e de ter encontrado um meio para modificar essa situação.
Em seguida, temos o enunciado “explora o crime cometido contra sua filha”, do
qual é relevante explicitar as condições de produção. Na semana anterior à publicação
da edição em análise, foi descoberto que o sigilo fiscal da empresária Verônica Serra,
filha de José Serra, havia sido violado. Esse fato foi tratado, conforme percebemos na
capa em análise, como um crime de extrema gravidade, o que é uma evidência de uma
tentativa da instituição midiática de intensificar um acontecimento que, normalmente,
não causa grande impacto nos leitores.
Ainda no que concerne a esse enunciado, considerando as suas condições de
produção, verificamos o silenciamento do envolvimento da candidata do PT Dilma
Rousseff no caso. Essa informação silenciada é percebida pelo fato de essa candidata
ser a maior concorrente de José Serra, o que seria uma justificativa para sua inclusão no
acontecimento. Esse silenciamento produz evidências de que a instância enunciativa
sujeitudinal não se identifica com Dilma.
No último enunciado, “para tentar chegar ao segundo turno”, percebemos um
tom de reconhecimento, pela instituição midiática, de que a exploração dos aconteci-
mentos em foco, pelo candidato José Serra, pode ser uma solução para modificar o re-
sultado da eleição que, segundo as pesquisas divulgadas naquela semana, seria decidi-
da já no primeiro turno.
Ao analisarmos a capa da edição que alude ao candidato José Serra, podemos
afirmar, principalmente pela tentativa de se agravar o acontecimento relatado, que a
instância enunciativa sujeitudinal Época possui identificação com o candidato do PSDB.
Considerações finais
Referências bibliográficas
Para que se possa entender a influência discursiva contida nas relações huma-
nas, cumpre entender primeiramente a importância da linguagem para a construção
dessas relações, a partir do entendimento de que a linguagem não tem uma existência
anterior ao homem e que ela é um construto – e construtora – de um conhecimento que
ocorre a posteriori.
Esse tipo de pensamento defende, portanto, que o conhecimento acontece na
práxis, não sendo, desse modo, revelado, mas, sim, construído e com capacidade de
construir. Contudo, várias correntes de pensamento preocuparam-se não só com a
produção do conhecimento no cotidiano, mas também com o uso dos significados, das
fixações de determinados sentidos, das articulações dialéticas e com as intencionalida-
des do discurso presentes na tentativa de uma representação fixa da realidade.
Partindo-se então do pressuposto de que a representação da realidade não é
constante e eterna, podemos dizer que representamos a realidade por meio de nossa
Penso que deveríamos iniciar nossa jornada filosófica pela tentativa de compreender o
conhecimento como parte da relação do homem com sua ambiência, esquecendo, por
enquanto, as dúvidas fundamentais que estivemos a considerar. Talvez a ciência mo-
derna nos capacite a ver problemas filosóficos sob uma nova luz. Nessa esperança, va-
mos examinar a relação do homem com o seu meio, com o intuito de chegar a uma vi-
são cientifica do que constitui o conhecimento (RUSSELL, 1977, p. 20).
Para Russell, não basta a análise subjetiva entre linguagem e conhecimento, a fi-
losofia da linguagem precisa levar em consideração, portanto, o contexto, o ambiente,
as relações sociais, culturais, políticas e econômicas que constroem e são construídas no
âmbito do discurso. Nesse sentido, ele vai destacar então a importância de uma análise
objetiva, pois não parte do princípio de linguagem como algo a priori e transcendental,
mas, sim, como algo que constrói e se constrói no campo da discursividade.
Diante disso, vale lembrar que foi por meio do reconhecimento da necessidade
de se compreender a relação do homem que a teoria pragmática2, a qual defende a in-
vestigação do uso da linguagem no cotidiano, ganhou destaque e relevância em vários
campos do conhecimento, como a linguística e a teoria do conhecimento.
Os teóricos pragmáticos, considerando a linguagem como a interação que ocor-
re entre seus usuários, entendem que é necessária a análise de sua práxis. Ela subdivi-
de-se em duas correntes de pensamentos. Uma chamada “contextualista”, que conside-
ra estritamente o contexto, e outra chamada “performativa” que entende a linguagem
como ação e como realização de atos, e não apenas como uma descrição do real (MAR-
CONDES, 2006, p. 220).
A análise pragmática performativa considera o contexto e a ação como lingua-
gem, e pode ser explicada a partir da noção de “jogos de linguagem”, de Wittgenstein,
e de “atos de fala”, de Austin. Wittgenstein desenvolveu seu conceito de “jogos de lin-
guagem” a partir do entendimento de que o uso da linguagem não é algo fixo, e que
não serve apenas para descrever a realidade somente pelo contexto, pois falante e ou-
vinte também utilizam a linguagem por meio de suas intenções e interesses. Diferen-
temente então da análise contextualista, que só considera a fala em seu contexto histó-
rico e coletivo, a pragmática performativa considera também a fala individual, a inten-
cionalidade (particular) do falante. A responsabilidade do sujeito, portanto, torna-se
mais evidente e não é obscurecida pela justificativa social, pois o social pode, obvia-
1 O método indutivo é um método em que, na análise de algo, utiliza a coleta de dados particu-
lares para aplicar ao todo.
2 Campo de estudo da linguagem em seu uso concreto que se constitui a partir da experiência
mente, explicar determinadas condutas, mas não pode ser considerado como único
meio de análise, sob pena de se reduzir interesses particulares a interesses coletivos.
Não se pode pensar, entretanto, que a análise performativa desconsidera o con-
texto; ela apenas não se reduz a ele. Na noção de Wittgenstein, a linguagem é descrita,
portanto, como um jogo no qual as relações envolvem contexto, objetivos específicos,
interesses particulares, interação e intersubjetividade.
Segundo Wittgenstein, o significado não deve ser entendido como algo de fixo e deter-
minado, como uma propriedade inerente à palavra, mas sim como a função que as ex-
pressões lingüísticas exercem em um contexto específico e com objetivos específicos. O
significado pode, por conseguinte, variar dependendo do contexto em que a palavra é
utilizada e do propósito deste uso (MARCONDES, 2006, p. 221).
trata-se basicamente de uma visão filosófica segundo a qual o estudo da linguagem de-
ve ser realizado em uma perspectiva pragmática, ou seja, enquanto prática social con-
creta, examinando, portanto a constituição do significado lingüístico a partir da intera-
ção entre falante e ouvinte, do contexto de uso, dos elementos sócio-culturais pressu-
postos pelo uso, e dos objetivos, efeitos e conseqüências desse uso (MARCONDES, 2000,
p. 40).
Os críticos desta teoria alegam que a ação, neste caso, prevalece sobre o contex-
to, pois ela centra-se no falante individual e desconsidera, segundo eles, o contexto.
Entretanto, apesar de considerar a linguagem a partir de elementos contextuais, ela
leva também e, principalmente, em consideração as intenções do falante nesse contexto
na medida em que reconhece ser necessário analisar o que pode estar explícito (ou im-
plícito) na fala, além do que está sendo transmitido pelo contexto. Em síntese, pode-se
dizer que ao se considerar a fala individual não se exclui o contexto em que ela está
inserida, apenas se amplia as noções acerca das funções da linguagem, considerando-a
para além dos seus limites contextuais, na medida em que se entende seu possível uso
a partir de interesses particulares.
Conforme comenta Marcondes, “as intenções são consideradas como psicológi-
cas e, portanto, subjetivas; embora, em última análise, se originem de práticas sociais” [grifo
meu] (2006, p. 225). Isto significa que, mesmo sendo subjetiva, ou melhor, particular, a
intenção se desenvolve em decorrência de nosso “estar no mundo”, de nossa relação
com o mundo que nos cerca, de nossa ação. Desse modo, como afirma Marcondes, ape-
sar de fazer parte do sujeito, nossas intenções não ocorrem em um sujeito que está iso-
lado no mundo, mas, sim, em um sujeito que se relaciona com o mundo em que vive,
no contato com seu ambiente, com as pessoas que lhe cercam e com as situações vivi-
das por ele.
Em contrapartida, Marcondes considera que a linguagem, mesmo sendo origi-
nária das práticas sociais, não pode ser reduzida a uma análise somente de sua práxis,
ou seja, da ação de indivíduos que se relacionam entre si, na qual todo dizer é um fa-
zer. Marcondes chama a atenção para o fato de que a linguagem não pode ser analisa-
da somente por meio da estrutura formal da sentença e pela semântica dos termos uti-
lizados, pois a própria ação do sujeito e suas intencionalidades recebem influências de
uma série de fatores que o envolvem. O estudo da linguagem, portanto,
gente sobre os temas analisados. Além disso, a análise política do discurso pode ser
contribuinte de uma dinâmica sob a qual é ressaltado o papel do sujeito e de como um
significante está sendo significado, ou seja, quais são os interesses que se ocultam no
ato de se atribuir sentido a um signo linguístico.
Assim sendo, considerando a intencionalidade do indivíduo presente na lin-
guagem, vale ressaltar que, na análise dos discursos na vida cotidiana, não se pode
deixar de pensar no que Foucault chama de “vontade de verdade”. Segundo ele, a von-
tade de verdade se impõe sobre outros discursos, produzindo uma sobreposição com
poder de definir e conceituar como uma espécie de pressão coercitiva. É ainda pela
vontade de verdade que se orientam a palavra proibida e a segregação.
Dos três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, a se-
gregação da e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais longamente. É que,
há séculos, os primeiros não cessaram de orientar-se em sua direção, é que cada vez
mais, o terceiro procura retomá-los, para sua própria conta, para, ao mesmo tempo,
modificá-los ou fundamentá-los (FOUCAULT, 1996, p. 19).
As palavras, por um longo e familiar uso, despertam, como acabamos dizer, algumas
idéias no espírito, de um modo tão constante e com tal prontidão que os homens são le-
vados a supor que há uma ligação natural entre ambas. Mas que as palavras não signifi-
cam senão as idéias particulares dos homens e isto por uma imposição perfeitamente arbi-
trária, é o que evidentemente aparece no facto de elas nem sempre despertarem no espí-
rito de outros (mesmo quando falam a mesma língua) as mesmas idéias de que supo-
mos elas serem os sinais. E cada um tem tão inviolável liberdade de fazer com que as
palavras signifiquem tais idéias, que ninguém tem o poder de fazer com que outros te-
nham no espírito as mesmas idéias que ele propriamente tem, quando se serve das
mesmas palavras [grifo do autor] (LOCKE, 1999, p. 550).
Dessa forma, apesar de um termo não ter um a priori nem um sentido universal
e eternamente fixo, ele não é arbitrário, pois se o fosse, não seria vazio, mas equivoca-
do, dadas as suas consequentes ambiguidades. Considerar, desse modo, “que o mesmo
significado possa ser vinculado a distintos significados em diferentes contextos” é um
erro, pois “impediria de fixá-lo plenamente” (id. p. 70). Isso nos faz perceber que, ocor-
re, certamente, uma fixação, mas esta fixação não se estabelece de modo eterno e imu-
tável. A fixação de um sentido, ainda que seja plena, será plena em relação a algo, ou
seja, plena em sua aplicação a determinado termo e não em relação a um conceito uni-
versal.
Porém, esta imanência linguística em torno de significantes vazios é o locus sine
qua non para o estabelecimento da hegemonia, ou seja, em decorrência dessa imanência
discursiva, o significado é aproveitado segundo interesses próprios de um dado sujei-
to, pois é imanente ao próprio sistema discursivo deste sujeito. A imanência discursiva
dos significantes concebe em si, como parte deste “todo” discursivo, todas as possíveis
interpretações, desde que não tenham equívocos. Essa imanência, da mesma forma que
cede espaço para uma pluralidade de significados, cede espaço também para a fixação
de um sentido absoluto que é fundamental para o estabelecimento de um discurso he-
gemônico que aproveita a imanência para se estabelecer e se fixar.
A hegemonia emerge, segundo Laclau, da “interação política entre os grupos”
ou da “apresentação da particularidade de um grupo”, e sua operacionalização ocorre,
assim como os sentidos, numa dimensão de contingência, e não de uma necessidade
justificada por essências, por meio da “imposição de um princípio organizacional pree-
xistente” (id., p. 83). Para Laclau, vale lembrar também que a hegemonia não é resulta-
do de um contrato, como definido por Hobbes; não é preciso estar relacionada ao espa-
ço público, como definido por Hegel nem diz respeito à visão marxista de que a classe
proletária seria a classe universal, mas, sim, o resultado dialético entre a lógica da dife-
rença e a lógica da equivalência.
Os atores sociais ocupam posições diferentes no interior daqueles discursos que consti-
tuem o tecido social. Neste sentido, elas são, estritamente falando, particularidades. Por
outro lado, há antagonismo sociais que criam fronteiras internas na sociedade. A respei-
to das forças opressivas, por exemplo, um conjunto de particularidades estabelece entre
si relações de equivalência (LACLAU, 2004, p. 13).
O sujeito fundador, com efeito, está encarregue de animar diretamente com suas pre-
tensões as formas vazias da língua; é ele que, ao atravessar a espessura ou a inércia das
coisas vazias, capta, na intuição, o sentido que se encontra aí depositado [...] (FOU-
CAULT, 1996, p. 18).
Assim sendo, o sujeito fundador de Foucault é aquele (ou aqueles) cujo interes-
se o leva a preencher significantes vazios, com a pretensão de fundar soberanamente
elementos discursivos, de acordo com sua intencionalidade, movida por uma vontade
de verdade que representa os interesses e objetivos desse sujeito.
Em outras palavras, pode-se dizer que as lutas hegemônicas de um determina-
do segmento, que também pode ser chamado de sujeito fundador1, podem ser caracte-
rizadas considerando-se o preenchimento (sempre estratégico) de um significante va-
zio.
Essa articulação hegemônica pode ser definida, por exemplo, a partir da supres-
são do particular em relação ao universal, ou seja, quando uma particularidade passa a
ser representada como universal, desprezando e descaracterizando as diferenças ine-
rentes às particularidades. Laclau afirma que “o universal não é outra coisa senão um
particular que em certo momento passou a ser dominante” (1996, p. 53). Segundo essa
afirmação, conclui-se então que não há um universal que se particulariza, mas, sim,
uma particularidade que pode ser universalizada. A disputa por uma representação
universal ocorre, então, entre particulares, ou seja, um particular pretende se sobrepor
a outros particulares, suprimindo-os. Entretanto, a universalização desse particular é
assimilada, de modo geral, como algo transcendental; o processo de universalização é
entendido, erroneamente, como uma característica natural da realidade e não como
algo que foi construído intencionalmente com o fito de se universalizar e conquistar
uma hegemonia, na medida em que suprime outros modos particulares de conceber a
realidade. Desse modo, comenta Laclau: “Como afirmamos, esses meios de representa-
ção só podem consistir em uma particularidade, cujo corpo se divide, uma vez que,
sem deixar de ser particular, ela transforma seu corpo na representação de uma univer-
salidade que o transcende” (2004, p. 13).
Em relação aos processos identitários, a supressão do particular tenciona ho-
mogeneizar o processo de identificação a partir da noção de um sujeito universal su-
primindo as diferenças em nome de uma identidade absoluta.
Na visão clássica, como ressalta Laclau, o termo universal não era problemati-
zado, pois não se considerava uma universalização identitária do sujeito, mas, sim, que
o sujeito partilhava com seus semelhantes particularidades não antagônicas. A univer-
salidade torna-se então uma particularidade totalizante. Laclau comenta então que “o
conjunto das particularidades não antagônicas reconstruía, pura e simplesmente, a
1 Podemos conceber este sujeito desde um indivíduo até mesmo um grupo, ou um sistema. O
termo “sujeito” é aqui ampliado para além da acepção individualizante do termo.
noção de totalidade social, a clássica noção do universal não era em absoluto posto em
questão” (1996, p. 57).
Devemos, portanto, considerar que há uma diferença entre se falar de “particu-
laridades não antagônicas” e não de um “universalismo das particularidades” do sujei-
to. No primeiro caso, considera-se uma totalidade social, na qual coexistem, de forma
natural, particularidades afins, que se combinam entre si, e não se questiona, neste ca-
so, a tentativa intencional de tornar o particular em universal; já no segundo caso, inse-
re-se uma visão crítica que pretende realçar as relações hegemônicas que tencionam
transformar, de forma convencional, o particular em universal.
No entanto, Laclau considera, ao mesmo tempo, sobre a impossibilidade de
uma plena unificação do real. Assim, não há um processo vitorioso de unificação eter-
na, pois o discurso não consegue dar conta de uma unificação plena e totalizante. A
imanência discursiva aceita todo e qualquer discurso, o que torna impossível uma fixa-
ção plena e eterna de um dado sentido.
Podemos exemplificar por meio do significante vazio “cultura nacional”. Se-
gundo Hall (1998), a cultura nacional procurou unificar a identidade cultural a fim de
suprimir, como um processo de afirmação identitária, os conceitos de classe, gênero e
raça. Considera-se sob esse aspecto que a cultura nacional pode desconsiderar diferen-
ças existentes em seu interior. Segundo ele afirma, então, a cultura nacional tenta im-
por um comportamento a partir de uma rede de significados que prioriza uma identi-
dade nacional. Entende-se com isso que “a cultura nacional é, portanto, uma estrutura
de poder cultural que tenta impor uma hegemonia cultural mais unificada” (1998, p.
46).
Partindo dessas análises, percebe-se que a diferença pode não ser tão reconhe-
cida na sociedade porque a identidade adota no senso comum a ideia de uniformidade.
Sobre isso, comenta Hall: “Na linguagem do senso comum, a identificação é construída
a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal”
(2000, p. 106).
A supressão do particular pode ser, portanto, um mecanismo de impedir o re-
conhecimento às diferenças, na medida em que não reconhece a heterogeneidade. A
diferença cede, então, espaço para o conceito de universalidade e isso leva à discussão
acerca dos processos identitários, que buscam o reconhecimento às suas diferenças e
que chamam a atenção para a ampliação arbitrária (e não problematizante) do conceito
“identidade”.
A ampliação e consequente universalização do conceito de identidade, que não
considera a identidade como algo também individual e, portanto, fragmentado, pode
levar a um esvaziamento de seu sentido de tal modo a impossibilitar uma operaciona-
lização do termo, impedindo assim um questionamento de seu significado.
Se considerarmos, por exemplo, a identidade apenas como ter cidadania, estarí-
amos reduzindo o próprio uso de seu conceito, pois a identidade é algo mais complexa
do que a normatização do sujeito em uma sociedade. A identidade, sendo algo que
penetra na individualidade de cada um, traz os anseios, os desejos, o jeito de cada um,
ao mesmo tempo em que revela modos de vida diversos. Não poderíamos deixar de
admitir, então, que a identidade é um conceito plural que serve para definir o outro e a
nós mesmos e não apenas para definir de forma unívoca todo um coletivo social.
Além disso, Hall (1998) comenta que a identidade é modificada em relação aos
interesses do sujeito. Isto significa dizer que ela pode ser alterada a qualquer momento.
A identidade é então um significante vazio que pode ser preenchido com várias possi-
bilidades de sentido. A variação de sentidos que uma identidade pode adquirir, faz
com que ela possa ser negociada de acordo com a posição do sujeito em seu contexto e
modificada de acordo com seus interesses.
Diante do que foi exposto, conclui-se a importância de uma análise discursiva
que não se reduz apenas às questões econômicas e lutas de classe que não contemplam
a individualidade do sujeito, na medida em que só considera critérios extremamente
coletivistas. Ao mesmo tempo, ressalta-se uma análise discursiva que não parte, exclu-
sivamente, de análises muito subjetivistas e não reconhecem o sujeito em seu meio-
ambiente, compreendendo assim todo um contexto relacionado à sua vivência.
A proposta de análise do discurso, descrita neste texto, busca, então, ressaltar a
compreensão sobre o modo pelo qual acontecem os processos discursivos a partir da
perspectiva das relações entre sujeitos, que faz com que o discurso consiga ganhar re-
presentatividade, determinando-se por meio das contingências, negociações e emer-
gências factuais constantes em nosso dia-a-dia.
Referências bibliográficas
_____. “Quem precisa de identidade?”, in: SILVA, T. T. da. (org.). Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000, p.
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http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_filosofia/vol7n3/ar
t01_marcondes.pdf. Acessado em 12/09/2010.
PLATÃO. Diálogos: Teeteto. Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da Uni-
versidade Federal do Pará, 1988.
Introdução e objetivos
1 Este trabalho foi desenvolvido no segundo semestre de 2009, durante a disciplina Sintaxe da
Língua Portuguesa, ministrada pela Profª. Drª. Flávia Bezerra de Menezes Hirata-Vale.
E a partir da observação que se faz delas, conclui que o locutor optou por cortar
em duas frases o que poderia juntar em uma só. Além de que usa o coordenador, ape-
sar do corte. Se não houvesse o corte a coordenação seria intrafrasal, mas o estatuto
sintático se manteria.
No caso de se suspender o uso dos coordenadores e, mas e ou, o processo de co-
ordenação seria assindético. E assim, haveria a perda da garantia da coordenação.
Nesse sentido notamos que Neves nos apresenta uma perspectiva de conjun-
ções coordenativas muito diferente das que foram ensinadas por muito tempo em vá-
rias instituições do passado, e ainda do presente, que se baseiam na noção gramatical
calcada por um conjunto de regras e estruturas gramaticais.
Neves parte para a noção de conjunções coordenativas num sentido em que o
normativo se integra ao social e ao discursivo, levando em consideração a relação do
sujeito com a língua e as diversas possibilidades de significação que a sintaxe e a se-
mântica podem produzir (no que diz respeito, nesse caso, somente às conjunções coor-
denativas) ao se articularem colaborativamente.
Tendo por base esses e outros dados2 apresentados na pesquisa de Neves, tenta-
remos criar um trabalho que proponha a elaboração de uma aula interativo-reflexiva
acerca das conjunções coordenativas, buscando mobilizar os alunos do 9.˚ ano a nota-
rem a importância prática e funcional das conjunções coordenativas e a maneira como
direta ou indiretamente elas se inserem no cotidiano.
Metodologia
2 Alguns desses outros dados da pesquisa de Neves serão explorados no momento de elabo-
rarmos nossa metodologia.
[...] A catalogação das classes foi a atividade apontada na pesquisa como a mais fre-
qüentemente explorada nas aulas de gramática. [...] O primeiro ponto que deve ser in-
dicado é que 100% dos professores entrevistados afirmam ensinar gramática. Uma con-
clusão muito grave que se tira dos resultados da pesquisa, porém, é que os professores
confessam acreditar que seu trabalho com o ensino da gramática “não serve para nada”.
Desenvolvimento
tica de Cereja & Magalhães: Gramática reflexiva: texto, semântica e interação (São Paulo:
Atual, 1999). A escolha dessa gramática em detrimento de várias outras se deu pela
maneira como distribui esse conteúdo partindo para uma abordagem reflexivo-
interativa em relação ao texto e as funções sintáticas nele presentes, por isso mais con-
dizente com a abordagem que estamos nos propondo a trabalhar.
Nessa gramática as conjunções coordenativas são divididas de quatro maneiras:
aditivas, adversativas, alternativas e conclusivas3, sendo que Cereja & Magalhães (1999,
p. 185) fazem a seguinte definição:
1. Aditivas: servem para ligar dois termos ou duas orações de mesmo valor
sintático, estabelecendo entre eles uma ideia de adição. São as conjunções e,
nem (e não), que, não só... mas também.
Ele não respondeu às minhas cartas nem me telefonou.
2. Adversativas: ligam dois termos ou orações, estabelecendo entre eles uma
relação de oposição, contraste, ressalva. São elas: mas, porém, todavia, contudo,
no entanto, entretanto, e (com valor de mas).
A mulher chamou imediatamente o médico, porém não foi atendida.
3. Alternativas: ligam palavras ou orações, estabelecendo entre elas uma rela-
ção de separação ou exclusão. São as conjunções ou, ou... ou, já... já, ora...ora,
quer...quer, etc.
O mecânico ora desparafusava o moto do carro, ora juntava outras peças es-
palhadas pelo chão.
4. Conclusivas: introduzem uma oração que exprime conclusão em relação ao
que se afirmou anteriormente. São elas: logo, pois (no meio ou no fim da ora-
ção), portanto, por conseguinte, por isso, assim etc.
aluno do 9.º ano, de uma escola pública de São Carlos, sobre adolescência e sexualida-
de:
Quando estamos apaixonados sentimos algumas sensações gostosas, e é nesse ponto que
entregamos nossas emoções.
Homens e mulheres se sentiam atraídos uns pelos outros e buscavam realizar essas emo-
ções por meio de afetos e relacionamentos sexuais.
Tais relacionamentos tiveram diferentes concepções ao longo do tempo, na antiguidade o
sexo só poderia ser feito depois do casamento e essa ainda é a opinião de muitas pessoas.
Porém, percebemos que nos anos 70 houve uma revolução sexual com a descoberta da pí-
lula e também o aumento das doenças sexualmente transmissíveis.
Com isso notamos quando jovens começam a fazer sexo antes da hora podem trazer ris-
cos e insatisfações para suas vidas. O mais adequado seria um equilíbrio dessas duas concepções
desenvolvidas ao longo do tempo, que consiste em consciência do que queremos para nossa vida e
consciência das consequências de nossas escolhas.
Diante dos seus próprios textos é importante que os alunos sejam motivados a
identificar as conjunções que utilizaram e em seguida as substituírem por outras, per-
cebendo e refletindo sobre os diferentes valores semânticos que serão produzidos. Ex:
Homens e mulheres se sentiam atraídos uns pelos outros. O “e” funciona como conjun-
ção coordenada aditiva nesse caso, pois é responsável por gerar o sentido de que sexos
oposto se atraem. Se tal conjunção for substituída pela conjunção coordenativa também
aditiva “nem”, a frase ficaria da seguinte maneira: Homens nem mulheres se sentiam
atraídos uns pelos outros. Essa frase recebe um sentido contrário à primeira, pois gera
o sentido de que os homens não se sentiam atraídos pelas mulheres nem elas por eles.
Refletindo sobre os aspectos semânticos e sintáticos das conjunções coordenati-
vas e fazendo esse exercício ao longo de todo o texto, ao fim do exercício, espera-se que
os alunos sejam capazes de perceber quais empregos foram ou não pertinentes e, den-
tre os que foram, qual o sentido produzido em comparação ao primeiro uso que fize-
ram da coordenativa.
Provavelmente ao longo dessa atividade surgirão dúvidas acerca das conjun-
ções coordenativas (o que é e o que não é conjunção coordenativa no texto); o professor
poderá esclarecer as dúvidas de seus alunos, de modo que a atividade ocorra de forma
tranquila e descontraída, aproveitando que muitas vezes a alternância de tais conjun-
ções será responsável por produzir significados cômicos e divertidos.
Nessa perspectiva, acreditamos na relevância dessas atividades para a reflexão
e autoconhecimento dos alunos e de suas escritas por si mesmos. Ao mesmo tempo,
trabalhar a gramática se torna algo mais do que uma simples classificação de palavras,
pois adquire um aspecto funcional na escrita, que está inserida em todos os âmbitos de
nossa vida. Outra sugestão de textos que poderiam ser abordados desta mesma manei-
ra são anúncios de propagandas que visam a persuadir o leitor. Assim a discussão so-
bre a intenção do autor poderá ser ampliada.
Exercícios aplicáveis
Abaixo, exemplos de outras atividades que podem ser desenvolvidas em sala de aula,
também visando ao nosso objetivo e à nossa metodologia propostos.
Não é possível, pelo menos por enquanto, saber no que vai dar essa fantástica onda de
comunicação imediata por intermédio das redes sociais no que diz respeito ao meio mesmo da
comunicação, que são as palavras, o texto.
Muito já se tem dito, contra e a favor, sobre os tais 140 caracteres obrigatórios do
Twitter e sua fulminância, que pode até chegar a ser momentaneamente literária, mas que em
geral é apenas banal.
Eu, por exemplo, perdi logo o interesse, justamente por conta da banalidade. Minha
banalidade, que fique claro, uma vez que estava me pegando frequentemente postando in-
formações que no fundo não eram relevantes nem mesmo para mim. Como já se vai longe o
tempo em que me permitia jogar muita conversa fora, quem caiu fora fui eu. Twitter agora só
de vez em quando e quando neste quando houver o que dizer...
Mas o encantamento atual está no entorno da maior consistência do Facebook, no
qual, além da comunicação imediata e do feedback absurdamente rápido, há a possibilidade
de contextos maiores, como fotos, filmes, jogos etc., fora os diálogos mais prolongados.
O texto, no entanto, permanece em geral curto, ligeiro. Porém não necessariamente
raso, uma vez que replica-se triplica-se e insere-se um volume a rigor infinito de informações,
de um tema vai-se a outro, e uma grande conversa se estabelece, conversa essa que não é
mesmo de se jogar fora.
Estamos todos para entender direito o que está-se vivendo nesta seara da comunica-
ção pessoal, e o melhor a fazer é permanecer aberto a todas as possibilidades, creio.
No entanto me incomoda a ligeireza excessiva da palavra escrita, como se de repente a
elaboração, o primor, o capricho, a norma culta fossem dispensáveis.
Não é dispensável cada um, não o são todos esses quesitos.
E talvez estejamos aqui diante do grande desafio a se perseguir: hay que postar sin
perder lo estilo jamás!
Será que dá?
Circuito Fechado4
Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma,
creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toa-
lha. Creme para cabelo; pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata,
paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maços de cigarros, caixa
de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos. Quadros.
Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda,
copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso
com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo.
Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone,
papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósfo-
ro, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-
negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, gar-
rafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água.
Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno,
externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel
e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo,
papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo,
revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras, cigarro e fós-
foro. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras,
camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, traves-
seiro.
4 Texto de Ricardo Ramos, retirado do texto “Você sabe qual o conceito?” de Alfredina Nery.
Disponível em http://educacao.uol.com.br/portugues/ult1693u10.jhtm. Acesso em 17/11/2010.
Agora, partindo da leitura feita, identifique se existe algum tipo de conjunção utilizada
na tirinha e, se existir, qual a função que esta desempenha.
Resultados esperados
Referências
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RAMOS, Ricardo. “Circuito fechado”, in: NERY, Alfredina. Você sabe qual o conceito? Dis-
ponível em http://educacao.uol.com.br/portugues/ult1693u10.jhtm. Acesso em
17/11/2010.
Resumo: O presente artigo pretende discutir como a questão ética atravessa as teorias
sobre a linguagem. Inicia-se por percorrer pontos gerais de uma história da Ética no
pensamento ocidental e vale-se do caso da linguística, tomando-a em conjunto com as
ciências humanas, para examinar como a questão ética atravessa esse campo episte-
mológico. Sob o crivo crítico do linguista indiano Kanavillil Rajagopalan, problematiza-
se a falta de observância da responsabilidade social das teorias linguísticas, questio-
nando uma suposta neutralidade do fazer teórico. E analisa-se como a Linguística Críti-
ca aparece no pensamento do linguista indiano como uma possibilidade de contrapo-
sição à chamada linguística autônoma, de modo a afirmar a responsabilidade e o en-
trelace dos postulados teóricos com seu contexto sócio-histórico.
Palavras-chave: Ética. Linguagem. Linguística Crítica.
Para tanto, iniciaremos com considerações sintéticas sobre uma história da éti-
ca, tentando atender à necessidade de compreensão de qual foi o modelo metodológico
herdado pela linguística, assim como pelas ciências sociais em geral. Utilizarei as pro-
postas do professor linguista Kanavillil Rajagopalan, defensor de uma Linguística Crí-
tica, como exemplo da crescente percepção da inevitabilidade das teorias científicas de
assumir um lócus político-ideológico.
A partir do instante em que o homem organiza-se socialmente e estabelece la-
ços de convivência, questões automaticamente lhe são impostas: como devo viver? co-
mo devo agir? Há uma exigência, portanto, de padrões de conduta, de leis que orien-
tem a vida dos indivíduos. Ao mesmo tempo que regras eram requeridas, era preciso
refletir sobre sua condição.
Ética, palavra de origem grega (ethos), tem entre suas acepções a reflexão sobre
a essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer reali-
dade social (HOUAISS, 2001). Também, modo de ser, caráter ou comportamento. Nasce
como um ramo da filosofia que pretende discutir sobre questões como as levantadas
acima, estabelecer práticas de vida.
Na sociedade clássica grega, a religião, os deuses, os rituais eram marcadamen-
te vinculados à natureza: haveria, portanto, uma lei natural de conduta, a qual o ho-
mem utilizaria para realizar-se homem, ou seja, de acordo com sua natureza. O Univer-
so seria regido por leis harmoniosas, as quais por si só ofereciam um modelo ético para
as ações humanas. Tal paradigma é radicalmente modificado pelos postulados judaico-
cristãos, uma vez que seu deus não se identifica com a natureza, mas como força exter-
na, independente, que projetara e organizara a vida no mundo. A ser humano, sob esse
paradigma, tem uma alma que será seu veículo de contato com Deus, fazendo da mate-
rialidade do mundo natural apenas o cenário de sua trajetória rumo à eternidade (SIL-
VA, 2010).
Desta forma, ocorrerão deslocamentos no modo como o homem se relacionará
com a realidade e consigo mesmo. O primeiro modificará o locus da felicidade. Será
necessário transcender o natural, a matéria, a aparência, para se atingir um ideal, que
não mais se identificará com este mundo. O segundo provocará uma desestabilização
na relação entre o homem e a natureza, interiorizando a base para uma forma de vida
eticamente orientada (alma), privilegiando a razão em detrimento de outros elementos
inerentes à condição humana, a saber, a afetividade e a vontade, por exemplo. Ocorre
uma síntese entre o pensamento grego clássico, aqui representado pela filosofia so-
linguagem. Sob essa visão, será fundada uma nova corrente de pensamento, o Estrutu-
ralismo, que influenciará outras grandes áreas do saber, como a Antropologia e a Soci-
ologia, tentando sempre buscar “as forças que estão em jogo, de modo permanente e
universal, em todas as línguas [leia-se, aqui, também cultura no sentido amplo da pa-
lavra] deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares
da história” (SAUSSURE, 2006, p. 13). É por meio também de sua influência capital na
fundação do movimento estruturalista que a Linguística ganha estatuto científico.
Além disso, a dissociação da língua dos outros aspectos sociais ajudou a singularizar a
identidade dos linguistas, dando-lhes lugar no hall das ciências.
A busca das ciências humanas por uma autonomia pressupôs, além de outros
fatores, a assimilação dos métodos e procedimentos das ciências exatas e biológicas,
tidas como ciências na plenitude semântica da palavra. Este modelo influenciou a pos-
tura dos linguistas em relação ao modo de fazer teoria, produzindo uma continuidade
do modelo positivista, e sobretudo produzindo um distanciamento dos cientistas da
linguagem de sua influencia e responsabilidade em políticas linguísticas. No entanto, é
preciso ainda observar uma nuance: há indicações de que ao surgimento das ciências
humanas se adicionou uma questão de suma importância, indicada por um filósofo
francês.
Segundo Foucault (2007), as ciências humanas nasceram de uma exigência, de
um obstáculo de ordem teórica ou prática. Mas, fundamentalmente, de um aconteci-
mento na ordem do saber. O homem se coloca no campo de objetivação científica por
uma questão ética: o que é necessário pensar e o que se deve saber.
Vê-se que as ciências humanas não são uma análise do que o homem é por natureza;
são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser
que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que
é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode fa-
lar (FOUCAULT, 2007, p. 488).
dos com a dimensão política da vida dos atores sociais. As ciências humanas são uma
espécie de sintoma da inevitabilidade de o homem se fazer questões de aspecto ético,
tanto no tocante à produção de saber, quanto nas práticas sociais que este orientará. É
pela atenção à responsabilidade do fazer prático-teórico que esse artigo se faz.
Kanavillil Rajagopalan (2003), linguista indiano, faz considerações sobre a di-
mensão ética nos estudos linguísticos, apresentando diversas posturas de linguistas e
filósofos, às quais irá contrapor seu pensamento. Começa dando relevo ao seguinte
problema: se a língua é vista como um fenômeno natural, então torna-se difícil susten-
tar uma discussão sobre as possíveis questões éticas que dela decorrem. Como exem-
plo, cita a corrente gerativista, fundada por Noam Chomsky, que postula a língua co-
mo fato do mundo natural, tendo sua base biológica. Ora, admitindo-se essa condição,
a língua seria dotada de uma inocência pré-social, sendo produto de interações de base
orgânica com o os percursos contingentes da sociabilidade. O motivo: “existe uma
crença, amplamente compartilhada, de que a natureza desconhece qualquer espécie de
ética” (p. 15). Seria preciso, portanto, desnaturalizar a língua, como objeto de reflexão,
para lhe atribuir conotações éticas.
Ainda que se admita a língua como fato natural, o mesmo não se pode dizer
sobre a abordagem de seus postulados teóricos. Sendo estes basicamente metalingua-
gem, ou seja, enunciados linguísticos explicando outros enunciados linguísticos (sua
estrutura, morfologia, contextualização etc), então não se pode pressupor gratuitamen-
te que as categorias interpretativas, formuladas pelos linguistas, correspondam à pró-
pria forma natural da língua. Para Rajagopalan (2003), “o que impede que o teórico da
linguagem tenha consciência do lado ético da sua atividade é justamente a tendência a
relegar toda a ética à esfera da prática” (p. 21), dissociando, assim, a produção de saber
de sua utilização. Produção versus utilização é a lógica adotada por essa forma de pen-
samento, que não se vê a si próprio como uma prática, mas como uma espécie de pré-
ação, que estaria acima de qualquer consideração ética.
A crítica a essa posição perpassa pela adição de um termo que doravante indi-
cará uma específica postura científica com relação à prática teórica. Crítica será a pala-
vra que conferirá ao fazer teórico um lugar de autorreflexão contínuo, de modo a pôr
sempre em evidência sua relevância e impacto ético-político na sociedade. O conceito
de crítica nas ciências sociais foi estabelecido sob influência da Escola de Frankfut, as-
sim bem resumido:
das proposições abertas, para examiná-la em particular no contexto das formações so-
ciais” (FOWLER, 2010, p. 208).
É por tomar a Linguística Crítica como válida para uma abordagem que amplia
o campo de estudo e apreensão da linguagem que opera a crítica de Rajagopalan, esta-
belecendo, assim, sua posição. O linguista indiano defende tal disciplina (se é que po-
demos chamá-la assim) pela recusa dos paradigmas metodológicos tradicionais da lin-
guística que, segundo ele, alijaram-na de seu papel político. Ao postular a língua como
um objeto natural, autônomo, como fizeram tanto Saussure quanto Chomsky, os lin-
guistas teriam acabado por afastar a relevância social de seus estudos, deixando de
questionar até mesmo as suas próprias bases epistemológicas.
A título de exemplo, a linguística é a única disciplina científica que não se sub-
meteu à virada linguística: “‘Boa parte da contribuição pós-estruturalista passou des-
percebida’ pela linguística devido a ‘[seu] quadro conceitual [...] de ciência, que vigora
até mesmo em subdisciplinas como a sociolingüística e a lingüística aplicada [...]’”
(PENNYCOOK, 2004, p. 42).
É imprescindível para o futuro social dos estudos linguísticos uma maior apro-
ximação com os temas e questões sociais. Conforme Rajagopalan (2003), uma atitude
contrária seria ameaçar condenar a linguística à total irrelevância, principalmente pela
constante prática de autorreflexão e revisão por que passam disciplinas conexas, como
a sociologia. Exercer tal postura, de fato, urge. Para tanto, é vital reconhecer a dimen-
são ética dos postulados linguísticos, uma vez que estes denunciam os posicionamen-
tos político-ideológicos de seus autores, e continuamente revisar as bases que norteiam
a disciplina, afim de atualizá-la frente às questões que surgem na sociedade.
Referências
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DESCARTES, René. Discurso do método. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 541 p.
FOWLER, Roger. Sobre a Lingüística Crítica. Tubarão: LemD, v. 4, n. esp. p. 207-222, 2004
Disponível em:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0403/10%20art%209.pdf. Acesso
em 21/06/2010.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
SANCHEZ VAZQUEZ, Adolfo. Ética. 17 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
Resumo: Os gêneros discursivos têm sido inseridos nos livros didáticos de Língua Por-
tuguesa desde a década de 1990. Mas será que essa inserção está de acordo com os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e considera as mudanças conceituais e de
abordagem desses objetos de ensino? Pensando em verificar como um dos materiais
didáticos mais utilizados nas escolas da rede pública de Uberlândia/MG tem lidado
com a produção com base em gêneros, fizemos uma análise das propostas de produ-
ção de gêneros da coleção Português Linguagens Ensino Médio, volume único, de Ce-
reja e Magalhães (2003). Buscamos neste estudo entender o que significa optar pela
perspectiva de ensino com base em gêneros para, a partir disso, elencarmos aspectos
que nos parecem essenciais para este trabalho. Os dados mostraram que o trabalho na
obra selecionada ainda não contempla aspectos essenciais para a apreensão dos gêne-
ros, como as condições de produção e recepção e a função social.
Palavras-chave: Gênero discursivo. Livro didático. Ensino de produção de texto.
1. Introdução
1 Este trabalho faz parte de uma pesquisa de iniciação científica orientada pela Profa. Dra. Elise-
te Maria de Carvalho Mesquita.
uma rápida passagem peslos LD de EM produzidos no início dos anos 1990 mostrará,
por exemplo, que os alunos são solicitados a escrever cartas, bilhetes, telegramas, notí-
cias, gráficos etc. No entanto, tal diversidade parece ter sido focada mais no enfoque da
estrutura composicional dos textos do que na diversidade de contextos/situações de pro-
dução. (cf. Bunzen, 2004). Em suma, os alunos continuaram a produzir redações para o
professor com a estrutura composicional de cartas, notícias e reportagens etc., uma vez
que não houve praticamente alteração no contexto de produção, circulação e recepção.
(BUNZEN, 2006, p. 152-153)
2. Pressupostos teóricos
esse documento faz referência ao instrumento que os permite agir por meio da lingua-
gem, os gêneros.
Nesse sentido, adotar a concepção de gêneros discursivos para a produção es-
crita significa tomar os usos da linguagem como atividades sociais que acontecem em
situações de comunicação de uma determinada cultura (MOTTA-ROTH, 2006), o que im-
plica uma reconstrução do conceito de expressão escrita.
O ensino de LM deve acontecer, então, sempre em contexto, considerando que a
“escrita não pode desvincular-se de seu contexto de uso e de seus usuários” (BRASIL,
2006, p. 99), pois fora do contexto e inserido em uma cultura diferente, a representação
e o significado dos elementos de linguagem e dos aspectos interlocutivos podem ser
outros. Nesse mesmo âmbito, os PCN (BRASIL, 2000, p. 61) afirmam que as trocas lin-
guageiras produzem enunciados moldados a certas intenções, objetivos, em determi-
nadas condições e com participantes específicos que ocupam um lugar social, o que
contribui para a construção dos efeitos de sentido. Essas relações de troca, chamadas
de interlocução, possibilitam a construção de sentido e de identidade social e, por isso,
as situações de produção de textos devem considerar: um interlocutor/público; a situa-
ção em que será produzido o texto; e a intenção de se produzir tal texto. Assim, a ativi-
dade de produção é mais significativa para o aluno, segundo esse documento.
Além desses aspectos, o conhecimento de uma prática de linguagem, e conse-
quentemente de um gênero, exige o conhecimento de leitura, análise e reflexão desse
gênero, para que o sujeito/aluno saiba reconhecê-lo nos momentos de interação. O tra-
balho de leitura dos gêneros discursivos deve se aliar, então, ao trabalho com a produ-
ção de texto, pois a parceria de ambos garantirá o conhecimento pleno de um gênero.
Aliado, ainda, ao trabalho de leitura, é preciso analisar as condições de produ-
ção de texto. Sobre isso, os PCN dizem que
Tais condições acima explicitam ainda mais o que queremos dizer quando nos
referimos à linguagem em uso/contexto, e torna significativo para o estudante todo o
processo de ensino-aprendizagem de língua materna, pois, dessa forma, se aprende a
agir discursivamente, uma vez que por meio das condições de produção o aluno se torna
autor do que diz. Sobre a autoria das produções escolares, os PCN preconizam que
Essa proposta é de extrema relevância para que o aluno possa “perceber a con-
figuração social de um momento e como a língua como sistema sócio-semiótico consti-
tui esse momento” (MOTTA-ROTH & HENDGES, 2006), pois a escrita só tem sentido se ela
possuir espaço na vida pessoal e social do aluno, permitindo que ele desempenhe pa-
péis e saiba agir de acordo com eles. Sendo assim, aprender gêneros discursivos é
aprender sobre situações de linguagem vivenciáveis no mundo particular e social, e
essa é a grande vantagem de se adotar a perspectiva dos gêneros, afinal, é assim que
poderíamos permitir ao aluno “vivenciar na escola atividades sociais das quais a lin-
guagem é parte essencial” (MOTTA-ROTH & HENDGES, 2006) e compreender o funciona-
mento do gênero na sociedade e em relação aos sujeitos e às instituições (MARCUSCHI,
2005, p. 10-12).
As diretrizes dos PCN e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio vol-
tam-se para um ensino interacionista sociodiscursivo amplamente desenvolvido e dis-
cutido por Bronckart (1999), ao lidarem com a produção de texto e o ensino de lingua-
gem em geral.
A perspectiva interacionista sociodiscursiva parte da análise das “relações que
as ações de linguagem mantêm com os parâmetros do contexto social em que se ins-
crevem, a seguir das capacidades que as ações colocam em funcionamento e, sobretu-
do, das condições de construção dessas capacidades” (CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008,
p. 30-31). Nessa concepção, os textos concretizam ações de linguagem, os gêneros, me-
deiam a relação entre ação e agente, devendo, pois, ser analisados da seguinte forma:
primeiro, a relação que estabelecem com o mundo social e com a intertextualidade;
segundo, análise da arquitetura textual interna e da função dos elementos da língua;
terceiro, estudo da gênese e funcionamento das operações implicadas na produção dos
textos e na apropriação dos gêneros textuais.
Bronckart (1999, p. 99) define ações de linguagem em dois níveis: o sociológico,
que define ação de linguagem como “uma porção da atividade de linguagem do grupo,
recortada pelo mecanismo geral das avaliações sociais e imputada a um organismo
humano singular”; e o nível psicológico, no qual ação de linguagem refere-se ao “co-
nhecimento disponível em organismo ativo sobre as diferentes facetas de sua própria
responsabilidade na intervenção verbal”. Esse segundo nível nos será mais interessante
por associar dois aspectos essenciais para a intervenção verbal, o contexto de produção
e a seleção do conteúdo temático.
Considerando que toda interação se dá em um contexto de ação, a perspectiva do
interacionismo sociodiscursivo acredita que os sujeitos são capazes de construir contex-
tos sempre renovados, diferenciados dos anteriores. Segundo Kleiman (2006, p. 26),
“essa característica da linguagem aponta para a questão constitutiva da capacidade de
usar a linguagem: sem essa capacidade de criação de contextos, de contextualizar, não
seríamos capazes de agir sociedade”. Embora a criação de contextos seja constitutiva
do uso da linguagem, o uso bem-sucedido não o é. Dessa forma, a interação pressupõe
o conhecimento das práticas historicamente construídas e atualizadas pelo discurso,
mediadas pelos gêneros.
De acordo com essa visão, o texto passa a ser visto não mais como unidades a
serem combinadas pertencentes a uma organização maior, mas sim “como marcas das
operações psicolinguísticas das representações nas atividades linguísticas, e essas representa-
ções, mesmo sendo sócio-históricas, são uma escolha efetuada sobre os valores dos
parâmetros contextuais” (BRONCKART, 1996, p. 17 apud CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008,
p. 34). Essa é a noção com a qual deve trabalhar o ensino de linguagem, pois a intera-
ção exige seleção de formas de enunciados, e selecionar formas e produzir enunciados
implica não somente conhecimento reflexivo, mas também criativo.
Adotar a prática social como ponto de partida do trabalho escolar, além de acarretar a
mobilização de gêneros de diversas instituições, pelos diversos participantes, para rea-
lizar a ação, promove o desenvolvimento de competências básicas para a ação; assim o
trabalho escolar pode vir a ser estruturado tendo essas competências como elemento es-
truturante; é a experiência em situações diversificadas da vida social que põe o educan-
do no papel de sujeito produtor de conhecimento, de participante dos mundos do traba-
lho, do estudo e do lazer, de protagonista (KLEIMAN, 2006, p. 33).
A tese subjacente ao conceito de gêneros textuais e ensino é a de que o domínio dos gê-
neros se constitui como instrumento que possibilita aos agentes produtores e leitores
uma melhor relação com os textos, pois, ao compreender como utilizar um texto perten-
cente a um determinado gênero, pressupõe-se que esses agentes poderão agir com a
linguagem de forma mais eficaz, mesmo diante de textos pertencentes a gêneros até en-
tão desconhecidos (CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008, p. 36).
Adotar os gêneros discursivos como objetos de ensino a partir dos quais os con-
teúdos de ensino são trabalhados significa permitir ao aluno usar a linguagem em to-
das as suas capacidades, linguísticas, discursivas e linguístico-discursivas, além da
capacidade de ação em contexto (ROJO, 2001 apud BUNZEN, 2006), o que se torna essen-
cial nessa concepção, uma vez que o gênero está muito mais relacionado ao contexto de
interação e de cultura no qual se manifesta do que aos seus elementos característicos,
pois os gêneros podem assumir diversos significados conforme o lugar, a época, a cul-
tura, o meio social etc.
No ensino de Língua Portuguesa, os gêneros discursivos devem ser tomados
3. Contexto da análise
vidades de leitura e compreensão bem como as atividades de análise linguística. Abaixo, ex-
pomos brevemente cada um desses elementos depreendidos no estudo teórico:
4. Análise
Observamos que os aspectos analisados não são trabalhados com o mesmo cri-
tério de importância em todas as propostas de produção textual. A função social do
gênero, por exemplo, nem sempre é mencionada, enquanto a situação de comunicação
não existe em nenhuma das propostas de produção textual, e o objetivo de se escrever
é apenas trocar o texto com o colega ou afixá-lo no mural. Os aspectos de produção e
recepção também não são abordados em todas as produções, o que nos mostra uma
lacuna na abordagem desse material. Quanto às atividades de análise linguística, ape-
sar de a coleção apresentá-las, elas abordam geralmente o tipo textual ou as sequências
Exemplo
O texto lido é uma notícia. Notícia é a expressão de um fato novo, que desperta o inte-
resse do público a que o jornal se destina. A notícia é um gênero textual tipicamente jornalísti-
co e pode ser veiculada em jornais, escritos e falados, e em revistas.
Na notícia predomina a narração. Mas os jornais não se limitam a contar o que aconte-
ceu. Eles vão além, contando também como e por que aconteceu determinado fato. Com base
no texto em estudo, observe os elementos que normalmente compõem a notícia:
• o quê (fatos): tentativa de evitar que uma terceira mancha de óleo chegue à costa;
• quem (personagens/pessoas): os marinheiros espanhóis;
• quando (tempo): 12/12/2002;
• onde: Costa da Galícia, Espanha;
• como: reconlhendo-se manchas de óleo dispersas;
• por quê: vazamento de óleo do petroleiro Prestige, que se partiu ao meio e afundou
em 19/11/2002.
A notícia apresenta uma estrutura própria, composta de duas partes: o lead e o corpo.
Lead é um resumo do fato em poucas linhas e compreende normalmente, o primeiro
parágrafo da notícia. Contém as informações mais importantes e deve fornecer ao leitor a
maior parte das respostas às seis perguntas básicas: o quê, quem, quando, onde, como e por
quê.
Corpo são os demais parágrafos da notícia, nos quais se faz o detalhamento do expos-
to no lead, por meio da apresentação ao leitor de novas informações, em ordem cronológica
ou de importância. Na notícia em estudo, o segundo e o terceiro parágrafos constituem o cor-
po.
Toda notícia é encabeçada por um título, que anuncia o assunto a ser desenvolvido. No
título, devem-se empregar, com objetividade, palavras curtas e de uso comum.
Uma notícia deve ser imparcial e objetiva, ou seja, deve expor fatos e não opiniões. A
linguagem deve ser impessoal, clara, direta e precisa. Observe na notícia em estudo, que os
verbos e pronomes estão na 3ª pessoa; não aparece a opinião do jornalista; e a linguagem é
direta e concisa, resumindo-se ao essencial.
(Box síntese das características)
PRODUZINDO A NOTÍCIA
Suponha que você faça parte da equipe de jornalistas de uma revista dirigida a um público
jovem. O repórter fotográfico já lhe forneceu a imagem que deve acompanhar uma notícia, e o
redator-chefe já sugeriu o título de outra. Você é jornalista e deve escrever as notícias, con-
tando apenas com esses elementos. Vamos ao desafio?
1. Crie uma notícia a partir de uma das fotografias a seguir. Primeiramente, invente o quê,
quem, onde, quando, como e por quê. Depois redija o lead. Procurando responder a essas
perguntas básicas, e preocupando-se em escrevê-lo de forma a despertar o interesse de seu
leitor (se não ficar bom, refaça-o), escreva o corpo da notícia acrescentando novos dados.
2. Crie uma notícia a partir de um desses títulos: Geração perigo; Alternativa; Na sala de aula;
Vizinhos. Terminando seus textos, avalie-os e peça a um colega que os leia e faça sugestões.
Passe-os a limpo, incorporando as sugestões que julgar conveniente, e afixe-os no mural da
classe.
Fonte: CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: Linguagens. São Paulo: Atual. 2003.
que tratam do tipo de linguagem empregada no gênero e, embora esta seja uma carac-
terística da notícia, o questionamento sobre a linguagem faz com que o aluno analise o
texto para descobri-la, por isso, as questões semelhantes a esta foram consideradas na
categoria de análise linguística.
As condições de produção são tratadas quando a explicação sobre o gênero
menciona o lugar de circulação da notícia e quando na proposta de produção é sugeri-
da a suposição de o aluno ser um jornalista para escrever a notícia. Essa suposição ini-
cia o processo de ficcionalização no qual o aluno deve ser inserido para a realização do
gênero, mas incompleto porque não finaliza a proposta com uma situação de comuni-
cação em que o gênero seria necessário e na qual haveria um objetivo para ser produ-
zido. Sendo assim, não há situação de comunicação nesta proposta de produção de
notícia.
Outro aspecto analisado tangenciado pela coleção ao abordar a notícia é a fun-
ção social desse gênero. Embora possa parecer que todos saibamos para que “serve”
uma notícia, seria interessante mencionar e desenvolver a criticidade dos alunos sobre
a indução de opinião por notícias manipuladas, mencionando que toda notícia é um
recorte, um olhar sobre o fato.
5. Conclusão
6. Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BATISTA, A. A. G. Avaliação dos livros didáticos: para entender o programa nacional do livro
didático (PNLD), in: ROJO, R. e BATISTA, A. A. G. (org.). Livro didático de língua portuguesa,
letramento e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
______. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio: Lin-
guagens, códigos e suas tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/ BRA-
SIL, 2006.
BRONCKART, J-P. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 1999.
DIONÍSIO, A. P.; BEZERRA, M. A. (org.). O livro didático de Português: múltiplos olhares. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2003.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado de Letras,
2004.
______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial,
2008.
Resumo: Os falantes de uma mesma língua apresentam diferenças nos seus modos de
falar, podendo ser reguladas, por exemplo, pelo lugar em que estão, situação de fala
ou nível socioeconômico. Apesar de as variantes dentro de uma mesma língua desem-
penharem igualmente bem sua função, o mesmo não é válido simbolicamente. A partir
disso, discute-se a relação entre o linguístico e o extralinguístico, a fim de se refletir
sobre o valor simbólico dessa relação. Para tanto, foram analisados dois poemas de
Oswald de Andrade que tratam da temática língua e contexto social. Percebeu-se que
a atribuição de valor social a fenômenos intrínsecos a toda e qualquer língua tem um
papel significativo na construção da brasilidade. O estudo demonstra que a questão
vernacular brasileira se constitui na tensão entre a herança lusitana e as inovações lin-
guístico-culturais aqui deflagradas.
Palavras-chave: língua; sistema; variação
Introdução
Para dizerem milho dizem mio / Para melhor dizem mió / Para pior pió / Para telha di-
zem teia / Para telhado dizem teiado / E vão fazendo telhados (SCHWARTZ, 1988, p. 25).
riações relacionadas ao contexto, “os falantes diversificam sua fala – isto é, usam estilos
ou registros distintos – em função das circunstâncias em que ocorrem suas interações
verbais” (grifos do autor). Assim, a escolha do registro (ou nível de fala) a ser utilizado
pelo falante seria regulada pelo grau de formalidade (uso mais ou menos formal da
língua), pelo modo (língua falada ou escrita) e pela sintonia (maior ou menor grau de
tecnicidade, cortesia ou respeito à norma ditada pela gramática normativa tradicional,
tendo-se em vista o perfil do interlocutor). Nesse poema, é enfatizada a problemática
da colocação pronominal, de modo que a ênclise estaria relacionada ao uso ditado pela
norma culta (registro formal) enquanto a próclise seria a forma utilizada preferencial-
mente pela norma não-padrão (registro informal). Os pronomes me, te, se, lhe, o, a, nos,
vos, lhes, os, as são átonos, sendo que podem se enclíticos ou proclíticos ao se adjungi-
rem ao vocábulo antecedente ou ao seguinte, respectivamente. A gramática normativa
tradicional tem como regra não principiar o discurso pelo pronome átono. No entanto,
o deslocamento do pronome é devido a uma atração essencial e puramente fonética;
“constante em certos casos, menos regular em outros, e variável e precária se variável
for o elemento fonético que a determina [...]. A frase deve constituir um todo fonetica-
mente unido, que não permita pausa entre o vocábulo a valorizar e o verbo” (SAID ALI,
2008, p. 28). É, assim, impossível haver identidade de colocação entre o português de
Portugal e o português do Brasil se a prosódia não é idêntica. Segundo Said Ali (2008,
p. 29):
Lá [em Portugal] os pronomes são átonos; o e final em me, te, se é tão abafado que mal se
ouve. Cá [no Brasil] estamos habituados a empregar já certa acentuação quando o pro-
nome vem anteposto ao verbo, dizendo aproximadamente mi, ti, si... Em Portugal fala-
se mais depressa, a ligação das palavras é fato mais comum; no Brasil pronuncia-se
mais pausada e mais claramente. Em suma, a fonética brasileira é, em geral, diversa da
fonética lusitana.
Desse modo, por conta da entonação que rege a colocação pronominal, a norma
padrão da língua prescrita pelas gramáticas normativas tradicionais (registro formal),
por basear-se no português lusitano, acaba distanciando-se da ocorrência em situações
de fala (registro informal) do português brasileiro. E isso é problematizado em Prono-
minais, a partir da abordagem da oposição entre a fala do professor, do aluno e do mu-
lato sabido, de um lado, e do bom negro e do bom branco, de outro. Enquanto aqueles
aderem às convenções normativas prescritas, estes utilizam uma variante que condiz
com o contexto fonético brasileiro.
Essa problemática está diretamente ligada à questão da brasilidade, discutida
por Oswald de Andrade nos seus Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago.
Nesses manifestos, Oswald posiciona-se “contra a cópia, pela invenção e pela surpre-
sa”, quer “Acertar o relógio império da literatura nacional”, “Ser regional e puro em
sua época”; apresenta-se “Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo,
para ganhar comissão” (SCHWARTZ, 1988). Oswald visa à produção de uma poesia bra-
sileira, que seja criada a partir de uma realidade própria e não mais pela importação de
Considerações finais
próprio do país, como parte da identidade brasileira, que deve ser considerada e anali-
sada como tal.
Esse texto visa demonstrar que a variação que se dá entre o português do Brasil
e o de Portugal é parte constitutiva de uma identidade nacional, formada a partir de
todo um contexto cultural e histórico. Daí a pertinência de um olhar sociolinguístico-
discursivo, que articula o fenômeno da variação na língua, considerando seu valor sis-
têmico, com o contexto social, político e cultural em que se constitui o vernáculo.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974.
BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolingüística. 15 ed. São Paulo: Contexto,
2006.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo:
Edusp, 1996.
CALVET, Louis-Jean. Sociolingüística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002,
p. 89-122.
CHAGAS, Paulo. A mudança linguística, in: FIORIN, J. L. Introdução à linguística. 6 ed. São
Paulo: Contexto, 2010, v. 1, p. 141-164.
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técni-
co, 2005.
LABOV, William. Contraction, Deletion and Inherent Variability of the English Copula.
Language, 1969, v. 4, n.º 45, p. 715-762.
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. 27 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
SCHWARTZ, Jorge. Oswald de Andrade. Seleção de textos, notas, estudo biográfico, histó-
rico e crítico por Jorge Schwartz. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
1.
Publicado pela primeira vez em 1959, Crônica da casa assassinada trata, de forma
fragmentária e desordenada, da decadência dos Meneses, família mineira antes opu-
lenta e tradicional. É por meio da rememoração dos personagens, por meio de diários,
cartas, confissões, livros de memórias etc., que percebemos o processo de ruína em que
tanto a família Meneses quanto a Chácara, local em que vivem, se encontram. Constru-
indo um ambiente soturno e opressor, o romance aponta todo o tempo para os princí-
pios de agregação e desagregação, encontro e desencontro: ao mesmo tempo em que as
narrativas se procuram, como meio de completar umas as outras, se repelem, pois não
têm necessidade de outros relatos para significar. Essa repulsa entre as partes do ro-
mance funciona como maneira de manter a incomunicabilidade entre as personagens e
confiná-los em sua percepção de mundo. Quanto mais se alienam uns dos outros, mais
os indivíduos se tornam enigmáticos.
É pelo desapego ao “realismo da exterioridade” que se nota o quanto a matéria
narrada é passível de dúvida: não se pode determinar se os episódios do romance re-
almente se desenrolaram como são descritos, uma vez que todos os relatos estão im-
pregnados da percepção de cada indivíduo e, algumas vezes, essas percepções são ne-
gadas por narrativas posteriores, especialmente aquelas escritas por pessoas que não
1 Trabalho produzido para a disciplina “Modernismo II”, ministrada pela professora Joelma
Siqueira.
Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisa-
gem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O pu-
nhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Ge-
rais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Con-
tra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira.
Contra a fábula mineira (CARDOSO, 2009, p. 9).
A partir da fala do escritor, podemos perceber que sua obra configura um “re-
gionalismo às avessas”, em que a região retratada é bem delineada, mas isso não se dá
em favor da exaltação da mesma, tampouco para a preservação e documentação de sua
identidade, mas para a exposição da hipocrisia da “Sagrada Família Mineira” que es-
conde, por meio de seu tradicionalismo, segredos sujos e obscuros.
2.
te a sensação de intimidade protegida, uma vez que os segredos das personagens ficam
confinados àquele espaço e têm as paredes da habitação como única testemunha. Em
um parêntese da “Primeira confissão de Ana”, a narradora destaca que desde que fora
viver ali, aprendera a se referir à casa como um organismo vivo, uma vez que seu ma-
rido, Demétrio, sempre dizia que “o sangue dos Meneses criara uma alma para essas
paredes” (CARDOSO, 2002, p. 103).
É também no parêntese que, devido a essa organicidade da habitação, a narra-
dora confessa o seu receio de que a casa saiba de suas ações e deixa entrever que o fato
de que ter sido escolhida para esposa de Demétrio acabou por lhe tirar a liberdade de
ler o mundo como desejasse: foi educada ao gosto dos Meneses e de modo que não
pudesse se tornar outra coisa senão um membro da família. Essa educação transfor-
mou-lhe em um ser “pálido e artificial”, impedido de usar cores que não fossem distin-
tas, de ter modos que não fossem dignos de uma dama da alta sociedade. Embora, ofi-
cialmente, a Chácara não tenha sido o primeiro lar de Ana, no sentido de que não foi
sua primeira moradia, foi o único que conheceu durante toda a sua vida: mesmo quan-
do ainda não habitava aquela casa, de paredes vivas e intimidantes, a Chácara já habi-
tava Ana, uma vez que todos os traços de sua personalidade foram adequados ao gosto
da família da qual viria a fazer parte. Posteriormente, há por parte da personagem a
tomada de consciência acerca dessa situação, visto que ela ainda era muito jovem
quando tudo se desenrolou, e não poderia perceber que ser uma Meneses envolvia
mais do que o status dado pelo nome: envolvia o apagamento de seus traços genuínos,
o aprisionamento de sua mente.
É válido, ainda falando sobre o aprisionamento, destacar o personagem Timó-
teo, descrito por Ana nesse capítulo como alguém que “sempre foi um temperamento
esquisito, de hábitos fantásticos, o que obrigou a família a silenciar sobre ele – como se
silencia sobre uma doença reservada” (CARDOSO, 2009, p. 105). Ao longo da narrativa, o
que se pode perceber, embora não seja comentado explicitamente, que o motivo do
silêncio e da exclusão de Timóteo é a sua homossexualidade e o fato de procurar vivê-
la, ora sem se importar com o estigma do nome que carrega, ora percebendo que isso
impede o exercício pleno de suas inclinações. Isso fica bastante claro na passagem em
que destaca que só temos o direito de “ser monstros para nós mesmos” (CARDOSO,
2002, p. 482). Frente a todo o tradicionalismo de sua família, a percepção do persona-
gem de que um nome não deve ser o fator determinante de sua identidade se mostra
como algo hediondo, especialmente aos olhos de Demétrio, que vai silenciá-lo por meio
de ameaças de internação em um manicômio, que seria paga com a herança deixada
pelo pai. Diante disso, Timóteo se vê forçado ao exílio em um dos quartos da Chácara.
É nesse quarto, local proibido e ignorado pelos demais moradores, que vai encontrar,
parcialmente, alento. Ali é livre para se vestir com roupas de mulher, que em tempos
passados pertenceram à sua mãe e observar o jardineiro Alberto. Deve-se destacar
também que seu apego pelas roupas, jóias e outras coisas alegres, podem advir da sau-
dade que deixa entrever de tempos anteriores da casa. Tempos em que Maria Sinhá
(personagem pela qual demonstra imensa admiração) ainda assustava as pessoas da
região com seu espírito livre, tempos em que sua mãe ainda era viva e coloria aquele
ambiente, agora apático, com suas roupas extravagantes. Percebe-se também o que a
Chácara acabou por fazer com Timóteo: acompanhando a degradação da casa, mesmo
que só a vivenciasse em sua virtualidade, Timóteo se torna cada vez mais grotesco,
segundo os relatos dos outros narradores. Talvez, dentre todos os personagens da nar-
rativa, ele seja o que mais sofre com a passagem do tempo e sua a deterioração extrapo-
la os limites do visível, chegando a consumir até mesmo a sua personalidade, deixan-
do-lhe como única razão de viver a possibilidade de um dia ver, aqueles que roubaram
a sua vida, destruídos.
Como tentativa de não restringir o sentido do texto ao que foi discutido, é vali-
do também ressaltar outra perspectiva pela qual se pode compreender a decisão do
personagem de permanecer naquele ambiente, ainda que o mesmo se configurasse
para ele como opressor: a casa dos Meneses, ao mesmo tempo que parece assustar to-
dos os personagens da obra, exerce sobre eles um fascínio extremo, de modo que mes-
mo quando tentam se distanciar, acabam por voltar sempre para ela. Gaston Bachelard
destaca que “todos os espaços de nossas solidões passadas, os espaços em que sofre-
mos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão,
são em nós indeléveis” (BACHELARD, 1978, p. 210) e não desejamos apagá-los. Porém,
esse apego a ambientes, de algum modo, atrelados a imagens ruins têm o seu valor
para a formação do sujeito, na medida em que trazem consigo também a lembrança de
algo que, um dia, foi por nós amado. Mesmo que, como no caso de Timóteo, tais espa-
ços estejam completamente riscados do presente e sem qualquer possibilidade de vol-
tarem a fazer parte de sua vida num futuro, talvez ele opte por não deixar a Chácara
não apenas pelo dinheiro, mas também por ter algum apego por ela, talvez “a herdade
seja uma doença de sangue” (CARDOSO, 2002, p. 105), de modo que a casa torna-se par-
te do organismo dos Meneses: se outros têm orgulho de sua nobreza, os Meneses têm
orgulho de serem feitos do cimento e da cal daquelas paredes.
Ainda fazendo uso da discussão entre Timóteo e Demétrio, é válido destacar a
grande ambição da família Meneses, especialmente de Demétrio: uma visita do Barão.
Essa visita se mostrava tão importante porque a família do Barão era, em Vila Velha, a
única que estava “acima” dos Meneses, tanto em fortuna quanto em tradição, uma vez
que eram descendentes diretos dos Bragança lusitanos. Era como se esperassem que
essa visita consolidasse o seu status na região. Nesse ponto, não se pode deixar de
abordar alguns aspectos relativos à moral burguesa. Adotou-se a definição de moral
burguesa dada por Nancy Armstrong (2009) ao tratar de diversos romances do século
XIX, na literatura inglesa, em que esse traço se mostrava recorrente na mais diversa ga-
ma de personagens. Armstrong não define a moral burguesa como um “valor em si”,
mas como um modo de “ler, avaliar e rever categorias de identidade já existentes”
(ARMSTRONG, 2009, p. 336). Por esse ponto de vista, pode-se afirmar que a moral bur-
guesa não encontra seu apoio na religião, nem na Bíblia ou mesmo na ética hebraico-
cristã; ela parece surgir do próprio indivíduo e atribui a ele algo que não é individual:
“A possibilidade de conquistar uma posição social, por razões que ultrapassem a esfera
dade acaba agindo sobre a personagem como uma tentativa de refúgio no perene. Per-
cebe-se que, em Nina, a percepção da passagem do tempo e da transitoriedade das
coisas gera uma atitude melancólica, que vai acabar fazendo com que opte por morrer
sozinha no quarto, de modo que ninguém possa ver o estado de decomposição em que
seu corpo se encontra e tampouco sentir o mau cheiro que se desprende dele. Ela dese-
ja ser lembrada como a Nina deslumbrante e cheia de vida que chegara àquela casa.
Estranhamente, é apenas nesse momento da narrativa que todos os personagens vão
estender-lhe a mão: preocupados com o estado em que se encontrava, cercam Nina de
cuidados e velam seu corpo.
É também no capítulo que retrata o seu velório que vamos perceber, de uma
vez por todas, que a degradação dos sujeitos e do ambiente se encontra em processo
irreversível. Demétrio e Valdo brigam, por não concordarem a respeito do que fazer
com os objetos de Nina, e todos que presenciam a cena sabem que há mais do que a
simples discordância causando a briga entre os irmãos. Embora significativo, tal episó-
dio acaba por se tornar um fator secundário perante a saída de Timóteo do quarto. Ves-
tido com trajes femininos esfarrapados, com um aspecto grotesco, adquirido pelos anos
de confinamento e excesso de álcool, ele escolhe o exato momento em que o Barão e
sua família adentram a casa para, carregado por empregados da fazenda em uma espé-
cie de rede, prestar suas últimas homenagens a Nina, atingindo com a simples presen-
ça o seu objetivo de ver o nome dos Meneses degradado, uma vez que toda a cidade de
Vila Velha se encontrava no velório.
A casa, por sua vez, após a morte de Nina, adquire um aspecto ainda mais des-
cuidado, chegando ao ponto de, no último capítulo da obra, “Pós-escrito numa carta de
Padre Justino”, ser relatado que não tem mais condições de abrigar ninguém. Assim, se
mostra válido retomarmos a discussão acerca dos aspectos orgânicos da Chácara. Ao
tornar-se humanizada, como é ressaltado durante toda a obra, a casa adquire o aspecto
do qual nenhum ser humano consegue se ver livre: a mortalidade. A morte se revela no
romance como uma característica incondicionada e insuperável, deixando perceber a
casa como um corpo que se sacrifica: “Dentro da chuva cerrada quase sentia procurar-
me da distância o olhar do velho prédio sacrificado, com estrias de sangue que escor-
ressem ao longo de suas pedras mártires” (CARDOSO, 2009, p. 245). As expressões “ve-
lho prédio sacrificado” e “estrias de sangue” deixam perceber o sacrifício da habitação
por seus habitantes, numa imagem carregada de simbolismo religioso.
Ao começar o romance com uma pergunta inquietante (“... meu Deus, que é a
morte?”) e ao não expor teorizações acerca da mesma, Lúcio Cardoso força o leitor a
confrontar as imagens da morte. Imagens que induzem reflexões a respeito da efeme-
ridade e da transitoriedade das coisas e que, mesmo somadas, nunca apresentam o
quadro definitivo da história dos Meneses. Preservando as diversas lacunas existentes
nas narrativas, são legadas ao leitor imagens ambíguas e desconexas, que acabam por
expor a ele o potencial destrutivo do tempo, que age implacavelmente sobre tudo aqui-
lo que é vivo.
Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio Leal da Costa e Lídia do Valle
Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
CANDIDO, Antônio. “A nova narrativa”, in: A educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Editora Ática, 1989.
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CORRÊA, Ana Laura dos Reis. “Lúcio Cardoso e a crônica da ruína e da desagregação
em região periférica”, in: Revista Interdisciplinar. Sergipe, v. 5, nº. 5, p. 81-100, junho de
2008.
Resumo: Este trabalho faz uma breve análise do romance Venenos de Deus, Remédios
do Diabo, do escritor moçambicano Mia Couto, com foco especial no personagem Bar-
tolomeu Sozinho. O trabalho analisa ainda alguns aspectos literários que são frequen-
tes na literatura de Mia Couto.
Palavras-chave: Mia Couto. Fantástico. Ficção moçambicana contemporânea.
Mia Couto abre as cortinas de seu Venenos de Deus, Remédios do Diabo com uma
epígrafe de Mário Quintana que diz o seguinte: “A imaginação é a memória que en-
louqueceu”. Melhor apresentação para o que estaria nos esperando no palco de Vila
Cacimba, certamente não haveria.
Toda a trama do romance de Mia Couto envolve, especialmente, quatro perso-
nagens principais, que são: Dona Munda, Bartolomeu Sozinho, Sidónio1 Rosa e Deo-
linda.
Somos levados pelo narrador a percorrer uma trama juntamente com Sidónio
Rosa, um português que abandona Lisboa, sua terra natal, e vai para Vila Cacimba, em
Moçambique, em busca de Deolinda, com quem teve um relacionamento rápido – po-
rém intenso –, em Portugal. Em Vila Cacimba, Sidónio Rosa torna-se voluntário de um
posto de saúde da cidade (que sofre com uma epidemia) e frequentador da casa dos
supostos pais de Deolinda: Dona Munda e Bartolomeu Sozinho.
Nesse artigo, colocaremos em foco o personagem Bartolomeu Sozinho, mas, pa-
ra tal, será necessário destacarmos, primeiramente, algumas características marcantes
desse romance.
De início, é importante ressaltar o caráter não maniqueísta de Venenos de Deus,
Remédios do Diabo e, na verdade, dos romances de Mia Couto em geral. Nesse sentido,
podemos começar destacando o título do livro, que propõe uma inversão de nossa
1 Opto por manter, neste texto, a grafia dos nomes próprios conforme aparecem no livro.
Mais para o fim do romance, o narrador nos mostra um outro Suacelência, cu-
jo cargo de administrador foi-lhe retirado por se opor a um “descontrolado abate de
madeira, sem saber que o negócio era desenvolvido por uma empresa de um político
poderoso”. E ainda, que dispõe de dinheiro para o aluguel de um barco para o velório
de Bartolomeu Sozinho – seu inimigo declarado –, à altura do que este desejava em
vida. E é mais ou menos dessa forma que todos os personagens principais do romance
nos são mostrados. Ora de uma perspectiva, ora de outra.
É importante ressaltar também a presença do fantástico no romance. Mia Cou-
to nos leva a uma Vila Cacimba que vive sempre encoberta por um nevoeiro: um prato
cheio para uma narrativa fantástica. Os três cenários principais da narrativa – que são a
2 Neste trabalho o termo “em cena” refere-se à presença do personagem de forma direta no ro-
mance, ou seja, quando ele aparece em ação.
De todas as presenças do fantástico no romance, essa talvez seja a que mais nos
transporte a um outro plano. No momento em que Munda anuncia que “a casa está
morrendo”, vamos sendo levados para o âmago do fantástico, onde não há uma possi-
bilidade de explicação do acontecimento narrado por intermédio de leis naturais. Nes-
se caso, de acordo com Todorov,
aquele que o percebe [o fantástico] deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis
do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhe-
cidas para nós (TODOROV, 2004, p. 30).
dilhos – que são muito presentes na cultura africana – que, além de nos aproximar da
cultura em foco, preenche o romance com humor, emoção e poesia.
Para Anselmo Peres Alós, “tal qual Guimarães Rosa, um dos escritores brasilei-
ros mais admirados por Couto, é no trabalho sobre a materialidade da linguagem que
se produz o efeito de sentido poético na escrita” (ALÓS, 2010, p. s/n). Eis alguns trechos
do romance em que fica claro esse trabalho de Mia Couto com a materialidade da lin-
guagem:
– Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica (COUTO, 2008, p. 9).
– Sonhar só o faz ficar mais vivo.
– Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor (COUTO, 2008, p. 17).
– Não sou preto!
– Então?
– Sou extremamente mulato (COUTO, 2008, p. 31).
– Há muito que o Doutor não me espreita o sangue. Já não quer vampirar-me? (COUTO, 2008,
p. 140).
Quarto de Bartolomeu
Agora o médico entende a razão da eterna penumbra da casa. Não é a luz que ali está
interdita. São as sombras. Era essa a função dos pesados cortinados: impedir que a casa
albergasse as moventes sombras: uma dessas sombras seria Deolinda.
É um desses solenes cortinados que a mão magra de Bartolomeu vai acariciando, num
gesto quase sensual. Percorre os panos como se estivesse despindo uma das suas muito
sonhadas mulheres.
– O senhor deu em acariciar a casa?
– Depois de tantos anos, não sei se tenho outra família. Esta casa é minha parente, esta casa
sou eu mesmo (COUTO, 2008, p. 157) [grifo meu].
Bartolomeu exilou sua alma dentro de sua própria casa. Talvez seja por isso que
quando a casa voa, desaparece, não temos mais notícia do velho. Provavelmente ele
estava certo quando disse que a casa era ele mesmo.
Bartolomeu Sozinho é uma das figuras mais emblemáticas de Venenos de Deus,
Remédios do Diabo. É um negro que tem saudades do regime colonial e de sua vida em
alto-mar a bordo do Infante D. Henrique. De tanto conviver com branco, acaba perdendo
sua própria identidade. Nascido sob o nome de Bartolomeu Tsotsi, torna-se Bartolo-
meu Sozinho quando é batizado. “– Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas
aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?” (COUTO, 2008, p.
110). Tsotsi também significa “ladrão”, “membro de gangue”; para aproximar-se do
português, do branco, Bartolomeu sentia que era imprescindível não carregar com ele
um sobrenome de tamanha carga semântica, mas ao fazer isso, ao tornar-se Bartolomeu
Sozinho, ele acaba por perder sua identidade, ou no mínimo, modificá-la. “Quando
pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha de seu nome original.
Ele se colonizara a si mesmo” (COUTO, 2008, p. 110).
Conversando sobre língua, Bartolomeu oferece a prova de seu “branqueamen-
to” a Sidónio Rosa:
Referências bibliográficas
ALÓS, Anselmo Peres. “O narrador oblíquo de Mia Couto: Venenos de Deus, Remédios
do Diabo”, in: Revista África e Africanidades. Ano 2, n. 8, fev. 2010.
COUTO, Mia. Venenos de Deus, Remédios do Diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o conto Gaetaninho, do livro
Brás Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado, relacionando-o com o
poema Cota Zero, de Carlos Drummond de Andrade. Sendo assim, será observado o
comportamento do homem diante do “novo”, mais especificamente o automóvel, na
São Paulo moderna que se encontrava em um momento de crescimento industrial com
a chegada dos imigrantes, e com o processo acelerado da urbanização da cidade, na
década de 1920.
Palavras-chave: modernismo brasileiro, industrialização, modernidade, Alcântara Ma-
chado, Carlos Drummond de Andrade.
1. Considerações iniciais
Por essa passagem Marinetti evidencia seu desejo de negar a estética passadista
(utilizando a Vitória de Samotrácia, uma escultura que representa a deusa Atena Niké),
expressando principalmente o culto da velocidade que ganha força com a Revolução
Industrial. Essa revolução substitui muitas atividades manuais e artesanais pelas má-
quinas; sendo também nesse período descoberta a energia a vapor, elétrica, nuclear e
robótica.
Henry Ford foi o primeiro a produzir o automóvel em alta escala, importando
alguns para o Brasil, e em 1919 a Ford tinha iniciado em São Paulo a montagem do
modelo “Ford T”. Durante o período de guerra, os brasileiros improvisaram algumas
peças devido à necessidade do concerto de alguns veículos, e com isso iniciou-se a
construção dos primeiros automóveis nacionais. Dessa forma, o automobilismo trans-
formou-se em culto na cidade de São Paulo.
Em 1927, foi publicado o livro Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcân-
tara Machado, composto por onze contos que retratam a adaptação do imigrante italia-
no, a urbanização de São Paulo e o comportamento dos personagens modernos da
obra. Nessa narrativa cinematográfica, encontramos o humor dialogando com a preo-
cupação de focalizar o sujeito que ocupa a capital paulista. Ainda de acordo com Al-
fredo Bosi:
Voltado para a vida da sua cidade, Alcântara Machado soube ver e exprimir as altera-
ções que trouxera à realidade urbana em um novo personagem: o imigrante. O enxerto
que o estrangeiro, sobretudo o italiano, significava para o tronco luso-tupi da antiga são
Paulo produzira mudanças de costumes, de reações psicológicas e, naturalmente, uma
fala nova a espelhar novos conteúdos (BOSI, 1994, p. 374).
sua forma de introdução súbita e peculiar na cidade, duplamente aureolado pelo pres-
tígio da mais moderna tecnologia européia e do mais vistoso objeto de consumo conspí-
cuo, o automóvel passou a ser usado de forma a acentuar a sua mística e se impor como
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não
ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um
caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas,
mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que
feria a vista da gente era o Beppino (MACHADO, 2002, p. 23).
com cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupa-
cional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida rural no que se refere aos
fundamentos sensoriais da vida psíquica.
A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma
quantidade de consciência diferente do que a vida rural extrai (SIMMEL, 1967, p. 12).
Com o excerto acima, fica nítido que a rua é o espaço próprio da metrópole, isto
é, da modernidade. E para isso ser concretizado, Alcântara Machado utiliza além do
próprio espaço moderno – a rua – alguns recursos como a linguagem cinematográfica,
frases fragmentárias, discurso direto e sintático, elementos da metrópole (automóveis,
transeuntes, máquinas, motor, tumulto) fazendo com que a narrativa tenha um caráter
breve, rápido, para melhor reproduzir o ritmo frenético da realidade urbana.
Carlos Drummond de Andrade presenciou em Belo Horizonte as influências do
modernismo brasileiro, uma vez que o movimento influenciou todo o país, e foi adepto
do espírito renovador dos artistas paulistas, trocando correspondências com Mário de
Andrade e se tornando, por volta de 1930, na segunda geração modernista, o poeta de
maior expressão.
Assim como Antônio de Alcântara Machado retratou a relação do sujeito com o
automóvel, Carlos Drummond de Andrade, em 1930, publicou o livro Algumas Poesias,
composto por quarenta e nove poemas no qual consta o poema “Cota zero”, registran-
do também a convivência da sociedade moderna com esse objeto novo. Outro ponto
em comum entre ambos os autores é a utilização do humor em suas obras, pois
Drummond elabora o poema-piada estabelecendo um vínculo crítico com a realidade,
utilizando alguns mecanismos presente nos contos de Alcântara Machado, como a lin-
guagem coloquial, texto sintético e acontecimentos corriqueiros.
O poema que corrobora com a temática central do conto “Gaetaninho” é o se-
guinte:
Cota Zero
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(ANDRADE, 2010, p. 91).
Por meio dessa leitura, que apresenta algumas temáticas propostas pelas van-
guardas europeias, em especial o Futurismo, percebemos claramente a crítica feita à
euforia do progresso e da adesão à máquina. Nessa passagem, há um proveitoso
exemplo da postura antropofágica defendida por Oswald de Andrade, devido ao fato
de o autor colocar o automóvel no mesmo patamar que a escravidão, pois o homem
passa a exercer uma relação de subordinação com o automóvel, ou seja, o apego à tec-
nologia é tão intenso que se por um acaso ela falhar o mundo para, mesmo sabendo da
sua recente invenção, o sujeito moderno torna-se dependente da tecnologia e incapaz
de viver sem os bens matérias.
Cota Zero é um poema reflexivo que nos permite interpretá-lo como um registro
da novidade – a indústria automobilística –, demarcando-a como negativa quando o
poeta nos diz que o automóvel fez a vida ficar paralisada, isso significa que o homem
também para, fica neutro, imobilizado pelas falhas tecnológicas da “Era da Máquina”.
Tanto Antônio de Alcântara Machado quanto Carlos Drummond de Andrade
fazem uma crítica a sociabilidade do homem com o automóvel, através da linguagem
coloquial, do humor e do texto curto. Porém, no poema de Drummond a critica à velo-
cidade e à era tecnológica está mais explícita que no conto de Alcântara Machado, que
não apresenta o veículo com um aspecto tão depreciativo.
Exceto no conto “Gaetaninho”, Alcântara Machado aborda o automóvel nos
demais contos como um encanto, símbolo de poder e riqueza. Para melhor explicar,
temos o conto “A sociedade”, que narra a história de um rapaz, filhos de imigrantes
italianos. O autor utiliza o automóvel para representar a ascensão econômica do jovem.
O Lancia passou como quem não quer nada. Quase parando. A mão enluvada cumpri-
mentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia – Uiiiiia! Adriano Melli calcou o acelerador. Na
primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passeou de novo. Continuou. Mais duzen-
tos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade.
Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia! (MACHADO, 1982, p. 41).
para aqueles que têm autoconfiança ou confiança de classe, os veículos são fortalezas
protegidas de onde se domina a massa de pedestres; para aqueles que carecem e confi-
anças, os veículos são armadilhas, gaiolas, cujos ocupantes se tornam extremamente
vulneráveis ao relance fatal de qualquer assassino (BERMAN, 2000, p. 247).
3. Considerações finais
É por isso também que na análise que foi feita posteriormente percebemos que
o primeiro autor mencionado, Alcântara Machado, identifica-se mais com o Futurismo,
ou seja, com o culto pela velocidade, demonstrando muito mais os ganhos que a socie-
dade obteve com o surgimento do automóvel, do que os prejuízos. Já Carlos Drum-
mond de Andrade faz o contrário, isto é, apresenta de forma explícita os problemas
que o automóvel gerou na sociedade: as limitações que a máquina nos impõe.
Retomando o Futurismo, Marinetti reafirmou a mais valia da Revolução Indus-
trial e apenas os benefícios da velocidade, mas deveria mesmo repensar sobre o que
disse a respeito do mito de Atena, pois ela é, antes de mais nada, a “deusa da inteligên-
cia, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside as artes, a
literatura, a música e toda e qualquer atividade do espírito” (BRANDÃO, 1997, p. 39). E
nada melhor para reafirmar esse excerto do que as palavras sábias do grande estudioso
Mário de Andrade, que declarou brilhantemente que Atena é cintilância, mas oposta à
cintilância ilusória do automóvel de Marinetti.
Com outras palavras, Alcântara Machado e principalmente Drummond nos
dizem, em suas obras, que o espírito crítico vai além da vanguarda, ou seja, a obra de
cada um deles problematiza o presente sem desprezar o passado, pois o que hoje é
considerado novo, encantador, amanhã será velho; mas não podemos deixar de lem-
brar que esse objeto “velho” foi fonte de inspiração para a criação do “novo”.
Nesse sentido, é possível afirmar que as antigas bicicletas deram origem aos
veículos mais modernos, o automóvel que foi considerado como novo e deslumbrante
na década de 1920, hoje já faz parte da grande população, mesmo quem não o possui
pode utilizá-lo como a prática mais comum no nosso dia a dia.
Logo, podemos concluir dizendo que os autores Alcântara e Drummond abor-
daram a sociabilidade do homem moderno com o automóvel por um viés diferente,
mas deixando claros os encantos e desencantos que ele pode gerar na sociedade con-
temporânea. Pois como disse Roland Barthes, no poema de Drummond, Cota zero: “a
redução da literatura a um código (falando grosso modo), não elimina o problema his-
tórico, mas, obviamente, obriga a pensar a história de maneira nova” (BARTHES, 2005, p.
96).
4. Referências Bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Rio de Janeiro: Record, 2010.
BARTHES, Roland. Inéditos. Vol. 4: Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BOSI, Alfredo. Histórica concisa da literatura brasileira. 34 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
MACHADO, Antônio Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. São Paulo: Martin Claret,
2002.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos fre-
mentes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
GABRIELA ÜBER
Aluna de Estudos Literários na Unicamp. e-mail: gabrielauber@hotmail.com
Orientadora: Larissa de Oliveira Neves Catalão.
Resumo: Este ensaio visa à comparação das obras de dois dramaturgos cujas peças fo-
ram escritas na mesma cidade, São Paulo, e aproximadamente na mesma época: Jorge
Andrade e Abílio Pereira de Almeida. As peças enfocadas são A moratória, Os ossos do
barão e O terceiro elo, do primeiro; Paiol velho e Santa Marta Fabril S. A., do segundo.
Os dois autores pertencem à elite paulista e trabalham com a ideia de “paulista de 400
anos”, isto é, com as famílias aristocráticas que fundaram a cidade de São Paulo. Em
suas peças, os dois abordam temas como a decadência da aristocracia rural paulista e
a ascensão da burguesia; a presença do imigrante no meio social paulista e o precon-
ceito perante ele; a importância da família, do nome; dentre outros pontos semelhan-
tes. Ambas as obras sustentam-se em experiências vivenciadas pelos dramaturgos
dentro de seu meio social e físico.
Palavras-chave: dramaturgia brasileira; São Paulo; teatro e história
[...] em geral, os críticos malhavam todas as minhas peças. Então eu achava que, como
as minhas peças faziam mesmo muito sucesso, modéstia à parte, e os críticos eram im-
piedosos, a opinião da crítica, em matéria de teatro, estava dissociada do gosto do pú-
blico. Mas como eu estava fazendo sucesso, pouco ligava para a crítica, quer dizer, a crí-
tica é que estava dissociada, azar o dela, não é? (ALMEIDA, 1981, p. 17).
No ano de 1955, Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida tiveram suas peças
mais conhecidas encenadas concomitantemente: A moratória, no Teatro Maria Della
Costa, e Santa Marta Fabril S.A., no TBC. Porém, enquanto esta obteve enorme bilhete-
ria e permaneceu muito tempo em cartaz, a primeira, embora bastante elogiada pela
crítica, foi um fracasso de público e causou um desfalque financeiro na companhia Ma-
ria Della Costa. Como comenta o próprio Abílio, “A Moratória, com todo o elogio da
crítica, com toda a sabedoria e com todos os conhecimentos de Jorge Andrade, quebrou
a Maria Della Costa e ela foi ser empregada do TBC” (ALMEIDA, 1981, p. 17).
Essas duas peças costumam ser a referência comparativa da obra dos dois auto-
res pelos críticos e pesquisadores, que apontam semelhanças entre eles; poucos são os
que aprofundam as semelhanças mencionando outras obras, principalmente em se tra-
tando da obra de Abílio: dentre mais de vinte peças escritas por ele, apenas uma fora
publicada até 2009, o que tornou difícil o acesso a elas. Por consequência o autor atu-
almente é pouco lembrado, mesmo no meio acadêmico e teatral. Gilda de Mello e Sou-
za comenta brevemente a semelhança dessas peças:
[...] uma e outra peça são construídas a partir do mesmo esquema, um grave golpe eco-
nômico que põe em choque uma família, determinando e esclarecendo daí em diante o
comportamento das personagens. Assistimos em ambas o esforço desesperado de so-
brevivência de dois grupos, o ajuste de contas entre marido e mulher, pais e filhos, soci-
edade e seus membros (MELLO E SOUZA, 1980, p. 112).
Santa Marta Fabril S.A. tem sua trama centrada em uma família que concentra a
maioria das ações de uma fábrica e que vive em um meio de luxo e conforto graças aos
lucros dela. À matrona da família, dona Marta, atribui-se o nome da empresa e o início
do monopólio familiar. Ela é a personagem mais sincera, ao dizer claramente que faz
todo o necessário em função do bem-estar da fábrica, e almeja que seus filhos e genros
façam o mesmo.
DONA MARTA: [...] Ela é de nossa família. É a nossa própria família. [...] É alguma coisa
mais que uma fábrica. É nosso patrimônio, nosso sangue. [...] A Santa Marta é o traço de
união da família. Aqui se briga por qualquer coisa. [...] Mas todos se unem em torno da
Santa Marta (ALMEIDA, s.d., p. 11).
JÚLIA: [...] Não nos separamos, não foi por sua causa não, que tinha a sua avó para ficar
com você. [...] Não nos separamos... parece ridículo... mas é a pura verdade... Não nos
separamos por causa da Santa Marta Fabril Sociedade Anônima. Para não dividir as
ações. Para não perder a maioria. É isso mesmo. É a pura verdade. O traço de união da
família. Eu e seu pai... toda a família... só entramos em acordo quando se trata da Santa
Marta. Só. O resto é briga, incompreensão... tudo (idem, p. 31)
Sua filha Marta a princípio parece gostar de seu noivo, aprovado por toda a fa-
mília por ser acionista da fábrica e também seu administrador, mas tem sérias dúvidas
sobre a felicidade do futuro casamento. Logo ela compreende a responsabilidade que
também lhe cabe, de manter a posse da fábrica, e percebe que seu casamento consiste
numa obrigação, e não representa uma opção de acordo com sua preferência. Mais tar-
de, após ter tido amantes e saber que seu marido já se relacionara com várias de suas
amigas, ela desabafa para um amigo, de forma reflexiva e mais para si mesma:
MARTA: [...] Não fiz ilusão com o meu casamento. Gostava do Cláudio, mas nunca esti-
ve apaixonada por ele. Encarei o problema como uma princesa a quem compete defen-
der a dinastia. [...] Com a vovó foi assim, com mamãe também. Chegara a minha vez
(idem, p. 31).
No entanto, ela consegue rebelar-se contra essa “dinastia”, ao educar sua filha
Martuxa com outros valores para evitar que ela também participe dessa prisão da con-
veniência social. Resultado: no último ato nos deparamos com uma Martuxa estudante
de Sociologia, amiga de imigrantes e que condena a desigualdade social. Marta não
tivera coragem de largar a conveniência, mas pode ao final da peça se orgulhar de que
sua filha o fizera, em meio à condenação da família.
CLÁUDIO: [...] Deixou a menina correr à sorte, à lei da natureza. Hoje ela é completa-
mente diferente de nós. Até o oposto.
[...]
JÚLIA: [...] Essa menina está muito mal orientada. Desculpe, Marta. Mas sempre foi essa
a minha opinião. É uma menina rebelde. Indiferente ao nosso modo de viver, alheia às
nossas coisas (idem, p. 85).
Portanto, Santa Marta Fabril S.A. é uma peça que retrata um mundo de conveni-
ências sociais dentro da alta aristocracia paulista e questiona até que ponto poderiam
chegar os seus membros para não perder dinheiro e status. Além disso, apresenta con-
flitos entre gerações, marcados pela diferença de pensamento de Martuxa e Cláudio,
seu pai. Por meio dos diálogos nota-se também o preconceito dos “quatrocentões” fren-
te aos imigrantes paulistas – a família condena a amizade que Martuxa mantém com
um colega que é filho de imigrantes – e à ascensão de alguns deles – imigrantes enri-
quecidos que então são mais bem quistos pela sociedade, mas ainda assim com certas
reservas.
Outro tema presente em Santa Marta Fabril S.A. e que causou alvoroço entre a
plateia da época foi a questão da revolução de 32. O segundo ato começa com o hino da
revolução e a família falando dos feitos heroicos realizados por Cláudio e Tonico. Po-
rém, o atrito surge quando Cláudio diz que jantará com um velho amigo gaúcho, alia-
do ao Governo. A princípio toda a família se opõe, inflando os pulmões com o orgulho
paulista; todavia, quando descobrem que esse amigo será a salvação da falência da
fábrica, por meio de empréstimos altos com baixos juros, todos acabam concordando
com a ideia, preferindo manter o luxo à posição política.
CLÓVIS: [...] acho essa fórmula “São Paulo não esquece, não perdoa e não transige” mui-
to bonita, digna de um poema, mas muito pouco prática. Se temos indústria, comércio e
lavoura, se precisamos de dinheiro, de exportação, de leis, onde está tudo isso? No Ban-
co do Brasil, na Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro, com eles. Nós temos mes-
mo é que perdoar, esquecer e transigir. Trata-se de uma questão de sobrevivência. O
resto é poesia (idem, p. 46).
Esses mundos (pré e pós-moratória), que são bem captados pelos registros temporais,
servem como questionamento de uma história de vida que teria sido modificada sem
nenhum preparo. Os fazendeiros, crentes em suas posições de aristocratas, não teriam
se preparado para uma possível queda. Desse modo, suas vidas perderiam muito do
sentido adquirido até então, fazendo com que eles optassem pela ilusão ao invés de um
enfrentamento consciente da decadência que se aproximava (NAZÁRIO, 1997, p. 76).
O mundo, as pessoas, tudo! Tudo agora é diferente! Tudo mudou. Só nós é que não. Es-
tamos apenas morrendo lentamente (ANDRADE, 1986, pp. 160-161).
Apesar de A moratória e Santa Marta Fabril S.A. serem comumente as peças mais
comparadas dos autores, há outras duas que apresentam ainda mais semelhanças com
elas do que as duas entre si. Refiro-me a O terceiro elo, semelhante a Santa Marta, e ao
Paiol velho, semelhante a A moratória.
Como base para comparação de A moratória com Paiol Velho, de Abílio Pereira
de Almeida, vejamos as seguintes falas:
JOAQUIM: meus direitos sobre essas terras não dependem de dívidas. Nasci e fui criado
aqui. Aqui nasceram meus filhos. Aqui viveram e morreram meus pais. Isto é mais do
que uma simples propriedade. É meu sangue! Não podem me fazer isso! (ANDRADE,
1986, p. 166).
TONICO: (...) No papel ela não é minha. Mas de justiça é. Meu pai tomou conta dela du-
rante 30 anos. Eu nasci aqui. Trabalho aqui. Vou morrer nesta terra. Ela é minha de co-
ração... E vai ser minha, no duro, com tabelião e tudo... (ALMEIDA, s.d., p. 4).
TONICO: Roubado mesmo. Mas roubando do que é meu. Quem não trabalha não ganha.
Isso é que é direito. A terra só devolve; quem não dá não recebe.
LINA: [...] dinheiro roubado não dá sorte.
TONICO: O meu não é roubado. Roubado é o deles, que sempre viveram à custa do tra-
balho dos outros. Meu pai morreu pobre, sem um tostão. Tive que largar os estudos e
vir pegar no pesado para poder comer. Enquanto isso eles gastavam na Europa (AL-
MEIDA, s.d, p. 5).
Somente quando desconfiam que são roubados por Tonico é que os donos re-
solvem visitar a fazenda e tomar o controle: Mariana convence seu filho João Carlos a
permanecer na fazenda e aprender a administrá-la para extrair o maior lucro possível,
mas, sem os conhecimentos práticos das questões campestres e de agricultura, além de
diferentes hábitos rotineiros da vida no campo, logo o moço da cidade sucumbe e se
entrega às jogatinas da cidadezinha, deixando novamente a fazenda aos cuidados de
Tonico e se afundando em dívidas. Ao final, Tonico consegue o que almejava, a fazen-
da, por meio de um contrato que João Carlos assinara, para pagar dívidas. Todavia, ele
morre no momento da comemoração da posse com seus compadres. Descobre-se tam-
bém no final da peça que sua esposa, Lina, está grávida de João Carlos. Esta persona-
gem Lina faz com que a peça acabe com enorme sentimento de desolação, quando se
percebe que mesmo a esposa de Tonico não estava a seu lado e era fascinada pelos aris-
tocratas, relacionando-se com João Carlos, depois de já ter sido também amante deste.
E seu pensamento final:
JOÃO CARLOS: Adeus, Lina. Agora o Paiol Velho é seu. Ninguém o tirará de você. [...] Se
for homem... ensine-o a amar esta terra... Vale a pena... a mim nunca ensinaram... (e sai)
[...]
LINA: Paiol Velho... Não... não é meu... ela disse que sempre pertenceu à família deles.
(Olhando e pondo a mão no ventre) E vai continuar na família deles... (ALMEIDA, s.d, p.
48).
[...] a peça está próxima mesmo é das obras de Jorge Andrade: A Moratória, O Telescópio
e Os Ossos do Barão. Da última, pela síntese entre patrão e empregado, através do casa-
mento ou da união sexual. Das duas primeiras, pela propriedade perdida ou desmem-
brada, respectivamente. Marcelo (A Moratória) e Sebastião (O Telescópio) primam pela
inaptidão para o trabalho, como João Carlos em Paiol Velho. E em todas a mulher apare-
ce como elemento forte (FESTER, 1985, p. 226).
Assim como Paiol velho diferencia-se do estilo que caracteriza boa parte da obra
de Abílio, O terceiro elo é uma peça de Jorge Andrade diferenciada de todas as suas pe-
ças compiladas em A Marta, a árvore e o relógio. Há unanimidade da crítica teatral em
afirmar que as dez peças componentes deste ciclo são as melhores do autor, enquanto
as outras são consideradas mais fracas e pobres temática e formalmente. Enquanto no
ciclo, Jorge preocupa-se com a história e a memória, utilizando-se de metalinguagem e
intertextualidade, além de diversos símbolos num teatro de linguagem literária, bei-
rando ao poético, nas outras peças sua linguagem é mais direta, aliada a temas con-
temporâneos e presentes diretamente na realidade do Brasil da época do autor. Ele
para de olhar para o passado para se ater aos problemas políticos e sociais de sua épo-
ca.
O terceiro elo é uma peça escrita já na década de 80 e consiste na última parte de
uma peça de coautoria intitulada A corrente, na qual cada elo fora escrito por um autor
com o objetivo de retratar três elos sociais: a classe baixa no primeiro ato (escrito por
Consuelo de Castro), a classe média no segundo (escrito por Lauro César Muniz) e a
classe alta no terceiro (de Jorge Andrade), cada um com sua trama independente. Jorge
Andrade fora então encarregado de retratar a classe alta, e o faz por meio de um casal
em um ato de cenário único – o quarto de dormir. A cena consiste no diálogo entre ma-
rido e mulher, enquanto esta se arruma para encontrar outro homem. Toda a peça se
passa durante esta preparação, com a mulher querendo que o marido a impeça de sair,
enquanto este se remói por dentro, mas não o suficiente para interrompê-la. O encontro
dela será com um milionário, que, em troca, salvará a fábrica dele da falência. Por mais
que a ame, o marido, no momento da decisão, prefere manter a posição social à digni-
dade moral. A grande questão desta peça volta-se para a dualidade da moral e da posi-
ção social, a questão do nome e até onde se pode ir para mantê-lo.
Severo, o marido, orgulha-se do nome de sua família:
SEVERO: (sorri amoroso) Milhares e milhares de prédios onde estão milhões de toneladas
de ferro saídas da minha metalúrgica. (Cheio de si) Meu avô, meu pai e eu... ajudamos a
erguer esta cidade. A mais poderosa da América Latina. Foi erguida com ferro e aço que
moldamos (ANDRADE, s.d., p. 8).
MARIANA: [...] qualquer preço deve ser pago pela metalúrgica, não é mesmo?
SEVERO: Não concebo a vida sem minha metalúrgica. É a própria história da minha fa-
mília. História que começou com um pequeno forno no quintal do meu avô. [...]
MARIANA: (amarga) forno que se transformou na poderosa Metal Brasil S.A.!
SEVERO: A mais poderosa de todas.
MARIANA: (irônica) De todas as nacionais, não é?
SEVERO: Claro, Mariana. As estrangeiras são mais poderosas (idem, p. 8).
a falência de muitas delas. Na trama criada por Jorge Andrade, é justamente o dono de
uma empresa estrangeira que irá conceder um empréstimo para salvar a fábrica de
Severo em troca de uma noite com a sua mulher. Mariana sente-se indignada por seu
marido manter a fábrica acima de tudo, mas não se nega a realizar a tarefa, pois o que
desejava era que seu marido a impedisse, sentindo-se desolada com a falta de atitude
deste com relação ao encontro vindouro.
Severo sofre, mas se mantém intransigível: está mesmo disposto a fazer de tudo
para não perder sua fábrica:
MARIANA: (tensa) Mais importante do que eu, seus filhos e sua dignidade?
SEVERO: Ela é tudo isso junto. O homem é o trabalho que realiza. Sem ela... não pode ter
dignidade.
MARIANA: (fremente) E a família onde fica? A família, a honra e o orgulho?
SEVERO: A metalúrgica é a família... e o meu orgulho!
MARIANA: E paga qualquer preço por ela?
SEVERO: Pago! (idem, p. 10)
Por fim, cabe comentar aqui a peça Os ossos do barão, de Jorge Andrade. Esta pe-
ça é a mais cômica do autor e obteve um grande sucesso de público. Ela mostra a as-
censão financeira e social de um colono italiano, a primeira por meio de muito trabalho
e competência, e a segunda por meio do casamento de seu filho com a filha de aristo-
cratas paulistas. Nesta peça, percebemos o início da quebra de paradigmas até então
intransponíveis, pois enquanto os mais velhos sentem-se horrorizados com esse casa-
mento, os pais da moça aceitam com maior facilidade e concordam que será benéfico
para todos, pois em troca do nome, eles terão o auxílio financeiro de que necessitavam.
Os jovens, então, estão ainda mais distantes desses padrões tradicionalistas, com o filho
do italiano rejeitando o desejo do pai de ter um nome aristocrático na família, e a filha
dos quatrocentões não se importando e até mesmo se recusando a “carregar a caravela
de Pedro Álvares Cabral”. Esta peça mostra um exemplo de uma história comum do
Brasil da época: ascensão financeira do colono seguida de ascensão social, aliada à de-
cadência aristocrata.
[...] o fazendeiro de café, que surgiu e se afirmou, historicamente, como uma variante
típica do antigo senhor rural, acabou preenchendo e destino de dissociar a fazenda e a
riqueza que ela produzia do status senhorial. Doutro lado, o imigrante nunca se propôs
como destino à conquista do status senhorial. O que ele procurava, de modo direto,
imediato e sistemático, era a riqueza em si e por si mesma. Só tardiamente e por deriva-
ção ele iria interessar-se pelas consequências da riqueza como fonte, símbolo e meio de
poder. Por isso, ambos possuem algo em comum: identificam a ruptura com a ordem
senhorial como um momento de vontade social, que exprimia novas polarizações histó-
ricas do querer coletivo (FERNANDES, 1987, p. 103).
EGISTO: (descontrola-se) Olhe aqui, Martino! O que sou ganhei com estes braços e com
esta cabeça. Me intende? (Eleva a voz pouco a pouco) O que tenho não encontrei na rua,
nem recebi de presente. Carcamano, emigrante... e com muito orgulho. Fiz mais do que
eles. Quando cheguei aqui, eram os donos de tudo. Hoje, o dono sou eu. E lavoro ho-
nesto. Honestíssimo! Vou me importar com o que pensam? [...] Conheço muitos brasi-
leiros que são turistas qui! Qui! Andam por aí olhando a paisagem, estudando história.
Io faço la história (ANDRADE, 1986, p. 410).
Nesta peça percebemos diversos pontos em comum com Paiol velho, como a de-
cadência da aristocracia paulista e a ascensão do imigrante, a migração predominante
do ambiente rural para o urbano, a desvalorização do nome e a rivalidade moral, nome
versus bem-estar, dinheiro. Há também diferenças nos valores de cada geração, como
em Santa Marta Fabril S.A., com os mais jovens adotando uma postura mais libertária
com relação à importância do nome e valores familiares intrínsecos. As peças represen-
tam o modo como a sociedade paulistana se transformava no decorrer do século XX:
Um comentário final
Nota-se que a obra dos dois autores traça um painel da sociedade paulista alia-
da à história de São Paulo, com a passagem do meio rural para o urbano e a posterior
industrialização, além da consolidação da burguesia e da classe média como classes
sociais. Apesar de estilos teatrais muito divergentes, Jorge Andrade, com suas peças de
cunho literário e reflexivas, e Abílio Pereira de Almeida, com suas comédias simples e
francas, ambos preocupam-se com seu meio e mesclam experiências da própria vivên-
cia com o fazer teatral. “O drama deve ser um quadro do século, uma vez que os carac-
teres, as virtudes, os vícios são essencialmente aqueles do dia e do país” (ROUBINE,
2003, p. 67).
Referências
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dos originais presentes no CEDAE/IEL.
______. Santa Marta Fabril S.A. Versão estabelecida por Gabriela Über a partir dos ori-
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_____. O Terceiro Elo. Cópia original concedida pela pesquisadora Elizabeth Ferreira
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maturgia. São Paulo: Fundação VITAE (relatório final de pesquisa), 2002.
WARREN, Dean. A industrialização de São Paulo. São Paulo: Difusão Editorial S.A., s.d.
Resumo: Na atual paisagem poética brasileira, ricas são as expressões líricas. Certa-
mente, sobressai a obra da poeta mineira Adélia Prado que, em sua produção, conjuga
temas como a religiosidade, o cotidiano, o ser mulher, assim como a experiência da es-
crita poética. Pretendemos explicitar, a partir do poema “O poeta ficou cansado”, a re-
flexão da autora no que versa ao lugar ocupado, em um mundo de utilitarismos, pelo
poeta, já que este é visto, de certo modo, como leitor estético e ético do mundo. De
igual modo, conjugaremos, nessa leitura, a percepção do espaço significativo represen-
tado pela poesia, vivenciada como experiência corporal, como um chamado diante do
qual a resposta afirmativa é um imperativo.
Palavras-chave: Poesia brasileira contemporânea. Palavra poética. Adélia Prado.
* O presente trabalho foi desenvolvido na disciplina Teoria da Poesia, ministrada pela Prof. Dra.
Elaine Cristina Cintra.
O poema “O poeta ficou cansado” abre o livro Oráculos de maio, de 1999. Surgi-
do após um silêncio literário de cinco anos, a localização do poema, bem como seu títu-
lo e sua temática, fazem jus à perspectiva da poeta de que “a coisa que dá mais pista do
autor é o texto. E principalmente quando ele não quer dar pista, quando ele fica ma-
quiando a coisa, aí ele se entrega inteiro” (PRADO, 1994); ou seja, sua poesia é retrato de
que
experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só. Isto porque a experiência
que um poeta tem diante de uma árvore, por exemplo, que depois vai virar poema, é
tão reveladora do real, do ser daquela árvore, que ela me remete necessariamente à fun-
dação daquele ser. A origem, quer dizer, o aspecto fundamental daquela experiência,
que não é a árvore em si, é uma coisa que está atrás dela, que no fim é Deus, não é?
(PRADO, 2000. p. 23).
Ao leitor, apresenta-se uma questão crucial: o poeta, este que escreve, está can-
sado e, por isso, não quer mais ser arauto da poesia (v. 1). No seu cansaço, ele pergunta
àquele que lhe inspira a palavra poética, sobre sua condição de poeta servidor (v. 2-4).
Questiona, portanto, ao inspirador, porque este não grita a poesia, já que sua voz tem
um alcance universal (v. 5-8). Para isso, o poeta justifica-se sobre o papel da poesia, já
que “Tudo progrediu na terra” (v. 9) e a obra poética, primitiva como a função dos cai-
xeiros-viajantes, vaga de porta em porta (v. 10-11), tal qual o exercício de vender cani-
vetes mágicos (v. 12-16). Por fim, o eu lírico eleva-se em oração, pedindo a “Deus” (v.
17) que lhe deixe exercer sua função doméstica (v. 18-20). A esta oração, o “Senhor” (v.
21), o inspirador responde que só come palavras (v. 22).
Oráculos de maio (1999) contém cinquenta e sete poemas, divididos em seis blo-
cos. O primeiro bloco, intitulado “Romaria”, apresenta a epígrafe “Quero vocativos
para chamar-te, ó maio”, e compõe-se de trinta e cinco poemas. Inicia-se, conforme
explicitado, pelo poema “O poeta ficou cansado”. Os outros blocos são “Quatro poe-
mas no divã”, com quatro poemas, “Pousada”, igualmente com quatro poemas, “Cris-
tais”, formado por seis poemas, “Oráculos de maio”, composto de sete poemas, e, por
fim, “Neopelicano”, com um poema. Este último é antecipado pela epígrafe “Então se
lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas ele desapareceu (Lc 24,31)”.
Desse modo, “O poeta ficou cansado” é a abertura de todos os blocos e poemas
subsequentes. Composto por vinte e dois versos livres, o poema parece referir-se a um
diálogo entre o poeta e aquele que lhe inspira a poesia. De igual modo, o léxico apre-
senta variações do fonema [t] que, em vocábulos como “Tu”, “Tua”, “Teu arauto”, “tu-
do”, “terra”, possibilita que se pense em uma dificuldade, um impedimento para que a
voz do poeta se manifeste. Nos dois últimos versos (v. 21-22), tal sonoridade não se faz
presente, o que parece significar que o poeta pode explicitar, livremente, a palavra que
recebe. Igualmente, notamos que determinados vocábulos estão grafados em letra
maiúscula, como “Teu”, “Tu”, “Tua”, “Deus”, “Senhor”; em suma, o poema tem carac-
terísticas de prece.
Faz-se interessante sublinhar, nesse sentido, as noções contrastantes apresenta-
das. Primeiramente, o título do livro, Oráculos de maio, faz referência à imagem do orá-
culo, sendo que a autora afirma que “eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de
uma divindade” (PRADO, 2005). Entretanto, não é qualquer oráculo, mas aquele que
pertence a “maio”, mês das noivas, do casamento e, na religiosidade católica, das pro-
cissões marianas e das coroações de Nossa Senhora. Assim, às imagens do oráculo e do
desejo de louvar o tempo do amor, correspondem o cansaço, o difícil período de vazio
(PRADO, 2005), que faz o poeta questionar seu próprio ofício.
Do mesmo modo, percebe-se que, mesmo cansado e desejoso de não ser mais
arauto da poesia, o poeta não deixa de entregar ao leitor toda a sequência de cinquenta
e seis poemas, que se seguem ao primeiro. Além disso, é notável que a epígrafe que
antecede o último poema situa-se no Evangelho de Lucas, na conhecida narrativa dos
“Discípulos de Emaús”, no qual, após ter partido o pão, o Cristo ressuscitado desapa-
rece diante dos olhos dos dois discípulos (Lc 24,30-31). Dessa forma, não é sem motivo
que o poema analisado apresenta a dinâmica entre o desejo de fazer pão e a palavra
que alimenta, pois, estando invisível a fonte da poesia, a palavra poética é o alimento
mais perene, o alimento espiritual, “comida de primeira qualidade” (PRADO, 1994).
Destaca-se, semelhantemente, o princípio do poema:
“Pois [...]” marca o início; e o faz como justificativa daquilo que o título expres-
sa, a saber, o cansaço do poeta. “Pois” é, de acordo com a gramática tradicional, uma
conjunção explicativa quando antecede o verbo (CEGALLA, 2008). Portanto, parece que
o eu lírico está explicando-se a respeito do seu silêncio, da mudez que antecedeu a es-
crita do poema.
O poeta está cansado de ser uma voz solitária, arauto, mensageiro de uma ro-
ta que não é sua. Sabendo-se porta-voz da poesia (PRADO, 1999), o eu poético manifesta
sua dúvida sobre permanecer tal porta-voz, obedecendo a um imperativo violento da
palavra poética, que o obriga a “tomar navios de rota/ que não escolhi” (v.1-2). Cabe o
questionamento sobre quem, na experiência religiosa-poética de Adélia Prado, é o ins-
pirador da poesia, ou seja, quem é o “Tu” do poema. Para ela, “é o Espírito Santo. Ele
quer falar e me usa. No caso, sou um oráculo” (PRADO, 2000, p. 27).
Porque, se “todos têm voz” (v. 2), somente o poeta tem a responsabilidade de se
deixar tomar pela força inspiradora? Esse parece ser o questionamento do eu lírico no
decorrer do poema. Subjaz, ao poema, a interrogação direta ao “Tu” poético, Deus
(PAULA, 2004, p. 115).
O escrito é testemunha desse diálogo:
afinal é a própria coisa na sua forma, sua ideia, seu estado mais puro e alto (CORTÁZAR,
1993, p. 97).
De qualquer modo, ele não grita. E, ainda que a Romaria, a multidão dos ho-
mens, caminhe rumo a um destino comum, a voz, de onde vem a poesia, permanece
em silêncio. Tal silêncio passa a se chocar com o dilema do lugar da poesia em um
mundo onde tudo alcançou desenvolvimento. Assim,
Nesse ponto, a voz poética apresenta a questão crucial na atual discussão sobre
a lírica. Isso porque, na atual conjuntura social, de máximo progresso tecnológico, onde
“tudo progrediu na terra” (v. 9), o sujeito torna-se coisa, objeto (GINZBURG, 2003,
p.64). Dessa forma, parece-nos que a poesia de Adélia Prado, além dos elementos reli-
giosos que lhe são comuns, apresenta, no poema analisado, a importante reflexão sobre
a arte em um mundo de seres humanos coisificados. Em outras palavras, a subjetivida-
de lírica, que neste poema se expressa como diálogo, tem
seu efeito sobre outros que não o poeta em monólogo consigo mesmo -, isso [...] ocorre
se a obra de arte lírica, ao retrair-se e recolher-se em si mesma, em seu distanciamento
da superfície social, for motivada socialmente, por sobre a cabeça do autor. O meio para
isso, porém é a linguagem (ADORNO, 2003, p.74).
sua palavra, a poesia, tal qual canivete que se leva no bolso, é tão cortante quanto “um
faqueiro completo” (v.16). Portanto, aos homens e às mulheres (v.12-13), o canivete
mágico da poesia pode ser ofertado. Nunca se saberá qual vida ele poderá tocar; o que
se sabe, entretanto, é que esse canivete tem a virtude de cortar, tirar para fora, furar
(v.15). Sua ação pode ser tão eficaz quanto sua afiada e multifacetada lâmina.
Nesse sentido, a poesia cortante, “vista como a encarnação humana da palavra
fundadora: a palavra divina” (QUEIROZ, s/d), alude à figura do Filho do homem, pre-
sente no livro do Apocalipse, visto que, de sua boca, saia uma espada afiada, com dois
gumes (Ap 1,16). Dessa forma, a palavra poética pode cortar a carne e penetrar nos
corações, seja o dos “cidadãos”, seja o das “senhoras”.
Uma poesia do cotidiano, conforme afirmam seus estudiosos (QUEIROZ, s/d), o
poema de Adélia Prado conclui-se com uma oração:
17. Ó Deus,
18. me deixa trabalhar na cozinha,
19. nem vendedor nem escrivão,
20. me deixa fazer Teu pão.
“Ó Deus” (v. 17): este vocativo parece resumir toda a angústia do poeta cansa-
do, exaurido de suas forças por ter de, no mundo de hoje, pedir licença para poetar.
Para Adélia Prado (2000, p.31), “a poesia é isto: revelação, epifania, parusia. Mas o poe-
ta é um coitado. Então, sabe o que é? Um estado de graça. É um estado de graça”.
E tal estado de graça, em que a palavra emerge como oração, anuncia um desejo
de permanecer no cotidiano, na experiência doméstica, pois “eu sou mulher e sou do-
méstica. Eu sou primeiramente uma doméstica. Então minha poesia tem esses regis-
tros, ela é assimilável por esse aspecto” (PRADO, 1994). Assim, vindo à cozinha todo dia
(PRADO, 1994), ou seja, vivendo o seu cotidiano ordinário, o poeta não quer insurgir-
se contra o senhor, visto que seu desejo é fazer o pão que lhe apraz.
Por conseguinte, o desejo do eu lírico adeliano é o de não ser “vendedor nem
escrivão” (v. 19). Com isso, o poeta parece se referir à sociedade consumista e burocrá-
tica, contrapondo a ela o “fazer Teu pão” (v. 20). Em certo sentido, o eu poético, para o
qual a comida sempre está presente (NÊUMANNE, 1999), oferece o pão, símbolo eucarís-
tico de comunhão transcendente e fraterna, ao inspirador da palavra poética. Desse
modo, Deus, que “não pode ser visto, imaginado, tocado ou cheirado, mas deixa-se
desvelar por palavras ao alcance de nosso entendimento e se torna ‘visível’ na sacra-
mentalidade das coisas” (BETTO, 2000, p. 121), revela-se em uma epifania da poesia
(PAULA, 2003, p. 158).
Referências
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade, in: Notas de literatura I. São Paulo:
Duas Cidades, 2003, p.65-89.
BETTO, Frei. Adélia nos prados do Senhor, in: Cadernos de Literatura Brasileira: Adélia
Prado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 9, jun./2000, p. 127-127.
CORTÁZAR, Júlio. Para uma poética, in: Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993,
p. 85-101.
FAUSTINO, Mário. Para que poesia?, in: Poesia-experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977,
p. 27-41.
GINZBURG, Jaime. Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios, in: Alea, vol. 5, n. I,
jan./jun. 2003, p. 61-69.
NÊUMANNE, José. A mineira Adélia Prado, poesia e prosa com fé no chão, in: Jornal da
Tarde (14/04/1999). Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/jneumanne14c.html>. Acesso em 04/12/2010.
PAULA, Maria do Carmo Lara. O percurso da epifania na poética de Adélia Prado, in:
Em Tese, vol. 8, dez. 2004, p. 153-162.
______. Oráculo de março, in: Cadernos de Literatura Brasileira: Adélia Prado. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, n. 9, jun./2000. Entrevista, p. 21-39.
____. Adélia Prado retoma o diálogo com Deus em dois livros, in: O Estado de São Paulo.
22/05/1999. Entrevistada por José Castello. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/castel15.html>. Acesso em 04/12/2010.
Resumo: O trabalho apresenta uma relação entre Pablo Neruda e Roberto Bolaño, pe-
lo discurso literário, analisando as obras Confesso que Vivi (1974), de Neruda – focando
no capítulo 12, “Pátria Doce e Dura” – e Noturno do Chile (2000), de Roberto Bolaño.
São obras de gêneros, linguagem e períodos distintos, porém em determinada instân-
cia, abordam o mesmo assunto: o Golpe Militar ocorrido no Chile em 1973. Este texto
aborda ainda a relação literária existente entre romance de Bolaño – e o conto “Carnet
de Baile”, publicado no livro Putas Asesinas (2001) – e a figura de Neruda. A análise do
Golpe pela ótica dessas obras visa a proporcionar um estudo sobre o período histórico-
social em que se encontrava a sociedade chilena no ano de 1973, situação que se as-
semelha ao que ocorreu em quase toda a América Latina, onde outros países também
foram governados por regimes ditatoriais.
Palavras-chave: literatura e política; Chile; Bolaño; Neruda.
I. Introdução
No início da década de 70, o Chile era o único país da América do Sul a chegar
próximo de conquistar uma transformação socialista. Nesta década, o Chile passava
por uma séria crise econômica, pois seu principal produto, o cobre, baixara de preço, e
grande parte do lucro se encontrava no exterior, principalmente nas mãos norte-
americanas. O crescimento populacional pressionava por empregos e por uma quali-
dade melhor nos serviços sociais.
Em janeiro de 1970, pouco antes das eleições, a Unidade Popular, maior centro
da esquerda chilena, ainda não havia decidido quem seria o seu candidato à presidên-
cia. Enquanto se desenrolavam as negociações internas, tendo como nome forte Salva-
dor Allende, outra frente de esquerda chilena, o Partido Comunista, havia lançado co-
mo seu candidato o ex-senador e poeta Pablo Neruda; porém a delicada situação da
política chilena e a grande amizade entre os dois fizeram com que Neruda desistisse da
candidatura e passasse a apoiar o amigo Salvador Allende.
Em seu livro Confesso que Vivi, publicado postumamente pela primeira vez em
1974, Neruda faz uma grande e bela descrição de sua vida como poeta, senador, em-
baixador e apaixonado pela vida. No capítulo 12, intitulado “Pátria Doce e Dura”, do
mesmo livro, o poeta discute as várias influências de personagens da história comunis-
ta em sua obra, abrangendo desde o chamado à candidatura à presidência do Chile
pelo Partido Comunista em 1969, até o cruel retorno à pátria prestes a ser dominada
por uma ditadura militar. Neruda foi um poeta de várias facetas, dentre as quais pos-
suidor de um grande senso de responsabilidade política. Foi um poeta marxista e di-
fundiu em suas obras ideais que influenciaram muitas sociedades.
Roberto Bolaño, premiado escritor chileno, entusiasmado pelo governo socialis-
ta, voltara, no início de 1973, do México, país em que se encontrava desde 1968. Com o
golpe de 73, Bolaño foi mandado para a prisão por não concordar com os rumos ditato-
riais em que o país estava entrando. Libertado por um amigo de infância, ele e a família
partiram para El Salvador e depois novamente para o México, onde publicava seus
poemas; por fim firmou-se na Espanha, onde permaneceu até sua morte em 2003.
A obra Confesso que Vivi, livro de memórias do poeta Pablo Neruda, apresenta
caráter bibliográfico e poético, um relato de sua vida desde jovem provinciano que
fazia confissões com seu único amigo, a Chuva, até a dura desilusão do golpe militar
de 1973, que culminava com a morte do amigo e então presidente chileno, Salvador
Allende, relatado no capítulo 12 da obra, “Pátria Doce e Dura”:
Estas memórias ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória, por-
que a vida também é assim. As memórias do memorialista não são as memórias do poe-
ta. Aquele viveu talvez menos, mas fotografou muito mais, recreando-nos com a perfei-
ção dos pormenores. Este entrega-nos uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e
pela sombra da sua época (NERUDA, 1983, p. 8).
ente e os tristes acontecimentos daqueles dias acabaram com sua gana de viver” (AL-
LENDE, 1995, p. 135). Noturno do Chile foi publicado em 2000, dez anos após o general
Augusto Pinochet, por meio de um plebiscito, deixar a presidência do Chile, nas pri-
meiras eleições chilenas, desde 1970.
Em 1969, Neruda passou todo o ano em Isla Negra, litoral chileno, acompanha-
do de sua esposa Matilde Urrutia. Esta vida simples de poeta, dedicada à contempla-
ção da natureza, regada com a solidão de seus poemas, encontra afirmação em sua vi-
da política dedicada ao enfrentamento das multidões.
Tinha sido feita uma revolução no Chile, uma revolução à chilena, muito analisada e
muito discutida. Os inimigos de dentro e de fora afiavam os dentes para destruí-la. Por
cento e oitenta anos se sucederam em meu país os mesmos governantes com diferentes
rótulos. Todos fizeram o mesmo. Continuaram os farrapos, as moradias indignas, as
crianças sem escolas nem sapatos, as prisões e as bordoadas contra meu pobre povo.
Agora podíamos respirar e cantar. Isso era o que me agradava na minha nova situação
(NERUDA, 1983, p. 358).
O capítulo 12, que remonta a essas memórias do poeta, termina com o subtítulo
“Allende”, em que Neruda descreve de forma poética sua admiração pelo presidente
chileno e os últimos dias que decorreram até o fatídico golpe militar ocorrido em se-
tembro de 1973, que culminou com a morte do presidente Allende. O golpe deu fim às
mudanças sociais realizadas por Allende e, então, o país foi entregue às mãos dos mili-
tares, apoiados pelas diversas camadas elitizadas do Chile. Tudo isso acarretou o fim
da democracia chilena, iniciando, a partir de então, uma ditadura feroz e sanguinária
que iria durar até 1990, comandada pelo General Augusto Pinochet. Em suas últimas
linhas, Neruda descreve com pesar o heroísmo e fim do “companheiro” Allende:
Escrevo estas rápidas linhas para minhas memórias há apenas três dias dos fatos inqua-
lificáveis que levaram à morte meu grande companheiro, o Presidente Allende. Seu as-
sassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente, permitiram somente à sua
viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão dos agressores é que acharam seu corpo
inerte, com mostras visíveis de suicídio. A versão que foi publicada no estrangeiro é di-
ferente. Após o bombardeio aéreo, vieram os tanques, muitos tanques, para lutar intre-
pidamente contra um só homem: o Presidente da República do Chile, Salvador Allende,
que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a não ser seu grande coração
envolto em fumaça e chamas.
Não podiam perder uma ocasião tão boa. Era preciso metralhá-lo porque jamais renun-
ciaria a seu cargo (NERUDA, 1983, p. 368).
em tom sério e burlesco, às vezes sarcástico, às vezes demolidor, uma forma particular
de crítica literária aparece de forma constante na obra ficcional de Roberto Bolaño.
Grande parte da obra deste escritor chileno tem como tema central a própria literatura.
Suas histórias são habitadas por poetas, escritores, editores, leitores compulsivos e pro-
fessores de literatura. Assim não é estranho que um tipo de crítica literária também faça
parte integral de sua ficção (GIRALDO, 2007, p. 180).
[...] meus dedos frescos de jovem recém-saído do seminário, os dedos de Farewell, gros-
sos e já um tanto deformados como cabia a um ancião tão alto, e falamos dos livros e
dos autores desses livros, e a voz de Farewell era como a voz de uma grande ave de ra-
pina, que sobrevoa rios, montanhas, vales e desfiladeiros, sempre com a expressão justa,
a frase que caia como uma luva em seu pensamento (BOLAÑO, 2004, pp. 7-8).
Essa passagem deixa clara a admiração de Lacroix por Farewell; o padre sente-
se ingênuo diante do grande crítico literário possuidor de uma sabedoria de ancião,
passando a ideia de que a sua voz potente era ouvida em vários lugares. Nesse primei-
ro encontro, Lacroix já manifesta o seu desejo em seguir a vereda aberta por Farewell e
também se tornar crítico literário. Daqui é possível observar uma crítica aberta feita
pelo crítico literário ao caracterizar o país como atrasado e pertencente a uma oligar-
quia agrária pouco interessada no estudo da literatura. Pode-se observar uma contradi-
ção, pois Farewell é também pertencente a esta oligarquia dominante. Os principais
acontecimentos entre o padre e o crítico ocorrem em sua fazenda de nome Là-Bas.
Em sua visita a Là-Bas, o narrador revela ter uma forte tendência homossexual,
que passa a ser presente em sua relação com Farewell. Está sempre presente na narra-
tiva a característica de submissão do padre frente ao seu grande ídolo, que o domina e
com ele mantém uma relação sexual.
[...] E então a mão de Farewell desceu do meu quadril para a minha nádega e um zéfiro
de rufiões provençais entrou no terraço e fez minha batina negra esvoaçar, e eu pensei:
O segundo ai!, passou. Olhe que depois vem o terceiro. E pensei: Eu estava em pé na
areia do mar. E vi surgir do mar uma Besta. E pensei: Então veio um dos sete Anjos que
levavam as sete taças e falou comigo. E pensei: Porque seus pecados se amontoaram até
o céu e Deus lembrou suas iniqüidades (BOLAÑO, 2004, p. 16).
É importante ressaltar essa passagem. Podemos perceber aqui uma crítica à po-
sição religiosa de Lacroix, sugerindo que aquela seria a segunda relação homossexual
do padre. Sendo esse “o segundo ai!”, está aberta a possibilidade de ocorrer um tercei-
ro. Aqui também é colocada uma fuga de Lacroix em relação a sua condição de padre
e, portanto, seu dever de castidade. O personagem apresenta um temor relacionado ao
ato sexual com Farewell, mas se deixa dominar pelo prazer e realiza a cópula.
Bolaño utiliza o padre e o crítico para retratar forte e criticamente dois setores
dominantes da sociedade chilena.
Primeiramente, em Lacroix, que em todo o decorrer do romance não se abstém
de usar a sua batina, temos uma crítica à Igreja e aos padres, de um modo geral. Ao
não se abster de usar a batina, Lacroix mesmo tendenciosamente violando seus votos
clericais, acaba colocando seu desejo pelo mundo das letras em primeiro lugar. Em
Noturno do Chile, o padre está muito mais relacionado com a literatura do que com o
seu sacerdócio. No início ele deseja fazer parte do fechado círculo da literatura chilena,
e acaba se tornando, por fim, crítico e poeta. Essa sua relação muito mais forte com a
literatura do que com o sacerdócio pode ser interpretada como uma fuga de sua condi-
ção religiosa. O personagem religioso não mede esforços para fazer parte do círculo
literário chileno, chegando a se relacionar homossexualmente com Farewell para con-
seguir realizar seu desejo. Mais adiante o narrador descreve o fim de semana passado
na fazenda Là-Bas como se fosse seu “batizado” no mundo das letras chilenas: “O au-
tomóvel de um dos convidados de Farewell me levou até Chillán, bem a tempo de pe-
gar o trem que me retornou a Santiago. Meu batismo no mundo das letras estava en-
cerrado” (BOLAÑO, 2004, p. 21).
Em segundo lugar, tem-se Farewell, que representa a oligarquia agrária chilena.
O personagem desdenha os chilenos, caracterizando-os como bárbaros camponeses
aculturados; ele se julga o último e único entendedor da literatura presente naquele
país. Em Farewell podemos perceber uma crítica à sociedade burguesa chilena e à hi-
pocrisia dos intelectuais, ao se julgarem acima das demais classes.
Um dia decidi que era hora de retornar ao Chile. [...] No Chile as coisas não iam bem.
Não sou nacionalista exacerbado, mas sinto um amor autêntico pelo meu país. Chile,
Chile. Como pudeste mudar tanto?, perguntava às vezes, debruçado na minha janela
aberta, olhando a reverberação de Santiago na distância. Que fizeram contigo? Os chile-
nos enlouqueceram? De quem é a culpa? E outras vezes, enquanto caminhava pelos
corredores do colégio ou pelos corredores do jornal, dizia: Até quando pensas em con-
tinuar assim, Chile? Será que vais te transformar em outra coisa? Num monstro que
ninguém reconhecerá? Depois vieram as eleições, e Allende ganhou (BOLAÑO, 2004, pp.
63-64).
Falamos de Marta Harnecker. O general Leigh disse que essa senhora tinha amizade
com uns cubanos. O almirante confirmou a informação. É possível?, perguntou o gene-
ral Pinochet. Pode ser possível uma coisa dessas? Estamos falando de uma mulher ou
de uma cadela? A informação está correta? Está, disse Leigh (BOLAÑO, 2004, p. 74).
versa com Lacroix, um genuíno intelectual, por ter publicado três livros e inúmeros
artigos. A interessante passagem da conversa entre o padre e o ditador termina com a
revelação de Pinochet sobre o motivo pelo qual estava interessado no marxismo.
Por que o senhor acha que quero aprender os rudimentos básicos do marxismo?, per-
guntou. Para prestar um serviço melhor à pátria, meu general. Exatamente, para com-
preender os inimigos do Chile, para saber como pensam, para imaginar até onde estão
dispostos a ir. Eu sei até onde estou disposto a ir, garanto-lhe. Mas também quero saber
até onde eles estão dispostos a ir [...] (BOLAÑO, 2004, p. 79).
Tomemos como ponto de apoio para esta relação a leitura do conto intitulado
“Carnet de Baile”, do livro Putas Asesinas (2001). Segundo Giraldo, o conto autobiográ-
fico descreve a situação de um Bolaño inicialmente apaixonado pela obra de Neruda, o
que se transforma posteriormente numa relação conflituosa. O conto começa com Bo-
laño descrevendo o fato de que sua mãe sempre lia para ele e os irmãos o livro de Ne-
ruda, Vinte Poemas de Amor e uma canção desesperada (1924). Bolaño inicia a descrição de
sua relação com o poeta cânone da literatura chilena, apontando o temor de que aquela
obra nerudiana tenha alcançado o número de um milhão de exemplares vendidos.
O conto desenha o trajeto de leitura do narrador Bolaño, começando com Neruda e de-
pois passando por Vallejo, Huidobro, Borges, De Rokha, Girondo até chegar a Nicanor
Parra, que será uma de suas influências mais marcantes (GIRALDO, 2007, p. 183).
47. Lo confieso: no puedo leer el libro de memorias de Neruda sin sentirme mal, fatal.
Qué cúmulo de contradicciones. Qué esfuerzos para ocultar y embellecer aquello que
tiene el rostro desfigurado. Qué falta de generosidad y qué poço sentido del humor
(BOLAÑO, 2001, pp. 93-94).
memórias do poeta. Qualifica a obra como uma tentativa de ocultar e embelezar aquilo
que tem um rosto desfigurado.
Interpretando essa possível desfiguração da obra nerudiana, é vigente o apon-
tamento em seu livro autobiográfico Confesso que Vivi, a condição de maior importância
dada pelo poeta a sua outra obra de forte vertente política intitulada Canto Geral, de
1950. Nas palavras de Neruda, “Naquele ano de perigo e de clandestinidade terminei
meu livro mais importante, o Canto General” (NERUDA, 1983, p. 181). A partir daí, é pos-
sível encontrar um Neruda que idealiza a vertente política, chegando a renegar os ver-
sos anteriores, de caráter romantizado. Enfatizando essa posição, temos abaixo a pre-
sente citação:
Stalin; porém coincidentemente surge Neruda, que em sua ideologia política denomi-
nava-se stalinista.
V. Referências bibliográficas
ALMOND, Mark. O livro de ouro das revoluções. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BOLAÑO, Roberto. Noturno do Chile. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Galeano Freitas. São Paulo:
Paz e Terra, 2005.
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. 3 ed. Trad. de Olga Savary. São Paulo: Difel/Círculo
do Livro, 1983.
_______. Canto Geral. 6 ed. Trad. de Paulo Mendes Campos. São Paulo: Difel, 1984.
SOUZA, Jáder Vanderlei Muniz de. “Nocturno de Chile: literatura e história”, in: XV
Seminário de Teses em Andamento, 2009. Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP). Anais do SETA, Campinas, n. 4, 2010, p. 510-520.
Resumo: O ensaio a seguir a visa explorar uma face pouco comentada do escritor brasi-
leiro Oswald de Andrade. Tendo vivido em meio a um momento revolucionário com o
recente acesso ao cinema e à fotografia, podemos claramente perceber a influência
dessas outras formas de linguagem na escrita de Oswald. Detentor de técnicas primo-
rosas, o escritor consegue forjar um efeito imagético às suas palavras, principalmente
se observarmos o romance Memórias Sentimentais de João Miramar. Não é de todo
surpreendente, pois a fotografia e o cinema têm suas similaridades com a literatura,
das quais Oswald fez uso para compor um romance praticamente icônico. Com capítu-
los curtos e uma escrita descontinuada, o autor nos conduz ao longo de toda a história
por meio de memórias – como nos revela o título da obra – e é exatamente essa carac-
terística que pretendemos desenvolver neste trabalho.
Palavras-chave: fotografia; cinema; modernismo; imagem.
À primeira vista, o título pode causar estranhamento. Afinal, qual a relação en-
tre Oswald de Andrade, renomado poeta modernista, com a fotografia? O que faria co-
locar suas tantas qualidades como escritor supostamente de lado para ressaltar sua face
de fotógrafo – se é que ele a teve? Primeiramente, poesia e fotografia são formas de ex-
pressão, tipos diferentes de linguagem, mas ambas podem ser consideradas arte. Desse
ponto de vista, há pelo menos um nó que une as duas, estabelecendo um mínimo con-
tato entre elas; contudo, veremos que ao longo desse comprido fio, apresentar-se-ão
diversos nós capazes de relacioná-las.
É importante diferenciar a fotografia de uma “imagem de mídia”. A primeira é
preenchida por uma subjetividade e diversidade não encontrada na segunda. De fato,
segundo Sousa a fotografia faz parte do grupo de expressões visuais que constitui uma
essência do homem desde os tempos primitivos: a fabricação de imagens (SOUSA, 2009,
pp. 21-22). Tratando as imagens como “mediações entre o homem e o mundo” (idem,
p. 22), estas tem uma função muito similar à das letras. É possível usá-las para capturar
um momento, uma sensação, representá-la de maneira que inspire a uma compreensão
diferenciada e, por um momento, permitir que outra pessoa veja com os olhos do au-
tor/fotógrafo. Como nos diz, Sousa, “a capacidade da fotografia de provocar a imagi-
nação é um dos principais motivos que permitem que a relacionemos à literatura”
(idem, p. 23).
as ideias modernistas, a arte não está sendo apenas inspirada no povo, mas este entra
em contato com ela.
No misto dessas influências e tendências, encontramos um Oswald de Andrade
ávido por criar uma identidade nacional, e que achou nas imagens – fotografia e cine-
ma – um estilo inovador no Brasil. Ao tratar de um texto produzido por Oswald, Sousa
ressalta que “o poeta parece comemorar a liberdade proporcionada pelo surgimento da
máquina fotográfica, que permitiria um novo tipo de artista, mais livre das convenções
sociais” (SOUSA, Op. cit., p. 142). De fato, encontramos em Oswald aspectos muito simi-
lares aos da fotografia. Suas poesias curtas – ou, no caso de Memórias Sentimentais de
João Miramar, seu capítulos curtos – normalmente representam instantes, seus movi-
mentos paralisados, os aspectos da paisagem que a torna bela, ou ainda um momento
emocional descontextualizado, instantâneo. Por exemplo, o capítulo inicial do romance
citado acima, O Pensieroso:
Jardim desencanto
O dever e procissões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistério [...] (ANDRADE, 1978, p. 13).
As linhas iniciais, em forma de versos, destacam cada uma das descrições apon-
tadas. Percebemos que há um jardim, uma procissão, cônegos. Ganhamos igualmente
uma noção emocional da memória: jardim desencanto, dever, procissão com pálios,
circo vago e sem mistério. E ainda um aspecto subjetivo de localidade, ao situar o tal
circo “lá fora” – aspecto presente também na fotografia, na qual a “subjetividade é
atingida a partir de uma cena exterior” (SOUSA, Op. cit., p. 140). Os artifícios do autor
nos dão a impressão de que estamos sentados num sofá ao seu lado, enquanto ele tira
de uma caixa e nos apresenta memórias em forma de fotos ou cartas, e assim nos conta
sua história. É importante apontar que a descrição não é basicamente física, mas traz à
tona tudo que pode ser contido numa memória – uma vez que assim o título do livro
pressupõe –, ou seja, imagens cortadas apresentas em sequência – mais similar ao di-
namismo do cinema do que propriamente à fotografia, uma vez que também se consi-
dere a influência cubista no autor –, cheiros, sons, falas, sensações etc. Como podemos
perceber na continuação deste mesmo capítulo, quando o autor descreve as palavras da
sua mãe e seus pensamentos na procissão:
O eu lírico nos apresenta imagens marcantes de sua infância: sua mãe chaman-
do-o para o oratório, as mãos grudadas da mãe, preparadas para orar, a fala da mãe
provavelmente o instruindo quanto a sua fé, os elementos presentes no ritual – azeite e
talvez a figura da santa –, sua reza automatizada, misturada e interrompida pelos seus
pensamentos, voltados às pernas das mulheres. Uma foto pode não guardar as falas
que ocorreram ou seus pensamentos naquele instante, mas a memória sim. Portanto,
não é apenas uma realidade fotográfica que o autor pretende representar, mas como se
fossem fotos trespassadas pelas memórias do eu lírico do instante. Vejamos claros
exemplos sobre a intenção icônica de Oswald, numa sequência de capítulos referentes a
uma viagem pela Europa de João e sua colega de infância; são eles “Cerveja”, “Costele-
ta Milanesa”, “Veneza” e “Mont-Cenis”:
***
***
Descuidosas coisas novas pingaram dias felizes na cidade diferente dos doges.
Descidos da janela do hotel o estrangulamento de palácios minava sob relógio
de vidro negro com horas áureas na direção da praça bizantina.
[...]
Cristais jóias couros lavrados marfins caíam com xales italianos de côres vivas
nos canais de água suja.
Gondolamos graciosamente na ponte de Rialto e suspiramos na outra […].
***
O alpinista
de alpenstock
desceu
nos Alpes (idem, pp. 29-32).
sensação de imagens soltas, nas quais aspectos inusitados são ressaltados – as mulheres
de Milão sob as janelas dos sobrados, o relógio de vidro negro de Veneza, o alpinista de
Mont-Cenis –, sem uma continuidade explícita no enredo, em que as imagens são prio-
ritárias em relação às ações. Do ponto de vista estético, vale perceber o domínio do au-
tor sobre a linguagem, se dando liberdade de brincar com palavras, formando neolo-
gismos – hurrarem, cornamusas, gondolamos – e deixando as sentenças menos carre-
gadas ao eliminar determinadas palavras não essenciais para a compreensão – “cristais
jóias couros lavrados marfins caíam...” –, apesar de forçar o leitor ao “decifrar do estilo
em que está escrito tão atilado quão mordaz ensaio satírico” (idem, p. 11). Ou seja, a
própria forma de escrita do autor é cortada e descontinuada – não tanto quanto o mo-
dernista irlandês James Joyce, mais ainda assim descontinuada –, facilitando a relação
entre sua linguagem poética e a fotografia. Outra característica importantíssima no li-
vro – e também nos poemas de Oswald de Andrade – são os títulos. Eles constituem o
sentido do capítulo juntamente com seu corpo, de tal forma que, sem os títulos, alguns
capítulos não poderiam ser compreendidos, como o último deles aqui apresentado,
Mont-Cenis. Tendo em mãos apenas o corpo do capítulo, não teríamos a noção de que
as personagens saíram de Veneza para a França, uma vez que este só faz referência aos
Alpes, que cruzam sete diferentes países, dentre eles a própria Itália, onde estavam an-
teriormente. Entrando em contato com o título, no entanto, temos informações suficien-
tes para deduzir que João e Madô estavam visitando os Alpes franceses.
O romance Memórias Sentimentais de João Miramar não é, porém, um álbum de
fotografias. Além dos outros aspectos que compõem uma memória e não estão presen-
tes numa foto – sentimentos, falas, razões –, encontramos também alguns capítulos nos
quais são apresentadas cartas. Não se comenta nada sobre elas e seus conteúdos não
são alterados – inclusive os deslizes gramaticais e ortográficos presentes nas cartas de
Minão da Silva, administrador do sítio de João. Continuamos com a sensação de nos
serem apresentadas memórias do eu lírico contidas numa caixa, fotos e cartas. Tal simi-
laridade nos faz refletir novamente sobre as relações entre imagem e escrita, como uma
pode exercer influência sobre a outra e de como não é absurdo nenhum admitir que
podemos escrever de maneira fotográfica, recortada, instantânea. E talvez propor que o
meio termo entre a fotografia e a escrita seja o cinema, possível gatilho para a inspira-
ção de Oswald de Andrade, dentre outros poetas e escritores, uma vez que viveram – e
talvez cresceram – no entusiasmo cinematográfico da moderna São Paulo.
Concluindo, assim como todos os outros momentos literários que conhecemos,
a arte era afetada pelas condições sócio-históricas. Não diferentemente, o Modernismo
se viu influenciado pelas necessidades de sua época, de criar uma identidade nacional.
Enquanto isso, o Brasil recebeu o advento do cinema, que revolucionou a forma de se
ver imagens, repercutindo inclusive na escrita, como, por exemplo, no estilo de Oswald
de Andrade, que apresentava nas suas letras diversas características presentes no ci-
nema e na fotografia, fato que o Brasil ainda não havia visto.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Oswald de. Obras Completas II: Memórias Sentimentais de João Miramar. Serafim
Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
MORAES, Eduardo Jardim de. “Modernismo Revisitado”, in: Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 1, n.º 2, 1988.
SANTORO, Paula Freire. A relação da sala de cinema com a urbanização em São Paulo: do pro-
vinciano ao cosmopolita. Texto produzido para o XI Encontro Nacional de Planejamento
Urbano e Regional, em Salvador, BA, 2005.
Disponível em http://saopaulo.org.br/download/257.pdf. Acessado em 28/10/2010.
SOUSA, Fabio d’Abadia de. A apreensão no instante: relações entre a literatura e a fotografia.
Tese de Doutorado em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás. Goiânia,
GO, 2009. Disponível em: http://bdtd.ufg.br/tedesimplificado/tde_arquivos/49/TDE-
2009-11-20T121435Z-485/Publico/Tese_Fabio_Sousa.pdf. Acessado em 12/10/2010.
Em A luz é como a água, de Gabriel García Márquez, presente no livro Doze con-
tos peregrinos (1992), temos Totó e Joel como personagens principais e desencadeado-
res de um enredo extraordinário. Desde o princípio do conto as duas crianças demons-
tram um enorme interesse por equipamentos para mergulho e por um barco. Tal desejo
gera estranhamento nos pais, já que no pequeno apartamento que habitavam em Madri
não havia “outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro” (1992, p. 215). Con-
tudo, os meninos haviam encontrado uma nova maneira de navegação: através da luz.
O fantástico se inicia por meio de uma imagem poética. O narrador, quando
perguntado pelos meninos como a luz acende ao apertar apenas um botão, responde
que “A luz é como água – [...] A gente abre a torneira e sai” (1992, p. 216). Esse narra-
dor não se identifica em nenhum momento, só nos informa que estava em um seminá-
rio sobre poesia quando foi perguntado sobre a origem da luz pelos meninos. Com tal
referência podemos enxergar a imagem do autor Gabriel García Márquez que se faz
presente na maioria dos Doze contos peregrinos (1992).
Esse narrador, um poeta, não esperava que sua resposta desencadeasse a aven-
tura dos meninos, muito menos o fantástico. Todorov em Introdução à literatura fantásti-
ca (2008), no capítulo “A poesia e a alegoria”, nos informa sobre a reprodução de ima-
gens poéticas por meio de imagens:
Concorda-se hoje que as imagens poéticas não são descritivas, que devem ser lidas ao
puro nível da cadeia verbal que constituem, em sua literalidade, e não realmente naque-
le de sua referência. A imagem poética é uma combinação de palavras, não de coisas, e
é inútil, melhor: prejudicial, traduzir esta combinação em termos sensoriais (2008, p. 67).
Com efeito, acreditamos possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos qua-
tro elementos, que classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associ-
em ao fogo, ao ar, à água ou à terra. E, se é verdade, como acreditamos, que toda poéti-
ca deve receber componentes – por fracos que sejam – de essência material, é ainda essa
classificação pelos elementos materiais fundamentais que deve aliar mais fortemente as
almas poéticas (1999, p. 3).
Em “A luz é como a água”, temos como força imaginativa três elementos: água,
fogo (representado pela luz) e ar (representado pela leveza durante os mergulhos na
luz dentro do apartamento). Cada um tem uma representação simbólica e a união des-
ses elementos designa a maneira pela qual os meninos escapam do real, do previsível e
alcançam uma realidade íntima.
A luz, que desencadeia todos os acontecimentos fantásticos do conto, refere-se
especialmente ao fogo que, para Bachelard (1999), é uma força imaginativa transcen-
dente:
Essa idealização do fogo na luz parece ser claramente o princípio da transcendência no-
valisiana quando se busca apreender esse princípio o mais próximo possível dos fenô-
menos. Novalis diz, com efeito: “A luz é o gênio do fenômeno ígneo.” A luz não é ape-
nas um símbolo, mas um agente da pureza. “Lá onde a luz não encontra nada a fazer,
nada a separar, nada a unir, ela passa. O que não pode ser separado nem unido,é sim-
ples, puro”. Portanto, nos espaços infinitos, a luz não faz nada. Ela espera o olhar. Espe-
ra a alma. É, pois, a base da iluminação espiritual. Talvez ninguém jamais tenha extraí-
do tanto pensamento de um fenômeno físico quanto Novalis ao descrever a passagem
do fogo íntimo à luz celeste. Seres que viveram pela chama primeira de um amor terres-
tre acabam na exaltação da pura luz. Essa via de autopurificação é indicada com preci-
são por Gaston Deryke em seu artigo sobre a Experiência romântica. Ele cita precisa-
mente Novalis: “Com toda a certeza eu era demasiado dependente dessa vida – um po-
deroso corretivo era necessário... Meu amor transformou-se em chama, e essa chama
consome pouco a pouco tudo o que há de terrestre em mim” (1999, p. 135).
Em “A luz é como água”, o insólito acontece porque há espaços que são parte
de uma realidade empírica (heterotópicos) unidos à espaços essencialmente irreais
(utópicos). Com isso cria-se uma nova realidade, uma nova espacialidade, a espaciali-
dade atópica que corresponde à metamorfose do mundo real em fantástico descrita por
Louis Vax, em A arte e a literatura fantástica, que diz que o fantástico: “Não é um outro
universo que se ergue em frente do nosso; é o nosso que, paradoxalmente, se metamor-
foseia, apodrece e se torna outro” (1974, p. 24).
Por fim, o acontecimento insólito, que antes só era presenciado pelas crianças,
ultrapassa o nível da “imaginação” infantil e alcança também o olhar dos adultos. A
hesitação em relação à veracidade do insólito se desfaz e então temos certeza de que o
fantástico acontece nessa narrativa ficcional. O que antes parecia imaginação das crian-
ças e poderia se encaixar no que Todorov (2008) chama de estranho, por receber uma
explicação lógica no final, recebe a confirmação de que não há esclarecimento para o
fantástico. Com essa suposta aceitação do fantástico poderíamos compreender o conto
como o que Todorov (2008) chama de maravilhoso; contudo, essa aceitação não se dá de
maneira plena. Por mais que não possamos justificar os acontecimentos, não conse-
guimos aceitá-los tão facilmente. Por isso, entendemos “A luz é como água” como um
conto fantástico puro, já que não encontramos explicação lógica para os acontecimentos
insólitos, porém não encaramos com tanta naturalidade o extraordinário.
Para Bachelard “[...] a maneira pela qual escapamos do real designa claramente
a nossa realidade íntima” (2001, p. 7). Joel e Totó nos revelaram uma realidade íntima
muito poética em que não há distinção entre possível e impossível, uma realidade em
que o fantástico se sobressai ao que é racional.
Referências
Base literária
MÁRQUEZ, Gabriel García. Doze contos peregrinos. 13 ed. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de
Janeiro: Record, 1992.
Base teórica
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. 2 ed. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
______. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
______. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Pau-
lo: Martins Fontes. 2001.
FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”, in: Ditos & Escritos III. Estética: Literatura e Pin-
tura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
RÔMULO BEZERRA
Graduando em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
e-mail: romulo1988@gmail.com
Resumo: O fim do mundo como narrativa está presente em várias culturas e socieda-
des. A mais conhecida e influente representação acerca deste tema, ao menos para o
ocidente, é o Apocalipse de João de Patmos. Essa influência criou diversas tópicas –
como propostas por Barthes – que se encontram nas narrativas de término. Estas nar-
rativas não encontram materialidade somente em textos de cunho religioso, mas tam-
bém em textos e formas de expressão com as mais diversas finalidades, como o cine-
ma. O presente trabalho aponta as tópicas (pós-) apocalípticas presentes no filme Fi-
lhos da Esperança. Tais tópicas são assim relidas e, portanto, ressignificadas. A fim de
analisar tais modificações, aproximou-se o texto do Apocalipse à narrativa cinemato-
gráfica. Para tanto, utilizou-se aqui a noção proposta por Barthes e alguns conceitos
específicos do texto bíblico (como, por exemplo, a noção de ausência de tempo em Je-
rusalém), bem como certos aspectos próprios da estrutura cinematográfica.
Palavras-chave: Literatura e cinema, Apocalipse, Tópica.
*O trabalho foi orientado pelo professor Alcebíades Diniz Miguel (à época, doutorando pela
mesma universidade) e, posteriormente, pela professora Suzi Frankl Sperber (DTL/UNICAMP).
fiéis. Crentes que a Roma pagã seria destruída e punida no fim dos tempos, os cristãos
aceitavam não só a “estadia” na terra como também a idéia de martírio. No entanto,
Roma não foi destruída e o Apocalipse tornou-se simbólico. Assim, a interpretação das
imagens do Apocalipse sempre foi adaptada segundo a crise que se instaura. A queda
da Babilônia descrita no livro de João de Patmos pôde ser aplicada tanto à Roma pagã,
no início do Cristianismo, quanto à Roma católica, segundo os protestantes, ou ainda
aos Estados Unidos, segundo algumas vertentes cristãs atuais. Essa adaptação constan-
te consolidou, paradoxalmente, justamente os elementos que não se modificavam. É a
partir desses elementos que a análise deste trabalho será realizada. Para tanto, será
utilizado o conceito de tópicas elaborado por Barthes. Conforme esse conceito, a tópica
é uma “[...] reserva de estereótipos, de temas consagrados, de ‘trechos’ completos que
são colocados quase obrigatoriamente no tratamento de qualquer assunto” (2001, p.
69).
As tópicas conceituadas por Barthes apontam um modo de analisar formas apa-
rentemente díspares, como literatura e cinema. Como já dito, o exercício constante de
leitura e (re)escritura do texto bíblico construiu diversos elementos que são tratados
quase sempre nas narrativas desse tema – o fim do mundo. A tópica possibilita a com-
paração entre esses elementos e, a partir dessa comparação, a análise. O presente estu-
do1 tenciona apontar algumas das tópicas presentes no filme Filhos da Esperança (Chil-
dren of Men), de Alfonso Cuarón, desenvolvê-las em relação ao próprio texto bíblico e
pensá-las no desenvolvimento da narrativa cinematográfica mencionada. Uma vez que
o conceito de Barthes torna possível a aproximação de formas distintas, aqui será reali-
zada também uma análise dos aspectos formais do filme.
Filhos da Esperança, dirigido por Alfonso Cuarón, foi lançado em 2006. A primeira
década dos anos 2000, em particular, produziu inúmeras narrativas de cunho apocalíp-
tico em maior ou menor grau e das mais variadas vertentes (Extermínio, Dogville,
Wall•E, 2012, por exemplo). O filme que será analisado aqui foi adaptado do romance
The Children of Men, de P. D. James2.
Em 2027, as mulheres estão inférteis sem qualquer razão aparente; há quase de-
zenove anos não nasce nenhuma criança. O mundo está caótico e diversas metrópoles
caem ante as guerras civis que se instauram. Nesse universo, o único país que ainda
possui alguma (frágil e aparente) estabilidade política e econômica é a Inglaterra. Essa
estabilidade atrai refugiados de todas as partes do mundo, ao que o estado inglês res-
ponde proibindo a presença de imigrantes ilegais e promovendo sua denúncia. Com a
1 Este estudo resultou do trabalho final da disciplina “TL096A – Tópicos em Literatura e Outras
Artes”, ministrada pelo Prof. Dr. Alcebíades Diniz Miguel no Instituto de Estudos da Lingua-
gem, da Universidade Estadual de Campinas.
2 Não será feita, aqui, comparação com a literatura fonte do filme. Para que isso seja bem feito, é
necessário que o foco esteja exclusivamente na comparação, e não é o objetivo deste estudo.
3 Essa profusão de elementos tão díspares em um mesmo local será aprofundada no item 3 des-
te estudo.
espaço urbano caótico, por outro lado ele é vendido pela propaganda oficial como o
único do mundo no qual ainda se pode viver. É o lugar de salvação dos imigrantes que
fogem de suas terras natais. O filme mescla a cidade da salvação e a cidade decadente
em um mesmo lugar, a partir de pontos de vista diferentes. A ironia é que aqueles que
veem a cidade como salvadora são justamente os que são impedidos de nela habitar.
Esse tipo de remodelação de tópicas está presente em todo o filme de uma forma geral.
é retirada do ônibus de prisioneiros, ouve-se a canção "Arbeit Macht Frei" do grupo The
Libertines. O título da canção, traduzido, é “O trabalho liberta”. A mesma frase em ale-
mão estava escrita em cima da entrada para o campo de concentração de Auschwitz (e
outros campos, como Birkenau). Ainda nessa cena, é possível ver um prisioneiro com
um capuz preto que remete às prisões ocorridas em Abu Ghraib, durante a invasão
americana no Iraque. O próprio gueto parece concentrar todas as minorias possíveis – e
que já foram perseguidas ao longo dos séculos. É possível ver ainda, no gueto, a ceri-
mônia de funeral público de um líder islâmico. A ausência de história possibilita, as-
sim, a continuação de práticas hediondas por parte do poder instituído sem que haja
qualquer tipo de denúncia ou de protesto. Sem o conhecimento do passado e sem a
possibilidade de futuro, a ética é praticamente inexistente.
Os oposicionistas, por sua vez, também são afetados pelo caos temporal. Não se
furtam à violência, como dito, e muito menos ao uso do primeiro bebê em dezenove
anos para fins políticos. Os ativistas querem apenas utilizar o bebê, filho de uma refu-
giada, como bandeira para a união contra o Estado inglês.
Essa ausência de tempo é também uma tópica da Nova Jerusalém. Como diz o
texto do Apocalipse (21: 6 e 22), Deus é “o princípio e o fim” e é o próprio templo da
cidade divina. Assim, após o Apocalipse, não há a noção de tempo: os justos ficarão
eternamente junto a Deus na cidade celestial e os ímpios pagarão eternamente por seus
pecados. Porém, como dito neste estudo, a Londres do filme é uma mescla da cidade
celestial com a cidade corrompida. A atemporalidade funciona não como um regozijo
eterno dos santos, mas sim um meio para a existência de todos os atos hediondos prati-
cados pela humanidade.
Esta parte do estudo se distanciará um pouco das tópicas presentes no filme para
realizar uma pequena análise sobre a transformação do personagem Theo Faron e sua
relação metonímica com a humanidade, bem como analisar mais contundentemente os
aspectos formais do filme.
Theo era um ativista e foi em uma manifestação que encontrou Julian. Casaram-
se e tiveram um filho a quem chamaram de Dylan. Em 2008, houve uma pandemia de
gripe e o menino morreu. A dor do luto acabou por separar Theo e Julian; ele se tor-
nou um burocrata letárgico e ela, líder de um grupo ativista radical. Após anos de dis-
tância, Julian pede ao ex-marido que consiga papéis para o transporte de uma imigran-
te ilegal. Cínico, Theo só aceita pelo dinheiro com o qual será pago.
Theo é apresentado no filme como alguém adormecido. Durante toda a introdu-
ção, o personagem demonstra seu cinismo em relação ao destino da humanidade, aos
movimentos sociais, ao governo. Theo está perdido: consciente do futuro (ou da ausên-
cia de) da humanidade, vive somente por inércia. E é por inércia também que a própria
humanidade continua indo, ainda que não tenha mais filhos – assim como Faron. Obje-
tivos nulos são construídos – a conservação de obras de arte, a manutenção/obtenção
de um poder que não perdurará, o acúmulo de dinheiro – apenas para que se consiga
viver.
O início do despertar de Theo para seu papel enquanto integrante da humanida-
de acontece no conflito que culmina com a morte de Julian. Testemunhando a morte
daquela que havia sido sua companheira afetiva, política e sua ligação mais viva com o
filho, Faron é arrancado da letargia habitual. Nesse sentido, a opção do diretor por
primeiramente estabelecer a intimidade entre Theo e Julian por um plano-sequência de
quase quatro minutos para, então, matar a personagem sem qualquer aviso, é compre-
ensível. Assim como Faron, o espectador também se choca com a morte de uma perso-
nagem aparentemente importante. A continuidade aparente do plano contribui para o
choque, uma vez que não é possível perceber cortes entre o disparo da arma e a consta-
tação da gravidade do ferimento, apenas movimentação de câmera.
Posteriormente, Faron descobre que será morto e Kee e seu bebê, utilizados como
bandeira política. Os anos de cinismo deram ao personagem a consciência da inutili-
dade dos conflitos, e a gravidez os põe em xeque. Para Theo, não importam os conflitos
políticos, mas o fato que em dezenove anos, finalmente a humanidade parece ter al-
gum tipo de salvação. Theo tem consciência de que o destino do indivíduo dentro da
barriga da garota se liga ao destino da humanidade. A partir desse momento, o perso-
nagem passa a proteger Kee e o bebê. Quando chegam ao gueto, é ele quem faz o parto
da criança e quando são separados, corre atrás dela em meio à guerrilha. Novamente o
diretor privilegia o plano-sequência ao filmar o conflito por quase dez minutos. Não há
cortes que tornem a violência mais sutil. Cuarón simula uma imersão total ao ponto de
sujar a câmera da lente com respingos de sangue. A própria violência é uma tópica das
narrativas de término: não se destrói o mundo sem ela; afinal, a destruição total é um
ato que demanda ferocidade. Em relação à violência, é interessante trazer para este
estudo as reflexões de Luiz Nazario. Em O Cinema Industrial Americano (1987, p. 29), o
autor elabora uma gramática da violência. Nessa reflexão, Nazário aponta que o que
torna a violência algo horroroso ou cômico/pastelão não é o número de matanças ou a
quantidade de sangue vista na tela, mas sim a estilização que é utilizada para a repre-
sentação da violência. Dentro do microcosmo da narrativa, o diretor valoriza, segundo
sua vontade, os elementos desse universo, conotando as relações entre esses elementos
(idem). O autor aponta, assim, que muitas vezes é justamente a ausência da explicita-
ção da violência que torna efetivas e dramáticas as ações de determinados persona-
gens. Embora Cuarón suje a lente da câmera com gotas de sangue – a fim de aproximar
de fato o espectador da guerrilha retratada –, a violência explícita não é utilizada a to-
do o momento e de forma impensada. O diretor tem consciência de que não mostrá-la
pode ser tão – ou mais – efetivo que representá-la. Assim, através de um travelling, ele
narra o destino de Miriam sem ter que, necessariamente, mostrar a personagem sendo
morta. Esse recurso faz a morte da personagem ser mais contundente: assim como os
corpos que jazem no chão, idênticos, Miriam será apenas mais um número, não se le-
vando em conta sua importância para os outros personagens e para o próprio especta-
dor.
Voltando a Faron, o personagem tenta de todas as maneiras que Kee tenha seu fi-
lho e o mantenha vivo. Consciente da importância do bebê, Theo se sacrifica [literal e
metaforicamente] para que ela consiga chegar ao barco Tomorrow e possa de fato ser
uma esperança de amanhã.
Tanto Theo quanto a humanidade se tornaram letárgicos e inertes após a perda
de seus descendentes. Os objetivos de vida e a moral se tornam flexíveis e transitórios.
Porém, o surgimento inesperado e inexplicável da gravidez – tão inexplicável que, sob
certos aspectos, pode ser considerada um milagre – arranca da letargia Theo, que pro-
tege Kee na esperança de que a humanidade também seja salva. Por conta disso, o per-
sonagem acaba morrendo, mas não sem antes ouvir de Kee que sua filha se chamará
Dylan. Tanto Theo quanto a humanidade passam a ter seus descendentes. Faron é a
6. Conclusão
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. “Elementos”, in: A aventura semiológica. Trad. Mario Laranjeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
BÍBLIA.Apocalipse. Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Trad. João Ferreira de Al-
meida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
NAZARIO, Luiz. O Cinema Industrial Americano. São Paulo: Nova Stella, 1987.
Filmografia
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a obra Romanceiro da Inconfi-
dência, de Cecília Meireles, e trabalhar as relações entre memória, história e literatura
na obra. O Romanceiro reescreve, de forma poética, a história dos eventos da Inconfi-
dência Mineira, dando diferentes tons a fatos preteridos pela história oficial e trazendo
à tona vozes subalternas, também deixadas de lado pelos historiadores. Como base
teórica para esse trabalho, utilizamos trabalhos de Paul Ricoeur, Walter Benjamin, Lu-
cia Helena Sgaraglia Manna e Aristóteles.
Palavras-chave: Literatura e história, Memória, Cecília Meireles, Romanceiro da Incon-
fidência
Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, dia 7 de novembro de 1901, e foi cri-
ada por sua avó, de origem açoriana, em decorrência da prematura morte de seus pais.
Autora de dezenas de obras de poesia, considerou sua própria infância como “solitá-
ria”, como ela viria a descrever em seu livro autobiográfico Olhinhos de Gato. Entretan-
to, essa solidão infantil nunca foi considerada por ela como perniciosa: valorizava so-
bremaneira a solidão e o silêncio, os quais considerava “a área de minha vida. Área
mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os
mundos revelaram o segredo do seu mecanismos, e as bonecas o jogo do seu olhar”
(MEIRELES, 1987, p. 59). Recebeu destaques na sua turma de escola e sempre se dedicou
à leitura de forma ávida, lendo o que lhe chegava à mão: desde que se lembra saber ler.
A criação da avó e da ama, uma negra chamada Pedrina, povoou sua criancice de his-
tórias, adivinhações e riquezas do folclore brasileiro e açoriano.
Darcy Damasceno indica que a marca simbolista em Cecília torna-se mais forte
e mais trabalhada em suas publicações posteriores, mas que seu desligamento desse e
de qualquer outro grupo fez-se com a publicação de Viagem (DAMASCENO, 1987), obra
eclética que lhe renderia o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Consi-
dera-se que Cecília Meireles desenvolveu-se de forma relativamente independente às
escolas literárias; Mário de Andrade chega a afirmar que ela passou “não exatamente
incólume, mas demonstrando firme resistência a qualquer adesão passiva” ao nosso
movimento Modernista. Ela mesma teria afirmado que tinha interesse pelas escolas
literárias de um ponto de vista apenas histórico (idem, ibidem). A temática da poesia de
Cecília gira em torno da problemática do passageiro, da efemeridade do tempo, da
angústia de não poder deter o fugaz instante presente e da fragilidade da vida; esses
temas, no Romanceiro, aparecem com muita frequência ligados à transitoriedade das
posições e das riquezas terrenas e à inexorabilidade da morte, mais forte e poderosa de
todas as coisas. Além disso, tal temática está marcada no desejo de retornar ao passado
bui à memória coletiva e às impressões históricas a fonte na qual ela bebeu para a sua
composição.
Pode-se dividir a obra em três partes básicas: na primeira, retrata-se o floresci-
mento da atividade mineradora nas Minas Gerais e o início das inquietações contra a
colônia; em seguida, segue-se a narrativa dos fatos da Inconfidência em si, as reuniões,
as ideias, a união dos inconfidentes, o “fracasso” da rebelião. Finalmente, a terceira
parte trata das consequências trazidas à vida dos envolvidos depois da repressão dessa
conjuração2. Nas seções seguintes, passaremos a apresentar brevemente a obra, divi-
dindo-a nas três partes essenciais que identificamos. Em tal análise, seguiremos mor-
mente os apontamentos de Lucia Helena Scaraglia Manna em sua pesquisa histórica
sobre o Romanceiro.
2 A divisão dos romances que propomos tem objetivos unicamente didáticos, posto que as temá-
ticas identificadas em cada uma delas cruzam-se, são retomadas, desaparecem em um roman-
ce e tornam a aparecer em outros.
Uma carta anônima, então, chega aos inconfidentes prescrevendo cuidado aos
envolvidos no movimento revolucionário. No romance XXVII enfim se apresenta Tira-
dentes: seus conhecimentos de farmacologia e seu caráter bondoso e prestativo, de
quem a todos serve e por todos trabalha, são ressaltados. Foi em viagem ao Rio que foi
pego, quando ia levar planos relativos a desvios de rios para melhorar a situação de
4 Tiradentes tinha conhecimento da situação política e econômica da colônia e tinha talento para
a engenharia. (MANNA, 1985, p. 73).
posto que se escondeu por longo tempo. No romance XLIII, em que se dá voz a falantes
críticos e indignados, penetra-se a razão de ter sido Tiradentes condenado à morte por
enforcamento e esquartejamento: muitos havia envolvidos, mas a falibilidade e a cor-
rupção da justiça não permitem que os ricos sejam punidos, pois podem pagar suas
liberdades. O alferes é morto, pois não tem amigos, parentes, casa ou terras suas. A voz
dos juízes e magistrados se faz ouvir:
(Calem-se os apadrinhados!
Fujam parentes e amigos!
Contaremos essa história
segundo o preço que paguem;
e ao mais fraco escolheremos
para receber por todos
o justo e exemplar castigo!) (Op. cit., p. 125)
5 Àquela época, era um costume elegante entre os nobres de Vila Rica que o noivo bordasse o
vestido que seria de sua esposa (MANNA, 1985, p. 126).
ma, contraposto pela sua captura. O trecho seguinte trata mais detidamente da prisão
do poeta e faz menção a sua formação em direito, que de nada pôde lhe valer naquele
momento.
A autora poetiza o momento do arremate dos bens do alferes, recriando o di-
namismo de um verdadeiro leilão. Os pobres pertences do acusado, de valor baixíssi-
mo, são sempre ressaltados com um valor espiritual que os acompanha; tal passagem
traz à luz um episódio de importância histórica periférica, dando-lhe nova luz em for-
ma poética. Segue-se o inútil recurso feito em defesa de Tiradentes. Usando pratica-
mente as mesmas palavras (com exceção da última estrofe) que o curador dos réus Dr.
José de Oliveira Fagundes emprega em seu texto, a autora transforma o texto forense
em texto poético6.
Uma série de romances referindo-se diretamente ao momento da execução de
Tiradentes se enumera: aparecem o seu carrasco, um negro de apelido Capitania, que
sente a grandeza da vítima; a juntar-se às lamentações do Tejuco e às falas das Velhas
Piedosas e dos indignados, a Reflexão dos Justos (romance LIX) é mais uma vez um
comentário crítico dos eventos, lamentando o fato de todos os companheiros do alferes
terem-no deixado na última hora e refletindo sobre o que será considerado como certo
ou errado pela história no futuro. O caminho de Tiradentes para a forca, o que se lhe
passa no espírito, suas memórias e a multidão que o cerca aparecem no mesmo roman-
ce em que se faz referência a D. Maria I, causadora, mesmo indiretamente, de tudo
aquilo. O momento próprio do enforcamento é narrado por um bêbado, que percebe as
incoerências de uma situação de morte, portanto triste e soez, que congrega tanta gente
satisfeita na praça para assisti-lo. Tiradentes entrega-se à morte em silêncio. O último
romance antes da mudança de cenário é simbólico: o narrador refere-se a uma pedra
Crisólita – o mesmo que topázio – que Tiradentes possuía, saindo com ela do meio da
escuridão com o fito de lapidá-la. O alferes morre entes de vê-la polida. Pode-se ler que
a pedra representava a tão querida, tão desejada liberdade, cujo gérmen trazia o herói
inconfidente do meio da escuridão em que se viam todos, subjugados aos desmandos
das autoridades; entretanto, seus objetivos não foram cumpridos; instaura-se a dúvida
se seria mesmo possível fazê-lo (Talvez nem crisólita fosse... / As pedras sempre enga-
nam tanto! [MEIRELES, 2009, p. 164]) e a tristeza por ter ficado a pedra sem lapidação.
O cenário seguinte, a morada que foi de Gonzaga, é evocado pela autora e tem
um tom entristecido, resultante da prisão do morador e do abandono da casa. Os restos
da habitação são matéria para composição dos próximos versos: os romances seguintes
tratam mais detidamente do destino do poeta árcade. Segue-se num comentário dos
6 O texto do referido curador está transcrito na obra de Lucia Helena Manna. Para melhor per-
cepção de como a autora se vale do texto forense, apresentamo-lo em cotejo com o texto poéti-
co: “[...] Basta notar a indiscrição, e nenhum acordo com que sem escolha de tempo, e de pes-
soas, e de lugar, proferia as quiméricas idéias que a sua libertinagem lhe subministrava (...)
para se perdoar ao temerário como insano” (Autos da devassa da Inconfidência Mineira, apud
MANNA, 1985, p. 132-133) “Só por indiscrição,/quiméricas idéias/proferiu – sem escolha/ de
tempo ou de lugar/ – e pela condição/ de temerário insano/que se deve perdoar” (MEIRELES,
2009, p. 150). Note-se como as palavras são rigorosamente as mesmas, havendo apenas esco-
lha livre na organização sintática para adequação da métrica.
maldizentes, que denegriam tanto a imagem de Tomás Antônio Gonzaga como profis-
sional quanto seu ofício de poeta. Degredado em Moçambique, começa a perguntar-se
se de fato amaria para sempre Maria Dorotéia; a mesma Maria é a narradora do trecho
seguinte, em que ela borda um lenço, falando com Gonzaga como se ele estivesse pre-
sente e sofrendo de saudades. Finalmente, no romance LXXI, o narrador aconselha que
Juliana de Mascarenhas, que posteriormente torna-se esposa de Gonzaga, vá esperá-lo
no porto. Uma Imaginária serenata interpõe-se entre os romances: é Marília que, desdi-
tosa de sofrimento e saudades, clama pela presença do amado e pela luz da lua, que a
possa levar até ele. Entretanto, em maio do ano seguinte (1793), o poeta casa-se em Mo-
çambique com Juliana de Mascarenhas, o que deixa Marília transtornada e inconfor-
mada, a lamentar, sem crer, no que fez o amante.
Dois séculos depois dos sucessos da inconfidência, a antiga Comarca do Rio das
mortes está em completa ruína; e é a ela que se dirige a “Fala” seguinte, pedindo às
ruínas, única coisa que sobrou do esplendor de tais sítios, que fizessem reaparecer os
vastos sonhos e pessoas do passado. Logo depois, é feita uma certa retrospectiva, a fim
de tratar da família de Alvarenga Peixoto, ignorado até então: um retrato árcade e belo
é traçado de Bárbara Eliodora, esposa do referido poeta – entretanto, seu funesto futuro
já fica adivinhado no poema.
Um tom de decadência toma conta dessa última parte do livro. Traça-se um
Retrato de Marília em Antônio Dias; a mulher, já sem beleza por causa da velhice, só saía
de casa para as missas na igreja de N. Sra. Da Conceição de Antônio Dias. Sua morte já
se prenuncia; sua vida já não significa nada. O Cenário que se segue é narrado por D.
Maria, já sem sanidade, a observar o Rio de Janeiro e a lembrar-se da morte dos incon-
fidentes, sendo torturada pelo remorso. Em seguida, o romance LXXXI reflete sobre o
poder, a embriaguez que ele causa, a vaidade dos poderosos e seu mau pendor; está
presente a lição de que o valor de um homem se mede por seu caráter, e não pelos
bens; mais uma vez, temos a reflexão sobre a efemeridade de tudo aquilo que é terreno.
Os passeios da insana rainha, sua crescente culpa e sua morte são narrados em dois
romances que se seguem.
Um curioso romance trata dos cavalos utilizados nos sucessos da inconfidência;
na sua busca para reavivar as vozes e os atos de tantos esquecidos, Cecília traz à tona
também o papel das doces e inocentes criaturas que serviram aos homens nas emprei-
tadas da conjuração. Depois de mortos, são facilmente esquecidos, “jazem por aí, caí-
dos” (Op. cit., p. 209), por ingratidão dos homens. Simbolizam a pureza e a inocência, a
entrega sem exigência de nada em troca. Marília escreve, sofrida, seu testamento; já
bem perto da morte, sua triste pena traça no papel seus últimos desejos. A narradora
finalmente dirige-se aos inconfidentes mortos, no último trecho do livro: as paixões
humanas, a covardia de uns, amores e ódios fizeram dessa história o que ela é hoje.
Tudo fica no passado, tudo jaz em silêncio; mas o horizonte, “que é memória / da eter-
nidade, / referve o embate / de antigas horas, / de antigos fatos, / de homens antigos”
(Op. cit., p. 211). É esse horizonte, essa memória da eternidade que não se satisfaz em
quedar-se calada que impulsiona a poeta a trazer à tona, de forma brilhante, todos os
sucessos da Inconfidência Mineira.
Desse modo, é legítimo considerar a obra de Cecília também como uma narrati-
va histórica, sem que ela perca a matéria poética e a literariedade que lhe são próprias.
Uma das coisas que chama-nos a atenção no Romanceiro é a multiplicidade de
vozes e de personagens: bêbados, tropeiros, rainhas, magistrados, poetas e muitos ou-
tros são elencados como os narradores ou partícipes dos eventos da Inconfidência. De
certa forma, podemos considerar essa escolha da autora como uma diferenciação do
discurso histórico notório a respeito da conjuração mineira; a rigor, tal discurso fre-
quentemente se limita a Tiradentes e aos mais famosos de seus companheiros, sendo
narrado de forma impessoal. No romance X, por exemplo, Cecília dedica-se a traçar um
retrato de uma pobre donzela cujos parentes estão longe, na busca pelo ouro:
Donzelinha, donzelinha
dos grandes olhos sombrios,
teus parentes andam longe,
pelas serras, pelos rios,
tentando a sorte nas catas,
Trazendo à luz esse relato, a autora ressalta as dores e sofrimentos daqueles que
perderam seus parentes na corrida pelo ouro. Ao voltar os olhos aos que são excluídos
das grandes narrativas históricas, a autora valoriza-os e demonstra que há mais além
dos relatos que alguns documentos são capazes de demonstrar.
É interessante, também, como Cecília seleciona os narradores de alguns dos
eventos: no momento em que Chica da Silva está em declínio, por ocasião da intimação
de seu amante, e já se pressagia o futuro daquelas terras, são os velhos do Tejuco7 que
refletem sobre os acontecimentos e lançam reflexões sobre a transitoriedade da vida:
“(Que tudo passa... / O prazer é um intervalo / na desgraça... [...] (Que tudo engana / gente, só
a morte mesmo / é soberana)” (MEIRELES, 2009 p. 77). Da mesma forma, são velhas piedo-
sas que lamentam a traição de Joaquim Silvério: “(Ai de quem na sua casa / se deixa estar,
sem supor / o que em sexta feira santa / escreve a mão de um traidor!) (Op. Cit., p. 101) e,
quando Tiradentes segue para o Rio de Janeiro com sonhos de liberdade, são diversos
tropeiros que são inseridos como narradores (romances XXX e XXXI), zombando aber-
tamente das ideias do alferes:
Esses dois romances em particular têm como fonte documentos históricos que
relatam a mofa que alguns tropeiros faziam de Tiradentes8, diferentemente dos anterio-
res. Tais romances são ressignificações de documentos históricos na medida em que
7 Tejuco ou Tijuco era o antigo nome da cidade de Diamantina, anexada a Serro até 1831.
8 De acordo com Manna, Manuel Luís Pereira relatara que “encontrou no dito caminho uns
tropeiros, que iam rindo e mofando, aos quais não conhece; e perguntando-lhes a razão do seu
riso, lhe disseram que estavam fazendo zombaria de um doido, que era o alferes da patrulha;
e perguntando ele, testemunha, a razão por que o tratavam de louco, responderam que por ele
se lhes estar dizendo que os povos das Minas podiam viver independentes de Portugal” (Au-
tos da Devassa, apud MANNA, p. 78).
colocam como narrador os tropeiros, de papel secundário na revolta, e por haver inse-
rido, no romance XXXI, uma reflexão de tristeza por parte dos zombadores, que afinal
pressagiam a morte do alferes e simpatizam-se com ele.
Gostaríamos de chamar a atenção para mais dois trechos9: o romance XXXIII traz
como seu narrador um cigano que, à chegada do alferes, é capaz de prever-lhe o desti-
no: “Duvido muito, duvido / que se deslinde seu fado. / Vejo que vai ser ferido / e vai
ser glorificado” (Op. Cit., p. 108). Interessa-nos bastante esse trecho, pois os ciganos,
minoria nômade presente em diversos países do mundo, passaram a ser perseguidos
no século XV e ainda sofriam preconceito e perseguições à época dos eventos da Incon-
fidência, de modo que a inserção desse personagem é uma opção realmente marginal,
sendo regularmente descartado do discurso histórico10.
Finalmente, um narrador muito singular foi escolhido pela autora para um
momento de suma importância na obra: na ocasião do enforcamento de Tiradentes,
ninguém menos que um bêbado está presente para constatar as incoerências de ver
tanta alegria em um dia de morte anunciada:
Vi o penitente
de corda ao pescoço.
A morte era o menos:
mais era o alvoroço.
Se morrer é triste,
porque tanta gente
vinha pra rua
com cara contente?(...)
9 Outros romances se encaixam também nessa reflexão, como é o caso do romance XXXII ou Das
Pilatas e do romance LII ou Do Carcereiro; entretanto, a fim de não alongarmos demasiada-
mente nossa análise, preferimos nos deter em apenas alguns deles.
10 Os ciganos “eram considerados vagabundos e delinquentes”; “na Alemanha e Holanda, eram
exterminados a tiros por caçadores pagos por cabeça (...); na Europa, o propósito de extermí-
nio dos ciganos sempre foi muito claro” (BASTOS apud QUEIROZ, 2010).
que era um criminoso em hora de sua morte. O ébrio deflagra a tolice de toda a gente:
apenas estando sob o efeito entorpecente do álcool ele é capaz de livrar-se da mentali-
dade soez que congrega tanta gente para assistir ao lúgubre espetáculo. Como teste-
munho histórico válido, um bêbado seria preterido sem dúvidas; entretanto, é justa-
mente ele que Cecília escolhe para o derradeiro momento de Tiradentes. Vale notar que
esse é o único momento em que se narra a morte do herói: a única versão que temos de
sua execução, a partir do Romanceiro, é a leitura crítica de um bêbado que não consegue
crer no que está acompanhando.
Com exceção dos tropeiros, todos os narradores dos romances destacados são
“inventados” por Cecília Meireles e inseridos por ela na história. Cada uma das falas
no Romanceiro correspondem a testemunhos, ou seja, documentos históricos em lingua-
gem escrita. Para Ricoeur, o testemunho é a estrutura fundamental que marca a passa-
gem da memória para a história; a partir do momento em que determinada lembrança de
alguém é passada para a linguagem escrita, ela deixa de ser apenas uma reminiscência
e passa a ser um testemunho, ou seja, um documento histórico. O momento da trans-
crição dos testemunhos “é aquele no qual as coisas ditas oscilam no campo da oralida-
de para o da escrita, que a história doravante não mais deixará; é também o do nasci-
mento do arquivo, coligido, conservado, consultado” (RICOEUR, 2008, p. 155).
Tal “coleta” de elementos da memória e a transformação deles em testemunho é
feita por quem se lembra e quem presencia fatos relevantes; ora, a passagem de fatos
como o enforcamento de Tiradentes ou o confisco dos bens dos inconfidentes tornou-se
um testemunho e parte do arquivo histórico desde a época de seu acontecimento; en-
tretanto, depoimentos de personagens como ciganas, bêbados e velhas piedosas não
constam no arquivo oficial, tendo sido uma criação de Cecília. Mais uma vez, retoma-
mos a fala da autora quando ela afirma que sua composição do romanceiro não foi for-
tuita nem mesmo solitária: ao ver a cidade de Ouro Preto11, ao deparar-se com as cons-
truções e com as casas que “vivenciaram” a inconfidência, “os fantasmas começaram a
repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas nos depoimentos do
processo, ou na memória tradicional”. Cecília, em Ouro Preto, buscou a memória cole-
tiva dos eventos daquela conjuração, e recompôs em sua mente o sofrimento dos que
perderam seus amores, os pensamentos dos negros escravos, as lamentações e os con-
selhos dos idosos observantes, e mesmo a descrença exacerbada de um bêbado na pra-
ça. No momento em que a autora compõe o Romanceiro imbuída de tais memórias e
relatos, ela cria novos testemunhos, que passam a compor também o arquivo histórico
da Inconfidência Mineira.
11 Localizações geográficas, além de serem capazes de nos reavivar a memória, funcionam tam-
bém como “documentos” históricos. Para Ricoeur, “os lugares ‘permanecem’ como inscrições,
monumentos, potencialmente como documentos, enquanto as lembranças transmitidas uni-
camente pela voz voam, como voam as palavras” (RICOEUR, 2008, p. 59). Além de “ler” o local
como um documento, Cecília também reavivou as vozes e as palavras fugidias que voavam
levando os fatos da conjuração.
4. Considerações Finais
5. Referências bibliográficas
ANDRADE, M. et al. Fortuna Crítica/Notícia biográfica, in: Cecília Meireles: Obra poética. Rio
de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1987.
ARISTÓTELES. Poética, in: A Poética Clássica. São Paulo: Editora Cultrix, 2008.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História, in: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios
sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
DAMASCENO, Darcy. Poesia do Sensível e do Imaginário, in: Cecília Meireles: Obra poética.
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1987.
MELLO, Ana Maria Lisboa de. “Sobre o Romanceiro da Inconfidência”, in: MEIRELES,
Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.
QUEIROZ, Mário de. “Dez séculos de discriminação”, in: Outras palavras. Disponível em
http://www.outraspalavras.net/2010/10/08/dez-seculos-de-discriminacao/. Acesso em
01/12/2010.
SILVA, Denise de Fátima Gonzaga da. Cecília Meireles e o herói inconfidente: um encontro
da poética modernista com os arquivos da história brasileira. 2008. Dissertação (Mestrado em
Teoria da Literatura) Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de
Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.