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COLÓQUIO/Letras

ISSN: 0010-1451 - Página principal / Homepage: https://coloquio.gulbenkian.pt

[Recensão crítica a 'Agora Nós', de Nuno Félix da Costa]


Ricardo Marques

Para citar este documento / To cite this document:

Ricardo Marques, "[Recensão crítica a 'Agora Nós', de Nuno Félix da Costa]", Colóquio/Letras,
n.º 183, Maio 2013, p. 213-215.

EDIÇÃO E PROPRIEDADE
Seguidamente vemos o que é intacto O poema «Ter a Força de Ser» tem
com estabilidade, o que cria a unidade, o uma ambiguidade relativa aos vários su-
duplo que agrega o uno, um triplo movi- jeitos: eu, tu, Outro, outros. O Outro dá
mento e a morada que, como quarto ele- ao eu a sua força, o eu apaga o rosto do
mento, totaliza o dia ou o agora na sua luz. tu com os rostos dos outros que, por sua
Noutro poema, «Nenhum dia é igual a vez, despertam o louvor de Deus. O tu é
outro dia:», enuncia-se o peso ou valor de ignorado, pois, pelo eu e talvez pelo Outro
um quotidiano que sai da sua obscurida- (p. 29).
de, nunca se repetindo ou caindo na vul- Depois de um percurso de superação,
garidade. A condição para que tal aconte- de conquista, de iluminação — refere-se
ça encontra-se no íntimo, na sua mudança o «esplendor» (p. 30) que é necessário
e superação pela qualidade daquilo que preservar, guardar de possíveis agressões,
percecionou. mantendo em permanência a «visão in-
Nestes ritmos diferentes dos dias cabe tacta».
um crescimento em espiral, pois tudo é as- Verdadeiramente interessante neste li-
cendente, «como degrau futuro». O fim vro é a importância dada a uma vida in-
dessa ascensão é a proximidade cada vez terior cuidada e cultivada, de modo a
maior do divino, também possível de cap- que a existência seja habitável, o ar res-
tar no mais mínimo de cada dia. A ideia pirável. Respiração contagiosa, sopro de
de divino é reiterada no poema em que vida, poesia experimentada e transmitida
se fala de «harmonia» — o recolher no numa linguagem sublime, ainda que aces-
coração de leves gotas de chuva para daí sível.
partir o impulso para a plenitude (p. 24).
O mínimo ou ínfimo é retomado no poe- Maria Teresa Dias Furtado
ma seguinte, na imagem do grão de areia
que parece confundir-se com um conjun-
to ou extensão. Na ótica do poema, nada
foi deixado ao acaso, apenas aguarda a Nuno Félix da Costa
atenção que leva a um conhecimento mais Agora Nós
pleno e repleto de alegria. Lisboa, Córtex Frontal / 2012
É ainda referida, noutro poema (p. 26),
a experiência interior de uma exaltação Talvez a Humanidade seja os pórticos dos
arrebatadora, sentida como de carácter re- [templos o brilho das jóias
ligioso, pela qual se acede à «plena Luz», a persuasão das leis ou apenas
que, por sua vez, ilumina a palavra. O poe- a insidiosa métrica da importância —
ma parece continuar no seguinte, em que [armada até aos dentes
a luz contém o «íntimo sentido» da exis- o olho do geómetra no centro do eu
tência, por ser uma «luz total». Essa ex- Nuno Félix da Costa, Catálogo de
periência conduz a uma realidade ampla, Soluções, 2010, p. 56
abrangente. Em «Emoção Intensa», fala-
-se de «Revelação», «indizível», «arre- Numa das cenas da obra que o Museu de
batamento divino», «apreensão plena do Arte Moderna de Nova Iorque encomen-
Real» — linguagem semelhante à dos mís- dou a Jean-Luc Godard, em 1999, para
ticos, mas aqui claramente inscrita na esfe- este pensar cinematograficamente o que
ra da emoção poética, na sua mais íntima tinha sido o século XX (e a que depois cha-
intimidade — «coração secreto» (p. 28). mou L’Origine du siècle XXIe), pode ver-se

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o cineasta francês resumir todo um século para capa. Nela se veem três estátuas em
com duas palavras: ornamento e massa. branco, a quem foram retiradas a identida-
Efetivamente, podíamos discutir os as- de, deslocadas e esquecidas em cima e ao
pectos mais salientes deste longo período redor de um plinto, posto num contexto
temporal sob a égide destes dois vetores, escurecido e distopicamente bucólico (o
sobretudo se começarmos por pensar que que os românticos denominariam de locus
o século passado foi o da afirmação do in- horrendus).
divíduo — e da humanidade, por analo- Dando o mote com a capa, este é o poe-
gia — com a defesa dos seus direitos mais ma que, de resto, podia resumir a amplitu-
básicos. Bastará para isso ver os eventos de temática dessa tríade eu-nós-civilização,
que levam ao seu início (1914, via Hobs- abarcando ao mesmo tempo toda a ampli-
bawm) e à maneira como acaba (9/11). tude da própria palavra no resto do livro:
Toda esta reflexão vem a propósito do
último livro de Nuno Félix da Costa, uma 52 territórios limítrofes
presença discreta no panorama poético Quem está contente com a sua
português no já (também) longo pós-25 [humanidade?
de Abril. Fotógrafo e psiquiatra, a sua ati- Quem se apercebe especular extensos
vidade criativa tem sabido refletir uma [domínios da verdade ou
mesma preocupação central: a condição negligenciar universos limites onde algo
do ser humano sob uma perspetiva antro- [como um deus existirá?
pológica. Basta voltarmos atrás uns anos De onde nos sorrirá como se lhe
e centrarmo-nos apenas nos seus livros de [pertencêssemos ou impertinentes
fotografia para vermos como o Homem viagens interplanetárias o desafiassem —
já aí é a sua preocupação central (desde o [Nessa retórica desocupada
homus religiosus, em 1983, com os «retra- a poesia instala-se — Tenta reclassificar o
tos do hábito» dos ritos, até essa «arte úl- [absoluto — paisagem protegida
tima» que é a dádiva do amor, de 1998), sem humanidade nem artifícios nem a
sobretudo num enquadramento a preto e [primazia dos deuses — Extensão
branco, dramático e encenado (ou mesmo pura das palavras exigindo da realidade
mais recentemente, com as suas pinturas [mais graça e ousadia mais
sobre fotografia, onde a figura humana inteligência e estabilidade — e duração
está normalmente presente, adquirindo [para as espécies em extinção
contornos surrealistas). e para a humanidade que não as salva —
E Agora Nós. Este «nós» de que «ago- [Ninguém contente
ra» nos fala não constitui, portanto, nada com a humanidade alude à morte ou ao
de novo na sua obra, apenas chega aqui a [nada nem
este livro como uma invetiva mais con- especula sobre o que existe no nada ou o
centrada, mais extensa. Este «nós» diz [que falta
respeito a si enquanto observador de toda ao absoluto — como ao contentamento
a sua vida (já lá vamos) e ao resto da «hu-
manidade» — a palavra que, aliás, mais Este livro é um mundo. Sendo de lon-
aparece ao longo dos poemas, juntamen- ge o melhor livro da sua carreira, é tam-
te com outras lexicalmente afins, como bém o mais livre, a começar pela escansão
«civilização». Voltando ao uso da ima- dos versos, de que acabamos de citar um
gem pelo autor, não deixa desde logo de bom exemplo. A sua mancha gráfica che-
ser irónica e iconoclasta a foto escolhida ga a 2012 sem nenhuma contaminação

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com qualquer forma fixa (subvertendo-a circum-navegar o planeta — e elegância à
até — «soneto do destino», poema 68), [mesa — Reformada no Mediterrâneo
desnudando o poema por vezes ao limite gasta no casino parcos rendimentos —
de ter apenas um traço separando vasos [Volta ao Louvre para lembrar as coisas
sintáticos. E aqui não se confunda a pala- como duram — presenças indefinidas num
vra «versos», já que não há direta corres- [xadrez de olhares em cada mínimo gesto
pondência entre os dois segmentos. Este é como têm de ser enaltecidas e largadas —
também o livro que parece dizer mais coi- [Os seus filhos cresceram nas sete partidas
sas das mais diversas formas. Neste senti- Criaram vacas plantaram açúcar cacau
do, a própria forma torrencial como são [trigo — Comerciaram sedas ouro
apresentados os poemas ao longo do livro [diamantes
(seguidos, como uma linha ininterrupta Fizeram guerras por razões que parecem
de que temos apenas por guia um número [nobres vistas de um lado
encabeçando cada poema) contribui para mas podem ser torpes
essa perceção por parte do leitor. ou pecuniárias meramente
Por outro lado, Félix da Costa demons- É a graça da Europa — ter lido Confúcio à
tra que se sabe colocar entre um plano [hora do chá tarde demais
abstrato e poético sem evitar a procura Com a cabeça de elefante em Darjeeling
das mais quotidianas referências, por ve- [redizer a vida — comendo bolo
zes de uma forma velada, outras de forma de chocolate de São Tomé em elegante
direta. Há, por exemplo, referências a [cinismo e fumo de Havana
concursos de beleza, a Marylin Monroe Assim nos sentimos bem com Gauguin no
e aos Óscares (novamente o século XX [Louvre no Hermitage
despontando), e até uma humorística dis- em Tóquio e em Nova Iorque.
topia (outra palavra que rimaria com este
livro) sobre a rarefação do oxigénio na Não percamos este poema de vista,
atmosfera, tomado por uma perspetiva especialmente «esta conversão total à
capitalista (poema 56), ou sobre o mundo razão» do velho continente. Como se de-
dos livros (poema 55), a teoria quântica preende pelo que temos vindo a dizer, este
(poema 208) — todos estes elementos li- é igualmente um livro de reflexão — poe-
gados, como é óbvio, ao estado do mundo ma 173: «a ideia básica é pensar» —, ou-
hoje. Um dos melhores exemplos encon- tra palavra que atravessa muitos poemas.
tramo-lo quando o poeta fala da Europa Não que se faça a apologia do pensamen-
atual: to — muito pelo contrário, são vários os
poemas em que, quando nos é proposta a
54 Europa — hino com Gauguin dicotomia entre racionalidade e irraciona-
A Europa chegou a toda a parte lidade (animalidade, instinto) se sente e lê
ora super-mulher com a mania da assepsia o peso da balança pender para a segunda
vestida de cruz vermelha e convertendo parte (atingindo um cume importante
[tudo à razão na subversão do conceito cogito ergo sum
ora cavalheiro de fato e gravata lendo do poema 8). De resto, uma modalidade
[Rousseau e vendendo dessa reflexão também acontece com a
objectos essenciais à civilização — Em casa citação modificada de marcos da sua pró-
[— mãe sempre insatisfeita pria carreira e interesses poéticos. Desde
com uma sabedoria prática para todos os a piscadela de olho inocente a Bernardo
[momentos do dia — plantar a roseira Soares/Pessoa (o comboio para Cascais

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