40 23 PB

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 173

Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):1-13, 2011

A interação sociodiscursiva e o ensino de


jovens e adultos: diálogos possíveis
_________________________________________________

CAIO CÉSAR COSTA SANTOS


Graduando (e bolsista PIBIX) do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade
Federal de Sergipe (UFS), sob orientação da Profª. Drª. Geralda de Oliveira Santos Lima.
e-mail: caio-costa@live.com

Resumo: A Educação de Jovens e Adultos (EJA) ainda é uma modalidade de ensino que
necessita de novos estudos e insights para que o seu funcionamento seja, de fato, po-
sitivo e produtivo para os alunos. Esses jovens-adultos necessitam da criação de novas
atividades didático-pedagógicas que estejam de acordo com a bagagem cognitiva des-
ses sujeitos, (KOCK 1997, 2002), (re)construída por meio de interação face a face (GUI-
MARÃES; MACHADO; COUTINHO, 2007). Poucos sabem que boa parte do conhecimento
linguístico desse público-alvo, reflete as práticas sociais exercidas durante as ativida-
des cotidianas em várias esferas sociais. Logo, atividades escolares que estejam cen-
tradas nas postulações evidenciadas pelo Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART,
1999) seriam, de início, uma boa medida para a solução de vários problemas no ensino
dessa modalidade.
Palavras-chave: Educação de jovens e adultos. Interacionismo sociodiscursivo. Ativi-
dades Pedagógicas.

1. Introdução

L
evando em consideração algumas abordagens evidenciadas no Projeto Instituci-
onal de Bolsas de Iniciação à Extensão – PIBIX (2010-2011) intitulado “A impor-
tância do tratamento dado à variação linguística no ensino de língua materna”,
da Universidade Federal de Sergipe (UFS), propomos um trabalho à luz de uma pers-
pectiva sociointeracional da linguagem, cujo propósito reside principalmente no plane-
jamento de atividades pedagógicas para a Educação de Jovens e Adultos (doravante
EJA) na área de língua portuguesa. É fato que, atualmente, essa modalidade de ensino
carece de abordagens de ensino-aprendizagem que deem oportunidade à sistematiza-
ção e valorização do conhecimento prévio dos jovens-trabalhadores construído nas
atividades mais comuns do cotidiano. Portanto, neste texto, trataremos da possibilida-

1 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


CAIO CÉSAR COSTA SANTOS

de de criação de atividades pedagógicas que tenham como foco a interação social e


discursiva. Tal perspectiva tem fornecido aos estudos linguísticos e à nossa pesquisa
melhores resultados no tocante à produção, circulação e recepção dos sentidos de de-
terminado texto.
No interior dessa nova abordagem, averiguamos, durante os oito meses de atu-
ação do projeto, as práticas de ensino de professores de língua materna, numa escola
do município de Lagarto/SE e percebemos a ausência de atividades pedagógicas que
atendam as especificidades e particularidades dos alunos da EJA. Mas, com o objetivo
de minimizar, um pouco, tal problemática, procuramos desenvolver algumas ativida-
des de linguagem que pudessem servir de ponto de partida para professores dessa
modalidade de ensino.
Sendo assim, nossa primeira proposta pedagógica consistiu em selecionar um
texto interessante, coerente e imerso na realidade sociocultural e cognitiva desse públi-
co-alvo. Para isso, selecionamos um texto autobiográfico por se tratar exatamente de
relatos e/ou experiências de vida e, por meio de interação face a face, coletiva, trava-
mos algumas discussões sobre a temática proposta no texto lido. Com o uso de grava-
dor de voz, registramos algumas falas nas quais constam os sentidos (re)construídos
pelos alunos a respeito do tema abordado, a fim de salientar o amplo conhecimento
prévio desses sujeitos, e o quanto essa prática linguístico-discursiva e cognitiva tem
efeito produtivo e positivo para esses jovens-atores-sociais.
Vale lembrar que o objetivo central deste nosso trabalho não está em analisar
detalhadamente o aspecto linguístico ou formal do texto produzido pelos alunos, mas
o de utilizar como referência tal atividade/metodologia de ensino nas aulas de língua
portuguesa e, ainda, de estimular o aluno a implicar-se na própria ação da linguagem,
descobrindo o prazer pelas ações de ler, discutir, apreender, escrever; afinal, o aluno da
EJA ou outro regular não pode ser interpretado como reservatório de conhecimento.
Ele, ao contrário, é o próprio agente de suas construções ideológicas sobre o universo
escolar e social. Dessa forma, é preciso o reconhecimento de sua participação ativa tan-
to no momento do letramento escolar como do social. O percurso teórico-analítico apli-
cado, em especial, se configura nos atuais estudos e contribuições do Interacionismo
Sociodiscursivo, desenvolvido por Bronckart (1999), como também em algumas abor-
dagens sobre o letramento em EJA (MOLLICA; LEAL, 2009; MOURA, 2001, 2009); e possí-
veis desdobramentos linguísticos em pesquisas de Bakhtin (2003), Koch (1997, 2002),
Marcuschi (2003), Santos e Lima (2010), entre tantas outras pesquisas.

2. Educação de Jovens e Adultos: uma realidade ainda possível

Existem, na área da educação, muitos estudos voltados para tal modalidade de


ensino, porém, são poucos aqueles que se concentram na construção e aplicação de
abordagens coerentes à realidade sociocultural e histórica desses aprendizes. Nas últi-
mas décadas, o ensino de língua materna tem se destacado, devido ao aparecimento de

2 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


A INTERAÇÃO SOCIODISCURSIVA E O ENSINO DE JOVENS E ADULTOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

outras ciências as quais têm se vestido de solução para alguns problemas no tocante ao
ensino-aprendizagem de línguas na EJA; entre elas, elencamos a Linguística Textual, a
Psicologia Cognitiva e Social, a Filosofia da linguagem, a Antropologia, a Semântica
Argumentativa, o Interacionismo, a Análise da Conversação, a Literatura, a Etnografia
da Fala, as Ciências da Cognição, a Ciência da Computação, entre outras contribuições
que vão dando feição específica hoje ao ensino de língua portuguesa.
Atualmente, grande parte das propostas pedagógicas no ensino de nossa língua
ainda continua inserida numa concepção que privilegia a materialidade linguística, em
outras palavras, no aspecto formal, muito longe da possibilidade de diálogo com essas
outras ciências. O presente estudo, portanto, solidifica-se e ganha destaque no exato
momento em que se lança o seu objetivo principal – o de conceber ao ensino de língua
materna alternativas didático-pedagógicas que dialoguem com as competências, habi-
lidades e saberes desses aprendizes da EJA. Moura (2009, p. 45) intensifica esse argu-
mento ao dizer que hoje os professores “utilizam metodologias (técnicas, recursos, ati-
vidades) sem qualquer significado para os alunos-trabalhadores, desconsiderando o
contexto e a historicidade desses sujeitos”. Os professores então não possuem referen-
ciais teórico-metodológicos eficazes e próprios à área da EJA e, se possuem, não os uti-
lizam devidamente.
Os sujeitos sociais atuantes desse programa de ensino, “possuem saberes pré-
vios, inatos e intuitivos, nos contextos em que estão inseridos e na cultura marcada-
mente letrada, antes mesmo de ingressar no sistema formal” (MOLLICA; LEAL, 2009, p.
7). Diante disso, a escola ainda precisa rever seus conceitos e visões perante essa reali-
dade e começar a construir caminhos que tenham como premissa o respeito ao desen-
volvimento sociocognitivo e interacional diferenciado desses alunos. Nesse sentido, é
importante salientarmos a questão do letramento social para a criação de atividades
didático-pedagógicas que tenham como foco principal as experiências de mundo des-
ses jovens-adultos.
O desafio o qual almejamos se concentra estrategicamente no uso e na valoriza-
ção desse conhecimento adquirido no exercício da cidadania e, especialmente, dos pa-
péis sociais que cada sujeito revela nas suas práticas sociointeracionais. A ênfase no uso
desse conhecimento permitirá “a compreensão das características e especificidades dos
alunos nos aspectos antropológico, histórico, filosófico, cultural, psicológico, sociolin-
guístico” (MOURA, 2009, p.47). Para isso, é importante que o professor crie e desenvol-
va, juntamente com os alunos, numa perspectiva de mediação, processos metodológi-
cos exclusivos e inovadores que possibilitem aos sujeitos a ampliação de suas habilida-
des de leitura e escrita, como também de interpretação, compreensão e construção de
sentidos para o texto.
Essas práticas continuam a ser um dos maiores desafios para a educação brasi-
leira e, sobretudo, para os próprios educadores, porém, elas ainda não fazem parte dos
Projetos Político-Pedagógicos das escolas e, se fazem, os próprios gestores, professores,
silenciam, passando a questão como um problema despercebido e irrelevante. Moura
(2001, p. 105) tem essa mesma visão e, como educadora, mostra-se inconformada com a

3 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


CAIO CÉSAR COSTA SANTOS

situação do ensino brasileiro ao dizer muito bem que “não é possível continuar impro-
visando educadores e alfabetizadores de Jovens e Adultos. Não é possível continuar-
mos ‘zarolhos’ olhando enviesados como se a Educação e Alfabetização de Jovens e
Adultos fossem uma prática extemporânea e passageira”. Pelo fato de essa modalidade
de ensino ter um curto prazo para formação escolar, os professores acabam por impro-
visar suas aulas, destacando apenas aquilo que é essencial em cada área de ensino, sem
considerar, portanto, as especificidades e particularidades de cada atividade educativa
ou mesmo dos próprios alunos-trabalhadores.
Ainda, neste século, permanece essa despreocupação e o silêncio de muitas ins-
tituições de ensino em rever seus métodos de ensino-aprendizagem. A prática pedagó-
gica, desse modo, fica à mercê da boa vontade ou não dos educadores de crianças e
adolescentes do Ensino Fundamental que atuam, também, na Educação de Jovens e
Adultos. Segundo Moura (2009, p. 49), a consequência disso “é o desenvolvimento de
uma prática pedagógica pobre para alunos tratados como pobres cognitiva e cultural-
mente”. Se o cognitivo e o social constituem o ponto central das discussões sobre esse
programa de ensino, é quase impossível discutir sobre a criação dessas novas ativida-
des escolares sem levar em consideração o conhecimento de mundo desses jovens. Mas
o grande problema disso tudo está na escolarização a qual pesa e muito sobre o conhe-
cimento enciclopédico. Mollica e Leal (2009), ao discutirem sobre essa temática, susci-
tam a importância de se buscar formas pedagógicas inovadoras a fim de se fixarem
habilidades tipicamente aprendidas na escola. Porém, essa possível abordagem precisa
estar inserida nas situações reais de vida desses alunos. A aprendizagem deles advém e
é moldada conforme as exigências básicas do mundo do trabalho, consequentemente,
pela necessidade de interagir com as diferentes situações sociocomunicativas. É, então,
a partir dessa dinâmica de convivência que esses sujeitos sociais começam a ampliar
suas estratégias de aprendizagem e passam, posteriormente, a assimilar e internalizar
os conhecimentos construídos coletivamente dentro e fora da escola.
Não obstante, é a variedade da faixa etária desses jovens/adultos que também
influi no nível de letramento escolar. A origem social e econômica marca, pois, de ma-
neira fatal e inevitável, a carreira escolar desses indivíduos. Diante disso, podemos
considerar que o letramento social afeta significativamente o letramento escolar. “Não
é possível, então, pensar uma ação educativa para esses sujeitos sem que os conheci-
mentos herdados pelo letramento social sejam valorizados e compreendidos pelo pro-
fessor-alfabetizador” (MOLLICA; LEAL, 2009, p. 58). Se esse professor começasse a com-
preender como esses alunos distribuem, argumentam, estabelecem e transferem o co-
nhecimento da vida fora da escola, evitar-se-iam conflitos na relação ensino-
aprendizagem e começariam a criar atividades cujo foco principal seria a bagagem
cognitiva desses indivíduos construída por meio de processos sociointeracionais.
Segundo Soares (2003), além das exigências formativas, o preparo do professor
que trabalha na EJA deve envolver as necessidades relativas à complexidade diferencial
dessa modalidade, em outras palavras, às particularidades cognitivas e sociais desses
jovens-aprendizes. Atualmente, os vários núcleos de formação desses professores apre-

4 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


A INTERAÇÃO SOCIODISCURSIVA E O ENSINO DE JOVENS E ADULTOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

sentam deficiência científica e pobreza conceitual e, sobretudo, metodológicas graves;


contudo, nosso propósito aqui é apresentar conceitos sob uma abordagem sociocogni-
tiva e interacional, e desenvolver metodologias teórico-práticas necessárias à compre-
ensão do mundo em que os alunos da EJA estão inseridos, na tentativa de desvelar e
revelar a verdadeira realidade social desses sujeitos, seus problemas socioculturais,
cognitivos e linguísticos no tocante à produção textual, e as formas de solucioná-los,
levando em consideração estudos que tenham como foco esse tipo de realidade trans-
crita e a complexidade diferencial teórico-metodológica desse programa de ensino. A
seguir, mostraremos uma breve reflexão a respeito da abordagem interacionista sócio-
discursiva desenvolvida por Bronckart (1999).

3. Interacionismo Sociodiscursivo: algumas contribuições ao ensino de línguas

A Educação de Jovens e Adultos é, na verdade, sinônimo de interação social.


Essa classificação se configura pelas várias características íntimas desses jovens às rela-
ções de convivência. De acordo com os dados levantados no nosso projeto de pesquisa
(PIBIX 2010-2011), executado com alunos dessa modalidade de ensino no município de
Lagarto/SE, oitenta por cento (80%) da rotina diária dos jovens-adultos está voltada
para o trabalho cotidiano, com profissões não tanto privilegiadas economicamente co-
mo domésticas, pedreiros, vendedores, pintores, cargos esses muitas vezes discrimina-
dos pela própria sociedade. Esses papéis sociais dão condições e motivos para que es-
ses sujeitos possam produzir textos/discursos em várias esferas sociais.
Foi, portanto, no interior dessa perspectiva interacionista que escolhemos o
programa da educação de jovens e adultos (EJA), no entorno sociolinguístico e cogniti-
vo-discursivo, por configurar um universo diversificado de conhecimento, de cultura, e
da melhor aplicabilidade de práticas linguísticas por múltiplas dimensões. Nesse espa-
ço, encontramos jovens, por exemplo, envolvidos em diferentes núcleos de convivência
com diferentes comportamentos de comunicação. Muitos deles estão preocupados
apenas na promoção de empregos e na ascensão socioeconômica. Procuramos, nesse
tópico, então, repensar a função social e discursivo-interativa desses indivíduos e suas
particularidades, para, assim, podermos empreender métodos, técnicas de ensino-
aprendizagem, inseridos nesse contexto de interação.
Nas últimas décadas, dentre as várias ciências e teorias que concentram seus es-
tudos na área de língua materna, o Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD) se
destaca dado o diálogo conceitual e metodológico intrínseco que se tem estabelecido
com a linguagem. As realizações linguísticas que acontecem em nosso dia a dia são
construídas por meio de processos sociointeracionais; em outras palavras, nossa com-
petência na língua se configura graças aos ciclos de convivência que vamos criando
durante nossa vida. Santos e Lima (2010), ao estabelecer ponte com essas descrições,
afirmam que o Interacionismo surge como guindaste para o entendimento das relações
entre indivíduo e sociedade. O sujeito é então designado como agente e transformador

5 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


CAIO CÉSAR COSTA SANTOS

das relações sociais, correspondendo como uma identidade construída sociointerati-


vamente. “Ser significa conviver” (BAKHTIN, 2003, p. 341). Este pequeno texto de ape-
nas três vocábulos resume toda a ideologia que a concepção interacionista tem para
contribuir com os estudos sobre língua materna nas práticas sociais.
O indivíduo só existe graças à presença do outro, pois nada somos fora das re-
lações com os outros, o ser só é ser ao se relacionar. A própria palavra “relação” pro-
duz sentido de necessidade do outro e é a linguagem a viabilizadora desse processo.
Matencio (2007, p. 55) também está em acordo com esse posicionamento ao afirmar que
“a língua e as demais formas de manifestação da linguagem são instrumentos, forja-
dos, historicamente, nas interações sociais”. Numa tensa colisão dialógica, o ser dialo-
gicamente ativo responde por aquilo que foi dito, produzindo e, ao mesmo tempo, re-
velando sua consciência linguística e social. Sobre o desenvolvimento desses tipos de
consciência, Pinto (2007) explana o seguinte:

O desenvolvimento da consciência envolve a interação com os valores mobilizados por


uma sociedade: nossa consciência emerge e se desenvolve na medida em que interagi-
mos com (e absorvemos) os valores que deverão determinar nossa vida e nossos com-
portamentos nas sociedades nas quais vivemos (...). Assim, a apreensão e elaboração do
pensamento intelectual atinente às ideias do ISD [Interacionismo Sociodiscursivo] não
acontecem isoladamente, sem levar em conta os impulsos, as tendências, os desejos, as
impressões e as imagens idiossincráticas da percepção do mundo que nos rodeia (PIN-
TO, 2007, p. 114-5).

É por essa visão que o ISD, perspectiva teórico-metodológica desenvolvida por


Bronckart (1999), tem influenciado pesquisadores das diversas áreas do conhecimento,
de várias partes do mundo, que se interessam pelas questões ligadas à linguagem e/ou
pela produção/compreensão de textos. Como o próprio nome suscita, o ISD trabalha
com as manifestações da linguagem instrumentalizadas por meio da interação social. É,
portanto, a tríade interação, sociedade e discurso que caracteriza a linguagem como
multifacetada. Segundo Matencio (2007, p. 51), a ação da linguagem integra a ordem
simbólica ao real na atividade; esse ponto de vista concebe a realidade como sendo
edificada e coordenada nas práticas sociais.
Por essa ótica, a linguagem não é entendida aqui como sistema formal ou códi-
go fechado, mas como uma atividade que exige elementos de ordem externa (cultura,
história, interação, cognição, discursividade), pois se levamos em consideração cami-
nhos que tenham como destaque as experiências, as vivências, os valores culturais e o
reconhecimento de saberes internalizados de jovens-estudantes da EJA, a linguagem
deixa de assumir uma posição interna à língua e passa a congregar uma posição exter-
nalista no sentido de não apenas aderir ou se limitar ao sistema que lhe é propriamente
fechado, mas pelo modo por meio do qual os fenômenos linguísticos possam se relaci-
onar com o mundo externo, ou melhor, com as condições múltiplas e diversificadas de

6 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


A INTERAÇÃO SOCIODISCURSIVA E O ENSINO DE JOVENS E ADULTOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

sua constituição e funcionamento. Nessa transição de interioridade para exterioridade,


a linguagem encontra significação na qualidade de interação humana, ou melhor, no
valor intersubjetivo constituído nos diferentes universos discursivos.

4. Construção de sentidos na interação face a face:


uma proposta didático-pedagógica para a Educação de Jovens e Adultos

Trabalhar com o texto é estudá-lo em todas suas dimensões (social, cognitiva,


cultural, interativa). Essa perspectiva, aqui levantada, corrobora também a concepção
bakhtiniana que considera o texto inserido nas relações dialógicas, no diálogo que ele
suscita, diálogo este que não conhece um fim. Para Bakhtin (2003),

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas


linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de
sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizado através da enun-
ciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental
da língua (BAKHTIN, 2003, p. 410).

O texto então é visto como resultado de atos simbólicos socialmente construídos


e não simplesmente por ações linguísticas. Logo, as atividades de língua materna para
a EJA devem seguir esta concepção – a de priorizar os elementos externos ao texto e
não apenas aqueles aprisionados à materialidade linguística, dado o profundo e cons-
tante contato que esses sujeitos têm com o social, e o efeito que esse elemento causa nos
leitores, produtores e receptores de linguagem. Souza (2007, p. 171) concorda com esse
pensamento ao descrever que “o estudo do texto deve considerar o contexto de produ-
ção, não só por sua interdependência com os fatores externos e as características textu-
ais, mas também pelos efeitos que o texto exerce sobre seus leitores e intérpretes.” É
desse modo que podemos dizer que o desenvolvimento da consciência linguística e
social se configuram graças aos modelos e formas do agir do ser humano e das produ-
ções de linguagem. Tais produções resultam de todo um trabalho de colaboração con-
junta e recíproca entre os participantes que interagem entre si.
Durante os processos interacionais, não existe a primeira nem a última palavra a
ser lançada, como também não há limites para o contexto dialógico como muito bem
postula Bakhtin (2003). Ou seja, nos processos de interação social, não existem limites
para a produção de sentidos, pois à medida que se vão criando novos sentidos para o
texto, a partir de discussões face a face, haverá sempre a necessidade de produzir ou-
tras novas significações, dada a interferência cognitiva diferenciada de cada sujeito-
agente como das variações do contexto de produção. A construção de sentidos é, por-
tanto, decorrente

7 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


CAIO CÉSAR COSTA SANTOS

de experiências inter e intra-subjetivas, implica a maturação cognitiva, psicomotora e


sociocultural do sujeito que lhe possibilitará executar ações (e operações) orientadas por
uma motivação e visando a determinados propósitos, por meio dos sistemas semióticos
reconhecidos socialmente enquanto tais (MATENCIO, 2007, p. 56).

Após algumas discussões em torno dos estudos sobre a questão da interação so-
cial na EJA, criamos esse tópico com o objetivo de instrumentalizar essas reflexões teó-
rico-analíticas e utilizá-las na sala de aula dessa modalidade de ensino. Para isso, sele-
cionamos um texto para a análise da fala espontânea desses alunos e escolhemos, tam-
bém, um gênero textual que melhor dialogasse e que respeitasse não só o domínio lin-
guístico-discursivo desses sujeitos, como também a bagagem sociocognitiva que eles
trazem do mundo externo, pois essa poderia servir de base para uma melhor compre-
ensão do texto.
Desse modo, preferimos utilizar o gênero textual autobiografia para o trabalho
com esses jovens e adultos por ser um tipo de texto coerente com a vida desses indiví-
duos. O tema “história de vida” (autobiografia) está presente nas atividades cotidianas
de linguagem, de interação e do próprio público-alvo – os alunos da EJA. Contar/ es-
crever a sua própria história de vida ou ouvir/ler a nossa história e a de outros sujeitos
é bastante interessante. Ao contar e/ou ler histórias de vida, o indivíduo aprende a criar
e reconhecer realidades singulares mobilizadas pela linguagem. Apesar de uma histó-
ria nunca ser igual à outra, todas têm um ponto em comum, isto é, ao serem
(re)contadas ou (re)lidas ganham vida por meio do uso da linguagem.
Partindo dessa premissa, o ponto crucial para a escolha do gênero autobiografia
se fez na fácil busca de sentidos para o texto, ou melhor, para a melhor compreensão
da realidade a qual vivenciam os alunos da EJA. Em contrapartida, atualmente, muitos
professores de línguas, por exemplo, assemelham a capacidade cognitivo-discursiva
desses aprendizes com a dos alunos do curso regular, seja do ensino fundamental, seja
do médio. Essa realidade seria, portanto, inviável para o trabalho com a língua e suas
manifestações nos processos interativos. Levar algum texto de entendimento complexo
à sala de aula, e que fosse de encontro aos níveis cultural, histórico, social e cognitivo
desses sujeitos sociais, dificultaria a compreensão do texto e, sobretudo, a (re)cons-
trução dos sentidos nos processos de interação discursiva.
No primeiro contato com esses estudantes jovens e adultos, percebemos ampla
insegurança quanto ao exercício de compreensão/interpretação de textos. Muitos che-
garam até a desistir quando descobriram que teriam de argumentar, comentar, sobre o
texto elencado para análise. Até antes mesmo da leitura do texto, muitos questionaram
se o texto seria de difícil compreensão ou que fosse de escrita complexa. Esta é, pois, a
realidade vista nas práticas de escrita e, sobretudo, de leitura, na modalidade de ensino
EJA. Muitos desses jovens só têm acesso a textos de autores renomados e que configu-
ram e/ou expressam temáticas amplamente distantes e distintas da realidade EJA. Esse
fato se torna tão verídico que quando começamos a descrever que o texto para análise
se trataria de um relato de vida, muitos alunos ficaram curiosos, pois queriam logo

8 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


A INTERAÇÃO SOCIODISCURSIVA E O ENSINO DE JOVENS E ADULTOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

saber de quem e/ou do que se tratava. Uma prova de que eles conhecem o gênero tex-
tual autobiografia e de que esse contexto de leitura seria adequado para o trabalho com
esse público-alvo, sobretudo, em se tratando do aspecto sociointeracional.
O texto elencado para análise intitulado “Um navio, um naufrágio” é o primeiro
capitulo da autobiografia de Valéria Piassa Polizzi (2003), que contraiu Aids aos 16
anos e que resolveu escrever sua história como um alerta autobiográfico para que mui-
tos outros jovens não se exponham as mesmas consequências da desinformação. Ela
expõe, sem meias palavras, como a doença mexeu com a sua vida e com seus sentimen-
tos na busca de uma identidade para si mesma. Após a leitura em sala de aula de tal
texto, os alunos da EJA aos poucos foram construindo e atribuindo sentidos para o tex-
to, como podemos observar nas três principais falas registradas com uso de gravador
de voz:

Texto 1
Eu acho que assim, se eu fosse, na parte dela, se eu fosse fazer um exame e descobrisse
que eu tinha pegado AIDS do meu namorado, eu deveria chegar pra ele, conversar e di-
zer que eu peguei, claro que foi dele e que pudesse fazer um exame pra ter uma certeza
e a ajudar entendeu? a outras pessoas a cuidar pra que não aconteça isso e que quando
tivesse relações usasse camisinha.

Texto 2
Eu acho interessante assim, o que ela imaginava, todos sonham com a primeira vez só
que foi tudo ao contrário do que ela esperava né? Como muita gente, muitas mulheres
ainda hoje, sonha com pétalas de rosa, uma música de fundo, coisa desse tipo e foi tudo
ao contrário. E junto com o sonho vem o pesadelo. E assim, eu, no caso dela, não teria
coragem de fazer o exame e se eu fizesse e dê-se positivo eu acho que, no meu caso, eu
entraria em depressão ou uma tentativa de suicídio devido à sociedade, pois a socieda-
de da gente é muito preconceituosa, sendo que eu tenho a mente muito aberta, pois eu
tenho conhecimento de que a AIDS não se pega com um aperto de mão, beber uma
água com o mesmo copo, isso eu tenho conhecimento, só que a sociedade tem esse co-
nhecimento e não usa, critica, se afasta, faz, em vez de ajudar, faz com que a pessoa se
afunde cada vez mais [...].

Texto 3
Eu acho que ela não contou a ninguém porque estava com AIDS para não decepcionar
os pais dela. Os pais não iam assim aceitar esse problema que ela ia passar num é? E ela
ia ficar um pouco afastada tanto dos amigos como a família poderia também afastar e se
ela não tivesse apoio ela podia se afundar. A violência também pode ser vista no texto,
eu conheço uma tia minha que passou a ser agredida pelo marido, mas ela não fala que
apanha, as pessoas presenciam, só que ela não toma iniciativa porque ele bate aí no ou-
tro dia, chega bonzinho, ai pega dá carinho a ela, ai ela acha que ele vai mudar e sempre
fica naquela esperança que ele um dia vai mudar, entendeu? achando que ele pode mu-
dar a cabeça dela e o tempo se passando e ela apanhando mais.

9 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


CAIO CÉSAR COSTA SANTOS

Ao analisar a transcrição dessas falas, podemos perceber o quanto tal metodolo-


gia pedagógica fora positiva e produtiva para os professores quanto para esses alunos
da EJA, dada a fácil assimilação da temática expressa pelo texto, como também da coe-
rente interpretação provocada por cada aluno. Vale ressaltar que o propósito desse
trabalho não está em analisar traços linguístico-discursivos empreendidos no texto,
mas, sim, de discutir e/ou divulgar atividades escolares adequadas a essa modalidade
de ensino. Nesse contexto de análise, a interação, ao mesmo tempo em que auxilia,
amplia o campo infinito de representações significativas correlacionáveis ao texto au-
tobiográfico. A linguagem viabiliza esse processo, mas é somente o tipo de texto em-
pregado (nesse caso, a autobiografia) que garante o prosseguimento de desenvolvi-
mento e sucesso das habilidades de leitura e escrita. A escolha de um texto autobiográ-
fico promoveu, portanto, aos sujeitos do discurso, melhores resultados quanto à coe-
rência e coesão, e a intensidade das discussões, via interação face a face, conjunta, fez
com que se acionasse o conhecimento prévio desses sujeitos, produzindo uma multi-
plicidade de sentidos condizentes com o texto-base. De antemão, podemos deduzir que
se utilizássemos outro tipo de texto mais complexo provavelmente impossibilitaria a
fácil compreensão e produção dos sentidos desse tipo de texto.
Todo esse domínio intercognitivo constituído nos processos interacionais faz par-
te também dos estudos de Van Dijk (2004). Para ele, a compreensão de um texto obede-
ce a regras de ordem extralinguística como as crenças, os costumes, os valores sociocul-
turais dos interlocutores, pois são fatores considerados indissociáveis ao texto. A
aprendizagem então inserida nesse tipo de atividade escolar seria concebida não ape-
nas de “fora para dentro”, mas também de “dentro para fora”, já que colocamos no
ápice de nossas discussões a interação social. Outro ponto que pode ser bastante discu-
tido nos textos é a questão da memória social dos sujeitos do discurso. A qualidade da
tessitura textual desses atores sociais é confeccionada também por lembranças e/ou
recordações de alguma situação vivenciada no passado, mas instituída e enraizada
nesse processo formulativo-interacional.
Essa relação memória/interação é tônica nos estudos de Halbwachs (1990), citado
por Lima (2008). Para esse sociólogo, a memória do indivíduo depende do seu relacio-
namento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão,
enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indiví-
duo. Logo, se lembramos é porque os outros, as situações nos fazem lembrar. No con-
texto da EJA, serão, especialmente, os ambientes sociodiscursivos de trabalho profissi-
onal como vendedores, domésticas, pedreiros, pintores etc. que produzirão essa me-
mória social; é por isso que, nos textos elencados para análise, o aluno, à medida que
atribui determinado sentido ao texto original, remonta às situações transcritas no seu
passado. Podemos ver isso claramente no texto 3. Nessa situação, na maior parte das
vezes, lembrar não é reviver, mas sim refazer, reconstruir, pensar, com imagens e idei-
as de hoje, as vivências do passado. Segundo Halbwachs (1990), a memória não é so-
nho, é trabalho coletivo, circunscrito e mediado nas/pelas relações vivenciadas.
Esses processos de articulação entre memória e interação, de acordo com Morato

10 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


A INTERAÇÃO SOCIODISCURSIVA E O ENSINO DE JOVENS E ADULTOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

(2005), são sociocultural-historicamente constituídos, já que esses fenômenos são


(re)elaborados no interior de práticas sociais, não havendo, assim, possibilidade inte-
gral de domínio cognitivo fora da linguagem nem possibilidade integral de linguagem
fora do processo de interação. Tem-se, por conseguinte, que a memória pode ser en-
tendida como a ordem dos elementos significantes que se estabelecem de acordo com
os níveis de intensidade dos acontecimentos experimentados, fundamentando-se em
valores, necessidades e aspirações instrumentalizadas nas atividades de interação soci-
odiscursiva. É, pois, a vida em coletividade que permite aos indivíduos horizontes co-
muns, o que permite falar em memória ou história comum a vários indivíduos, em
cultura. Com todas essas reflexões, podemos perceber a grande relevância dos estudos
da tríade interação, memória e cognição para a confecção de atividades de ensino-
aprendizagem, especialmente, para a Educação de Jovens e Adultos.
Foi, portanto, a partir da criação desse tipo de atividade pedagógica imersa no
contexto interacional que comprovamos porque “o conhecimento é um produto das
interações sociais e não de uma mente isolada e individual” (MARCUSCHI, 2003). No
interior dessa perspectiva, a cognição passa a ser então construída a partir de um cons-
tructo social e não individual assim como as ações dos sujeitos sobre a língua, e os sen-
tidos atribuídos ao texto passam a ser de natureza eminentemente sociocognitiva e
interacional. A partir dessa visão, Koch (2002, p. 157) define o texto como “fruto de um
processo extremamente complexo de interação e construção social de conhecimento e
de linguagem”. Para ela, os textos permitem ao homem organizar cognitivamente o
mundo, pois são excelentes meios de comunicação, como de produção, preservação e
transmissão do saber.
Sob essa ótica, a interação é o espaço em que se permite uma abertura para diálo-
gos nos quais os sentidos são provocados e mobilizados pela linguagem. Com essa
possibilidade de produção de sentidos, o indivíduo (aluno da EJA), além de apreender,
durante a interação, as competências linguísticas (coesão, coerência, planejamento dis-
cursivo) de forma dinâmica e introspectiva, amplia também o seu conhecimento enci-
clopédico, dadas as suas múltiplas posições e reposições no discurso. A partir dessas
discussões, fica a reflexão de que guardar o aprendido para si e não desenvolvê-lo im-
possibilita a transformação e compreensão de nossa própria existência e do mundo. A
aprendizagem desse modo fica enclausurada e o seu desenvolvimento inexiste, e a úni-
ca forma de desprendê-la é fazendo uso do “instrumento” – interação, elemento fun-
damental desse nosso trabalho e um dos motivos para a criação de atividades escolares
coerentes à capacidade intuitivo-analítica dos jovens-trabalhadores.

6. Conclusão

O educador, ao trabalhar com as manifestações da linguagem, tem um desafio


imenso, o de romper com a era tecnicista da linguagem, em outras palavras, com os
arcaísmos didático-pedagógicos e possibilitar o envolvimento dos alunos-trabalha-

11 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


CAIO CÉSAR COSTA SANTOS

dores nas experiências de serem leitor e escritor, ativamente partícipes do vasto diálo-
go cultural e ideológico, ancorado e estabelecido nas práticas sociais do nosso dia a dia.
No interior dessa nova perspectiva, os pressupostos teórico-analíticos sobre a interação
social e discursiva serviram de suporte para possibilitar a concretização de tal desafio.
Se tomamos como público-alvo a Educação de Jovens e Adultos, foi com a finalidade
de alertar os educadores, gestores, pesquisadores etc. para a necessidade de criação de
novas abordagens para o ensino-aprendizagem e para que reflitam sobre a consciência
linguística e social desses jovens-trabalhadores partilhadas nos vários e vastos núcleos
de convivência a que cada um deles pertence; e para que, se educadores, gestores e
pesquisadores se julgam vozes sociais dominantes e introspectivas, que participem das
relações dialógico-interativas, seja no cotidiano do trabalho diário (papéis sociais), seja
na escola (práticas escolares e sociais).
Essa reflexão garante, no final das nossas discussões, a construção da cidadania,
da formação e valorização de crenças e valores existenciais individuais e coletivos e,
sobretudo, a inserção e reconhecimento social e cognitivo desses alunos na tentativa de
orquestrar suas realizações linguístico-discursivas nos espaços sociointeracionais aos
que lhe são submetidos. Diante de toda essa problemática no ensino, torna-se preciso,
então, como professores de línguas, elaborarmos exercícios de linguagem cujo propósi-
to diz respeito à capacidade de cada sujeito-trabalhador de apreender os aspectos do
universo do qual ele provém (conhecimento enciclopédico), e os organizar em mundos
representados (produção textual) via processos sociointeracionais. Desse modo, a ma-
neira pela qual esses sujeitos se estabelecem nesses mundos e as formas dinâmicas de
seus comportamentos das próprias ações delimitariam o propósito didático-
pedagógico de cada educador, nesse caso, de língua materna. Se a Educação de Jovens
e Adultos é sinônimo de interação social, partimos então para uma metodologia de
ensino-aprendizagem coerente e imersa neste fenômeno.

7. Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-


discursivo. São Paulo, EDUC, 1999.

GUIMARAES, A. Questões epistemológicas e metodológicas. Campinas: Mercado das Letras,


2007.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.

_______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

12 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


A INTERAÇÃO SOCIODISCURSIVA E O ENSINO DE JOVENS E ADULTOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

MARCUSCHI, L. A. Perplexidades e perspectivas da Linguística na virada do milênio, 2003.


(mimeografado).

MATENCIO, M. L. M. “Textualização, ação e atividade: reflexões sobre a abordagem do


interacionismo sociodiscursivo”, in: GUIMARAES, A. M. M.; MACHADO, A. R.; COUTINHO, A.
Interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Campinas:
Mercado das Letras, 2007.

MOLLICA, M. C.; LEAL, M. Letramento em EJA. São Paulo: Parábola, 2009.

MORATO, E. M. “O interacionismo no campo linguístico”, in: MUSSALIM, F. & BENTES, A. C.


Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2005, p.
311-351.

MOURA, T. M. M. A. “(De)formação do alfabetizador: uma das causas pedagógicas do


analfabetismo?”, in: FREITAS, A. F. R. de. Currículo e cultura no ensino fundamental de jovens
e adultos. III Seminário Municipal de EJA. Maceió, 2001.

______. “Formação de educadores de jovens e adultos: realidade, desafios e perspecti-


vas atuais”, in: Práxis Educacional. Vitória da Conquista, v. 6, n. 9, p. 45-72, jul./dez.
2009.
PINTO, R. “O interacionismo sociodiscursivo, a inserção social, a construção da cidada-
nia e a formação de crenças e valores do agir individual”, in: GUIMARAES, A. M. M; MA-
CHADO, A. R; COUTINHO, A. Interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e
metodológicas. Campinas: Mercado das Letras, 2007.

Depois daquela viagem: diário de bordo de uma jovem que aprendeu viver
POLIZZI, V. P.
com a Aids. São Paulo: Ática, 2003, p. 9-15.

SANTOS, C. C. C; LIMA, G. O. S.“As vozes do discurso: construindo sentidos na interação


face a face”, in: III Encontro de Pós-Graduação em Letras, São Cristóvão, Anais eletrônicos,
NPGL/UFS, 2010, 284-297.

“A formação do educador de jovens e adultos”, in: SOARES, L. (org.)


SOARES, L. J. G.
Aprendendo com a diferença: estudos e pesquisas em Educação de Jovens e Adultos. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003.

“O contexto do agir de linguagem”, in: GUIMARAES, A. M. M; MACHADO, A. R;


SOUZA, L. V.
COUTINHO, A.Interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas.
Campinas: Mercado das Letras, 2007.

VAN DIJK, T. A. Cognição, discurso e interação. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2004.

13 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):1-13, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):14-24, 2011

Processos de deslocamento de sentidos em


discursos políticos da instituição midiática Época
______________________________________________________________________

CAMILA FERNANDES BRAGA


Graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Trabalho elaborado sob a orientação do Prof. Dr. João Bôsco Cabral dos Santos (ILEEL/UFU)
e-mail: camilafbraga@gmail.com

Resumo: Neste trabalho descrevemos como a instituição midiática Época produz sen-
tidos no discurso político ao construir uma leitura sobre as candidaturas à Presidência
da República de Marina Silva, Dilma Rousseff e José Serra, nas eleições de 2010. Parti-
mos da hipótese de que essa instituição midiática se coloca no lugar discursivo das eli-
tes sociais para enunciar o discurso político e, ao se colocar nesse lugar, exerce uma
tomada de posição que marca seu lugar de enunciação. Analisamos, assim, sequências
discursivas referentes aos candidatos Dilma Rousseff, Marina Silva e José Serra. Nesta
análise, tomamos como arcabouço teórico a Análise do Discurso de linha francesa, pois
examinaremos como uma instituição midiática é capaz de constituir-se em determina-
da ideologia e quais são as condições de produção dos seus enunciados acerca das
candidaturas.
Palavras-chave: discurso político; enunciação; ideologia

Considerações iniciais

O presente estudo tem como objetivo geral verificar os sentidos produzidos por
uma instância enunciativa sujeitudinal jornalista sobre uma instância enunciativa sen-
tidural candidato à presidência da República, e como objetivo específico descrever co-
mo uma instituição midiática produz sentidos do discurso político, ao construir uma
leitura sobre as candidaturas à presidência da República. Nessa perspectiva, tomare-
mos como corpus reportagens compiladas da revista Época referentes aos principais
candidatos à Presidência da República das eleições de 2010.
A hipótese aqui diz respeito à existência de uma parcialidade explícita, por par-
te dessa instância midiática, que coloca o direcionamento de uma posição de vincula-
ção político-fisiológica dessa instância à eleição do candidato José Serra do PSDB, por
ser o partido que sempre atendeu às necessidades das elites brasileiras no que tange ao
favorecimento político e econômico de determinados segmentos dessa sociedade, como
os banqueiros, os industriais, os latifundiários, os empresários do ramo de serviços e
transportes, entre outros segmentos de profissionais liberais que são sempre beneficia-
dos pela política fisiologista e clientelista do PSDB e dos Democratas.

14 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


CAMILA FERNANDES BRAGA

Neste artigo, explicitaremos quais os sentidos produzidos pela instituição midi-


ática Época ao enunciar o discurso político da candidatura à presidência da República
no ano eleitoral de 2010.
Este estudo justifica-se pelo interesse em compreender a amplitude dos sentidos
produzidos por uma instância enunciativa sujeitudinal jornalista sobre uma instância
enunciativa sentidural candidato à presidência da República, a partir de seu atraves-
samento interdiscursivo em uma enunciação midiática. Para este estudo serão tomados
como arcabouço teórico conceitos da Análise do Discurso de linha francesa, para exa-
minarmos os sentidos que subjazem às candidaturas à Presidência da República, pro-
duzidos pela instituição midiática.

A instância enunciativa sujeitudinal

Partindo da hipótese de que a instituição midiática Época produz sentidos no


discurso político ao construir uma leitura sobre as candidaturas à presidência da Re-
pública, faremos uma reflexão acerca de como esses sentidos são produzidos nesta ins-
tância enunciativa sujeitudinal midiática.
A partir da reflexão teórica realizada por Santos (2009), consideramos a instân-
cia enunciativa sujeitudinal como uma alteridade de instâncias-sujeito no interior de
um processo enunciativo. De acordo com este autor (op. cit.), denomina-se instância,
pela oscilação discursiva pela qual o sujeito do discurso passa entre um lugar social e
um lugar discursivo. Da mesma forma, denomina-se enunciativa, pelo caráter único e
singular, balizador das inscrições discursivas de uma instância-sujeito, e, por fim, de-
nomina-se sujeitudinal pelo caráter de movência contínua em alteridade constitutiva,
demarcada por funcionamentos interdiscursivos, os quais evidenciam uma diversidade
de tomadas de posição da instância-sujeito.
No que concerne à noção de instâncias-sujeito, é relevante discorrer sobre a no-
ção de sujeito discursivo e de suas facetas enquanto lugar social e lugar discursivo. De
acordo com as reflexões de Pêcheux (1988), sujeito discursivo é o conjunto (interseção)
das várias manifestações do sujeito que são reveladas a partir do momento em que este
é interpelado ideologicamente e toma uma posição. Esse processo de interpelação é
decorrente da identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina. Assim,
o sujeito se constitui a partir de sua tomada de posição.
Quanto às noções de lugar social e lugar discursivo, aquele é ocupado pelo in-
divíduo empírico, “de carne e osso”, dotado de um nome, família, etc. A partir do mo-
mento em que este indivíduo é interpelado ideologicamente por meio de relações soci-
ais, ele passa a ocupar um lugar discursivo e torna-se um sujeito (discursivo).
Nessa perspectiva, a instituição midiática Época, tomada como corpus neste es-
tudo, configura-se como Instância Enunciativa Sujeitudinal na medida em que, dotada
de determinadas inscrições ideológicas, é interpelada e passa a ocupar uma posição em
um processo de enunciação, ou seja, passa a ocupar um lugar discursivo.

15 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


PROCESSOS DE DESLOCAMENTO DE SENTIDOS EM DISCURSOS POLÍTICOS...

Sobre a noção de sentido e a instância enunciativa sentidural

Considerando que o objetivo específico deste trabalho é descrever como uma


instituição midiática produz sentidos do discurso político, ao construir uma leitura
sobre as candidaturas à presidência da República, discorreremos agora sobre a noção
de sentido e sobre a forma com que os candidatos à presidência da República se confi-
guram como instâncias enunciativas sentidurais – sentido que, na verdade, é um efeito
de sentido, é o efeito enunciativo das tomadas de posição entre instâncias-sujeito em
um processo de enunciação. Ele só é produzido pela constituição do sujeito, ou, mais
especificamente, só se instaura a partir da tomada de posição do sujeito.
No que concerne à noção de efeito de sentido, é relevante explicitar que o termo
efeito é entendido como o conjunto de significações que uma conjuntura de elementos
(da história) produz e o termo sentido é o momento em que uma conjuntura de signifi-
cações produz uma percepção. Assim, o efeito de sentido emerge da inscrição discursiva
do sujeito.
De acordo com as reflexões de Pêcheux (1988),

[o sentido] é determinado pelas posições sócio-ideológicas que estão em jogo no proces-


so sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é,
reproduzidas) [...] e mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam [...], isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essas po-
sições se inscrevem (p. 160).

Nessa perspectiva, podemos compreender que o sentido é decorrente das con-


dições de produção dos discursos e, consequentemente, das formações discursivas dos
sujeitos em interlocução. Assim, um enunciado pode ter diferentes efeitos enunciativos
de acordo com a natureza da interpelação sofrida pelo sujeito no processo de enuncia-
ção. São esses efeitos que determinam as inscrições discursivas dessas instâncias-
sujeito.
Em nossas análises explicitaremos como a instância enunciativa sujeitudinal
Época move, desloca e constrói sentidos dos dizeres dos candidatos à presidência da
República, produzindo outros sentidos do discurso político.
Selecionaremos sequências discursivas nas quais explicitaremos as filiações po-
líticas dos candidatos à presidência da República e da referida instituição midiática, o
que nos possibilitará compreender as inscrições discursivas, tanto dos candidatos
quanto da instituição, e o percurso enunciativo pelo qual esta re-significa sentidos
acerca das candidaturas. Conhecendo, assim, a noção de sentido, discorreremos sobre a
instância enunciativa sentidural candidato à presidência da República.
A exemplo do que foi abordado ao discutirmos a noção de instância enunciativa
sujeitudinal (Santos, 2009), a denominação instância enunciativa sentidural também
está relacionada à configuração de um sentido que emerge no interior de um processo
enunciativo.

16 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


CAMILA FERNANDES BRAGA

Nessa perspectiva, os candidatos à presidência da República configuram-se


como instâncias enunciativas sentidurais na medida em que seus dizeres são tomados
pela instância enunciativa sujeitudinal Época, para que ela (re)produza, desloque os
sentidos desses dizeres. Passíveis dessa movência dos sentidos de seus dizeres, os can-
didatos tornam-se instâncias enunciativas sentidurais.

Ideologia, formações ideológicas e formação discursiva

Ideologia é a anterioridade discursiva1 que constitui o sujeito. Por meio da ideo-


logia, como já foi dito, o sujeito é interpelado e toma uma posição. Nesse sentido, é
relevante discorrermos, também, sobre formações ideológicas (doravante FI), que são
os elementos que permitem a construção de uma convicção acerca de um dado aconte-
cimento.
Quanto à noção de Formação Discursiva (FD), é relevante entendê-la como o
“conjunto de componentes interligados das FI” (COURTINE, 2009). FD é o que, em uma
dada FI, determina o que pode e deve ser dito. Isso significa que os enunciados signifi-
cam de acordo com a FD em que são produzidos.
Retomando a noção de ideologia, esta é intrínseca à noção de discurso. Isso
ocorre devido ao fato de que a ideologia é materializada no discurso e este, por sua
vez, materializa-se na língua. Ao enunciar, o sujeito constrói evidências de suas forma-
ções ideológicas e discursivas, o que faz com que efeitos sejam produzidos em seus
dizeres. Assim, diante de qualquer enunciado, o homem é levado a interpretar e o sen-
tido emerge como uma evidência. Esse fato prova que a ideologia produz evidências
acerca do lugar discursivo em que o sujeito se inscreve.
Se, então, considerarmos o discurso como a materialidade da ideologia, com-
preenderemos que ele só existe em um meio social, dotado de uma historicidade carac-
terística do contexto em questão. E é nesse contexto, no qual o discurso está inscrito,
que o sentido é construído. Assim, quando nos deparamos com um sujeito em um pro-
cesso de enunciação, procuramos verificar sua inscrição discursiva, por meio de sua
inscrição ideológica.
Nessa perspectiva, nesta pesquisa, analisaremos sequências discursivas referen-
tes aos dizeres políticos relativos às candidaturas à presidência da República. Nessas
sequências, explicitaremos as evidências de significações que remetem a inscrições ide-
ológicas e sociopolíticas que constituem os dizeres da instituição midiática em estudo,
buscando informações que evidenciem o lugar discursivo do qual ela enuncia e a for-
ma como produz sentidos acerca das candidaturas.
Por meio dessa análise construiremos uma interpretação sobre as manifestações
ideológicas materializadas nos dizeres da instituição midiática. Consideraremos, assim,

1 A noção de anterioridade discursiva é entendida aqui como o conjunto de valores, inscrições,


história e memórias que constituem o sujeito discursivo.

17 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


PROCESSOS DE DESLOCAMENTO DE SENTIDOS EM DISCURSOS POLÍTICOS...

as inscrições sociopolíticas dos candidatos e da instituição midiática e, consequente-


mente, suas filiações políticas.
Nesse sentido, é relevante tomarmos como referência de interpretação o meca-
nismo da antecipação, segundo o qual todo sujeito é capaz de se colocar no lugar de
seu interlocutor e antecipar-se, assim, quanto às prováveis significações subjacentes aos
enunciados realizados por essas instâncias-sujeito. É por meio desse mecanismo que o
sujeito consegue hipotetizar o processo de argumentação de seu interlocutor, visando
às significações que se constituirão a partir de seus dizeres.
Nessa pesquisa, explicitaremos que a instância enunciativa sujeitudinal Época se
utiliza desse mecanismo, uma vez que suas inscrições discursivas são enunciadas de
forma a construir sentidos de identificação/desidentificação em seus leitores.

Condições de produção e interdiscurso

Considerando-se os aspectos teóricos que foram levantados sobre a ideologia,


aqui entendida como uma concepção de mundo de determinado grupo social, em uma
dada circunstância histórica, é relevante discorrer sobre as condições de produção (CP)
dos discursos.
De acordo com Courtine (2009), a CP do discurso “é a passagem contínua da
história (a conjuntura e o estado das relações sociais) ao discurso pela mediação das
relações do indivíduo com o grupo em uma situação de enunciação”. (p. 50) A partir
dessa afirmação, podemos compreender que as condições de produção do discurso é o
contexto sócio-político-ideológico no qual o enunciado é construído. As condições de
produção dos discursos são responsáveis, consequentemente, pelo sentido que emerge
no discurso, ou seja, os enunciados significam de acordo com as condições em que são
produzidos.
Quando nos deparamos com a realização linguageira de um enunciado, busca-
mos compreender seus elementos históricos constituintes. Ao fazer essa análise, enten-
deremos a utilização de determinado enunciado e “não de outro”, o que nos possibilita
a compreensão da produção dos discursos como elemento integrante da História.
Considerando o corpus em questão, analisaremos sequências discursivas para
buscarmos os aspectos históricos constitutivos dos discursos enunciados pela institui-
ção midiática em questão. Assim, examinaremos a produção dos efeitos enunciativos
desses enunciados, pois o sentido, como foi visto, é consequência das condições de
produção do discurso. Então, ao analisarmos as sequências discursivas, explicitaremos
em que condições sócio-político-ideológicas os dizeres da instância enunciativa sujei-
tudinal Época são produzidos. Entendendo, assim, a relevância do conhecimento das
condições de produção dos discursos, é necessária a abordagem teórica da noção de
interdiscurso.
De acordo com Pêcheux (1988, p. 162), interdiscurso é “o todo complexo com
dominante das formações discursivas”, esclarecendo que ele é submetido à lei de desi-

18 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


CAMILA FERNANDES BRAGA

gualdade-contradição-subordinação que caracteriza o todo complexo das formações


ideológicas.
Interdiscursividade é, então, o atravessamento de discursos outros pelo discur-
so predominante. Todo discurso está em constante relação com outros discursos, o que
faz com que um enunciado sempre suscite outro. Essa relação entre os discursos, por
sua vez, nos remete ao conceito de formações discursivas que, como já foi teorizado, é
o que determina o que pode e deve ser dito pelo sujeito de acordo com suas formações
ideológicas.
No corpus em questão, analisaremos as formações discursivas dos candidatos à
Presidência da República e da instituição midiática, pois assim entenderemos as for-
mações ideológicas às quais o veículo midiático se filia e, consequentemente, os efeitos
enunciativos de seus dizeres, uma vez que os sentidos são produzidos de acordo com
os lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução.

Silenciamento

De acordo com Orlandi (1992), há uma classificação para o silêncio: o silêncio


fundante e a política do silêncio. Em nossa pesquisa, trabalharemos a noção da política
do silêncio segundo a qual, ao enunciar, o sujeito está, necessariamente, não enuncian-
do outros sentidos, uma vez que o sentido é produzido a partir da posição da qual esse
sujeito enuncia.
A partir dessas reflexões, perceberemos, nas análises, a relevância de sentidos
que são silenciados pela instância enunciativa sujeitudinal Veja, pois eles constituem
fortes evidências do lugar discursivo ocupado por essa instância, principalmente no
que tange ao processo de desidentificação da instituição com o candidato Luís Inácio
Lula da Silva.
O silenciamento está presente na opacidade do que está dito. Assim, é necessá-
rio conhecer as inscrições ideológicas dos candidatos e da instituição midiática para se
perceber o que está dito, mas não enunciado na superfície dos dizeres, ou seja, o que
foi silenciado. Assim, encontramos regularidades que apontam para processos de iden-
tificação e desidentificação da instituição com os candidatos.

Aspectos metodológicos: a organização do corpus em sequências discursivas

A escolha das reportagens da instância enunciativa sujeitudinal Época foi feita a


partir da hipótese de que esta se coloca no lugar discursivo das elites sociais para
enunciar o discurso político, produzindo sentidos acerca dos candidatos à Presidência
da República. Assim sendo, buscamos reportagens que nos possibilitaram comparar a
instância enunciativa sentidural candidata à presidência da República Dilma Rousseff
com as instâncias enunciativas sentidurais candidatos à presidência da República Ma-
rina Silva e José Serra.

19 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


PROCESSOS DE DESLOCAMENTO DE SENTIDOS EM DISCURSOS POLÍTICOS...

Fizemos, então, recortes de sequências discursivas que mostram como a insti-


tuição constrói sentidos acerca das candidaturas. Procuramos por sequências discursi-
vas que explicitam significações que, mesmo em uma linguagem velada, puderam evi-
denciar o lugar discursivo em que Época se coloca e como ela produz sentidos sobre os
candidatos à presidência da república, posicionando-se, assim, frente às suas candida-
turas.
Ao fazer os recortes das sequências discursivas, nós localizamos enunciados-
operadores de sentido, os quais trazem evidências das tentativas da instituição midiáti-
ca analisada em produzir sentidos. Em seguida, analisamos esses enunciados-
operadores para, por fim, sintetizarmos percepções acerca de suas condições de produ-
ção, considerando as inscrições ideológicas subjacentes a Época, uma vez que os discur-
sos enunciados por ela representam uma materialidade linguística de uma inscrição
ideológica.

Análises

Foram selecionadas para o trabalho de análise três capas da revista Época, que
remetem aos candidatos à presidência da República Marina Silva, Dilma Rousseff e
José Serra. A análise dessas capas será feita de acordo com a ordem de publicação.
A primeira delas, publicada em 15 de agosto de 2009, traz a foto da candidata
do PV, Marina Silva, e a seguinte epígrafe: “Presidente Marina? Como a candidatura
de Marina Silva – a ambientalista admirada pela sua biografia e temida por suas ideias
radicais – embaralha o jogo eleitoral de 2010”.
Quanto à foto, é relevante descrever o ângulo em que foi posicionada. A candi-
data está com o pescoço inclinado para o lado e olha para cima, ao mesmo tempo em
que sorri. Além disso, essa capa tem o plano de fundo em tons verde, que constrói um
sentido de relação com o partido político da candidata, Partido Verde.
O fato de que Marina parece estar olhando para algum lugar distante produz
um sentido de que ela tem uma visão mais além, que ela enxerga à frente. Consideran-
do-se que as propostas de governo da candidata se baseiam em um desenvolvimento
sustentável, a direção do olhar da candidata, assim como o sorriso dela, representam a
crença que ela tem na possibilidade de promover o desenvolvimento do país de forma
diferente das propostas pelos demais candidatos.
No que concerne à epígrafe da foto, é relevante percebermos os sentidos que
emergem do enunciado “Presidente Marina?”. A interrogação colocada traz um senti-
do de dúvida em relação à possibilidade de a candidata ganhar a eleição. Há uma ten-
tativa, pela instância enunciativa sujeitudinal Época, de induzir o leitor a pensar: “Será
que ela ganharia a eleição?”. Esse sentido de dúvida, construído pela instituição midiá-
tica, silencia um sentido de certeza que esta tem de que Marina não ganhará a eleição,
mas que ela é capaz de provocar alterações nos resultados.
Em seguida, temos a presença do termo “ambientalista”, que se relaciona ao já
descrito plano de fundo da capa, e do enunciado “temida por suas ideias radicais.”

20 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


CAMILA FERNANDES BRAGA

Este enunciado produz o sentido de que a candidata é uma ameaça aos demais devido
às suas propostas.
O adjetivo “radicais”, conferido às propostas, nos remete às formações discursi-
vas nas quais a candidata se inscreve para enunciar sua candidatura. Filiada ao Partido
Verde, de acordo com o que já foi dito, a candidata tem propostas que vão ao encontro
dos ideais dos ambientalistas e dos jovens brasileiros. Os ideais são considerados radi-
cais pela dificuldade encontrada nas tentativas de se promover o crescimento do país
sem devastar o meio ambiente.
Assim, a partir do momento em que a candidata aproxima suas ideias das de
um público consideravelmente grande, ela se torna uma candidata em potencial que
“embaralha” a disputa presidencial.
É relevante, aqui, explicitar as condições de produção do acontecimento discur-
sivo Eleições 2010, uma vez que o termo “embaralha” alude ao fato de que os candida-
tos de maior representação, em termos de intenção de votos, são Dilma Rousseff e José
Serra. Nesse sentido, ao conquistar um grupo definido de eleitores, Marina Silva recebe
votos que poderiam ser de um desses candidatos, o que coloca em dúvida a ideia que
estava sendo construída pela mídia: o ganhador seria Serra ou Dilma. Essa incerteza
quanto ao resultado da eleição silencia o sentido de que Época percebe a possibilidade
que a candidata do PV tem de ganhar, o que evidencia uma tentativa da instituição de
enfatizar seu apoio ao candidato tucano e sua desidentificação com a candidata petista.
Passemos, agora, à análise da capa da edição publicada em 14 de agosto de
2010. Nesta, verificamos a foto da candidata do Partido dos Trabalhadores Dilma Ro-
usseff, e a inscrição “Dilma Rousseff: aos 22 anos, fichada pelo Dops em São Paulo”, e a
epígrafe “O passado de Dilma: documentos inéditos revelam uma história que ela não
gosta de lembrar – seu papel na luta armada contra o regime militar.”
À primeira vista, chama-nos a atenção a foto da candidata aos 22 anos. A foto,
assim como o fundo da capa, está nos tons preto e branco e, do lado direito da foto,
notamos a presença de uma figura que lembra uma parte de um carimbo. É relevante
explicitar que essa figura é o único detalhe colorido da foto: o carimbo é vermelho.
As cores utilizadas e o carimbo nos remetem a fichas, ou seja, a imagem ilustra
a informação contida na inscrição, a de que a candidata foi fichada no DOPS – Departa-
mento de Ordem Política e Social – de São Paulo. Este órgão, criado em uma época em
que o regime político brasileiro era centralizado e autoritário, tinha a função de contro-
lar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.
A escolha da imagem da ficha da candidata constrói um sentido de remissão ao
passado de Dilma, o que é uma evidência da tentativa, por parte da instituição midiáti-
ca, de chamar a atenção do leitor para algo comprometedor que a candidata teria feito
em sua juventude. Há, também, a produção de um sentido que confere um caráter pe-
jorativo a ela, pelo fato de já ter sido fichada.
Em seguida, temos a epígrafe da foto. O título “O passado de Dilma”, escrito de
forma bem destacada, produz, assim como a imagem, a evidência de que há um desejo
da instituição midiática de tornar público o passado da candidata. O próximo enuncia-
do, “Documentos inéditos revelam”, produz o sentido de que há provas da veracidade
do que será publicado por Época, além de evidenciar, por meio do uso do item lexical

21 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


PROCESSOS DE DESLOCAMENTO DE SENTIDOS EM DISCURSOS POLÍTICOS...

“revelam”, uma tentativa de polemizar algum acontecimento relevante que teria sido
acobertado no passado de Dilma. Essa expectativa criada pela instituição produz o
sentido de que algo ilícito teria sido feito pela candidata e o partido dela não divulgou.
Essa tentativa é um indício de que a instituição midiática se desidentifica com a candi-
data.
É relevante explicitar, também, que há um diálogo entre o termo “revelam”, que
significa “fazer conhecer algo que estava encoberto”, e o próximo enunciado, “uma
história que ela não gosta de lembrar”. A construção desse diálogo evidencia uma ten-
tativa de Época de reiterar a relevância do que será lido na edição sobre a candidata,
por se tratar de algum escândalo, além de intensificar um efeito de curiosidade, cuja
produção é perceptível nos itens já analisados. Percebemos, aqui, outra regularidade
que aponta para um processo de desidentificação entre Época e Dilma.
Para finalizar, temos o enunciado “seu papel na luta armada contra o regime
militar”, cuja construção intensifica ainda mais a expectativa do leitor, uma vez que
relaciona a candidata Dilma Rousseff a um dos períodos mais críticos e polêmicos pelo
qual o Brasil passou, a ditadura.
Assim, ao afirmar que fará uma revelação sobre algo obscuro do passado da
candidata, cria uma expectativa em torno disso, colocando uma foto em que ela apare-
ce como uma pessoa fichada, enunciando que se trata da representação de Dilma na
época da ditadura, a instituição midiática Época constrói uma imagem negativa da can-
didata.
Podemos afirmar que há, então, um posicionamento de desidentificação da ins-
tituição com a candidata do Partido dos Trabalhadores Dilma Rousseff, uma vez que
são evidentes as tentativas de se construir uma imagem negativa da candidata.
Analisaremos agora a capa da edição publicada em 4 de setembro de 2010, que
se refere ao candidato José Serra. Na capa, com um plano de fundo completamente
negro, temos uma foto do candidato com um semblante sério, vestido formalmente e
com a face direita levemente sombreada. A epígrafe dessa foto é “A cartada de Serra –
em queda nas pesquisas, o tucano vai ao ataque e explora o crime cometido contra sua
filha para tentar chegar ao segundo turno.”
Começando a análise pela foto, podemos afirmar que o fato de o plano de fun-
do ser negro e a face direita do candidato estar um pouco sombreada constrói um sen-
tido de surgimento do candidato, como se este estivesse “saindo das sombras”. Um
detalhe relevante é que as vinhetas da capa, que em outras edições tendem a receber
uma faixa colorida que as distingue do restante da capa, estão dispostas sobre o mesmo
fundo negro da foto e contêm somente palavras, o que produz um efeito visual de
maior destaque.
Quanto à epígrafe, podemos afirmar que seu título, “A cartada de Serra”, es-
crito em tom laranja escuro, produz um efeito de imponência e decisão, como se o can-
didato tivesse descoberto algum recurso que decidiria as eleições.
No enunciado seguinte, “Em queda nas pesquisas”, temos uma informação que
complementa e explica o título analisado anteriormente. Juntamente com o próximo
enunciado, “o tucano vai ao ataque”, percebemos um diálogo que é construído entre os
enunciados e a foto. Como foi explicitado anteriormente, na imagem, o candidato pare-

22 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


CAMILA FERNANDES BRAGA

ce estar “surgindo das sombras”, metáfora essa que representa o fato de José Serra es-
tar em segundo lugar e de ter encontrado um meio para modificar essa situação.
Em seguida, temos o enunciado “explora o crime cometido contra sua filha”, do
qual é relevante explicitar as condições de produção. Na semana anterior à publicação
da edição em análise, foi descoberto que o sigilo fiscal da empresária Verônica Serra,
filha de José Serra, havia sido violado. Esse fato foi tratado, conforme percebemos na
capa em análise, como um crime de extrema gravidade, o que é uma evidência de uma
tentativa da instituição midiática de intensificar um acontecimento que, normalmente,
não causa grande impacto nos leitores.
Ainda no que concerne a esse enunciado, considerando as suas condições de
produção, verificamos o silenciamento do envolvimento da candidata do PT Dilma
Rousseff no caso. Essa informação silenciada é percebida pelo fato de essa candidata
ser a maior concorrente de José Serra, o que seria uma justificativa para sua inclusão no
acontecimento. Esse silenciamento produz evidências de que a instância enunciativa
sujeitudinal não se identifica com Dilma.
No último enunciado, “para tentar chegar ao segundo turno”, percebemos um
tom de reconhecimento, pela instituição midiática, de que a exploração dos aconteci-
mentos em foco, pelo candidato José Serra, pode ser uma solução para modificar o re-
sultado da eleição que, segundo as pesquisas divulgadas naquela semana, seria decidi-
da já no primeiro turno.
Ao analisarmos a capa da edição que alude ao candidato José Serra, podemos
afirmar, principalmente pela tentativa de se agravar o acontecimento relatado, que a
instância enunciativa sujeitudinal Época possui identificação com o candidato do PSDB.

Considerações finais

Ao finalizarmos as análises, é pertinente enfatizar a relevância da relação que


existe entre as inscrições ideológicas de um sujeito com os seus enunciados, pois essas
inscrições se materializam no discurso que, por sua vez, materializa-se na linguagem.
Nessa perspectiva, é possível identificar as inscrições ideológicas do sujeito a partir de
seus enunciados.
Verificamos, também, a relevância dos sentidos que foram silenciados pela ins-
tituição midiática Época, principalmente no que está relacionado à candidata Dilma
Rousseff, pois esses sentidos que não foram enunciados constituem fortes evidências
de desidentificação da instância midiática com a candidata.
Nesse sentido, em nossas análises, procuramos por evidências que dessem su-
porte à hipótese de que a instituição midiática produz sentidos que revelam a posição
da qual ela enuncia e que evidenciam processos de identificação e desidentificação com
os candidatos.
Assim, ao analisar comparativamente as sequências discursivas, encontramos
regularidades que demonstram uma tomada de posição da instância enunciativa sujei-
tudinal Época e que evidenciam desidentificação desta instância com a candidata Dilma
Rousseff e de identificação com o candidato José Serra.

23 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


PROCESSOS DE DESLOCAMENTO DE SENTIDOS EM DISCURSOS POLÍTICOS...

Referências bibliográficas

Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos.


COURTINE, J. J.
São Carlos: EdUFSCar, 2009.

FERNANDES, Claudemar Alves. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. São Carlos:


Clara luz, 2008.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da


UNICAMP, 1988.

SANTOS, J. B. C.“A instância enunciativa sujeitudinal”, in: SANTOS, J. B. C. (org.) Sujeito e


subjetividade: discursividades contemporâneas. Uberlândia: EDUFU. Série Linguística in
Focus, vol. 6, 2009, p. 83-102.

24 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):14-24, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):25-36, 2011

A identidade como significante vazio das práticas


articulatórias na teoria do discurso de Ernesto Laclau
___________________________________________________________

CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
e-mail: castro.claudia2004@ig.com.br

Resumo: Neste trabalho discuto o conceito de identidade e sua operacionalização no


contexto social, as tentativas de fixar sentidos para o uso de seu significado e as rela-
ções hegemônicas que podem estar investidas deste preenchimento (interpretação).
Parto do princípio de identidade como “significante vazio”, algo que por ser tão recep-
tivo a vários tipos de preenchimentos torna-se um significante esvaziado de um senti-
do a priori e universal, na medida em que “pode” conter vários tipos de preenchimen-
tos. Conto com o aporte teórico de Stuart Hall, que discute a conceituação da identi-
dade; Ernesto Laclau, que analisa as articulações políticas contidas no discurso; Michel
Foucault, e os conceitos de “sujeito fundador” e “vontade de verdade”, além de ou-
tros. Chamo atenção para a necessidade de uma identidade plural, que negocia sua di-
ferença na tentativa de não se perder na imanência da universalidade, que tende a
torná-la homogênea, ressaltando também a identidade como algo móvel.
Palavras-chave: Teoria do Discurso; identidade; hegemonia.

O preenchimento dos significantes nas práticas articulatórias do discurso

Para que se possa entender a influência discursiva contida nas relações huma-
nas, cumpre entender primeiramente a importância da linguagem para a construção
dessas relações, a partir do entendimento de que a linguagem não tem uma existência
anterior ao homem e que ela é um construto – e construtora – de um conhecimento que
ocorre a posteriori.
Esse tipo de pensamento defende, portanto, que o conhecimento acontece na
práxis, não sendo, desse modo, revelado, mas, sim, construído e com capacidade de
construir. Contudo, várias correntes de pensamento preocuparam-se não só com a
produção do conhecimento no cotidiano, mas também com o uso dos significados, das
fixações de determinados sentidos, das articulações dialéticas e com as intencionalida-
des do discurso presentes na tentativa de uma representação fixa da realidade.
Partindo-se então do pressuposto de que a representação da realidade não é
constante e eterna, podemos dizer que representamos a realidade por meio de nossa

25 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE

capacidade discursiva, pois, vale ressaltar que, sendo a representação da realidade


construída a posteriori por nossas práticas discursivas, considera-se que ela não seja
permanente, tendo em vista que as práticas discursivas estão em constante mobilidade.
Por meio desse entendimento, pode-se perceber a determinação social do discurso, o
que não concebe mais apenas uma análise meramente subjetiva da linguagem, mas
também, e, sobretudo, uma análise política, objetiva e concreta dos elementos discursi-
vos.
Desse modo, fundamentando-se pela filosofia analítica da linguagem, entende-
se que a prática articulatória de nosso discurso no cotidiano busca preencher de senti-
do o fenômeno da significação tencionando definir, não desinteressadamente, a reali-
dade. Entretanto, a tentativa de preenchimento e de definição tenta se fixar num de-
terminado sistema de relações. Isso ocorre quando os interesses entram no campo dis-
cursivo, a fim de ganhar representatividade.
Não se recusa, portanto, o entendimento de que a realidade seja representada,
ou melhor, que a realidade seja resultado de nossa capacidade de representação. Ape-
nas salienta-se que essa capacidade não é passiva, como uma mera capacidade de in-
terpretar um mundo que já está pronto e construído, mas, sim, que essa representação
ocorre na linguagem, nos processos de interação entre indivíduos que se comunicam
entre si, ou seja, a representação é um constante devir que se instaura na contingência
da vida e de nosso “estar no mundo”.
Por esta razão, é que a hermenêutica do discurso, a dúvida e a compreensão de
que em toda prática discursiva há relações de poder, permitem a composição de uma
pesquisa que não se limite ao campo econômico, o qual pode perfeitamente esconder
estereótipos por meio de determinados discursos. Desse modo, para facilitar a compre-
ensão sobre a linguagem inserida nas relações humanas e no cotidiano, vale ressaltar
os estudos da linguagem que sublinham a necessidade de se analisar os significados
contidos no enunciado, bem como analisar as fixações de sentidos e práticas articulató-
rias.
Há muito se tem discutido a importância da linguagem para o conhecimento,
questionando-se se a linguagem aduz o conhecimento ou se o conhecimento prescinde
a linguagem. Russell, um dos expoentes da filosofia analítica da linguagem, põe em
dúvida, por exemplo, o que chamamos de conhecimento, observação, experiência, in-
trospecção e percepção como atos do pensamento, características que ele nomeia de
“inferência fisiológica”. De uma inferência fisiológica não se pode deduzir uma infe-
rência lógica.
Nesse sentido, Russell destaca a necessidade de uma análise contextual científi-
ca como caminho para um conhecimento mais amplo, na medida em que ressalta os
aspectos sociais do conhecimento. Isso significa que nosso conhecimento é produto de
nossa relação com o meio e, por esta razão, não poderíamos entender cientificamente o
conhecimento sem considerar os contextos nos quais estamos envolvidos. A partir des-
sas considerações, ele pretende alcançar o conhecimento verdadeiro sem a intervenção
de qualquer entendimento relativista, e para isto ele considera também que é preciso
duvidar do que inferimos em nosso dia a dia, destacando, ao mesmo tempo, a impor-

26 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


A IDENTIDADE COMO SIGNIFICANTE VAZIO DAS PRÁTICAS ARTICULATÓRIAS...

tância de uma análise científica e os problemas de uma mera análise indutiva1.


Russell credita à ciência a condição sine qua non como caminho para o conheci-
mento e, apesar de estar preso a determinados pressupostos do pensamento moderno
como também à preocupação de fundamentar a ciência pela lógica, ele comenta:

Penso que deveríamos iniciar nossa jornada filosófica pela tentativa de compreender o
conhecimento como parte da relação do homem com sua ambiência, esquecendo, por
enquanto, as dúvidas fundamentais que estivemos a considerar. Talvez a ciência mo-
derna nos capacite a ver problemas filosóficos sob uma nova luz. Nessa esperança, va-
mos examinar a relação do homem com o seu meio, com o intuito de chegar a uma vi-
são cientifica do que constitui o conhecimento (RUSSELL, 1977, p. 20).

Para Russell, não basta a análise subjetiva entre linguagem e conhecimento, a fi-
losofia da linguagem precisa levar em consideração, portanto, o contexto, o ambiente,
as relações sociais, culturais, políticas e econômicas que constroem e são construídas no
âmbito do discurso. Nesse sentido, ele vai destacar então a importância de uma análise
objetiva, pois não parte do princípio de linguagem como algo a priori e transcendental,
mas, sim, como algo que constrói e se constrói no campo da discursividade.
Diante disso, vale lembrar que foi por meio do reconhecimento da necessidade
de se compreender a relação do homem que a teoria pragmática2, a qual defende a in-
vestigação do uso da linguagem no cotidiano, ganhou destaque e relevância em vários
campos do conhecimento, como a linguística e a teoria do conhecimento.
Os teóricos pragmáticos, considerando a linguagem como a interação que ocor-
re entre seus usuários, entendem que é necessária a análise de sua práxis. Ela subdivi-
de-se em duas correntes de pensamentos. Uma chamada “contextualista”, que conside-
ra estritamente o contexto, e outra chamada “performativa” que entende a linguagem
como ação e como realização de atos, e não apenas como uma descrição do real (MAR-
CONDES, 2006, p. 220).
A análise pragmática performativa considera o contexto e a ação como lingua-
gem, e pode ser explicada a partir da noção de “jogos de linguagem”, de Wittgenstein,
e de “atos de fala”, de Austin. Wittgenstein desenvolveu seu conceito de “jogos de lin-
guagem” a partir do entendimento de que o uso da linguagem não é algo fixo, e que
não serve apenas para descrever a realidade somente pelo contexto, pois falante e ou-
vinte também utilizam a linguagem por meio de suas intenções e interesses. Diferen-
temente então da análise contextualista, que só considera a fala em seu contexto histó-
rico e coletivo, a pragmática performativa considera também a fala individual, a inten-
cionalidade (particular) do falante. A responsabilidade do sujeito, portanto, torna-se
mais evidente e não é obscurecida pela justificativa social, pois o social pode, obvia-

1 O método indutivo é um método em que, na análise de algo, utiliza a coleta de dados particu-
lares para aplicar ao todo.
2 Campo de estudo da linguagem em seu uso concreto que se constitui a partir da experiência

humana e da interação entre falantes.

27 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE

mente, explicar determinadas condutas, mas não pode ser considerado como único
meio de análise, sob pena de se reduzir interesses particulares a interesses coletivos.
Não se pode pensar, entretanto, que a análise performativa desconsidera o con-
texto; ela apenas não se reduz a ele. Na noção de Wittgenstein, a linguagem é descrita,
portanto, como um jogo no qual as relações envolvem contexto, objetivos específicos,
interesses particulares, interação e intersubjetividade.

Segundo Wittgenstein, o significado não deve ser entendido como algo de fixo e deter-
minado, como uma propriedade inerente à palavra, mas sim como a função que as ex-
pressões lingüísticas exercem em um contexto específico e com objetivos específicos. O
significado pode, por conseguinte, variar dependendo do contexto em que a palavra é
utilizada e do propósito deste uso (MARCONDES, 2006, p. 221).

Podemos entender com isso que, quanto à filosofia da linguagem,

trata-se basicamente de uma visão filosófica segundo a qual o estudo da linguagem de-
ve ser realizado em uma perspectiva pragmática, ou seja, enquanto prática social con-
creta, examinando, portanto a constituição do significado lingüístico a partir da intera-
ção entre falante e ouvinte, do contexto de uso, dos elementos sócio-culturais pressu-
postos pelo uso, e dos objetivos, efeitos e conseqüências desse uso (MARCONDES, 2000,
p. 40).

Wittgenstein chama a atenção para as possíveis significações performativas da


linguagem, e Austin formula sua Teoria dos Atos de Fala (Speech Act Theory) chamando
atenção também para o compromisso inerente à fala. A Teoria dos Atos de Fala surge
então como um método de análise pragmática de problemas filosóficos por meio da
linguagem, que é considerada como prática concreta, na qual a fala é entendida como
um compromisso quase contratual que o indivíduo assume ao comunicar-se num dado
discurso.

[...] Austin introduziu o que podemos denominar “concepção performativa de lingua-


gem”. Sua proposta de sistematização consiste em manter que a linguagem em uso po-
de ser tratada de modo sistemático desde que sejam adotadas as categorias adequadas
para isso; ou seja, desde que a linguagem seja tratada como uma forma de ação e não
apenas de representação do real ou de descrição de fatos no mundo (MARCONDES,
2006, p. 220).

Desta forma, além de destacar a importância de se explicitar elementos implíci-


tos1, a Teoria dos Atos de Fala também destaca a responsabilidade social do pronunci-
amento analisado a partir de um exame do uso da linguagem, interpretada aqui como
forma de ação.

1 Quer seja de forma textual ou dialógica.

28 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


A IDENTIDADE COMO SIGNIFICANTE VAZIO DAS PRÁTICAS ARTICULATÓRIAS...

Os críticos desta teoria alegam que a ação, neste caso, prevalece sobre o contex-
to, pois ela centra-se no falante individual e desconsidera, segundo eles, o contexto.
Entretanto, apesar de considerar a linguagem a partir de elementos contextuais, ela
leva também e, principalmente, em consideração as intenções do falante nesse contexto
na medida em que reconhece ser necessário analisar o que pode estar explícito (ou im-
plícito) na fala, além do que está sendo transmitido pelo contexto. Em síntese, pode-se
dizer que ao se considerar a fala individual não se exclui o contexto em que ela está
inserida, apenas se amplia as noções acerca das funções da linguagem, considerando-a
para além dos seus limites contextuais, na medida em que se entende seu possível uso
a partir de interesses particulares.
Conforme comenta Marcondes, “as intenções são consideradas como psicológi-
cas e, portanto, subjetivas; embora, em última análise, se originem de práticas sociais” [grifo
meu] (2006, p. 225). Isto significa que, mesmo sendo subjetiva, ou melhor, particular, a
intenção se desenvolve em decorrência de nosso “estar no mundo”, de nossa relação
com o mundo que nos cerca, de nossa ação. Desse modo, como afirma Marcondes, ape-
sar de fazer parte do sujeito, nossas intenções não ocorrem em um sujeito que está iso-
lado no mundo, mas, sim, em um sujeito que se relaciona com o mundo em que vive,
no contato com seu ambiente, com as pessoas que lhe cercam e com as situações vivi-
das por ele.
Em contrapartida, Marcondes considera que a linguagem, mesmo sendo origi-
nária das práticas sociais, não pode ser reduzida a uma análise somente de sua práxis,
ou seja, da ação de indivíduos que se relacionam entre si, na qual todo dizer é um fa-
zer. Marcondes chama a atenção para o fato de que a linguagem não pode ser analisa-
da somente por meio da estrutura formal da sentença e pela semântica dos termos uti-
lizados, pois a própria ação do sujeito e suas intencionalidades recebem influências de
uma série de fatores que o envolvem. O estudo da linguagem, portanto,

[...] depende não só de uma consideração da sentença proferida e do significado dos


termos e expressões utilizados, mas também da identificação de elementos contextuais,
com o papel do falante no contexto, a existência de normas e procedimentos e de insti-
tuições que estabelecem essas normas e procedimentos, de elementos contextuais por-
tanto, assim como das intenções ou objetivos dos falantes e ouvintes. Intenções e ele-
mentos subjetivos só podem ser identificados, por sua vez, com base no que é proferido
explicitamente e no que é indicado por meio do contexto. Intenções são, assim, sempre
na verdade apenas atribuídas a um falante (MARCONDES, 2006, p. 227).

Precisamos considerar, portanto, a característica contextual da linguagem, pois,


quando se fala de ação já se considera, obviamente, o contexto em que esta ação se deu.
Estando, pois, o indivíduo imerso na sociedade, sua fala carrega todo um contexto e,
desse modo, a Teoria dos Atos de Fala não estaria, de modo algum, privilegiando a
ação e desconsiderando o contexto.
Entende-se com isso que a heurística dialética pode ser um caminho esclarece-
dor, criterioso, amplo e dinâmico para que se possa ter uma compreensão mais abran-

29 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE

gente sobre os temas analisados. Além disso, a análise política do discurso pode ser
contribuinte de uma dinâmica sob a qual é ressaltado o papel do sujeito e de como um
significante está sendo significado, ou seja, quais são os interesses que se ocultam no
ato de se atribuir sentido a um signo linguístico.
Assim sendo, considerando a intencionalidade do indivíduo presente na lin-
guagem, vale ressaltar que, na análise dos discursos na vida cotidiana, não se pode
deixar de pensar no que Foucault chama de “vontade de verdade”. Segundo ele, a von-
tade de verdade se impõe sobre outros discursos, produzindo uma sobreposição com
poder de definir e conceituar como uma espécie de pressão coercitiva. É ainda pela
vontade de verdade que se orientam a palavra proibida e a segregação.

Dos três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, a se-
gregação da e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais longamente. É que,
há séculos, os primeiros não cessaram de orientar-se em sua direção, é que cada vez
mais, o terceiro procura retomá-los, para sua própria conta, para, ao mesmo tempo,
modificá-los ou fundamentá-los (FOUCAULT, 1996, p. 19).

A tentativa de fixação de sentidos: intencionalidade e relações de poder

A intencionalidade, portanto, tem, por assim dizer, sua vontade de verdade. A


tentativa de se fixar um sentido como verdadeiro tem intencionalidade e vontade de
verdade, a fim de estimular o discurso que lhe convém. Essa concepção parte de uma
análise política do discurso que vai dar origem à chamada Teoria do Discurso, e que
tem como principal representante Ernesto Laclau. Contudo, cabe explicar antes o que é
a Teoria do Discurso.
Como define Giacaglia, a Teoria do Discurso “constitui uma configuração con-
ceitual crítica da racionalidade ocidental e sua metafísica da presença, que se estrutura
em torno da crítica de todo essencialismo” (GIACAGLIA, 2006, p. 100-101).
A Teoria do Discurso chama a atenção para o fato de que os sentidos atribuídos
aos signos ocorrem na contingência e não têm nenhuma lógica essencialista que lhe
atribua sentidos a priori. Nas palavras de Locke já se compreendia a negação desta lógi-
ca essencialista atribuída às palavras:

As palavras, por um longo e familiar uso, despertam, como acabamos dizer, algumas
idéias no espírito, de um modo tão constante e com tal prontidão que os homens são le-
vados a supor que há uma ligação natural entre ambas. Mas que as palavras não signifi-
cam senão as idéias particulares dos homens e isto por uma imposição perfeitamente arbi-
trária, é o que evidentemente aparece no facto de elas nem sempre despertarem no espí-
rito de outros (mesmo quando falam a mesma língua) as mesmas idéias de que supo-
mos elas serem os sinais. E cada um tem tão inviolável liberdade de fazer com que as
palavras signifiquem tais idéias, que ninguém tem o poder de fazer com que outros te-
nham no espírito as mesmas idéias que ele propriamente tem, quando se serve das
mesmas palavras [grifo do autor] (LOCKE, 1999, p. 550).

30 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


A IDENTIDADE COMO SIGNIFICANTE VAZIO DAS PRÁTICAS ARTICULATÓRIAS...

Para Locke, as palavras não podem ser consideradas ideias universais de um


conceito único. Aliás, é justamente pela possibilidade de suas variadas interpretações
que Locke considera as palavras como particulares e arbitrárias. A prova, portanto, de
que não existe na linguagem uma essência que precede nossa existência, consiste no
fato de que cada palavra tem uma significação particular para cada indivíduo, que tem,
por sua vez, a liberdade para interpretá-la segundo seu próprio entendimento. Da
mesma forma, para a perspectiva da Teoria do Discurso, o sentido de um significante
não transcende o mundo das ideias platônicas. O sentido é preenchido na medida em
que este significante se articula num determinando discurso.
Para a Teoria do Discurso os significados linguísticos são criados por nós e po-
dem representar a sujeição do social aos nossos interesses privados; contudo, esta teo-
ria considera, por outro lado, que os significados não são rígidos, pois não consegui-
mos estabelecer significados eternos e imutáveis, na medida em que considera as pos-
sibilidades de um novo sentido de preenchimento.
A possibilidade de preenchimento de um termo retira, pois, qualquer pretensão
de se considerá-lo a priori, na mesma medida em que ressalta as possíveis significações
que um termo possa ter, como um “significante vazio”. Laclau comenta que “um signi-
ficante vazio é, no sentido estrito do termo, um significante sem significado” (1996, p.
69). O significante vazio não tem, então, um significado específico e universal, mas,
sim, todo um sistema de significações capaz de lhe dar sentido.
Entretanto, o fato de um significante, esvaziado de sentido, pertencer, ainda as-
sim, a um sistema de significação, induz a uma dúvida e, por isso, Laclau pergunta:
“Por que, como é possível que um significante que não está unido a nenhum significa-
do continue sendo, apesar de tudo, parte integral de um sistema de significações?” (id.,
ibid.).
Em outras palavras, Laclau pergunta como um significante esvaziado de senti-
dos, ou vazio, como ele chama, pode, ainda assim, ser um significante. Podemos então,
junto com Laclau, dizer que um significante vazio, ainda que vazio, é um significante,
na medida em que um significante é um pré-significado, ou seja, é aquilo que é passí-
vel de ser atribuído um sentido. Já um significado é aquilo ao qual já foi posto um sen-
tido. Um significado é algo que já está preenchido; um significante é algo que será pre-
enchido e, vale ressaltar, com várias possibilidades de uso.
Laclau explica então que “pode haver significantes vazios dentro do campo da
significação porque todo sistema significativo está estruturado em torno de um lugar
vazio” (id. p. 76). O sistema de significação estrutura-se não de forma pré-determinada
por um consenso universal e de um sistema de linguagem que independe do homem,
mas, sim, em torno de um lugar vazio, a ser preenchido.
Contudo, não se pode aduzir desta conclusão uma incompreensão lógica nem
uma contradição ou um equívoco, pois o fato de um significante ser vazio não pressu-
põe que ele possa ser preenchido à revelia de um sentido lógico. O que se pretende é
chamar a atenção para a impossibilidade de um sistema de significação fundar-se em
estruturas “positivas” (latim positum, cujo significado é “aquilo que está posto, que está
dado”), não tendo, portanto, um sentido fixo e imutável que não possa ser alterado de
acordo com as intencionalidades e posições do sujeito.

31 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE

Dessa forma, apesar de um termo não ter um a priori nem um sentido universal
e eternamente fixo, ele não é arbitrário, pois se o fosse, não seria vazio, mas equivoca-
do, dadas as suas consequentes ambiguidades. Considerar, desse modo, “que o mesmo
significado possa ser vinculado a distintos significados em diferentes contextos” é um
erro, pois “impediria de fixá-lo plenamente” (id. p. 70). Isso nos faz perceber que, ocor-
re, certamente, uma fixação, mas esta fixação não se estabelece de modo eterno e imu-
tável. A fixação de um sentido, ainda que seja plena, será plena em relação a algo, ou
seja, plena em sua aplicação a determinado termo e não em relação a um conceito uni-
versal.
Porém, esta imanência linguística em torno de significantes vazios é o locus sine
qua non para o estabelecimento da hegemonia, ou seja, em decorrência dessa imanência
discursiva, o significado é aproveitado segundo interesses próprios de um dado sujei-
to, pois é imanente ao próprio sistema discursivo deste sujeito. A imanência discursiva
dos significantes concebe em si, como parte deste “todo” discursivo, todas as possíveis
interpretações, desde que não tenham equívocos. Essa imanência, da mesma forma que
cede espaço para uma pluralidade de significados, cede espaço também para a fixação
de um sentido absoluto que é fundamental para o estabelecimento de um discurso he-
gemônico que aproveita a imanência para se estabelecer e se fixar.
A hegemonia emerge, segundo Laclau, da “interação política entre os grupos”
ou da “apresentação da particularidade de um grupo”, e sua operacionalização ocorre,
assim como os sentidos, numa dimensão de contingência, e não de uma necessidade
justificada por essências, por meio da “imposição de um princípio organizacional pree-
xistente” (id., p. 83). Para Laclau, vale lembrar também que a hegemonia não é resulta-
do de um contrato, como definido por Hobbes; não é preciso estar relacionada ao espa-
ço público, como definido por Hegel nem diz respeito à visão marxista de que a classe
proletária seria a classe universal, mas, sim, o resultado dialético entre a lógica da dife-
rença e a lógica da equivalência.

Os atores sociais ocupam posições diferentes no interior daqueles discursos que consti-
tuem o tecido social. Neste sentido, elas são, estritamente falando, particularidades. Por
outro lado, há antagonismo sociais que criam fronteiras internas na sociedade. A respei-
to das forças opressivas, por exemplo, um conjunto de particularidades estabelece entre
si relações de equivalência (LACLAU, 2004, p. 13).

Neste sentido, entende-se que tudo se constrói na discursividade e na tentativa


(não arbitrária) de representação do real. Absolutamente nenhum discurso está isento
desta intencionalidade particular. Entretanto, há forças que forjam a palavra, inibindo a
capacidade de preenchimento realizado pelo outro. Por meio da lógica da equivalência,
um grupo que se homogeneíza em virtude de suas afinidades, se sobrepõe a outro
grupo, suprimindo-o por lhe considerar diferente.
Considerando-se, então, o processo relacional do sistema discursivo, no qual o
preenchimento dos significantes vazios encontra-se na contingência do discurso, pode-
se pensar que o preenchimento deste significante é feito por um sujeito o qual podemos

32 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


A IDENTIDADE COMO SIGNIFICANTE VAZIO DAS PRÁTICAS ARTICULATÓRIAS...

associar ao “sujeito fundador” citado por Foucault.

O sujeito fundador, com efeito, está encarregue de animar diretamente com suas pre-
tensões as formas vazias da língua; é ele que, ao atravessar a espessura ou a inércia das
coisas vazias, capta, na intuição, o sentido que se encontra aí depositado [...] (FOU-
CAULT, 1996, p. 18).

Assim sendo, o sujeito fundador de Foucault é aquele (ou aqueles) cujo interes-
se o leva a preencher significantes vazios, com a pretensão de fundar soberanamente
elementos discursivos, de acordo com sua intencionalidade, movida por uma vontade
de verdade que representa os interesses e objetivos desse sujeito.
Em outras palavras, pode-se dizer que as lutas hegemônicas de um determina-
do segmento, que também pode ser chamado de sujeito fundador1, podem ser caracte-
rizadas considerando-se o preenchimento (sempre estratégico) de um significante va-
zio.
Essa articulação hegemônica pode ser definida, por exemplo, a partir da supres-
são do particular em relação ao universal, ou seja, quando uma particularidade passa a
ser representada como universal, desprezando e descaracterizando as diferenças ine-
rentes às particularidades. Laclau afirma que “o universal não é outra coisa senão um
particular que em certo momento passou a ser dominante” (1996, p. 53). Segundo essa
afirmação, conclui-se então que não há um universal que se particulariza, mas, sim,
uma particularidade que pode ser universalizada. A disputa por uma representação
universal ocorre, então, entre particulares, ou seja, um particular pretende se sobrepor
a outros particulares, suprimindo-os. Entretanto, a universalização desse particular é
assimilada, de modo geral, como algo transcendental; o processo de universalização é
entendido, erroneamente, como uma característica natural da realidade e não como
algo que foi construído intencionalmente com o fito de se universalizar e conquistar
uma hegemonia, na medida em que suprime outros modos particulares de conceber a
realidade. Desse modo, comenta Laclau: “Como afirmamos, esses meios de representa-
ção só podem consistir em uma particularidade, cujo corpo se divide, uma vez que,
sem deixar de ser particular, ela transforma seu corpo na representação de uma univer-
salidade que o transcende” (2004, p. 13).
Em relação aos processos identitários, a supressão do particular tenciona ho-
mogeneizar o processo de identificação a partir da noção de um sujeito universal su-
primindo as diferenças em nome de uma identidade absoluta.
Na visão clássica, como ressalta Laclau, o termo universal não era problemati-
zado, pois não se considerava uma universalização identitária do sujeito, mas, sim, que
o sujeito partilhava com seus semelhantes particularidades não antagônicas. A univer-
salidade torna-se então uma particularidade totalizante. Laclau comenta então que “o
conjunto das particularidades não antagônicas reconstruía, pura e simplesmente, a

1 Podemos conceber este sujeito desde um indivíduo até mesmo um grupo, ou um sistema. O
termo “sujeito” é aqui ampliado para além da acepção individualizante do termo.

33 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE

noção de totalidade social, a clássica noção do universal não era em absoluto posto em
questão” (1996, p. 57).
Devemos, portanto, considerar que há uma diferença entre se falar de “particu-
laridades não antagônicas” e não de um “universalismo das particularidades” do sujei-
to. No primeiro caso, considera-se uma totalidade social, na qual coexistem, de forma
natural, particularidades afins, que se combinam entre si, e não se questiona, neste ca-
so, a tentativa intencional de tornar o particular em universal; já no segundo caso, inse-
re-se uma visão crítica que pretende realçar as relações hegemônicas que tencionam
transformar, de forma convencional, o particular em universal.
No entanto, Laclau considera, ao mesmo tempo, sobre a impossibilidade de
uma plena unificação do real. Assim, não há um processo vitorioso de unificação eter-
na, pois o discurso não consegue dar conta de uma unificação plena e totalizante. A
imanência discursiva aceita todo e qualquer discurso, o que torna impossível uma fixa-
ção plena e eterna de um dado sentido.
Podemos exemplificar por meio do significante vazio “cultura nacional”. Se-
gundo Hall (1998), a cultura nacional procurou unificar a identidade cultural a fim de
suprimir, como um processo de afirmação identitária, os conceitos de classe, gênero e
raça. Considera-se sob esse aspecto que a cultura nacional pode desconsiderar diferen-
ças existentes em seu interior. Segundo ele afirma, então, a cultura nacional tenta im-
por um comportamento a partir de uma rede de significados que prioriza uma identi-
dade nacional. Entende-se com isso que “a cultura nacional é, portanto, uma estrutura
de poder cultural que tenta impor uma hegemonia cultural mais unificada” (1998, p.
46).
Partindo dessas análises, percebe-se que a diferença pode não ser tão reconhe-
cida na sociedade porque a identidade adota no senso comum a ideia de uniformidade.
Sobre isso, comenta Hall: “Na linguagem do senso comum, a identificação é construída
a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal”
(2000, p. 106).
A supressão do particular pode ser, portanto, um mecanismo de impedir o re-
conhecimento às diferenças, na medida em que não reconhece a heterogeneidade. A
diferença cede, então, espaço para o conceito de universalidade e isso leva à discussão
acerca dos processos identitários, que buscam o reconhecimento às suas diferenças e
que chamam a atenção para a ampliação arbitrária (e não problematizante) do conceito
“identidade”.
A ampliação e consequente universalização do conceito de identidade, que não
considera a identidade como algo também individual e, portanto, fragmentado, pode
levar a um esvaziamento de seu sentido de tal modo a impossibilitar uma operaciona-
lização do termo, impedindo assim um questionamento de seu significado.
Se considerarmos, por exemplo, a identidade apenas como ter cidadania, estarí-
amos reduzindo o próprio uso de seu conceito, pois a identidade é algo mais complexa
do que a normatização do sujeito em uma sociedade. A identidade, sendo algo que
penetra na individualidade de cada um, traz os anseios, os desejos, o jeito de cada um,
ao mesmo tempo em que revela modos de vida diversos. Não poderíamos deixar de

34 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


A IDENTIDADE COMO SIGNIFICANTE VAZIO DAS PRÁTICAS ARTICULATÓRIAS...

admitir, então, que a identidade é um conceito plural que serve para definir o outro e a
nós mesmos e não apenas para definir de forma unívoca todo um coletivo social.
Além disso, Hall (1998) comenta que a identidade é modificada em relação aos
interesses do sujeito. Isto significa dizer que ela pode ser alterada a qualquer momento.
A identidade é então um significante vazio que pode ser preenchido com várias possi-
bilidades de sentido. A variação de sentidos que uma identidade pode adquirir, faz
com que ela possa ser negociada de acordo com a posição do sujeito em seu contexto e
modificada de acordo com seus interesses.
Diante do que foi exposto, conclui-se a importância de uma análise discursiva
que não se reduz apenas às questões econômicas e lutas de classe que não contemplam
a individualidade do sujeito, na medida em que só considera critérios extremamente
coletivistas. Ao mesmo tempo, ressalta-se uma análise discursiva que não parte, exclu-
sivamente, de análises muito subjetivistas e não reconhecem o sujeito em seu meio-
ambiente, compreendendo assim todo um contexto relacionado à sua vivência.
A proposta de análise do discurso, descrita neste texto, busca, então, ressaltar a
compreensão sobre o modo pelo qual acontecem os processos discursivos a partir da
perspectiva das relações entre sujeitos, que faz com que o discurso consiga ganhar re-
presentatividade, determinando-se por meio das contingências, negociações e emer-
gências factuais constantes em nosso dia-a-dia.

Referências bibliográficas

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

HALL, S. “A questão da identidade cultural”, Textos didáticos. São Paulo: IFHC/Unicamp,


1998.

_____. “Quem precisa de identidade?”, in: SILVA, T. T. da. (org.). Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000, p.
103-133.

LACLAU, E. Emancipación y diferencia. Buenos Aires: Difel, 1996.

_______ & MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democra-
cia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2004.

LOCKE, J.Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gul-
benkian, 1999.

MARCONDES, D. “Desfazendo mitos sobre a pragmática”, in: Revista Alceu, v. 1, n. 1. Rio


de Janeiro, 2000, p. 38-46. Disponível em:
http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n1_Danilo.pdf. Acessado em
12/09/2010.

35 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


CLÁUDIA CASTRO DE ANDRADE

________. “A teoria dos atos de fala como concepção pragmática da linguagem”, in:
Revista de Filosofia Unisinos. São Leopoldo, 2006, pp. 217-230. Disponível em:
http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_filosofia/vol7n3/ar
t01_marcondes.pdf. Acessado em 12/09/2010.

PLATÃO. Diálogos: Teeteto. Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da Uni-
versidade Federal do Pará, 1988.

RUSSELL, B. Fundamentos de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, pp. 7-20.

36 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):25-36, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):37-45, 2011

Reflexões no ensino acerca das conjunções coordenativas1


________________________________________________________________

CRISTIANE NASCIMENTO RODRIGUES


DANIELA S. GUANAIS COSTA
LUAN LEE HERNANDES
NATÁLIA CRISTINA ESTEVÃO
RAFAEL BORGES RIBEIRO DOS SANTOS

Alunos do 3˚ ano do curso de Letras Português e Espanhol ou Português e Inglês,


na Universidade Federal de São Carlos.
e-mails : cristiane.rodrigues22@hotmail.com; daniela_guanaes@hotmail.com;
luan_leee@yahoo.com.br; nati_creide@hotmail.com; rafaeljud@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho refere-se ao estudo das conjunções coordenativas, a


partir da observação de dados coletados pela linguista Maria Helena de Moura Neves,
juntamente com a análise de uma gramática do Português e de uma redação de um
aluno de Ensino Fundamental. Procurou-se avaliar como as conjunções coordenativas
aí aparecem, de modo a elaborar um plano de aula com exercícios que busquem obter
uma aprendizagem melhor por parte dos alunos. Nesse sentido esperamos que a refle-
xão sobre a língua e seu funcionamento seja realizada numa perspectiva interacionista
professor-aluno, e que esta seja capaz de perceber as relações de marcadores argu-
mentativos em um texto. No caso particular, as relações entre as conjunções coorde-
nativas.
Palavras-chave: conjunções coordenativas; Interacionismo; ensino de português

Introdução e objetivos

Levando em consideração as atuais diretrizes educacionais do ensino médio em


contexto de escolas públicas, nos apoiaremos inicialmente, para o desenvolvimento
deste artigo, na pesquisa desenvolvida pela linguista Maria Helena de Moura Neves,
que se direciona em tratar o modo como a gramática é explorada em aulas de portu-
guês para alunos do Ensino Fundamental (1.° a 9.° ano).

1 Este trabalho foi desenvolvido no segundo semestre de 2009, durante a disciplina Sintaxe da
Língua Portuguesa, ministrada pela Profª. Drª. Flávia Bezerra de Menezes Hirata-Vale.

37 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


CRISTIANE NASCIMENTO RODRIGUES ET AL.

Pautados nessa perspectiva buscaremos desenvolver nosso texto com vista a


propor um possível desenvolvimento de aula, acerca de uma gramática que trate das
partes do discurso. Mais especificamente sobre como os elementos atuam na codifica-
ção do discurso, o papel dos coordenadores em um texto. Assim, tentaremos propor o
estudo de um tópico em sintaxe: a função que as conjunções coordenativas adquirem
na enunciação de uma frase ou texto.
Em seu trabalho, Neves (1984) considera três ocorrências:

1. [O cão] Tornaria a ouvir a voz do velho Naé. E tudo voltaria a ser


exatamente como tinha sido até então. (Conde, 1978).
2. Eu não valho nada, patrão. Mas o senhor pode contar comigo pra o
que der e vier (Sales, 1974).
3. Os índios não sei se têm alma imortal. Ou se ainda têm (Callado,
1968).

E a partir da observação que se faz delas, conclui que o locutor optou por cortar
em duas frases o que poderia juntar em uma só. Além de que usa o coordenador, ape-
sar do corte. Se não houvesse o corte a coordenação seria intrafrasal, mas o estatuto
sintático se manteria.
No caso de se suspender o uso dos coordenadores e, mas e ou, o processo de co-
ordenação seria assindético. E assim, haveria a perda da garantia da coordenação.
Nesse sentido notamos que Neves nos apresenta uma perspectiva de conjun-
ções coordenativas muito diferente das que foram ensinadas por muito tempo em vá-
rias instituições do passado, e ainda do presente, que se baseiam na noção gramatical
calcada por um conjunto de regras e estruturas gramaticais.
Neves parte para a noção de conjunções coordenativas num sentido em que o
normativo se integra ao social e ao discursivo, levando em consideração a relação do
sujeito com a língua e as diversas possibilidades de significação que a sintaxe e a se-
mântica podem produzir (no que diz respeito, nesse caso, somente às conjunções coor-
denativas) ao se articularem colaborativamente.
Tendo por base esses e outros dados2 apresentados na pesquisa de Neves, tenta-
remos criar um trabalho que proponha a elaboração de uma aula interativo-reflexiva
acerca das conjunções coordenativas, buscando mobilizar os alunos do 9.˚ ano a nota-
rem a importância prática e funcional das conjunções coordenativas e a maneira como
direta ou indiretamente elas se inserem no cotidiano.

Metodologia

Como metodologia, buscaremos unir as aulas de gramática (conjunções coorde-


nativas) com as de leitura e produção textuais, pensando na língua como um sistema

2 Alguns desses outros dados da pesquisa de Neves serão explorados no momento de elabo-
rarmos nossa metodologia.

38 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


REFLEXÕES NO ENSINO ACERCA DAS CONJUNÇÕES COORDENATIVAS

contínuo e considerando que qualquer divisão em disciplinas é simplesmente de cará-


ter formal. Com essa união texto e gramática, tentaremos propor um tema com o qual o
aluno se identifique, que neste caso será a adolescência, com a finalidade de nos apro-
ximarmos dos alunos, já que estamos lidando com um público do 9.° ano.
Com a utilização dessas técnicas pretendemos elaborar uma aula mais dinâmi-
ca, diferente do ensino tradicional de gramática, que simplesmente se baseia na divisão
e nomenclatura de classes. Com isso esperamos que os alunos se sintam mais motiva-
dos em desenvolver o trabalho proposto pelo professor, sendo capaz de encontrar no
conteúdo um caráter funcional praticado em seu cotidiano, diferente do que nos apon-
ta os dados da pesquisa de Neves (1984, p. 237-238):

[...] A catalogação das classes foi a atividade apontada na pesquisa como a mais fre-
qüentemente explorada nas aulas de gramática. [...] O primeiro ponto que deve ser in-
dicado é que 100% dos professores entrevistados afirmam ensinar gramática. Uma con-
clusão muito grave que se tira dos resultados da pesquisa, porém, é que os professores
confessam acreditar que seu trabalho com o ensino da gramática “não serve para nada”.

Trabalhando dessa maneira tentaremos atender a duas necessidades dos alu-


nos, tanto no que diz respeito à produção textual, como ao conteúdo gramatical, relaci-
onando ambas com o tema pré-estabelecido e familiar para os alunos. Segundo Leffa
(2003), “o que o aluno já sabe deve servir de andaime para o que ele ainda não sabe.
Ninguém aprende algo que é totalmente conhecido e nem algo que seja totalmente
novo”. Dessa maneira partiremos de temas que os alunos já conhecem (conjunções e
produção textual) e aperfeiçoaremos o conhecimento de tais temas com a finalidade de
que o aluno domine as técnicas de produção de texto e, consequentemente, faça o uso
adequado das conjunções coordenativas.
Nesse sentido esperamos que esta metodologia seja relevante não só para não
cairmos nos mesmos dados apresentados pela pesquisa realizada por Neves, como
também para proporcionar a reflexão dos alunos em reconhecer as conjunções coorde-
nadas no seu próprio texto, além ainda do emprego que fazem delas e nas diversas
maneiras em que contribuem para a alternância de sentido do texto, já que as conjun-
ções coordenativas estão intrinsecamente presentes no sistema linguístico que utiliza-
mos para produzir nossos enunciados.

Desenvolvimento

Para o desenvolvimento dessa atividade partiremos do pressuposto de que os


alunos já tenham produzido um texto proposto pelo professor e que as particularida-
des pertinentes ao texto como coerência, coesão, entre outros, já tenham sido aborda-
das.
Assim, inicialmente, o professor abordará os conceitos pertinentes às conjun-
ções coordenativas. Para isso nos utilizaremos dos conceitos apresentados pela Gramá-

39 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


CRISTIANE NASCIMENTO RODRIGUES ET AL.

tica de Cereja & Magalhães: Gramática reflexiva: texto, semântica e interação (São Paulo:
Atual, 1999). A escolha dessa gramática em detrimento de várias outras se deu pela
maneira como distribui esse conteúdo partindo para uma abordagem reflexivo-
interativa em relação ao texto e as funções sintáticas nele presentes, por isso mais con-
dizente com a abordagem que estamos nos propondo a trabalhar.
Nessa gramática as conjunções coordenativas são divididas de quatro maneiras:
aditivas, adversativas, alternativas e conclusivas3, sendo que Cereja & Magalhães (1999,
p. 185) fazem a seguinte definição:

1. Aditivas: servem para ligar dois termos ou duas orações de mesmo valor
sintático, estabelecendo entre eles uma ideia de adição. São as conjunções e,
nem (e não), que, não só... mas também.
Ele não respondeu às minhas cartas nem me telefonou.
2. Adversativas: ligam dois termos ou orações, estabelecendo entre eles uma
relação de oposição, contraste, ressalva. São elas: mas, porém, todavia, contudo,
no entanto, entretanto, e (com valor de mas).
A mulher chamou imediatamente o médico, porém não foi atendida.
3. Alternativas: ligam palavras ou orações, estabelecendo entre elas uma rela-
ção de separação ou exclusão. São as conjunções ou, ou... ou, já... já, ora...ora,
quer...quer, etc.
O mecânico ora desparafusava o moto do carro, ora juntava outras peças es-
palhadas pelo chão.
4. Conclusivas: introduzem uma oração que exprime conclusão em relação ao
que se afirmou anteriormente. São elas: logo, pois (no meio ou no fim da ora-
ção), portanto, por conseguinte, por isso, assim etc.

Antes de tais definições, há, na mesma página, um texto, e em seguida pede-se


que o aluno destaque as conjunções ali encontradas. Detalhe distinto da atividade que
propomos ao professor, em que serão, primeiramente, dadas as definições de conjun-
ções, e posteriormente trabalharemos com os exercícios. Optamos por desenvolver a
atividade dessa maneira, pois acreditamos que o aluno terá mais dificuldades em fazer
os exercícios sem as explicações prévias, o que pode provocar um bloqueio futuro do
“é muito difícil” caso ele não consiga realizar pelo menos parte de tais exercícios.
Após a explicação, os alunos deverão retomar as suas produções textuais. Para
exemplificar utilizaremos a terceira versão de um texto resumido/produzido por um

3 Nem todas as gramáticas trazem as conclusivas como conjunções coordenativas; algumas as


apresentam como “unidades adverbiais que não são conjunções coordenativas”: BECHARA, V.
Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p. 322-323. Porém nessa atividade
não acreditamos ser relevante trazer tal abordagem para os alunos. Isso poderia confundi-los
neste primeiro momento. No entanto, também não é algo para ser desconsiderando, mas
abordado a partir da 4ª ou 5ª aula (estamos pensando em uma aula com cerca de 50 minutos
de duração).

40 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


REFLEXÕES NO ENSINO ACERCA DAS CONJUNÇÕES COORDENATIVAS

aluno do 9.º ano, de uma escola pública de São Carlos, sobre adolescência e sexualida-
de:

Quando estamos apaixonados sentimos algumas sensações gostosas, e é nesse ponto que
entregamos nossas emoções.
Homens e mulheres se sentiam atraídos uns pelos outros e buscavam realizar essas emo-
ções por meio de afetos e relacionamentos sexuais.
Tais relacionamentos tiveram diferentes concepções ao longo do tempo, na antiguidade o
sexo só poderia ser feito depois do casamento e essa ainda é a opinião de muitas pessoas.
Porém, percebemos que nos anos 70 houve uma revolução sexual com a descoberta da pí-
lula e também o aumento das doenças sexualmente transmissíveis.
Com isso notamos quando jovens começam a fazer sexo antes da hora podem trazer ris-
cos e insatisfações para suas vidas. O mais adequado seria um equilíbrio dessas duas concepções
desenvolvidas ao longo do tempo, que consiste em consciência do que queremos para nossa vida e
consciência das consequências de nossas escolhas.

Diante dos seus próprios textos é importante que os alunos sejam motivados a
identificar as conjunções que utilizaram e em seguida as substituírem por outras, per-
cebendo e refletindo sobre os diferentes valores semânticos que serão produzidos. Ex:
Homens e mulheres se sentiam atraídos uns pelos outros. O “e” funciona como conjun-
ção coordenada aditiva nesse caso, pois é responsável por gerar o sentido de que sexos
oposto se atraem. Se tal conjunção for substituída pela conjunção coordenativa também
aditiva “nem”, a frase ficaria da seguinte maneira: Homens nem mulheres se sentiam
atraídos uns pelos outros. Essa frase recebe um sentido contrário à primeira, pois gera
o sentido de que os homens não se sentiam atraídos pelas mulheres nem elas por eles.
Refletindo sobre os aspectos semânticos e sintáticos das conjunções coordenati-
vas e fazendo esse exercício ao longo de todo o texto, ao fim do exercício, espera-se que
os alunos sejam capazes de perceber quais empregos foram ou não pertinentes e, den-
tre os que foram, qual o sentido produzido em comparação ao primeiro uso que fize-
ram da coordenativa.
Provavelmente ao longo dessa atividade surgirão dúvidas acerca das conjun-
ções coordenativas (o que é e o que não é conjunção coordenativa no texto); o professor
poderá esclarecer as dúvidas de seus alunos, de modo que a atividade ocorra de forma
tranquila e descontraída, aproveitando que muitas vezes a alternância de tais conjun-
ções será responsável por produzir significados cômicos e divertidos.
Nessa perspectiva, acreditamos na relevância dessas atividades para a reflexão
e autoconhecimento dos alunos e de suas escritas por si mesmos. Ao mesmo tempo,
trabalhar a gramática se torna algo mais do que uma simples classificação de palavras,
pois adquire um aspecto funcional na escrita, que está inserida em todos os âmbitos de
nossa vida. Outra sugestão de textos que poderiam ser abordados desta mesma manei-
ra são anúncios de propagandas que visam a persuadir o leitor. Assim a discussão so-
bre a intenção do autor poderá ser ampliada.

41 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


CRISTIANE NASCIMENTO RODRIGUES ET AL.

Exercícios aplicáveis

Abaixo, exemplos de outras atividades que podem ser desenvolvidas em sala de aula,
também visando ao nosso objetivo e à nossa metodologia propostos.

1) Leia atentamente o texto do colunista Luiz Caversan publicado na Folha de


São Paulo, no dia 10/10/2009. Atente para os usos dos coordenadores textu-
ais.

Facebook versus estilo

Não é possível, pelo menos por enquanto, saber no que vai dar essa fantástica onda de
comunicação imediata por intermédio das redes sociais no que diz respeito ao meio mesmo da
comunicação, que são as palavras, o texto.
Muito já se tem dito, contra e a favor, sobre os tais 140 caracteres obrigatórios do
Twitter e sua fulminância, que pode até chegar a ser momentaneamente literária, mas que em
geral é apenas banal.
Eu, por exemplo, perdi logo o interesse, justamente por conta da banalidade. Minha
banalidade, que fique claro, uma vez que estava me pegando frequentemente postando in-
formações que no fundo não eram relevantes nem mesmo para mim. Como já se vai longe o
tempo em que me permitia jogar muita conversa fora, quem caiu fora fui eu. Twitter agora só
de vez em quando e quando neste quando houver o que dizer...
Mas o encantamento atual está no entorno da maior consistência do Facebook, no
qual, além da comunicação imediata e do feedback absurdamente rápido, há a possibilidade
de contextos maiores, como fotos, filmes, jogos etc., fora os diálogos mais prolongados.
O texto, no entanto, permanece em geral curto, ligeiro. Porém não necessariamente
raso, uma vez que replica-se triplica-se e insere-se um volume a rigor infinito de informações,
de um tema vai-se a outro, e uma grande conversa se estabelece, conversa essa que não é
mesmo de se jogar fora.
Estamos todos para entender direito o que está-se vivendo nesta seara da comunica-
ção pessoal, e o melhor a fazer é permanecer aberto a todas as possibilidades, creio.
No entanto me incomoda a ligeireza excessiva da palavra escrita, como se de repente a
elaboração, o primor, o capricho, a norma culta fossem dispensáveis.
Não é dispensável cada um, não o são todos esses quesitos.
E talvez estejamos aqui diante do grande desafio a se perseguir: hay que postar sin
perder lo estilo jamás!
Será que dá?

A. Quais são as conjunções coordenativas presentes no texto?


B. Como são classificadas cada uma dessas conjunções coordenativas encontra-
das?
C. Qual é o papel que essas conjunções estabelecem em diferentes casos? Cite três
exemplos do texto.

42 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


REFLEXÕES NO ENSINO ACERCA DAS CONJUNÇÕES COORDENATIVAS

D. Retire do texto todas as conjunções encontradas. Há alguma diferença na inter-


pretação textual? Reflita sobre os conceitos de coerência e coesão associando-os
ao uso das conjunções.

2) Agora observe o texto abaixo, de Ricardo Ramos.

Circuito Fechado4

Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma,
creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toa-
lha. Creme para cabelo; pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata,
paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maços de cigarros, caixa
de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos. Quadros.
Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda,
copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso
com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo.
Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone,
papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósfo-
ro, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-
negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, gar-
rafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água.
Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno,
externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel
e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo,
papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo,
revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras, cigarro e fós-
foro. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras,
camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, traves-
seiro.

A. Qual é a particularidade presente nesse texto?


B. Apesar de ser um texto incomum, é possível apreender o seu significado? Por
quê?
C. Reescreva esse texto utilizando-se das conjunções coordenativas. Use sua
imaginação e atente para a relação possível de ser estabelecida entre cada palavra.

3) Leia atentamente a tirinha a seguir:

4 Texto de Ricardo Ramos, retirado do texto “Você sabe qual o conceito?” de Alfredina Nery.
Disponível em http://educacao.uol.com.br/portugues/ult1693u10.jhtm. Acesso em 17/11/2010.

43 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


CRISTIANE NASCIMENTO RODRIGUES ET AL.

Agora, partindo da leitura feita, identifique se existe algum tipo de conjunção utilizada
na tirinha e, se existir, qual a função que esta desempenha.

Para um bom desempenho, as atividades deverão ser respondidas pelos alunos


de maneira individual ou em dupla e, em seguida, o professor deverá corrigir com a
classe, incitando uma discussão sobre o tema abordado.

Resultados esperados

Visamos, com essa abordagem, a que os alunos não decorem simplesmente


quais são as conjunções coordenativas, mas que a partir delas criem uma visão crítico-
reflexiva dos seus e de outros textos, sendo capazes de notar como e onde tais conjun-
ções são aplicáveis, se atendo para as consequências e alterações que seus diferentes
usos podem provocar.
Propomos uma aula que não seja simplesmente expositiva, mas interativa, e
que a partir dela os alunos, como os próprios professores, percebam novas formas de
aprender e ensinar gramática, voltando-se para a eficiência prática que ela tem em nos-
so cotidiano.
Nessa perspectiva esperamos colaborar para a formação de um aluno linguisti-
camente competente, que seja capaz de se articular com a língua e sua complexidade,
enriquecendo o conhecimento prévio que possui, para que a partir daí seja capaz de
selecionar de forma crítica o vocabulário que utiliza, em acordo com as diferentes rela-
ções e ambientes em que se encontra inserido.

Referências

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

CAVERSAN, Luiz, Facebook versus estilo. Disponível em:


http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/luizcaversan/ult513u636416.shtml.
Acesso em 15/11/2010.

44 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


REFLEXÕES NO ENSINO ACERCA DAS CONJUNÇÕES COORDENATIVAS

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 13 ed. São Pau-
lo: Nacional, 1974.

CEREJA, W. R. & MAGALHÃES, T. C. Gramática Reflexiva: texto, semântica e interação. São Pau-
lo: Atual, 1999.

LEFFA, V. J.“Como produzir materiais para o ensino de línguas”, in: Produção de materi-
ais de ensino: teoria e prática. Org. de V.J. Leffa. Pelotas: Educat, 2003.

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática: história, teoria e análise, ensino. São Pau-
lo: Ed. Unesp, 2002.

RAMOS, Ricardo. “Circuito fechado”, in: NERY, Alfredina. Você sabe qual o conceito? Dis-
ponível em http://educacao.uol.com.br/portugues/ult1693u10.jhtm. Acesso em
17/11/2010.

IMAGEM número 1. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/3985566/Garfield-196-


Tiras-Publicadas-em-1978-Portugues>. Acesso em 01/12/2010.

45 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Pedagógicos, (4):37-45, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):46-53, 2011

A questão ética nas teorias da linguagem


_________________________________________________

LUCAS DE JESUS SANTOS


Graduando em Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia.
e-mail: ldjsantos@gmail.com

Resumo: O presente artigo pretende discutir como a questão ética atravessa as teorias
sobre a linguagem. Inicia-se por percorrer pontos gerais de uma história da Ética no
pensamento ocidental e vale-se do caso da linguística, tomando-a em conjunto com as
ciências humanas, para examinar como a questão ética atravessa esse campo episte-
mológico. Sob o crivo crítico do linguista indiano Kanavillil Rajagopalan, problematiza-
se a falta de observância da responsabilidade social das teorias linguísticas, questio-
nando uma suposta neutralidade do fazer teórico. E analisa-se como a Linguística Críti-
ca aparece no pensamento do linguista indiano como uma possibilidade de contrapo-
sição à chamada linguística autônoma, de modo a afirmar a responsabilidade e o en-
trelace dos postulados teóricos com seu contexto sócio-histórico.
Palavras-chave: Ética. Linguagem. Linguística Crítica.

É crescente a preocupação com a dimensão ético-política das teorias científicas.


Principalmente a partir do movimento antirracionalista, crítico dos moldes de produ-
ção e organização do saber oriundos tanto do racionalismo cartesiano quanto do Ilu-
minismo. Movimento este que ganha força com o decorrer dos anos, e tem seu estopim
com o fim da II Guerra Mundial. As palavras de Theodor Adorno traduzem bem o sen-
timento da época: “É possível fazer poesia após Auschwitz?”.
Como apostar na neutralidade das descobertas científicas? São realmente im-
parciais as teorias as que fundamentam? Essas perguntas ecoam por entre as linhas
deste artigo. Mas, aqui, analisaremos mais especificamente as posições de determina-
das teorias linguísticas frente a questões éticas. Quais são as posições que os linguistas
assumem, sob a perspectiva da responsabilidade de seus postulados?
LUCAS DE JESUS SANTOS

Para tanto, iniciaremos com considerações sintéticas sobre uma história da éti-
ca, tentando atender à necessidade de compreensão de qual foi o modelo metodológico
herdado pela linguística, assim como pelas ciências sociais em geral. Utilizarei as pro-
postas do professor linguista Kanavillil Rajagopalan, defensor de uma Linguística Crí-
tica, como exemplo da crescente percepção da inevitabilidade das teorias científicas de
assumir um lócus político-ideológico.
A partir do instante em que o homem organiza-se socialmente e estabelece la-
ços de convivência, questões automaticamente lhe são impostas: como devo viver? co-
mo devo agir? Há uma exigência, portanto, de padrões de conduta, de leis que orien-
tem a vida dos indivíduos. Ao mesmo tempo que regras eram requeridas, era preciso
refletir sobre sua condição.
Ética, palavra de origem grega (ethos), tem entre suas acepções a reflexão sobre
a essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer reali-
dade social (HOUAISS, 2001). Também, modo de ser, caráter ou comportamento. Nasce
como um ramo da filosofia que pretende discutir sobre questões como as levantadas
acima, estabelecer práticas de vida.
Na sociedade clássica grega, a religião, os deuses, os rituais eram marcadamen-
te vinculados à natureza: haveria, portanto, uma lei natural de conduta, a qual o ho-
mem utilizaria para realizar-se homem, ou seja, de acordo com sua natureza. O Univer-
so seria regido por leis harmoniosas, as quais por si só ofereciam um modelo ético para
as ações humanas. Tal paradigma é radicalmente modificado pelos postulados judaico-
cristãos, uma vez que seu deus não se identifica com a natureza, mas como força exter-
na, independente, que projetara e organizara a vida no mundo. A ser humano, sob esse
paradigma, tem uma alma que será seu veículo de contato com Deus, fazendo da mate-
rialidade do mundo natural apenas o cenário de sua trajetória rumo à eternidade (SIL-
VA, 2010).
Desta forma, ocorrerão deslocamentos no modo como o homem se relacionará
com a realidade e consigo mesmo. O primeiro modificará o locus da felicidade. Será
necessário transcender o natural, a matéria, a aparência, para se atingir um ideal, que
não mais se identificará com este mundo. O segundo provocará uma desestabilização
na relação entre o homem e a natureza, interiorizando a base para uma forma de vida
eticamente orientada (alma), privilegiando a razão em detrimento de outros elementos
inerentes à condição humana, a saber, a afetividade e a vontade, por exemplo. Ocorre
uma síntese entre o pensamento grego clássico, aqui representado pela filosofia so-

47 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


A QUESTÃO ÉTICA NAS TEORIAS DA LINGUAGEM

crático-platônica, e a doutrina cristã, produzindo o conceito de pessoa, determinante


para as transformações futuras, e a cisão homem-natureza.
O domínio da razão também provocou mudanças epistemológicas por meio da
apropriação da interioridade como subjetividade pelo racionalismo cartesiano do século
XVII. Primeiro ocorre que a razão torna-se a base para o conhecimento e a ação moral. A
resolução tanto de questões de ordem moral quanto epistemológica serão guiadas à luz
da razão, pressupondo uma imparcialidade e um distanciamento – do afeto, da vonta-
de – da produção de saber. Tal perspectiva logo expôs sua fragilidade: não se pode
desvincular a atividade teórica de práticas éticas. A produção de saber não antecede
seu uso: toda teoria é, inescapavelmente, orientada eticamente, visão esta que, preten-
de-se, será demonstrada ao logo do texto.
Em todos esses embates filosóficos está presente uma mesma ideia – vontade –,
a saber, a verdade. Luta para estabelecer quem, como e a partir de quê serão emitidos
enunciados que pretenderão estabelecer uma verdade sobre a vida e o modo correto de
vivê-la. Tal intenção não mudou da passagem da síntese epistemológica promovida
pela doutrina cristã para o racionalismo cartesiano, progenitor da ciência moderna.
Ainda, a noção de racionalidade em Descartes não eliminava uma ligação com o trans-
cendente. Somente com o advir, no século XVIII, do Iluminismo, processo de exaltação
da faculdade racional como mecanismo de emancipação do homem para com uma
dominação metafísica, no proclamar do Sapere Aude de Immanuel Kant (1724-1804) e
com a Teoria da Evolução de Charles Darwin (1809-1882) é que o último golpe contra o
Theos será desferido, dando as condições para um materialismo científico radical. Com
uma intensa prática autorreflexiva e um movimento de pôr os postulados teológicos e
metafísicos sempre em dúvida, a ciência passa a ganhar o status de detentora de um
saber que corresponderia à realidade, portando o poder de dizer a verdade sobre o uni-
verso, a natureza e a humanidade.
Esses ares são respirados no fim do século XIX e início do XX. Coincidentemente
ou não, é nessa época que a Linguística começa a ganhar autonomia como ciência, por
meio de sua desvinculação da filologia e da compilação e edição póstumas das anota-
ções dos cursos ministrados pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913),
publicados no livro Curso de Linguística Geral. Saussure revoluciona os estudos linguís-
ticos de até então por estabelecer que a língua é um sistema autônomo abstrato, tendo re-
gras internas de funcionamento.
O linguista genebrino desvincula a língua de fatores externos, sob a pretensão
de realizar uma descrição imparcial dos elementos componentes da estrutura que é a

48 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


LUCAS DE JESUS SANTOS

linguagem. Sob essa visão, será fundada uma nova corrente de pensamento, o Estrutu-
ralismo, que influenciará outras grandes áreas do saber, como a Antropologia e a Soci-
ologia, tentando sempre buscar “as forças que estão em jogo, de modo permanente e
universal, em todas as línguas [leia-se, aqui, também cultura no sentido amplo da pa-
lavra] deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares
da história” (SAUSSURE, 2006, p. 13). É por meio também de sua influência capital na
fundação do movimento estruturalista que a Linguística ganha estatuto científico.
Além disso, a dissociação da língua dos outros aspectos sociais ajudou a singularizar a
identidade dos linguistas, dando-lhes lugar no hall das ciências.
A busca das ciências humanas por uma autonomia pressupôs, além de outros
fatores, a assimilação dos métodos e procedimentos das ciências exatas e biológicas,
tidas como ciências na plenitude semântica da palavra. Este modelo influenciou a pos-
tura dos linguistas em relação ao modo de fazer teoria, produzindo uma continuidade
do modelo positivista, e sobretudo produzindo um distanciamento dos cientistas da
linguagem de sua influencia e responsabilidade em políticas linguísticas. No entanto, é
preciso ainda observar uma nuance: há indicações de que ao surgimento das ciências
humanas se adicionou uma questão de suma importância, indicada por um filósofo
francês.
Segundo Foucault (2007), as ciências humanas nasceram de uma exigência, de
um obstáculo de ordem teórica ou prática. Mas, fundamentalmente, de um aconteci-
mento na ordem do saber. O homem se coloca no campo de objetivação científica por
uma questão ética: o que é necessário pensar e o que se deve saber.

Vê-se que as ciências humanas não são uma análise do que o homem é por natureza;
são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser
que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que
é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode fa-
lar (FOUCAULT, 2007, p. 488).

Reconhecimento de que as positividades têm sua pedra de toque no homem,


que os saberes são construídos e marcados pela posição tópica, biográfica e sócio-
histórica de seus protagonistas. E que, portanto, já manifestam práticas de relação soci-
al, perspectivas de juízo de valor, e ações política e eticamente orientadas no cenário
social. Contemporaneamente, tal constatação não deve fugir do horizonte das reflexões
e práticas dos estudos linguísticos, uma vez que estes estão inevitavelmente imbrica-

49 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


A QUESTÃO ÉTICA NAS TEORIAS DA LINGUAGEM

dos com a dimensão política da vida dos atores sociais. As ciências humanas são uma
espécie de sintoma da inevitabilidade de o homem se fazer questões de aspecto ético,
tanto no tocante à produção de saber, quanto nas práticas sociais que este orientará. É
pela atenção à responsabilidade do fazer prático-teórico que esse artigo se faz.
Kanavillil Rajagopalan (2003), linguista indiano, faz considerações sobre a di-
mensão ética nos estudos linguísticos, apresentando diversas posturas de linguistas e
filósofos, às quais irá contrapor seu pensamento. Começa dando relevo ao seguinte
problema: se a língua é vista como um fenômeno natural, então torna-se difícil susten-
tar uma discussão sobre as possíveis questões éticas que dela decorrem. Como exem-
plo, cita a corrente gerativista, fundada por Noam Chomsky, que postula a língua co-
mo fato do mundo natural, tendo sua base biológica. Ora, admitindo-se essa condição,
a língua seria dotada de uma inocência pré-social, sendo produto de interações de base
orgânica com o os percursos contingentes da sociabilidade. O motivo: “existe uma
crença, amplamente compartilhada, de que a natureza desconhece qualquer espécie de
ética” (p. 15). Seria preciso, portanto, desnaturalizar a língua, como objeto de reflexão,
para lhe atribuir conotações éticas.
Ainda que se admita a língua como fato natural, o mesmo não se pode dizer
sobre a abordagem de seus postulados teóricos. Sendo estes basicamente metalingua-
gem, ou seja, enunciados linguísticos explicando outros enunciados linguísticos (sua
estrutura, morfologia, contextualização etc), então não se pode pressupor gratuitamen-
te que as categorias interpretativas, formuladas pelos linguistas, correspondam à pró-
pria forma natural da língua. Para Rajagopalan (2003), “o que impede que o teórico da
linguagem tenha consciência do lado ético da sua atividade é justamente a tendência a
relegar toda a ética à esfera da prática” (p. 21), dissociando, assim, a produção de saber
de sua utilização. Produção versus utilização é a lógica adotada por essa forma de pen-
samento, que não se vê a si próprio como uma prática, mas como uma espécie de pré-
ação, que estaria acima de qualquer consideração ética.
A crítica a essa posição perpassa pela adição de um termo que doravante indi-
cará uma específica postura científica com relação à prática teórica. Crítica será a pala-
vra que conferirá ao fazer teórico um lugar de autorreflexão contínuo, de modo a pôr
sempre em evidência sua relevância e impacto ético-político na sociedade. O conceito
de crítica nas ciências sociais foi estabelecido sob influência da Escola de Frankfut, as-
sim bem resumido:

50 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


LUCAS DE JESUS SANTOS

“Crítica” [...] denota reflexão sobre um sistema de constrangimento produzido pelo


homem: pressões deformadoras às quais os indivíduos, ou grupos de indivíduos, ou a
raça humana como um todo, sucumbem em seus processos de formação pessoal.

A abordagem crítica é aplicada [...] a objetos da experiência cuja “objetividade” é posta


em questão; a crítica supõe que existe um certo grau de distorção já instalada que se
apresenta como realidade. A crítica busca remover esta distorção e assim tornar possí-
vel a liberação do que foi distorcido. Por conseguinte, ela implica uma concepção de
emancipação (CONNERTON, 1976, p. 18, 20 apud FOWLER, 2010).

Um elemento é observado nos respectivos parágrafos: a ocupação principal de


uma crítica é com a questão da representação na teoria e na prática. A tese do represen-
tacionismo é aqui combatida, uma vez que pressupõe uma correspondência entre o
que se diz sobre o objeto e o objeto em si. A própria noção de “em si” – conceito kanti-
ano que indica que as coisas têm uma substancialidade, uma essência (noumenon), que
seria inalcançável pelo conhecimento humano, apenas podendo este apreender o que o
filósofo alemão denominou phenomenon, a aparência perceptível pelos sentidos – é
questionada por essa abordagem, uma vez que “não existe necessariamente nenhuma
realidade verdadeira que pode ser revelada pela prática crítica, existem apenas repre-
sentações relativamente variadas” (FOWLER, 2010, p. 209).
Sendo assim, desloca-se um suposto lugar de neutralidade de qualquer teoria.
Não há lugar fora da linguagem em que os linguistas possam estar para realizar suas
descrições aparentemente imparciais e comprometidas com a natureza mesma da lín-
gua. Condição para o pensar sobre a linguagem, é estar na linguagem (RAJAGOPALAN,
2003), o que marca necessariamente a reflexão em seu período sócio-histórico.
É por esse viés que as abordagens críticas da linguagem surgiram no fim da dé-
cada de 1970 e no início da década de 1980. Norman Fairclough (2001) identifica duas
abordagens críticas: primeira na emergência da Linguística Crítica do texto Linguagem e
Controle de Fowler et al (1979) e na Análise de Discurso de linha francesa, desenvolvida
por Michel Pêcheux (1982), apoiando-se na teoria de ideologia de Althusser.
A Linguística Crítica foi desenvolvida na Universidade de East Anglia por um
grupo de estudiosos interessados em romper com os paradigmas da chamada linguís-
tica autônoma, como os dualismos “conteúdo” e “forma” e “competência” e “desem-
penho”. Baseando-se na teoria funcionalista de Michael Halliday (1978, 1985), forjam
uma análise interessada em “chegar à ideologia codificada implicitamente por detrás

51 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


A QUESTÃO ÉTICA NAS TEORIAS DA LINGUAGEM

das proposições abertas, para examiná-la em particular no contexto das formações so-
ciais” (FOWLER, 2010, p. 208).
É por tomar a Linguística Crítica como válida para uma abordagem que amplia
o campo de estudo e apreensão da linguagem que opera a crítica de Rajagopalan, esta-
belecendo, assim, sua posição. O linguista indiano defende tal disciplina (se é que po-
demos chamá-la assim) pela recusa dos paradigmas metodológicos tradicionais da lin-
guística que, segundo ele, alijaram-na de seu papel político. Ao postular a língua como
um objeto natural, autônomo, como fizeram tanto Saussure quanto Chomsky, os lin-
guistas teriam acabado por afastar a relevância social de seus estudos, deixando de
questionar até mesmo as suas próprias bases epistemológicas.
A título de exemplo, a linguística é a única disciplina científica que não se sub-
meteu à virada linguística: “‘Boa parte da contribuição pós-estruturalista passou des-
percebida’ pela linguística devido a ‘[seu] quadro conceitual [...] de ciência, que vigora
até mesmo em subdisciplinas como a sociolingüística e a lingüística aplicada [...]’”
(PENNYCOOK, 2004, p. 42).
É imprescindível para o futuro social dos estudos linguísticos uma maior apro-
ximação com os temas e questões sociais. Conforme Rajagopalan (2003), uma atitude
contrária seria ameaçar condenar a linguística à total irrelevância, principalmente pela
constante prática de autorreflexão e revisão por que passam disciplinas conexas, como
a sociologia. Exercer tal postura, de fato, urge. Para tanto, é vital reconhecer a dimen-
são ética dos postulados linguísticos, uma vez que estes denunciam os posicionamen-
tos político-ideológicos de seus autores, e continuamente revisar as bases que norteiam
a disciplina, afim de atualizá-la frente às questões que surgem na sociedade.

Referências

BORGES NETO, José. Ensaios de Filosofia da Lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

DESCARTES, René. Discurso do método. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Bra-


sília, 2001.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 541 p.

52 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


LUCAS DE JESUS SANTOS

FOWLER, Roger. Sobre a Lingüística Crítica. Tubarão: LemD, v. 4, n. esp. p. 207-222, 2004
Disponível em:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0403/10%20art%209.pdf. Acesso
em 21/06/2010.

PENNYCOOK, Alastair. Os Limites da Lingüística, in: RAJAGOPALAN, Kanavillil; SILVA,


Fábio L. da. (org.). A Lingüística que nos faz falhar: investigação crítica. São Paulo: Pará-
bola Editorial, 2004, p. 39-43.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão


ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

SANCHEZ VAZQUEZ, Adolfo. Ética. 17 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

SILVA, Franklin. L. Breve Panorama Histórico da Ética. Bioética. Brasília, v. 1, n. 1, 1993.


Disponível em http://www.portalmedico.org.br/revista/ind1v1.htm. Acesso em:
20/06/2010.

53 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):46-53, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):54-68, 2011

Produção de texto com base em gêneros do discurso:


a proposta de uma coleção de material didático1
________________________________________________________________

NÁGILA MACHADO PIRES DOS SANTOS


Graduada pela Universidade Federal de Uberlândia. nagila@gmail.com

Resumo: Os gêneros discursivos têm sido inseridos nos livros didáticos de Língua Por-
tuguesa desde a década de 1990. Mas será que essa inserção está de acordo com os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e considera as mudanças conceituais e de
abordagem desses objetos de ensino? Pensando em verificar como um dos materiais
didáticos mais utilizados nas escolas da rede pública de Uberlândia/MG tem lidado
com a produção com base em gêneros, fizemos uma análise das propostas de produ-
ção de gêneros da coleção Português Linguagens Ensino Médio, volume único, de Ce-
reja e Magalhães (2003). Buscamos neste estudo entender o que significa optar pela
perspectiva de ensino com base em gêneros para, a partir disso, elencarmos aspectos
que nos parecem essenciais para este trabalho. Os dados mostraram que o trabalho na
obra selecionada ainda não contempla aspectos essenciais para a apreensão dos gêne-
ros, como as condições de produção e recepção e a função social.
Palavras-chave: Gênero discursivo. Livro didático. Ensino de produção de texto.

1. Introdução

No universo escolar, vários são os instrumentos dos quais o professor dispõe


para auxiliá-lo em sua prática cotidiana, como quadro, mapas, enciclopédias, dicioná-
rio, computador, televisor, Internet e outros. Contudo, o Livro Didático (LD) continua a
desempenhar o papel central na sala de aula, visto que ele é o material de mais fácil
acesso aos professores e alunos, sendo, muitas vezes, o único material a prestar assis-
tência ao professor. Para atender a essa grande demanda de informações e conteúdos,
os LD têm passado por transformações constantes a fim de apresentar propostas mais
eficazes e que acompanhem o desenvolvimento da ciência da linguagem.
No que concerne às concepções de texto que o livro veicula, Dionísio e Bezerra
(2003) demonstra a influência que a Linguística Textual exerceu no processo de transi-
ção pelo qual passou o LDLP nas últimas décadas. Segundo essa autora, em 1960 a con-
cepção de texto que o LDLP apresentava restringia-se ao texto literário, e aprender a

1 Este trabalho faz parte de uma pesquisa de iniciação científica orientada pela Profa. Dra. Elise-
te Maria de Carvalho Mesquita.

54 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

escrever bem significava aprender a “expressão do belo” contido na literatura. Na dé-


cada seguinte, a concepção de texto era a de código a ser decifrado, e os textos ensina-
dos que visavam à decodificação eram o texto literário, o jornalístico e a história em
quadrinhos. A partir da metade da década de 1980, as mudanças nessa concepção fo-
ram mais significativas, pois nesse momento o texto passou a ser considerado como
uma unidade linguístico-pragmática, organizada com base em critérios de coerência,
coesão, situacionalidade, informatividade e aceitabilidade, considerado de acordo com
a modalidade oral ou escrita e passível de interpretações diversas.
Até 1990, então, os textos presentes nos LD ainda eram pouco variados e neles
predominavam atividades de gramática normativa, principalmente, e compreensão
textual. Mas a partir de 1990, esses livros passaram a veicular uma diversidade maior
de textos, a apresentar um conteúdo menos normativo e mais reflexivo, porém, ainda
evitavam a variação linguística e a oralidade. Com a publicação dos PCN (1998, 1999,
2000), iniciou-se uma lenta mudança de postura quanto ao tratamento dos textos e dos
gêneros discursivos nos materiais didáticos e nas práticas de ensino e aprendizagem de
linguagem (DIONÍSIO & BEZERRA, 2003).
Concomitantemente a essas transformações conceituais no LDLP, houve um
crescente interesse das pesquisas na área da educação em investigar esse material. Se-
gundo Batista (2003, p. 44), nos anos de 1970 essa atenção “se caracterizou por um forte
interesse pelo material pedagógico, num contexto organizado em torno da formação
das bases institucionais da pesquisa universitária, da explosão do mercado editorial
didático e da expansão das redes públicas de ensino”.
Em meados dos anos de 1980, as pesquisas voltaram-se para a denúncia e análi-
se crítica dos conteúdos ideológicos e das propriedades conceituais do LD, e parte desse
período foi, também, marcada pela oposição ao LD por ser considerado uma tecnologia
atrasada que mais atendia a interesses econômicos que a processos efetivos de apren-
dizado.
Considerando as transformações pelas quais o LD passou e as críticas quanto ao
seu conteúdo, produção e distribuição, em 1985, por meio do Decreto nº 9.154, de
19/08/85, o programa do livro didático vigente até então foi substituído pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), que preconizava mudanças expressivas, como a
indicação do livro didático pelo professor e a reutilização desse material.
Em 2004, foi implantado o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino
Médio (PNLEM), que previa a universalização de LD para os alunos do Ensino Médio
das escolas públicas também cadastradas no censo escolar. Os procedimentos de análi-
se e escolha de ambos os programas são basicamente os mesmos: os livros são cadas-
trados nos programas (PNLD e PNLEM) pelas editoras, são avaliados e classificados de
acordo com seu padrão de qualidade e os resultados são publicados e encaminhados
aos professores e diretores para que eles escolham a obra que melhor satisfaça o projeto
pedagógico de suas escolas.
Apesar do esforço do PNLD e do PNLEM para garantir a qualidade física e técnica
dos LD, Batista (2003) e Scaff & Senna (2000) afirmam que a escolha dos professores
ainda é pelos livros classificados como de baixa qualidade, o que pode significar que o
Guia do Livro Didático ainda não alcançou seu uso efetivo pelos professores.

55 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

Percebemos, então, que nos LDLP as transformações conceituais acerca de texto


vão desde um “tipo” único, o literário, a uma variedade de gêneros, textos autênticos e
inseridos em situações comunicativas reais transpostas para o material. Mas, o que
significaram essas mudanças, efetivamente, para o ensino de Língua Portuguesa? Bun-
zen (2006) afirma que a adoção dos gêneros discursivos no ensino de língua pelo mate-
rial didático não significou uma mudança efetiva, uma vez que

uma rápida passagem peslos LD de EM produzidos no início dos anos 1990 mostrará,
por exemplo, que os alunos são solicitados a escrever cartas, bilhetes, telegramas, notí-
cias, gráficos etc. No entanto, tal diversidade parece ter sido focada mais no enfoque da
estrutura composicional dos textos do que na diversidade de contextos/situações de pro-
dução. (cf. Bunzen, 2004). Em suma, os alunos continuaram a produzir redações para o
professor com a estrutura composicional de cartas, notícias e reportagens etc., uma vez
que não houve praticamente alteração no contexto de produção, circulação e recepção.
(BUNZEN, 2006, p. 152-153)

Parece-nos que a mudança de postura teórico-metodológica sobre o ensino de


LM foi apenas aparente ou superficial, pois os gêneros discursivos ainda são tratados
de forma classificatória e descontextualizadas do mundo social. Assim como Bunzen
(2006), acreditamos que a prática mecânica das atividades de leitura e produção de
texto, tão privilegiada na escola, não insere o aluno na complexidade do processo de
produção de sentidos, e que considerar as práticas sociais situadas no contexto escolar
para o ensino de suas representações dentro e fora desse contexto significa entender
que “as práticas e as atividades de linguagem são múltiplas e heterogêneas” (p. 151),
não homogêneas e unificadas.

2. Pressupostos teóricos

No campo da pesquisa de linguagem, a última década foi marcada por estudos


sobre gêneros discursivos e o ensino de Língua Portuguesa no que diz respeito à
aprendizagem de linguagem contextualizada, linguagem utilizada em contextos espe-
cíficos de ações sociais.
A concepção de linguagem que estrutura as ações remete-nos ao pressuposto de
que ensinar uma língua é ensinar a agir naquela língua (MOTTA-ROTH & HENDGES, 2006) e
esta é, de modo geral, a visão dos PCN2 (BRASIL, 2000, p. 52) sobre o ensino de LM, pois
ao afirmar que “[...] o aluno deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e
competências que possam ser mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua (grifo
nosso) com que se depara, na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho”,

2 As menções aos PCN referem-se à publicação complementar do documento publicado em


1999, os PCN+, de 2000.

56 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

esse documento faz referência ao instrumento que os permite agir por meio da lingua-
gem, os gêneros.
Nesse sentido, adotar a concepção de gêneros discursivos para a produção es-
crita significa tomar os usos da linguagem como atividades sociais que acontecem em
situações de comunicação de uma determinada cultura (MOTTA-ROTH, 2006), o que im-
plica uma reconstrução do conceito de expressão escrita.
O ensino de LM deve acontecer, então, sempre em contexto, considerando que a
“escrita não pode desvincular-se de seu contexto de uso e de seus usuários” (BRASIL,
2006, p. 99), pois fora do contexto e inserido em uma cultura diferente, a representação
e o significado dos elementos de linguagem e dos aspectos interlocutivos podem ser
outros. Nesse mesmo âmbito, os PCN (BRASIL, 2000, p. 61) afirmam que as trocas lin-
guageiras produzem enunciados moldados a certas intenções, objetivos, em determi-
nadas condições e com participantes específicos que ocupam um lugar social, o que
contribui para a construção dos efeitos de sentido. Essas relações de troca, chamadas
de interlocução, possibilitam a construção de sentido e de identidade social e, por isso,
as situações de produção de textos devem considerar: um interlocutor/público; a situa-
ção em que será produzido o texto; e a intenção de se produzir tal texto. Assim, a ativi-
dade de produção é mais significativa para o aluno, segundo esse documento.
Além desses aspectos, o conhecimento de uma prática de linguagem, e conse-
quentemente de um gênero, exige o conhecimento de leitura, análise e reflexão desse
gênero, para que o sujeito/aluno saiba reconhecê-lo nos momentos de interação. O tra-
balho de leitura dos gêneros discursivos deve se aliar, então, ao trabalho com a produ-
ção de texto, pois a parceria de ambos garantirá o conhecimento pleno de um gênero.
Aliado, ainda, ao trabalho de leitura, é preciso analisar as condições de produ-
ção de texto. Sobre isso, os PCN dizem que

Um primeiro aspecto a ser considerado na produção de textos diz respeito à crescente


percepção, pelos alunos, das condições em que essas unidades de sentido são produzi-
das.
Diante de uma dada proposta de produção, o aluno deve ter clareza sobre: • o que tem
a dizer sobre o tema proposto, de acordo com suas intencionalidades; • o lugar social
de que ele fala; • para quem seu texto se dirige; • de quais mecanismos composicionais
lançará mão; • de que forma esse texto se tornará público (BRASIL, 2000, p. 80. grifo
nosso).

Tais condições acima explicitam ainda mais o que queremos dizer quando nos
referimos à linguagem em uso/contexto, e torna significativo para o estudante todo o
processo de ensino-aprendizagem de língua materna, pois, dessa forma, se aprende a
agir discursivamente, uma vez que por meio das condições de produção o aluno se torna
autor do que diz. Sobre a autoria das produções escolares, os PCN preconizam que

ativa-se o protagonismo pela construção da autonomia, seja na produção de textos es-


critos e orais em língua estrangeira, seja no processo de pesquisa em fontes escritas, em

57 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

que cabe ao aluno o papel de selecionar informações pertinentes, estruturá-las e organi-


zá-las de modo apropriado e coerente. Esse processo implica a compreensão, por parte
de alunos e professores, de que cada indivíduo deve ser capaz de apropriar-se do co-
nhecimento e discernir quanto a maneiras de fazer uso dele (BRASIL, 2000, p. 96).

O ensino de gêneros discursivos não se baseia em ensinar modelos prontos e


acabados a serem seguidos eternamente, mas sim em ensinar a materialidade histórica de
práticas que podem ser transformadas depois de apreendidas. “Pode-se ainda dizer
que, por meio das atividades de compreensão e produção de textos, o sujeito desen-
volve uma relação íntima com a leitura – escrita –, fala de si mesmo e do mundo que o
rodeia, o que viabiliza nova significação para seus processos subjetivos” (BRASIL, 2006,
p. 24).
A valorização do contexto da linguagem é ressaltada tanto nos PCN quanto nas
Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Quanto às competências específicas do
uso da língua apresentadas pelo primeiro, essas são: conceituar; identificar intenções e
situações de uso; analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando
texto e contexto de uso; distinguir contextos, adequar a linguagem ao contexto; relacionar lín-
gua e contexto (grifos nossos); escolher uma variante entre algumas que estão disponí-
veis na língua; e identificar níveis de linguagem (BRASIL, 2000, p. 72). No que diz res-
peito às competências específicas de leitura, o contexto também é realçado: “analisar os
recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando texto e contexto; confrontar
opiniões e pontos de vista sobre as diferentes manifestações da linguagem verbal” (p.
73).
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio consideram que o estudante
deva

no contexto das práticas de aprendizagem de língua(gem), conviver com situações de pro-


dução escrita, oral e imagética, de leitura e de escuta, que lhe propiciem uma inserção em práticas
de linguagem em que são colocados em funcionamento textos que exigem da parte do aluno co-
nhecimentos distintos daqueles usados em situações de interação informais, sejam elas face a
face ou não. Dito de outra forma, o aluno deverá passar a lidar com situações de intera-
ção que se revestem de uma complexidade que exigirá dele a construção de saberes re-
lativos ao uso de estratégias (lingüística, textual e pragmática) por meio das quais se
procura assegurar a autonomia do texto em relação ao contexto de situação imediato (p.
34) [grifo nosso].

Essa proposta é de extrema relevância para que o aluno possa “perceber a con-
figuração social de um momento e como a língua como sistema sócio-semiótico consti-
tui esse momento” (MOTTA-ROTH & HENDGES, 2006), pois a escrita só tem sentido se ela
possuir espaço na vida pessoal e social do aluno, permitindo que ele desempenhe pa-
péis e saiba agir de acordo com eles. Sendo assim, aprender gêneros discursivos é
aprender sobre situações de linguagem vivenciáveis no mundo particular e social, e
essa é a grande vantagem de se adotar a perspectiva dos gêneros, afinal, é assim que

58 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

poderíamos permitir ao aluno “vivenciar na escola atividades sociais das quais a lin-
guagem é parte essencial” (MOTTA-ROTH & HENDGES, 2006) e compreender o funciona-
mento do gênero na sociedade e em relação aos sujeitos e às instituições (MARCUSCHI,
2005, p. 10-12).
As diretrizes dos PCN e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio vol-
tam-se para um ensino interacionista sociodiscursivo amplamente desenvolvido e dis-
cutido por Bronckart (1999), ao lidarem com a produção de texto e o ensino de lingua-
gem em geral.
A perspectiva interacionista sociodiscursiva parte da análise das “relações que
as ações de linguagem mantêm com os parâmetros do contexto social em que se ins-
crevem, a seguir das capacidades que as ações colocam em funcionamento e, sobretu-
do, das condições de construção dessas capacidades” (CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008,
p. 30-31). Nessa concepção, os textos concretizam ações de linguagem, os gêneros, me-
deiam a relação entre ação e agente, devendo, pois, ser analisados da seguinte forma:
primeiro, a relação que estabelecem com o mundo social e com a intertextualidade;
segundo, análise da arquitetura textual interna e da função dos elementos da língua;
terceiro, estudo da gênese e funcionamento das operações implicadas na produção dos
textos e na apropriação dos gêneros textuais.
Bronckart (1999, p. 99) define ações de linguagem em dois níveis: o sociológico,
que define ação de linguagem como “uma porção da atividade de linguagem do grupo,
recortada pelo mecanismo geral das avaliações sociais e imputada a um organismo
humano singular”; e o nível psicológico, no qual ação de linguagem refere-se ao “co-
nhecimento disponível em organismo ativo sobre as diferentes facetas de sua própria
responsabilidade na intervenção verbal”. Esse segundo nível nos será mais interessante
por associar dois aspectos essenciais para a intervenção verbal, o contexto de produção
e a seleção do conteúdo temático.
Considerando que toda interação se dá em um contexto de ação, a perspectiva do
interacionismo sociodiscursivo acredita que os sujeitos são capazes de construir contex-
tos sempre renovados, diferenciados dos anteriores. Segundo Kleiman (2006, p. 26),
“essa característica da linguagem aponta para a questão constitutiva da capacidade de
usar a linguagem: sem essa capacidade de criação de contextos, de contextualizar, não
seríamos capazes de agir sociedade”. Embora a criação de contextos seja constitutiva
do uso da linguagem, o uso bem-sucedido não o é. Dessa forma, a interação pressupõe
o conhecimento das práticas historicamente construídas e atualizadas pelo discurso,
mediadas pelos gêneros.
De acordo com essa visão, o texto passa a ser visto não mais como unidades a
serem combinadas pertencentes a uma organização maior, mas sim “como marcas das
operações psicolinguísticas das representações nas atividades linguísticas, e essas representa-
ções, mesmo sendo sócio-históricas, são uma escolha efetuada sobre os valores dos
parâmetros contextuais” (BRONCKART, 1996, p. 17 apud CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008,
p. 34). Essa é a noção com a qual deve trabalhar o ensino de linguagem, pois a intera-
ção exige seleção de formas de enunciados, e selecionar formas e produzir enunciados
implica não somente conhecimento reflexivo, mas também criativo.

59 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

Nesse sentido, a prática de ensino focada na análise do contexto em que deter-


minada ação de linguagem se manifesta envolve a prática de cidadania, que desenvol-
ve nos alunos a consciência para caracterizar as ações e para produzir em contextos
diversos e com gêneros diversos (CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008). O interacionismo
sociodiscursivo contribui, portanto, para o desenvolvimento crítico-reflexivo dos cons-
trutos sócio-historicamente determinados dos quais os gêneros discursivos fazem par-
te.

Adotar a prática social como ponto de partida do trabalho escolar, além de acarretar a
mobilização de gêneros de diversas instituições, pelos diversos participantes, para rea-
lizar a ação, promove o desenvolvimento de competências básicas para a ação; assim o
trabalho escolar pode vir a ser estruturado tendo essas competências como elemento es-
truturante; é a experiência em situações diversificadas da vida social que põe o educan-
do no papel de sujeito produtor de conhecimento, de participante dos mundos do traba-
lho, do estudo e do lazer, de protagonista (KLEIMAN, 2006, p. 33).

Esta afirmação de Kleiman evidencia a importância de se trabalhar com gêneros


discursivos na perspectiva do interacionismo sociodiscursivo, visão que também é de-
fendida pelos PCN.
Dolz e Schneuwly (2004, p. 28), proponentes da teoria didática dos gêneros dis-
cursivos para LM, também se inserem na concepção interacionista sociodiscursiva. Os
autores se apropriam do conceito de ferramenta como instrumento utilizado para agir
e o transforma no conceito de gênero como megainstrumento de aprendizagem, que
permite a combinação de diversos subsistemas semióticos que possibilitam a ação em
um determinado contexto de atividade de linguagem. Assim estabelece-se a configura-
ção dos aspectos teórico-metodológicos acerca da didática dos gêneros.

A tese subjacente ao conceito de gêneros textuais e ensino é a de que o domínio dos gê-
neros se constitui como instrumento que possibilita aos agentes produtores e leitores
uma melhor relação com os textos, pois, ao compreender como utilizar um texto perten-
cente a um determinado gênero, pressupõe-se que esses agentes poderão agir com a
linguagem de forma mais eficaz, mesmo diante de textos pertencentes a gêneros até en-
tão desconhecidos (CRISTÓVÃO & NASCIMENTO, 2008, p. 36).

Adotar os gêneros discursivos como objetos de ensino a partir dos quais os con-
teúdos de ensino são trabalhados significa permitir ao aluno usar a linguagem em to-
das as suas capacidades, linguísticas, discursivas e linguístico-discursivas, além da
capacidade de ação em contexto (ROJO, 2001 apud BUNZEN, 2006), o que se torna essen-
cial nessa concepção, uma vez que o gênero está muito mais relacionado ao contexto de
interação e de cultura no qual se manifesta do que aos seus elementos característicos,
pois os gêneros podem assumir diversos significados conforme o lugar, a época, a cul-
tura, o meio social etc.
No ensino de Língua Portuguesa, os gêneros discursivos devem ser tomados

60 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

como “práticas sociais de referência”, que objetivam compreender as particularidades


do funcionamento da linguagem no que concerne às práticas sociais de linguagem e às
atividades de linguagem. Em outras palavras, o aluno enquanto sujeito deve conhecer
os gêneros e ser capaz de usá-los, (re)criando-os como resposta a uma situação social
em que está engajado.
Nessa perspectiva, os gêneros a serem ensinados devem ser tantos os orais
quanto os escritos e devem se inserir em atividades de linguagens reais, em situações
concretas, para que possibilitem a aprendizagem de seus elementos constitutivos bem
como os seus aspectos de produção e recepção.

Para os alunos utilizarem a língua escrita de forma dialógica e situada, os professores


teriam de criar situações e estratégias em que os alunos utilizassem os gêneros em dife-
rentes situações, ou seja, um trabalho de língua materna voltada para o uso dos textos
em gêneros específicos. Mais do que um trabalho baseado na imitação de modelos, po-
deríamos ajudar os alunos a “desconstruir” e a reconstruir tais modelos em função de
uma prática escolar situada [...] (BUNZEN, 2006, p. 157).

3. Contexto da análise

A Coleção Português Linguagens: Ensino Médio, de William Cereja e Thereza Ma-


galhães (2003), é organizada em nove unidades, cada uma composta de quatro a sete
capítulos, sendo que em todas as unidades um ou dois capítulos são dedicados unica-
mente ao trabalho de produção de texto com base em um gênero, enquanto os demais
capítulos tratam de literatura e gramática. As unidades recebem como temas os perío-
dos históricos da literatura e, em consequência disso, as produções de texto propostas
nos capítulos se vinculam, de alguma forma, a esses temas.
Nesta coleção há um total de 13 propostas de produção textual, cada uma abor-
dando um gênero. São eles: poema, texto teatral, relato, debate regrado, texto argumentativo
escrito (texto de opinião), notícia, reportagem, crônica, crítica, editorial, texto publicitário, conto
e carta argumentativa. Desse total, apenas o debate regrado corresponde à modalidade
oral.
Dos aspectos gerais a serem observados, algumas questões guiaram o percurso
de análise: 1) Os gêneros selecionados para o trabalho com a produção textual são
apresentados aos alunos antes de serem produzidos? Ou seja, o livro dispõe de exem-
plares do gênero a serem produzidos para permitir o contato dos alunos com textos
diferentes, mas do mesmo gênero? 2) O trabalho de leitura com o gênero está articula-
do ao de produção do gênero?; 3) Desconsiderando as particularidades de cada gênero,
a coleção analisada oferece tratamento diferenciado para alguns deles? Se sim, por que
isso acontece?
Consideramos como aspectos específicos que constituem e caracterizam os gê-
neros e que devem, prioritariamente, serem observados: a situação de comunicação dos
gêneros, a função social, os aspectos de produção e recepção, as características do gênero, as ati-

61 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

vidades de leitura e compreensão bem como as atividades de análise linguística. Abaixo, ex-
pomos brevemente cada um desses elementos depreendidos no estudo teórico:

a) Situação de comunicação: os gêneros acontecem em situações de comunicação,


em contextos que devem ser mencionados e ficcionalizados para que o aluno
entenda o lugar daquele gênero. Criar uma situação em que a produção do gê-
nero seja exigida inscreve a produção em um contexto real de interação e tam-
bém motiva a produção.
b) Função social do gênero: se considerarmos que todo gênero advém da necessi-
dade de expressão, cada gênero possuirá uma função, um papel, a ser desem-
penhado quando de sua produção. A função deve, portanto, estar presente na
proposta de produção de gêneros, pois permite ao aluno compreender o que ele
pode ou não realizar com determinado gênero.
c) Aspectos de produção e recepção: os aspectos de produção e recepção são in-
trinsecamente ligados à perspectiva de ensino adotada, como já mencionamos, e
configuram o contexto de produção do gênero (quando pode ser produzido,
por quem, com quais motivos, para dizer o quê etc.) e de recepção (quem parti-
cipa dessa interação, como e quando receptar etc.). Não considerar tais aspectos
em uma proposta de produção de texto seria, pois, um equívoco de natureza
epistemológica da teoria dos gêneros discursivos com enfoque no ensino de lin-
guagem.
d) Características do gênero: os fatores apresentados anteriormente colaboram pa-
ra “moldar” linguisticamente o texto a ser produzido. As características lingüís-
ticas e discursivas que compõem os gêneros são o que nos permite mobilizar os
conhecimentos linguísticos e discursivos tanto para criar/produzir gêneros co-
mo também para reconhecê-los. Na comunicação, fazemos, então, uma seleção
dos recursos adequados à interação em determinado momento.
e) Atividades de leitura e compreensão: saber produzir um gênero implica saber
reconhecê-lo e produzir sentido a partir dele. Por isso, faz-se necessário traba-
lhar a leitura do gênero vinculada à produção, por meio de atividades que ex-
plorem os sentidos produzidos no gênero.
f) Atividades de análise linguística: a partir dos gêneros, elementos linguísticos,
gramaticais e discursivos podem ser estudados de maneira contextualizada,
permitindo ao aluno perceber as diferenças de usos e sentidos a serem constru-
ídos. Atividades que realcem usos interessantes de algum elemento linguístico
ou alguma característica discursiva podem enriquecer a produção do gênero.
g) Modalidade do gênero: esta categoria mostra se o gênero pertence à modalida-
de escrita ou oral e será utilizada para perceber o espaço que os gêneros orais
têm ocupado nos LDLP selecionados.

4. Análise

A coleção traz a produção textual em um capítulo separado dos demais e, por


isso, o espaço destinado ao trabalho com o gênero a ser ensinado é maior. Todos os

62 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

capítulos seguem a mesma sequência e se apresentam com a seguinte divisão: “Traba-


lhando o gênero”, seção onde é feita a leitura e interpretação do gênero por meio de
algumas questões; “Produzindo o gênero”, parte em que há a proposta de produção; e
“Para escrever e/ou falar com adequação”, parte às vezes suprimida do capítulo onde é
trabalhado algum aspecto da gramática sem uma relação direta com o gênero do capí-
tulo ou alguma característica do gênero de forma mais sistematizada.
As produções sobre os gêneros dessa coleção mostraram o seguinte comporta-
mento quanto à abordagem dos elementos que constituem a perspectiva de ensino dos
gêneros:

TABELA 1: Coleção português linguagens: aspectos observados quanto ao ensino


dos gêneros trabalhados

Função Situação Atividade Aspectos Atividades


Gênero social de comuni- de leitura de produ- Caracte- de análise
cação ção e rísticas linguística
recepção
Poema presente ausente presente ausente presente ausente
Texto teatral presente ausente presente presente presente presente
Relato ausente ausente presente ausente presente presente
Debate regr. presente ausente presente presente presente ausente
Texto de opini- ausente ausente presente ausente presente presente
ão
Notícia ausente ausente presente presente presente presente
Reportagem presente ausente presente ausente presente ausente
Crônica presente ausente presente presente presente presente
Crítica presente ausente presente ausente presente presente
Editorial presente ausente presente presente presente ausente
Texto publici- presente ausente presente presente presente ausente
tário
Conto ausente ausente presente ausente presente ausente
Carta argumen- presente ausente presente ausente presente presente
tativa

Observamos que os aspectos analisados não são trabalhados com o mesmo cri-
tério de importância em todas as propostas de produção textual. A função social do
gênero, por exemplo, nem sempre é mencionada, enquanto a situação de comunicação
não existe em nenhuma das propostas de produção textual, e o objetivo de se escrever
é apenas trocar o texto com o colega ou afixá-lo no mural. Os aspectos de produção e
recepção também não são abordados em todas as produções, o que nos mostra uma
lacuna na abordagem desse material. Quanto às atividades de análise linguística, ape-
sar de a coleção apresentá-las, elas abordam geralmente o tipo textual ou as sequências

63 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

textuais predominantes, a função de algumas características do gênero e principalmen-


te o tipo de linguagem utilizada no gênero.
Por outro lado, essa coleção apresenta em sua seção “Trabalhando o gênero”,
uma prática de leitura do gênero a ser produzido, o que permite ao aluno um contato
prévio com o gênero bem como reconhecer e produzir sentido a partir dele. Outro pon-
to forte da coleção é a presença das características em todas as propostas de produção
de gêneros, o que permite uma compreensão das dimensões linguísticas e discursivas
do gênero. As características são apresentadas em textos introdutórios sobre o gênero
como também em quadros sínteses antes de cada produção para que o aluno se sinta
preparado no momento da produção oral/escrita.
Vejamos abaixo a proposta de produção de notícia apresentada pelo livro.

Exemplo

TRABALHANDO O GÊNERO (notícia)

1. Identifique o fato principal enfocado no 1.º parágrafo do texto.


2. Quando e onde ocorreu esse fato?
3. Qual a causa desse fato?
4. Quem participou diretamente desse fato?
5. Leia o 3º parágrafo do texto. De que modo os marinheiros espanhóis tentaram evitar a che-
gada da mancha de óleo à costa?
6. Observe a linguagem empregada no texto.
a) Que características ela apresenta?
• Impessoal, clara, direta, acessível a qualquer leitor.
• Pessoal, emprega palavras de uso não corrente na língua.
• Coloquial, faz uso de gírias.
b) Que variedade de língua ela adota: a padrão ou uma variante não padrão?
7. Dê sua opinião: Que conseqüências desastres desse tipo podem ter para o meio ambiente?

O texto lido é uma notícia. Notícia é a expressão de um fato novo, que desperta o inte-
resse do público a que o jornal se destina. A notícia é um gênero textual tipicamente jornalísti-
co e pode ser veiculada em jornais, escritos e falados, e em revistas.
Na notícia predomina a narração. Mas os jornais não se limitam a contar o que aconte-
ceu. Eles vão além, contando também como e por que aconteceu determinado fato. Com base
no texto em estudo, observe os elementos que normalmente compõem a notícia:

• o quê (fatos): tentativa de evitar que uma terceira mancha de óleo chegue à costa;
• quem (personagens/pessoas): os marinheiros espanhóis;
• quando (tempo): 12/12/2002;
• onde: Costa da Galícia, Espanha;
• como: reconlhendo-se manchas de óleo dispersas;
• por quê: vazamento de óleo do petroleiro Prestige, que se partiu ao meio e afundou
em 19/11/2002.

64 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

A notícia apresenta uma estrutura própria, composta de duas partes: o lead e o corpo.
Lead é um resumo do fato em poucas linhas e compreende normalmente, o primeiro
parágrafo da notícia. Contém as informações mais importantes e deve fornecer ao leitor a
maior parte das respostas às seis perguntas básicas: o quê, quem, quando, onde, como e por
quê.
Corpo são os demais parágrafos da notícia, nos quais se faz o detalhamento do expos-
to no lead, por meio da apresentação ao leitor de novas informações, em ordem cronológica
ou de importância. Na notícia em estudo, o segundo e o terceiro parágrafos constituem o cor-
po.
Toda notícia é encabeçada por um título, que anuncia o assunto a ser desenvolvido. No
título, devem-se empregar, com objetividade, palavras curtas e de uso comum.
Uma notícia deve ser imparcial e objetiva, ou seja, deve expor fatos e não opiniões. A
linguagem deve ser impessoal, clara, direta e precisa. Observe na notícia em estudo, que os
verbos e pronomes estão na 3ª pessoa; não aparece a opinião do jornalista; e a linguagem é
direta e concisa, resumindo-se ao essencial.
(Box síntese das características)

PRODUZINDO A NOTÍCIA

Suponha que você faça parte da equipe de jornalistas de uma revista dirigida a um público
jovem. O repórter fotográfico já lhe forneceu a imagem que deve acompanhar uma notícia, e o
redator-chefe já sugeriu o título de outra. Você é jornalista e deve escrever as notícias, con-
tando apenas com esses elementos. Vamos ao desafio?

1. Crie uma notícia a partir de uma das fotografias a seguir. Primeiramente, invente o quê,
quem, onde, quando, como e por quê. Depois redija o lead. Procurando responder a essas
perguntas básicas, e preocupando-se em escrevê-lo de forma a despertar o interesse de seu
leitor (se não ficar bom, refaça-o), escreva o corpo da notícia acrescentando novos dados.

(duas fotografias com legendas)

2. Crie uma notícia a partir de um desses títulos: Geração perigo; Alternativa; Na sala de aula;
Vizinhos. Terminando seus textos, avalie-os e peça a um colega que os leia e faça sugestões.
Passe-os a limpo, incorporando as sugestões que julgar conveniente, e afixe-os no mural da
classe.

PARA ESCREVER COM ADEQUAÇÃO


(A seção irá tratar de título e legenda, elementos pertencentes ao gênero)

Fonte: CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: Linguagens. São Paulo: Atual. 2003.

O capítulo começa com um exemplo do gênero notícia e com questões de leitura


e compreensão que já evidenciam as características e a estrutura do gênero e preparam
o aluno para aprendê-lo. Há também atividades de análise linguística (número 6 e 7)

65 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

que tratam do tipo de linguagem empregada no gênero e, embora esta seja uma carac-
terística da notícia, o questionamento sobre a linguagem faz com que o aluno analise o
texto para descobri-la, por isso, as questões semelhantes a esta foram consideradas na
categoria de análise linguística.
As condições de produção são tratadas quando a explicação sobre o gênero
menciona o lugar de circulação da notícia e quando na proposta de produção é sugeri-
da a suposição de o aluno ser um jornalista para escrever a notícia. Essa suposição ini-
cia o processo de ficcionalização no qual o aluno deve ser inserido para a realização do
gênero, mas incompleto porque não finaliza a proposta com uma situação de comuni-
cação em que o gênero seria necessário e na qual haveria um objetivo para ser produ-
zido. Sendo assim, não há situação de comunicação nesta proposta de produção de
notícia.
Outro aspecto analisado tangenciado pela coleção ao abordar a notícia é a fun-
ção social desse gênero. Embora possa parecer que todos saibamos para que “serve”
uma notícia, seria interessante mencionar e desenvolver a criticidade dos alunos sobre
a indução de opinião por notícias manipuladas, mencionando que toda notícia é um
recorte, um olhar sobre o fato.

5. Conclusão

A coleção apresenta, portanto, um tratamento bastante geral do gênero, em que


a visão deste objeto é um tanto fragmentada devido ao não-aprofundamento de sua
função e também de outros exemplares do gênero. A falta de uma situação para que o
aluno produza demonstra, ainda, a fragmentação teórico-metodológica desse material,
que desconsidera o realce dado pelos PCN às situações de uso da linguagem.
Os dados evidenciam que os gêneros discursivos não têm sido tomados como
instrumentos de comunicação sócio-historicamente determinados que se realizam em
contextos específicos da interação verbal, nem como megainstrumento capaz de articular
o ensino de leitura, produção e análise linguística e discursiva. O que fica à mostra é
que o início de um processo de reformulação e reconstrução de uma nova perspectiva
de ensino já começou e tem se aprimorado, mas que ainda há muito por evoluir e mu-
dar.
O espaço que os gêneros discursivos ocupam no livro é de meros modelos in-
centivadores ou propositores de uma produção de texto, pois o significado de produzir
texto não foi reformulado a fim de mudar a visão do aluno para que ele entenda que
produzir texto é produzir ações. Um trabalho que mude a concepção de produção de
texto na escola deve considerar a produção de texto fora da escola e mostrar ao aluno
que as atividades de produção de texto oral e escrito só existem na sala de aula porque
existem no mundo real, fora da escola, e que a expressão escrita ou oral lhes será exigi-
da durante a vida.

66 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


NÁGILA MACHADO PIRES DO SANTOS

6. Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BARROS, E. M. D.; NASCIMENTO, E. L. Gêneros discursivos e livro didático: da teoria à prá-


tica. Linguagem em (Dis)curso, v. 7, n. 2, p. 241-270, mai./ago. 2007.

BATISTA, A. A. G. Avaliação dos livros didáticos: para entender o programa nacional do livro
didático (PNLD), in: ROJO, R. e BATISTA, A. A. G. (org.). Livro didático de língua portuguesa,
letramento e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2003.

BRASIL.Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Língua


Portuguesa (Ensino Médio)/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF,
1999.

______. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio: Lin-
guagens, códigos e suas tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/ BRA-
SIL, 2006.

BRONCKART, J-P. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 1999.

BUNZEN, C. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no


ensino médio, in: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (org.). Português no ensino médio e formação
do professor. São Paulo: parábola, 2006.

CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português Linguagens. São Paulo: Atual, 2003.

CRISTÓVÃO, V. L. L.; NASCIMENTO, E. L. Gêneros textuais e ensino: contribuições do intera-


cionismo sócio-discursivo, in: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. Gêneros tex-
tuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

DIONÍSIO, A. P.; BEZERRA, M. A. (org.). O livro didático de Português: múltiplos olhares. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2003.

DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado de Letras,
2004.

KLEIMAN, A. Leitura e prática social no desenvolvimento de competências no ensino


médio, in: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (org.). Português no ensino médio e formação do
professor. São Paulo: parábola, 2006.

MACHADO, A. R. A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart, in: MEURER,


J. L., BONINI, A. e MOTTA-ROTH (org.) Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábo-
la Editorial, 2005.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros discursivos: definição e funcionalidade, in: DIONÍSIO, A. P.

67 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


PRODUÇÃO DE TEXTO COM BASE EM GÊNEROS DE DISCURSO

(org.). Gêneros discursivos e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

______. Apresentação, in: BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. Trad.


e org. de A. P. Dionísio e J. C. Hoffnagel. São Paulo: Cortez, 2005, p. 09-13.

______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial,
2008.

MOTTA-ROTH, D. & HENDGES, G. R. O ensino de produção textual com base em atividades


sociais e gêneros textuais. Revista Linguagem em (Dis)curso, vol. 6, nº 3, set/dez. 2006.

(org.). Livro didático de Língua Portuguesa, letramento e cultura


ROJO, R. & BATISTA, A. A. G.
da escrita. Campinas: Parábola, 2003.

______. (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. Campinas:


Mercado de Letras, 2000.

O guia de livros didáticos e sua (in) utilização no Brasil e no


SCAFF, E. A. S. & SENNA, E.
Estado de Mato Grosso do Sul. Tecnologia Educacional, Rio de Janeiro, v. 29, p. 32-37,
2000.

68 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):54-68, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):69-75, 2011

Língua, identidade, brasilidade: um olhar


sociolinguístico-discursivo sobre a questão vernacular
____________________________________________________________

VERÔNICA FRANCIELE SEIDEL


Universidade Federal de Santa Maria. e-mail: veronicaseidel@gmail.com
Orientador: Anderson Salvaterra Magalhães.

Resumo: Os falantes de uma mesma língua apresentam diferenças nos seus modos de
falar, podendo ser reguladas, por exemplo, pelo lugar em que estão, situação de fala
ou nível socioeconômico. Apesar de as variantes dentro de uma mesma língua desem-
penharem igualmente bem sua função, o mesmo não é válido simbolicamente. A partir
disso, discute-se a relação entre o linguístico e o extralinguístico, a fim de se refletir
sobre o valor simbólico dessa relação. Para tanto, foram analisados dois poemas de
Oswald de Andrade que tratam da temática língua e contexto social. Percebeu-se que
a atribuição de valor social a fenômenos intrínsecos a toda e qualquer língua tem um
papel significativo na construção da brasilidade. O estudo demonstra que a questão
vernacular brasileira se constitui na tensão entre a herança lusitana e as inovações lin-
guístico-culturais aqui deflagradas.
Palavras-chave: língua; sistema; variação

Introdução

A constituição da Linguística como ciência tem, no século XX, um importante


marco: o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, publicado postumamen-
te por seus alunos em 1916. Nesse projeto editorial, sustenta-se que o ponto de vista
cria o objeto, de modo que, ao definir língua, o linguista simultaneamente cria um obje-
to de estudo e delimita um campo de conhecimento (SAUSSURE, [1916] 2006). O projeto
considera a linguagem como a faculdade natural que permite ao ser humano constituir
uma língua, divide tal faculdade em língua e fala e vê na língua (produto social da fa-
culdade da linguagem e conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo soci-
al para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos) o então objeto da Linguís-
tica (SAUSSURE, [1916] 2006). O corte saussuriano, no Curso de Linguística Geral, privile-
gia, assim, o caráter formal e sistêmico do fenômeno linguístico e mitiga questões rela-
tivas ao uso da língua em seu contexto social (situações de fala).
Apesar da reconhecida importância que os estudos de Saussure tiveram para a
constituição da Linguística como ciência moderna, alguns teóricos adotam uma visão
diferenciada de língua e dos estudos linguísticos, em que os fatores extralinguísticos

69 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


VERÔNICA FRANCIELE SEIDEL

ocupam uma posição importante. Na década de sessenta, um desses teóricos, William


Labov, fundamenta os pressupostos da Sociolinguística, que apresenta como objeto o
estudo da língua falada, observada, descrita e analisada em seu contexto social, isto é,
em situações reais de uso. Desse modo, a Sociolinguística tem como interesse relacio-
nar as variações observáveis no uso da língua às diferenciações existentes na estrutura
social dessa sociedade (ALKMIM, 2006).
Para Labov (1969), as línguas são heterogêneas, não se caracterizando como sis-
temas prontos ou acabados. Ao contrário, a língua é tida como um sistema inerente-
mente variável; os falantes de uma mesma língua apresentam diferenças nos seus mo-
dos de falar de acordo com o lugar em que estão, com a situação de fala (ou registro) e
com o nível socioeconômico do falante. Dessa perspectiva, a variável linguística é con-
siderada como o conjunto constituído pelos diferentes modos de realizar um mesmo
elemento da língua [o conjunto de duas ou mais variantes] e a variante linguística se
define por cada uma das formas de realizar a variável [possibilidades de realização da
variável] (CALVET, 2002). Assim, essa abordagem sociolinguística permite visualizar o
fenômeno da língua levando em consideração fatores socioculturais e isso, no contexto
linguístico brasileiro, é importante e justifica-se à medida que nossa história e identi-
dade são atravessadas por uma política (tanto sistêmico quanto simbólica) entremeada
na tensão entre o sujeito europeu e o não europeu.
Neste trabalho, o objetivo é discutir a relação entre o linguístico e o extralinguís-
tico, a fim de se refletir sobre o valor simbólico dessa relação. Considerando a interface
que há entre a sociedade e a literatura, já que esta ao mesmo tempo em que é influenci-
ada pela sociedade pode exercer influência sobre ela, modificando-a, serão analisados
dois poemas de Oswald de Andrade, “Vício na fala” e “Pronominais”, que tratam da
temática língua e contexto social.

1. Língua, literatura e identidade: a questão vernacular no Brasil

Uma criativa vontade de transgredir o que era considerado valorizado para a


época marca uma das presenças mais polêmicas de literatura brasileira. Oswald de
Andrade, em oposição às normas literárias, políticas ou sociais, constituiu uma perso-
nagem em perpétua revolta. Em 1925, foi editado o livro Pau-Brasil, em que Oswald,
em uma viagem a Paris, teve despertada sua consciência de brasilidade, dando lugar a
uma poesia renovadora: o projeto visava a um desligamento dos modelos poéticos
franceses importados do século passado, pondo fim à grandiloquência e à seriedade.
Essa visão renovadora do elemento nacional realiza-se de vários modos, incluindo a
forma de escrever, em que a língua é surpreendentemente coloquial, sintética e carre-
gada de humor.
No Manifesto Pau-Brasil (1924) e no Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de
Andrade preconizava “a língua sem arcaísmo, sem erudição. Natural e neológica. A
contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” (SCHWARTZ,
1988, p. 130), e posicionava-se contra as formas cultas e convencionais da arte. Oswald

70 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


LÍNGUA, IDENTIDADE, BRASILIDADE: UM OLHAR SOCIOLINGUÍSTICO-DISCURSIVO

sugere a abolição das normas acadêmicas da fala, aproximando-as de sua realidade


cotidiana nos moldes realizados na própria poesia.
Observem-se os poemas “Vício na fala” e “Pronominais”, de Oswald de Andra-
de a seguir:

Para dizerem milho dizem mio / Para melhor dizem mió / Para pior pió / Para telha di-
zem teia / Para telhado dizem teiado / E vão fazendo telhados (SCHWARTZ, 1988, p. 25).

Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido /


Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa
disso camarada / Me dá um cigarro (SCHWARTZ, 1988, p. 38).

Os poemas em questão trabalham a temática da variação existente na língua fa-


lada no Brasil. “Vício na fala” põe em voga a questão da transformação do fonema con-
sonantal /λ/ na semivogal /y/, como milho/mio, melhor/mió, telhado/teiado. Esse fenômeno
explica-se a partir do fato de que a consoante líquida lateral /λ/ é produzida em uma
região muito próxima a que se utiliza para produzir a semivogal /y/. A despalataliza-
ção do fonema consonantal /λ/ no português do Brasil consiste em um processo fonéti-
co no qual o segmento perde sua característica palatal, ou seja, deixa de ser pronuncia-
do na região do palato duro, dando margem à produção de uma série de variantes. O
fenômeno também é denominado iotização. Câmara Júnior (2000, p. 149) descreve a
iotização (fenômeno decorrente da despalatalização) como a mudança “de uma vogal
ou consoante para a vogal anterior alta /i/ ou para a semivogal correspondente ou io-
de”. A despalatalização e consequente iotização, para o autor, pode ter recebido in-
fluência do português crioulo, uma vez que “nos falares crioulos portugueses há a ioti-
zação da consoante molhada /λ/. A despalatalização presente nos falares rural e nos
das camadas mais populares apresenta traços da língua portuguesa em sua formação,
que revelam resquícios das línguas indígenas e africanas” (AGUILERA, 1999; COUTINHO,
2005). Conjuntamente o fenômeno também pode ser explicado pela “lei do menor es-
forço”, que consiste em um “afrouxamento” de articulação, de modo que uma articula-
ção é substituída por outra que exige menos dos órgãos fonadores envolvidos (COUTI-
NHO, 2005, p. 137).
Câmara Júnior (1981), vê esses traços como resultantes da interpretação das lín-
guas africanas no português do Brasil. Com a vinda em massa de negros para escravos
na época da colônia e primeiros tempos da nação, constituiu-se um substrato de lín-
guas africanas. Tais influências atestam a importância que os fatores de cunho social
(contato com outros povos) têm para a constituição da língua, seja modificando-a ou
conservando-a. É possível perceber que esses fatores contribuem para a formação de
uma identidade linguístico-cultural, uma vez que articulam um conjunto de caracterís-
ticas presentes na língua que distinguem e individualizam o que é próprio do brasilei-
ro.
O segundo poema, “Pronominais”, trabalha a questão da variação estilística de-
corrente das diferentes situações de fala ou registro. Para Alkmin (2006, p. 38), nas va-

71 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


VERÔNICA FRANCIELE SEIDEL

riações relacionadas ao contexto, “os falantes diversificam sua fala – isto é, usam estilos
ou registros distintos – em função das circunstâncias em que ocorrem suas interações
verbais” (grifos do autor). Assim, a escolha do registro (ou nível de fala) a ser utilizado
pelo falante seria regulada pelo grau de formalidade (uso mais ou menos formal da
língua), pelo modo (língua falada ou escrita) e pela sintonia (maior ou menor grau de
tecnicidade, cortesia ou respeito à norma ditada pela gramática normativa tradicional,
tendo-se em vista o perfil do interlocutor). Nesse poema, é enfatizada a problemática
da colocação pronominal, de modo que a ênclise estaria relacionada ao uso ditado pela
norma culta (registro formal) enquanto a próclise seria a forma utilizada preferencial-
mente pela norma não-padrão (registro informal). Os pronomes me, te, se, lhe, o, a, nos,
vos, lhes, os, as são átonos, sendo que podem se enclíticos ou proclíticos ao se adjungi-
rem ao vocábulo antecedente ou ao seguinte, respectivamente. A gramática normativa
tradicional tem como regra não principiar o discurso pelo pronome átono. No entanto,
o deslocamento do pronome é devido a uma atração essencial e puramente fonética;
“constante em certos casos, menos regular em outros, e variável e precária se variável
for o elemento fonético que a determina [...]. A frase deve constituir um todo fonetica-
mente unido, que não permita pausa entre o vocábulo a valorizar e o verbo” (SAID ALI,
2008, p. 28). É, assim, impossível haver identidade de colocação entre o português de
Portugal e o português do Brasil se a prosódia não é idêntica. Segundo Said Ali (2008,
p. 29):

Lá [em Portugal] os pronomes são átonos; o e final em me, te, se é tão abafado que mal se
ouve. Cá [no Brasil] estamos habituados a empregar já certa acentuação quando o pro-
nome vem anteposto ao verbo, dizendo aproximadamente mi, ti, si... Em Portugal fala-
se mais depressa, a ligação das palavras é fato mais comum; no Brasil pronuncia-se
mais pausada e mais claramente. Em suma, a fonética brasileira é, em geral, diversa da
fonética lusitana.

Desse modo, por conta da entonação que rege a colocação pronominal, a norma
padrão da língua prescrita pelas gramáticas normativas tradicionais (registro formal),
por basear-se no português lusitano, acaba distanciando-se da ocorrência em situações
de fala (registro informal) do português brasileiro. E isso é problematizado em Prono-
minais, a partir da abordagem da oposição entre a fala do professor, do aluno e do mu-
lato sabido, de um lado, e do bom negro e do bom branco, de outro. Enquanto aqueles
aderem às convenções normativas prescritas, estes utilizam uma variante que condiz
com o contexto fonético brasileiro.
Essa problemática está diretamente ligada à questão da brasilidade, discutida
por Oswald de Andrade nos seus Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago.
Nesses manifestos, Oswald posiciona-se “contra a cópia, pela invenção e pela surpre-
sa”, quer “Acertar o relógio império da literatura nacional”, “Ser regional e puro em
sua época”; apresenta-se “Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo,
para ganhar comissão” (SCHWARTZ, 1988). Oswald visa à produção de uma poesia bra-
sileira, que seja criada a partir de uma realidade própria e não mais pela importação de

72 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


LÍNGUA, IDENTIDADE, BRASILIDADE: UM OLHAR SOCIOLINGUÍSTICO-DISCURSIVO

elementos estrangeiros, principalmente portugueses, como é o caso das normas grama-


ticais que regem a língua portuguesa falada no Brasil.
Analisando a questão dos substratos indígenas e africanos e a distância geográ-
fica em relação à Portugal que marca o Brasil, é possível, e até mesmo indispensável,
caracterizá-lo como uma comunidade de fala distinta da de Portugal. Isso porque a
comunicação intensa entre membros de uma comunidade leva à manutenção de suas
características linguísticas, enquanto a falta de contato linguístico entre as comunida-
des favorece o desenvolvimento de diferenças linguísticas (BELINE, 2010).
Segundo Mário de Andrade, um dos precursores e coadjuvantes do movimento
modernista, “o espírito modernista reconheceu em si que vivíamos já de nossa realida-
de brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressás-
semos com identidade. Inventou-se do dia prà [sic] noite a fabulosíssima ‘língua brasi-
leira’” (ANDRADE, 1974, p. 244). O autor afirma ainda que o Brasil possui numerosas
tendências e constâncias sintáxicas que lhe conferem caráter vernáculo à linguagem.

Considerações finais

A possibilidade de variação nas línguas é um fenômeno inerente aos sistemas


linguísticos, já que toda mudança linguística é, necessariamente, antecedida de varia-
ção (CHAGAS, 2010). No caso tematizado nos poemas estudados, as diferenças marcam
o português do Brasil em relação ao português de Portugal e, por isso, corroboram a
constituição de uma identidade linguístico-cultural que, ao mesmo tempo, define e é
definida pela noção de vernáculo neste país. Tendo isso em vista, é pertinente refletir a
respeito dos postulados do sociólogo Pierre Bourdieu (1996). Bourdieu afirmava que o
discurso não é apenas uma mensagem destinada a ser decifrada, é também um produ-
to que entregamos à apreciação dos outros e cujo valor se definirá na relação com ou-
tros produtos mais ou menos raros. Instrumento de comunicação, a língua seria tam-
bém sinal exterior de valor simbólico.
Essa visão que institui a língua como parte de um mercado – o mercado linguís-
tico – auxilia a descrever o processo de valoração que rege a língua quando em situa-
ções reais de uso (fala). Considerando que todas as variantes dentro de uma mesma
língua podem desempenhar igualmente bem sua função do ponto de vista comunicati-
vo, pode-se perceber a atribuição de valor simbólico a fenômenos que são intrínsecos a
toda e qualquer língua. É necessário considerar ainda o fato de que a língua pode ser
utilizada como um instrumento de poder e repressão social, de modo que se torna pos-
sível distinguir e valorar aqueles que usam a norma culta (ou padrão) de uma língua e
aqueles que usam outras variantes. Pode-se pensar a respeito de uma hierarquização
estabelecida entre as comunidades de fala do Brasil e de Portugal, em que aquele ainda
representaria o papel de colônia e este o de metrópole. De qualquer maneira, a questão
vernacular brasileira parece evidente, uma vez que nos diferencia linguística e cultu-
ralmente de Portugal. Entretanto, as negociações simbólicas, por vezes, sugerem uma
apreciação negativa do brasileiro em relação ao europeu, e não como um patrimônio

73 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


VERÔNICA FRANCIELE SEIDEL

próprio do país, como parte da identidade brasileira, que deve ser considerada e anali-
sada como tal.
Esse texto visa demonstrar que a variação que se dá entre o português do Brasil
e o de Portugal é parte constitutiva de uma identidade nacional, formada a partir de
todo um contexto cultural e histórico. Daí a pertinência de um olhar sociolinguístico-
discursivo, que articula o fenômeno da variação na língua, considerando seu valor sis-
têmico, com o contexto social, político e cultural em que se constitui o vernáculo.

Referências bibliográficas

ALKMIM, Tânia Maria; CAMACHO, Roberto Gomes. “Sociolinguística”, in: MUSSALIM, F.


& BENTES, A. C. (org.) Introdução à Linguística. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2006, v. 1, p. 21-76.

AGUILERA, Vanderci de Andrade. “Um estudo geolinguístico da iotização no português


brasileiro”, in: ______ (org.). Português do Brasil: estudos fonéticos e fonológicos. Lon-
drina: Editora Universitária UEL, 1999.

ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974.

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolingüística. 15 ed. São Paulo: Contexto,
2006.

BELINIE,Ronald. “A variação linguística”, in: FIORIN, J. L. Introdução à linguística. 6 ed.


São Paulo: Contexto, 2010, v. 1, p. 121-140.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo:
Edusp, 1996.

CALVET, Louis-Jean. Sociolingüística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002,
p. 89-122.

CÂMARA JR., Mattoso. Dicionário de Lingüística e Gramática. 10 ed. Petrópolis: Vozes,


1981.

CHAGAS, Paulo. A mudança linguística, in: FIORIN, J. L. Introdução à linguística. 6 ed. São
Paulo: Contexto, 2010, v. 1, p. 141-164.

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técni-
co, 2005.

LABOV, William. Contraction, Deletion and Inherent Variability of the English Copula.
Language, 1969, v. 4, n.º 45, p. 715-762.

Manuel. Dificuldades da língua portuguesa. 7 ed. Rio de Janeiro: ABL: Biblioteca


SAID ALI,
Nacional, 2008.

74 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


LÍNGUA, IDENTIDADE, BRASILIDADE: UM OLHAR SOCIOLINGUÍSTICO-DISCURSIVO

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. 27 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

SCHWARTZ, Jorge. Oswald de Andrade. Seleção de textos, notas, estudo biográfico, histó-
rico e crítico por Jorge Schwartz. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

75 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):69-75, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):76-84, 2011

O espaço em Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso1


_______________________________________________________________________

AMANDA GUIMARÃES FARIA


Universidade Federal de Viçosa. e-mail: amanda.faria@ufv.br

Resumo: A partir da análise do capítulo “Primeira confissão de Ana”, da obra Crônica


da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, desejamos demonstrar como o espaço
se mostra uma categoria primordial para a compreensão das relações entre as perso-
nagens e entre a família Meneses e a sociedade. Partimos desse aspecto da obra, uma
vez que atrelados a ele estão outras categorias fundamentais dentro do romance, co-
mo o tempo, a decadência, a moral burguesa e a morte.
Palavras-chave: romance brasileiro; tempo narrativo; Lúcio Cardoso

1.

Publicado pela primeira vez em 1959, Crônica da casa assassinada trata, de forma
fragmentária e desordenada, da decadência dos Meneses, família mineira antes opu-
lenta e tradicional. É por meio da rememoração dos personagens, por meio de diários,
cartas, confissões, livros de memórias etc., que percebemos o processo de ruína em que
tanto a família Meneses quanto a Chácara, local em que vivem, se encontram. Constru-
indo um ambiente soturno e opressor, o romance aponta todo o tempo para os princí-
pios de agregação e desagregação, encontro e desencontro: ao mesmo tempo em que as
narrativas se procuram, como meio de completar umas as outras, se repelem, pois não
têm necessidade de outros relatos para significar. Essa repulsa entre as partes do ro-
mance funciona como maneira de manter a incomunicabilidade entre as personagens e
confiná-los em sua percepção de mundo. Quanto mais se alienam uns dos outros, mais
os indivíduos se tornam enigmáticos.
É pelo desapego ao “realismo da exterioridade” que se nota o quanto a matéria
narrada é passível de dúvida: não se pode determinar se os episódios do romance re-
almente se desenrolaram como são descritos, uma vez que todos os relatos estão im-
pregnados da percepção de cada indivíduo e, algumas vezes, essas percepções são ne-
gadas por narrativas posteriores, especialmente aquelas escritas por pessoas que não

1 Trabalho produzido para a disciplina “Modernismo II”, ministrada pela professora Joelma
Siqueira.

76 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


AMANDA GUIMARÃES FARIA

fazem parte da família Meneses, como o médico e o farmacêutico da região. Como


exemplo disso, podemos citar a tentativa de suicídio de Valdo, que só se torna clara
para o leitor a partir do relato do próprio personagem, num dos capítulos finais do
romance, e até esse momento pode-se apenas suspeitar. E essa suspeita não está restrita
ao suicídio: estende-se também para uma tentativa de assassinato ou mesmo um aci-
dente, tal como é relatado por Demétrio, irmão mais velho de Valdo, ao procurar o
médico da cidade, para que ele pudesse determinar a extensão dos ferimentos e a gra-
vidade da situação em que se encontrava o ferido.
É válido destacar também alguns aspectos das narrativas autobiográficas. Em
uma perspectiva cartesiana de se ler o texto autobiográfico, enxerga-se o “eu” como
autônomo, completo e anterior ao momento de escrita. Desse modo, “antes do ‘ser de
papel’ fixado pelas palavras, estaria o ser de carne e osso que lhe daria espessura e re-
ferência” (ROCHA, 1992, p. 45), de modo que o texto autobiográfico se tornaria reconhe-
cível por apontar para um sujeito determinado. Posteriormente, outros estudos trouxe-
ram uma maneira diferente de compreender o “eu” das autobiografias: sob a perspec-
tiva de que o mesmo seria uma “construção de linguagem”, o “eu” acabou perdendo
seu status transcendental, passando, desse modo, a não remeter a uma realidade pal-
pável. Passou-se, então, a não procurar mais na autobiografia algo que funcionasse
como uma representação de histórias reais e a compreendê-la como uma recriação, na
qual memória e imaginação se fundem. Abordar esse tipo de narrativa se faz relevante
antes de se analisar a Crônica da casa assassinada, uma vez que todas as narrativas do
livro têm esse caráter. Por se tratar de rememorações feitas pelos personagens da obra,
em gêneros textuais marcadamente pessoais, a respeito de fatos que viveram e pelo
tom memorialístico, não se pode ter certeza da veracidade de tais relatos. Como foi
discutido, tem-se nos mesmos a percepção dos narradores da obra.
Até o momento, destacou-se os aspectos intimistas do romance, porém é valido
demonstrar como a obra ultrapassa o intimismo para falar da sociedade mineira. É sa-
bido que Lúcio Cardoso sempre foi visto pela crítica especializada como um romancis-
ta que valoriza aspectos psicológicos das personagens. Suas narrativas, marcadamente
introspectivas e espiritualistas, focam-se nos problemas do indivíduo. Talvez a maneira
como a narrativa de Crônica se estrutura sirva para reafirmar essas discussões, no en-
tanto, é válido destacar aqui que, por mais que o espaço na obra tenha feições fenome-
nológicas, pode-se perceber a sua funcionalidade, que está intimamente ligada à des-
truição da família burguesa. Percebe-se, em Crônica da casa assassinada, o uso da indivi-
dualidade para falar da sociedade. Por intermédio de cada um dos Meneses, o escritor
vai explorar os aspectos da família mineira que ele deseja ver destruídos, conforme ele
próprio destaca:

Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisa-
gem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O pu-
nhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Ge-
rais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Con-

77 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


O ESPAÇO EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO

tra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira.
Contra a fábula mineira (CARDOSO, 2009, p. 9).

A partir da fala do escritor, podemos perceber que sua obra configura um “re-
gionalismo às avessas”, em que a região retratada é bem delineada, mas isso não se dá
em favor da exaltação da mesma, tampouco para a preservação e documentação de sua
identidade, mas para a exposição da hipocrisia da “Sagrada Família Mineira” que es-
conde, por meio de seu tradicionalismo, segredos sujos e obscuros.

2.

Passemos agora à análise de um capítulo da obra. A escolha do oitavo capítulo,


Primeira confissão de Ana, se deu por acreditarmos que há nesse trecho a presença de
todos os elementos primordiais para a compreensão da narrativa. Percebemos, além
disso, que todas as relações interpessoais são descritas por Ana em sua primeira confis-
são ao Padre Justino, mesmo aquelas que até o momento em que escreve ainda não
estavam bem delineadas. A personagem vai destacar também a importância que o es-
paço e o tempo têm em Crônica da casa assassinada, bem como nos fornecer o material
necessário para compreender como se dá a crítica à família mineira no romance. A es-
colha se deu, também, por considerarmos Ana, mesmo que ainda bastante presa às
tradições nesse ponto da obra, a personagem com mais clareza de raciocínio, com per-
cepção mais aguçada de tudo o que acontece na casa e em volta dela.
Começaremos essa análise pensando o espaço da obra, por acreditarmos que
atreladas a ele estão outras categorias fundamentais desse romance: o tempo, que ins-
creve sobre o próprio espaço e os sujeitos, a marca da destruição; a decadência, advin-
da do próprio tempo; a moral burguesa; o aprisionamento, não apenas físico (como no
caso de Timóteo), mas também mental; e a morte, que se deixa entrever desde o título
do romance, dita o tom de toda a narrativa e por meio da qual os Meneses vão atingir a
sua grande ambição.
Gaston Bachelard (1978), em A poética do espaço, discute que para um estudo fe-
nomenológico do espaço interior, a casa é um “ser privilegiado”, uma vez que nos for-
necerá, ao mesmo tempo, imagens dispersas e um corpo de imagens. Segue descreven-
do a casa como um lugar em que encontramos abrigo, de modo que essa pode assumir
outras formas, como um quarto. O que realmente importa é a sensação que esse nosso
“primeiro canto no mundo” transmite: acolhimento e intimidade protegida. Portanto, a
casa se apresentará como mais do que uma habitação. Será algo capaz de remodelar o
homem, visto que sem ela o mesmo seria um ser disperso. Nesse sentido, nota-se a
concordância entre os acontecimentos do romance e as ideias do teórico: mesmo que
sejam os Meneses que remodelam a Chácara, de modo que ela assimila os traços de
seus habitantes, como a frieza, a indiferença e o desinteresse, a casa ainda nos transmi-

78 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


AMANDA GUIMARÃES FARIA

te a sensação de intimidade protegida, uma vez que os segredos das personagens ficam
confinados àquele espaço e têm as paredes da habitação como única testemunha. Em
um parêntese da “Primeira confissão de Ana”, a narradora destaca que desde que fora
viver ali, aprendera a se referir à casa como um organismo vivo, uma vez que seu ma-
rido, Demétrio, sempre dizia que “o sangue dos Meneses criara uma alma para essas
paredes” (CARDOSO, 2002, p. 103).
É também no parêntese que, devido a essa organicidade da habitação, a narra-
dora confessa o seu receio de que a casa saiba de suas ações e deixa entrever que o fato
de que ter sido escolhida para esposa de Demétrio acabou por lhe tirar a liberdade de
ler o mundo como desejasse: foi educada ao gosto dos Meneses e de modo que não
pudesse se tornar outra coisa senão um membro da família. Essa educação transfor-
mou-lhe em um ser “pálido e artificial”, impedido de usar cores que não fossem distin-
tas, de ter modos que não fossem dignos de uma dama da alta sociedade. Embora, ofi-
cialmente, a Chácara não tenha sido o primeiro lar de Ana, no sentido de que não foi
sua primeira moradia, foi o único que conheceu durante toda a sua vida: mesmo quan-
do ainda não habitava aquela casa, de paredes vivas e intimidantes, a Chácara já habi-
tava Ana, uma vez que todos os traços de sua personalidade foram adequados ao gosto
da família da qual viria a fazer parte. Posteriormente, há por parte da personagem a
tomada de consciência acerca dessa situação, visto que ela ainda era muito jovem
quando tudo se desenrolou, e não poderia perceber que ser uma Meneses envolvia
mais do que o status dado pelo nome: envolvia o apagamento de seus traços genuínos,
o aprisionamento de sua mente.
É válido, ainda falando sobre o aprisionamento, destacar o personagem Timó-
teo, descrito por Ana nesse capítulo como alguém que “sempre foi um temperamento
esquisito, de hábitos fantásticos, o que obrigou a família a silenciar sobre ele – como se
silencia sobre uma doença reservada” (CARDOSO, 2009, p. 105). Ao longo da narrativa, o
que se pode perceber, embora não seja comentado explicitamente, que o motivo do
silêncio e da exclusão de Timóteo é a sua homossexualidade e o fato de procurar vivê-
la, ora sem se importar com o estigma do nome que carrega, ora percebendo que isso
impede o exercício pleno de suas inclinações. Isso fica bastante claro na passagem em
que destaca que só temos o direito de “ser monstros para nós mesmos” (CARDOSO,
2002, p. 482). Frente a todo o tradicionalismo de sua família, a percepção do persona-
gem de que um nome não deve ser o fator determinante de sua identidade se mostra
como algo hediondo, especialmente aos olhos de Demétrio, que vai silenciá-lo por meio
de ameaças de internação em um manicômio, que seria paga com a herança deixada
pelo pai. Diante disso, Timóteo se vê forçado ao exílio em um dos quartos da Chácara.
É nesse quarto, local proibido e ignorado pelos demais moradores, que vai encontrar,
parcialmente, alento. Ali é livre para se vestir com roupas de mulher, que em tempos
passados pertenceram à sua mãe e observar o jardineiro Alberto. Deve-se destacar
também que seu apego pelas roupas, jóias e outras coisas alegres, podem advir da sau-
dade que deixa entrever de tempos anteriores da casa. Tempos em que Maria Sinhá
(personagem pela qual demonstra imensa admiração) ainda assustava as pessoas da

79 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


O ESPAÇO EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO

região com seu espírito livre, tempos em que sua mãe ainda era viva e coloria aquele
ambiente, agora apático, com suas roupas extravagantes. Percebe-se também o que a
Chácara acabou por fazer com Timóteo: acompanhando a degradação da casa, mesmo
que só a vivenciasse em sua virtualidade, Timóteo se torna cada vez mais grotesco,
segundo os relatos dos outros narradores. Talvez, dentre todos os personagens da nar-
rativa, ele seja o que mais sofre com a passagem do tempo e sua a deterioração extrapo-
la os limites do visível, chegando a consumir até mesmo a sua personalidade, deixan-
do-lhe como única razão de viver a possibilidade de um dia ver, aqueles que roubaram
a sua vida, destruídos.
Como tentativa de não restringir o sentido do texto ao que foi discutido, é vali-
do também ressaltar outra perspectiva pela qual se pode compreender a decisão do
personagem de permanecer naquele ambiente, ainda que o mesmo se configurasse
para ele como opressor: a casa dos Meneses, ao mesmo tempo que parece assustar to-
dos os personagens da obra, exerce sobre eles um fascínio extremo, de modo que mes-
mo quando tentam se distanciar, acabam por voltar sempre para ela. Gaston Bachelard
destaca que “todos os espaços de nossas solidões passadas, os espaços em que sofre-
mos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão,
são em nós indeléveis” (BACHELARD, 1978, p. 210) e não desejamos apagá-los. Porém,
esse apego a ambientes, de algum modo, atrelados a imagens ruins têm o seu valor
para a formação do sujeito, na medida em que trazem consigo também a lembrança de
algo que, um dia, foi por nós amado. Mesmo que, como no caso de Timóteo, tais espa-
ços estejam completamente riscados do presente e sem qualquer possibilidade de vol-
tarem a fazer parte de sua vida num futuro, talvez ele opte por não deixar a Chácara
não apenas pelo dinheiro, mas também por ter algum apego por ela, talvez “a herdade
seja uma doença de sangue” (CARDOSO, 2002, p. 105), de modo que a casa torna-se par-
te do organismo dos Meneses: se outros têm orgulho de sua nobreza, os Meneses têm
orgulho de serem feitos do cimento e da cal daquelas paredes.
Ainda fazendo uso da discussão entre Timóteo e Demétrio, é válido destacar a
grande ambição da família Meneses, especialmente de Demétrio: uma visita do Barão.
Essa visita se mostrava tão importante porque a família do Barão era, em Vila Velha, a
única que estava “acima” dos Meneses, tanto em fortuna quanto em tradição, uma vez
que eram descendentes diretos dos Bragança lusitanos. Era como se esperassem que
essa visita consolidasse o seu status na região. Nesse ponto, não se pode deixar de
abordar alguns aspectos relativos à moral burguesa. Adotou-se a definição de moral
burguesa dada por Nancy Armstrong (2009) ao tratar de diversos romances do século
XIX, na literatura inglesa, em que esse traço se mostrava recorrente na mais diversa ga-
ma de personagens. Armstrong não define a moral burguesa como um “valor em si”,
mas como um modo de “ler, avaliar e rever categorias de identidade já existentes”
(ARMSTRONG, 2009, p. 336). Por esse ponto de vista, pode-se afirmar que a moral bur-
guesa não encontra seu apoio na religião, nem na Bíblia ou mesmo na ética hebraico-
cristã; ela parece surgir do próprio indivíduo e atribui a ele algo que não é individual:
“A possibilidade de conquistar uma posição social, por razões que ultrapassem a esfera

80 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


AMANDA GUIMARÃES FARIA

puramente econômica” (ARMSTRONG, 2009, p. 336). No caso de Crônica, essa ascensão


viria por meio da visita do Barão, que mostraria a todos os moradores de Vila Velha a
importância dos Meneses e os bons relacionamentos que possuíam. A essa altura do
romance, o dinheiro da família se esvaía e a casa se encontrava em estado de decrepi-
tude, de modo que apenas mostrando à sociedade que ainda possuíam bons relacio-
namentos, os Meneses seriam capazes de conservar o seu status de família poderosa da
região. Por meio de seus relacionamentos, manteriam um lugar que consideravam jus-
to na sociedade. Dessa maneira, a dita visita vai se tornando a obsessão de todos os
habitantes da Chácara: no caso de Demétrio, pelo que foi descrito, no caso de Timóteo,
por enxergar aí a possibilidade de destruir, de uma vez por todas, os Meneses.
Assim, essa busca por status por meio dos bons relacionamentos nos deixa per-
ceber o processo de decadência da família. Boatos cada vez mais maldosos começavam
a correr por toda a cidade, especialmente após a chegada de Nina, e se ainda conserva-
vam resquícios do antigo prestígio, era apenas em função do isolamento físico em que
se encontravam, visto que a Chácara se situava numa distância considerável do restan-
te da cidade. É, especialmente, por meio dos acontecimentos que não podem ser con-
trolados que esses sinais da decadência começam a se destacar. Nesse momento da
análise, se faz necessário comentar a personagem Nina, principal razão da perda de
controle da família Meneses. Vinda do Rio de Janeiro, como esposa de Valdo, sua che-
gada desperta interesse em todos os moradores de Vila Velha: por se tratar de uma
mulher da capital indo morar numa cidadezinha desinteressante e, principalmente,
porque os rumores a respeito de sua beleza percorrem toda a cidade em um intervalo
muito curto de tempo. Nina funciona, mais ou menos, como a promessa de vida nova,
a qual poderia cumprir caso não fosse objeto de desejo e obsessão de quase todos os
membros da família.
No momento de sua chegada, Nina é recebida por Demétrio com demasiado en-
tusiasmo, que só será compreendido na Primeira confissão de Ana, quando a narradora
nos relata, oscilando entre a indiferença e a mágoa, que seu marido estava apaixonado
pela cunhada. Apesar de declarar, abertamente, que nunca amou Demétrio, percebe-
mos que o comportamento da narradora perante a ameaça é passar a observar todos os
movimentos de Nina. Isso se configura, porém, mais pela inveja que sentia da outra,
alguém cheio de vida e capaz de despertar paixões, ao passo que ela, com seus vestidos
cinzentos, já havia se mesclado de tal modo a paisagem do local que sequer era notada.
A inveja, porém, não se restringe a aspectos físicos: Nina era livre, pensava como bem
queria e não aceitara as imposições que o nome Meneses carregava consigo. Continua-
va se vestindo como se vestira no Rio de Janeiro, agindo com indiferença por Vila Ve-
lha e a Chácara, locais que tanto a entediavam, e, principalmente, não cedia às pressões
de Demétrio. Este, em partes ofendido pelo comportamento de Nina perante as tradi-
ções da família, em parte frustrado por não saber lidar com o seu sentimento pela
mesma, passa a fazer de tudo para tornar a sua vida na Chácara a pior possível, sendo
o causador de todas as partidas da cunhada para o Rio de Janeiro.
A atmosfera que se instaura entre os dois, devido ao sentimento reprimido de

81 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


O ESPAÇO EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO

Demétrio pela cunhada, em muito se assemelha ao clima de fantasmagoria e à obsessão


de O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. O amor de Demétrio para com a moça
não vê outra maneira de realizar-se a não ser pela destruição do objeto amado. Aparen-
temente, se ele não pode ter Nina para si, visto que é a esposa de seu irmão, nenhum
Meneses poderá tê-la. Aqui, se faz relevante relatar o episódio em que negocia uma
arma com o farmacêutico da cidade e deixa a mesma sempre exposta num móvel da
sala, esperando que, cedo ou tarde, ela seja usada. Talvez, a sua intenção não seja ferir
nenhum dos dois homens, nesse ponto da trama, envolvidos com Nina, mas ferir a
própria. Porém, sem coragem e sem motivo plausível para fazê-lo ele mesmo, deixa a
arma na sala de casa, talvez esperando que o irmão descubra o caso de Nina com Al-
berto, o jardineiro, e num rompante de raiva dispare a arma contra a moça. Mas, tal
fato nunca ocorre e a arma acaba sendo utilizada tanto para a tentativa de suicídio de
Valdo, quanto para o suicídio de Alberto, não cumprindo, portanto, o propósito para
qual fora adquirida.
Dessa forma, o que se nota é que o controle, pela primeira vez na narrativa, es-
capa das mãos de Demétrio, acostumado a ser visto sempre como sábio e detentor da
razão pelos membros da família e empregados da Chácara. Por Nina, sua vontade
nunca é acatada e seus propósitos para com a cunhada nunca são plenamente concreti-
zados. Isso se observa, especialmente, por meio das inúmeras vezes em que se esforçou
para mantê-la afastada de Vila Velha, e ela sempre acabava por voltar à Chácara e,
quando o fazia, não havia mudado o seu temperamento em nada. Em vez de comen-
tarmos todas as partidas da personagem, comentaremos apenas a última, que se mos-
tra mais frutífera para abordar o último aspecto proposto para análise: a morte.
Num dos capítulos finais do romance, Nina escreve uma carta ao Coronel, um
amigo de seu pai e apaixonado por ela, que havia ajudado-a em outras circunstâncias,
avisando que irá novamente ao Rio e, dessa vez, sua permanência na cidade será defi-
nitiva. Aproveitando-se do amor que o velho Coronel nutria por ela, Nina encontra-se
com ele para dizer que necessitava de amparo, uma vez que não teria como se manter
por ali sozinha. Porém, se tratava apenas de um truque para conseguir dele presentes
caros que o marido não mais poderia lhe dar, devido à situação de falência em que os
Meneses se encontravam. Essa passagem se faz importante, uma vez que, desconfiado,
o Coronel segue Nina pelas ruas do Rio de Janeiro e acaba por dar com a moça entran-
do num consultório médico. Então, descobre que se encontra doente, o que vai servir
de explicação para o aspecto que adquirira: não se tratava apenas da passagem do
tempo, agindo implacavelmente sobre a beleza de Nina, mas da doença que se esforça-
va para manter oculta. Nesse ponto, descobrimos que a personagem se encontra às
vésperas da morte e que sua doença está em tal estágio de avanço que nada mais pode
ser feito para reverter a situação.
Ciente do que o tempo havia feito com seu antigo brilho e magnetismo, Nina
opta por esconder a sua condição como meio de conservar o restante do encanto que
ainda possuía. É também por isso que pede ao Coronel as roupas e jóias da moda: a
intuição do efêmero leva à consciência da caducidade das coisas, e o anseio por eterni-

82 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


AMANDA GUIMARÃES FARIA

dade acaba agindo sobre a personagem como uma tentativa de refúgio no perene. Per-
cebe-se que, em Nina, a percepção da passagem do tempo e da transitoriedade das
coisas gera uma atitude melancólica, que vai acabar fazendo com que opte por morrer
sozinha no quarto, de modo que ninguém possa ver o estado de decomposição em que
seu corpo se encontra e tampouco sentir o mau cheiro que se desprende dele. Ela dese-
ja ser lembrada como a Nina deslumbrante e cheia de vida que chegara àquela casa.
Estranhamente, é apenas nesse momento da narrativa que todos os personagens vão
estender-lhe a mão: preocupados com o estado em que se encontrava, cercam Nina de
cuidados e velam seu corpo.
É também no capítulo que retrata o seu velório que vamos perceber, de uma
vez por todas, que a degradação dos sujeitos e do ambiente se encontra em processo
irreversível. Demétrio e Valdo brigam, por não concordarem a respeito do que fazer
com os objetos de Nina, e todos que presenciam a cena sabem que há mais do que a
simples discordância causando a briga entre os irmãos. Embora significativo, tal episó-
dio acaba por se tornar um fator secundário perante a saída de Timóteo do quarto. Ves-
tido com trajes femininos esfarrapados, com um aspecto grotesco, adquirido pelos anos
de confinamento e excesso de álcool, ele escolhe o exato momento em que o Barão e
sua família adentram a casa para, carregado por empregados da fazenda em uma espé-
cie de rede, prestar suas últimas homenagens a Nina, atingindo com a simples presen-
ça o seu objetivo de ver o nome dos Meneses degradado, uma vez que toda a cidade de
Vila Velha se encontrava no velório.
A casa, por sua vez, após a morte de Nina, adquire um aspecto ainda mais des-
cuidado, chegando ao ponto de, no último capítulo da obra, “Pós-escrito numa carta de
Padre Justino”, ser relatado que não tem mais condições de abrigar ninguém. Assim, se
mostra válido retomarmos a discussão acerca dos aspectos orgânicos da Chácara. Ao
tornar-se humanizada, como é ressaltado durante toda a obra, a casa adquire o aspecto
do qual nenhum ser humano consegue se ver livre: a mortalidade. A morte se revela no
romance como uma característica incondicionada e insuperável, deixando perceber a
casa como um corpo que se sacrifica: “Dentro da chuva cerrada quase sentia procurar-
me da distância o olhar do velho prédio sacrificado, com estrias de sangue que escor-
ressem ao longo de suas pedras mártires” (CARDOSO, 2009, p. 245). As expressões “ve-
lho prédio sacrificado” e “estrias de sangue” deixam perceber o sacrifício da habitação
por seus habitantes, numa imagem carregada de simbolismo religioso.
Ao começar o romance com uma pergunta inquietante (“... meu Deus, que é a
morte?”) e ao não expor teorizações acerca da mesma, Lúcio Cardoso força o leitor a
confrontar as imagens da morte. Imagens que induzem reflexões a respeito da efeme-
ridade e da transitoriedade das coisas e que, mesmo somadas, nunca apresentam o
quadro definitivo da história dos Meneses. Preservando as diversas lacunas existentes
nas narrativas, são legadas ao leitor imagens ambíguas e desconexas, que acabam por
expor a ele o potencial destrutivo do tempo, que age implacavelmente sobre tudo aqui-
lo que é vivo.

83 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


O ESPAÇO EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in: Notas de


literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.

AUERBACH, Erich. “A meia marrom”, in: Mimesis: a representação da realidade na lite-


ratura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1987.

ARMSTRONG, Nancy. “A moral burguesa e o paradoxo do individualismo”, in: A cultura


do romance. Org. Franco Moretti. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio Leal da Costa e Lídia do Valle
Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

CANDIDO, Antônio. “A nova narrativa”, in: A educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Editora Ática, 1989.

CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CORRÊA, Ana Laura dos Reis. “Lúcio Cardoso e a crônica da ruína e da desagregação
em região periférica”, in: Revista Interdisciplinar. Sergipe, v. 5, nº. 5, p. 81-100, junho de
2008.

NEJAR, Carlos. História da literatura brasileira: da Carta de Caminha aos contemporâ-


neos. São Paulo: Leya, 2011.

ROCHA,Clara. “As instâncias do ‘eu’ autobiográfico”, in: Máscaras de Narciso. Coimbra:


Almedina, 1992.

ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”, in: Texto/Contexto I. São


Paulo: Editora Perspectiva, 1996.

84 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):76-84, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):85-91, 2011

Venenos de Deus, remédios de Bartolomeu:


uma análise do romance de Mia Couto
_______________________________________________________________________

ANA LUIZA DUARTE DE BRITO DRUMMOND


Universidade Federal de Ouro Preto, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Elzira Divina Perpétua.
e-mail: analuizadrummond@yahoo.com.br

Resumo: Este trabalho faz uma breve análise do romance Venenos de Deus, Remédios
do Diabo, do escritor moçambicano Mia Couto, com foco especial no personagem Bar-
tolomeu Sozinho. O trabalho analisa ainda alguns aspectos literários que são frequen-
tes na literatura de Mia Couto.
Palavras-chave: Mia Couto. Fantástico. Ficção moçambicana contemporânea.

Mia Couto abre as cortinas de seu Venenos de Deus, Remédios do Diabo com uma
epígrafe de Mário Quintana que diz o seguinte: “A imaginação é a memória que en-
louqueceu”. Melhor apresentação para o que estaria nos esperando no palco de Vila
Cacimba, certamente não haveria.
Toda a trama do romance de Mia Couto envolve, especialmente, quatro perso-
nagens principais, que são: Dona Munda, Bartolomeu Sozinho, Sidónio1 Rosa e Deo-
linda.
Somos levados pelo narrador a percorrer uma trama juntamente com Sidónio
Rosa, um português que abandona Lisboa, sua terra natal, e vai para Vila Cacimba, em
Moçambique, em busca de Deolinda, com quem teve um relacionamento rápido – po-
rém intenso –, em Portugal. Em Vila Cacimba, Sidónio Rosa torna-se voluntário de um
posto de saúde da cidade (que sofre com uma epidemia) e frequentador da casa dos
supostos pais de Deolinda: Dona Munda e Bartolomeu Sozinho.
Nesse artigo, colocaremos em foco o personagem Bartolomeu Sozinho, mas, pa-
ra tal, será necessário destacarmos, primeiramente, algumas características marcantes
desse romance.
De início, é importante ressaltar o caráter não maniqueísta de Venenos de Deus,
Remédios do Diabo e, na verdade, dos romances de Mia Couto em geral. Nesse sentido,
podemos começar destacando o título do livro, que propõe uma inversão de nossa

1 Opto por manter, neste texto, a grafia dos nomes próprios conforme aparecem no livro.

85 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


ANA LUIZA DUARTE DE BRITO DRUMMOND

concepção de Deus e Diabo quando designa a um poderes que, em geral, acreditamos


ser do outro. Mais especificamente, designa o mal a Deus e a cura desse mal ao Diabo.
Essa ausência de maniqueísmo pode ser encontrada também em todos os personagens
do romance, que ora nos aparecem sob a forma de vítimas, ora de agressores; ora de
inocentes, ora de culpados; ora de sinceros, ora de mentirosos. Um exemplo claro pode
ser encontrado no personagem Alfredo Suacelência, que somos levados a vê-lo, pelas
palavras de Bartolomeu Sozinho, como uma espécie de ditador invejoso. Isso se dá por
uma empatia entre leitor e personagem, no caso, entre leitor e Bartolomeu. Essa empa-
tia, por sua vez, ergue-se sobre uma narrativa em que Bartolomeu aparece mais próxi-
mo ao leitor que Suacelência – que só aparecerá em cena2 mais tarde. Em outras pala-
vras, Bartolomeu é agente nessa ação do romance e, dessa forma, nos é dado a ver; já
Suacelência, nesse primeiro momento, só nos aparece de forma passiva, por meio das
falas de Bartolomeu, de Sidónio Rosa e do narrador.
Eis uma passagem em que Sidónio e Bartolomeu falam sobre Suacelência:

– Tenho medo desse Alfredo Suacelência.


– Não sei porquê!?
– Pois, esse filho da puta odeia o meu passado, diz que são nostalgias coloniais...
O Administrador fazia pouco das suas glórias marítimas. Quando Bartolomeu desem-
barcava do Infante D. Henrique, as pessoas olhavam-no como um herói que vencera ho-
rizontes. Suacelência minimizava-lhe os feitos dizendo: “Ora, esses colonos precisavam
de um preto decorativo”. Não era por méritos próprios que o mecânico negro seguia no
navio. Ele era tripulante apenas como instrumento de uma mentira: de que não havia
racismo no império lusitano.
– Decorativo é a puta que o pariu.
– Calma, Bartolomeu. Não vale a pena o alvoroço, o Administrador nem está aqui.
– O que o gajo tem é inveja... [...] (COUTO, 2008, p. 26).

Mais para o fim do romance, o narrador nos mostra um outro Suacelência, cu-
jo cargo de administrador foi-lhe retirado por se opor a um “descontrolado abate de
madeira, sem saber que o negócio era desenvolvido por uma empresa de um político
poderoso”. E ainda, que dispõe de dinheiro para o aluguel de um barco para o velório
de Bartolomeu Sozinho – seu inimigo declarado –, à altura do que este desejava em
vida. E é mais ou menos dessa forma que todos os personagens principais do romance
nos são mostrados. Ora de uma perspectiva, ora de outra.
É importante ressaltar também a presença do fantástico no romance. Mia Cou-
to nos leva a uma Vila Cacimba que vive sempre encoberta por um nevoeiro: um prato
cheio para uma narrativa fantástica. Os três cenários principais da narrativa – que são a

2 Neste trabalho o termo “em cena” refere-se à presença do personagem de forma direta no ro-
mance, ou seja, quando ele aparece em ação.

86 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DE BARTOLOMEU

Vila, a casa e o quarto de Bartolomeu – apresentam, em algum momento, característi-


cas fantásticas. Eis um trecho, próximo ao final do romance, onde o fantástico atinge
seu mais alto ponto:

– Ainda bem que veio, Doutor, a casa está morrendo.


Por isso ele tinha sido convocado; por isso, desembarcara na povoação. Não eram os
habitantes que padeciam de enfermidades. Era a casa que tinha adoecido. Sidónio sen-
tiu, de facto, que o edifício estava febril, prestes a sofrer de convulsões.
Era o que tinha acontecido com os restantes edifícios da Vila. O mesmo mal, a mesma
epidemia vitimara todo o casario. Aquela era a última casa, a única sobrevivente. De
súbito, entre as vozes distantes, lhe pareceu escutar Deolinda:
– Salve a minha casa, salve as minhas lembranças...
O médico acariciou o aro da porta de entrada como se tomasse o pulso da construção.
O que sucedeu a seguir, sem que ele pudesse evitar, foi que as paredes da casa estreme-
ceram a ponto de se dissolverem. Não desabaram como num sismo. Ascenderam no es-
paço vertidas em poeira para depois se evaporarem nos céus. Como uma asa avulsa,
restou o tecto, vogando suspenso, semelhando uma ave cega que rodopiasse sobre o an-
tigo ninho. Desse flutuante tecto escorria um fio de água e Munda se banhava sob essa
cascatinha. A mulher se tinha despido para chorar.
– Agora que a casa voou, já não preciso sair à rua para chorar (COUTO, 2008, p. 184-185).

De todas as presenças do fantástico no romance, essa talvez seja a que mais nos
transporte a um outro plano. No momento em que Munda anuncia que “a casa está
morrendo”, vamos sendo levados para o âmago do fantástico, onde não há uma possi-
bilidade de explicação do acontecimento narrado por intermédio de leis naturais. Nes-
se caso, de acordo com Todorov,

aquele que o percebe [o fantástico] deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis
do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhe-
cidas para nós (TODOROV, 2004, p. 30).

E dessa forma permanecemos na incerteza e, por isso, continuamos no plano do


fantástico que, ainda de acordo com Todorov, “é a hesitação experimentada por um ser
que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”
(TODOROV, 2004, p. 31).
Por fim, mas não menos importante, destaco o trabalho que Mia Couto faz com
a materialidade da linguagem. Partindo do plano material (significante) para o plano
da abstração (significado), Couto encobre de poesia, de efeito poético, seus jogos de
linguagem. O resultado é uma narrativa repleta de ditos populares, provérbios e troca-

87 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


ANA LUIZA DUARTE DE BRITO DRUMMOND

dilhos – que são muito presentes na cultura africana – que, além de nos aproximar da
cultura em foco, preenche o romance com humor, emoção e poesia.
Para Anselmo Peres Alós, “tal qual Guimarães Rosa, um dos escritores brasilei-
ros mais admirados por Couto, é no trabalho sobre a materialidade da linguagem que
se produz o efeito de sentido poético na escrita” (ALÓS, 2010, p. s/n). Eis alguns trechos
do romance em que fica claro esse trabalho de Mia Couto com a materialidade da lin-
guagem:

– Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica (COUTO, 2008, p. 9).
– Sonhar só o faz ficar mais vivo.

– Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor (COUTO, 2008, p. 17).
– Não sou preto!
– Então?
– Sou extremamente mulato (COUTO, 2008, p. 31).

– Isto, caro Sidónio, não é amar: é amardiçoar (COUTO, 2008, p. 97).

– Há muito que o Doutor não me espreita o sangue. Já não quer vampirar-me? (COUTO, 2008,
p. 140).

Após essa familiarização com o romance, focaremos agora no personagem Bar-


tolomeu Sozinho, o velho mecânico naval do Infante D. Henrique durante o regime co-
lonial. Com o fim do regime colonial, Bartolomeu vai morar em Vila Cacimba, “uma
povoação que lhe lembrava a visão enevoada da costa quando espreitava do convés”
(COUTO, 2008, p. 22).
Para falar de Bartolomeu Sozinho é necessário, senão obrigatório, situá-lo em
seus dois cenários principais: sua casa e seu quarto. No romance de Couto, persona-
gem e espaço estão unidos de tal forma que um sempre remete ao outro. O quarto de
Bartolomeu Sozinho é um cenário dentro do cenário de sua casa, que por sua vez está
dentro do cenário de Vila Cacimba. Para criar uma imagem dessa disposição dos três
cenários principais do romance, podemos nos valer da figura abaixo:

Quarto de Bartolomeu

Casa de Munda e Bartolomeu


Vila Cacimba

88 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DE BARTOLOMEU

Podemos pensar na figura da seguinte forma: Vila Cacimba como o espaço


macro do romance, onde estão todos os personagens e também os demais cenários,
como o posto de saúde, a casa de Suacelência, o cemitério dos alemães etc.; a casa de
Munda e Bartolomeu, onde o médico faz suas visitas, visitas estas que, apesar de tudo,
não o tornam parte desse cenário; o quarto de Bartolomeu onde, de vez em quando,
entra o médico ou Munda, mas que só pertence a Bartolomeu.
O quarto é a “fortaleza” onde Bartolomeu se fechou desde há meses. No má-
ximo, ele se permite ir a outros cômodos da casa, mas jamais para a rua. Convidado
por Sidónio a ir à costa, matar a saudade do mar, Bartolomeu responde:

– Não saio de casa, o Doutor sabe...


– Eu sei, mas não percebo.
– Só saio daqui se esta casa sair junto comigo.
Depois de tantos anos, deixamos de viver na casa e passamos a ser a casa onde vive-
mos.
– É como se as paredes nos vestisse a alma – diz o velho repartindo o fôlego entre a fala e o
esforço de se sentar na berma da cama (COUTO, 2008, p. 23).

Mais próximo do fim do romance, podemos perceber mais claramente a relação


entre Bartolomeu Sozinho e a casa na seguinte passagem:

Agora o médico entende a razão da eterna penumbra da casa. Não é a luz que ali está
interdita. São as sombras. Era essa a função dos pesados cortinados: impedir que a casa
albergasse as moventes sombras: uma dessas sombras seria Deolinda.
É um desses solenes cortinados que a mão magra de Bartolomeu vai acariciando, num
gesto quase sensual. Percorre os panos como se estivesse despindo uma das suas muito
sonhadas mulheres.
– O senhor deu em acariciar a casa?
– Depois de tantos anos, não sei se tenho outra família. Esta casa é minha parente, esta casa
sou eu mesmo (COUTO, 2008, p. 157) [grifo meu].

Bartolomeu exilou sua alma dentro de sua própria casa. Talvez seja por isso que
quando a casa voa, desaparece, não temos mais notícia do velho. Provavelmente ele
estava certo quando disse que a casa era ele mesmo.
Bartolomeu Sozinho é uma das figuras mais emblemáticas de Venenos de Deus,
Remédios do Diabo. É um negro que tem saudades do regime colonial e de sua vida em
alto-mar a bordo do Infante D. Henrique. De tanto conviver com branco, acaba perdendo
sua própria identidade. Nascido sob o nome de Bartolomeu Tsotsi, torna-se Bartolo-
meu Sozinho quando é batizado. “– Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas

89 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


ANA LUIZA DUARTE DE BRITO DRUMMOND

aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?” (COUTO, 2008, p.
110). Tsotsi também significa “ladrão”, “membro de gangue”; para aproximar-se do
português, do branco, Bartolomeu sentia que era imprescindível não carregar com ele
um sobrenome de tamanha carga semântica, mas ao fazer isso, ao tornar-se Bartolomeu
Sozinho, ele acaba por perder sua identidade, ou no mínimo, modificá-la. “Quando
pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha de seu nome original.
Ele se colonizara a si mesmo” (COUTO, 2008, p. 110).
Conversando sobre língua, Bartolomeu oferece a prova de seu “branqueamen-
to” a Sidónio Rosa:

– A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.


E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, con-
frangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
– Quais fungos? – reage Bartolomeu. – Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só fa-
lo português... (COUTO, 2008, p. 110-111).

Com fantasias, imaginações, mentiras e lembranças desreguladas, Bartolomeu


torna-se o único amigo de Sidónio Rosa em África. Mesmo que ambos não sejam ver-
dadeiros um com o outro, até no momento das supostas revelações eles estão ligados
pela linguagem. Em raras visitas Sidónio receita algum remédio ou faz algum exame
em Bartolomeu. O que um quer do outro é o diálogo, a conversa, a troca. Por isso que
até em dias de folga Sidónio visita a “fortaleza” de Bartolomeu. Obviamente existe
também o aproveitamento da situação por ambas as partes. Sidónio fingindo-se de
médico formado para encontrar Deolinda, e Bartolomeu (assim como Munda) escon-
dendo a verdade sobre Deolinda de Sidónio enquanto aproveitam-se do que o portu-
guês tem a oferecê-los.
Sobrenome que melhor identifique Bartolomeu, provavelmente, não há. Ele
era o único negro no Infante D. Henrique. Na nau ele era o que o médico é em Vila Ca-
cimba: não uma pessoa, mas uma raça solitária. Ele está trancafiado em seu quarto, que
só se abre de vez em quando para as visitas de Sidónio e, quase nunca, para as de
Munda. No fim, ele está trancado dentro de si mesmo, pois já está morto para a vida. O
quarto é seu caixão. Nesse sentindo, de que valem as verdades e as mentiras quando
não se vive, quando só se mora, como nos diz Bartolomeu?
Se entendemos a solidão, a orfandade de Bartolomeu Sozinho, entendemos
também o próprio Bartolomeu. Isolar-se foi o remédio que ele encontrou para a cura de
seus males, tanto físicos quanto psíquicos. No isolamento de sua mente, não havia en-
ganação, não havia mentira, o que havia eram memórias enlouquecidas. E é para isso
que o prefácio de Mário Quintana nos alerta.

90 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DE BARTOLOMEU

Referências bibliográficas

ALÓS, Anselmo Peres. “O narrador oblíquo de Mia Couto: Venenos de Deus, Remédios
do Diabo”, in: Revista África e Africanidades. Ano 2, n. 8, fev. 2010.

COUTO, Mia. Venenos de Deus, Remédios do Diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

91 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):85-91, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):92-100, 2011

O novo: encanto e desencanto.


A sociabilidade do homem moderno diante do automóvel
______________________________________________________________________

BRUNA ARAÚJO CUNHA


Universidade Federal de Viçosa.
e-mail: bruna.cunha@ufv.br, ou brunah_gomes@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o conto Gaetaninho, do livro
Brás Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado, relacionando-o com o
poema Cota Zero, de Carlos Drummond de Andrade. Sendo assim, será observado o
comportamento do homem diante do “novo”, mais especificamente o automóvel, na
São Paulo moderna que se encontrava em um momento de crescimento industrial com
a chegada dos imigrantes, e com o processo acelerado da urbanização da cidade, na
década de 1920.
Palavras-chave: modernismo brasileiro, industrialização, modernidade, Alcântara Ma-
chado, Carlos Drummond de Andrade.

1. Considerações iniciais

No início do século XX surgia o Movimento Modernista no Brasil, manifestan-


do-se primeiramente na cidade de São Paulo, por meio da Semana da Arte Moderna
em 1922, que aconteceu no Teatro Municipal nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro do referi-
do ano. Essa data representa o marco da ruptura com o clássico, com os movimentos
do século XIX, pois os artistas estavam em busca de uma reconstrução da nacionalidade
brasileira, por uma nova concepção da arte. Para Gilberto Mendonça Telles essa revo-
lução literária se resume em dois aspectos:

Abertura e dinamização dos elementos culturais, incentivando a pesquisa formal, vale


dizer, a linguagem; ampliação do ângulo óptico para os macro e microtemas da reali-
dade nacional, embora essa ampliação se tenha dado mais exatamente na linguagem,
elevando-se o nível coloquial da fala brasileira à categoria de valor literário, fato que
não havia sido possível na poética parnasiano-simbolista, quer pela sua concepção for-
mal, quer pela concepção lingüística da época, impregnada de exagerado vernaculismo
(TELLES, 1987, p. 277).

92 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


BRUNA ARAÚJO CUNHA

Esse movimento provocou uma mudança de mentalidade política e social no


país, principalmente, em São Paulo que foi, em virtude da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), urbanizada e industrializada rapidamente. Com isso, havia na cidade uma
demanda de mão de obra barata e especializada que atraiu muitos imigrantes, como
japoneses e italianos.
Por outro lado, por meio da junção do capital industrial com o capital das la-
vouras
de café surgia uma nova burguesia, proveniente da elite aristocrática, classe social que
deu total incentivo ao Movimento Modernista, pois o sujeito burguês é mais “indepen-
dente”, uma vez que, onde há industrialização, há mais independência.
Em Brás, Bexiga e Barra Funda presenciamos a convivência de tal imigrante (ita-
liano), que é a figura de destaque da obra, com a aristocracia paulista. Alcântara Ma-
chado consegue, por meio dessa realidade, provocar o riso (uma das vertentes do mo-
vimento Modernista da década de vinte) e ao mesmo tempo propõe uma reflexão do
contexto social desse período, pois o autor apresenta ao leitor o fugaz, ou seja, duas
leituras com pontos de vistas distintos: ora distanciamento, ora envolvimento do leitor.
Em um período entre 1886 a 1914, a Europa viveu a chamada Belle Époque. Essa
época ficou marcada pelo grande progresso da ciência e da técnica (automóvel, cine-
matógrafo, máquinas), anunciando os novos tempos: a velocidade e a comodidade tra-
zida pela Era da Máquina. Porém, as duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945)
interromperam esse período eufórico.
Um pouco depois, surge a vanguarda que, de acordo com Gilberto Mendonça
Telles, “é a parte mais radical dos movimentos literários e estéticos; é ao mesmo tempo
uma literatura de choque, ruptura e abertura”. As vanguardas europeias tentaram ex-
pressar as consequências vividas na Era da Máquina. Uma das vanguardas que mais se
destacou foi o Futurismo, fundado na Itália, em 1909, por Fillipo Tommaso Marinetti.
Esse movimento estético exaltava a vida moderna, defendendo uma arte sintonizada
com o culto da máquina e da velocidade.
Na primeira geração modernista (1922-1930), percebemos a influência das van-
guardas artísticas europeias por meio de uma nova concepção de arte que será prolon-
gada na segunda geração modernista (1930-1945). Nesse sentido, será abordado, no
presente trabalho, duas produções literárias da primeira e segunda geração modernis-
tas, o conto “Gaetaninho”, de Brás Bexiga e Barra Funda (Antônio de Alcântara Macha-
do), e o poema “Cota Zero”, de Alguma Poesia (Carlos Drummond de Andrade).
O conto de Alcântara Machado e a poesia de Drummond têm como temática o
automóvel, porém as duas abordagens apresentam um viés distinto ao tratarem de um
assunto futurista, a máquina, que representava o novo, um objeto de luxo e poder.
No Manifesto Futurista, Marinetti afirma que

o mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de


corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de folêgo explosivo…
um automóvel rugindo, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito do que a Vi-
tória de Samotrácia (TELLES, 1987, p. 91).

93 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


O NOVO: ENCANTO E DESENCANTO. A SOCIABILIDADE DO HOMEM MODERNO...

Por essa passagem Marinetti evidencia seu desejo de negar a estética passadista
(utilizando a Vitória de Samotrácia, uma escultura que representa a deusa Atena Niké),
expressando principalmente o culto da velocidade que ganha força com a Revolução
Industrial. Essa revolução substitui muitas atividades manuais e artesanais pelas má-
quinas; sendo também nesse período descoberta a energia a vapor, elétrica, nuclear e
robótica.
Henry Ford foi o primeiro a produzir o automóvel em alta escala, importando
alguns para o Brasil, e em 1919 a Ford tinha iniciado em São Paulo a montagem do
modelo “Ford T”. Durante o período de guerra, os brasileiros improvisaram algumas
peças devido à necessidade do concerto de alguns veículos, e com isso iniciou-se a
construção dos primeiros automóveis nacionais. Dessa forma, o automobilismo trans-
formou-se em culto na cidade de São Paulo.

2. O automóvel: encanto ou desencanto?

Em 1927, foi publicado o livro Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcân-
tara Machado, composto por onze contos que retratam a adaptação do imigrante italia-
no, a urbanização de São Paulo e o comportamento dos personagens modernos da
obra. Nessa narrativa cinematográfica, encontramos o humor dialogando com a preo-
cupação de focalizar o sujeito que ocupa a capital paulista. Ainda de acordo com Al-
fredo Bosi:

Voltado para a vida da sua cidade, Alcântara Machado soube ver e exprimir as altera-
ções que trouxera à realidade urbana em um novo personagem: o imigrante. O enxerto
que o estrangeiro, sobretudo o italiano, significava para o tronco luso-tupi da antiga são
Paulo produzira mudanças de costumes, de reações psicológicas e, naturalmente, uma
fala nova a espelhar novos conteúdos (BOSI, 1994, p. 374).

Nesse sentido, o imigrante é a figura de destaque que ressalta o processo de


adaptação econômica e cultural desse grupo, que por sinal foi um processo repleto de
esforços e dificuldades. Em poucos contos, o imigrante italiano apresenta a ascensão
econômica, enquanto o paulista aristocrata simboliza a falência e a vontade de se reas-
cender socialmente, e para melhor exemplificar essa situação o autor utiliza o automó-
vel como símbolo dessa ascensão, devido ao fato de o veículo ser um objeto de alto
valor aquisitivo, representado o luxo e o poder na sociedade paulista de 1920.
A elite paulistana se orgulhava de ter introduzido o automóvel na sociedade, e
dada a

sua forma de introdução súbita e peculiar na cidade, duplamente aureolado pelo pres-
tígio da mais moderna tecnologia européia e do mais vistoso objeto de consumo conspí-
cuo, o automóvel passou a ser usado de forma a acentuar a sua mística e se impor como

94 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


BRUNA ARAÚJO CUNHA

uma moldura mecânica sofisticada do poder, mesmo na mão de choferes e empregados


de companhias (SEVCENKO, 2000, p. 74).

Esse deslumbramento automobilístico é expresso no conto Gaetaninho, uma vez


que esse retrata a história de um menino, representante dos imigrantes de condição
humilde, que ficava perambulando pela Rua do Oriente admirado com os Fords que ali
passavam. O sonho do garoto, de andar de carro pelas ruas, era de difícil concretiza-
ção, pois as pessoas de classe média e baixa só andavam de bonde e, caso andassem de
carro, era por motivo de enterros ou casamentos. Embora inacessível às pessoas pobres
o fascínio pela vontade de andar em um automóvel era tão intensa que fez Gaetaninho
sonhar com essa possibilidade.

Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.


Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filo-
mena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos.
Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro
branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira
mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas seguran-
do as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os dois irmãos mais velhos (um de
gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas
calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando
o Caetaninho (MACHADO, 2002, p. 21).

Nesse sonho, o personagem realizava a vontade de andar de carro, mas por


intermédio da morte da sua tia Filomena. Mas o desejo de Gaetaninho não é concreti-
zado na vida real, e sua morte é destituída pelo seu sonho, mas que assume um tom
cômico no conto.

Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não
ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um
caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas,
mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que
feria a vista da gente era o Beppino (MACHADO, 2002, p. 23).

95 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


O NOVO: ENCANTO E DESENCANTO. A SOCIABILIDADE DO HOMEM MODERNO...

O final do conto é surpreendente, não só pela rapidez de como se dá a morte de


Gaetaninho, mas também pela troca de valores que o automóvel assume, passando de
objeto admirado (representante do status econômicos) a motivo de dor e tristeza (a
morte), que no conto é abordada com um caráter humorístico por meio de uma cons-
trução irônica presente no diálogo (amassou o bonde). Sendo assim, Antônio de Alcân-
tara Machado consegue criar uma inversão dos sentimentos para provocar o riso dian-
te de um acontecimento trágico, isto é, a morte de um garoto que brincava na rua e foi
atropelado por um objeto representante do culto da velocidade, da vida frenética urba-
na, da máquina. E o que era tragédia passa a ser motivo de riso.
Esse conto descreve o impacto que o automóvel causava no século XX, princi-
palmente em uma metrópole como São Paulo, que era, em meados dos anos 1920, sím-
bolo de progresso e modernização. Para isso, praticamente todo o conto se passa na rua
– espaço público –, cenário de convivência de todos os segmentos da sociedade urbana,
não deixando de ser também um elemento moderno, pois

com cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupa-
cional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida rural no que se refere aos
fundamentos sensoriais da vida psíquica.
A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma
quantidade de consciência diferente do que a vida rural extrai (SIMMEL, 1967, p. 12).

Com o excerto acima, fica nítido que a rua é o espaço próprio da metrópole, isto
é, da modernidade. E para isso ser concretizado, Alcântara Machado utiliza além do
próprio espaço moderno – a rua – alguns recursos como a linguagem cinematográfica,
frases fragmentárias, discurso direto e sintático, elementos da metrópole (automóveis,
transeuntes, máquinas, motor, tumulto) fazendo com que a narrativa tenha um caráter
breve, rápido, para melhor reproduzir o ritmo frenético da realidade urbana.
Carlos Drummond de Andrade presenciou em Belo Horizonte as influências do
modernismo brasileiro, uma vez que o movimento influenciou todo o país, e foi adepto
do espírito renovador dos artistas paulistas, trocando correspondências com Mário de
Andrade e se tornando, por volta de 1930, na segunda geração modernista, o poeta de
maior expressão.
Assim como Antônio de Alcântara Machado retratou a relação do sujeito com o
automóvel, Carlos Drummond de Andrade, em 1930, publicou o livro Algumas Poesias,
composto por quarenta e nove poemas no qual consta o poema “Cota zero”, registran-
do também a convivência da sociedade moderna com esse objeto novo. Outro ponto
em comum entre ambos os autores é a utilização do humor em suas obras, pois
Drummond elabora o poema-piada estabelecendo um vínculo crítico com a realidade,
utilizando alguns mecanismos presente nos contos de Alcântara Machado, como a lin-
guagem coloquial, texto sintético e acontecimentos corriqueiros.
O poema que corrobora com a temática central do conto “Gaetaninho” é o se-
guinte:

96 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


BRUNA ARAÚJO CUNHA

Cota Zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(ANDRADE, 2010, p. 91).

Por meio dessa leitura, que apresenta algumas temáticas propostas pelas van-
guardas europeias, em especial o Futurismo, percebemos claramente a crítica feita à
euforia do progresso e da adesão à máquina. Nessa passagem, há um proveitoso
exemplo da postura antropofágica defendida por Oswald de Andrade, devido ao fato
de o autor colocar o automóvel no mesmo patamar que a escravidão, pois o homem
passa a exercer uma relação de subordinação com o automóvel, ou seja, o apego à tec-
nologia é tão intenso que se por um acaso ela falhar o mundo para, mesmo sabendo da
sua recente invenção, o sujeito moderno torna-se dependente da tecnologia e incapaz
de viver sem os bens matérias.
Cota Zero é um poema reflexivo que nos permite interpretá-lo como um registro
da novidade – a indústria automobilística –, demarcando-a como negativa quando o
poeta nos diz que o automóvel fez a vida ficar paralisada, isso significa que o homem
também para, fica neutro, imobilizado pelas falhas tecnológicas da “Era da Máquina”.
Tanto Antônio de Alcântara Machado quanto Carlos Drummond de Andrade
fazem uma crítica a sociabilidade do homem com o automóvel, através da linguagem
coloquial, do humor e do texto curto. Porém, no poema de Drummond a critica à velo-
cidade e à era tecnológica está mais explícita que no conto de Alcântara Machado, que
não apresenta o veículo com um aspecto tão depreciativo.
Exceto no conto “Gaetaninho”, Alcântara Machado aborda o automóvel nos
demais contos como um encanto, símbolo de poder e riqueza. Para melhor explicar,
temos o conto “A sociedade”, que narra a história de um rapaz, filhos de imigrantes
italianos. O autor utiliza o automóvel para representar a ascensão econômica do jovem.

O Lancia passou como quem não quer nada. Quase parando. A mão enluvada cumpri-
mentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia – Uiiiiia! Adriano Melli calcou o acelerador. Na
primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passeou de novo. Continuou. Mais duzen-
tos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade.
Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia! (MACHADO, 1982, p. 41).

Como podemos perceber, o elemento de destaque no conto é o automóvel (Lan-


cia) de Adriano, que passava na rua da sua namorada para vê-la; com isso, os pais de
Teresa Rita, ao verem o automóvel do imigrante italiano, começavam a rever seus pre-
conceitos. E por meio disso, ou seja, com a conquista de bens materiais representantes
do luxo e poder, os imigrantes que chegavam em São Paulo começavam a conquistar
espaço na sociedade.

97 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


O NOVO: ENCANTO E DESENCANTO. A SOCIABILIDADE DO HOMEM MODERNO...

Dessa forma, Alcântara Machado, no conto “Gaetaninho”, apresenta-nos esse


objeto que causa fascínio, mas com um desfecho desencantador, no sentido de que o
objeto de encanto foi a causa da morte de um garotinho que brincava de bola na rua.
Por isso não podemos considerar que o culto pela velocidade trouxe somente agilidade
para o sujeito que vive na cidade moderna, que precisa de praticidade, uma vez que o
mesmo traz consigo sérios riscos: como o de deixar o homem na mão ou de causar aci-
dentes graves, e até mesmo a morte. Como disse Marshall Berman, isso quer dizer que
o automóvel tem um papel duplo no tráfego da cidade

para aqueles que têm autoconfiança ou confiança de classe, os veículos são fortalezas
protegidas de onde se domina a massa de pedestres; para aqueles que carecem e confi-
anças, os veículos são armadilhas, gaiolas, cujos ocupantes se tornam extremamente
vulneráveis ao relance fatal de qualquer assassino (BERMAN, 2000, p. 247).

Já Carlos Drummond de Andrade problematiza essa questão muito mais do


que Alcântara Machado, pois deixa claro que o automóvel, além de paralisar a vida de
um sujeito somente, pode também paralisar todo o mundo, uma vez que o automóvel
começa a automatizar as relações humanas, limitando a liberdade do homem e reafir-
mando a relação entre capitalistas e consumidores, entre outros aspectos.
Ao utilizar a ironia e provocar o riso, Drummond reflete muito mais sobre os
problemas causados pelos meios de transportes, pois a partir do humor (cota zero),
percebemos a tragédia da desvalorização da vida. Ele nos apresenta também a deman-
da de um novo espírito exigido pelos progressos da tecnologia, pois precisamos apren-
der a conviver com o novo, que vai causar em certos momentos o encanto e, em outros,
o desencanto.
Na contemporaneidade, esse dilema está cada vez mais presente com o avanço
tecnológico. Desde o surgimento da internet estamos observando como o homem pre-
cisa se sociabilizar de maneira correta com as inovações, pois, como foi mencionado
anteriormente, ela pode nos trazer momento de encanto (no caso da internet podemos
citar a facilidade da correspondência entre pessoas de diferentes países, a comodidade,
a praticidade ...), mas por outro lado há também os desencantos, como o roubo de se-
nhas, os conteúdos inadequados que são acessados por pessoas inapropriadas, os cri-
mes cometido por intermédio de redes de comunicação, entre outros.

3. Considerações finais

O Modernismo destaca-se pela civilização industrial, dando destaque a tudo o


que está relacionado à velocidade, como a máquina e a metrópole; principalmente a
primeira geração modernista (1922-1928) que priorizava a velocidade futurística. Já a
segunda geração (1928-1945) desvalorizava alguns aspectos da primeira, destacando os
valores sociais do país.

98 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


BRUNA ARAÚJO CUNHA

É por isso também que na análise que foi feita posteriormente percebemos que
o primeiro autor mencionado, Alcântara Machado, identifica-se mais com o Futurismo,
ou seja, com o culto pela velocidade, demonstrando muito mais os ganhos que a socie-
dade obteve com o surgimento do automóvel, do que os prejuízos. Já Carlos Drum-
mond de Andrade faz o contrário, isto é, apresenta de forma explícita os problemas
que o automóvel gerou na sociedade: as limitações que a máquina nos impõe.
Retomando o Futurismo, Marinetti reafirmou a mais valia da Revolução Indus-
trial e apenas os benefícios da velocidade, mas deveria mesmo repensar sobre o que
disse a respeito do mito de Atena, pois ela é, antes de mais nada, a “deusa da inteligên-
cia, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside as artes, a
literatura, a música e toda e qualquer atividade do espírito” (BRANDÃO, 1997, p. 39). E
nada melhor para reafirmar esse excerto do que as palavras sábias do grande estudioso
Mário de Andrade, que declarou brilhantemente que Atena é cintilância, mas oposta à
cintilância ilusória do automóvel de Marinetti.
Com outras palavras, Alcântara Machado e principalmente Drummond nos
dizem, em suas obras, que o espírito crítico vai além da vanguarda, ou seja, a obra de
cada um deles problematiza o presente sem desprezar o passado, pois o que hoje é
considerado novo, encantador, amanhã será velho; mas não podemos deixar de lem-
brar que esse objeto “velho” foi fonte de inspiração para a criação do “novo”.
Nesse sentido, é possível afirmar que as antigas bicicletas deram origem aos
veículos mais modernos, o automóvel que foi considerado como novo e deslumbrante
na década de 1920, hoje já faz parte da grande população, mesmo quem não o possui
pode utilizá-lo como a prática mais comum no nosso dia a dia.
Logo, podemos concluir dizendo que os autores Alcântara e Drummond abor-
daram a sociabilidade do homem moderno com o automóvel por um viés diferente,
mas deixando claros os encantos e desencantos que ele pode gerar na sociedade con-
temporânea. Pois como disse Roland Barthes, no poema de Drummond, Cota zero: “a
redução da literatura a um código (falando grosso modo), não elimina o problema his-
tórico, mas, obviamente, obriga a pensar a história de maneira nova” (BARTHES, 2005, p.
96).

4. Referências Bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Rio de Janeiro: Record, 2010.

BARTHES, Roland. Inéditos. Vol. 4: Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.


Trad. Caros Felipe Moisés, Ana Maria Iovialti e Marcelo Macca. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

99 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


O NOVO: ENCANTO E DESENCANTO. A SOCIABILIDADE DO HOMEM MODERNO...

BOSI, Alfredo. Histórica concisa da literatura brasileira. 34 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

MACHADO, Antônio Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. São Paulo: Martin Claret,
2002.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos fre-
mentes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SIMMEL, Georg. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro: apresentação e


crítica dos principais manifestos vanguardistas. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1987.

100 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):92-100, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):101-115, 2011

Retratos de São Paulo pelo meio teatral


_____________________________________________

GABRIELA ÜBER
Aluna de Estudos Literários na Unicamp. e-mail: gabrielauber@hotmail.com
Orientadora: Larissa de Oliveira Neves Catalão.

Resumo: Este ensaio visa à comparação das obras de dois dramaturgos cujas peças fo-
ram escritas na mesma cidade, São Paulo, e aproximadamente na mesma época: Jorge
Andrade e Abílio Pereira de Almeida. As peças enfocadas são A moratória, Os ossos do
barão e O terceiro elo, do primeiro; Paiol velho e Santa Marta Fabril S. A., do segundo.
Os dois autores pertencem à elite paulista e trabalham com a ideia de “paulista de 400
anos”, isto é, com as famílias aristocráticas que fundaram a cidade de São Paulo. Em
suas peças, os dois abordam temas como a decadência da aristocracia rural paulista e
a ascensão da burguesia; a presença do imigrante no meio social paulista e o precon-
ceito perante ele; a importância da família, do nome; dentre outros pontos semelhan-
tes. Ambas as obras sustentam-se em experiências vivenciadas pelos dramaturgos
dentro de seu meio social e físico.
Palavras-chave: dramaturgia brasileira; São Paulo; teatro e história

Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida e seu espaço no TBC

A empresa Teatro Brasileiro de Comédia, criada em São Paulo, em 1948 (estrea-


da com o monólogo francês A voz humana, de Jean Cocteau e com a peça A mulher do
próximo, de Abílio Pereira de Almeida), foi uma das companhias teatrais mais impor-
tantes para o estabelecimento e a consolidação de um teatro moderno no Brasil. O TBC
foi importante na história do teatro do estado de São Paulo por colocar em cena textos
de qualidade juntamente com boas montagens e interpretações. As funções e encargos
do TBC eram divididos, e cada detalhe era considerado e analisado. De fato, os cená-
rios e os figurinos eram deveras realistas e de acordo com a época na qual cada peça se
passava. Também a companhia buscava contratar os melhores especialistas, estando
repleta de participações de estrangeiros experientes no meio teatral. Juntando esses
fatores, percebe-se que o custo da encenação de uma peça não poderia ser baixo; por-
tanto, o teatro paulista modernizava-se, mas era acessível apenas à alta camada da so-
ciedade e aos próprios artistas. Além disso, outra crítica rotineira e concreta ao TBC
consistia na grande quantia de peças estrangeiras encenadas, em contraste com o redu-

101 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

zido número de autores brasileiros. Dentre os dramaturgos brasileiros, Abílio Pereira


de Almeida teve maior número de peças encenadas pelo TBC (Pif-paf, A mulher do pró-
ximo, Paiol velho, Santa Marta Fabril S.A. e Rua São Luiz, 8.º andar), logo seguido de Jorge
Andrade, com uma peça a menos (A escada, Os ossos do barão, Pedreira das almas e Vereda
de salvação).
Um dos motivos que possibilitaram a ambos o elevado número de encenações
pelo TBC e que os destacaram dentre os outros autores nacionais, permitindo-os com-
petir lado a lado – em questão de público – com peças estrangeiras canônicas, foi a uti-
lização de uma temática com a qual o público se identificava, por meio do retrato da
sociedade paulista da época ou de lembranças de um passado importante e comum a
todos eles, autores e espectadores: “[...] a incorporação formal do realismo psicológico
e da temática ‘famílias rurais em decadência’ no conteúdo está, nos anos 50, pulsando
no meio teatral paulista e atende, ainda, a uma necessidade de consumo de segmentos
da população” (ARANTES, 2001, p. 68).
Todas as peças de Abílio encenadas no TBC conquistaram elevado sucesso de
público e permaneceram por muito tempo em cartaz, mesmo que algumas tenham
causado polêmica e sido alvo de críticas severas nos jornais (críticas de dois cunhos:
algumas negativas com relação à qualidade das peças, reclamando de seu teor sensaci-
onalista e mercenário; outras sem base argumentativa, apenas atacando o autor devido
ao conteúdo exposto por ele e julgado de esquerda por uns, de direita por outros). Já
dentre as peças de Jorge Andrade, houve o contraste entre os sucessos de público de Os
ossos do barão e A escada, e o fracasso de Vereda de salvação, peça que contribuiu para a
falência da companhia, tendo sido a última a ser representada, em 1964. Esta última,
considerada pela crítica uma das melhores peças de Jorge Andrade, foi um fracasso de
público; enquanto isso, A escada, tida como uma de suas peças mais fracas, com pouco
aprofundamento dos personagens e simplificações em vários quesitos, conquistou um
grande sucesso. Aliado a essa contradição temos o problema central da obra de Abílio:
autor muito criticado, mas que sempre agradou o público. Como o autor mesmo diz:

[...] em geral, os críticos malhavam todas as minhas peças. Então eu achava que, como
as minhas peças faziam mesmo muito sucesso, modéstia à parte, e os críticos eram im-
piedosos, a opinião da crítica, em matéria de teatro, estava dissociada do gosto do pú-
blico. Mas como eu estava fazendo sucesso, pouco ligava para a crítica, quer dizer, a crí-
tica é que estava dissociada, azar o dela, não é? (ALMEIDA, 1981, p. 17).

As peças de Abílio, escritas em diálogos simples e trabalhadas sobre temas po-


lêmicos, agradam ao público. As personagens, inspiradas em figuras da sociedade,
muitas vezes eram reconhecidas pelos espectadores. A experiência do autor com o tea-
tro é inteiramente atrelada ao lado prático, à sua experiência como ator e diretor, e ao
seu contato direto com o mundo do espetáculo. Ele não tem formação específica ligada
ao teatro (é formado em direito e trabalha como advogado por longo tempo, até conse-
guir sustentar a si e à família unicamente com o teatro). O próprio autor declara não
estudar teatro e suas teorias. Para ele, o teatro é um mecanismo de lazer, que deve obje-

102 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

tivar a diversão do público. Almejando apresentar os problemas, sem propor soluções,


Abílio vê o teatro como uma forma de mostrar algumas mesquinharias da sociedade,
por meio de algo mais próximo a um painel da realidade que a uma crítica social. Utili-
za o teatro como “um tapa na cara” da alta sociedade, por meio da ironia dos persona-
gens e suas atitudes caricaturais, mas esse retrato não seria aprofundado o bastante
para consistir uma crítica. Tanto que o comportamento social apresentado na obra do
autor representa sua própria postura na vida real: como se pode ler em depoimentos
dele e de seus amigos, Abílio era frequentador assíduo das mesas de pif-paf e muitas
vezes perdeu bens nas mesas de jogo. Ou seja, ele pertencia à sociedade que retratava
em suas peças e se comportava de modo semelhante aos seus personagens.

O trânsito evocado pelas diferentes esferas de sociabilidade, fundamental para a concre-


tização do Teatro Brasileiro de Comédia, é imprescindível para a análise da dramatur-
gia de Abílio Pereira de Almeida, pois esta circulação por diferentes espaços sociais
permite considerar a sua obra não somente como um relato fiel da realidade ou, pura-
mente, fruto das suas reflexões, mas como resultados das experiências do autor, enca-
rado aqui como advogado, ator amador, amigo dos ‘grã-finos’, frequentador das mesas
de jogo dos clubes paulistas e da livraria Jaraguá, ou seja, um indivíduo que circula por
determinados ambientes e compartilha com outros um imaginário acerca da cidade.
Como dramaturgo, Abílio tem a possibilidade de criar este imaginário a partir de suas
experiências reais e compartilhá-lo com o público, ao inseri-lo em suas obras e torná-las
visíveis no palco (ROSSETTO, 2009, p. 51).

Diferente de Abílio Pereira de Almeida, as preocupações de Jorge Andrade es-


tavam mais atreladas ao parecer da crítica e ao seu crescimento enquanto intelectual.
Formou-se na Escola de Arte Dramática e manteve constante diálogo com grandes crí-
ticos como Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, além de outras personalidades,
brasileiras e estrangeiras, importantes no meio teatral. Conheceu e estudou os grandes
autores mundiais, enumerando Tchekhov, Arthur Miller, Tennesse Wiliams e Ibsen
como seus preferidos. Suas peças, segundo diversos críticos, atingem um âmbito uni-
versal, ao tratar de problemas individuais e questões existenciais, sendo comparadas a
diversas obras da dramaturgia universal.

A Moratória e Santa Marta Fabril S.A.

No ano de 1955, Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida tiveram suas peças
mais conhecidas encenadas concomitantemente: A moratória, no Teatro Maria Della
Costa, e Santa Marta Fabril S.A., no TBC. Porém, enquanto esta obteve enorme bilhete-
ria e permaneceu muito tempo em cartaz, a primeira, embora bastante elogiada pela
crítica, foi um fracasso de público e causou um desfalque financeiro na companhia Ma-
ria Della Costa. Como comenta o próprio Abílio, “A Moratória, com todo o elogio da

103 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

crítica, com toda a sabedoria e com todos os conhecimentos de Jorge Andrade, quebrou
a Maria Della Costa e ela foi ser empregada do TBC” (ALMEIDA, 1981, p. 17).
Essas duas peças costumam ser a referência comparativa da obra dos dois auto-
res pelos críticos e pesquisadores, que apontam semelhanças entre eles; poucos são os
que aprofundam as semelhanças mencionando outras obras, principalmente em se tra-
tando da obra de Abílio: dentre mais de vinte peças escritas por ele, apenas uma fora
publicada até 2009, o que tornou difícil o acesso a elas. Por consequência o autor atu-
almente é pouco lembrado, mesmo no meio acadêmico e teatral. Gilda de Mello e Sou-
za comenta brevemente a semelhança dessas peças:

[...] uma e outra peça são construídas a partir do mesmo esquema, um grave golpe eco-
nômico que põe em choque uma família, determinando e esclarecendo daí em diante o
comportamento das personagens. Assistimos em ambas o esforço desesperado de so-
brevivência de dois grupos, o ajuste de contas entre marido e mulher, pais e filhos, soci-
edade e seus membros (MELLO E SOUZA, 1980, p. 112).

Santa Marta Fabril S.A. tem sua trama centrada em uma família que concentra a
maioria das ações de uma fábrica e que vive em um meio de luxo e conforto graças aos
lucros dela. À matrona da família, dona Marta, atribui-se o nome da empresa e o início
do monopólio familiar. Ela é a personagem mais sincera, ao dizer claramente que faz
todo o necessário em função do bem-estar da fábrica, e almeja que seus filhos e genros
façam o mesmo.

DONA MARTA: [...] Ela é de nossa família. É a nossa própria família. [...] É alguma coisa
mais que uma fábrica. É nosso patrimônio, nosso sangue. [...] A Santa Marta é o traço de
união da família. Aqui se briga por qualquer coisa. [...] Mas todos se unem em torno da
Santa Marta (ALMEIDA, s.d., p. 11).

Sua filha Júlia também se sacrifica em função da fábrica, ao manter um casa-


mento fracassado unicamente para que a família não divida a maioria das ações, en-
quanto ela tem um amante e seu marido sempre está ausente. Quando sua filha desco-
bre a respeito do amante e questiona a razão de ela não se separar de seu pai, Júlia res-
ponde:

JÚLIA: [...] Não nos separamos, não foi por sua causa não, que tinha a sua avó para ficar
com você. [...] Não nos separamos... parece ridículo... mas é a pura verdade... Não nos
separamos por causa da Santa Marta Fabril Sociedade Anônima. Para não dividir as
ações. Para não perder a maioria. É isso mesmo. É a pura verdade. O traço de união da
família. Eu e seu pai... toda a família... só entramos em acordo quando se trata da Santa
Marta. Só. O resto é briga, incompreensão... tudo (idem, p. 31)

104 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

Sua filha Marta a princípio parece gostar de seu noivo, aprovado por toda a fa-
mília por ser acionista da fábrica e também seu administrador, mas tem sérias dúvidas
sobre a felicidade do futuro casamento. Logo ela compreende a responsabilidade que
também lhe cabe, de manter a posse da fábrica, e percebe que seu casamento consiste
numa obrigação, e não representa uma opção de acordo com sua preferência. Mais tar-
de, após ter tido amantes e saber que seu marido já se relacionara com várias de suas
amigas, ela desabafa para um amigo, de forma reflexiva e mais para si mesma:

MARTA: [...] Não fiz ilusão com o meu casamento. Gostava do Cláudio, mas nunca esti-
ve apaixonada por ele. Encarei o problema como uma princesa a quem compete defen-
der a dinastia. [...] Com a vovó foi assim, com mamãe também. Chegara a minha vez
(idem, p. 31).

No entanto, ela consegue rebelar-se contra essa “dinastia”, ao educar sua filha
Martuxa com outros valores para evitar que ela também participe dessa prisão da con-
veniência social. Resultado: no último ato nos deparamos com uma Martuxa estudante
de Sociologia, amiga de imigrantes e que condena a desigualdade social. Marta não
tivera coragem de largar a conveniência, mas pode ao final da peça se orgulhar de que
sua filha o fizera, em meio à condenação da família.

CLÁUDIO: [...] Deixou a menina correr à sorte, à lei da natureza. Hoje ela é completa-
mente diferente de nós. Até o oposto.
[...]
JÚLIA: [...] Essa menina está muito mal orientada. Desculpe, Marta. Mas sempre foi essa
a minha opinião. É uma menina rebelde. Indiferente ao nosso modo de viver, alheia às
nossas coisas (idem, p. 85).

Portanto, Santa Marta Fabril S.A. é uma peça que retrata um mundo de conveni-
ências sociais dentro da alta aristocracia paulista e questiona até que ponto poderiam
chegar os seus membros para não perder dinheiro e status. Além disso, apresenta con-
flitos entre gerações, marcados pela diferença de pensamento de Martuxa e Cláudio,
seu pai. Por meio dos diálogos nota-se também o preconceito dos “quatrocentões” fren-
te aos imigrantes paulistas – a família condena a amizade que Martuxa mantém com
um colega que é filho de imigrantes – e à ascensão de alguns deles – imigrantes enri-
quecidos que então são mais bem quistos pela sociedade, mas ainda assim com certas
reservas.
Outro tema presente em Santa Marta Fabril S.A. e que causou alvoroço entre a
plateia da época foi a questão da revolução de 32. O segundo ato começa com o hino da
revolução e a família falando dos feitos heroicos realizados por Cláudio e Tonico. Po-
rém, o atrito surge quando Cláudio diz que jantará com um velho amigo gaúcho, alia-
do ao Governo. A princípio toda a família se opõe, inflando os pulmões com o orgulho

105 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

paulista; todavia, quando descobrem que esse amigo será a salvação da falência da
fábrica, por meio de empréstimos altos com baixos juros, todos acabam concordando
com a ideia, preferindo manter o luxo à posição política.

CLÓVIS: [...] acho essa fórmula “São Paulo não esquece, não perdoa e não transige” mui-
to bonita, digna de um poema, mas muito pouco prática. Se temos indústria, comércio e
lavoura, se precisamos de dinheiro, de exportação, de leis, onde está tudo isso? No Ban-
co do Brasil, na Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro, com eles. Nós temos mes-
mo é que perdoar, esquecer e transigir. Trata-se de uma questão de sobrevivência. O
resto é poesia (idem, p. 46).

Em diversos jornais da época houve críticas ofensivas, com o intuito de atacar


diretamente Abílio Pereira de Almeida, por este ter ridicularizado os paulistas de qua-
trocentos anos, das famílias tradicionais, retratando de modo cômico figuras importan-
tes da revolução. Porém, segundo o autor, a crítica o compreendera erroneamente, pois
ele também participara da Revolução de 1932 e com essa peça desejava desabafar e
retratar a hipocrisia daqueles que não mantinham sua postura política, dentre os quais
se enquadrava a maior parte da alta sociedade.
A respeito da revolução de 1932, percebe-se que os fatores motivadores para a
classe alta paulista abraçar a causa revolucionária baseavam-se em interesses individu-
ais, que na maioria dos casos seriam contrários ao bem do país. Portanto, não obtive-
ram muito apoio popular e a revolução elitista logo sucumbiu, com os paulistas deci-
dindo apoiar o governo para não perder seus privilégios:

Os chefes da revolução paulista de 9 de julho de 1932 expressaram seus motivos de


queixa em termos que eram sobretudo políticos e nacionalistas. Insistiam em que bus-
cavam compelir Vargas a reconhecer as metas liberais da revolução de 1930: governo
constitucional e autonomia local. As justificações que apresentavam para a revolta, po-
rém, tendem a mostrar que os paulistas desejavam a restauração de sua autonomia
principalmente em razão do controle que assim recobrariam da economia do Estado.
Embora o programa das compras de café de Vargas houvesse salvo os fazendeiros da
ruína, quase todas as suas medidas econômicas subsequentes lhes desagradaram pro-
fundamente. Os impostos decretados com o propósito de equilibrar o orçamento do pa-
ís afiguravam-se-lhes uma espécie de confisco. Era manifesto para os fazendeiros pau-
listas que o governo federal seria capaz de fazer novas exigências aos seus rendimentos
(WARREN, s.d., p. 205).

A respeito da citada temática “ruína de cafeicultores”, retomemos A moratória, a


peça de Jorge Andrade muito comparada com Santa Marta Fabril S.A. Ela se passa em
dois tempos, um quadro na época da crise de 1929, e o outro alguns anos depois –
mesma época do segundo ato da peça do Abílio. Porém, enquanto Abílio ambientou
sua peça na cidade grande, A moratória se situa em um quadro numa fazenda e, no ou-
tro, em uma casa numa cidadezinha interiorana, próxima da antiga fazenda. Os dois

106 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

quadros se misturam e a ação se constrói de maneira a formar uma tensão crescente


entre os personagens, até o clímax final dos dois tempos serem apresentados concomi-
tantemente.
Resumindo a ação de modo linear: Joaquim, sua esposa Helena e seus filhos
Lucília e Marcelo moravam em uma fazenda na qual o pai acordava todos os dias cedo
e passava o dia trabalhando nos cuidados da terra, enquanto os outros três usufruíam
da prosperidade financeira. Marcelo passava os dias a perambular pela cidade, gastan-
do a mesada que sua mãe lhe dava, e Lucília fazia um curso de costura por diversão,
não por necessidade. Devido ao crescente endividamento e à situação econômica do
país, a fazenda vai à falência e eles precisam se mudar para uma pequena casa na cida-
de. Todos se transformam com a repentina e radical mudança: o pai não consegue se
adaptar à vida urbana, envelhece muito em pouco tempo, passando os dias a sonhar
com a volta à fazenda, tendo esperanças sinceras de que isso ainda é possível; a mãe
reza todos os dias na igreja e tenta por todos os meios manter a esperança do seu mari-
do, além de apaziguar os conflitos familiares; Marcelo, fraco e despreparado, passa a
beber, e critica o pai por este não os ter educado para uma vida de trabalho, sem con-
seguir encontrar um emprego que o satisfaça e no qual não se sinta humilhado; e Lucí-
lia, a única que encara a situação de forma realista e prática, costura para sustentar a
família. Agora é ela quem dá mesada ao irmão, que não consegue parar num emprego,
e dinheiro ao pai, para comprar jornal e remédios. De mocinha alegre e coquete para
uma pessoa dura e introvertida, cancelando seu noivado para se manter ligada à famí-
lia e suportar o que ela mesma chama de “fardo”. A peça termina com a certeza de que
não será possível recuperar a fazenda, e Joaquim, sabendo disso, perde a única coisa
que lhe restava: a esperança.

Esses mundos (pré e pós-moratória), que são bem captados pelos registros temporais,
servem como questionamento de uma história de vida que teria sido modificada sem
nenhum preparo. Os fazendeiros, crentes em suas posições de aristocratas, não teriam
se preparado para uma possível queda. Desse modo, suas vidas perderiam muito do
sentido adquirido até então, fazendo com que eles optassem pela ilusão ao invés de um
enfrentamento consciente da decadência que se aproximava (NAZÁRIO, 1997, p. 76).

O conflito de gerações está muito presente nessa peça, principalmente pelas


brigas de Joaquim com Marcelo, nas quais este acusa aquele de não o ter educado para
viver na cidade e aquele critica Marcelo por dormir até tarde, beber, e não se esforçar
para arranjar um trabalho.

Marcelo: reconheço, sou um fraco. Não assumi a responsabilidade. E o senhor? O se-


nhor que só pensa na sua fazenda, no seu processo, nos seus direitos, no seu nome. En-
quanto pensa em si mesmo, na sua honra, não pode sentir o que sinto. O senhor não sai
à rua para saber o que os outros pensam de nós. O senhor finge não perceber que não
fazemos mais parte de nada, que o nosso mundo está irremediavelmente destruído. [...]

107 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

O mundo, as pessoas, tudo! Tudo agora é diferente! Tudo mudou. Só nós é que não. Es-
tamos apenas morrendo lentamente (ANDRADE, 1986, pp. 160-161).

Nota-se que Santa Marta e A moratória apresentam mais de um ponto em co-


mum, não apenas uma crise financeira que move toda uma família, mas também a im-
portância da honra, do nome, o conflito de gerações e a perda da ilusão por alguns per-
sonagens. Em um artigo do jornal Tribuna Popular, da época da encenação dessas peças,
Alberto Rovai se detém na comparação direta delas e consegue, em um curto espaço
destinado a um artigo de jornal, enumerar diversas semelhanças, sem deixar de expor
sua própria opinião a respeito da obra dos autores. Por seu mérito e importância, cito
grande parte dele:

Se Santa Marta nos mostra a indignidade moral na sobrevivência econômica, A Morató-


ria, de Jorge Andrade, mostra o naufrágio econômico com dignidade moral. No fundo,
tanto Jorge quanto Abílio examinam o problema da decadência. Mas são dois aspectos
da decadência que mal se tocam: de um lado a decadência material que pode ser limpa,
que é limpa na peça de Jorge; do outro a decadência suja, tornada ainda mais repugnan-
te pela prosperidade material correspondente. Jorge Andrade vê o lado decente da des-
graça; Abílio vê o lado sórdido do bem-estar. Jorge ama, admira suas personagens; Abí-
lio não pode deixar de desprezar as suas. Jorge não tem faro crítico, aponta quando
muito os defeitos de certas qualidades. É um temperamento apaixonado e puro, um
otimista quanto à natureza humana, acredita em “fibra”, “tenacidade”, “fé”, muito em-
bora sua peça acabe mal. Se as obras de Abílio são amargas e sem ilusões sob o revesti-
mento superficial da comédia, as de Jorge Andrade são verdadeiros hinos de confiança
na tempestade da tragédia (ROVAI, in SIQUEIRA, 2002, p. 320).

O crítico enfatiza que enquanto a peça de Jorge Andrade é construída e susten-


tada em personagens que cativam o espectador, as de Abílio Pereira de Almeida cau-
sam uma identificação negativa, de forma que o público almeje ser diferente dos per-
sonagens e criticá-los.

Principais semelhanças temáticas de algumas peças de Jorge e Abílio

Apesar de A moratória e Santa Marta Fabril S.A. serem comumente as peças mais
comparadas dos autores, há outras duas que apresentam ainda mais semelhanças com
elas do que as duas entre si. Refiro-me a O terceiro elo, semelhante a Santa Marta, e ao
Paiol velho, semelhante a A moratória.
Como base para comparação de A moratória com Paiol Velho, de Abílio Pereira
de Almeida, vejamos as seguintes falas:

108 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

JOAQUIM: meus direitos sobre essas terras não dependem de dívidas. Nasci e fui criado
aqui. Aqui nasceram meus filhos. Aqui viveram e morreram meus pais. Isto é mais do
que uma simples propriedade. É meu sangue! Não podem me fazer isso! (ANDRADE,
1986, p. 166).

TONICO: (...) No papel ela não é minha. Mas de justiça é. Meu pai tomou conta dela du-
rante 30 anos. Eu nasci aqui. Trabalho aqui. Vou morrer nesta terra. Ela é minha de co-
ração... E vai ser minha, no duro, com tabelião e tudo... (ALMEIDA, s.d., p. 4).

A primeira fala pertence à peça A Moratória e o contexto já foi citado anterior-


mente, sendo Joaquim pertencente à aristocracia rural em decadência. Já Tonico, per-
sonagem principal de Paiol Velho, é filho de imigrante e considera seu direito a posse da
fazenda, por ter cuidado dela durante muitos anos, enquanto os verdadeiros donos
apenas se aproveitavam dos lucros em vida luxuosa na cidade. Percebe-se que ambos
julgam ter direito à fazenda apesar de serem de classes sociais opostas, utilizando o
mesmo argumento de intimidade com a terra; porém, Abílio nos mostra o ponto de
vista do zelador, pouco pensado pela classe alta, que busca não só uma ascensão finan-
ceira, mas também social.
Em Paiol Velho também aparece a figura dos nobres detentores das terras, porém
aqui eles não são como Joaquim, que passou a vida inteira na fazenda, levantando-se
com o nascer do sol para cuidar da plantação, mas citadinos que se preocupam unica-
mente com os lucros advindos da fazenda e que nunca sequer a visitaram. Tonico con-
sidera correto roubar na receita ao repassar o dinheiro a seus patrões e economiza o
valor roubado para um dia comprar a fazenda para si, atitude condenada por sua mu-
lher:

TONICO: Roubado mesmo. Mas roubando do que é meu. Quem não trabalha não ganha.
Isso é que é direito. A terra só devolve; quem não dá não recebe.
LINA: [...] dinheiro roubado não dá sorte.
TONICO: O meu não é roubado. Roubado é o deles, que sempre viveram à custa do tra-
balho dos outros. Meu pai morreu pobre, sem um tostão. Tive que largar os estudos e
vir pegar no pesado para poder comer. Enquanto isso eles gastavam na Europa (AL-
MEIDA, s.d, p. 5).

Somente quando desconfiam que são roubados por Tonico é que os donos re-
solvem visitar a fazenda e tomar o controle: Mariana convence seu filho João Carlos a
permanecer na fazenda e aprender a administrá-la para extrair o maior lucro possível,
mas, sem os conhecimentos práticos das questões campestres e de agricultura, além de
diferentes hábitos rotineiros da vida no campo, logo o moço da cidade sucumbe e se
entrega às jogatinas da cidadezinha, deixando novamente a fazenda aos cuidados de
Tonico e se afundando em dívidas. Ao final, Tonico consegue o que almejava, a fazen-
da, por meio de um contrato que João Carlos assinara, para pagar dívidas. Todavia, ele
morre no momento da comemoração da posse com seus compadres. Descobre-se tam-

109 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

bém no final da peça que sua esposa, Lina, está grávida de João Carlos. Esta persona-
gem Lina faz com que a peça acabe com enorme sentimento de desolação, quando se
percebe que mesmo a esposa de Tonico não estava a seu lado e era fascinada pelos aris-
tocratas, relacionando-se com João Carlos, depois de já ter sido também amante deste.
E seu pensamento final:

JOÃO CARLOS: Adeus, Lina. Agora o Paiol Velho é seu. Ninguém o tirará de você. [...] Se
for homem... ensine-o a amar esta terra... Vale a pena... a mim nunca ensinaram... (e sai)
[...]
LINA: Paiol Velho... Não... não é meu... ela disse que sempre pertenceu à família deles.
(Olhando e pondo a mão no ventre) E vai continuar na família deles... (ALMEIDA, s.d, p.
48).

Percebemos então em ambas as peças a importância do ambiente rural, o pano


de fundo histórico da crise cafeeira, a questão da importância do nome para os paulis-
tas de 400 anos e o orgulho destes que prevalece em relação à preocupação com a terra
em si, além do conflito de gerações. Vale ressaltar também que a peça de Abílio foi re-
presentada quatro anos antes da de Jorge, tendo sido Abílio, então, pioneiro ao tratar
deste tema, mas apenas o segundo, inovando no meio teatral em aspectos cênicos, com
a utilização de dois quadros simultâneos e cruzamento de diálogos. Paiol velho destaca-
se da maioria das peças de Abílio por ser muito diferente do estilo que o marca, de co-
médias que retratam a aristocracia paulista urbana, satirizando-a. Ao contrário, esta
peça se passa no ambiente rural e retrata com maior ênfase a classe baixa. Seguem-se as
relações de Paiol velho com as peças de Jorge Andrade, enumeradas pelo pesquisador
Fester:

[...] a peça está próxima mesmo é das obras de Jorge Andrade: A Moratória, O Telescópio
e Os Ossos do Barão. Da última, pela síntese entre patrão e empregado, através do casa-
mento ou da união sexual. Das duas primeiras, pela propriedade perdida ou desmem-
brada, respectivamente. Marcelo (A Moratória) e Sebastião (O Telescópio) primam pela
inaptidão para o trabalho, como João Carlos em Paiol Velho. E em todas a mulher apare-
ce como elemento forte (FESTER, 1985, p. 226).

Assim como Paiol velho diferencia-se do estilo que caracteriza boa parte da obra
de Abílio, O terceiro elo é uma peça de Jorge Andrade diferenciada de todas as suas pe-
ças compiladas em A Marta, a árvore e o relógio. Há unanimidade da crítica teatral em
afirmar que as dez peças componentes deste ciclo são as melhores do autor, enquanto
as outras são consideradas mais fracas e pobres temática e formalmente. Enquanto no
ciclo, Jorge preocupa-se com a história e a memória, utilizando-se de metalinguagem e
intertextualidade, além de diversos símbolos num teatro de linguagem literária, bei-
rando ao poético, nas outras peças sua linguagem é mais direta, aliada a temas con-
temporâneos e presentes diretamente na realidade do Brasil da época do autor. Ele

110 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

para de olhar para o passado para se ater aos problemas políticos e sociais de sua épo-
ca.
O terceiro elo é uma peça escrita já na década de 80 e consiste na última parte de
uma peça de coautoria intitulada A corrente, na qual cada elo fora escrito por um autor
com o objetivo de retratar três elos sociais: a classe baixa no primeiro ato (escrito por
Consuelo de Castro), a classe média no segundo (escrito por Lauro César Muniz) e a
classe alta no terceiro (de Jorge Andrade), cada um com sua trama independente. Jorge
Andrade fora então encarregado de retratar a classe alta, e o faz por meio de um casal
em um ato de cenário único – o quarto de dormir. A cena consiste no diálogo entre ma-
rido e mulher, enquanto esta se arruma para encontrar outro homem. Toda a peça se
passa durante esta preparação, com a mulher querendo que o marido a impeça de sair,
enquanto este se remói por dentro, mas não o suficiente para interrompê-la. O encontro
dela será com um milionário, que, em troca, salvará a fábrica dele da falência. Por mais
que a ame, o marido, no momento da decisão, prefere manter a posição social à digni-
dade moral. A grande questão desta peça volta-se para a dualidade da moral e da posi-
ção social, a questão do nome e até onde se pode ir para mantê-lo.
Severo, o marido, orgulha-se do nome de sua família:

SEVERO: (sorri amoroso) Milhares e milhares de prédios onde estão milhões de toneladas
de ferro saídas da minha metalúrgica. (Cheio de si) Meu avô, meu pai e eu... ajudamos a
erguer esta cidade. A mais poderosa da América Latina. Foi erguida com ferro e aço que
moldamos (ANDRADE, s.d., p. 8).

Mariana o questiona sobre aspectos morais e éticos, tenta persuadi-lo de que há


coisas mais importantes que a fábrica e a posição social, mas Jorge Andrade nos mostra
um personagem obstinado e não disposto a ceder perante nada:

MARIANA: [...] qualquer preço deve ser pago pela metalúrgica, não é mesmo?
SEVERO: Não concebo a vida sem minha metalúrgica. É a própria história da minha fa-
mília. História que começou com um pequeno forno no quintal do meu avô. [...]
MARIANA: (amarga) forno que se transformou na poderosa Metal Brasil S.A.!
SEVERO: A mais poderosa de todas.
MARIANA: (irônica) De todas as nacionais, não é?
SEVERO: Claro, Mariana. As estrangeiras são mais poderosas (idem, p. 8).

Aqui aparece um problema comum para os brasileiros detentores de fábricas da


época: o surgimento das indústrias estrangeiras, causando enorme prejuízo para as
empresas nacionais, mesmo para as sociedades anônimas. Com maior verba e barate-
amento de produção devido à matéria-prima vinda do exterior, as empresas estrangei-
ras produziam produtos de preços mais acessíveis e de melhor qualidade, sem que o
governo tomasse alguma medida de proteção às empresas nacionais – o que ocasionou

111 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

a falência de muitas delas. Na trama criada por Jorge Andrade, é justamente o dono de
uma empresa estrangeira que irá conceder um empréstimo para salvar a fábrica de
Severo em troca de uma noite com a sua mulher. Mariana sente-se indignada por seu
marido manter a fábrica acima de tudo, mas não se nega a realizar a tarefa, pois o que
desejava era que seu marido a impedisse, sentindo-se desolada com a falta de atitude
deste com relação ao encontro vindouro.

MARIANA: [...] fale alguma coisa, me proíba de sair! (...)


SEVERO: (O silêncio de Severo é uma resposta terrível) (idem, p. 18)

Severo sofre, mas se mantém intransigível: está mesmo disposto a fazer de tudo
para não perder sua fábrica:

MARIANA: (tensa) Mais importante do que eu, seus filhos e sua dignidade?
SEVERO: Ela é tudo isso junto. O homem é o trabalho que realiza. Sem ela... não pode ter
dignidade.
MARIANA: (fremente) E a família onde fica? A família, a honra e o orgulho?
SEVERO: A metalúrgica é a família... e o meu orgulho!
MARIANA: E paga qualquer preço por ela?
SEVERO: Pago! (idem, p. 10)

Além da questão principal, apresentada até aqui, também aparece na peça o


tema da greve dos funcionários, que desejam um aumento de salário, e percebemos
pelas falas de ambos os personagens que há uma divergência gigantesca entre os salá-
rios dos altos funcionários para os de cargos inferiores, tratados de maneira quase de-
sumana. “Mariana: Se não pagasse tão alto certos executivos, poderia recompensar
melhor aqueles que produzem de fato, que sujam as mãos e o rosto” (p. 3).
De todas as peças de Jorge Andrade, esta é a que mais se aproxima da obra de
Abílio Pereira de Almeida. Não só em relação ao conteúdo, mas também à construção
dos diálogos, à utilização de uma linguagem simples e direta, ao retrato da alta socie-
dade paulista por meio de personagens obstinados e exagerados, que mostram aberta-
mente problemas reais da época. É impossível não notar a enorme semelhança entre
Santa Marta Fabril S.A., representada pela primeira vez em 1955, e O terceiro elo, repre-
sentada somente em 1980. Ambas mostram a obsessão da família paulista por ostenta-
ção social e financeira, a importância da fábrica passada por gerações e tudo o que é
feito para mantê-la, a questão da greve, a decadência das empresas nacionais, a ascen-
são dos estrangeiros no país, o cinismo dos personagens e, acima de tudo, a polêmica
entre bem-estar versus moral, pois em ambas as peças nos deparamos com personagens
que apresentam posturas consideradas moralmente condenáveis para manter o nome e
a posição social.

112 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

Presença do imigrante na sociedade paulista

Por fim, cabe comentar aqui a peça Os ossos do barão, de Jorge Andrade. Esta pe-
ça é a mais cômica do autor e obteve um grande sucesso de público. Ela mostra a as-
censão financeira e social de um colono italiano, a primeira por meio de muito trabalho
e competência, e a segunda por meio do casamento de seu filho com a filha de aristo-
cratas paulistas. Nesta peça, percebemos o início da quebra de paradigmas até então
intransponíveis, pois enquanto os mais velhos sentem-se horrorizados com esse casa-
mento, os pais da moça aceitam com maior facilidade e concordam que será benéfico
para todos, pois em troca do nome, eles terão o auxílio financeiro de que necessitavam.
Os jovens, então, estão ainda mais distantes desses padrões tradicionalistas, com o filho
do italiano rejeitando o desejo do pai de ter um nome aristocrático na família, e a filha
dos quatrocentões não se importando e até mesmo se recusando a “carregar a caravela
de Pedro Álvares Cabral”. Esta peça mostra um exemplo de uma história comum do
Brasil da época: ascensão financeira do colono seguida de ascensão social, aliada à de-
cadência aristocrata.

[...] o fazendeiro de café, que surgiu e se afirmou, historicamente, como uma variante
típica do antigo senhor rural, acabou preenchendo e destino de dissociar a fazenda e a
riqueza que ela produzia do status senhorial. Doutro lado, o imigrante nunca se propôs
como destino à conquista do status senhorial. O que ele procurava, de modo direto,
imediato e sistemático, era a riqueza em si e por si mesma. Só tardiamente e por deriva-
ção ele iria interessar-se pelas consequências da riqueza como fonte, símbolo e meio de
poder. Por isso, ambos possuem algo em comum: identificam a ruptura com a ordem
senhorial como um momento de vontade social, que exprimia novas polarizações histó-
ricas do querer coletivo (FERNANDES, 1987, p. 103).

A ação se inicia com Egisto, colono italiano enriquecido, colocando à venda a


capela com os ossos do barão da antiga fazenda na qual trabalhara e da qual já compra-
ra a maior parte das terras e objetos. Sua pretensão desde o início não era vender a ca-
pela, mas casar seu filho com a mais nova descendente do barão. Ele não coleciona os
objetos da fazenda por vingança da família do ex-patrão, mas por ter boas lembranças
daquela época e desejar ter perto de si o máximo possível daquela família. Acha que o
casamento dos filhos será vantajoso para as duas famílias.
Assim como temos em outras peças Tonico e Joaquim como trabalhadores do
campo, temos aqui Egisto. Mesmo depois de se mudar para a cidade, ele mantém os
hábitos rurais, o que envergonha seu filho, criado na cidade. Após uma crítica do filho
por ele estar peneirando café no jardim, na frente de todos que passam na rua, ele diz:

EGISTO: (descontrola-se) Olhe aqui, Martino! O que sou ganhei com estes braços e com
esta cabeça. Me intende? (Eleva a voz pouco a pouco) O que tenho não encontrei na rua,

113 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


GABRIELA ÜBER

nem recebi de presente. Carcamano, emigrante... e com muito orgulho. Fiz mais do que
eles. Quando cheguei aqui, eram os donos de tudo. Hoje, o dono sou eu. E lavoro ho-
nesto. Honestíssimo! Vou me importar com o que pensam? [...] Conheço muitos brasi-
leiros que são turistas qui! Qui! Andam por aí olhando a paisagem, estudando história.
Io faço la história (ANDRADE, 1986, p. 410).

Nesta peça percebemos diversos pontos em comum com Paiol velho, como a de-
cadência da aristocracia paulista e a ascensão do imigrante, a migração predominante
do ambiente rural para o urbano, a desvalorização do nome e a rivalidade moral, nome
versus bem-estar, dinheiro. Há também diferenças nos valores de cada geração, como
em Santa Marta Fabril S.A., com os mais jovens adotando uma postura mais libertária
com relação à importância do nome e valores familiares intrínsecos. As peças represen-
tam o modo como a sociedade paulistana se transformava no decorrer do século XX:

[...] os antigos titulares do poder, os proprietários de terras, perderam as suas posições


dominantes na sociedade brasileira, em proveito de novos titulares. Formou-se uma
população obreira e uma burguesia empreendedora, cujos interesses dependem do con-
sumo interno, e que, compondo a matriz de um verdadeiro povo, constituem hoje
[1960] a maior força política do Brasil (RAMOS, 1960, p. 23).

Um comentário final

Nota-se que a obra dos dois autores traça um painel da sociedade paulista alia-
da à história de São Paulo, com a passagem do meio rural para o urbano e a posterior
industrialização, além da consolidação da burguesia e da classe média como classes
sociais. Apesar de estilos teatrais muito divergentes, Jorge Andrade, com suas peças de
cunho literário e reflexivas, e Abílio Pereira de Almeida, com suas comédias simples e
francas, ambos preocupam-se com seu meio e mesclam experiências da própria vivên-
cia com o fazer teatral. “O drama deve ser um quadro do século, uma vez que os carac-
teres, as virtudes, os vícios são essencialmente aqueles do dia e do país” (ROUBINE,
2003, p. 67).

Referências

ALMEIDA, Abílio Pereira de. Paiol Velho. Versão estabelecida por Gabriela Über a partir
dos originais presentes no CEDAE/IEL.

______. Santa Marta Fabril S.A. Versão estabelecida por Gabriela Über a partir dos ori-
ginais presentes no CEDAE/IEL.

_____. Depoimentos V. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1981.

114 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


RETRATOS DE SÃO PAULO PELO MEIO TEATRAL

ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. São Paulo: Perspectiva, 1986.

_____. O Terceiro Elo. Cópia original concedida pela pesquisadora Elizabeth Ferreira
Cardoso Ribeiro.

ARANTES, Luiz Humberto Martins. Teatro da memória: história e ficção na dramaturgia de


Jorge Andrade. São Paulo: Annablume, 2001.

CAMPOS, Maria da Conceição. “Introdução”, in: O teatro de Abílio Pereira de Almeida. São
Paulo: Imprensa Oficial, 2009.

FAUSTO, Boris. Revolução de 1930. São Paulo: Brasiliense, 1970.

FESTER, Antônio Carlos Ribeiro. Em Moral Corrente no País: estudos sobre o teatro de Abílio
Pereira de Almeida. Mestrado em Literatura Brasileira (FFLCH/USP), 1985.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

MELLO E SOUZA, Gilda de. “Teatro ao Sul”, in: Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas Ci-
dades, 1980.

NAZÁRIO, Aparecido José Carlos. Tempo e memória no Teatro de Jorge Andrade: uma leitura
de Rasto Atrás. Dissertação de Mestrado (IEL/Unicamp), 1997.

RAMOS, Guerreiro. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1960.

ROSSETTO, Graziele Luiza Andreazza. Teatro moderno paulista: formas sociais e simbóli-
cas da cultura erudita em São Paulo (1940-1960). Texto de qualificação de Mestrado em
Antropologia Social (IFCH/Unicamp), dez/2009.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.

SIQUEIRA, Silnei. Abílio Pereira de Almeida: seu tempo e sua obra – revisão de uma dra-
maturgia. São Paulo: Fundação VITAE (relatório final de pesquisa), 2002.

WARREN, Dean. A industrialização de São Paulo. São Paulo: Difusão Editorial S.A., s.d.

115 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):101-115, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):116-123, 2011

do Arauto da Palavra que corta, o Poeta*


_____________________________________________

JONAS MIGUEL PIRES SAMUDIO


Graduado em Filosofia (2003) e em Teologia (2006). Atualmente cursa a licenciatura em Letras
pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Resumo: Na atual paisagem poética brasileira, ricas são as expressões líricas. Certa-
mente, sobressai a obra da poeta mineira Adélia Prado que, em sua produção, conjuga
temas como a religiosidade, o cotidiano, o ser mulher, assim como a experiência da es-
crita poética. Pretendemos explicitar, a partir do poema “O poeta ficou cansado”, a re-
flexão da autora no que versa ao lugar ocupado, em um mundo de utilitarismos, pelo
poeta, já que este é visto, de certo modo, como leitor estético e ético do mundo. De
igual modo, conjugaremos, nessa leitura, a percepção do espaço significativo represen-
tado pela poesia, vivenciada como experiência corporal, como um chamado diante do
qual a resposta afirmativa é um imperativo.
Palavras-chave: Poesia brasileira contemporânea. Palavra poética. Adélia Prado.

A poesia sempre floresce e refloresce, ainda que em meio a múltiplas expressões


artísticas. As cinzas, mesmo as dos tempos mais sombrios, não conseguem sufocar sua
aparição, singela e violenta. Tais afirmações podem, claramente, fazer referência à
grande poeta mineira Adélia Prado (1935-), a “dona de casa” que escreve poemas
(HOHLFELDT, 2000, p. 70). Ela publicou seu primeiro livro, Bagagem (1976), aos 40 anos
de idade e teve como padrinhos os poetas Carlos Drummond de Andrade e Affonso
Romano de Sant’Anna, tendo sido chamada, pelo primeiro, de “fenômeno poético”
(NÊUMANNE, 1999).
Sua produção compreende lírica e prosa. Seus livros de poesia, após Bagagem
(1976), foram: O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A
faca no peito (1988), Oráculos de maio (1999) e Oração do dia (2010). Em prosa, publicou:
Solte os cachorros (1979), Cacos para um vitral (1980), Os componentes da banda (1984), O
homem da mão seca (1994), Manuscritos de Felipa (1999) e Quero minha mãe (2005).
São marcas de sua produção a religiosidade católica, a linguagem prosaica e
doméstica, o erotismo e a questão do feminino. Perpassa, em sua concepção de poesia,
uma noção de experiência do divino através do corpo e das relações humanas.
No poema analisado neste ensaio, “O poeta ficou cansado”, procuraremos per-
ceber como esses elementos estão presentes, dando destaque ao lugar que a poesia
ocupa no mundo atual, de acordo com a compreensão adeliana.

* O presente trabalho foi desenvolvido na disciplina Teoria da Poesia, ministrada pela Prof. Dra.
Elaine Cristina Cintra.

116 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


JONAS MIGUEL PIRES SAMUDIO

“Teu arauto”: a palavra encarnada no mundo

O poema “O poeta ficou cansado” abre o livro Oráculos de maio, de 1999. Surgi-
do após um silêncio literário de cinco anos, a localização do poema, bem como seu títu-
lo e sua temática, fazem jus à perspectiva da poeta de que “a coisa que dá mais pista do
autor é o texto. E principalmente quando ele não quer dar pista, quando ele fica ma-
quiando a coisa, aí ele se entrega inteiro” (PRADO, 1994); ou seja, sua poesia é retrato de
que

experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só. Isto porque a experiência
que um poeta tem diante de uma árvore, por exemplo, que depois vai virar poema, é
tão reveladora do real, do ser daquela árvore, que ela me remete necessariamente à fun-
dação daquele ser. A origem, quer dizer, o aspecto fundamental daquela experiência,
que não é a árvore em si, é uma coisa que está atrás dela, que no fim é Deus, não é?
(PRADO, 2000. p. 23).

Assim, transcrevemos o poema:

O POETA FICOU CANSADO

1. Pois não quero mais ser Teu arauto.


2. Já que todos têm voz,
3. por que só eu devo tomar navios
4. de rotas que não escolhi?
5. Por que não gritas, Tu mesmo,
6. a miraculosa trama dos teares,
7. já que Tua voz reboa
8. nos quatro cantos do mundo?
9. Tudo progrediu na terra
10. e insistes em caixeiros-viajantes
11. de porta em porta, a cavalo!
12. Olha aqui, cidadão,
13. repara, minha senhora,
14. neste canivete mágico:
15. corta, saca e fura,
16. é um faqueiro completo!
17. Ó Deus,
18. me deixa trabalhar na cozinha,
19. nem vendedor nem escrivão,
20. me deixa fazer Teu pão.
21. Filha, diz-me o Senhor,
22. eu só como palavras (Adélia Prado. 2007, p. 9).

117 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


DO ARAUTO DA PALAVRA QUE CORTA, O POETA

Ao leitor, apresenta-se uma questão crucial: o poeta, este que escreve, está can-
sado e, por isso, não quer mais ser arauto da poesia (v. 1). No seu cansaço, ele pergunta
àquele que lhe inspira a palavra poética, sobre sua condição de poeta servidor (v. 2-4).
Questiona, portanto, ao inspirador, porque este não grita a poesia, já que sua voz tem
um alcance universal (v. 5-8). Para isso, o poeta justifica-se sobre o papel da poesia, já
que “Tudo progrediu na terra” (v. 9) e a obra poética, primitiva como a função dos cai-
xeiros-viajantes, vaga de porta em porta (v. 10-11), tal qual o exercício de vender cani-
vetes mágicos (v. 12-16). Por fim, o eu lírico eleva-se em oração, pedindo a “Deus” (v.
17) que lhe deixe exercer sua função doméstica (v. 18-20). A esta oração, o “Senhor” (v.
21), o inspirador responde que só come palavras (v. 22).
Oráculos de maio (1999) contém cinquenta e sete poemas, divididos em seis blo-
cos. O primeiro bloco, intitulado “Romaria”, apresenta a epígrafe “Quero vocativos
para chamar-te, ó maio”, e compõe-se de trinta e cinco poemas. Inicia-se, conforme
explicitado, pelo poema “O poeta ficou cansado”. Os outros blocos são “Quatro poe-
mas no divã”, com quatro poemas, “Pousada”, igualmente com quatro poemas, “Cris-
tais”, formado por seis poemas, “Oráculos de maio”, composto de sete poemas, e, por
fim, “Neopelicano”, com um poema. Este último é antecipado pela epígrafe “Então se
lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas ele desapareceu (Lc 24,31)”.
Desse modo, “O poeta ficou cansado” é a abertura de todos os blocos e poemas
subsequentes. Composto por vinte e dois versos livres, o poema parece referir-se a um
diálogo entre o poeta e aquele que lhe inspira a poesia. De igual modo, o léxico apre-
senta variações do fonema [t] que, em vocábulos como “Tu”, “Tua”, “Teu arauto”, “tu-
do”, “terra”, possibilita que se pense em uma dificuldade, um impedimento para que a
voz do poeta se manifeste. Nos dois últimos versos (v. 21-22), tal sonoridade não se faz
presente, o que parece significar que o poeta pode explicitar, livremente, a palavra que
recebe. Igualmente, notamos que determinados vocábulos estão grafados em letra
maiúscula, como “Teu”, “Tu”, “Tua”, “Deus”, “Senhor”; em suma, o poema tem carac-
terísticas de prece.
Faz-se interessante sublinhar, nesse sentido, as noções contrastantes apresenta-
das. Primeiramente, o título do livro, Oráculos de maio, faz referência à imagem do orá-
culo, sendo que a autora afirma que “eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de
uma divindade” (PRADO, 2005). Entretanto, não é qualquer oráculo, mas aquele que
pertence a “maio”, mês das noivas, do casamento e, na religiosidade católica, das pro-
cissões marianas e das coroações de Nossa Senhora. Assim, às imagens do oráculo e do
desejo de louvar o tempo do amor, correspondem o cansaço, o difícil período de vazio
(PRADO, 2005), que faz o poeta questionar seu próprio ofício.
Do mesmo modo, percebe-se que, mesmo cansado e desejoso de não ser mais
arauto da poesia, o poeta não deixa de entregar ao leitor toda a sequência de cinquenta
e seis poemas, que se seguem ao primeiro. Além disso, é notável que a epígrafe que
antecede o último poema situa-se no Evangelho de Lucas, na conhecida narrativa dos
“Discípulos de Emaús”, no qual, após ter partido o pão, o Cristo ressuscitado desapa-
rece diante dos olhos dos dois discípulos (Lc 24,30-31). Dessa forma, não é sem motivo
que o poema analisado apresenta a dinâmica entre o desejo de fazer pão e a palavra

118 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


JONAS MIGUEL PIRES SAMUDIO

que alimenta, pois, estando invisível a fonte da poesia, a palavra poética é o alimento
mais perene, o alimento espiritual, “comida de primeira qualidade” (PRADO, 1994).
Destaca-se, semelhantemente, o princípio do poema:

1. Pois não quero mais ser Teu arauto.


2. Já que todos têm voz,
3. por que só eu devo tomar navios
4. de rotas que não escolhi?

“Pois [...]” marca o início; e o faz como justificativa daquilo que o título expres-
sa, a saber, o cansaço do poeta. “Pois” é, de acordo com a gramática tradicional, uma
conjunção explicativa quando antecede o verbo (CEGALLA, 2008). Portanto, parece que
o eu lírico está explicando-se a respeito do seu silêncio, da mudez que antecedeu a es-
crita do poema.
O poeta está cansado de ser uma voz solitária, arauto, mensageiro de uma ro-
ta que não é sua. Sabendo-se porta-voz da poesia (PRADO, 1999), o eu poético manifesta
sua dúvida sobre permanecer tal porta-voz, obedecendo a um imperativo violento da
palavra poética, que o obriga a “tomar navios de rota/ que não escolhi” (v.1-2). Cabe o
questionamento sobre quem, na experiência religiosa-poética de Adélia Prado, é o ins-
pirador da poesia, ou seja, quem é o “Tu” do poema. Para ela, “é o Espírito Santo. Ele
quer falar e me usa. No caso, sou um oráculo” (PRADO, 2000, p. 27).
Porque, se “todos têm voz” (v. 2), somente o poeta tem a responsabilidade de se
deixar tomar pela força inspiradora? Esse parece ser o questionamento do eu lírico no
decorrer do poema. Subjaz, ao poema, a interrogação direta ao “Tu” poético, Deus
(PAULA, 2004, p. 115).
O escrito é testemunha desse diálogo:

5. Por que não gritas, Tu mesmo,


6. a miraculosa trama dos teares,
7. já que Tua voz reboa
8. nos quatro cantos do mundo?

Nota-se que “O poeta ficou cansado” situa-se no bloco intitulado “Romaria”.


No entanto, a voz poética, já tendo questionado sobre a voz de todos (v. 2), agora inter-
roga a própria fonte poética sobre a sua liberdade de gritar (v. 5) “a miraculosa trama
dos teares” (v. 6).
Logo, parece que a poesia é a busca pela essência, pela trama tecida da coisa,
que é a realidade. Conforme Cortázar (1993), a coisa é

“criada” poeticamente; isto é, “essencializada”. E a palavra – angustiosa necessidade do


poeta –, não vale já como signo tradutor dessa essência, mas como portadora do que

119 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


DO ARAUTO DA PALAVRA QUE CORTA, O POETA

afinal é a própria coisa na sua forma, sua ideia, seu estado mais puro e alto (CORTÁZAR,
1993, p. 97).

De qualquer modo, ele não grita. E, ainda que a Romaria, a multidão dos ho-
mens, caminhe rumo a um destino comum, a voz, de onde vem a poesia, permanece
em silêncio. Tal silêncio passa a se chocar com o dilema do lugar da poesia em um
mundo onde tudo alcançou desenvolvimento. Assim,

9. Tudo progrediu na Terra


10. e insistes em caixeiros-viajantes
11. de porta em porta, a cavalo!

Nesse ponto, a voz poética apresenta a questão crucial na atual discussão sobre
a lírica. Isso porque, na atual conjuntura social, de máximo progresso tecnológico, onde
“tudo progrediu na terra” (v. 9), o sujeito torna-se coisa, objeto (GINZBURG, 2003,
p.64). Dessa forma, parece-nos que a poesia de Adélia Prado, além dos elementos reli-
giosos que lhe são comuns, apresenta, no poema analisado, a importante reflexão sobre
a arte em um mundo de seres humanos coisificados. Em outras palavras, a subjetivida-
de lírica, que neste poema se expressa como diálogo, tem

seu efeito sobre outros que não o poeta em monólogo consigo mesmo -, isso [...] ocorre
se a obra de arte lírica, ao retrair-se e recolher-se em si mesma, em seu distanciamento
da superfície social, for motivada socialmente, por sobre a cabeça do autor. O meio para
isso, porém é a linguagem (ADORNO, 2003, p.74).

A linguagem poética se descobre, portanto, deslocada em um mundo de pro-


gresso e de desenvolvimento; parece uma linguagem arcaica, primitiva e ultrapassada.
Não obstante isso, a linguagem da poesia é absolutamente livre e libertadora, não po-
dendo estar a serviço de quaisquer ideologias, sob pena de, caso esteja, não ser mais
poesia. Assim se expressa Adélia Prado, que “a única fidelidade que um poeta precisa
ter é com a poesia” (PRADO, 2000, p. 25). Tal ponto de vista parece libertar a poesia de
qualquer utilitarismo, pois “a palavra lírica representa o ser-em-si da linguagem contra
sua servidão no reino dos fins” (ADORNO, 2003, p. 89).
Desse modo, onde fica a poesia no mundo do progresso? A própria poeta ofere-
ce uma poética resposta, já que, para ela, a poesia “fica no lugarzinho dela. Ela é como
a gota d’água na folha do inhame. Ela fica igual, brilhante” (PRADO, 2000, p. 39). Ou
seja, o lugar da poesia é o lugar da luz, na simplicidade das coisas mais significativas;
seu lugar, o dos “caixeiros-viajantes/ de porta em porta, a cavalo!” (v.10-11), não pode
ser tomado.
Ainda que o poeta tenha que, desculpando-se, pedir licença para entrar em diá-
logo com o mundo, oferecendo a poesia,

120 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


JONAS MIGUEL PIRES SAMUDIO

12. Olha aqui, cidadão,


13. repara, minha senhora,
14. neste canivete mágico:
15. corta, saca e fura,
16. é um faqueiro completo!

sua palavra, a poesia, tal qual canivete que se leva no bolso, é tão cortante quanto “um
faqueiro completo” (v.16). Portanto, aos homens e às mulheres (v.12-13), o canivete
mágico da poesia pode ser ofertado. Nunca se saberá qual vida ele poderá tocar; o que
se sabe, entretanto, é que esse canivete tem a virtude de cortar, tirar para fora, furar
(v.15). Sua ação pode ser tão eficaz quanto sua afiada e multifacetada lâmina.
Nesse sentido, a poesia cortante, “vista como a encarnação humana da palavra
fundadora: a palavra divina” (QUEIROZ, s/d), alude à figura do Filho do homem, pre-
sente no livro do Apocalipse, visto que, de sua boca, saia uma espada afiada, com dois
gumes (Ap 1,16). Dessa forma, a palavra poética pode cortar a carne e penetrar nos
corações, seja o dos “cidadãos”, seja o das “senhoras”.
Uma poesia do cotidiano, conforme afirmam seus estudiosos (QUEIROZ, s/d), o
poema de Adélia Prado conclui-se com uma oração:

17. Ó Deus,
18. me deixa trabalhar na cozinha,
19. nem vendedor nem escrivão,
20. me deixa fazer Teu pão.

“Ó Deus” (v. 17): este vocativo parece resumir toda a angústia do poeta cansa-
do, exaurido de suas forças por ter de, no mundo de hoje, pedir licença para poetar.
Para Adélia Prado (2000, p.31), “a poesia é isto: revelação, epifania, parusia. Mas o poe-
ta é um coitado. Então, sabe o que é? Um estado de graça. É um estado de graça”.
E tal estado de graça, em que a palavra emerge como oração, anuncia um desejo
de permanecer no cotidiano, na experiência doméstica, pois “eu sou mulher e sou do-
méstica. Eu sou primeiramente uma doméstica. Então minha poesia tem esses regis-
tros, ela é assimilável por esse aspecto” (PRADO, 1994). Assim, vindo à cozinha todo dia
(PRADO, 1994), ou seja, vivendo o seu cotidiano ordinário, o poeta não quer insurgir-
se contra o senhor, visto que seu desejo é fazer o pão que lhe apraz.
Por conseguinte, o desejo do eu lírico adeliano é o de não ser “vendedor nem
escrivão” (v. 19). Com isso, o poeta parece se referir à sociedade consumista e burocrá-
tica, contrapondo a ela o “fazer Teu pão” (v. 20). Em certo sentido, o eu poético, para o
qual a comida sempre está presente (NÊUMANNE, 1999), oferece o pão, símbolo eucarís-
tico de comunhão transcendente e fraterna, ao inspirador da palavra poética. Desse
modo, Deus, que “não pode ser visto, imaginado, tocado ou cheirado, mas deixa-se
desvelar por palavras ao alcance de nosso entendimento e se torna ‘visível’ na sacra-
mentalidade das coisas” (BETTO, 2000, p. 121), revela-se em uma epifania da poesia
(PAULA, 2003, p. 158).

121 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


DO ARAUTO DA PALAVRA QUE CORTA, O POETA

Portanto, Deus responde, rapidamente, ao poeta:

21. Filha, diz-me o Senhor,


22. eu só como palavras.

Conforme já explicitado, nestes versos a voz poética apresenta-se límpida; o po-


eta assume “um papel de profeta de Deus, espécie de condição intermediária entre
Deus e o homem, que sua poesia cumpriria” (HOHFELDT, 2000, p. 82).
“Filha, diz-me o Senhor” (v. 21). Tal verso revela a familiaridade do poeta com
aquele que é a fonte de sua poesia; faz-se interessante que, neste verso, o poeta que, até
então, dirigia-se ao Senhor, é denominado pelo substantivo “Filha”, flexionado no gê-
nero feminino. Para Adélia Prado, nesse sentido, “o poder maior do feminino é porque
a mulher deixa fazer” (PRADO, 2000, p. 38), ou seja, “Filha” é compreendida como a
possibilidade de o poeta permitir que a poesia nele ganhe corpo.
Ressaltamos, igualmente, que o verbo “diz-me” revela que a palavra poética é
um mandato que se realiza acima das fraquezas do sujeito. Nas palavras de Adélia
Prado (2000), “às vezes as pessoas mais ordinárias, mais fracas como é o meu caso,
mais carentes de tudo, conseguem essa captação [da poesia]. A gente acaba caindo no
mistério outra vez: por que tal pessoa faz poesia?” (PRADO, 2000, p. 26).
A voz do Senhor afirma: “eu só como palavras” (v. 22). De certo modo, o verso
pode se tornar a melodia de “eu soo como palavras”. Tal aspecto realça que, para o
poeta, “Deus é logos e o filho de Deus é o verbo”, sendo que “preciso da carne das pa-
lavras, não é?” (PRADO, 2000, p. 24). Assim, na “inusitada revelação no final do poema
eu só como palavras; a voz da divindade é firme, impositiva, carregada de realismo,
crua” (PAULA, 2003, p.160), manifestando a palavra da poesia como, verdadeiramente,
um canivete que “corta, saca, e fura” (v.15). Em última instância, uma palavra com for-
ça de humanização, mesmo em um mundo de progresso aparente.
A necessidade de que essa palavra torne-se carne na vida do poeta é premente,
pois este é “um homem que sente na própria carne até os ossos a necessidade de expe-
rimentar (e não apenas de observar) o universo, modificando este, obrigando-o a reagir
às palavras com que o poeta o ataca, celebra ou lamenta” (FAUSTINO, 1977, p. 31).
Desse modo, a poesia, palavra simples, delicada e lapidada, presente dos céus
ao mundo dos homens, é um imperativo ao poeta. Este, servo fiel, pode, dedicando sua
vida como alimento e palavra, descobrir que “um fragmento com Deus é a plenitude”
(PRADO, 2000, p.38), conforme ensina-nos Adélia Prado.

Referências

ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade, in: Notas de literatura I. São Paulo:
Duas Cidades, 2003, p.65-89.

122 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


JONAS MIGUEL PIRES SAMUDIO

BETTO, Frei. Adélia nos prados do Senhor, in: Cadernos de Literatura Brasileira: Adélia
Prado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 9, jun./2000, p. 127-127.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. São Paulo:


Companhia Editora Nacional, 2008. 693p.

CORTÁZAR, Júlio. Para uma poética, in: Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993,
p. 85-101.

FAUSTINO, Mário. Para que poesia?, in: Poesia-experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977,
p. 27-41.

GINZBURG, Jaime. Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios, in: Alea, vol. 5, n. I,
jan./jun. 2003, p. 61-69.

NÊUMANNE, José. A mineira Adélia Prado, poesia e prosa com fé no chão, in: Jornal da
Tarde (14/04/1999). Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/jneumanne14c.html>. Acesso em 04/12/2010.

HOHFELDT, Antônio. A epifania da condição feminina, in: Cadernos de Literatura Brasilei-


ra: Adélia Prado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 9, jun./2000, p. 69-120.

PAULA, Maria do Carmo Lara. O percurso da epifania na poética de Adélia Prado, in:
Em Tese, vol. 8, dez. 2004, p. 153-162.

PRADO, Adélia. Oráculos de maio. Rio de Janeiro: Record. 2007, 142p.

______. Oráculo de março, in: Cadernos de Literatura Brasileira: Adélia Prado. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, n. 9, jun./2000. Entrevista, p. 21-39.

______. Entrevista no Programa Roda Viva. 05/09/1994. Disponível em:


<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/716/entrevistados/adelia_prado_1994.htm>.
Acesso em 17/09/2010. Entrevista concedida em 05/09/1994, ao programa Roda Viva.

____. Adélia Prado retoma o diálogo com Deus em dois livros, in: O Estado de São Paulo.
22/05/1999. Entrevistada por José Castello. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/castel15.html>. Acesso em 04/12/2010.

QUEIROZ, Vera. O vazio e o pleno. S/d. Disponível em:


<http://www.revista.agulha.nom.br/vqueir01.html> Acessado em 04/12/2010.

123 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):116-123, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):124-136, 2011

O Golpe Militar Chileno em Pablo Neruda


e Roberto Rolaño: relações literárias
______________________________________________

JORGE BENEDITO DE FREITAS


Universidade Federal de Ouro Preto. e-mail: defreitasjorge@yahoo.com.br

Resumo: O trabalho apresenta uma relação entre Pablo Neruda e Roberto Bolaño, pe-
lo discurso literário, analisando as obras Confesso que Vivi (1974), de Neruda – focando
no capítulo 12, “Pátria Doce e Dura” – e Noturno do Chile (2000), de Roberto Bolaño.
São obras de gêneros, linguagem e períodos distintos, porém em determinada instân-
cia, abordam o mesmo assunto: o Golpe Militar ocorrido no Chile em 1973. Este texto
aborda ainda a relação literária existente entre romance de Bolaño – e o conto “Carnet
de Baile”, publicado no livro Putas Asesinas (2001) – e a figura de Neruda. A análise do
Golpe pela ótica dessas obras visa a proporcionar um estudo sobre o período histórico-
social em que se encontrava a sociedade chilena no ano de 1973, situação que se as-
semelha ao que ocorreu em quase toda a América Latina, onde outros países também
foram governados por regimes ditatoriais.
Palavras-chave: literatura e política; Chile; Bolaño; Neruda.

I. Introdução

No início da década de 70, o Chile era o único país da América do Sul a chegar
próximo de conquistar uma transformação socialista. Nesta década, o Chile passava
por uma séria crise econômica, pois seu principal produto, o cobre, baixara de preço, e
grande parte do lucro se encontrava no exterior, principalmente nas mãos norte-
americanas. O crescimento populacional pressionava por empregos e por uma quali-
dade melhor nos serviços sociais.
Em janeiro de 1970, pouco antes das eleições, a Unidade Popular, maior centro
da esquerda chilena, ainda não havia decidido quem seria o seu candidato à presidên-
cia. Enquanto se desenrolavam as negociações internas, tendo como nome forte Salva-
dor Allende, outra frente de esquerda chilena, o Partido Comunista, havia lançado co-
mo seu candidato o ex-senador e poeta Pablo Neruda; porém a delicada situação da
política chilena e a grande amizade entre os dois fizeram com que Neruda desistisse da
candidatura e passasse a apoiar o amigo Salvador Allende.
Em seu livro Confesso que Vivi, publicado postumamente pela primeira vez em
1974, Neruda faz uma grande e bela descrição de sua vida como poeta, senador, em-

124 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


JORGE BENEDITO DE FREITAS

baixador e apaixonado pela vida. No capítulo 12, intitulado “Pátria Doce e Dura”, do
mesmo livro, o poeta discute as várias influências de personagens da história comunis-
ta em sua obra, abrangendo desde o chamado à candidatura à presidência do Chile
pelo Partido Comunista em 1969, até o cruel retorno à pátria prestes a ser dominada
por uma ditadura militar. Neruda foi um poeta de várias facetas, dentre as quais pos-
suidor de um grande senso de responsabilidade política. Foi um poeta marxista e di-
fundiu em suas obras ideais que influenciaram muitas sociedades.
Roberto Bolaño, premiado escritor chileno, entusiasmado pelo governo socialis-
ta, voltara, no início de 1973, do México, país em que se encontrava desde 1968. Com o
golpe de 73, Bolaño foi mandado para a prisão por não concordar com os rumos ditato-
riais em que o país estava entrando. Libertado por um amigo de infância, ele e a família
partiram para El Salvador e depois novamente para o México, onde publicava seus
poemas; por fim firmou-se na Espanha, onde permaneceu até sua morte em 2003.
A obra Confesso que Vivi, livro de memórias do poeta Pablo Neruda, apresenta
caráter bibliográfico e poético, um relato de sua vida desde jovem provinciano que
fazia confissões com seu único amigo, a Chuva, até a dura desilusão do golpe militar
de 1973, que culminava com a morte do amigo e então presidente chileno, Salvador
Allende, relatado no capítulo 12 da obra, “Pátria Doce e Dura”:

Estas memórias ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória, por-
que a vida também é assim. As memórias do memorialista não são as memórias do poe-
ta. Aquele viveu talvez menos, mas fotografou muito mais, recreando-nos com a perfei-
ção dos pormenores. Este entrega-nos uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e
pela sombra da sua época (NERUDA, 1983, p. 8).

A obra de Roberto Bolaño, Noturno do Chile, publicada em 2000, é um romance


com dois parágrafos, sendo o primeiro bastante longo e o segundo consta apenas de
uma frase: “E depois se desencadeia a tormenta de merda” (BOLAÑO, 2004, p. 1001). O
livro é narrado em primeira pessoa pelo padre Sebastián Urrutia Lacroix que, às véspe-
ras de sua morte, realiza um monólogo sobre sua vida e, por meio dele, reconstrói
momentos importantes da história chilena, dentre eles, os momentos vividos antes e
depois do golpe de 1973.
As duas obras apresentam características diferentes no que se refere ao gênero
literário e à linguagem. Confesso que Vivi é uma obra de caráter biográfico em que o
poeta Pablo Neruda remonta fatos de sua vida. A obra é dividida em 12 capítulos, dis-
correndo sobre sua infância, juventude, encontros com a poesia, aspirações e concreti-
zações políticas. A obra de Bolaño, Noturno do Chile, é um romance que mistura fatos
de ficção com a presença de personagens reais, apresentando uma crítica à sociedade
chilena. Bolaño reconstrói a vida social chilena por meio da literatura.
As obras foram escritas em períodos históricos diferentes: Confesso que Vivi, foi
publicado em 1974, pouco tempo após a morte de Neruda, em 1973. Segundo Isabel
Allende, sobrinha do presidente Salvador Allende, em seu livro Paula (1995), “em se-
tembro de 1973, doze dias depois do Golpe Militar, morreu Pablo Neruda. Estava do-

125 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


O GOLPE MILITAR CHILENO EM PABLO NERUDA E ROBERTO BOLAÑO

ente e os tristes acontecimentos daqueles dias acabaram com sua gana de viver” (AL-
LENDE, 1995, p. 135). Noturno do Chile foi publicado em 2000, dez anos após o general
Augusto Pinochet, por meio de um plebiscito, deixar a presidência do Chile, nas pri-
meiras eleições chilenas, desde 1970.

II. “Pátria Doce e Dura”, de Pablo Neruda

O capítulo 12 do livro autobiográfico de Nefatli Ricardo Reyes Basoalto, poeta


chileno de pseudônimo Pablo Neruda, começa descrevendo os acontecimentos ante-
cessores à eleição de 1970, que teve como vencedora a Unidade Popular, cujo candidato
era Salvador Allende. O capítulo termina com o assassinato do presidente e a derruba-
da do governo socialista. Com esse golpe, a democracia no país foi substituída por uma
ditadura militar, comandada pelo General Augusto Pinochet, que iria governar o Chile
com mãos de ferro até meados de 1990.
Neruda divide o capítulo 12 em subtítulos, mantendo a estrutura apresentada
em todo livro. O autor utiliza uma linguagem suave, poética, para descrever suas me-
mórias que vão se entrelaçando à história do Chile. Ele inicia o capítulo 12, “Pátria Do-
ce e Dura”, tratando os extremismos revolucionários como sendo uma atitude prejudi-
cial para as rebeliões revolucionárias. Estas rebeliões somente encontram força se de-
positadas em organizações da massa possíveis de realizar uma mudança social. Extre-
mismos revolucionários caracterizam-se apenas como revoluções individuais, impossí-
veis de proporcionar alterações na ordem vigente e incapazes de realizarem uma am-
pla revolução que atinja a todos. Alertando sobre o perigo destes extremistas, o poeta
cita uma de suas lembranças sobre um velho conhecido, senhor idôneo, oriundo de
minorias raciais e extremamente apaixonado por tal origem, que ao fim se revelava um
espião a serviço de um governo fascista, determinado a realizar a passagem de infor-
mações ao seu governo sobre organizações contrárias.
A partir do subtítulo “Poética e Política”, o autor começa a descrever a sua rela-
ção com a política de seu país, no conturbado período pré-eleições de 1970. Sempre
com a suavidade poética que lhe é de costume, Neruda vai delineando as suas memó-
rias, revelando que sua tranquilidade de poeta encontrara pela frente vários desafios.

O inverno é estático e brumoso. Ao seu encanto acrescentamos todo dia o fogo da


lareira. A brancura das areias na praia nos oferece um mundo sempre solitário, como
era antes de existirem habitantes ou veranistas na terra. Mas não se pense que eu
detesto a multidão estival. Mal se aproxima o verão, as moças se aproximam do mar,
homens e crianças entram nas ondas com precaução e saem saltitando do perigo. Assim
consumam a dança milenar do homem diante do mar, talvez a primeira dança dos seres
humanos ( NERUDA, 1983, p. 352).

Em 1969, Neruda passou todo o ano em Isla Negra, litoral chileno, acompanha-
do de sua esposa Matilde Urrutia. Esta vida simples de poeta, dedicada à contempla-

126 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


JORGE BENEDITO DE FREITAS

ção da natureza, regada com a solidão de seus poemas, encontra afirmação em sua vi-
da política dedicada ao enfrentamento das multidões.

Solidão e multidão continuarão sendo deveres elementares do poeta de nosso tempo.


Na solidão, minha vida se enriqueceu com o marulhar no litoral chileno. Intrigaram-me
e me apaixonaram as águas que arremetiam e os penhascos fustigados, a multiplicação
da vida oceânica, a formação impecável dos pássaros migradores, o esplendor da es-
puma marinha.
Mas aprendi muito mais da grande maré das vidas, da ternura vista em milhares de
olhos que me olharam ao mesmo tempo. Esta mensagem pode não estar ao alcance de
todos os poetas, mas quem a sentiu a guardará em seu coração, desenvolvendo-a em
sua obra.
É memorável e dilacerador para o poeta ter encarnado para muitos homens, durante
um minuto, a esperança (NERUDA, 1983, p. 354).

Em 1970, ano de eleição presidencial no Chile, o país estava dividido. De um


lado a coalizão de partidos da direita, denominada Democracia Cristã, já apresentava
seus candidatos, enquanto do outro a coalizão de vertente esquerdista, denominada
Unidade Popular (UP), ainda estava dividida, sem ter um candidato definido. O nome
de Pablo Neruda sai como candidato pelo seu partido, o Partido Comunista – membro
da Unidade Popular –, cuja intenção era de se fortalecer com apenas um nome para
disputar as eleições. O nome de Salvador Allende, que já havia disputado as eleições
presidenciais por três vezes, é lançado pelo Partido Socialista – também membro da
Unidade Popular. Chegando a um consenso dentro da UP, Neruda renuncia à sua pos-
sível candidatura para apoiar o amigo Salvador Allende como candidato único pela UP
à eleição presidencial no Chile.
A Unidade Popular vence a eleição de 1970 e, pela primeira vez, o Chile tem um
presidente de vertente socialista. Fortemente apoiado pelos operários e camponeses – a
camada popular chilena –, Allende começa grandes mudanças em seu país, sendo a
mais significativa a nacionalização do cobre, principal recurso natural que estava em
mãos estrangeiras. Após a posse de Allende, Neruda assume o cargo de embaixador do
Chile em Paris. No subtítulo “Embaixador em Paris”, o poeta conta como se sentira
feliz pelas realizações tão significativas em seu país.

Tinha sido feita uma revolução no Chile, uma revolução à chilena, muito analisada e
muito discutida. Os inimigos de dentro e de fora afiavam os dentes para destruí-la. Por
cento e oitenta anos se sucederam em meu país os mesmos governantes com diferentes
rótulos. Todos fizeram o mesmo. Continuaram os farrapos, as moradias indignas, as
crianças sem escolas nem sapatos, as prisões e as bordoadas contra meu pobre povo.
Agora podíamos respirar e cantar. Isso era o que me agradava na minha nova situação
(NERUDA, 1983, p. 358).

127 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


O GOLPE MILITAR CHILENO EM PABLO NERUDA E ROBERTO BOLAÑO

O capítulo 12, que remonta a essas memórias do poeta, termina com o subtítulo
“Allende”, em que Neruda descreve de forma poética sua admiração pelo presidente
chileno e os últimos dias que decorreram até o fatídico golpe militar ocorrido em se-
tembro de 1973, que culminou com a morte do presidente Allende. O golpe deu fim às
mudanças sociais realizadas por Allende e, então, o país foi entregue às mãos dos mili-
tares, apoiados pelas diversas camadas elitizadas do Chile. Tudo isso acarretou o fim
da democracia chilena, iniciando, a partir de então, uma ditadura feroz e sanguinária
que iria durar até 1990, comandada pelo General Augusto Pinochet. Em suas últimas
linhas, Neruda descreve com pesar o heroísmo e fim do “companheiro” Allende:

Escrevo estas rápidas linhas para minhas memórias há apenas três dias dos fatos inqua-
lificáveis que levaram à morte meu grande companheiro, o Presidente Allende. Seu as-
sassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente, permitiram somente à sua
viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão dos agressores é que acharam seu corpo
inerte, com mostras visíveis de suicídio. A versão que foi publicada no estrangeiro é di-
ferente. Após o bombardeio aéreo, vieram os tanques, muitos tanques, para lutar intre-
pidamente contra um só homem: o Presidente da República do Chile, Salvador Allende,
que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a não ser seu grande coração
envolto em fumaça e chamas.
Não podiam perder uma ocasião tão boa. Era preciso metralhá-lo porque jamais renun-
ciaria a seu cargo (NERUDA, 1983, p. 368).

III. Noturno do Chile, de Roberto Bolaño

Noturno do Chile, de Roberto Bolaño, é um romance que discorre sobre as lem-


branças da vida do personagem padre, escritor e crítico literário Sebástian Urrutia La-
croix, que em seu leito de morte, atormentado pela figura de um “jovem envelhecido”,
busca esclarecer alguns fatos de sua vida, tendo como pano de fundo uma crítica seve-
ra às camadas da sociedade chilena que ficaram apáticas durante o período que ante-
cedeu o Golpe Militar de 11 de setembro de 1973 e permaneceram inertes nos anos se-
guintes da duríssima repressão Militar.
Bolaño tem como característica peculiar a mistura de gêneros literários em sua
literatura, mesclando a própria literatura com a crítica literária. Segundo o estudioso da
obra de Bolaño, Rafael Gutiérrez Giraldo, em seu artigo publicado pela revista Grago-
atá,

em tom sério e burlesco, às vezes sarcástico, às vezes demolidor, uma forma particular
de crítica literária aparece de forma constante na obra ficcional de Roberto Bolaño.
Grande parte da obra deste escritor chileno tem como tema central a própria literatura.
Suas histórias são habitadas por poetas, escritores, editores, leitores compulsivos e pro-
fessores de literatura. Assim não é estranho que um tipo de crítica literária também faça
parte integral de sua ficção (GIRALDO, 2007, p. 180).

128 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


JORGE BENEDITO DE FREITAS

As lembranças vividas por Lacroix, na medida em que se desenvolve o roman-


ce, se entrelaçam com fatos e personagens reais da história do Chile. No decorrer de
todo o romance, Lacroix encontra-se com personagens reais da literatura que serviram
de forte influência para Bolaño. Noturno do Chile apresenta uma forte semelhança com o
conto “Carnet de Baile”, de outro livro do chileno intitulado Putas Asesinas (2001). Nas
palavras de Giraldo:

Escrito em forma autobiográfica, o conto descreve a relação apaixonada e depois confli-


tuosa, entre o narrador e a obra de Neruda. Essa história literária se mistura à história
de vida do narrador durante o início da ditadura chilena. História de coragem juvenil e,
ao mesmo tempo, história de formação literária. A literatura funciona neste conto, como
em quase toda a obra de Bolaño, como catalisador, como fio condutor da narrativa. O
conto desenha o trajeto de leitura do narrador Bolaño, começando com Neruda e depois
passando por Vallejo, Huidobro, Borges, De Rohka, Girondo, até chegar a Nicanor Par-
ra, que será uma de suas influências mais marcantes. A citação de escritores é comum
em Bolaño e vai construindo uma cadeia de influências e gostos literários que o próprio
escritor revela e serve de ponte para aproximar-se da sua obra ficcional e crítica (GI-
RALDO, 2007, p. 183).

• A sexualidade na relação entre os personagens Lacroix e Farewell

Seguindo na análise do romance Noturno do Chile, abordarei relação entre o per-


sonagem Lacroix e seu ídolo, o grande crítico literário Farewell. No primeiro encontro
entre os dois, o padre vê o crítico como sendo um gigante de dois metros de altura,
grandioso renomado e bem trajado, deixando evidente a condição de submissão de
Lacroix a Farewell, aquele que posteriormente o “introduziria” no mundo das letras.

[...] meus dedos frescos de jovem recém-saído do seminário, os dedos de Farewell, gros-
sos e já um tanto deformados como cabia a um ancião tão alto, e falamos dos livros e
dos autores desses livros, e a voz de Farewell era como a voz de uma grande ave de ra-
pina, que sobrevoa rios, montanhas, vales e desfiladeiros, sempre com a expressão justa,
a frase que caia como uma luva em seu pensamento (BOLAÑO, 2004, pp. 7-8).

Essa passagem deixa clara a admiração de Lacroix por Farewell; o padre sente-
se ingênuo diante do grande crítico literário possuidor de uma sabedoria de ancião,
passando a ideia de que a sua voz potente era ouvida em vários lugares. Nesse primei-
ro encontro, Lacroix já manifesta o seu desejo em seguir a vereda aberta por Farewell e
também se tornar crítico literário. Daqui é possível observar uma crítica aberta feita
pelo crítico literário ao caracterizar o país como atrasado e pertencente a uma oligar-
quia agrária pouco interessada no estudo da literatura. Pode-se observar uma contradi-
ção, pois Farewell é também pertencente a esta oligarquia dominante. Os principais
acontecimentos entre o padre e o crítico ocorrem em sua fazenda de nome Là-Bas.

129 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


O GOLPE MILITAR CHILENO EM PABLO NERUDA E ROBERTO BOLAÑO

Em sua visita a Là-Bas, o narrador revela ter uma forte tendência homossexual,
que passa a ser presente em sua relação com Farewell. Está sempre presente na narra-
tiva a característica de submissão do padre frente ao seu grande ídolo, que o domina e
com ele mantém uma relação sexual.

[...] E então a mão de Farewell desceu do meu quadril para a minha nádega e um zéfiro
de rufiões provençais entrou no terraço e fez minha batina negra esvoaçar, e eu pensei:
O segundo ai!, passou. Olhe que depois vem o terceiro. E pensei: Eu estava em pé na
areia do mar. E vi surgir do mar uma Besta. E pensei: Então veio um dos sete Anjos que
levavam as sete taças e falou comigo. E pensei: Porque seus pecados se amontoaram até
o céu e Deus lembrou suas iniqüidades (BOLAÑO, 2004, p. 16).

É importante ressaltar essa passagem. Podemos perceber aqui uma crítica à po-
sição religiosa de Lacroix, sugerindo que aquela seria a segunda relação homossexual
do padre. Sendo esse “o segundo ai!”, está aberta a possibilidade de ocorrer um tercei-
ro. Aqui também é colocada uma fuga de Lacroix em relação a sua condição de padre
e, portanto, seu dever de castidade. O personagem apresenta um temor relacionado ao
ato sexual com Farewell, mas se deixa dominar pelo prazer e realiza a cópula.
Bolaño utiliza o padre e o crítico para retratar forte e criticamente dois setores
dominantes da sociedade chilena.
Primeiramente, em Lacroix, que em todo o decorrer do romance não se abstém
de usar a sua batina, temos uma crítica à Igreja e aos padres, de um modo geral. Ao
não se abster de usar a batina, Lacroix mesmo tendenciosamente violando seus votos
clericais, acaba colocando seu desejo pelo mundo das letras em primeiro lugar. Em
Noturno do Chile, o padre está muito mais relacionado com a literatura do que com o
seu sacerdócio. No início ele deseja fazer parte do fechado círculo da literatura chilena,
e acaba se tornando, por fim, crítico e poeta. Essa sua relação muito mais forte com a
literatura do que com o sacerdócio pode ser interpretada como uma fuga de sua condi-
ção religiosa. O personagem religioso não mede esforços para fazer parte do círculo
literário chileno, chegando a se relacionar homossexualmente com Farewell para con-
seguir realizar seu desejo. Mais adiante o narrador descreve o fim de semana passado
na fazenda Là-Bas como se fosse seu “batizado” no mundo das letras chilenas: “O au-
tomóvel de um dos convidados de Farewell me levou até Chillán, bem a tempo de pe-
gar o trem que me retornou a Santiago. Meu batismo no mundo das letras estava en-
cerrado” (BOLAÑO, 2004, p. 21).
Em segundo lugar, tem-se Farewell, que representa a oligarquia agrária chilena.
O personagem desdenha os chilenos, caracterizando-os como bárbaros camponeses
aculturados; ele se julga o último e único entendedor da literatura presente naquele
país. Em Farewell podemos perceber uma crítica à sociedade burguesa chilena e à hi-
pocrisia dos intelectuais, ao se julgarem acima das demais classes.

130 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


JORGE BENEDITO DE FREITAS

• Lacroix, a política e o Golpe de 11/09/73

Mais adiante, no desenvolvimento do romance, à medida que Lacroix vai se re-


cordando de sua vida, a questão política do Chile é retratada de acordo com as convic-
ções e lembranças do personagem. Após uma longa viagem à Europa, o padre retorna
à sua pátria e encontra o país envolvido em uma grande mudança política e social, e a
descreve com um grande desconforto.

Um dia decidi que era hora de retornar ao Chile. [...] No Chile as coisas não iam bem.
Não sou nacionalista exacerbado, mas sinto um amor autêntico pelo meu país. Chile,
Chile. Como pudeste mudar tanto?, perguntava às vezes, debruçado na minha janela
aberta, olhando a reverberação de Santiago na distância. Que fizeram contigo? Os chile-
nos enlouqueceram? De quem é a culpa? E outras vezes, enquanto caminhava pelos
corredores do colégio ou pelos corredores do jornal, dizia: Até quando pensas em con-
tinuar assim, Chile? Será que vais te transformar em outra coisa? Num monstro que
ninguém reconhecerá? Depois vieram as eleições, e Allende ganhou (BOLAÑO, 2004, pp.
63-64).

O personagem retorna a seu país e o encontra divido em duas vertentes políti-


cas – a direita Democracia Cristã e a esquerdista Unidade Popular – pela disputa da
presidência chilena. O receio quanto às transformações pode ser percebido no padre,
que pertence a uma das classes dominantes do país. Ele se mostra receoso com o novo
rumo do Chile após a vitória de Allende. Em um desenlace depois de uma conversa
com Farewell, que também se mostrava desconfortável com a vitória de Allende, La-
croix termina com um apelo religioso: “Seja o que Deus quiser, disse comigo mesmo.
Vou reler os gregos” (BOLAÑO, 2004, p. 64).
Na passagem do romance, o narrador Lacroix relaciona as passagens importan-
tes do governo socialista de Allende à sua leitura de importantes obras gregas. A posi-
ção distanciada e tendenciosa do narrador atua de forma irônica: ele nos dá uma sensa-
ção de que a desorganização impera durante todo esse conturbado período político,
iniciando pela leitura da Homero, passando pelos filósofos pré-socráticos, tais como
Tales de Mileto, Zenão de Eleia, sempre mantendo a relação destas leituras com passa-
gens históricas do governo Allende: “depois mataram um general do Exército favorá-
vel a Allende, o Chile restabeleceu relações diplomáticas com Cuba [...]” (BOLANO,
2004, p. 64). Seguindo um percurso detalhado por Lacroix entre obras gregas e aconte-
cimentos políticos chilenos, até o termino da leitura grega nos filósofos Platão e Aristó-
teles, o advento da tomada de La Moneda, a morte de Allende e o início de uma ditadu-
ra militar. O distanciamento do personagem em relação aos acontecimentos políticos
fica claro na sua manifestação contrária ao governo “barulhento” de Allende e à situa-
ção caótica de seu país, quando ele revela o seu contentamento e a sensação de paz
sentida com o fim do governo:

131 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


O GOLPE MILITAR CHILENO EM PABLO NERUDA E ROBERTO BOLAÑO

[...] Depois veio o golpe de Estado, o levante, o pronunciamiento militar, bombardearam


La Moneda, e quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou.
Então eu fiquei quieto, com um dedo na página que estava lendo, e pensei: que paz. Le-
vantei, fui à janela: que silêncio. O céu estava azul, um azul profundo e limpo, marcado
aqui e ali por algumas nuvens (BOLAÑO, 2004, p. 65).

• O Estado Totalitário chileno em Noturno do Chile

O romance continua, retratando a morte do poeta Pablo Neruda, personagem


real de forte influência na literatura de Bolaño, que Lacroix conhecera por intermédio
de Farewell em uma de suas visitas a Là-Bas. Dois personagens enigmáticos que apare-
cem anteriormente no romance, cujos nomes são Odem e Oidó – Medo e Ódio, escritos
de trás para frente – retornam como funcionários do governo ditatorial. O escritor me-
taforiza a situação política em que o Chile adentrara com a duríssima repressão exerci-
da pelo governo militar, por meio do nome destes dois personagens que fazem parte
do alto escalão governamental: os dois convidam o padre para exercer uma função
“importantíssima” e secreta, que é ministrar aulas de marxismo ao General Pinochet e
à Junta Militar.
Lacroix ministra aulas aos generais recorrendo às obras principais da teoria
marxista. Bolaño mais uma vez realiza o hibridismo que lhe é peculiar, ao misturar
personagens ficcionais com personagens reais da história chilena. Dentre eles, nesta
parte do romance, vemos o nome de Marta Harnecker, teórica chilena do marxismo
que, em decorrência do golpe militar, se exilou em Cuba de onde dirigiu o MEPLA,
Centro de Investigações da Memória Popular Latino-Americana. Sua obra Conceitos
elementares do materialismo histórico surgia na narrativa como centro de toda a questão
sobre as aulas de marxismo. Muitas das vezes, Harnecker fora tratada com desconten-
tamento pelos generais, devido à sua relação com o marxismo e à aproximação com a
política cubana. Trata-se de uma personagem que aparece para ilustrar a questão do
marxismo presente na América Latina. Causa estranheza para os “alunos” o fato de
uma compatriota saída do ventre da pátria chilena manter relações com a desvirtuada
pátria cubana, depreciando totalmente tal relação:

Falamos de Marta Harnecker. O general Leigh disse que essa senhora tinha amizade
com uns cubanos. O almirante confirmou a informação. É possível?, perguntou o gene-
ral Pinochet. Pode ser possível uma coisa dessas? Estamos falando de uma mulher ou
de uma cadela? A informação está correta? Está, disse Leigh (BOLAÑO, 2004, p. 74).

Em continuação, o narrador apresenta um diálogo entre Lacroix e Pinochet so-


bre a formação intelectual de Allende, diálogo em que o general desqualifica Allende
como intelectual e como mártir da pátria: de acordo com o general, Allende não lia
nada, nem ao menos se dava o trabalho de fazê-lo, o que teria acontecido com os outros
antecessores que presidiram o Chile – diferentemente do ditador que se julga, na con-

132 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


JORGE BENEDITO DE FREITAS

versa com Lacroix, um genuíno intelectual, por ter publicado três livros e inúmeros
artigos. A interessante passagem da conversa entre o padre e o ditador termina com a
revelação de Pinochet sobre o motivo pelo qual estava interessado no marxismo.

Por que o senhor acha que quero aprender os rudimentos básicos do marxismo?, per-
guntou. Para prestar um serviço melhor à pátria, meu general. Exatamente, para com-
preender os inimigos do Chile, para saber como pensam, para imaginar até onde estão
dispostos a ir. Eu sei até onde estou disposto a ir, garanto-lhe. Mas também quero saber
até onde eles estão dispostos a ir [...] (BOLAÑO, 2004, p. 79).

Os inimigos do Chile são caracterizados pelos marxistas, pelos comunistas e


pelos opositores do regime ditatorial de Pinochet apoiado pelos Estados Unidos contra
a intentona comunista. Esta foi uma situação política comum em quase toda a América
Latina, onde ditadores reinavam com o apoio do poderio militar norte-americano. O
combate a esses “inimigos da pátria” se deu em uma perseguição violenta, resultando
na morte de milhares de cidadãos em toda a América Latina. No caso do Chile, Pino-
chet estava com tamanha “disposição” que ficou no poder com mão de ferro até mea-
dos da década de 90.
Lacroix ainda se lembra de uma promissora candidata a escritora, Maria Cana-
les, que durante as noites, sem lugares para frequentar, cedia a sua casa aos artistas
para que estes realizassem encontros festivos. Ao desenrolar do romance, a casa se re-
vela como sendo um local onde seu marido, um executivo norte-americano, realizava
torturas contra os elementos subversivos contrários ao regime ditatorial.
Mais próximo do fim do romance, o narrador Lacroix apresenta uma metáfora
sobre a situação chilena, como país dominado por uma ditadura, mostrando a incapa-
cidade de os chilenos se posicionar e promover uma mudança na situação do país.
Ao fim do romance retorna a figura que inicia as preocupações de Lacroix, o
“jovem envelhecido”, figura enigmática, que aparece dando a entender que o velho
padre está, enfim, encontrando a morte, e em seus delírios dialoga com ela, de modo a
prestar contas de seus feitos em vida.

IV. Relações entre Roberto Bolaño e Pablo Neruda

Tomemos como ponto de apoio para esta relação a leitura do conto intitulado
“Carnet de Baile”, do livro Putas Asesinas (2001). Segundo Giraldo, o conto autobiográ-
fico descreve a situação de um Bolaño inicialmente apaixonado pela obra de Neruda, o
que se transforma posteriormente numa relação conflituosa. O conto começa com Bo-
laño descrevendo o fato de que sua mãe sempre lia para ele e os irmãos o livro de Ne-
ruda, Vinte Poemas de Amor e uma canção desesperada (1924). Bolaño inicia a descrição de
sua relação com o poeta cânone da literatura chilena, apontando o temor de que aquela
obra nerudiana tenha alcançado o número de um milhão de exemplares vendidos.

133 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


O GOLPE MILITAR CHILENO EM PABLO NERUDA E ROBERTO BOLAÑO

1. Mi madre nos leía a Neruda en Quilpué, en Cauquenes, en Los Ángeles. 2. Un único


libro: Veinte poemas de amor y una canción desesperada, Editorial Losada, Buenos Aires,
1961. En la portada un dibujo de Neruda y un aviso de que aquélla era la edición con-
memorativa de un millón de ejemplares. ¿En 1961 se había vendido un millón de ejem-
plares de los Veinte poemas o se trataba de la totalidad de la obra publicada de Neruda?
Me temo que lo primero, aunque ambas posibilidades son inquietantes, y ya inexisten-
tes (BOLAÑO, 2001, p. 91).

Desde o início, a referência a Neruda fez-se presente na literatura e na vida de


Bolaño. O livro passou de mãos em mãos, percorrendo algumas aldeias ao sul do Chile
até cair em suas mãos, dado pela sua irmã. Bolaño, no decorrer do conto, enfatiza sua
posição inicialmente ridícula e ingênua em relação à literatura chilena, da qual tomava
conhecimento, chegando a descrever uma discussão em que aponta Neruda como o
maior poeta chileno: “Yo era por entonces un joven hipersensible, además de ridículo y
muy orgulloso, y afirmé que el mejor poeta de Chile, sin duda alguna, era Pablo Neru-
da. Los demás, añadí, son unos enanos” (BOLAÑO, 2001, p. 92). Interessante ressaltar
que a discussão ocorria numa comparação entre Neruda e o poeta chileno Nicanor Par-
ra, apontado por Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo como uma das influências mais
marcantes na literatura de Bolaño.

O conto desenha o trajeto de leitura do narrador Bolaño, começando com Neruda e de-
pois passando por Vallejo, Huidobro, Borges, De Rokha, Girondo até chegar a Nicanor
Parra, que será uma de suas influências mais marcantes (GIRALDO, 2007, p. 183).

As palavras do narrador Bolaño na sequência do conto adentram o ano de 1973,


precisamente na sua volta ao Chile, em agosto, um mês antes do golpe militar. O escri-
tor retorna ao país para participar da construção do Socialismo, descrevendo o dia 11
de setembro de 1973 como um espetáculo sangrento e humorístico. À frente o narrador
relata a sua prisão pelos militares, quando é então taxado como terrorista estrangeiro;
após ajuda de um antigo colega, consegue escapar e foge para o México, finalizando o
conto com a sua tristeza por estar impossibilitado de voltar ao seu país.
Importante ressaltar a passagem em que Bolaño se depara com o livro de me-
mórias de Neruda, Confesso que Vivi:

47. Lo confieso: no puedo leer el libro de memorias de Neruda sin sentirme mal, fatal.
Qué cúmulo de contradicciones. Qué esfuerzos para ocultar y embellecer aquello que
tiene el rostro desfigurado. Qué falta de generosidad y qué poço sentido del humor
(BOLAÑO, 2001, pp. 93-94).

Bolaño “confessa” – fazendo uma referência ao título do livro de Neruda – que


não poderia ler o livro sem sentir-se mal perante as enormes contradições presentes nas

134 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


JORGE BENEDITO DE FREITAS

memórias do poeta. Qualifica a obra como uma tentativa de ocultar e embelezar aquilo
que tem um rosto desfigurado.
Interpretando essa possível desfiguração da obra nerudiana, é vigente o apon-
tamento em seu livro autobiográfico Confesso que Vivi, a condição de maior importância
dada pelo poeta a sua outra obra de forte vertente política intitulada Canto Geral, de
1950. Nas palavras de Neruda, “Naquele ano de perigo e de clandestinidade terminei
meu livro mais importante, o Canto General” (NERUDA, 1983, p. 181). A partir daí, é pos-
sível encontrar um Neruda que idealiza a vertente política, chegando a renegar os ver-
sos anteriores, de caráter romantizado. Enfatizando essa posição, temos abaixo a pre-
sente citação:

Quando eu escrevia versos de amor, que me brotavam


de todos os lados, e me morria de tristeza,
errante, abandonado, roendo o alfabeto,
me diziam: “Como és grande, ó Teócrito!”
Eu não sou Teócrito: tomei a vida,
me pus diante dela, dei-lhe beijos até vencê-la,
e logo me fui pelas vielas das minas
para ver como viviam outros homens.
E quando saí com as mãos manchadas de imundícies e dores,
eu as levantei a mostrá-las nas cordas de ouro,
e disse: “Eu não compartilho do crime”
(NERUDA, 1984, p. 366).

Percebe-se nessa passagem o sentimento de recusa da Neruda em relação a seus


antigos versos amorosos, ao posicionar-se contra o título de “Teócrito”, e a partir de
então buscar a verdade, ou a verdadeira inspiração poética – dos “homens das minas”
– os mineiros chilenos. Ao fim do livro Canto Geral, pode-se apontar até mesmo uma
alienação do poeta em relação a sua própria vida, ao colocar toda sua atual condição
humana decorrente da sua entrada no Partido Comunista.
No romance Noturno do Chile, a participação de Neruda como personagem é
evidente, pois ele se relaciona com os personagens ficcionais, chegando a ser apontado
várias vezes pelo personagem principal, Lacroix, como o maior nome da poesia chile-
na. Segundo Jáder Vanderlei Muniz de Souza, mestrando em Literatura Hispano-
Americana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP) em seu artigo intitulado Nocturno de Chile: literatura e história, “ao
longo do romance Nocturno de Chile o poeta é mencionado aproximadamente 20 vezes,
sempre como um nome absoluto, inquestionável na tradição literária de seu país”
(SOUZA, 2010, p. 517).
Finalizando as considerações sobre as relações literárias entre os dois autores,
Neruda é mencionado no fim do conto “Carnet de Baile” como um fantasma que ator-
menta o narrador escondido em um dos corredores de sua casa, precedido pela apari-
ção de Hitler. O narrador deduz que, após o aparecimento de Hitler, o próximo seria

135 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


O GOLPE MILITAR CHILENO EM PABLO NERUDA E ROBERTO BOLAÑO

Stalin; porém coincidentemente surge Neruda, que em sua ideologia política denomi-
nava-se stalinista.

V. Referências bibliográficas

ALLENDE, Isabel. Paula. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

ALMOND, Mark. O livro de ouro das revoluções. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

BOLAÑO, Roberto. Noturno do Chile. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

_______. “Carnet de Baile”, in: Putas Asesinas. Barcelona: Anagrama, 2001.

CÁCERES, Florival. História da América. São Paulo: Ed. Moderna, 1983.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Galeano Freitas. São Paulo:
Paz e Terra, 2005.

GIRALDO, Rafael Eduardo Gutiérrez. “Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa


contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño”, in: Revista Gragoatá. Nite-
rói, n. 22, p. 179-190, 1.º sem. de 2007.

NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. 3 ed. Trad. de Olga Savary. São Paulo: Difel/Círculo
do Livro, 1983.

_______. Canto Geral. 6 ed. Trad. de Paulo Mendes Campos. São Paulo: Difel, 1984.

SOUZA, Jáder Vanderlei Muniz de. “Nocturno de Chile: literatura e história”, in: XV
Seminário de Teses em Andamento, 2009. Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP). Anais do SETA, Campinas, n. 4, 2010, p. 510-520.

136 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):124-136, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):137-142, 2011

Um Oswald fotógrafo, também poeta


______________________________________________

LEVI MIRANDA AGRESTE DA SILVA


(IEL/ Unicamp), sob a orientação do Prof. Dr. Jéfferson Cano

Resumo: O ensaio a seguir a visa explorar uma face pouco comentada do escritor brasi-
leiro Oswald de Andrade. Tendo vivido em meio a um momento revolucionário com o
recente acesso ao cinema e à fotografia, podemos claramente perceber a influência
dessas outras formas de linguagem na escrita de Oswald. Detentor de técnicas primo-
rosas, o escritor consegue forjar um efeito imagético às suas palavras, principalmente
se observarmos o romance Memórias Sentimentais de João Miramar. Não é de todo
surpreendente, pois a fotografia e o cinema têm suas similaridades com a literatura,
das quais Oswald fez uso para compor um romance praticamente icônico. Com capítu-
los curtos e uma escrita descontinuada, o autor nos conduz ao longo de toda a história
por meio de memórias – como nos revela o título da obra – e é exatamente essa carac-
terística que pretendemos desenvolver neste trabalho.
Palavras-chave: fotografia; cinema; modernismo; imagem.

À primeira vista, o título pode causar estranhamento. Afinal, qual a relação en-
tre Oswald de Andrade, renomado poeta modernista, com a fotografia? O que faria co-
locar suas tantas qualidades como escritor supostamente de lado para ressaltar sua face
de fotógrafo – se é que ele a teve? Primeiramente, poesia e fotografia são formas de ex-
pressão, tipos diferentes de linguagem, mas ambas podem ser consideradas arte. Desse
ponto de vista, há pelo menos um nó que une as duas, estabelecendo um mínimo con-
tato entre elas; contudo, veremos que ao longo desse comprido fio, apresentar-se-ão
diversos nós capazes de relacioná-las.
É importante diferenciar a fotografia de uma “imagem de mídia”. A primeira é
preenchida por uma subjetividade e diversidade não encontrada na segunda. De fato,
segundo Sousa a fotografia faz parte do grupo de expressões visuais que constitui uma
essência do homem desde os tempos primitivos: a fabricação de imagens (SOUSA, 2009,
pp. 21-22). Tratando as imagens como “mediações entre o homem e o mundo” (idem,
p. 22), estas tem uma função muito similar à das letras. É possível usá-las para capturar
um momento, uma sensação, representá-la de maneira que inspire a uma compreensão
diferenciada e, por um momento, permitir que outra pessoa veja com os olhos do au-
tor/fotógrafo. Como nos diz, Sousa, “a capacidade da fotografia de provocar a imagi-
nação é um dos principais motivos que permitem que a relacionemos à literatura”
(idem, p. 23).

137 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):137-142, 2011


LEVI MIRANDA AGRESTE DA SILVA

Uma das principais qualidades da fotografia é paralisar instantes, a fim de que


durem o suficiente para os olhos poderem perceber todos os adornos que envolvem
aquele momento. Essa capacidade faz com que nós possamos extrair sensações e inter-
pretações diversas, únicas a cada um, dentro das limitações da foto – assim como o pa-
pel que carrega as letras também apresenta suas limitações. No entanto, seria ingenui-
dade supor que as letras e as imagens pudessem causar os mesmos tipos de impres-
sões, afinal são formas diferentes de linguagem. Contudo, é possível encontrar uma
área de intersecção entre as duas, de modo que a fotografia possa ser influenciada pela
poesia e também causar influência na mesma. Como exemplos, Sousa nos apresenta
Oswald de Andrade e o também modernista em sua área, Thomas Farkas, fotógrafo
brasileiro cujas fotos “apresentam certas características que se aproximam de figuras de
linguagem típicas do texto poético, como a metáfora e a metonímia” (idem, p. 13).
O Brasil de Oswald de Andrade era um país experimentando os primeiros gos-
tos da urbanização. Entretanto, tal degustação vinha basicamente do exterior. Ao ler-
mos romances como Lucíola, de José de Alencar, e Quincas Borba, de Machade de Assis,
ou ainda peças teatrais como A Capital Federal, de Artur Azevedo, vemos uma socieda-
de em que o elegante era ser – ou parecer – do exterior, principalmente da Europa, su-
posto núcleo de cultura genuína. Essa visão eurocêntrica incomodava os modernistas
que, apesar de terem sido influenciados pelas estéticas europeias, começaram a sonhar
com uma estética nacional de qualidade. Sendo assim, “o modernismo propunha a re-
novação no domínio da produção artística. Ao mesmo tempo, e enfaticamente, ela faz a
defesa da nacionalização das fontes de inspiração do artista brasileiro” (MORAES, 1998,
p. 221). Mas à medida que a influência europeia no cenário internacional começa a es-
morecer, o tema nacionalista deixa de ser obsoleto e se torna cada vez mais necessário
(VELLOSO, 1993, p. 89). O ideal modernista começa, então, a promover a própria nação
como inspiração artística, suas belezas naturais e também a população em sua diversi-
dade étnica e simplicidade cultural, afinal “a modernização da cultura só se viabiliza se
estiver assentada em tradições nacionais caracterizadas enquanto populares” (MORAES,
Op. cit., 221). Portanto, pode-se dizer que os olhos dos modernistas voltaram-se, ao
menos um pouco, para as ruas – tanto alguns escritores quanto pintores, ou seja, a arte
textual e visual –, como vemos nos quadros de Tarsila do Amaral e na prosa de João
Guimarães Rosa.
Em meio a este quadro, nasce, em 19 de junho de 1898, o cinema brasileiro,
mesmo que iniciado de forma estranha: “Um italiano (radicado no Brasil), com equi-
pamento e material sensível europeus, filma, em território francês (o paquete Brésil),
um filme brasileiro” (BERNADET, 2004, p. 16). Com a chegada do cinema no Brasil – es-
pecialmente em São Paulo – a escrita começa a ser cada vez mais influenciada pela no-
va dinâmica da imagem, de tal forma que “entendida como realidade em movimento, a
vida moderna encontra sua melhor forma de expressão no cinema” (MORAES, Op. cit.,
p. 225). Assim que surgiu a primeira sala de cinema, em 1907, os filmes passaram a ser
mais acessíveis à população, uma vez que os cineteatros – locais onde se realizavam as
primeiras atividades cinematográficas – eram frequentados apenas pelas elites, contu-
do, “estimulado pelo baixo preço da entrada” (SANTORO, 2005, p. 4) dos primeiros ci-
nemas, seu público foi socialmente mais diversificado. Ou seja, assim como esperavam

138 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):137-142, 2011


UM OSWALD FOTÓGRAFO, TAMBÉM POETA

as ideias modernistas, a arte não está sendo apenas inspirada no povo, mas este entra
em contato com ela.
No misto dessas influências e tendências, encontramos um Oswald de Andrade
ávido por criar uma identidade nacional, e que achou nas imagens – fotografia e cine-
ma – um estilo inovador no Brasil. Ao tratar de um texto produzido por Oswald, Sousa
ressalta que “o poeta parece comemorar a liberdade proporcionada pelo surgimento da
máquina fotográfica, que permitiria um novo tipo de artista, mais livre das convenções
sociais” (SOUSA, Op. cit., p. 142). De fato, encontramos em Oswald aspectos muito simi-
lares aos da fotografia. Suas poesias curtas – ou, no caso de Memórias Sentimentais de
João Miramar, seu capítulos curtos – normalmente representam instantes, seus movi-
mentos paralisados, os aspectos da paisagem que a torna bela, ou ainda um momento
emocional descontextualizado, instantâneo. Por exemplo, o capítulo inicial do romance
citado acima, O Pensieroso:

Jardim desencanto
O dever e procissões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistério [...] (ANDRADE, 1978, p. 13).

As linhas iniciais, em forma de versos, destacam cada uma das descrições apon-
tadas. Percebemos que há um jardim, uma procissão, cônegos. Ganhamos igualmente
uma noção emocional da memória: jardim desencanto, dever, procissão com pálios,
circo vago e sem mistério. E ainda um aspecto subjetivo de localidade, ao situar o tal
circo “lá fora” – aspecto presente também na fotografia, na qual a “subjetividade é
atingida a partir de uma cena exterior” (SOUSA, Op. cit., p. 140). Os artifícios do autor
nos dão a impressão de que estamos sentados num sofá ao seu lado, enquanto ele tira
de uma caixa e nos apresenta memórias em forma de fotos ou cartas, e assim nos conta
sua história. É importante apontar que a descrição não é basicamente física, mas traz à
tona tudo que pode ser contido numa memória – uma vez que assim o título do livro
pressupõe –, ou seja, imagens cortadas apresentas em sequência – mais similar ao di-
namismo do cinema do que propriamente à fotografia, uma vez que também se consi-
dere a influência cubista no autor –, cheiros, sons, falas, sensações etc. Como podemos
perceber na continuação deste mesmo capítulo, quando o autor descreve as palavras da
sua mãe e seus pensamentos na procissão:

Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.


– O Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser mãe de Deus.
Vacilava o morrão de azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido
vermelhava.
– Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não têm pernas,
são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém
(ANDRADE, Op. cit., p. 13).

139 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):137-142, 2011


LEVI MIRANDA AGRESTE DA SILVA

O eu lírico nos apresenta imagens marcantes de sua infância: sua mãe chaman-
do-o para o oratório, as mãos grudadas da mãe, preparadas para orar, a fala da mãe
provavelmente o instruindo quanto a sua fé, os elementos presentes no ritual – azeite e
talvez a figura da santa –, sua reza automatizada, misturada e interrompida pelos seus
pensamentos, voltados às pernas das mulheres. Uma foto pode não guardar as falas
que ocorreram ou seus pensamentos naquele instante, mas a memória sim. Portanto,
não é apenas uma realidade fotográfica que o autor pretende representar, mas como se
fossem fotos trespassadas pelas memórias do eu lírico do instante. Vejamos claros
exemplos sobre a intenção icônica de Oswald, numa sequência de capítulos referentes a
uma viagem pela Europa de João e sua colega de infância; são eles “Cerveja”, “Costele-
ta Milanesa”, “Veneza” e “Mont-Cenis”:

Empalada na límpida manhã a Alemanha era uma litografia gutural quando os


corações meu e de Madô desceram malas em München.
Paredes enormes davam comida a portais góticos. Um príncipe da Baviera che-
gou para as calçadas perfiladas e gordas hurrarem a carruagem que entrou no povo por
mitrados cavalos sólidos.
E um bardo garganteou entre bocks na fumaça sonora de valquírias.

***

Mas na limpidez da manhã mendiga cornamusas vieram sob janelas de grandes


sobrados.
Milão e os Alpes imóveis no orvalho.

***

Descuidosas coisas novas pingaram dias felizes na cidade diferente dos doges.
Descidos da janela do hotel o estrangulamento de palácios minava sob relógio
de vidro negro com horas áureas na direção da praça bizantina.
[...]
Cristais jóias couros lavrados marfins caíam com xales italianos de côres vivas
nos canais de água suja.
Gondolamos graciosamente na ponte de Rialto e suspiramos na outra […].

***
O alpinista
de alpenstock
desceu
nos Alpes (idem, pp. 29-32).

Nesses 4 capítulos, Oswald retrata passagens do eu lírico por Alemanha, Itália


(Milão e Veneza) e França. Mas pouco nos diz do que fizeram as personagens naqueles
locais, nem sequer se preocupa em descrevê-los em detalhes, faz apenas pequenos co-
mentários de determinadas cenas que ficaram na memória de João Miramar. Tem-se a

140 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):137-142, 2011


UM OSWALD FOTÓGRAFO, TAMBÉM POETA

sensação de imagens soltas, nas quais aspectos inusitados são ressaltados – as mulheres
de Milão sob as janelas dos sobrados, o relógio de vidro negro de Veneza, o alpinista de
Mont-Cenis –, sem uma continuidade explícita no enredo, em que as imagens são prio-
ritárias em relação às ações. Do ponto de vista estético, vale perceber o domínio do au-
tor sobre a linguagem, se dando liberdade de brincar com palavras, formando neolo-
gismos – hurrarem, cornamusas, gondolamos – e deixando as sentenças menos carre-
gadas ao eliminar determinadas palavras não essenciais para a compreensão – “cristais
jóias couros lavrados marfins caíam...” –, apesar de forçar o leitor ao “decifrar do estilo
em que está escrito tão atilado quão mordaz ensaio satírico” (idem, p. 11). Ou seja, a
própria forma de escrita do autor é cortada e descontinuada – não tanto quanto o mo-
dernista irlandês James Joyce, mais ainda assim descontinuada –, facilitando a relação
entre sua linguagem poética e a fotografia. Outra característica importantíssima no li-
vro – e também nos poemas de Oswald de Andrade – são os títulos. Eles constituem o
sentido do capítulo juntamente com seu corpo, de tal forma que, sem os títulos, alguns
capítulos não poderiam ser compreendidos, como o último deles aqui apresentado,
Mont-Cenis. Tendo em mãos apenas o corpo do capítulo, não teríamos a noção de que
as personagens saíram de Veneza para a França, uma vez que este só faz referência aos
Alpes, que cruzam sete diferentes países, dentre eles a própria Itália, onde estavam an-
teriormente. Entrando em contato com o título, no entanto, temos informações suficien-
tes para deduzir que João e Madô estavam visitando os Alpes franceses.
O romance Memórias Sentimentais de João Miramar não é, porém, um álbum de
fotografias. Além dos outros aspectos que compõem uma memória e não estão presen-
tes numa foto – sentimentos, falas, razões –, encontramos também alguns capítulos nos
quais são apresentadas cartas. Não se comenta nada sobre elas e seus conteúdos não
são alterados – inclusive os deslizes gramaticais e ortográficos presentes nas cartas de
Minão da Silva, administrador do sítio de João. Continuamos com a sensação de nos
serem apresentadas memórias do eu lírico contidas numa caixa, fotos e cartas. Tal simi-
laridade nos faz refletir novamente sobre as relações entre imagem e escrita, como uma
pode exercer influência sobre a outra e de como não é absurdo nenhum admitir que
podemos escrever de maneira fotográfica, recortada, instantânea. E talvez propor que o
meio termo entre a fotografia e a escrita seja o cinema, possível gatilho para a inspira-
ção de Oswald de Andrade, dentre outros poetas e escritores, uma vez que viveram – e
talvez cresceram – no entusiasmo cinematográfico da moderna São Paulo.
Concluindo, assim como todos os outros momentos literários que conhecemos,
a arte era afetada pelas condições sócio-históricas. Não diferentemente, o Modernismo
se viu influenciado pelas necessidades de sua época, de criar uma identidade nacional.
Enquanto isso, o Brasil recebeu o advento do cinema, que revolucionou a forma de se
ver imagens, repercutindo inclusive na escrita, como, por exemplo, no estilo de Oswald
de Andrade, que apresentava nas suas letras diversas características presentes no ci-
nema e na fotografia, fato que o Brasil ainda não havia visto.

141 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):137-142, 2011


LEVI MIRANDA AGRESTE DA SILVA

Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. Obras Completas II: Memórias Sentimentais de João Miramar. Serafim
Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedago-


gia. São Paulo: Annablume, 2004.

MORAES, Eduardo Jardim de. “Modernismo Revisitado”, in: Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 1, n.º 2, 1988.

SANTORO, Paula Freire. A relação da sala de cinema com a urbanização em São Paulo: do pro-
vinciano ao cosmopolita. Texto produzido para o XI Encontro Nacional de Planejamento
Urbano e Regional, em Salvador, BA, 2005.
Disponível em http://saopaulo.org.br/download/257.pdf. Acessado em 28/10/2010.

SOUSA, Fabio d’Abadia de. A apreensão no instante: relações entre a literatura e a fotografia.
Tese de Doutorado em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás. Goiânia,
GO, 2009. Disponível em: http://bdtd.ufg.br/tedesimplificado/tde_arquivos/49/TDE-
2009-11-20T121435Z-485/Publico/Tese_Fabio_Sousa.pdf. Acessado em 12/10/2010.

VELLOSO, Mônica Pimenta. “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo


paulista”, in: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 6, n.º 11, 1993.

142 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):137-142, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):143-147, 2011

A luz é como a água, de García Márquez:


a criação de um universo fantástico
_________________________________________________

LUMA MARIA BRAGA DE URZEDO

Universidade Federal de Uberlândia. Orientada pela Profª Drª Marisa Martins


Gama-Khalil, do Instituto de Letras e Linguística da UFU.
e-mail: lumam.braga@gmail.com

Resumo: Nesse artigo, procuramos evidenciar a importância dos elementos da nature-


za para o sentimento do fantástico na obra de Gabriel García Márquez, mais especifi-
camente no conto “A luz é como água”, presente no livro 12 contos peregrinos. Para
isso, tomamos como arcabouço teórico os estudos de Gaston Bachelard sobre os qua-
tro elementos da natureza. Para compreendermos melhor as espacialidades, traba-
lhamos com os conceitos de utopia, atopia e heterotopia, propostos por Michel Fou-
cault. Além dos estudos espaciais, trabalharemos com as teorias do fantástico de Tzve-
tan Todorov e também fizemos uso das reflexões de Louis Vax, em A arte e a literatura
Fantástica.
Palavras-chave: fantástico; espaço; elementos da natureza

Em A luz é como a água, de Gabriel García Márquez, presente no livro Doze con-
tos peregrinos (1992), temos Totó e Joel como personagens principais e desencadeado-
res de um enredo extraordinário. Desde o princípio do conto as duas crianças demons-
tram um enorme interesse por equipamentos para mergulho e por um barco. Tal desejo
gera estranhamento nos pais, já que no pequeno apartamento que habitavam em Madri
não havia “outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro” (1992, p. 215). Con-
tudo, os meninos haviam encontrado uma nova maneira de navegação: através da luz.
O fantástico se inicia por meio de uma imagem poética. O narrador, quando
perguntado pelos meninos como a luz acende ao apertar apenas um botão, responde
que “A luz é como água – [...] A gente abre a torneira e sai” (1992, p. 216). Esse narra-
dor não se identifica em nenhum momento, só nos informa que estava em um seminá-
rio sobre poesia quando foi perguntado sobre a origem da luz pelos meninos. Com tal
referência podemos enxergar a imagem do autor Gabriel García Márquez que se faz
presente na maioria dos Doze contos peregrinos (1992).

143 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):143-147, 2011


LUMA MARIA BRAGA DE URZEDO

Esse narrador, um poeta, não esperava que sua resposta desencadeasse a aven-
tura dos meninos, muito menos o fantástico. Todorov em Introdução à literatura fantásti-
ca (2008), no capítulo “A poesia e a alegoria”, nos informa sobre a reprodução de ima-
gens poéticas por meio de imagens:

Concorda-se hoje que as imagens poéticas não são descritivas, que devem ser lidas ao
puro nível da cadeia verbal que constituem, em sua literalidade, e não realmente naque-
le de sua referência. A imagem poética é uma combinação de palavras, não de coisas, e
é inútil, melhor: prejudicial, traduzir esta combinação em termos sensoriais (2008, p. 67).

Entretanto, Totó e Joel passam da “fórmula à representação” (2008, p. 67). O que


era apenas uma figura de linguagem, uma comparação, passa a ter existência nessa
ficção. Com isso o fantástico se instaura. Os meninos ganham o barco dos pais e pas-
sam a navegar na luz durante as noites em que estão sozinhos em casa. Por ser uma
experiência tão onírica e tão espontânea para as crianças nos questionamos se o insólito
não passa de imaginação. A hesitação, descrita por Todorov (2008) como um dos prin-
cípios básicos para que o fantástico aconteça, parece não existir entre os meninos, po-
rém os leitores hesitam mais justamente pela forma natural como o insólito é desenca-
deado.
Percebemos que o insólito ocorre principalmente pelos espaços naturais. Esses
são determinantes para a transcendência de uma realidade cotidiana para uma reali-
dade fantástica e refletem o desejo de libertação do real ficcional. Para compreender-
mos a atuação desses elementos naturais nas narrativas, nos fundamentamos em Gas-
ton Bachelard, que em A água e os sonhos, afirma:

Com efeito, acreditamos possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos qua-
tro elementos, que classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associ-
em ao fogo, ao ar, à água ou à terra. E, se é verdade, como acreditamos, que toda poéti-
ca deve receber componentes – por fracos que sejam – de essência material, é ainda essa
classificação pelos elementos materiais fundamentais que deve aliar mais fortemente as
almas poéticas (1999, p. 3).

Em “A luz é como a água”, temos como força imaginativa três elementos: água,
fogo (representado pela luz) e ar (representado pela leveza durante os mergulhos na
luz dentro do apartamento). Cada um tem uma representação simbólica e a união des-
ses elementos designa a maneira pela qual os meninos escapam do real, do previsível e
alcançam uma realidade íntima.
A luz, que desencadeia todos os acontecimentos fantásticos do conto, refere-se
especialmente ao fogo que, para Bachelard (1999), é uma força imaginativa transcen-
dente:

144 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):143-147, 2011


A LUZ É COMO ÁGUA, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Essa idealização do fogo na luz parece ser claramente o princípio da transcendência no-
valisiana quando se busca apreender esse princípio o mais próximo possível dos fenô-
menos. Novalis diz, com efeito: “A luz é o gênio do fenômeno ígneo.” A luz não é ape-
nas um símbolo, mas um agente da pureza. “Lá onde a luz não encontra nada a fazer,
nada a separar, nada a unir, ela passa. O que não pode ser separado nem unido,é sim-
ples, puro”. Portanto, nos espaços infinitos, a luz não faz nada. Ela espera o olhar. Espe-
ra a alma. É, pois, a base da iluminação espiritual. Talvez ninguém jamais tenha extraí-
do tanto pensamento de um fenômeno físico quanto Novalis ao descrever a passagem
do fogo íntimo à luz celeste. Seres que viveram pela chama primeira de um amor terres-
tre acabam na exaltação da pura luz. Essa via de autopurificação é indicada com preci-
são por Gaston Deryke em seu artigo sobre a Experiência romântica. Ele cita precisa-
mente Novalis: “Com toda a certeza eu era demasiado dependente dessa vida – um po-
deroso corretivo era necessário... Meu amor transformou-se em chama, e essa chama
consome pouco a pouco tudo o que há de terrestre em mim” (1999, p. 135).

A luz deixa de ser um fenômeno físico e passa a ser um fenômeno fantástico


devido ao olhar lançado pelos meninos. Os garotos passam do ordinário ao extraordi-
nário já que a luz revela o desejo onírico, a profundidade e leveza de seus olhares.
A profundidade da imagem poética descrita pelo narrador advém não só do
elemento fogo, mas especialmente pela associação desse com outros dois elementos
extremamente fugidios: a água e o ar.
Para Bachelard, “[...] a água é também um tipo de destino, não mais apenas o
vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um
destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser” (1999, p. 6).
Dizer que a luz é como água nos parece mais coerente ainda se refletirmos so-
bre a afirmação feita por Bachelard (1999). Pensar na água como um elemento de pro-
fundidade, destino essencial e substancial do ser, origina uma forte necessidade de
transcendência e iluminação. O ser que tem como força imaginativa a água assim como
o que se imagina através do fogo necessita irromper com as barreiras entre o possível e
impossível. Totó e Joel conseguem, por meio de seu olhar para a luz, e inspirado pela
força imaginativa da água, alcançar a leveza do ar, a liberdade de criação de um uni-
verso fantástico.
Unindo água, fogo e ar, os meninos recriam as possibilidades de existência em
um espaço que antes limitava suas vidas. Foucault, em sua conferência intitulada Ou-
tros espaços, nos informa que “a inquietação de hoje se refere fundamentalmente ao
espaço” (2001, p. 413), e percebemos que essa inquietação existe desde o princípio do
conto, quando o narrador descreve o apartamento em que os meninos vivem como um
lugar muito pequeno. Os elementos da natureza surgem para romper com o que aquele
espaço representava anteriormente e passa a ser um espaço de diversão e libertação.
Para melhor compreendermos esse novo espaço, onde a luz passa a ser como a
água, podemos nos basear na metáfora do espelho criada por Foucault:

145 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):143-147, 2011


LUMA MARIA BRAGA DE URZEDO

Acredito que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente outros, as hetero-


topias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista, mediana, que seria o es-
pelho. O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me
vejo lá onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfí-
cie, eu estou lá longe, lá onde não estou, uma espécie de sombra que me dá a mim
mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou ausente:
utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho
existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito retroativo; é a
partir do espelho que me descubro ausente no lugar que estou porque eu me vejo lá
longe. A partir desse olhar que de qualquer forma se dirige para mim, do fundo desse
espaço virtual que está do outro lado do espelho, eu retorno a mim e começo a dirigir
meus olhos para mim mesmo e a me constituir ali onde estou; o espelho funciona como
uma heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar que ocupo, no momento em que
me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real, em relação com todo o espa-
ço que o envolve, e absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a
passar por aquele ponto virtual que está lá longe (2001, p. 415).

Em “A luz é como água”, o insólito acontece porque há espaços que são parte
de uma realidade empírica (heterotópicos) unidos à espaços essencialmente irreais
(utópicos). Com isso cria-se uma nova realidade, uma nova espacialidade, a espaciali-
dade atópica que corresponde à metamorfose do mundo real em fantástico descrita por
Louis Vax, em A arte e a literatura fantástica, que diz que o fantástico: “Não é um outro
universo que se ergue em frente do nosso; é o nosso que, paradoxalmente, se metamor-
foseia, apodrece e se torna outro” (1974, p. 24).
Por fim, o acontecimento insólito, que antes só era presenciado pelas crianças,
ultrapassa o nível da “imaginação” infantil e alcança também o olhar dos adultos. A
hesitação em relação à veracidade do insólito se desfaz e então temos certeza de que o
fantástico acontece nessa narrativa ficcional. O que antes parecia imaginação das crian-
ças e poderia se encaixar no que Todorov (2008) chama de estranho, por receber uma
explicação lógica no final, recebe a confirmação de que não há esclarecimento para o
fantástico. Com essa suposta aceitação do fantástico poderíamos compreender o conto
como o que Todorov (2008) chama de maravilhoso; contudo, essa aceitação não se dá de
maneira plena. Por mais que não possamos justificar os acontecimentos, não conse-
guimos aceitá-los tão facilmente. Por isso, entendemos “A luz é como água” como um
conto fantástico puro, já que não encontramos explicação lógica para os acontecimentos
insólitos, porém não encaramos com tanta naturalidade o extraordinário.
Para Bachelard “[...] a maneira pela qual escapamos do real designa claramente
a nossa realidade íntima” (2001, p. 7). Joel e Totó nos revelaram uma realidade íntima
muito poética em que não há distinção entre possível e impossível, uma realidade em
que o fantástico se sobressai ao que é racional.

146 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):143-147, 2011


A LUZ É COMO ÁGUA, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Referências

Base literária

MÁRQUEZ, Gabriel García. Doze contos peregrinos. 13 ed. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de
Janeiro: Record, 1992.

Base teórica

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. 2 ed. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

______. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

______. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

______. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Pau-
lo: Martins Fontes. 2001.

______. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São


Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”, in: Ditos & Escritos III. Estética: Literatura e Pin-
tura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. Lisboa: Arcádia, 1974.

147 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):143-147, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):148-155, 2011

Filhos da esperança: algumas tópicas do filme


comparadas com o Apocalipse bíblico*
___________________________________________________

RÔMULO BEZERRA
Graduando em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
e-mail: romulo1988@gmail.com

Resumo: O fim do mundo como narrativa está presente em várias culturas e socieda-
des. A mais conhecida e influente representação acerca deste tema, ao menos para o
ocidente, é o Apocalipse de João de Patmos. Essa influência criou diversas tópicas –
como propostas por Barthes – que se encontram nas narrativas de término. Estas nar-
rativas não encontram materialidade somente em textos de cunho religioso, mas tam-
bém em textos e formas de expressão com as mais diversas finalidades, como o cine-
ma. O presente trabalho aponta as tópicas (pós-) apocalípticas presentes no filme Fi-
lhos da Esperança. Tais tópicas são assim relidas e, portanto, ressignificadas. A fim de
analisar tais modificações, aproximou-se o texto do Apocalipse à narrativa cinemato-
gráfica. Para tanto, utilizou-se aqui a noção proposta por Barthes e alguns conceitos
específicos do texto bíblico (como, por exemplo, a noção de ausência de tempo em Je-
rusalém), bem como certos aspectos próprios da estrutura cinematográfica.
Palavras-chave: Literatura e cinema, Apocalipse, Tópica.

Very odd, what happens in a world without children's voices.


Filhos da Esperança

1. Introdução e fundamentação teórica

A noção de fim do mundo está presente em várias culturas, representada com as


mais diversas estruturas e com os mais diversos fins. Para o Ocidente, o fim do mundo
mais conhecido e influente é o Apocalipse cristão.
É possível pensar que, sob uma perspectiva histórica e tendo em mente uma pro-
vável interpretação de seu contexto político, o Apocalipse cristão foi escrito na tradição
judaica de fim do mundo para tornar suportáveis as agruras pelas quais passavam os

*O trabalho foi orientado pelo professor Alcebíades Diniz Miguel (à época, doutorando pela
mesma universidade) e, posteriormente, pela professora Suzi Frankl Sperber (DTL/UNICAMP).

148 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


RÔMULO BEZERRA

fiéis. Crentes que a Roma pagã seria destruída e punida no fim dos tempos, os cristãos
aceitavam não só a “estadia” na terra como também a idéia de martírio. No entanto,
Roma não foi destruída e o Apocalipse tornou-se simbólico. Assim, a interpretação das
imagens do Apocalipse sempre foi adaptada segundo a crise que se instaura. A queda
da Babilônia descrita no livro de João de Patmos pôde ser aplicada tanto à Roma pagã,
no início do Cristianismo, quanto à Roma católica, segundo os protestantes, ou ainda
aos Estados Unidos, segundo algumas vertentes cristãs atuais. Essa adaptação constan-
te consolidou, paradoxalmente, justamente os elementos que não se modificavam. É a
partir desses elementos que a análise deste trabalho será realizada. Para tanto, será
utilizado o conceito de tópicas elaborado por Barthes. Conforme esse conceito, a tópica
é uma “[...] reserva de estereótipos, de temas consagrados, de ‘trechos’ completos que
são colocados quase obrigatoriamente no tratamento de qualquer assunto” (2001, p.
69).
As tópicas conceituadas por Barthes apontam um modo de analisar formas apa-
rentemente díspares, como literatura e cinema. Como já dito, o exercício constante de
leitura e (re)escritura do texto bíblico construiu diversos elementos que são tratados
quase sempre nas narrativas desse tema – o fim do mundo. A tópica possibilita a com-
paração entre esses elementos e, a partir dessa comparação, a análise. O presente estu-
do1 tenciona apontar algumas das tópicas presentes no filme Filhos da Esperança (Chil-
dren of Men), de Alfonso Cuarón, desenvolvê-las em relação ao próprio texto bíblico e
pensá-las no desenvolvimento da narrativa cinematográfica mencionada. Uma vez que
o conceito de Barthes torna possível a aproximação de formas distintas, aqui será reali-
zada também uma análise dos aspectos formais do filme.

2. O universo representado: a desconstrução da Nova Jerusalém.

Filhos da Esperança, dirigido por Alfonso Cuarón, foi lançado em 2006. A primeira
década dos anos 2000, em particular, produziu inúmeras narrativas de cunho apocalíp-
tico em maior ou menor grau e das mais variadas vertentes (Extermínio, Dogville,
Wall•E, 2012, por exemplo). O filme que será analisado aqui foi adaptado do romance
The Children of Men, de P. D. James2.
Em 2027, as mulheres estão inférteis sem qualquer razão aparente; há quase de-
zenove anos não nasce nenhuma criança. O mundo está caótico e diversas metrópoles
caem ante as guerras civis que se instauram. Nesse universo, o único país que ainda
possui alguma (frágil e aparente) estabilidade política e econômica é a Inglaterra. Essa
estabilidade atrai refugiados de todas as partes do mundo, ao que o estado inglês res-
ponde proibindo a presença de imigrantes ilegais e promovendo sua denúncia. Com a

1 Este estudo resultou do trabalho final da disciplina “TL096A – Tópicos em Literatura e Outras
Artes”, ministrada pelo Prof. Dr. Alcebíades Diniz Miguel no Instituto de Estudos da Lingua-
gem, da Universidade Estadual de Campinas.
2 Não será feita, aqui, comparação com a literatura fonte do filme. Para que isso seja bem feito, é

necessário que o foco esteja exclusivamente na comparação, e não é o objetivo deste estudo.

149 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


FILHOS DA ESPERANÇA: ALGUMAS TÓPICAS DO FILME...

repressão do Estado aos refugiados, há inúmeros movimentos políticos que utilizam a


violência para tentar mudar as estruturas sociais. Um desses movimentos, chamado
The Fishes, contacta Theo Faron, burocrata do governo, para conseguir papéis de trans-
porte para uma refugiada. Antigo ativista, Theo desistiu da luta política e separou-se
da esposa – atual líder dos Fishes – após a morte de seu pequeno filho, e leva agora
uma vida de intenso cinismo e letargia, só interrompida quando visita o amigo Jasper,
ex-quadrinista político, cuja esposa fora torturada pelo MI5 (serviço secreto britânico).
No decorrer da narrativa, Theo descobre que a refugiada – Kee – está grávida e os Fis-
hes pretendem matá-lo e usar o bebê como arma política. O único modo de sobreviver é
levar Kee até o encontro do barco de outro movimento social – The Human Project.
Como pode ser visto, diretor e roteiristas, além de construir a narrativa propria-
mente dita, apresentam um universo distante – e, ao mesmo tempo, semelhante – ao do
espectador. Para tanto, Cuarón abusa de planos ou até mesmo de cenas que destacam
os muros pichados com mensagens políticas, as diversas manifestações sociais ou
mesmo a geografia da Londres. A utilização de planos-sequência com a câmera passe-
ando pelos elementos cenográficos é recorrente, aumentando, assim, a capacidade de
representar imageticamente o universo narrativo. Nesse sentido, é interessante ver a
trajetória de Theo até a residência do primo para conseguir os tais documentos. Como
se fosse o veículo que leva Faron, a câmera mostra uma Londres caótica na qual carros
de tecnologia relativamente alta (embora tais veículos sejam consideravelmente seme-
lhantes aos atuais) dividem espaço com riquixás e inúmeros animais como galinhas e
bodes, além das várias gaiolas que prendem os imigrantes ilegais3. Necessário dizer
que essa preocupação com a representação do universo narrado enquanto imagem é
também uma característica do texto bíblico. No texto do Apocalipse, não há, necessari-
amente, uma narrativa, mas sim uma sucessão de imagens; assim, em sua preocupação
estética mais básica e perceptível, o filme já aborda questões relativas ao texto apocalíp-
tico. É necessário salientar a natureza essencialmente visual da construção de mundo
por uma questão de convenção cinematográfica. Muitas vezes no cinema são construí-
das narrativas cujas características internas são transmitidas aos espectadores por meio
de elementos verbais: letreiros antes do início das imagens, diálogos entre personagens.
Cuarón dá a Filhos da Esperança uma característica imagética, ainda que aqui e ali, utilize
recursos verbais para a contextualização da narrativa.
A sobrevivência em uma cidade tão problemática, com tantos conflitos sociais e
tanta instabilidade – o filme começa com uma explosão em um café – aponta para uma
tópica especial nas narrativas de cunho apocalíptico: a cidade decadente. A cidade, no
texto bíblico, é o símbolo da racionalidade. Além disso, ela surgia também no Apoca-
lipse como o lugar de descanso dos escolhidos; a Nova Jerusalém reservada aos santos
é uma cidade. Em contraposição à cidade sagrada, havia a Babilônia, que representava
todos os pecados, toda a decadência e corrupção do mundo humano e que seria destru-
ída no fim dos tempos. A Londres representada no filme nada mais é do que essa tópi-
ca das cidades, porém revisitada. Se o que vemos ao longo do filme é justamente um

3 Essa profusão de elementos tão díspares em um mesmo local será aprofundada no item 3 des-
te estudo.

150 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


RÔMULO BEZERRA

espaço urbano caótico, por outro lado ele é vendido pela propaganda oficial como o
único do mundo no qual ainda se pode viver. É o lugar de salvação dos imigrantes que
fogem de suas terras natais. O filme mescla a cidade da salvação e a cidade decadente
em um mesmo lugar, a partir de pontos de vista diferentes. A ironia é que aqueles que
veem a cidade como salvadora são justamente os que são impedidos de nela habitar.
Esse tipo de remodelação de tópicas está presente em todo o filme de uma forma geral.

3. A ausência de descendentes: a sobrevivência e a história.

O principal problema da sociedade vista no filme é a ausência dos bebês. A for-


ma com a qual esse elemento acarreta todos os outros vistos na narrativa é o que se
pretende analisar nesta seção.
Para conseguir os documentos de transporte necessários para levar Kee até o bar-
co, Theo pede ajuda a um primo do primeiro escalão do governo. Esse primo é organi-
zador do projeto Ark of The Arts, que intercepta as obras de arte do mundo inteiro e as
recolhe em um local seguro em Londres4. Em determinado ponto da cena, Theo per-
gunta para o primo a razão de fazer tudo aquilo se em cem anos não haverá mais nin-
guém para ver. Levanta-se, neste momento, a primeira questão: como e por que a hu-
manidade sobrevive se não há descendência?
A vida sem a ideia de continuidade é tão insuportável que o governo distribui
kits-suicídio para aqueles que desejam dar cabo de sua vida. A ausência de nascimen-
tos não só torna gritante a morte iminente que todos terão, como também faz a vida
ser insuportável e inútil. Um sem-número de relações e atividades sociais - casamento,
trabalho, artes, acúmulo de capital – se tornam vãs. Assim, os kits-suicídios não só são
possíveis como também aceitáveis nesse universo. A ausência da descendência é também
a ausência de futuro.
A pergunta de Theo para o primo levanta outro ponto, dessa vez relacionado à
história. Se em cem anos não haverá ninguém para ver as artes e a cultura de um modo
geral, a história se torna inútil. Não haverá quem pense sobre o passado. Essa consci-
ência de que a ausência de futuro implica a ausência de passado faz a Londres do filme
ser um centro no qual se encontram culturas e tempos totalmente divergentes e confli-
tantes. Isso explica as tecnologias díspares que caminham lado a lado nas avenidas da
cidade, bem como a fotografia lavada, sem cores, do filme.
O caos temporal infla, também, os conflitos sociais. Os objetivos de governo e
oposição se tornam transitórios e, por isso mesmo, perigosos. Ambos os lados não têm
tempo para a conscientização dos cidadãos e recorrem cada vez mais a atitudes extre-
mas como ataques e repressão violenta; os objetivos têm de ser atingidos rapidamente.
A ausência de história é fortemente vista, ainda, na prisão de Bexhill e no gueto que
servem de ambientes para a narrativa a partir de sua metade. Na cena em que Miriam

4 Os nazistas recolheram obras de arte consideradas “degeneradas”, das quais aproximadamen-


te 600 foram expostas em 1937. Existe pelo menos uma lenda de que algumas obras de arte fo-
ram salvas sendo escondidas em locais improváveis.

151 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


FILHOS DA ESPERANÇA: ALGUMAS TÓPICAS DO FILME...

é retirada do ônibus de prisioneiros, ouve-se a canção "Arbeit Macht Frei" do grupo The
Libertines. O título da canção, traduzido, é “O trabalho liberta”. A mesma frase em ale-
mão estava escrita em cima da entrada para o campo de concentração de Auschwitz (e
outros campos, como Birkenau). Ainda nessa cena, é possível ver um prisioneiro com
um capuz preto que remete às prisões ocorridas em Abu Ghraib, durante a invasão
americana no Iraque. O próprio gueto parece concentrar todas as minorias possíveis – e
que já foram perseguidas ao longo dos séculos. É possível ver ainda, no gueto, a ceri-
mônia de funeral público de um líder islâmico. A ausência de história possibilita, as-
sim, a continuação de práticas hediondas por parte do poder instituído sem que haja
qualquer tipo de denúncia ou de protesto. Sem o conhecimento do passado e sem a
possibilidade de futuro, a ética é praticamente inexistente.
Os oposicionistas, por sua vez, também são afetados pelo caos temporal. Não se
furtam à violência, como dito, e muito menos ao uso do primeiro bebê em dezenove
anos para fins políticos. Os ativistas querem apenas utilizar o bebê, filho de uma refu-
giada, como bandeira para a união contra o Estado inglês.
Essa ausência de tempo é também uma tópica da Nova Jerusalém. Como diz o
texto do Apocalipse (21: 6 e 22), Deus é “o princípio e o fim” e é o próprio templo da
cidade divina. Assim, após o Apocalipse, não há a noção de tempo: os justos ficarão
eternamente junto a Deus na cidade celestial e os ímpios pagarão eternamente por seus
pecados. Porém, como dito neste estudo, a Londres do filme é uma mescla da cidade
celestial com a cidade corrompida. A atemporalidade funciona não como um regozijo
eterno dos santos, mas sim um meio para a existência de todos os atos hediondos prati-
cados pela humanidade.

5. A gravidez milagrosa: relações com a imaculada concepção

A gravidez inexplicada de Kee é o elemento narrativo que põe em movimentação


os personagens. Em vez dos outros pontos aqui desenvolvidos, que se relacionam com
os aspectos bíblicos de modo sutil, a concepção de Kee é explicitamente relacionada à
gravidez de Maria, inclusive por meio de diálogos e piadas dos próprios personagens.
A revelação da gravidez para Theo – e, consequentemente, para o espectador –
acontece no estábulo, com a personagem rodeada de vacas. Posteriormente, a persona-
gem dá à luz a filha em um quarto imundo do gueto. Maria, por sua vez, deu à luz Je-
sus em uma manjedoura, rodeada de diversos animais. O nascimento do bebê que
simbolizaria a salvação da humanidade não acontece com pompas e com honra; acon-
tece em lugares vulgares e baixos.
No entanto, enquanto Maria foi escolhida por Deus para conceber seu filho por
sua retidão e sua virgindade, a gravidez de Kee aconteceu ao acaso e após inúmeras
relações sexuais com homens dos quais a garota não soube nem o nome. Logo, o “sal-
vador” apresentado no filme é muito mais humano que o do texto bíblico. Deus está
presente sempre nesse texto, ao passo que na narrativa de Filhos da Esperança, o ho-
mem, a humanidade é o foco. Vemos que para uma humanidade decadente, é necessá-
rio um salvador mais humano.

152 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


RÔMULO BEZERRA

Em determinada cena do filme, Theo, Kee e a garota recém-nascida se encontram


acuados em um dos andares de um prédio, enquanto ocorre uma guerrilha civil entre
as forças do estado e as forças de oposição. O bebê começa a chorar e todos que estão
próximos – mesmo os atiradores – cessam a ação para prestarem atenção à criança. Os
moradores do prédio estendem as mãos como diversas vezes se viu em representações
de Jesus. Assim acontece até que Theo e Kee saem do prédio: tanto soldados, quanto
guerrilheiros param para admirar e resguardar o primeiro bebê em dezenove anos. A
música utilizada na descida dos personagens até a rua, inclusive, remete a certa sacra-
lidade. No entanto, assim que se distanciam do edifício, o conflito volta a acontecer. A
existência concreta de um bebê – o que anula a motivação primeira do conflito – não é
forte o suficiente para vencer a transitoriedade dos objetivos dos envolvidos na guerri-
lha.

6. Theo Faron: a metonímia da humanidade

Esta parte do estudo se distanciará um pouco das tópicas presentes no filme para
realizar uma pequena análise sobre a transformação do personagem Theo Faron e sua
relação metonímica com a humanidade, bem como analisar mais contundentemente os
aspectos formais do filme.
Theo era um ativista e foi em uma manifestação que encontrou Julian. Casaram-
se e tiveram um filho a quem chamaram de Dylan. Em 2008, houve uma pandemia de
gripe e o menino morreu. A dor do luto acabou por separar Theo e Julian; ele se tor-
nou um burocrata letárgico e ela, líder de um grupo ativista radical. Após anos de dis-
tância, Julian pede ao ex-marido que consiga papéis para o transporte de uma imigran-
te ilegal. Cínico, Theo só aceita pelo dinheiro com o qual será pago.
Theo é apresentado no filme como alguém adormecido. Durante toda a introdu-
ção, o personagem demonstra seu cinismo em relação ao destino da humanidade, aos
movimentos sociais, ao governo. Theo está perdido: consciente do futuro (ou da ausên-
cia de) da humanidade, vive somente por inércia. E é por inércia também que a própria
humanidade continua indo, ainda que não tenha mais filhos – assim como Faron. Obje-
tivos nulos são construídos – a conservação de obras de arte, a manutenção/obtenção
de um poder que não perdurará, o acúmulo de dinheiro – apenas para que se consiga
viver.
O início do despertar de Theo para seu papel enquanto integrante da humanida-
de acontece no conflito que culmina com a morte de Julian. Testemunhando a morte
daquela que havia sido sua companheira afetiva, política e sua ligação mais viva com o
filho, Faron é arrancado da letargia habitual. Nesse sentido, a opção do diretor por
primeiramente estabelecer a intimidade entre Theo e Julian por um plano-sequência de
quase quatro minutos para, então, matar a personagem sem qualquer aviso, é compre-
ensível. Assim como Faron, o espectador também se choca com a morte de uma perso-
nagem aparentemente importante. A continuidade aparente do plano contribui para o

153 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


FILHOS DA ESPERANÇA: ALGUMAS TÓPICAS DO FILME...

choque, uma vez que não é possível perceber cortes entre o disparo da arma e a consta-
tação da gravidade do ferimento, apenas movimentação de câmera.
Posteriormente, Faron descobre que será morto e Kee e seu bebê, utilizados como
bandeira política. Os anos de cinismo deram ao personagem a consciência da inutili-
dade dos conflitos, e a gravidez os põe em xeque. Para Theo, não importam os conflitos
políticos, mas o fato que em dezenove anos, finalmente a humanidade parece ter al-
gum tipo de salvação. Theo tem consciência de que o destino do indivíduo dentro da
barriga da garota se liga ao destino da humanidade. A partir desse momento, o perso-
nagem passa a proteger Kee e o bebê. Quando chegam ao gueto, é ele quem faz o parto
da criança e quando são separados, corre atrás dela em meio à guerrilha. Novamente o
diretor privilegia o plano-sequência ao filmar o conflito por quase dez minutos. Não há
cortes que tornem a violência mais sutil. Cuarón simula uma imersão total ao ponto de
sujar a câmera da lente com respingos de sangue. A própria violência é uma tópica das
narrativas de término: não se destrói o mundo sem ela; afinal, a destruição total é um
ato que demanda ferocidade. Em relação à violência, é interessante trazer para este
estudo as reflexões de Luiz Nazario. Em O Cinema Industrial Americano (1987, p. 29), o
autor elabora uma gramática da violência. Nessa reflexão, Nazário aponta que o que
torna a violência algo horroroso ou cômico/pastelão não é o número de matanças ou a
quantidade de sangue vista na tela, mas sim a estilização que é utilizada para a repre-
sentação da violência. Dentro do microcosmo da narrativa, o diretor valoriza, segundo
sua vontade, os elementos desse universo, conotando as relações entre esses elementos
(idem). O autor aponta, assim, que muitas vezes é justamente a ausência da explicita-
ção da violência que torna efetivas e dramáticas as ações de determinados persona-
gens. Embora Cuarón suje a lente da câmera com gotas de sangue – a fim de aproximar
de fato o espectador da guerrilha retratada –, a violência explícita não é utilizada a to-
do o momento e de forma impensada. O diretor tem consciência de que não mostrá-la
pode ser tão – ou mais – efetivo que representá-la. Assim, através de um travelling, ele
narra o destino de Miriam sem ter que, necessariamente, mostrar a personagem sendo
morta. Esse recurso faz a morte da personagem ser mais contundente: assim como os
corpos que jazem no chão, idênticos, Miriam será apenas mais um número, não se le-
vando em conta sua importância para os outros personagens e para o próprio especta-
dor.
Voltando a Faron, o personagem tenta de todas as maneiras que Kee tenha seu fi-
lho e o mantenha vivo. Consciente da importância do bebê, Theo se sacrifica [literal e
metaforicamente] para que ela consiga chegar ao barco Tomorrow e possa de fato ser
uma esperança de amanhã.
Tanto Theo quanto a humanidade se tornaram letárgicos e inertes após a perda
de seus descendentes. Os objetivos de vida e a moral se tornam flexíveis e transitórios.
Porém, o surgimento inesperado e inexplicável da gravidez – tão inexplicável que, sob
certos aspectos, pode ser considerada um milagre – arranca da letargia Theo, que pro-
tege Kee na esperança de que a humanidade também seja salva. Por conta disso, o per-
sonagem acaba morrendo, mas não sem antes ouvir de Kee que sua filha se chamará
Dylan. Tanto Theo quanto a humanidade passam a ter seus descendentes. Faron é a

154 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


RÔMULO BEZERRA

metonímia da humanidade. Sua redenção – individual – consiste em proporcionar ao


gênero humano a possibilidade de redenção – coletiva.

6. Conclusão

A narrativa de Filhos da Esperança utiliza em grande medida os lugares já conhe-


cidos das narrativas (pós-) apocalípticas. Como apresentado aqui, os símbolos religio-
sos estão presentes na própria trajetória dos personagens. No entanto, esses símbolos
são retrabalhados e repensados, de modo que a obra não somente dialoga com o texto
bíblico no sentido de apontar suas referências e tópicas, mas também as ressignifica e
as aproxima de outros elementos culturais mais recentes. Para tanto, são utilizados
aspectos estruturais específicos como cenografia, fotografia e montagem. Assim, Filhos
da Esperança se apresenta não só como uma narrativa envolvente em seu aspecto mais
básico e literal, como também uma obra complexa e inserida em uma tradição narrati-
va.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. “Elementos”, in: A aventura semiológica. Trad. Mario Laranjeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.

BÍBLIA.Apocalipse. Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Trad. João Ferreira de Al-
meida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

NAZARIO, Luiz. O Cinema Industrial Americano. São Paulo: Nova Stella, 1987.

Filmografia

FILHOSda Esperança (Children of Men). Direção: Alfonso Cuarón. Produção: Marc


Abraham, Eric Newman, Hilary Shor, Iain Smith, Tony Smith. Distribuição: Universal
Home Vídeo, 2006. (190 min.).

155 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):148-155, 2011


Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, UNIPAM, (4):156-173, 2011

A literatura reescrevendo história:


as vozes excluídas em Romanceiro da Inconfidência
______________________________________________________________

WALDYR ROCHA IMBROISI


Graduando do curso de Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora
e-mail: embroyler@gmail.com

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a obra Romanceiro da Inconfi-
dência, de Cecília Meireles, e trabalhar as relações entre memória, história e literatura
na obra. O Romanceiro reescreve, de forma poética, a história dos eventos da Inconfi-
dência Mineira, dando diferentes tons a fatos preteridos pela história oficial e trazendo
à tona vozes subalternas, também deixadas de lado pelos historiadores. Como base
teórica para esse trabalho, utilizamos trabalhos de Paul Ricoeur, Walter Benjamin, Lu-
cia Helena Sgaraglia Manna e Aristóteles.
Palavras-chave: Literatura e história, Memória, Cecília Meireles, Romanceiro da Incon-
fidência

1. A autora: Cecília Meireles

“Não diga palavras vãs”


Cecília Meireles, Cânticos, III.

Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, dia 7 de novembro de 1901, e foi cri-
ada por sua avó, de origem açoriana, em decorrência da prematura morte de seus pais.
Autora de dezenas de obras de poesia, considerou sua própria infância como “solitá-
ria”, como ela viria a descrever em seu livro autobiográfico Olhinhos de Gato. Entretan-
to, essa solidão infantil nunca foi considerada por ela como perniciosa: valorizava so-
bremaneira a solidão e o silêncio, os quais considerava “a área de minha vida. Área
mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os
mundos revelaram o segredo do seu mecanismos, e as bonecas o jogo do seu olhar”
(MEIRELES, 1987, p. 59). Recebeu destaques na sua turma de escola e sempre se dedicou
à leitura de forma ávida, lendo o que lhe chegava à mão: desde que se lembra saber ler.
A criação da avó e da ama, uma negra chamada Pedrina, povoou sua criancice de his-
tórias, adivinhações e riquezas do folclore brasileiro e açoriano.

156 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

Ao longo da sua vida, exerceu a carreira de jornalista, professora infantil e, por


um breve período, de professora universitária. Viajou por diversos países em inter-
câmbio cultural, entre eles Açores, alguns países da Europa e a Índia, realizando parte
do desejo de conhecer a cultura oriental, pela qual era fascinada desde a sua adolescên-
cia. Sua preocupação com a educação e com a infância foi marcante em sua vida: en-
quanto jornalista, dedicou-se à publicação de matérias a esse respeito com frequência.
Parte de sua produção poética “destinava-se” ao público infantil, como o livro Ou isto,
ou aquilo e a obra Olhinhos de gato. As aspas acima se explicam pelo fato de a própria
autora considerar que quem escolhe a literatura infantil são as crianças, depois de as
obras serem escritas; desse modo, não haveria uma literatura escrita para crianças, mas,
sim, uma literatura definida a posteriori pelas crianças como de seu gosto (MEIRELES,
1979). Ainda nesse sentido, Cecília foi pioneira ao criar a primeira biblioteca direciona-
da para o público infantil em 1934, trabalho que incentivou diversas inciativas seme-
lhantes.
A primeira publicação de Cecília deu-se em 1919, com o livro Espectro, coletânea
de sonetos de inspiração simbolista. Segue-se a isso um período de intensas atividades
literárias em que ela se relacionou estreitamente com poetas como Andrade Muricy e
Tasso da Silveira. Paralelamente à eclosão do movimento modernista em São Paulo,
esse grupo – que se convencionou chamar espiritualista – seguiu um rumo um tanto
dessemelhante:

O convívio de Cecília Meireles com os intelectuais do grupo deve-se ao fato de eles


apresentarem uma proposta independente das coordenadas gerais do movimento mo-
dernista de São Paulo e de introduzirem, na criação, o diálogo com o pensamento filosó-
fico. Sem responder diretamente aos propósitos de afirmação da nacionalidade e de
inovações formais e ideológicas, o grupo ligado a Festa [revista fundada pelos espiritua-
listas] pretende ampliar os limites do projeto modernista em prol de uma arte mais uni-
versalista (MELLO, 2009, p. 10).

Darcy Damasceno indica que a marca simbolista em Cecília torna-se mais forte
e mais trabalhada em suas publicações posteriores, mas que seu desligamento desse e
de qualquer outro grupo fez-se com a publicação de Viagem (DAMASCENO, 1987), obra
eclética que lhe renderia o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Consi-
dera-se que Cecília Meireles desenvolveu-se de forma relativamente independente às
escolas literárias; Mário de Andrade chega a afirmar que ela passou “não exatamente
incólume, mas demonstrando firme resistência a qualquer adesão passiva” ao nosso
movimento Modernista. Ela mesma teria afirmado que tinha interesse pelas escolas
literárias de um ponto de vista apenas histórico (idem, ibidem). A temática da poesia de
Cecília gira em torno da problemática do passageiro, da efemeridade do tempo, da
angústia de não poder deter o fugaz instante presente e da fragilidade da vida; esses
temas, no Romanceiro, aparecem com muita frequência ligados à transitoriedade das
posições e das riquezas terrenas e à inexorabilidade da morte, mais forte e poderosa de
todas as coisas. Além disso, tal temática está marcada no desejo de retornar ao passado

157 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

para reconstruir e compreender a frustrada rebelião mineira (MELLO, 2009, p. 13-14), e


reescrever, em verso, a história da Inconfidência.

2. Sobre o Romanceiro da Inconfidência

“Deixei Ouro Preto – e seguiram comigo todos esses fantasmas”


Cecília Meireles, em conferência em Ouro Preto

A ideia da obra Romanceiro da Inconfidência começa a surgir para Cecília no ano


de 1943, quando ela segue para os locais onde aconteceram os principais fatos da In-
confidência Mineira, a fim de realizar uma reportagem sobre o tema. De acordo com a
autora, o propósito inicial teve de ser abandonado: dentro da antiga Vila Rica, Cecília
teria escutado “os homens de outrora” a contarem sua história, as “pedras e as grades
da cadeia” a contarem da sua construção, enfim, o “apelo” de diversos fantasmas que
exigiam que sua história fosse contada, e que Cecília fosse a narradora e também partí-
cipe dela.
Seguiram-se anos de laboriosa pesquisa história e de trabalho artístico, até que
veio a público o Romanceiro em 1953. A obra conta com cinco “Falas”, quatro “Cená-
rios”, uma “Imaginária Serenata”, um “Retrato” e oitenta e cinco “Romances”, e traça
um verdadeiro retrato da sociedade mineira do final do século XVIII e dos acontecimen-
tos da Inconfidência. O livro pode ser considerado polifônico (MELLO, p. 13), já que di-
versos personagens, de ciganos a poetas, aparecem para dar sua contribuição pessoal
na construção do texto poético.
A escolha do título e da forma – Romanceiro – parece curiosa. Ao buscarmos o
significado desse termo1, lembramo-nos das coletâneas medievais de textos frequente-
mente retirados da cultura popular. Como sabemos, a Idade Média é um dos elemen-
tos que encantava Cecília Meireles, de modo que ela pode ser mesmo considerada co-
mo uma das raízes espirituais de sua poesia (MEIRELES, 1987, p. 68). A própria autora
chama a atenção para sua escolha na famosa conferência feita por ela em Ouro Preto
em 1955:

O Romanceiro teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de entremear a possível lin-


guagem da época à dos nossos dias; de, não podendo reconstruir inteiramente as cenas,
também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à
verdade histórica o halo das tradições e da lenda (MEIRELES, 2009, p. 25).

1 Seguem alguns dos significados de Romanceiro do dicionário Houaiss: “2 coleção de romances,


de obras narrativas escritas em prosa ou em verso, datados dos primeiros tempos da literatura
na península ibérica 3 conjunto de poesias ou canções populares que constituem a literatura
poética de um povo; cancioneiro [...] ETIM esp, romancero (sXVI) ‘cantador de romances, cole-
ção de romances’” (p. 2471).

158 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

Percebemos pelo excerto acima certas preocupações de Cecília na composição


de sua obra: criar um texto que narrasse os acontecimentos mas que, ao mesmo tempo,
permanecesse como um discurso poético e, em resumo, conseguir captar a realidade
histórica da forma mais “verdadeira” possível e adaptá-la à linguagem e às percepções
de sua época, a fim de não deformar a realidade histórica e de ao mesmo tempo envol-
vê-la em uma aura lendária. Lucia Helena Manna faz uma interessante análise dessa
escolha, trabalhando sobre o conceito de Gladston Chaves de Melo: romanceiros seri-
am

composições poéticas populares, vazadas em linguagem vulgar, narrativas de feitos he-


róicos ou extraordinários, mas com um toque qualquer de maravilhoso. [...] A rigor [...],
são epopéias guardadas na memória coletiva e traduzidas na íntegra ou nas partes autôno-
mas, por aedos ou rapsodos, que, no caso do português, lhes dão feição métrica geral-
mente heptassílaba (MELO apud MANNA, 1985, p. 22, grifos da autora).

A partir desse conceito, a pesquisadora lança o problema: já que os romanceiros


surgem de origem popular, o nome da obra passaria a ser inadequado. Entretanto, a
própria Lucia Manna aponta para a perspectiva de Cecília Meireles, quando esta diz
que “os fantasmas começaram a repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras
registradas nos depoimentos do processo, ou na memória tradicional”, dizendo mesmo
que essas “vozes que falavam, que se confessavam [...] exigiam, quase, o registro da sua
história” (MEIRELES, p. 23 e 26, grifo nosso).
Nesse sentido, ao ouvir as palavras lançadas pelos “fantasmas” e procurando
dar voz a eles, reproduzindo-lhes a história, Cecília Meireles assumiria o papel de eru-
dito e traz à luz as narrativas populares, as “epopéias guardadas na memória coletiva”
(MANNA, 1985, p. 23), construindo então um romanceiro com as narrativas evocadas à
memória pela presença em Ouro Preto e pela pesquisa histórica. Aliás, o estudo feito
por Cecília Meireles foi meticuloso e aprofundado: pelas páginas do livro, encontramo-
nos com personagens históricos de pouca notoriedade, mas que tiveram participação
direta ou indireta no evento da inconfidência e que foram recuperados e inseridos na
narrativa pela autora. Assim, a obra constitui-se como uma reinterpretação e reescrita
dos fatos históricos da rebelião de Minas.
O texto é fluido e sem preocupações com rimas. A autora retrata essa despreo-
cupação nos versos (por vezes rimados, por vezes não) e revela ter sido indiferente
mesmo à métrica no processo de criação dessa obra, embora ressalte que muitas vezes
os versos vinham à sua cabeça já metrificados – no romanceiro, predominam os hep-
tassílabos. A linguagem é culta e fácil de ser compreendida, sem grandes ornatos e com
facilidade na leitura. Ela diz que o Romanceiro “se foi compondo”, em vez de ser com-
posto por ela, pois ele teria se encontrado e imposto seu próprio ritmo sozinho, de mo-
do tão aberto que cada poema teria encontrado uma forma condizente com a mensa-
gem que queria passar. Parece haver um esforço por parte de Cecília em atribuir a cria-
ção de sua obra não a ela apenas, mas, sim, aos fantasmas que viveram esse passado,
seja esse termo usado em uma acepção mais concreta, seja em uma metáfora que atri-

159 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

bui à memória coletiva e às impressões históricas a fonte na qual ela bebeu para a sua
composição.
Pode-se dividir a obra em três partes básicas: na primeira, retrata-se o floresci-
mento da atividade mineradora nas Minas Gerais e o início das inquietações contra a
colônia; em seguida, segue-se a narrativa dos fatos da Inconfidência em si, as reuniões,
as ideias, a união dos inconfidentes, o “fracasso” da rebelião. Finalmente, a terceira
parte trata das consequências trazidas à vida dos envolvidos depois da repressão dessa
conjuração2. Nas seções seguintes, passaremos a apresentar brevemente a obra, divi-
dindo-a nas três partes essenciais que identificamos. Em tal análise, seguiremos mor-
mente os apontamentos de Lucia Helena Scaraglia Manna em sua pesquisa histórica
sobre o Romanceiro.

2.1. Chegando à Vila Rica: o ouro

De seu calmo esconderijo, / o ouro vem, dócil e ingênuo;


torna-se pó, folha, barra, / prestígio, poder, engenho...
É tão claro! – e turva tudo: / honra, amor e pensamento.
Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência, “Romance II ou Do Ouro Incansável”

Os eventos iniciais do livro dizem respeito à descoberta do ouro e à sua explo-


ração. Entretanto, a Fala Inicial evoca o tema central do livro, na qual o falante, ao con-
siderar-se imerso em “atroz labirinto de esquecimento e cegueira”, faz menção ao dia
da morte do alferes Tiradentes. Pergunta-se ao sinistro vinte-e-um de abril, data da
execução do alferes: “Que intrigas, de ouro e de sonho / houve em tua formação?”
(MEIRELES, 2009, p. 39). É a essa indagação que a obra se ocupa em responder.
O cenário localiza o poeta dentro de Ouro Preto, observando, analisando, rece-
bendo as impressões e escutando o que “dizem” as ruínas, as pontes, as flores e cape-
las, as escadas e muros, tomando, assim, a matéria da sua construção poética. Os ro-
mances de I a XI dedicam-se especialmente a ressaltar as loucuras, os desvarios e os
excessos que a exploração e a sede pelo ouro causam à alma humana. Alguns romances
tratam especificamente da situação dos escravos, obrigados a trabalhar desde a ma-
drugada (Romance VII) e condenados à labuta até que possam comprar sua alforria,
contrapondo-se ao retrato pintado pelo romance VI, que revela a suntuosidade da corte
de Portugal – financiada pela exploração das minas da colônia.
Alguns elementos merecem destaque até aqui: o romance VIII é dedicado ao
personagem Chico-Rei, supostamente rei do Congo, capturado e vendido como escra-
vo no Brasil. Sendo um personagem do folclore mineiro, não existem evidências da sua
existência (MANNA, p. 39), de modo que o texto composto por Cecília se desenvolve
respeitando a cronologia da história, mas sem se furtar a inserir elementos cuja veraci-

2 A divisão dos romances que propomos tem objetivos unicamente didáticos, posto que as temá-
ticas identificadas em cada uma delas cruzam-se, são retomadas, desaparecem em um roman-
ce e tornam a aparecer em outros.

160 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

dade histórica é negada ou duvidosa. Chico-Rei é um símbolo de afirmação dos negros:


ele é capaz de comprar sua própria alforria e de vários de seus companheiros, criando
uma pequena tribo da qual é o líder. Esse episódio representa, assim, a perseverança e
a luta do negro pela sua liberdade. O personagem aparece novamente no romance IX
em que Santa Ifigênia, santa negra, visita seu devoto Chico-Rei.
O romance XII demonstra Joaquim José da Silva Xavier em sua infância na cape-
la do Sítio do Pombal, pertencente a seus pais. Passando-se em algum momento da
década de 1750, o trecho evoca o futuro que terá a criança: “Pois vai ser levado à forca,
/ para morte natural...” (Idem, ibidem). O referido romance situa o nascimento do már-
tir no tempo, tendo sua infância e adolescência na época em que Chica da Silva vivia
em seu esplendor com João Fernandes.
A propósito, Chica da Silva é a personagem principal do “ciclo” seguinte de
romances. O romance XIII relata a chegada às minas do Conde Valadares, cujo fito era
obrigar João Fernandes, então contratador das Minas, a prestar contas ao Reino. Vala-
dares dissimula seu propósito para extorquir ouro do contratador, mas a esperta negra
Chica, alforriada por seu amante João Fernandes. Entretanto, ele dissimula seu propó-
sito e tenta extorquir do contratador o máximo de ouro possível. A seguir, descreve-se
a suntuosa ex-escrava Chica, que desconfiava já das intenções do português. A “trai-
ção” de Valadares obriga o contratador a ir a Lisboa. O homem obedece, mesmo igno-
rando o que será de si na corte, e deixa Chica sozinha no Brasil a lamentar.
Os três romances que encerram essa segunda parte (XVII–XIX) são já um prelúdio
do movimento da Inconfidência. As lamentações do Tejuco incluem um maldizer do
ouro: “... E maldito / esse ouro que faz escravos, / esse ouro que faz algemas, / que le-
vanta densos muros / para as grades da cadeia, / que arma nas praças as forcas, / lavra
as injustas sentenças, / arrasta pelos caminhos / vítimas que se esquartejam” (MEIRELES,
2009, p. 77). O romance XVIII apresenta lânguidas reflexões sobre a efemeridade das
posições e das riquezas; a insatisfação dos donos e trabalhadores das minas com a Cor-
te cresce cada vez mais, e o romance XIX, desde seu título, mostra que os bons tempos
vão se findando e que pressagiam-se conflitos3, dos quais trataremos a seguir.

2.2. As ideias, o animoso alferes, os delatores e a prisão

Libertas, quae sera tamen, respexit inertem


Virgílio, Éclogas, I, 27.

Os eventos que cobrem a parte que selecionamos como a segunda do Roman-


ceiro são também prefaciados por um “Cenário” e uma “Fala”: o cenário se compõe de
forma fragmentada, evocando pequenos elementos da cidade e fazendo vir à memória,
também, os “reinos de saudade e pranto” da antiga Vila Rica. Aliás, é mesmo à Vila
Rica (ou aos seus “fantasmas”) que a fala seguinte se destina: os olhos da cidade estão
cobertos de musgo e líquens, comparados aos olhos da estátua no chafariz; a fala desti-

3 O título é Romance XIX ou Dos Maus Presságios.

161 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

na-se a perguntar se as vozes do passado pararam já de falar ou se ainda falam, mas


nossos ouvidos “na terra surda / que os homens pisam, / já nada entende” (MEIRELES,
2009, p. 80). E as “sombras”, sim, falam, lançando as palavras e as ideias dos próximos
poemas.
Os romances XX ao XXXVIII cobrem o trajeto das ideias de liberdade, a organiza-
ção dos inconfidentes, a denúncia de suas atividades e a morte exemplar de Tiradentes,
enforcado e esquartejado. Os romances XX a XXIV apresentam, num crescendo, a evolu-
ção dos ideais e da organização dos inconfidentes: apresentam-se os integrantes do
“país da Arcádia”, poetas e intelectuais que estiveram envolvidos (notadamente, To-
más Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manoel da Costa) – já adiantando
o funesto fim da empreitada – e a evolução, a presença em todos os lugares das Ideias,
em um texto fragmentado, quase um mosaico, que apresenta a geografia, as constru-
ções, os fidalgos e mulatas, todos permeados pelo refrão: “E as idéias” (Romance XXI)
(Op. cit., p. 82-85). O negro aparece mais uma vez, em sua busca de alforria manifesta
na venda de um diamante extraviado. Nesse trecho, refere-se também à presença de
delatores e invejosos que o denunciam.
O romance XXIII lamenta a morte do filho de Maria (no Brasil, A Louca, em Por-
tugal, A Piedosa), pois o príncipe, de ideias liberais e progressistas, seria um rei possi-
velmente favorável aos ideais nascentes na colônia. Em seguida, em um dos momentos
mais espetaculares do livro, narra-se a união, a portas fechadas, dos inconfidentes: ho-
mens ricos, trabalhadores, intelectuais, religiosos e poetas, todos envolvidos com os
planos de liberdade e com a criação da bandeira da inconfidência, que viria a ser poste-
riormente a bandeira do estado de Minas Gerais. Nesse romance, além de narrar-se a
apropriação do verso de Virgilio – Libertas quae sera tamen – pelos inconfidentes e a des-
confiança dos outros, estão presentes alguns dos versos mais conhecidos de nossa Lite-
ratura, evocando o desejo da inexplicável, radiante liberdade:

Liberdade – essa palavra


que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!

E a vizinhança não dorme:


murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita
mas fica escrita a sentença (MEIRELES, 2009, p. 91).

Uma carta anônima, então, chega aos inconfidentes prescrevendo cuidado aos
envolvidos no movimento revolucionário. No romance XXVII enfim se apresenta Tira-
dentes: seus conhecimentos de farmacologia e seu caráter bondoso e prestativo, de
quem a todos serve e por todos trabalha, são ressaltados. Foi em viagem ao Rio que foi
pego, quando ia levar planos relativos a desvios de rios para melhorar a situação de

162 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

abastecimento de água da cidade4. Os muitos “adeuses” que aparecem nesse romance


demonstram como Tiradentes era bem conhecido e querido em Minas Gerais.
O Romance XXVIII fala diretamente de Joaquim Silvério, o delator da Inconfi-
dência e dos seus principais líderes. O narrador refere-se a ele de forma ácida e cruel,
considerando-o um delator, caloteiro, covarde e invejoso. O mesmo personagem é ma-
téria dos romances XXIX e XXXIV: ele é comparado a Judas, analogia muito interessante
na medida em que Tiradentes é, frequentemente, comparado a Jesus Cristo em seu sa-
crifício e nas esperanças quase messiânicas que se lhe depositaram. Intermediariamen-
te, destacam-se romances cujas vozes são de tropeiros, a mofarem das intenções liber-
tadoras e um romance narrado por uma cigana, que afirma estar o inconfidente com a
estrela da desgraça marcada em seu destino.
Em seguida, temos a narrativa da chegada de Tiradentes ao Rio, sua persegui-
ção por duas sentinelas e sua captura. O romance XXXV demonstra, de modo lúgubre,
como Tiradentes ficou sozinho nos seus últimos momentos, sem ter ninguém que va-
lesse por ele. O Romance XXXVII cobre a prisão de Tiradentes, o correr da notícia e a
prisão de alguns outros inconfidentes. Novamente, a narradora faz cruéis comentários
sobre o traidor Joaquim Silvério e trata da perseguição do herói inconfidente, notoria-
mente fugido. A dolorosa captura de Tiradentes, agarrado como qualquer bandoleiro,
é acompanhada da tristeza de ver que seus esforços foram empregados em vão. A pri-
são do “simples alferes” deixa os outros alvoroçados, e durante o meio de maio a notí-
cia já corria por todos os lados. Tomás Antonio Gonzaga, Vigário Carlos Toledo e Iná-
cio José de Alvarenga foram presos em 23 e 24 do mês. O romance seguinte narra a
respeito de alguém, vestido em trajes femininos e encapuzado, que correu à cidade de
Vila Rica, no dia 17 ou 18 de maio, a fim de avisar a todos que queimassem os papéis
comprometedores e fugissem, pois o alferes havia sido preso. Tal figura, jamais identi-
ficada, de fato existiu, tendo batido em particular à porta da casa de Cláudio Manoel
da Costa.

2.3. Prisão dos inconfidentes, a forca, o destino dos envolvidos

“Não te aflijas com a pétala que voa


Também é ser, deixar de ser assim”
Cecília Meireles, 4° motivo da rosa.

Segue-se, então, a narrativa da prisão de uma série de personagens da Inconfi-


dência: Francisco Antônio, fazendeiro rico e muito gordo cuja alcunha, por falar muito
rápido, era “come-lhe os milhos”; o alferes Vitoriano, preso por portar um bilhete que
contava das delações feitas até então (22 de maio); o sapateiro Capanema, detido por
espalhar boatos sobre a expulsão dos portugueses do Brasil; Padre Rolim, o mais rico
dos inconfidentes e o único de todos que ofereceu grande dificuldade para ser preso,

4 Tiradentes tinha conhecimento da situação política e econômica da colônia e tinha talento para
a engenharia. (MANNA, 1985, p. 73).

163 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

posto que se escondeu por longo tempo. No romance XLIII, em que se dá voz a falantes
críticos e indignados, penetra-se a razão de ter sido Tiradentes condenado à morte por
enforcamento e esquartejamento: muitos havia envolvidos, mas a falibilidade e a cor-
rupção da justiça não permitem que os ricos sejam punidos, pois podem pagar suas
liberdades. O alferes é morto, pois não tem amigos, parentes, casa ou terras suas. A voz
dos juízes e magistrados se faz ouvir:

(Calem-se os apadrinhados!
Fujam parentes e amigos!
Contaremos essa história
segundo o preço que paguem;
e ao mais fraco escolheremos
para receber por todos
o justo e exemplar castigo!) (Op. cit., p. 125)

O mais fraco era o Alferes Tiradentes.


O Romance XLVII demonstra como os meirinhos levaram ao extremo o confisco
dos bens dos inconfidentes, levando absolutamente tudo o que viam à frente. Apare-
cem relatos de covardes delatores, como uma testemunha falsa um homem que fora
tratado outrora pelo próprio Tiradentes. A responsabilidade do fim dos sonhos, do
fracasso da inconfidência e da falta da liberdade é atribuída aos covardes. A autora
revela, ferina e grave, a pusilanimidade que está presente em toda a história do mun-
do, como se fosse “veia de sangue impuro” a enfraquecer os sonhos humanos: as cartas
escritas e as informações dadas pelos covardes, como ato da mais profunda sordidez,
são ameaçado com o inferno.
A morte do poeta Cláudio Manoel da Costa é matéria do romance seguinte, que
começa retomando o aviso do embuçado. A polêmica que girou em torno da morte do
poeta aparece no Romanceiro, e várias informações são sintetizadas em um curto e belo
poema. Inácio Pamplona, fugido para não ser interrogado, aparece no romance L, ao
passo que os romances LI e LII retomam a problemática do romance XLIII, criticando,
com pesar, a falta de justiça dos magistrados e a diferença de peso com que se tratam
os homens endinheirados e os que não possuem nada. O monólogo do carcereiro é
curto e também enfático nesse sentido.
Sobre o poder destrutivo das palavras é que trata o romance LIII, de forma sim-
plesmente magistral: as palavras, embora efêmeras e fugidias, são a porta por onde
principia “todo o sentido da vida” (Op. cit., p. 142). A mesma potência que foi capaz de
espalhar as Ideias de liberdade e de revolução (vide romance XXI) é agora responsável
pelo homem que se enforca pelos ideais. Em seguida, um tenro poema trata da inter-
rupção da costura do enxoval de Gonzaga5 por ocasião da prisão do mesmo; a reitera-
ção do vocábulo pastora retoma a produção poética do autor e dá um tom sutil ao poe-

5 Àquela época, era um costume elegante entre os nobres de Vila Rica que o noivo bordasse o
vestido que seria de sua esposa (MANNA, 1985, p. 126).

164 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

ma, contraposto pela sua captura. O trecho seguinte trata mais detidamente da prisão
do poeta e faz menção a sua formação em direito, que de nada pôde lhe valer naquele
momento.
A autora poetiza o momento do arremate dos bens do alferes, recriando o di-
namismo de um verdadeiro leilão. Os pobres pertences do acusado, de valor baixíssi-
mo, são sempre ressaltados com um valor espiritual que os acompanha; tal passagem
traz à luz um episódio de importância histórica periférica, dando-lhe nova luz em for-
ma poética. Segue-se o inútil recurso feito em defesa de Tiradentes. Usando pratica-
mente as mesmas palavras (com exceção da última estrofe) que o curador dos réus Dr.
José de Oliveira Fagundes emprega em seu texto, a autora transforma o texto forense
em texto poético6.
Uma série de romances referindo-se diretamente ao momento da execução de
Tiradentes se enumera: aparecem o seu carrasco, um negro de apelido Capitania, que
sente a grandeza da vítima; a juntar-se às lamentações do Tejuco e às falas das Velhas
Piedosas e dos indignados, a Reflexão dos Justos (romance LIX) é mais uma vez um
comentário crítico dos eventos, lamentando o fato de todos os companheiros do alferes
terem-no deixado na última hora e refletindo sobre o que será considerado como certo
ou errado pela história no futuro. O caminho de Tiradentes para a forca, o que se lhe
passa no espírito, suas memórias e a multidão que o cerca aparecem no mesmo roman-
ce em que se faz referência a D. Maria I, causadora, mesmo indiretamente, de tudo
aquilo. O momento próprio do enforcamento é narrado por um bêbado, que percebe as
incoerências de uma situação de morte, portanto triste e soez, que congrega tanta gente
satisfeita na praça para assisti-lo. Tiradentes entrega-se à morte em silêncio. O último
romance antes da mudança de cenário é simbólico: o narrador refere-se a uma pedra
Crisólita – o mesmo que topázio – que Tiradentes possuía, saindo com ela do meio da
escuridão com o fito de lapidá-la. O alferes morre entes de vê-la polida. Pode-se ler que
a pedra representava a tão querida, tão desejada liberdade, cujo gérmen trazia o herói
inconfidente do meio da escuridão em que se viam todos, subjugados aos desmandos
das autoridades; entretanto, seus objetivos não foram cumpridos; instaura-se a dúvida
se seria mesmo possível fazê-lo (Talvez nem crisólita fosse... / As pedras sempre enga-
nam tanto! [MEIRELES, 2009, p. 164]) e a tristeza por ter ficado a pedra sem lapidação.
O cenário seguinte, a morada que foi de Gonzaga, é evocado pela autora e tem
um tom entristecido, resultante da prisão do morador e do abandono da casa. Os restos
da habitação são matéria para composição dos próximos versos: os romances seguintes
tratam mais detidamente do destino do poeta árcade. Segue-se num comentário dos

6 O texto do referido curador está transcrito na obra de Lucia Helena Manna. Para melhor per-
cepção de como a autora se vale do texto forense, apresentamo-lo em cotejo com o texto poéti-
co: “[...] Basta notar a indiscrição, e nenhum acordo com que sem escolha de tempo, e de pes-
soas, e de lugar, proferia as quiméricas idéias que a sua libertinagem lhe subministrava (...)
para se perdoar ao temerário como insano” (Autos da devassa da Inconfidência Mineira, apud
MANNA, 1985, p. 132-133) “Só por indiscrição,/quiméricas idéias/proferiu – sem escolha/ de
tempo ou de lugar/ – e pela condição/ de temerário insano/que se deve perdoar” (MEIRELES,
2009, p. 150). Note-se como as palavras são rigorosamente as mesmas, havendo apenas esco-
lha livre na organização sintática para adequação da métrica.

165 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

maldizentes, que denegriam tanto a imagem de Tomás Antônio Gonzaga como profis-
sional quanto seu ofício de poeta. Degredado em Moçambique, começa a perguntar-se
se de fato amaria para sempre Maria Dorotéia; a mesma Maria é a narradora do trecho
seguinte, em que ela borda um lenço, falando com Gonzaga como se ele estivesse pre-
sente e sofrendo de saudades. Finalmente, no romance LXXI, o narrador aconselha que
Juliana de Mascarenhas, que posteriormente torna-se esposa de Gonzaga, vá esperá-lo
no porto. Uma Imaginária serenata interpõe-se entre os romances: é Marília que, desdi-
tosa de sofrimento e saudades, clama pela presença do amado e pela luz da lua, que a
possa levar até ele. Entretanto, em maio do ano seguinte (1793), o poeta casa-se em Mo-
çambique com Juliana de Mascarenhas, o que deixa Marília transtornada e inconfor-
mada, a lamentar, sem crer, no que fez o amante.
Dois séculos depois dos sucessos da inconfidência, a antiga Comarca do Rio das
mortes está em completa ruína; e é a ela que se dirige a “Fala” seguinte, pedindo às
ruínas, única coisa que sobrou do esplendor de tais sítios, que fizessem reaparecer os
vastos sonhos e pessoas do passado. Logo depois, é feita uma certa retrospectiva, a fim
de tratar da família de Alvarenga Peixoto, ignorado até então: um retrato árcade e belo
é traçado de Bárbara Eliodora, esposa do referido poeta – entretanto, seu funesto futuro
já fica adivinhado no poema.
Um tom de decadência toma conta dessa última parte do livro. Traça-se um
Retrato de Marília em Antônio Dias; a mulher, já sem beleza por causa da velhice, só saía
de casa para as missas na igreja de N. Sra. Da Conceição de Antônio Dias. Sua morte já
se prenuncia; sua vida já não significa nada. O Cenário que se segue é narrado por D.
Maria, já sem sanidade, a observar o Rio de Janeiro e a lembrar-se da morte dos incon-
fidentes, sendo torturada pelo remorso. Em seguida, o romance LXXXI reflete sobre o
poder, a embriaguez que ele causa, a vaidade dos poderosos e seu mau pendor; está
presente a lição de que o valor de um homem se mede por seu caráter, e não pelos
bens; mais uma vez, temos a reflexão sobre a efemeridade de tudo aquilo que é terreno.
Os passeios da insana rainha, sua crescente culpa e sua morte são narrados em dois
romances que se seguem.
Um curioso romance trata dos cavalos utilizados nos sucessos da inconfidência;
na sua busca para reavivar as vozes e os atos de tantos esquecidos, Cecília traz à tona
também o papel das doces e inocentes criaturas que serviram aos homens nas emprei-
tadas da conjuração. Depois de mortos, são facilmente esquecidos, “jazem por aí, caí-
dos” (Op. cit., p. 209), por ingratidão dos homens. Simbolizam a pureza e a inocência, a
entrega sem exigência de nada em troca. Marília escreve, sofrida, seu testamento; já
bem perto da morte, sua triste pena traça no papel seus últimos desejos. A narradora
finalmente dirige-se aos inconfidentes mortos, no último trecho do livro: as paixões
humanas, a covardia de uns, amores e ódios fizeram dessa história o que ela é hoje.
Tudo fica no passado, tudo jaz em silêncio; mas o horizonte, “que é memória / da eter-
nidade, / referve o embate / de antigas horas, / de antigos fatos, / de homens antigos”
(Op. cit., p. 211). É esse horizonte, essa memória da eternidade que não se satisfaz em
quedar-se calada que impulsiona a poeta a trazer à tona, de forma brilhante, todos os
sucessos da Inconfidência Mineira.

166 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

3. A história e a narrativa: escolhendo fatos, dando voz a quem não fala

Quem construiu a Tebas de sete portas?


Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
– Quem a reconstruiu tanta vezes? [...]
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? [...]
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro? [...]
Tantas histórias.
Tantas questões.
Bertold Brecht. Perguntas de um trabalhador que lê.

Como já mencionado, pode-se perceber claramente que a composição de Cecília


Meireles parte de uma pesquisa história minuciosa e refinada, realizada com o fito de
dar conta dos mínimos detalhes do acontecimento histórico que ficou conhecido como
Inconfidência Mineira. Entretanto, percebemos que ao longo da obra a autora chama a
atenção para detalhes que escapam ao discurso histórico oficial, seja por serem pouco
relevantes, seja porque não são fatos documentados e arquivados historicamente. Em
alguns momentos, Cecília dá mesmo voz a personagens marginalizados e excluídos da
“grande história”, como bêbados, velhas e ciganas.
O texto utilizado como epígrafe para essa seção nos leva à reflexão sobre o fazer
histórico: afinal, quando contamos a história da Inconfidência e escolhemos os perso-
nagens sobre os quais queremos nos deter, não estamos excluindo uma série de outros
que participaram também dos acontecimentos? Ao contar a história da conquista da
Gália ou da construção da Muralha da China, não são ressaltados os nomes de alguns
poderosos, ao passo que milhares de indivíduos que participaram de tais eventos são
olvidados? Quando um historiador desenvolve um texto historiográfico, não precisa
partir da escolha do que lhe é mais relevante e mais próprio ao seu intento, deixando
de lado, em consequência, uma série de outros relatos e documentos? Julgamos que
sim. Em seu texto sobre o conceito de história, Walter Benjamin afirma que “articular his-
toricamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato foi’. Significa apropriar-
se de uma reminiscência, tal como ela relampeja num momento de perigo” (BENJAMIN,
1996, p. 224). Assim sendo, para compor uma narrativa histórica, o historiador apro-
pria-se de determinada memória para narrar um fato de acordo com determinados
objetivos.
O Romanceiro da Inconfidência narra os eventos da conjuração mineira, desde a
descoberta do ouro até o fim de cada envolvido na rebelião. Na sua narrativa, a autora
chama a atenção para os valores de Tiradentes e seu caráter heroico; demonstra simpa-
tia pelos revoltosos e raiva pelos covardes delatores, e permite que múltiplas vozes,
desde a rainha até o sapateiro Capanema, componham os relatos da trama. Ora, tais
elementos e as reflexões iniciadas acima nos levam mesmo a interrogarmo-nos a respei-

167 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

to das diferenças entre a história e a literatura, como narrativas. Aristóteles identificava


uma diferença primordial entre ambas:

Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto


podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro que sem ele; a diferen-
ça está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos que podiam acontecer (ARISTÓTE-
LES, 2009, p. 28. grifo nosso).

A resposta tradicional, então, se resumiria a dizer que a história tem pretensão à


verdade, ao passo que a narrativa enuncia fatos que poderiam acontecer. Entretanto, o
Romanceiro se configura em completo acordo com a história oficial, sendo ao mesmo
tempo um texto literário; os apontamentos do filósofo grego não dão conta dessa defi-
nição.
O historiador Paul Ricoeur, refletindo sobre história e narração, diminui a dis-
tância existente entre ambas; ele desmistifica, de certa forma, a pretensão à verdade
absoluta da história, posto que “os historiadores constroem frequentemente narrativas
diferentes e opostas em torno dos mesmos acontecimentos” (RICOEUR, 2008, p. 254). O
ato de articular historicamente algum texto passaria, necessariamente, por um processo
de escolha de documentos, pela construção de um discurso – imbuído, certamente, de
determinada ideologia – e analisado de um ponto de vista definido:

A representação no plano histórico não se limita a conferir uma roupagem verbal a um


discurso cuja coerência estaria completa antes de sua entrada na literatura, mas que
constitui propriamente uma operação que tem o privilégio de trazer à luz a visada refe-
rencial do discurso histórico (Op. cit., p. 248).

Desse modo, é legítimo considerar a obra de Cecília também como uma narrati-
va histórica, sem que ela perca a matéria poética e a literariedade que lhe são próprias.
Uma das coisas que chama-nos a atenção no Romanceiro é a multiplicidade de
vozes e de personagens: bêbados, tropeiros, rainhas, magistrados, poetas e muitos ou-
tros são elencados como os narradores ou partícipes dos eventos da Inconfidência. De
certa forma, podemos considerar essa escolha da autora como uma diferenciação do
discurso histórico notório a respeito da conjuração mineira; a rigor, tal discurso fre-
quentemente se limita a Tiradentes e aos mais famosos de seus companheiros, sendo
narrado de forma impessoal. No romance X, por exemplo, Cecília dedica-se a traçar um
retrato de uma pobre donzela cujos parentes estão longe, na busca pelo ouro:

Donzelinha, donzelinha
dos grandes olhos sombrios,
teus parentes andam longe,
pelas serras, pelos rios,
tentando a sorte nas catas,

168 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

em barrancos já vazios! (MEIRELES, 2009, p. 61).

Trazendo à luz esse relato, a autora ressalta as dores e sofrimentos daqueles que
perderam seus parentes na corrida pelo ouro. Ao voltar os olhos aos que são excluídos
das grandes narrativas históricas, a autora valoriza-os e demonstra que há mais além
dos relatos que alguns documentos são capazes de demonstrar.
É interessante, também, como Cecília seleciona os narradores de alguns dos
eventos: no momento em que Chica da Silva está em declínio, por ocasião da intimação
de seu amante, e já se pressagia o futuro daquelas terras, são os velhos do Tejuco7 que
refletem sobre os acontecimentos e lançam reflexões sobre a transitoriedade da vida:
“(Que tudo passa... / O prazer é um intervalo / na desgraça... [...] (Que tudo engana / gente, só
a morte mesmo / é soberana)” (MEIRELES, 2009 p. 77). Da mesma forma, são velhas piedo-
sas que lamentam a traição de Joaquim Silvério: “(Ai de quem na sua casa / se deixa estar,
sem supor / o que em sexta feira santa / escreve a mão de um traidor!) (Op. Cit., p. 101) e,
quando Tiradentes segue para o Rio de Janeiro com sonhos de liberdade, são diversos
tropeiros que são inseridos como narradores (romances XXX e XXXI), zombando aber-
tamente das ideias do alferes:

Passou um louco montado,


passou um louco a falar
que isto era terra grande
e que a ia libertar (...)

Nós somos simples tropeiros,


por estes campos a andar.
O louco já deve ir longe:
mas inda o vemos pelo ar...

Por aqui passava um homem


– e como o povo se ria!
“Liberdade ainda que tarde”
nos prometia (Op. Cit., p. 102-105).

Esses dois romances em particular têm como fonte documentos históricos que
relatam a mofa que alguns tropeiros faziam de Tiradentes8, diferentemente dos anterio-
res. Tais romances são ressignificações de documentos históricos na medida em que

7 Tejuco ou Tijuco era o antigo nome da cidade de Diamantina, anexada a Serro até 1831.
8 De acordo com Manna, Manuel Luís Pereira relatara que “encontrou no dito caminho uns
tropeiros, que iam rindo e mofando, aos quais não conhece; e perguntando-lhes a razão do seu
riso, lhe disseram que estavam fazendo zombaria de um doido, que era o alferes da patrulha;
e perguntando ele, testemunha, a razão por que o tratavam de louco, responderam que por ele
se lhes estar dizendo que os povos das Minas podiam viver independentes de Portugal” (Au-
tos da Devassa, apud MANNA, p. 78).

169 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

colocam como narrador os tropeiros, de papel secundário na revolta, e por haver inse-
rido, no romance XXXI, uma reflexão de tristeza por parte dos zombadores, que afinal
pressagiam a morte do alferes e simpatizam-se com ele.
Gostaríamos de chamar a atenção para mais dois trechos9: o romance XXXIII traz
como seu narrador um cigano que, à chegada do alferes, é capaz de prever-lhe o desti-
no: “Duvido muito, duvido / que se deslinde seu fado. / Vejo que vai ser ferido / e vai
ser glorificado” (Op. Cit., p. 108). Interessa-nos bastante esse trecho, pois os ciganos,
minoria nômade presente em diversos países do mundo, passaram a ser perseguidos
no século XV e ainda sofriam preconceito e perseguições à época dos eventos da Incon-
fidência, de modo que a inserção desse personagem é uma opção realmente marginal,
sendo regularmente descartado do discurso histórico10.
Finalmente, um narrador muito singular foi escolhido pela autora para um
momento de suma importância na obra: na ocasião do enforcamento de Tiradentes,
ninguém menos que um bêbado está presente para constatar as incoerências de ver
tanta alegria em um dia de morte anunciada:

Vi o penitente
de corda ao pescoço.
A morte era o menos:
mais era o alvoroço.
Se morrer é triste,
porque tanta gente
vinha pra rua
com cara contente?(...)

Não era uma festa.


Não era um enterro.
Não era verdade
e não era erro.
– Então por que se ouvem
salmo e ladainha,
se tudo é vontade
da nossa rainha? (Op. Cit., p. 160-161).

Decerto, a escolha do narrador não é fortuita: em meio a uma multidão de pes-


soas que vinham à praça acompanhar o enforcamento do alferes, o bêbado é o único a
perceber quão incoerente se configura tanta festa no momento da morte de um homem;
reflete também sobre os motivos por que traziam ao condenado alimentos e flores, já

9 Outros romances se encaixam também nessa reflexão, como é o caso do romance XXXII ou Das
Pilatas e do romance LII ou Do Carcereiro; entretanto, a fim de não alongarmos demasiada-
mente nossa análise, preferimos nos deter em apenas alguns deles.
10 Os ciganos “eram considerados vagabundos e delinquentes”; “na Alemanha e Holanda, eram

exterminados a tiros por caçadores pagos por cabeça (...); na Europa, o propósito de extermí-
nio dos ciganos sempre foi muito claro” (BASTOS apud QUEIROZ, 2010).

170 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

que era um criminoso em hora de sua morte. O ébrio deflagra a tolice de toda a gente:
apenas estando sob o efeito entorpecente do álcool ele é capaz de livrar-se da mentali-
dade soez que congrega tanta gente para assistir ao lúgubre espetáculo. Como teste-
munho histórico válido, um bêbado seria preterido sem dúvidas; entretanto, é justa-
mente ele que Cecília escolhe para o derradeiro momento de Tiradentes. Vale notar que
esse é o único momento em que se narra a morte do herói: a única versão que temos de
sua execução, a partir do Romanceiro, é a leitura crítica de um bêbado que não consegue
crer no que está acompanhando.
Com exceção dos tropeiros, todos os narradores dos romances destacados são
“inventados” por Cecília Meireles e inseridos por ela na história. Cada uma das falas
no Romanceiro correspondem a testemunhos, ou seja, documentos históricos em lingua-
gem escrita. Para Ricoeur, o testemunho é a estrutura fundamental que marca a passa-
gem da memória para a história; a partir do momento em que determinada lembrança de
alguém é passada para a linguagem escrita, ela deixa de ser apenas uma reminiscência
e passa a ser um testemunho, ou seja, um documento histórico. O momento da trans-
crição dos testemunhos “é aquele no qual as coisas ditas oscilam no campo da oralida-
de para o da escrita, que a história doravante não mais deixará; é também o do nasci-
mento do arquivo, coligido, conservado, consultado” (RICOEUR, 2008, p. 155).
Tal “coleta” de elementos da memória e a transformação deles em testemunho é
feita por quem se lembra e quem presencia fatos relevantes; ora, a passagem de fatos
como o enforcamento de Tiradentes ou o confisco dos bens dos inconfidentes tornou-se
um testemunho e parte do arquivo histórico desde a época de seu acontecimento; en-
tretanto, depoimentos de personagens como ciganas, bêbados e velhas piedosas não
constam no arquivo oficial, tendo sido uma criação de Cecília. Mais uma vez, retoma-
mos a fala da autora quando ela afirma que sua composição do romanceiro não foi for-
tuita nem mesmo solitária: ao ver a cidade de Ouro Preto11, ao deparar-se com as cons-
truções e com as casas que “vivenciaram” a inconfidência, “os fantasmas começaram a
repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas nos depoimentos do
processo, ou na memória tradicional”. Cecília, em Ouro Preto, buscou a memória cole-
tiva dos eventos daquela conjuração, e recompôs em sua mente o sofrimento dos que
perderam seus amores, os pensamentos dos negros escravos, as lamentações e os con-
selhos dos idosos observantes, e mesmo a descrença exacerbada de um bêbado na pra-
ça. No momento em que a autora compõe o Romanceiro imbuída de tais memórias e
relatos, ela cria novos testemunhos, que passam a compor também o arquivo histórico
da Inconfidência Mineira.

11 Localizações geográficas, além de serem capazes de nos reavivar a memória, funcionam tam-
bém como “documentos” históricos. Para Ricoeur, “os lugares ‘permanecem’ como inscrições,
monumentos, potencialmente como documentos, enquanto as lembranças transmitidas uni-
camente pela voz voam, como voam as palavras” (RICOEUR, 2008, p. 59). Além de “ler” o local
como um documento, Cecília também reavivou as vozes e as palavras fugidias que voavam
levando os fatos da conjuração.

171 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


A LITERATURA REESCREVENDO A HISTÓRIA: AS VOZES EXCLUÍDAS...

4. Considerações Finais

A fugacidade do tempo, a efemeridade da vida e de cada instante, a transitorie-


dade das riquezas e das posições aparecem abundantemente na temática do Romanceiro
da Inconfidência. Essa temática é abraçada ao longo de toda a obra não apenas como
uma opção fortuita, mas porque ao longo de toda a narrativa a autora chama a atenção
para o que é importante, afinal, em toda essa história: ao condenar sem piedade a co-
vardia dos injustos e ao analisar a frieza dos confrades do alferes nas horas difíceis, a
obra ataca torpezas e mazelas terríveis, próprias do espírito humano. Igualando escra-
vos e rainhas, ciganas e poetas, de modo que todos podem ter voz na obra, a poeta res-
salta que mais importante do que a posição que cada um ocupa é sua característica
eminentemente humana.
O Romanceiro como um todo valoriza nossa humanidade, nossa eterna necessi-
dade de sonhar e lutar por aquilo que desejamos; como exemplo maior de humanida-
de, temos o animoso alferes, prestativo, vivo, corajoso e sonhador. O resgate do herói
inconfidente não é feito para a recriação de um herói nacional ou para valorizações
ufanistas; toda a revalorização e ressignificação histórica feita por Cecília traz à luz o
esforço e a lida humana na história, nossas sempre inconclusas esperanças e nosso cir-
cular sonho de liberdade.

5. Referências bibliográficas

ANDRADE, M. et al. Fortuna Crítica/Notícia biográfica, in: Cecília Meireles: Obra poética. Rio
de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1987.

ARISTÓTELES. Poética, in: A Poética Clássica. São Paulo: Editora Cultrix, 2008.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História, in: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios
sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

BRECHT, Bertold.Perguntas de um trabalhador que lê.


Disponível em: http://literaturaemcontagotas.wordpress.com/2010/03/06/perguntas-de-
um-trabalhador-que-le/, acesso em 21/11/2010.

DAMASCENO, Darcy. Poesia do Sensível e do Imaginário, in: Cecília Meireles: Obra poética.
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1987.

GRANDE Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

MANNA, Lucia Helena Sgaraglia. Pelas Trilhas do Romanceiro da Inconfidência. Niterói:


EDUFF – Universidade Federal Fluminense, 1985.

172 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011


WALDYR ROCHA IMBROISI

MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

______. ‘Como escrevi o Romanceiro da Inconfidência”, in: MEIRELES, Cecília. Romancei-


ro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

______. Problemas da Literatura Infantil. São Paulo: Summus/INL, 1979.

MELLO, Ana Maria Lisboa de. “Sobre o Romanceiro da Inconfidência”, in: MEIRELES,
Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

QUEIROZ, Mário de. “Dez séculos de discriminação”, in: Outras palavras. Disponível em
http://www.outraspalavras.net/2010/10/08/dez-seculos-de-discriminacao/. Acesso em
01/12/2010.

SILVA, Denise de Fátima Gonzaga da. Cecília Meireles e o herói inconfidente: um encontro
da poética modernista com os arquivos da história brasileira. 2008. Dissertação (Mestrado em
Teoria da Literatura) Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de
Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.

173 | Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários, (4):156-173, 2011

Você também pode gostar