Vitimização 20436166
Vitimização 20436166
Vitimização 20436166
CURSO DE PSICOLOGIA
VIOLÊNCIA
BRASÍLIA−DF
JULHO/2009
EDILENE CECÍLIA AGNESI THOMPSON
RECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA
BRASÍLIA−DF
JULHO/2009
Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES
Curso de Psicologia
Disciplina: Monografia
BRASÍLIA−DF
JULHO/2009
Agradecimentos
A minha colega Guadalupe, que seguiu comigo durante todo este percurso acadêmico,
mostrando-se sempre disposta a enfrentar os desafios e a realizar tudo com a maior qualidade
e competência possíveis.
Aos Professores Alexandre Russo, Fernando Rey, Moacir Rodrigues e Tânia Inessa,
especial, pois sua postura profissional demonstrou com virtuosismo a atuação do profissional
violência.
iii
SUMÁRIO
RESUMO .................................................................................................................................. iv
3.1. Conhecendo a violência e suas vítimas sob a perspectiva da saúde pública ................. 40
3.2. Um espaço social de acolhida e atuação multidisciplinar para os casos de violência ... 43
RESUMO
Esta reflexão examina a temática da violência sob a ótica da teoria psicanalítica, firmando seu
foco na recorrência da vitimização. Tais fatos podem sugerir a existência do que a Psicanálise
denomina como sendo uma compulsão à repetição, isto é, a existência de um impulso de
origem inconsciente que pode levar uma pessoa a se expor a situações de risco, em que
novamente poderá tornar-se vítima de um ato violento. O tema é abordado a partir de seu
aspecto amplo, levando em consideração a complexidade em que se insere, envolvendo a
revisão bibliográfica sobre o tema e uma reflexão sobre a experiência de estágio. O primeiro
capítulo dá início a este trabalho a partir da identificação da violência que se mostra presente
nas fibras e tramas do tecido social. Verifica a articulação que ocorre de múltiplas formas nas
culturas e estruturações dos agrupamentos humanos, inclusive por meio da análise de mitos e
da intervenção de ordem divina que instaura a lei. Essa forma de compreender a violência e
suas vítimas traz o debate para a dimensão pública, especificamente, na área da saúde. No
segundo capítulo, encontramos os pressupostos teóricos utilizados, que se fundamentam no
pensamento freudiano a respeito do mal-estar trazido pela violência às sociedades humanas e,
especificamente, suas manifestações domésticas. Esse entendimento traz uma possibilidade de
compreensão quanto à recorrência da violência no meio social: sua origem, papel que
desempenha e o processo da violência, enquanto uma destinação que é dada a um impulso,
cuja origem está fora da consciência do sujeito. O estabelecimento de um entendimento dessa
forma possibilita a busca de alternativas mais saudáveis, que evitem que uma repetição
ocorra. No terceiro capítulo, encontram-se estudos e relatos relacionados a todos os aspectos
apresentados nos capítulos anteriores, descritos a partir de experiências vivenciadas durante as
atividades de estágio, realizadas em uma instituição pública de atendimento às vítimas de
violência no Distrito Federal. Assim, é possível perceber, sob a perspectiva da saúde pública,
como ocorre a repetição da violência e o processo de revitimização do sujeito. Igualmente,
descobre-se a necessidade da existência de um espaço social para a acolhida das vítimas de
violência e a importância da escuta na intervenção psicológica, na atuação multidisciplinar.
similaridade que possa possuir o ato violento em si mesmo. Assim, temos pessoas vitimadas
pela violência, seja ela de que tipo for, que passam pelo serviço de atendimento. Após
cumprirem os ritos legais, receberem cuidados médicos e serem acolhidas e orientadas pelo
serviço de psicologia, conseguem retomar a própria vida. Necessariamente, não voltam a ser
vítimas de atos violentos. Contudo, existem casos que se repetem. Pessoas que
vivida.
Para o profissional de psicologia surge então a questão: “por que isso sempre acontece
com essa pessoa?” É a partir dessa inquietante pergunta que se constrói essa reflexão
compreensão a respeito de suas manifestações. Este é o nosso objetivo geral, mas iremos um
pouco além, ao refletirmos sobre a recorrência da violência, sendo esse nosso objetivo
específico.
e da saúde. Isso se dá, em decorrência das inúmeras realidades em que se manifesta e de sua
infiltração ampla no tecido social. É difícil localizar o ato violento em segmentos ou extratos
específicos da sociedade, porém mostra-se mais fácil identificá-lo nos mais variados lugares e
ocorrem ao seu redor por meio da construção dos mitos. Estes constituem ricas fontes de
informações sobre realidades que, de outra forma, não poderiam ser tão bem descritas, e
2
o ato violento de um comportamento que pode ocasionar lesões físicas, psicológicas, morais,
dentre outras, é que se torna objeto de estudos acadêmicos e de ações de saúde pública.
vítimas da violência e onde estão localizadas nos grupos sociais. Dessa maneira, é viável
intervir sempre que necessário. Uma observação atenta das ocorrências e recorrências de atos
violentos poderá possibilitar que seja percebida a existência de uma contínua repetição, algo
que atua de modo compulsivo na vida de algumas pessoas que buscam uma instituição de
um entendimento mais profundo sobre a violência, a história dos agressores e de suas vítimas.
diretamente com o estabelecimento de uma lei social geral, que acaba por intervir nos
comunidade ou cultura.
Assim ocorre na família, pois é no ambiente doméstico que muitos atos violentos
chamamos de limites. Dessa maneira, o ato violento acaba se configurando como socialmente
aceito, por causa da imposição das regras sociais, as quais impedem que os sujeitos procedam
cadeia que se repete continuamente. Esse fato poderá contribuir de modo significativo para a
recorrência da violência. Muitas vezes, essa realidade encontra-se restrita a um sujeito, que
possíveis relações causais entre a história individual do sujeito vitimado, a violência sofrida e
capaz de perceber os aspectos sutis que estão presentes nos discursos daqueles que são vítima
de atos violentos.
Os casos que exemplificam e auxiliam esta reflexão, são de mulheres que procuraram
a instituição por terem sofrido algum tipo de violência. Suas identidades, por motivos éticos,
primeiro capítulo, iniciamos a reflexão sobre a temática da violência a partir de sua inserção
social, como aspecto integrante da trama do tecido social. Nesse entendimento, foram
4
utilizados conceitos apresentados por Morin (2007), de modo a ser possível contextualizar a
Por estar assim tão intimamente ligado à história da humanidade, encontramos nos
mitos e nas tradições religiosas algumas explicações possíveis para a origem da violência e da
lei que sustenta o funcionamento da sociedade. Se o ato violento emerge no sujeito como
parte de sua essência, identifica-se a intervenção de um ente divino que estabelece a lei, que
dita limites às suas ações. Paradoxalmente, esse conjunto de regras também pode constituir-se
em um tipo e em um grau de violência, pois o sujeito fica impedido de dar vazão a seus
impulsos, sendo obrigado a limitar-se às regras socialmente estabelecidas. Freud (1913 [1912-
13]) torna essas questões presentes, ao publicar “Totem e Tabu” e assim, universaliza o horror
ao incesto como uma lei social que determina o comportamento dos sujeitos em muitas
culturas e sociedades. A partir deste e de outros trabalhos de Freud, é trazida à luz toda a base
da estrutura cultural e social do ocidente, onde a violência não consegue ser coibida por meio
das leis. Com efeito, torna-se uma questão de interesse público e suscita o estabelecimento e a
as mulheres, constitui-se em uma das mais comuns e frequentes. Contudo, o ato violento
dessa maneira, em uma realidade ampla e interligada, que suscita o debate e a busca constante
este trabalho se sustenta. A violência é uma ocorrência que não acontece de modo isolado e
se faz presente na vida cotidiana. Neste contexto, é possível observar uma particularidade, a
princípio podem passar despercebidas, pouco a pouco trazem à cena a realidade inquietante da
possibilidades de gozo e das interdições impostas por leis universais. Essas concepções nos
que o sujeito fará entre o prazer e a realidade. Inserindo-se nesse universo de análise, a
violência pode ser compreendida como parte de um todo maior e não mais como uma
ocorrência isolada. É a partir dessa compreensão que será possível a construção de uma saída
sujeito.
Distrito Federal, que acolhe e atende pessoas vítimas de violência. A vivência da realidade
abrangida por este serviço possibilitou corroborar os aspectos teóricos revistos e apresentados
A violência, enquanto uma questão de saúde pública, bem como a importância social
de um local onde as vítimas possam ser acolhidas por uma equipe multidisciplinar, ficaram
6
muito claras durante a experiência de estágio realizada. Dessa maneira, ao serem relatadas as
terapêuticas realizadas.
Por tratar-se de uma instituição pública, faz-se necessária uma abordagem ágil e focal,
de modo a atender a grande demanda existente. Contudo mostra-se indispensável uma escuta
neste espaço como parte de uma equipe multidisciplinar. Dessa atuação poderá depender o
profundidade de seu significado. Para compreender de que modo será utilizada aqui, faz-se
necessário retomá-la em sua origem, enquanto uma dimensão epistemológica das teorias
causas” (Minayo, 2007, p.135). A autora esclarece que esse é um tema que possui uma
sociedade, dentre outros”. Para o entendimento que faremos nesta reflexão, consideraremos o
termo complexidade também na sua referência de que “um sistema complexo é formado por
interações” (p.135).
É sob essa ótica que será tratado o fenômeno da violência neste trabalho. Edgar Morin
Será a partir dessa conceituação que a violência será aqui estudada. Não como um
acontecimento isolado, mas em sua teia factual, atual e histórica. Sob essa ótica, o indivíduo
não será percebido exclusivamente nos papéis de algoz e de vítima, mas na sua totalidade em
Uma das maneiras de explicar realidades naturais e humanas muitas vezes é realizada
com o auxílio dos mitos. Dentro de uma visão antropológica, o “Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa” (2004) define mito como o “relato simbólico, passado de geração em
geração dentro de um grupo, que narra e explica a origem de determinado fenômeno, ser vivo,
história bíblica dos irmãos Caim e Abel. A Bíblia narra no livro do Gênesis, no capítulo
quatro, que, após os irmãos fazerem a oferta a Deus do resultado de seus trabalhos, Caim
ficou “muito enfurecido e andava de cabeça baixa”, isso porque “Javé gostou de Abel e de sua
oferta e não gostou de Caim e da oferta dele.” Na sequência1, Deus adverte Caim sobre os
sentimentos que inundavam seu coração dizendo-lhe: “Se você agisse bem, andaria com a
cabeça erguida; mas, se você não age bem, o pecado está junto à porta, como fera acuada,
espreitando você. Por acaso, será que você pode dominá-la?” O desfecho dessa história é
conhecido: Caim convida seu irmão Abel para ir ao campo e lá o assassina (p.17).
Esse mito traz a simbolização de uma realidade humana comum, muitas vezes
vítimas. Percebida por muitos, a partir de aspectos exteriores, como a pessoa que realizou o
ato violento, a cena onde a violência aconteceu e a vítima. Entendida genericamente como um
Não é nova a ideia de que o bem e o mal são conceitos relativos. Por exemplo, o
antigo filósofo chinês Chu Hsi – cujas reflexões ocorreram há tanto tempo que
ninguém sabe ao certo quando ele viveu – ensinava que o bem e o mal não existem em
1
NOTA: A ortografia, neste trabalho (inclusive nas citações), segue as normas do Novo Acordo Ortográfico,
com base na seguinte referência: Bechara, E. (2008). O que muda com o novo acordo ortográfico. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira.
9
benefícios que trazem para quem as manipula ou para o ser humano em geral
complexidade, possibilita-nos compreendê-la de modo mais amplo. Tal visão poderá nos
conduzir a entender o que leva alguém a agredir e, igualmente, o que está por trás das
Como podemos perceber no mito de Caim e Abel, existia uma força que movia o
primeiro no sentido de agredir, de destruir seu irmão, talvez como uma tentativa para obter a
exclusividade do amor de Javé. Seja qual fosse o motivo, fica claro que existia um impulso
Perrone e Nannini2 (2007), percebe-se que “desde sempre, o homem utilizou a força para
dominar e transformar a natureza para assegurar sua sobrevivência em seu nicho ecológico”.
Sua ação não se restringia só a aspectos de sobrevivência, mas “também para subjugar aos
mais débeis, quando corpos e bens podiam servir para satisfazer os desejos dos mais
poderosos” (p.36).
Essa força que impulsiona o indivíduo a buscar sua própria satisfação em detrimento
do outro e de seu bem-estar, pode ser percebida como um mal. “Em se tratando do mal, a
primeira coisa com a qual nos defrontamos é que, de um ponto de vista humano, sua
conceituação depende sempre do ângulo onde está o observador” (Sanford, 1988, p.14).
A metáfora bíblica de Caim e Abel tem sua sequência em uma descendência que
2
Todas as traduções efetuadas dos autores Perrone e Nanini são de minha inteira responsabilidade.
10
Caim encontramos Lamec, que a certo momento diz às suas duas mulheres: “(. . .) por uma
ferida, eu matarei um homem, e por uma cicatriz matarei um jovem. Se a vingança de Caim
valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete” (Gênesis, Capítulo 4, versículo 23, p.18).
fenômeno é a relação de dominação e submissão, na qual quem domina satisfaz seu desejo e
obtém prazer, na mesma proporção daquele que deve submeter-se o faz, para salvar sua vida
Percebemos, por meio dessa visão mítica, uma raiz da origem do que denominamos
exerce sua atividade e, ainda mais, localizá-la na dimensão do psiquismo humano. O que
fica evidente até agora é que “a violência tornou-se o fermento da inquietação cotidiana”
divisão entre bem e mal. Atribui, contudo, à ação divina a responsabilidade por determinados
fenômenos e mesmo por sentimentos e desejos humanos. Dessa maneira, surge a necessidade
de se encontrar formas “para reagir ao medo” que situações como “a miséria, a doença, a
O pensamento judaico-cristão traz Deus (Javé), por meio de histórias míticas, como
um ente organizador, capaz de auxiliar o sujeito a lidar com os medos que a impotência
frente às forças da natureza e de toda a realidade que estavam a sua volta lhe causava. Da
mesma forma, em relação a seu mundo externo, “uma instância divina estabelece uma lei no
que é essencial, obrigando o homem a renunciar à força e a controlar seus desejos” (Perrone
Essa visão de Deus como aquele que instaura uma “lei” é antropologicamente
compartilhada por muitas culturas e diferentes credos religiosos, tanto no Ocidente quanto no
psiquismo humano e da nossa cultura, é trazida à luz pela teoria psicanalítica de Sigmund
Freud. Essa “lei”, que era até então trazida por meio de tradições míticas, passa, a partir de
ou menos saudáveis.
incesto, a partir dos estudos e reflexões sobre o modo de vida de povos primitivos e de suas
práticas totêmicas.
água), que mantém relação peculiar com todo o clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito
guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros,
estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir
seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras) (p.21).
A figura totêmica traz implícita em si uma ou mais leis a que os membros do clã
precisam se sujeitar para que possam permanecer com parte do grupo, mesmo que isso
implique abrir mão de seus desejos e impulsos particulares. É a materialização da lei tribal.
Freud vai mais longe e estabelece uma relação mais direta entre a existência de totens e a
sexualidade. “Em quase todos os lugares em que encontramos totens, encontramos também
uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, consequentemente,
12
contra o seu casamento. Trata-se então da „exogamia‟, uma instituição relacionada com o
Freud vai adiante com sua reflexão a respeito da relação existente entre o totem e a
exogamia3 e chega a afirmar que essa “(. . .) realiza mais (e, assim, visa a mais) do que a
prevenção do incesto com a própria mãe e irmãs. Torna impossível ao homem as relações
sexuais com todas as mulheres de seu próprio clã (. . .)” (Freud, 1913 [1912-13], p.25). O
Na Psicanálise, encontramos diversos conceitos que apontam nessa direção, deixando claro
estabelecemos para o desenvolvimento de uma neurose” (p.99). Essa ideia nos propõe
(. . .) ocorreu na vida da espécie humana algo semelhante ao que ocorreu na vida dos
100).
Esses eventos podem permanecer durante muito tempo como que adormecidos e
depois disso “(. . .) entraram em vigor e criaram fenômenos semelhantes a sintomas, em sua
3
Exogamia: cruzamento de indivíduos não aparentados ou com grau de parentesco distante. (Dicionário Hossais
da Língua Portuguesa, 2007, p.1286).
13
macho forte era senhor e pai de toda a horda, e irrestrito em seu poder que exercia com
violência” (p.100). Ele segue dizendo que o passo decisivo para uma mudança nessa
organização social, parece ter sido marcada pelo momento em que os irmãos expulsos da
horda, “(. . .) vivendo numa comunidade, uniram-se para derrotar o pai e, como era costume
estruturada a partir de intervenções violentas. Contudo tais atos precisaram ser abandonados
para que pudesse surgir, talvez, a primeira forma de organização social, conforme Freud
(1939 [1934-38] p.101) sugere. Ele apresenta que “a primeira forma de organização social
maneira, conclui-se que “cada indivíduo renunciou a seu ideal de adquirir a posição do pai
Na sequência de seu escrito, Freud (1939 [1934-38], estabelece uma relação direta
rituais surgidos, a partir de então, como a origem primitiva de todas as religiões, “(. . .) de ele
ter sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações morais” ( p.102).
Temos, a partir de então, uma associação direta entre as “leis morais e a divindade”.
Essa relação é muito bem exemplificada pela história de Moisés, que entrega ao povo hebreu
4
Horda: bando indisciplinado, malfazejo, que provoca desordem, brigas etc. (Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, 2004, p.1551).
14
tábuas de pedra com dez mandamentos escritos por Deus. Leis a que estavam sujeitos os
israelitas daquela época e que influenciaram todo o pensamento ocidental e mesmo inspiram
as leis vigentes em nossa época. Melman (2008) entende que “(. . .) somos de uma espécie
suficientemente desnaturada para não encontrar em nós mesmos as regras de nossa conduta”
estruturação pessoal e social. Foi por este motivo que as “tábuas da lei” judaica tornaram-se o
aspecto central da vida e um vínculo social de ordem divina, capazes de oferecer regras de
Como é possível perceber, a cultura impõe aos membros de uma sociedade que se
submetam aos seus ditames, sob pena de exclusão do grupo. Essa realidade é experimentada
desde tenra idade, pois o bebê somente consegue sobreviver se for cuidado por alguém e, a
tal fato, condiciona-se uma progressiva aceitação dos horários, procedimentos e valores de
(p.48). Cada uma delas expressa uma forma de articulação pessoal com a lei e dá a ideia de
um curso a ser seguido pelo indivíduo, mesmo porque “o sofrimento somente aparece como
resultado de uma experiência de confrontação com quem, a sua vez, decide impor-se. É uma
humanos. Está presente em todos os grupos sociais, e seu estudo é cada vez maior, certamente
dos mais diversos ambientes, seja dos meios acadêmicos ou da sociedade civil em geral. Não
explícitas, buscando uma resposta razoável para atos que denominam como bárbaros.
violência” e a “a expansão dos direitos humanos e sociais”. O próprio Estado age de modo
violento, “(. . .) tal qual nos crimes de guerra ou abusos e negligências de suas instituições
privado”. Os autores apresentam uma posição enfática, ao afirmarem que “não bastarão para
seu controle apenas apelos aos sensos de responsabilidade ética e social dos indivíduos”. Será
De um lado, a sociedade clama pelos direitos humanos e, por outro, pelos direitos
Minayo e Souza (2006) nos auxiliam a observar a violência sob uma perspectiva mais
violentas do que outras. Afirmam, também, que “(. . .) as formas de violência se articulam
criando uma expressão cultural naturalizada nas relações e nos comportamentos (. . .)”.
Quanto à violência, sugerem que seja sempre compreendida “(. . .) como um fenômeno de
humano da violência fica evidenciado pelo significado que possui e pelo caráter intencional.
E ainda, que temos que lidar com “violências”, pois são múltiplas e que cabe investir em sua
sempre de que “(. . .) a compreensão de cada parte precisa ser articulada ao todo” (pp.42- 43).
esvaziadas de sua função paterna. Ou seja, tal função é detentora de uma lei capaz de conter
as manifestações agressivas e de garantir uma relativa estabilidade nas relações sociais, seja
dentro de um grupo seja entre diferentes grupos de uma sociedade, que é cada vez mais
global. Esse enfraquecimento é sentido nas relações familiares deste início do século XXI,
em que pais e mães não sabem como devem se comportar. Não sabem mais a diferença entre
autoridade e autoritarismo, estão confusos entre dois papéis: amigos ou pais dos próprios
filhos. São comuns as manchetes nos veículos de comunicação, em que filhos aparecem em
tamanho grande, tendo pela mão o pai e a mãe em tamanhos reduzidos. Essa metáfora traduz
bem a debilidade da força da lei paterna, daquela lei de origem divina, capaz de levar os
indivíduos a abrirem mão de seus desejos instintivos e optarem pelas regras sociais aceitas,
de modo a permanecerem no grupo. Dessa maneira, os “impasses para lidar com a liberdade
sociais e responsabilidades éticas e civis constituem o centro dessa crise (. . .)” (Schraiber et
abrangência, mas não se percebe, como afirmam Perrone e Nannini (2007), “(. . .) um
classificada em duas formas distintas: “A violência agressão, que se encontra entre pessoas
vinculadas por uma relação de tipo simétrico, por assim dizer, igualitária. Ou a violência
castigo, que tem lugar entre pessoas implicadas em uma relação de tipo complementar, ou
dita, não igualitária” (p.57). Como afirmam Schraiber et al. (2006), deparamo-nos com o
coisificação desse outro, ruptura interativa que fundamenta as violências”. Isso nos leva a
constatar que estamos diante de uma “ambivalência ética”, isto é, as escalas de valores estão
sendo substituídas “(. . .) por valores móveis (. . .), por uma agenda de valores fluída,
„adoção‟ de valores adaptáveis aos desejos e ao próprio alargamento do que venham a ser ou
não direitos”. E assim, deparamo-nos com o “(. . .) estabelecimento a partir dos anos 80, da
Essa realidade social contemporânea nos impõe naturalmente uma pergunta quanto à
relação que se estabelece entre identidade e violência, face o enfraquecimento das instituições
que naturalmente exerciam o papel de guardiãs da lei. Costa (2003) apresenta o conceito de
identidade, baseado nas ideias De Levita (1966)6, como estruturado por meio de duas bases
5
Hobsbawm, E. (2002). Era dos extremos: o breve século XX:1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.
6
De Levita, D. J. (1966). On the psychoanalyt concept of identity. In Int. Journal of Psychoanal.47, pp.299−139.
18
provenientes e como ponto de condensação dos papéis do indivíduo em sua interação social”
(p.109).
identidade dos sujeitos e a violência, podemos recorrer ao conhecido Relatório Mundial sobre
Violência e Saúde publicado pela Organização Mundial da Saúde em 2002, que desempenha
um importante papel frente a essa temática. Sua importância reside no fato de que “(. . .) torna
referências para os diversos movimentos regionais” (Schraiber et al. 2006, p.113). O relatório
mesmo tempo em que se definem as distintas violências enquanto diversidades dessa questão
O relatório traz à luz a violência em seu caráter de invisibilidade, que muitas vezes
mas coerentes com um modo de viver em que pequenos e múltiplos tipos de abusos se dão
promove a sua percepção social e fica clara uma trágica trajetória, repleta de agressões
sofridas e caladas no interior das famílias e das instituições. “O curioso fenômeno de que a
maioria destas pessoas sigam vivendo juntas, apesar do sofrimento, sempre fascinou os
comunidade mundial em relação a essas ocorrências que atingem a muitas pessoas de países
realização de intervenções efetivas que promovam sua reversão (Schraiber, et al. 2006).
19
Temos outras manifestações que se encontram, de certa forma, “naturalizadas”, mas que se
deficientes físicos, dentre outros grupos específicos. As agressões se manifestam por meio da
interior das famílias, esbarra em alguns fatores sutis e que não são facilmente detectados. É
maior, com outras pessoas a estes relacionadas. Perrone e Nannini (2007) afirmam que
“certamente, existe um tipo de acordo ligado tanto à resignação, quanto a fascinação, que os
mantém juntos”. Apesar de parecer contraditório, à primeira vista, podemos por outro lado
compreender que “os atores constroem um marco relacional que logo os faz cair em uma
armadilha. É o que se define como consenso implícito rígido, em cujo interior determinadas
pessoas para quem a agressão seja um componente explícito. O que acontece é “(. . .) uma
equilíbrio entre cada um deles e com os outros”(Perrone e Nannini, 2007, p.67). Os autores
complementam ainda que esse tipo de acordo possui lugar estabelecido, momentos e assuntos
específicos que desencadeiam os atos violentos, estando, igualmente, definidos códigos que
análise dos atos violentos, mas também os tipos de violência que podem ser exercidos, “uma
grande superposição das violências física, sexual e psicológica tem sido encontrada, o que
também se deve esperar das violências contra crianças e idosos”. (Schraiber et al. 2006,
p.115).
O estabelecimento de uma relação entre ato violento e gênero é muito comum, talvez
por ser um tipo de agressão recorrente, cujos registros remontam à história. Outro aspecto a
ser considerado reside no fato de a agressividade ser aceita como natural no comportamento
masculino, possivelmente como uma herança comportamental dos líderes das hordas
primitivas.
ambiente familiar, e cobrou um tratamento igualitário, isto é, que não fosse essa situação
compreendida como normal, tendo em vista a diferença de gênero. A partir disso, ficou assim
violência. Dessa forma, afeta as mulheres pelo simples fato de serem deste sexo, ou
Os movimentos sociais que clamam pelos direitos das minorias têm buscado obter
uma situação mais igualitária entre homens e mulheres, inclusive suscitando a promulgação
de leis específicas que lhes garantam a necessária proteção. Da mesma forma, “a produção da
área de saúde sobre a „Violência contra a Mulher‟, na década de 90, foi bastante diversificada
abordagens teóricas e métodos de pesquisa” (Souza et al., 2006 in Minayo e Souza, p.61). A
partir desses estudos, foi possível estabelecer uma delimitação mais clara quanto a violência
intrafamiliar e a que ocorre no ambiente de trabalho. Sua materialização pode se dar por meio
com sua vítima. “As agressões incluem violação, maltrato físico, psicológico, econômico e,
algumas vezes, pode culminar com a morte da mulher maltratada”. O agressor, muitas vezes,
é alguém que mantém um relacionamento afetivo, “como marido e mulher ou adultos contra
É possível perceber com certa facilidade, que a violência de gênero é uma construção
social a que estão sujeitos tanto homens quanto mulheres, apesar dos papéis de algoz e vítima
já aparecem previamente estabelecidos. “Nesse sentido, a ordem social opera como uma
relacional”, conforme nos sugerem Perrone e Nanniny (2007), por uma via diferente,
vitimiza igualmente os homens. Com base nessa concepção, a violência de gênero poderá ser
compreendida em sua real dimenção, isto é, que vitimiza igualmente a mulheres e homens e
gerações, tanto para as crianças e adolescentes, quanto para os idosos. Para as crianças e
justifica-se o ato violento por conta de uma motivação positiva e benéfica ao agredido. Essa
22
realidade vai além dos limites das famílias e se infiltra nas instituições sociais de amparo e
ainda existe a ser feito. Assim temos, como afirmam Assis e Constantino (2006) in Minayo e
Estado em seu poder normatizador e punitivo” (p.183-184). Certamente, esse avanço não
desejamos construir um país mais civilizado, onde exista uma ampliação da cidadania,
necessitaremos conhecer sempre mais sobre a violência e criar estruturas de proteção para as
Ocupar-se da violência é uma atribuição que demanda uma visão ampliada de todo o
ambiente e de todas as suas manifestações. Nesse sentido, faz-se necessário encarar inclusive
a ocorrência de atos violentos contra pessoas idosas, fato que também deixa de ser tratado em
ambientes privados e passa a ser objeto de discussões públicas, promovidas pela mídia, por
entidades que se ocupam de direitos individuais e das minorias, e ainda, aquelas próprias dos
ambientes acadêmicos.
Toda sociedade se depara com a realidade da violência, como uma “(. . .) grande
contradição que vivemos: nunca houve tantas leis e garantias, e o mundo parace nunca ter
sido tão violento como hoje” (Buoro et al., 2001, p.11). Seja onde e como for, “as violências
23
contra pessoas mais velhas precisam ser compreendidas tendo em vista, pelo menos três
Minayo e Souza, p.225). O avanço da medicina e das condições de vida das populações,
trouxeram como consequência uma expectativa maior de vida às pessoas. Tal fato torna ainda
mais visível a incidência da violência contra pessoas com mais de 60 anos, conforme nos
Assim, mesmo que a vitimização dos velhos seja um fenômeno cultural secular, cujas
É de se esperar que o aumento populacional de pessoas com mais idade acabe por
gerar uma nova realidade, em que suas necessidades e desejos sejam efetivamente
considerados. Da mesma forma como são hoje percebidas − um novo nicho de consumidores
alguém “improdutivo” e, portanto, que não serve mais aos interesse coletivos. Essa visão é
contraposta exatamente pela dependência que muitas famílias apresentam dos rendimentos
recebidos pelos seus idosos, geralmente fruto de aposentadorias. Esses problemas estruturais
são visíveis e muitos deles se ocupam. “No entanto, nada se iguala aos abusos e negligências
no interior dos próprios lares, onde choque de gerações, problemas de espaço físico e
complexidade que a caracteriza. Se por um lado nos é possível trazer muitas concepções, por
específicos e enfoques relevantes que deixaram de ser tratados, como raça/etnia e mesmo
gênero” (Schraiber, et al. 2006, p.118). É necessário termos claro que “se de um lado, isto
exigem grande dispersão de tratamento, de outro lado, entende-se que os estudos sobre
histórico-sociais e de seus atores, sejam eles algozes ou vítimas. E podemos resumi-la por
meio da definição apresentada por Faleiros (2000), que utilizaremos neste trabalho:
“Violência, aqui não é entendida, como ato isolado, psicologizado pelo descontrole, pela
doença, pela patologia, mas como um desencadear de relações que envolvem a cultura, o
O ato violento desperta na sociedade uma recorrente pergunta quanto aos motivos que
o fazem surgir em todos os níveis sociais, vitimando a homens e mulheres de todas as idades
e tem por objetivo refletir sobre aspectos psíquicos implicados na origem do ato violento,
que dar um destino aos impulsos que o movem em busca da satisfação, movimento que tende
à contínua repetição.
atenção que a própria teoria psicanalítica, em geral, e não só entre nós, dedica ao assunto”
(Costa, 2003, p.12). Com efeito, a complexa realidade social em que estamos imersos, suscita
uma reflexão mais profunda sobre a ocorrência e recorrência de atos violentos, exemplos de
crueldade que chocam e geram uma pergunta que fica, em geral, sem resposta: por que isso
acontece?
de seus efeitos individuais e sociais e afirma: “Vou tentar lhes dar notícia de algumas
proposições que chegam, de algum modo, ao psicanalista a partir de sua prática, e submeter
Essa crescente onda de violência que assola as comunidades, não permite que nenhum
segmento social ou eixo de conhecimento permaneça alheio ou indiferente. Exige cada vez
avançado indicam o modo de laço constituído por uma cultura que os empurra
Melman (2008) apresenta essa realidade por meio do relato da história clínica de um
paciente que não está submetido a qualquer tipo de violência. “(. . .) um jovem extremamente
simpático, e que tem a seguinte característica: ele não sofre, eu lhes garanto, nenhuma
violência, nada” (p.87). Sua rotina mostra-se absolutamente tranqüila, sem nenhuma situação
em que seja obrigado a fazer algo que não deseja. Assim, “ele se levanta de manhã quando
quer, e depois, durante o dia, nenhuma obrigação, nenhum constrangimento”. Como atividade,
“ele pode, eventualmente, fazer algumas fotos que uma mamãe bem situada poderá vender a
uma revista”. Seu dia se caracteriza por fazer apenas o que quer e quando quer. “À noite”,
também não possui “nenhuma obrigação, nenhum constrangimento”, isto é, ter que se
encarregar de alguma atividade ou responsabilizar-se por alguma coisa que não fosse de seu
pleno agrado. Apesar dessa vida sem quaisquer violência, originada pela imposição de
responsabilidades ou atividades não prazerosas, há, certamente, situações que ele mesmo “(. . .)
pôde se impor”. Essas, referem-se “(. . .) ao uso do álcool e das drogas” (p.87). Apesar de
27
estarem relacionadas à busca de mais satisfação, trazem consigo algum tipo de desprazer, seja
pela repreensão social direta ou indireta, ou mesmo pelos sintomas físicos e reações
emocionais ocasionados pela diminuição dos efeitos químicos que produzem no organismo
Como compreender o que se passa com esse jovem? Não seria natural pensar que ele
tem todas as condições para realizar-se, para ter uma existência saudável? Essa constatação,
que pode parecer paradoxal, traz em si um diagnóstico inesperado: “ele sofre da liberdade, ele
e de crítica, aliás, do modo como passa por sua existência” (Melman, 2008, p.87).
prazer” e, de outro, com a “pulsão de morte”. Contudo “(. . .) afirmar que a pulsão de morte é a
„desrazão do princípio do prazer‟ implica em dizer que ela é a „desrazão da desrazão‟. Esta
recorrer à instância paterna, que na atualidade mostra-se tão debilitada. Melman (2008)
apresenta a ideia da existência de uma violência paradoxal, que é introduzida exatamente por
conta da recusa de nossa cultura atual ao que poderíamos denominar de “violência magistral”,
isto é, aquela que tem sua referência direta com a instância paterna. Dessa forma, o que
Melman (2008) percebeu em seu percurso clínico “constituiria, de alguma maneira, um apelo a
um retorno a uma autoridade desse tipo (. . .) se trataria de uma violência, mas cujos efeitos nos
são conhecidos – estamos habituados a ela, todas as nossas tradições estão aí para testemunhá-
É necessário compreender que não se trata de uma apologia à violência, mas sim a
compreensão do modo como ela aparece no dinamismo psíquico e que é traduzida nos atos
28
violentos do cotidiano brasileiro e mundial. Por mais paradoxal que possa parecer à primeira
vista, é exatamente desse conflito que é possível a estruturação do sujeito e sua possibilidade
pelo pai, ao nosso ódio também, um vai com o outro, e o ódio é muitas vezes uma
remetem a essa outra obra de Freud, “Mal-estar na civilização” (Melman, 2008, p.88) .
grupos sociais e na cultura. Costa (2003) apresenta sua visão a respeito disso, por meio da
proposta de uma reflexão que se baseia na ideia de que a violência está diretamente
organizadas. Isso se deve ao caráter impositivo que os hábitos e costumes são passados às
novas gerações, por meio do que ele denomina de “atos pedagógicos” (p.21).
paterna, por meio da lei, um tema do qual a Psicanálise se ocupa, por estar diretamente ligado
à maneira como os indivíduos irão lidar com seus próprios desejos, de modo a garantir
O ato violento, como o destino dado a um impulso interno, traz consigo o indivíduo
cotidiano, iremos identificar que apresentam, de modos distintos, sutis ações violentas.
conduta das crianças, que tendem a ser violentas e a agredir as mais fracas. Ele identifica que
tais atos violentos são dirigidos àquelas que são identificadas como as mais fracas ou débeis.
Isso estaria relacionado “a imagem, que ela vive como deficiente, que esse semelhante lhe
29
propõe” (p.75). A agressão seria decorrente da possibilidade de que essa imagem pudesse vir
Para descrever a violência simbólica, Melman (2008) recorre à cena conjugal em que
a relação que se estabelece entre os cônjuges está carregada de atos violentos. Isso se dá pelo
fato de o amor estar relacionado à existência de uma “assimetria” entre esses parceiros e que
relação às vontades e desejos do outro. Contudo isso pode se exacerbar, e um dos cônjuges
ficar submetido às vontades e desejos do outro. A violência, que poderá se manifestar nessas
situações, prescinde de qualquer “ato motor”, mas ser igualmente eficiente. Aquele que está
submetido, também poderá não suportar mais tal situação e vir a rebelar-se, utilizando-se o
ato violento com a simbolização de sua inconformidade com a situação a que está submetido.
A terceira manifestação da violência pode ser observada pela via do real, isto é, um
indivíduo pode tornar-se presente, existir socialmente, por meio da prática de um ato
mídia, que nos dão ideia de que tal seja verdade. Esses casos que ocupam, em geral, os
horários de maior audiência e trazem à cena nacional um sujeito que não conseguiria ser
percebido de outra forma. Melman (2008) sugere que, nesses casos, a violência seria
decorrente da marginalidade social, do sentir do sujeito de que a sociedade em que vive não o
entendimento freudiano, conforme apresenta Costa (2003), de que “não existe um „instinto de
violência‟. O que existe é um instinto agressivo que pode coexistir perfeitamente com a
violência” (p.35).
30
Frente a essa visão, deparamo-nos com outro aspecto dessa “complexa” realidade,
que se refere à existência de, no mínimo, um par de pessoas, o agressor e sua vítima. Isso é
tão óbvio, que pode passar despercebido que existam papéis bem definidos e, de certa
maneira, estruturados, que são desempenhados por cada um desse atores na cena violenta.
Partindo dessa ideia, defrontamo-nos com um aspecto que parece ser essencial à
inconsciente.
sua permanência no grupo. Assumir um papel implica, em maior ou menor grau, abrir mão
dos próprios desejos. Essa configuração que a lei social instaura mostra-se, até certo ponto,
Se apurarmos um pouco mais essa visão, iremos encontrar nas relações que se
qual não pensamos usualmente e que se refere à existência de um papel inconsciente a ser
desempenhado pela vítima, pois em geral prendemos nossa atenção ao ato violento e a quem
o pratica.
ou serve para restringir e deformar o eu?” (Elliot, 1996, p.55). Com essas perguntas, próprias
algumas realidades, que veremos mais adiante, e estão relacionadas à complexidade social
criança não consegue se diferenciar do ambiente em que está e só o faz ao longo do tempo,
na medida em que a estrutura do Eu vai amadurecendo. Exemplifica isso afirmando que “ela
deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que
posteriormente identificará como sendo os seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la
seu Eu. Essas experiências são muitas vezes sofrimentos que, ao serem identificados como
Não é difícil constatar, que a vida impõe aos indivíduos muitas situações que geram
existência do que denomina de “construções auxiliares”, que agem como paliativos quando
as pessoas agem de duas formas: evitam o sofrimento e buscam o prazer. Sintetiza tudo isso
Junto a isso, Freud (1930 [1929]), constata que a felicidade intensa surge em
decorrência da vivência de uma situação em que diferentes aspectos contrastem. Por isso
32
violência é produto da conduta humana movida pelo instinto e não pela razão”. Essa
afirmação baseia-se na constatação de que nem sempre a violência é irracional, isto é, não é
uma “ação puramente instintiva” (p.36). Classificar o ato violento como irracional sugere que
seja desencadeado pela emoção, o que também não se configura, pois o agir com violência
não exclui necessariamente a razão. “A violência provocada pela emoção pode ser racional e
É possível perceber que o indivíduo é movido por forças internas ao buscar satisfazer
suas necessidades e, assim, obter prazer e ser feliz. Mas não é possível “uma satisfação
A investigação freudiana sobre a felicidade (Freud, 1930 [1929]) apresenta três fontes
violência que se manifesta na sociedade atual. A primeira e a segunda dessas fontes residem
(p.105), e que nosso corpo “permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com
limitada capacidade de adaptação e realização” (p.105). É certo que essa percepção dos
limites humanos é incômoda, mas aprendemos ao longo de nossa história a nos “afastar um
pouco e a mitigar outro tanto” (p.105). É em relação à terceira, que nossa atenção se detém,
pois relaciona-se à “fonte social do sofrimento” (p.105), isto é, as leis que nós mesmos
estabelecemos socialmente não nos garantem proteção contra o sofrimento, pelo contrário,
33
são responsáveis por ele. Isso se dá, em decorrência de não conseguirmos dar plena vazão
aos impulsos, tendo que encontrar caminhos alternativos para sua descarga. “Esse argumento
sustenta que o que chamamos de civilização é em grande parte responsável por nossa
define como o “estado teórico” da violência (p.40). Esta é apresentada a partir da relação
estabelecida entre a mãe e o bebê. A agressividade que pode ser observada do bebê em
relação a sua mãe, ou a quem ocupe esse lugar, está na proporção “do material nutritivo para o
animal” (p.40). A mãe é percebida como aquela fonte de satisfação das necessidades
primordiais, capaz de proporcionar bem-estar, mesmo que passageiro. Costa (2003) conclui
que essa agressividade, puramente instintiva, que aqui se pode observar, receberá dessa
mesma mãe e do ambiente “o sentido de „maldade‟ ou „inocuidade‟” (p.41). Essa, segundo ele
seja, „um desejo dirigido a um objeto‟ (bom ou mau) e „portador de um afeto‟ (bom ou mau)”
grande norteador dos destinos dos impulsos, de modo que o resultado a ser obtido no final
coincida com a redução de uma tensão, o evitar do desprazer ou uma produção de prazer.
mente, mas que não se encontra de maneira alguma „vinculada‟ e relacioná-los de tal
7
Winicot, D. W. (1971). De la pèdiatrie à la psychanálise. (2ª ed.). Paris: Payot.
34
Essa afirmação necessita ser bem compreendida, conforme Freud (1920) mesmo
afirma, para que não fiquemos com a ideia de que existe uma “dominância do princípio do
prazer”, mas sim, de que existe “uma forte tendência” nesse sentido (p.20). É igualmente
seus propósitos. Freud (1920) apresenta que a situação em que o princípio do prazer é
Especialmente quando se trata de instintos de ordem sexual, o princípio da realidade pode ser
vencido e mesmo os conteúdos que foram objeto de repressão encontram “(. . .) caminhos
indiretos a uma satisfação direta ou substitutiva, esse acontecimento, que em outros casos
seria uma oportunidade de prazer, é sentida pelo ego como desprazer” (Freud,1920, p.21).
Costa (2003) considera que “(. . .) a cultura pode exigir do indivíduo um desempenho
ou atributos que redundam em violência para com ele próprio” (p.43). Ao analisar essa
questão, estabelece uma relação entre situações violentas a que os indivíduos se submetem
voluntariamente e o prazer que delas decorrem. Faz isso trazendo à cena ideias que se
que só há violência quando o sujeito que sofre a ação agressiva sente no agente da ação um
desejo de destruição” (pp.41 e 42). Trazendo para a atualidade, Costa (2003) destaca as
8
Bettelheim, B. (1979). Feridas simbólicas. Lisboa: Moraes Editores.
35
Temos, assim, uma exposição voluntária a uma violência, que é orientada pelo
indivíduo tem evidências dos riscos a que está se expondo e, mesmo assim, se submete aos
mesmos. Freud (1920) em sua investigação, busca estabelecer uma distinção clara entre o
que denomina de “instintos do ego”, que tendem à morte e dos “instintos sexuais” que se
Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais
dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e
afirmando que “não existe violência sem desejo de destruição, comandando a ação agressiva
Para Freud não existe pulsão agressiva em si, mas há um dualismo pulsional que faz
indivíduo é levado a destruir o outro, ainda que sua necessidade de amor contrarie
essa pulsão. Talvez isso explique por que os atos de violência têm sempre seus
final que o indivíduo dá a seus impulsos e de que maneira tudo aquilo que foi retirado da
consciência, por meio da repressão, torna-se novamente presente por meio da compulsão à
repetição.
36
Freud (1920) afirma que cabe ao processo psicanalítico fazer com que o inconsciente
se torne consciente. Contudo, observou-se que não era possível ao paciente “(. . .) recordar a
totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é possível recordar, pode ser
exatamente a parte essencial” (p.31). Dessa maneira, tudo aquilo que não consegue ser
recordado acaba por ser repetido na relação transferencial que é estabelecida entre o paciente
e o analista.
resistência que impede a sua plena expressão é fruto da ação do que Freud (1920) denomina
de “sistemas mais elevados da mente” (p.32), exatamente aqueles que são os responsáveis
pela sua repressão da consciência. Assim, tudo o que foi reprimido continua buscando
manifestar-se, mas não conseguindo fazê-lo, manifesta-se por meio da compulsão à repetição.
Freud (1920) afirma que a ação terapêutica, busca por meio do princípio da realidade,
auxiliar o paciente a suportar o desprazer causado pela expressão daquilo que foi reprimido,
sob a égide do princípio do prazer. O que é “reexperimentado” por meio da repetição faria o
Eu experimentar uma sensação desagradável, “no entanto, constitui desprazer de uma espécie
que já consideramos e que não contradiz o princípio do prazer: desprazer para um dos
diz da desintegração do ser vivo, mas da forma ruidosa que ele encontra para se
A busca de uma saída saudável para o que se encontra reprimido, de acordo com o
que Freud (1920) apresenta, encontra-se na possibilidade de ser dado um novo destino ao
37
repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao ser capturado nestas repetições,
toma o lugar da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência” (Garcia-Roza, 1986,
p.23).
serviços de saúde. Contudo é comum não serem percebidos em seu caráter mais profundo,
como tradução repetitiva, por meio do ato violento, de conteúdos reprimidos da consciência.
expressa no atual momento da vida do sujeito. E ainda mais, em geral as atenções estão
voltadas para o agressor e, até, para sua repetição de atos violentos. O que quase nunca se
escuta dizer refere-se à compulsão à repetição da violência por parte daquele que sofre a
ação, a vítima. Uma reflexão sobre esses aspectos, talvez possa nos indicar possíveis
motivos, de ordem inconsciente, que predispõem ou favorecem que ocorra com um indivíduo
que evitem novas atuações, por meio da repetição, de conteúdos reprimidos da consciência.
como um “disfarce”. Esse entendimento nos faz compreender que uma máscara encobre
outra máscara, em uma sequência em que não é possível encontrar qual é a primeira. Dessa
maneira, quando a repetição acontece, não estamos diante de uma representação. “(. . .) A
repetição não representa uma coisa, ela „significa‟ algo, ela é em sua essência de natureza
simbólica” (p.44).
estamos diante de um sujeito revitimizado, agora podemos pensar sobre o que é que aí está
38
sendo repetindo. O ato violento que vitimiza estaria aqui como uma máscara que
Aquilo que a psicanálise nos fala é dessa repetição interminável, desse jogo amoroso
que constitui a ligação de Eros com um passado reencontrado. O que se repete aqui é
45).
Freud (1920) fala de um “caráter instintual” para as situações em que uma compulsão
vida mental infantil e também se fariam presentes durante o tratamento psicanalítico. É certo
que um evento, ao acontecer pela primeira vez, causa um impacto diferenciado. Podemos
então nos questionar sobre o motivo pelo qual a repetição acontece, pois perderia
Garcia-Roza (1986) descreve a repetição como “(. . .) o ato pelo qual a pulsão é
presentificada mas, ao mesmo tempo, o ato pelo qual ela permanece oculta” (p.52). De
alguma forma, o que está se repetindo tem a ver com o que Freud chama de “experiência
primária”, apesar de que ao longo de seu trabalho, ele tenha abandonado a ideia de que
existiria uma situação traumática na origem dos sintomas neuróticos. Ficou apenas a
reativas e substitutivas, bem como sublimações, não bastarão para remover a tensão
Ao nos defrontarmos com a repetição de atos violentos, nos quais estão envolvidos o
autor da ação e a vítima, poderemos agora identificar que é uma “máscara”, uma de uma
cadeia. Saberemos também que se trata de uma pulsão de origem sexual, originada de uma
primitiva relação de prazer-desprazer. “O que sem dúvida alguma é marcado pela repetição é
Eros, a pulsão sexual. Assim como o nosso primeiro encontro amoroso é já uma repetição,
repetição de encontros que não foram vividos por nós, os demais encontros são também
que se apresentam. É um repetir terapêutico, se assim se pode dizer, que, por meio da
destino possível a essa descarga de energia psíquica. Esse novo caminho para a descarga
pulsional, que podemos entender como mais saudável, interromperia a cadeia de repetição da
violência, tanto para quem pratica o ato violento quanto para quem é uma recorrente vítima.
40
Distrito Federal, que acolhe pessoas vítimas de violência, de qualquer gênero e idade e
realizadas por meio de uma equipe multidisciplinar composta por médicos, psicólogos,
possibilitar o contato com uma realidade pouco discutida durante o curso de Psicologia, que é
psicologia precisa estar em constante formação, pois somente as teorias psicológicas não
abrangem totalmente um universo que envolve diversas áreas: a social, a jurídica e a médica.
Foi o que aconteceu, pois além do atendimento psicológico, muitos casos necessitavam de
encaminhamento médico, social e mesmo jurídico. Frente a essa realidade, fez-se necessário
terão as identidades das vítimas preservadas, por meio do uso genérico do nome “Maria”,
O fato de realizar esta experiência de estágio, atuando nesta temática da violência, foi
vigente no país.
Tudo isso encontra respaldo legal na Constituição Federal, em seu artigo 227, onde se
lê:
de 2008)
Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”9, onde são lançadas as bases operacionais
atendimento às vítimas de violência e redes de referência. Dessa forma, esse espaço encontra-
se constituído de modo a acolher a pessoa que vem em busca de auxílio e a própria vítima da
9
Ministério da Saúde. Norma técnica prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra
mulheres e adolescentes. Brasília: Ministério da Saúde; 1999. Disponível em http://portal.saude.gov.br. Acesso
em15 jan. 2009.
42
Justiça, dentre outros, que trabalham com atendimento e proteção às vítimas de violência.
onde podemos encontrar a afirmação de que “a palavra „violência‟ tem uma conotação
negativa porque é associada a um ato moralmente reprovável, de tal forma que quem comete
intencionalmente esse tipo de ato é obrigado a justificá-lo” (p.7). Assim sendo, existem
algumas condições para que se possa caracterizar um ato como sendo violento, são elas:
“causar um dano a terceiros, usar a força (física ou psíquica), ser intencional ou ir contra a
Dentre os tipos de atos violentos que podem ser praticados, de acordo com o que o
Manual aborda dos que são mais frequentes no local onde realizei a experiência de estágio,
11).
provocam 120.000 mortes por ano no Brasil. Diante disso, a violência caracteriza-se
como sério problema de Saúde Pública, pois causa forte impacto na saúde da
Tendo em vista essa realidade que se torna cada vez mais comum em todas as
Estado, como forma de minimizar os efeitos dos atos violentos praticados e para promover a
43
sua prevenção. A exigência dessa atuação também procede da sociedade civil, por meio de
diversos organismos.
contrário a todo e qualquer tipo de ato violento, e mesmo, ao que possa servir de estímulo à
violência. “Logo, a violência não é objeto restrito e específico da área da saúde, mas está
intrinsecamente ligado a ela, na medida em que esse setor participa do conjunto das questões
O Distrito Federal, bem como outras capitais brasileiras, enfrenta uma alta incidência
de violência, conforme pude observar durante o período em que realizei o estágio. As vítimas
maior ocorrência são a física e a sexual. É importante salientar que esses tipos de atos
violentos não acontecem isoladamente, mas geralmente são acompanhados por violência
violência.
A realidade da violência exige que sejam instituídos espaços sociais públicos para a
inclusive junto aos autores dos atos violentos que aceitam participar de atividades de
recuperação ou de reeducação.
O estágio em psicologia que realizei foi em um desses espaços, estando entre minhas
primeiras atividades realizar a acolhida às pessoas que procuravam esse serviço público. Pude
perceber, imediatamente, que o simples ato de acolher a pessoa que chegava e ouvi-la relatar a
situação de violência por ela vivenciada ou que vitimara alguém de sua família já se
44
experimentei durante o estágio que realizei. Certo dia uma das psicólogas que trabalha na
instituição, solicitou que eu acolhesse uma mulher que acabara de chegar. Ela demonstrava
um grande sofrimento e preocupação para com sua mãe, Maria das Dores. Ao relatar o que
estava acontecendo, disse que o pai sempre foi muito violento e que há mais de trinta e cinco
anos ele agride fisicamente sua mãe e faz ameaças com arma de fogo. Contou que seus pais,
atualmente moram em uma chácara e seus irmãos moram na cidade. Relatou que havia
marcado uma consulta médica para sua mãe e no dia marcado foi buscá-la; chegando à
chácara não a encontrou. Andou em volta da casa e não viu ninguém. Passado um tempo viu
seu pai sair do meio do mato. Ela, com medo, saiu correndo e ouviu o pai disparar a arma para
o alto. Ela conseguiu se esconder e ligar para um dos irmãos ir até lá com a polícia. Após foi
até a casa de um vizinho e lá encontrou sua mãe com a roupa rasgada, pois ela havia se
escondido em uma “grota”. Quando a polícia chegou seu pai fugiu. Desde então a mãe está na
cidade com os filhos. Afirmou, finalmente, que sua mãe desejava ser atendida ali, pois tinha
ouvido falar sobre o trabalho que a Instituição fazia em relação à violência. Após ouvi-la
atentamente, perguntei-lhe se conhecia a Lei Maria da Penha, e ela respondeu que não. Falei
rapidamente sobre a Lei e marquei um horário para atender a ela e a sua mãe.
multidisciplinar que passa a ocupar-se dele. Cada profissional trata do aspecto específico que
lhe cabe, mas igualmente garante a necessária integração entre todos os procedimentos a
serem adotados.
campo da práxis violência e saúde não é uma imposição externa e sim exigência
45
Uma das psicólogas do local pediu para que atendêssemos juntas a Sra. Maria das
Dores e sua filha que nos havia procurado na semana anterior. Maria das Dores chegou ao
atendimento bastante fragilizada e falou sobre o episódio de violência já relatado por sua
filha. Ela disse que necessita de ajuda judicial, mas que no momento não sentia coragem para
tomar nenhuma atitude. A psicóloga da instituição disse que, no momento, o mais importante
é que ela pudesse se fortalecer e propôs que, posteriormente, ela buscasse atendimento com a
advogada da equipe. Propôs também uma consulta com um psiquiatra para avaliar a
possibilidade de uma depressão. Maria das Dores, apesar de sua fragilidade, disse que
encaminhamentos foram realizados, e ficou marcado seu retorno na próxima semana para
atendimento psicológico.
decidem revelar essa situação a uma pessoa fora do âmbito doméstico (Presser,
A sequência dada ao atendimento psicológico de Maria das Dores demonstra que, após
ser dado o primeiro passo, que se configura no ato de relatar a violência sofrida, torna-se
possível, apesar das dificuldades, retomar a própria vida e começar a escrevê-la de modo
46
diferente daquele até então vivido. Ela relata que se sente muito confusa e fragilizada. Não
consegue dormir direito – ela está tomando antidepressivo há apenas um dia − diz que espera
que, à medida que o tempo passa, ela vai conseguir se organizar. Diz que às vezes pensa em
morrer, porém a lembrança dos netos, que lhe dão muito afeto, a fazem mudar de pensamento.
Afirma que, apesar das dificuldades, continua a amar o marido, mas tem certeza que esse
sentimento é só por parte dela. Relata que gosta de ir à terapia, pois “essas coisas só pode
Na sequência dos atendimentos, Maria das Dores passa a afirmar estar mais animada.
Diz que já consegue sair para passear e fazer compras. Relata, também, que desde jovem
(doze anos) seus namorados sempre a ameaçavam, e ela dizia que nunca queria casar com um
homem violento. Contudo, não foi o que ocorreu, pois seu marido foi sempre muito violento.
Conta que ele costumava dizer que “o inocente tem que pagar pelo pecador”. Relatou também
que ele voltou a se aproximar indo até a casa onde ela está, mas que não fez ameaças, só
Um aspecto que muito chamou a minha a atenção, foi uma afirmação feita a seguir por
ela, em que diz querer saber o que ele vai decidir fazer em relação à situação deles. Percebe-
se claramente sua submissão, evidência de uma permissão inconsciente que deu ao marido o
direito de decidir tudo por ela, chegando ao ponto de não ser mais capaz de possuir uma
opinião própria sobre esse assunto. Diante dessa constatação, perguntei o que ela pensava
fazer diante da situação. Ela me respondeu que nunca havia pensado nisso.
chamar nossa atenção, quando ocorrem com uma mesma vítima, isto é, o sujeito sofre um
mesmo tipo de violência, duas ou mais vezes e em situações muito semelhantes. Frente a
“eu não acredito, de novo com ela...Eu gostaria de entender o porquê disso”.
e que expressam um determinado destino pulsional e, como tal, podem ligar-se a uma
Suarez (2006) descrevem um aspecto muito importante nas ocorrências de violência urbana.
masculino, traz à luz a questão de que pense igualmente na vítima e no agressor, enquanto
“construções simbólicas” (p.169). É sob essa ótica que se abre uma possibilidade de
Um caso por mim atendido no estágio possibilitará refletirmos sobre o que estamos
tratando aqui. Uma das psicólogas responsáveis pelo local onde realizava o estágio
encaminhou para que eu atendesse Maria Madalena, uma jovem de 15 anos, que no fim de
semana fora vítima de estupro por um rapaz de 28 anos. Ela solicitou que eu e a assistente
social a acompanhássemos até a DEAM para ela prestar depoimento, pois, como o fato
ocorreu no final de semana quando a DPCA não possui plantão, a ocorrência foi registrada
encontravam sua responsável e a dona da loja em que Maria Madalena trabalhava. Foi essa
mulher quem apresentou o rapaz que a estuprou. A adolescente ficou muito nervosa ao vê-la e
disse que essa senhora é namorada de um amigo desse rapaz, e que ao mesmo tempo havia
marcado encontro com o rapaz de 28 anos. Ela teria solicitado que Maria Madalena
“quebrasse um galho”, para que os dois rapazes não se encontrarem em sua casa, e que
deveria simular ser namorada do rapaz de 28 anos. Disse que “ninguém da família acredita
nela” e afirmou: “tá vendo só, minha responsável, ao invés de estar comigo, tá com aquela
48
mulher e acreditando em tudo o que ela diz. Ninguém acredita em mim (. . .) é sempre assim”
(sic).
O depoimento foi muito conturbado, devido à postura do agente policial que estava
relatando os fatos, tendo sido interrompido, a nosso pedido, por conta do constrangimento a
que Maria Madalena estava sendo submetida. Essa ocorrência também me levou a refletir
sobre a revitimização. Apesar de estar sob proteção do Estado, Maria Madalena estava sendo
exposta a situações que, de alguma forma, faziam-na novamente vítima de um ato violento.
Maria Madalena foi chamada a depor. Quem nos recebeu foi um policial.
Primeiramente ele esclareceu a importância de ela dizer a verdade, pois o acusado de estupro
poderia ser condenado a uma pena que varia entre seis a doze anos de prisão; ele também
acrescentou que só poderia ouvi-la porque ela estava acompanhada por duas pessoas maior de
idade. Assim que iniciou o depoimento, o policial a interrompeu. Ele disse: “a história que
você está me contando não bate com o depoimento da dona da loja, do rapaz acusado de
estupro, do dono do hotel, dos vizinhos... você diz que conheceu o rapaz no dia e eles dizem
que você estava namorando...” (sic). Maria Madalena começou a chorar e disse que era
mentira. Nesse momento, fomos obrigadas a intervir e dissemos ao policial que ele não estava
permitindo que Maria Madalena falasse. Eu lhe disse que ele estava emitindo opinião formada
pelos depoimentos já colhidos. Afirmei que ela deveria falar sem ser interrompida e que no
momento o papel dele era só o de ouvir e registrar o depoimento. Ele concordou e disse que
não iria mais interrompê-la. Perguntou se Maria Madalena estava tomando medicação e
solicitou o nome. Ela mostrou uma cartela de fluoxetina com quinze comprimidos, dos quais
faltavam três. O policial então procurou o laudo do IML e começou a ler. Ele leu a parte que
dizia que no exame realizado não foram encontrados resíduos vaginais. Ela começou a dizer
que não era verdade, que estava errado (. . .) O policial percebeu, então, que estava lendo o
49
laudo errado – era o laudo de outro estupro sofrido por Maria Madalena no mês de março
Uma coincidência apenas? Sou levada a pensar que não, pois existem muitas situações
que estão se repetindo no caso Maria Madalena, mesmo porque ela é uma dentre tantas outras
“Marias” com que nos deparamos com a recorrência da violência, e até de um mesmo tipo de
Estamos diante do que a bibliografia define como sendo “violência de gênero”, isto é,
“(. . .) a ocorrência de maus tratos cometidos contra a mulher e a violação de seus direitos”
(p.205). Gomes (2006) baseado nas idéias de Bordieu10, segue falando sobre as questões
relacionadas à organização social que acaba por reforçar a possibilidade da existência de uma
dominação ocorre ou é reforçada pela violência simbólica (. . .)”. A visão aqui apresentada
“(. . .) vai além da consciência e da vontade de quem é por ela atingido, mas também por uma
relação de cumplicidade”. Essa cumplicidade, por servir de modos diferentes, poderá tanto
“(. . . ) contribuir para sua perpetuação, quanto para a sua transformação”. (Gomes, 2006 in
Parece-me que essa “violência simbólica” de alguma forma justifica ao agressor seus
atos e também serve à vítima conformar-se com seu “trágico destino”. No caso de Maria
preconceituosa do policial que colhe seu depoimento. É um homem que, do alto de sua
posição funcional, junto a uma instituição policial, já inicia seu trabalho, prevenindo-a de que
seu depoimento poderá “acabar com a vida de um homem de 28 anos”... Será que lhe ocorreu
10
Bourdieu, P. A. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertand Brasil.
50
pensar que a atitude do homem de 28 anos, da mesma forma, pode ter acabado com a vida
Outro fato, que chama a atenção por estar se repetindo, refere-se ao fato de o policial
explicitar que não está acreditando no depoimento de Maria Madalena, citando os fatos, a
partir de depoimentos de outras pessoas, as quais também poderiam estar faltando com a
verdade. Isso me lembra o que Maria Madalena nos disse na Delegacia, após encontrar com
sua responsável: “ninguém acredita em mim”. Por que ninguém pode acreditar no que diz
Maria Madalena? Por que ela tem que ser vítima da violência real do estupro e da simbólica
da descrença? Que tipo de gozo essa situação está trazendo aos seus atores?
que ocorre com Maria Madalena, poderíamos retroceder às relações primordiais estabelecidas
entre o bebê e sua mãe, momentos em que se instauram nossos códigos básicos de
relacionamento. Não podemos esquecer que, nessa relação mãe-filho, já existe algum tipo de
Eu. Contudo é a partir desse modelo que impele o sujeito a comportar-se como não deseja, de
modo a que esteja garantido algum nível de satisfação, que são estabelecidos os padrões de
(1986) afirma “que sem dúvida alguma é marcado pela repetição é Eros, a pulsão sexual”.
Esse entendimento reforça a ideia de que existe uma atualização de nossas experiências
primordiais, nas situações e ocorrências a que estamos sujeitos na atualidade. “Assim como o
nosso primeiro encontro amoroso é já uma repetição, repetição de encontros que não foram
vividos por nós, os demais encontros são também repetições”. E Freud deixa-nos claro que
essa repetição é de cunho sexual. Isto é, refere-se a nossa forma de amar e, principalmente, de
violento ocorre mais de uma vez, em condições semelhantes, com uma mesma vítima? O que
talvez auxilie nossa compreensão recorrermos a uma figura mítica que muito se aplica a esta
reflexão. O mito grego de “Sísifo”, em sua pena eterna de rolar um bloco de mármore
montanha acima, vê-lo rolar para baixo e ter que repetir para sempre esse mesmo ato,
relacionada a uma situação afetiva primordial, que necessita receber um destino. Já existe um
destino que foi traçado e que deverá ser seguido e o será, a não ser que um novo possa se
estabelecer, e isso poderia se dar por meio da intervenção terapêutica. Dessa forma, a
utilização da figura mítica de Sísifo mostra-se muito adequada pois, como apresenta Garcia-
Roza (1986), “a análise é interminável, porque somos remetidos a esse jogo interminável das
repetições” (p.46).
é um procedimento usual escutar o relato da ocorrência, bem como da história desse sujeito,
mesmo que de modo breve e objetivo. Essa escuta efetivamente se dá, contudo, em meio aos
ruídos do ambiente, que estão relacionados ao grande volume de pessoas a serem acolhidas,
aos procedimentos legais a serem efetivados. Existem também as limitações físicas impostas
pelo local onde as atividades são realizadas, e que podem comprometer significativamente o
“ouvir em profundidade” o que está sendo dito por aquela vítima de um ato violento.
realidade e pude perceber que existiam muitas coisas sendo ditas pelos sujeitos que
procuravam atendimento, mas que não era possível uma escuta ativa do que estava sendo dito,
daquilo que estava além dos fatos estritamente relacionados à violência sofrida. Percebi que
52
essa escuta talvez possibilitasse que fossem encontradas respostas para perguntas como: “por
que é que essa pessoa sempre é vítima desse mesmo ato violento?”
Tenho claro que a proposta de atuação em psicologia existente no local onde realizei
meu estágio está diretamente vinculada às condições impostas pela realidade. Apesar disso,
observo que existem “casos” que necessitam de uma escuta diferenciada, que considere
aspectos próprios da subjetividade dos sujeitos, relacionados às suas estruturas afetivas e que
falar sobre o que se está vivendo, sobre as próprias dores e a história de vida, permite ao
Bucher (2005) apresenta a psicoterapia como uma relação em que não existem
instrumentos ou agentes que possam atuar como mediadores, que possam intermediar o
relacionamento. “Seu único „meio‟ é o ambiente humano em si, numa configuração muito
especial que é aquela do diálogo humano, da „conversa‟, onde não intervêm outras forças
Realizei o acolhimento a uma jovem que aqui chamarei de Maria Angélica. Ela estava
muito agitada e apresentava uma grave confusão mental. Parei para ouvir seu relato e pude
perceber que, por meio desse discurso, estava diante de uma pessoa com um possível
sofrimento psíquico grave. Em certo momento, ao ver uma equipe de televisão que passava
pelo local, agitou-se ainda mais e disse: “eles estão aqui para me filmar” (sic). Perguntei-lhe o
motivo pelo qual eles desejavam filmá-la, e ela afirmou que era porque queriam mostrar na
televisão como ela não era uma boa mãe. Permaneci ouvindo seu relato que, mesmo
permeado de fatos que, visivelmente, não condiziam com a realidade, identificavam focos de
grande sofrimento e sinalizavam o seu particular funcionamento psíquico. Com base nessas
informações, obtidas por meio de uma escuta diferenciada, foi possível estruturar um tipo de
53
aponta algumas características de caráter que julga importantes, e duas delas me parecem
gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes que
especialmente para quem atua, como eu o fiz, em uma instituição pública que acolhe vítimas
de atos violentos: “uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o
sujeito que vem para falar de suas dores e sofrimentos. Nesse sentido, o acolhimento
compreende, também, ouvir de modo diferenciado o relato que é feito. Oliveira e Fonseca,
(2006) destacam a dificuldade que mulheres que sofreram violência sexual, ou mesmo que
presenciaram situações de violência contra os filhos, para relatarem suas experiências. Muitas
vezes, mulheres identificadas como poliqueixosas, ao serem ouvidas com uma atenção
“Percebia algo oculto, não dito, por parte de algumas mulheres, porém, não conseguia
descobrir de que se tratava” (p.609), relatou um dos profissionais pesquisados. E conta, ainda,
que buscou um profissional mais experiente para auxiliá-lo. Com a ajuda deste, passou
a “(. . .) dar mais tempo para as mulheres se expressarem. A partir daí foi estabelecendo
articulações entre alguns elementos trazidos pelas mulheres, relacionados às diversas queixas
A possibilidade de ser ouvido em sua dor confere ao sujeito acesso a um lugar social,
onde sua existência é considerada, tem importância e merece atenção e cuidados. No caso das
54
vítimas de violência, observa-se que a escuta diferenciada, ativa e empática, restitui, de certa
forma, a autoestima. O fato de relatar o ato violento sofrido mostra-se como o início de uma
denúncia, uma manifestação de reação que pode levá-lo a reelaborar a própria história. E tal
terapêutica geral, por poder contar com a participação ativa do paciente. “Psicoterapia se
refere, portanto, a um modo muito particular de encarar o ser humano e, por conseguinte, os
processos de interação terapêutica, possibilitados entre duas (ou mais) pessoas pela mera ação
O falar e ser ouvido instaura uma relação que torna possível a tradução, por meio de
palavras, de sentimentos e, quem sabe até, de uma nova dinâmica de desejo desconhecido do
Eu. Se algo existe, possui uma quantidade de energia investida em si e interfere na vida do
redirecionamento desse impulso. Garcia-Roza (1986) diz que “é a palavra que cria o passado
e o futuro” e ainda considera que “(. . .) é a palavra que permite a dois sujeitos o
objeto” (p.122). Essa concepção traz em si uma forte crença no poder da palavra, como aquela
e faz com que as próprias coisas formem um sistema de signos/significantes que transcende
A importância da escuta diferenciada também foi por mim percebida em seus efeitos
terapêuticos, no caso de Maria das Dores. Após alguns encontros, no qual trouxe suas
dificuldades com o marido e sua total sujeição a ele, a ponto de não conseguir mais identificar
os próprios desejos e vontades, começa a perceber-se novamente como sujeito. Ela disse que
recebeu a visita do irmão que a convidou para passar uns tempos em outra cidade. Disse que
estava decidida a ir. Maria das Dores disse também que está com vontade de começar a fazer
alguma coisa. Indaguei o que ela gostaria de fazer. Ela prontamente respondeu que faria
“qualquer coisa”. Pedi como ela se chamava e ela disse que seu nome era Maria das Dores.
Questionei se o seu nome era “qualquer coisa”, ela então começou a falar que, quando estava
com o marido, era “qualquer coisa”, relembrou muitos momentos de sofrimento... após disse
Esse movimento, que podemos observar na postura de Maria das Dores perante a
vida, demonstra a importância que a relação terapêutica seja, conforme Bucher (2005),
“(. . .) num autêntico encontro de comunicação existencial, numa interação profunda que
pessoais, compartilhamos todos (. . .)” (p.40). Isso fica claramente descrito no que afirmou
Maria das Dores, em um dos atendimentos realizados. Disse que percebe que aos poucos “está
se abrindo”, que parecia uma ostra, fechada e com medo, porém está permitindo que o brilho
da pérola que estava escondida comece a surgir. E falou ainda: “quero transformar a pérola
Em geral, as pessoas que são vítimas de algum ato violento, principalmente se este
conseguem retomar suas vidas, mesmo que levando consigo as marcas da violência sofrida.
Existem outras situações em que o sujeito fica como que bloqueado, inerte, não
conseguindo forças para dar sequência à própria vida. Pude acompanhar que esses casos estão
relacionados àquelas situações de violência que apresentam algum tipo de recorrência, isto é,
que não se constituem em ato isolado do qual aquela pessoa foi vítima. São casos de violência
mesmo sujeito, por pessoas que não detêm relação de parentesco, mas que se inserem em uma
Mezan (1991), observa que “o que se repete é o doloroso” e diz que “(. . .) contra a
repetição não há defesa, já que o ego torna necessária, por sua própria estratégia, a expressão
do reprimido por esta via” (p.255). Para entendermos isso, temos que ter claro que “(. . .) o
ego reprime o que é desagradável para ele, mas prazeroso do ponto de vista da pulsão; isto
seria perfeitamente explicável à luz do Princípio do Prazer (. . .)”. Com base nesse
Podemos então entender que “a repetição está, na verdade, „mais aquém‟ do Princípio do
Prazer” (p.255).
revitimização demandam maior atenção e cuidados. A pessoa não consegue retomar a própria
vida, mas permanece estagnada, ocupando um mesmo lugar, repetindo sempre um mesmo
Frente a essa realidade, surge um grande desafio ao profissional da Psicologia, que foi
o que vivi em minha experiência de estágio. Exercer uma escuta diferenciada para essas
11
Lei que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível
em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm - 55k. Acesso em 13 de abr. 2009.
57
histórias nas quais acontece a recorrência de atos violentos, de modo a conseguir identificar
quais são os possíveis fatores que a favorecem. Possibilitar uma intervenção terapêutica mais
psicológica. “Os discursos deixaram claro que é preciso um movimento por parte dos
profissionais para sair da impotência e se tornarem novos agentes de mudança social, capazes
de dar uma direção para as mulheres que vivem em situação de violência sexual” (p.610).
recorrente. Existem situações familiares que favorecem uma sujeição da vítima ao seu
vivencia repetidas vezes um mesmo tipo de violência, praticadas por pessoas diferentes em
situações similares. O caso de Maria das Dores, que já abordamos anteriormente, apresenta-
nos uma situação de recorrência de violência de gênero, em que o agressor é o cônjuge. Nessa
identificar que a tendência à sujeição sempre se mostrou presente na vida de Maria das Dores.
O que se estabeleceu na relação com o marido, e que durou muito tempo, apenas foi a
vivenciada por Maria da Dores, ao afirmar que “(. . .) a incorporação da dominação ocorre ou
é reforçada pela violência simbólica, efetivada não só para além da consciência e da vontade
de quem por ela é atingido (. . .)”; segue trazendo um aspecto que neste caso mostra-se
significativo: “(. . .) mas também por uma relação de cumplicidade que tanto pode contribuir
para sua perpetuação como para sua transformação” ( in Minayo e Souza, 2006, p.207).
58
eu realizasse sozinha o atendimento de Maria das Dores, pois ela teria que fazer outro
atendimento emergencial. Maria das Dores já vinha sendo acompanhada há algum tempo. Ela
estava feliz com a presença do irmão. Ele reforçou o apoio a ela e disse que seus irmãos
aguardavam sua visita. Ela disse que pretende ficar um tempo com eles e pensar qual será “o
rumo que vai dar para sua vida”. Relatou que gosta muito de sua família. A partir desse
momento, passou a falar de sua vida quando seus pais estavam vivos. Contou que eles eram
muito amorosos e se davam muito bem. Seus pais morreram no mesmo ano, e ela tinha
dezesseis anos na época. Ela disse que a mãe morreu de tristeza pela morte do marido. Após
esse período, ela foi morar com os tios. Maria das Dores já estava noiva, mas seus tios não
queriam o casamento. Eles alegavam que ela tinha que casar com um primo. Chegaram a
ameaçar seu noivo e a ela com uma arma. Eles não suportaram a pressão da família e
terminaram o noivado.
Costa (2003), ao falar sobre identidade e violência, apresenta um aspecto que auxilia
na compreensão do que aconteceu com Maria das Dores. “A violência traumática seria
Após curto período de tempo, ela conheceu seu atual marido, e em quatro meses eles
casaram. Maria das Dores relembrou o sofrimento que sempre foi a convivência com o
marido, bem como o aperto que sentia na garganta por não conseguir falar com ninguém
sobre o que sentia. Relatou que, com a visita do irmão, pela primeira vez falou sobre o que
Podemos observar que, gradativamente, Maria das Dores consegue verbalizar sobre o
que está acontecendo em sua vida e o faz inicialmente a uma filha, depois aos profissionais do
serviço de psicologia e, após, aos irmãos. É importante lembrar que a escuta diferenciada
59
identificou que a baixa autoestima não era decorrente apenas da sujeição à violência, mas que
tinha uma história mais longa, relacionada, provavelmente, a uma alienação à vontade de
outras pessoas, que bem expressa sua resposta comum, ao ser perguntada sobre sua vontade
Dentre as muitas ocorrências com que tive contato, e mesmo atendi, chamam a
atenção aquelas em que a vítima retorna várias vezes à instituição, por ter sofrido novamente
uma violência e, muitas vezes, em situação muito semelhante. Essas repetições, de acordo
com Garcia-Roza (1986), sugerem a existência de uma espécie de compulsão, “(. . .) que foi a
princípio a única manifestação da pulsão de morte apontada por Freud (. . .)”. Continua
dizendo que “(. . .) encontrava sua justificativa no fato de que contrariava o princípio de
verdade, “(. . .) nenhuma das instâncias psíquicas parecia se beneficiar dela” (p.54).
Esse tipo de situação de repetição compulsiva, pode ser encontrada no caso de Maria
na delegacia DEAM teve que ser interrompido devido à postura adotada pelo policial que
anotava o relato. Eu e a Assistente Social dissemos que a menor não tinha condições
emocionais de prestar depoimento daquela forma. Afirmamos que seria melhor ela ser ouvida
na DPCA, e o policial concordou e nos acompanhou até a saída. Maria Madalena chorava
muito e dizia que queria ir embora e, assim, retornamos à instituição. Nos acontecimentos que
se seguiram a esse momento, é possível perceber a forte atuação da pulsão de morte. Quando
chegamos, Maria Madalena pediu para ir ao banheiro. Eu a acompanhei até a porta e aguardei
do lado de fora. Quando ela saiu começou a dizer que queria morrer. Eu perguntei o motivo
pelo qual ela estava dizendo isso. Ela revelou que havia ingerido toda a cartela de
comprimidos para a depressão. Devido a isso, busquei auxílio, e ela foi encaminhada para a
aproximar. Eu tentei acalmá-la dizendo que as pessoas só iriam se aproximar para realizar um
procedimento médico e que eu estaria com ela o tempo todo. Assim, ela se acalmou. A equipe
idade, tentamos encontrar um familiar para acompanhá-la durante a noite. Contudo, ninguém
da família concordou em ficar com ela. Frente a essa situação e ao risco que significava deixá-
la sozinha, uma das psicólogas da instituição permaneceu com Maria Madalena naquela noite.
No dia seguinte foi solicitada a abertura de pasta especial na Vara da Infância e Juventude,
Uma situação como a de Maria Madalena traz, mais uma vez, a pergunta sobre o que é
que está sendo atualizado e repetido em cada episódio de violência que é por ela vivido.
que finalidade ela obedece” (Mezan, 1991, p.255). Somente uma escuta diferenciada poderá
Madalena, possibilitando que sejam promovidas intervenções terapêuticas que lhe permitam
retomar a própria vida, apropriando-se de uma compreensão a respeito dos próprios impulsos.
De acordo com esse autor, o organismo para sobreviver frente a uma grande quantidade de
excitação psíquica, necessita encontrar uma forma de descarga e o faz por meio da repetição,
o que guarda total coerência com o Princípio do Prazer, postulado por Freud. “Repetir é
procurar ganhar o controle da situação, e também preparar o indivíduo para resistir melhor a
Frente à realidade vivida por Maria Madalena, o “recomeçar a própria vida” poderá
estar relacionado à criação de uma estrutura de apoio, que lhe ofereça uma sustentação
familiar adequada, de modo que possa surgir um novo destino para a pulsão. Possivelmente,
será também necessário um suporte psicoterápico individual, para que ela possa saber mais a
61
respeito de seu próprio desejo, podendo evitar situações que a revitimizem. Tal qual acontece
nos casos de delinquência, conforme nos apresenta Costa (2003), os fatos que ocorrem com
Maria Madalena “tampouco podem ser interpretados como simples provocações masoquistas,
produtos de uma qualquer culpa inconsciente” (p.133). Sua postura me leva a imaginar que,
na verdade, ela está “exigindo da realidade o que lhe foi extorquido pelo ambiente materno”.
É como se manifestasse “por um caminho „ilegal‟, a crença na lei e nos seus direitos a uma
vida psíquica, fora da psicose”. É como se tudo a que acabasse exposta, fosse “(. . .) uma
trincheira contra a perda do sentido da realidade ou, o que é mais grave, contra o avanço da
de estágio apontam para a mesma direção do que apresentam Moreira, Galvão, Melo e
o que demanda uma atuação ampliada, que consiga ir além dos aspectos médicos, legais e,
mesmo, de apoio psicológico.: “(. . .) acredita-se que este tipo de atitude não é suficiente para
violência. Apesar da complexidade de que se reveste toda atividade que é realizada nesse
como tive a oportunidade de fazê-lo, que é possível realizar intervenções terapêuticas que
Considerações finais
“Por que isso sempre acontece com essa pessoa?” Essa foi a questão que motivou
nossa reflexão psicanalítica sobre a violência e sua recorrência na vida de alguns sujeitos. O
objetivo geral a que nos propomos foi refletir, a partir da teoria psicanalítica, sobre a maneira
estruturação de um contexto maior, por meio da análise dos mitos estabelecidos e utilizados
pela cultura para explicar os acontecimentos da realidade, foi de grande utilidade para a
compreensão das bases desse fenômeno e possibilitou estabelecer um diálogo com a teoria
primordiais dos desejos que movem os sujeitos, conseguiu perceber a determinante ação da
lei. E essa lei, como uma instância de ordem paterna, é aquela que instaura a própria cultura,
pessoas insere-se na vida das pessoas com certo grau de violência. Isso se dá de modo
natural, mas não é por isso que perde sua característica violenta. Se o sujeito deseja agir de
uma determinada forma, de acordo com seus próprios desejos, e alguém ou alguma coisa lhe
diz “não”, deparamo-nos com uma força que impede ou se propõe a impedir a consumação
de um ato. Por meio desse entendimento, compreendemos que nem toda violência é
Essa configuração permitiu que fosse estabelecida uma diferenciação entre um ato
violento que vitimiza alguém, e os limites próprios da convivência social a que todos nós
estamos sujeitos. Com base nessa compreensão, ficou mais fácil perceber a violência
63
enquanto ação que obriga alguém a fazer algo que não deseja, em um momento, local e
condições com as quais não concorda, diferenciando-a do “ato violento” que é condenado
e foi gradativamente fundamentando uma compreensão mais profunda a partir dessa reflexão
buscássemos compreender os motivos que levam um sujeito a ser vítima, duas ou mais vezes,
Esse tipo de identificação se deu por meio de uma escuta diferenciada, disposta a
ouvir além dos fatos, além do que é óbvio. Uma escuta que se ocupa da afetividade existente
escuta trivial de um relato pode suscitar. O tratamento de tudo o que é assim percebido
mostrou-se mais fácil com o auxílio da teoria freudiana e de sua abordagem sobre a
aquelas em que o ato violento é apenas uma ocorrência acidental. Já em outras, acontece a
recorrência do ato violento. Esse entendimento pode possibilitar a reconstrução, por meio da
violência possui causas que necessitam ser identificadas e, dentro do possível, tratadas de
modo a que a vítima tenha a possibilidade de não se tornar novamente vítima de um ato
violento.
64
instituição pública, ficou claro que, em alguns casos, é necessária uma escuta diferenciada,
Por conta da abrangência que a violência tem na sociedade, seu tratamento torna-se
cada vez mais uma questão de saúde pública. Assim sendo, é necessária a identificação de
soluções efetivas, que devolvam e, mesmo, promovam a saúde física e emocional e garantam,
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