Vitimização 20436166

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FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE – FACES

CURSO DE PSICOLOGIA

VITIMIZAÇÃO E COMPULSÃO À REPETIÇÃO: UMA

REFLEXÃO PSICANALÍTICA SOBRE A RECORRÊNCIA DA

VIOLÊNCIA

EDILENE CECÍLIA AGNESI THOMPSON

BRASÍLIA−DF

JULHO/2009
EDILENE CECÍLIA AGNESI THOMPSON

VITIMIZAÇÃO E COMPULSÃO À REPETIÇÃO: UMA

REFLEXÃO PSICANALÍTICA SOBRE A

RECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA

Monografia apresentada ao Centro


Universitário de Brasília – UniCEUB –
como requisito básico para obtenção do
grau de Psicólogo da Faculdade de
Ciências da Educação e Saúde.

Professora Orientadora: Morgana Queiroz

BRASÍLIA−DF

JULHO/2009
Faculdade de Ciências da Educação e Saúde – FACES
Curso de Psicologia
Disciplina: Monografia

Esta monografia foi aprovada pela comissão examinadora composta por:

Morgana de Almeida e Queiroz


Orientadora

Cláudia Mendes Feres


Examinadora

Maria Leonor Sampaio Bicalho


Examinadora

A menção final obtida foi:

BRASÍLIA−DF

JULHO/2009
Agradecimentos

Em primeiro lugar a Deus, pelo dom da vida.

A minha família pela compreensão e pelos momentos em que os estudos me

obrigaram a estar ausente.

Ao meu marido, agora colega de profissão, pelo companheirismo, estímulo e presença.

A minha colega Guadalupe, que seguiu comigo durante todo este percurso acadêmico,

mostrando-se sempre disposta a enfrentar os desafios e a realizar tudo com a maior qualidade

e competência possíveis.

Aos Professores Alexandre Russo, Fernando Rey, Moacir Rodrigues e Tânia Inessa,

que, pela competência e profissionalismo, ampliaram para mim os horizontes da Psicologia e

me ensinaram, sobretudo, a importância de uma escuta diferenciada e o respeito ao sujeito em

seu sofrimento psíquico.

A Professora Sandra Baccara que me apresentou à Psicanálise com apaixonante

competência e as Professoras Cláudia Feres e Marcella Laureano que aprofundaram esses

conhecimentos teóricos, oportunizando-me reconhecer meu próprio caminho profissional.

A Professora e Orientadora de Monografia, Morgana Queiroz, agradeço de modo

especial, pois sua postura profissional demonstrou com virtuosismo a atuação do profissional

da Psicologia no ambiente hospitalar e, especificamente, quando se trata de pessoas vítimas de

violência.
iii

SUMÁRIO

RESUMO .................................................................................................................................. iv

CAPÍTULO 1 - Complexidade e violência ................................................................................ 7

1.1. Uma origem mítica para a violência ................................................................................ 8

1.2. A Lei enquanto instância paterna de origem divina ...................................................... 11

1.3. Violência e saúde pública .............................................................................................. 14

1.4. A Violência e suas vítimas ............................................................................................ 19

CAPÍTULO 2 - Violência e compulsão à repetição. ................................................................ 25

2.1. A Violência sob o olhar da Psicanálise ......................................................................... 25

2.2. O mal-estar que a violência traz .................................................................................... 30

2.3. Entre o prazer e realidade de um ato violento ............................................................... 33

2.4. Uma saída saudável à repetição da violência ................................................................ 36

CAPÍTULO 3 - Relato de uma experiência de estágio ............................................................ 40

3.1. Conhecendo a violência e suas vítimas sob a perspectiva da saúde pública ................. 40

3.2. Um espaço social de acolhida e atuação multidisciplinar para os casos de violência ... 43

3.3. A repetição da violência e a revitimização .................................................................... 47

3.4. A importância da escuta na intervenção psicológica. .................................................... 51

3.5. O “recomeçar a vida” das vítimas de violência. ............................................................ 55

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 65


iv

RESUMO

Esta reflexão examina a temática da violência sob a ótica da teoria psicanalítica, firmando seu
foco na recorrência da vitimização. Tais fatos podem sugerir a existência do que a Psicanálise
denomina como sendo uma compulsão à repetição, isto é, a existência de um impulso de
origem inconsciente que pode levar uma pessoa a se expor a situações de risco, em que
novamente poderá tornar-se vítima de um ato violento. O tema é abordado a partir de seu
aspecto amplo, levando em consideração a complexidade em que se insere, envolvendo a
revisão bibliográfica sobre o tema e uma reflexão sobre a experiência de estágio. O primeiro
capítulo dá início a este trabalho a partir da identificação da violência que se mostra presente
nas fibras e tramas do tecido social. Verifica a articulação que ocorre de múltiplas formas nas
culturas e estruturações dos agrupamentos humanos, inclusive por meio da análise de mitos e
da intervenção de ordem divina que instaura a lei. Essa forma de compreender a violência e
suas vítimas traz o debate para a dimensão pública, especificamente, na área da saúde. No
segundo capítulo, encontramos os pressupostos teóricos utilizados, que se fundamentam no
pensamento freudiano a respeito do mal-estar trazido pela violência às sociedades humanas e,
especificamente, suas manifestações domésticas. Esse entendimento traz uma possibilidade de
compreensão quanto à recorrência da violência no meio social: sua origem, papel que
desempenha e o processo da violência, enquanto uma destinação que é dada a um impulso,
cuja origem está fora da consciência do sujeito. O estabelecimento de um entendimento dessa
forma possibilita a busca de alternativas mais saudáveis, que evitem que uma repetição
ocorra. No terceiro capítulo, encontram-se estudos e relatos relacionados a todos os aspectos
apresentados nos capítulos anteriores, descritos a partir de experiências vivenciadas durante as
atividades de estágio, realizadas em uma instituição pública de atendimento às vítimas de
violência no Distrito Federal. Assim, é possível perceber, sob a perspectiva da saúde pública,
como ocorre a repetição da violência e o processo de revitimização do sujeito. Igualmente,
descobre-se a necessidade da existência de um espaço social para a acolhida das vítimas de
violência e a importância da escuta na intervenção psicológica, na atuação multidisciplinar.

Palavras-chave: Violência, Psicanálise e Compulsão à Repetição.


A atuação do psicólogo em instituições que acolhem pessoas vítimas de violência

possibilita a constatação de que existem sutilezas que diferenciam as vítimas, apesar da

similaridade que possa possuir o ato violento em si mesmo. Assim, temos pessoas vitimadas

pela violência, seja ela de que tipo for, que passam pelo serviço de atendimento. Após

cumprirem os ritos legais, receberem cuidados médicos e serem acolhidas e orientadas pelo

serviço de psicologia, conseguem retomar a própria vida. Necessariamente, não voltam a ser

vítimas de atos violentos. Contudo, existem casos que se repetem. Pessoas que

constantemente retornam à instituição, relatando terem sido novamente vítimas de violência.

E, o que se mostra impressionante, em situações muito semelhantes àquela anteriormente

vivida.

Para o profissional de psicologia surge então a questão: “por que isso sempre acontece

com essa pessoa?” É a partir dessa inquietante pergunta que se constrói essa reflexão

psicanalítica sobre a violência. Buscaremos entender de que maneira a violência se configura

em meio à complexidade do tecido social e de que modo podemos estabelecer uma

compreensão a respeito de suas manifestações. Este é o nosso objetivo geral, mas iremos um

pouco além, ao refletirmos sobre a recorrência da violência, sendo esse nosso objetivo

específico.

A violência é um tema que inquieta a sociedade e desafia as ciências humanas, sociais

e da saúde. Isso se dá, em decorrência das inúmeras realidades em que se manifesta e de sua

infiltração ampla no tecido social. É difícil localizar o ato violento em segmentos ou extratos

específicos da sociedade, porém mostra-se mais fácil identificá-lo nos mais variados lugares e

situações do dia a dia.

Muitas vezes o pensamento humano busca compreender a natureza e os fatos que

ocorrem ao seu redor por meio da construção dos mitos. Estes constituem ricas fontes de

informações sobre realidades que, de outra forma, não poderiam ser tão bem descritas, e
2

compreendidas. É possível observar que em muitas culturas a presença da divindade tem um

papel preponderante na instauração da lei. Possui a força de um decreto irrevogável que

estabelece um conjunto de regras de convivência social, de cuidados com o meio ambiente, de

reprodução dos hábitos e costumes dos agrupamentos humanos.

A violência na sociedade, de acordo com suas características e por conta do

quantitativo de ocorrências, torna-se um evento de interesse coletivo, público. E por tratar-se

o ato violento de um comportamento que pode ocasionar lesões físicas, psicológicas, morais,

dentre outras, é que se torna objeto de estudos acadêmicos e de ações de saúde pública.

Exatamente por suas características e manifestações, é possível identificar quem são as

vítimas da violência e onde estão localizadas nos grupos sociais. Dessa maneira, é viável

intervir sempre que necessário. Uma observação atenta das ocorrências e recorrências de atos

violentos poderá possibilitar que seja percebida a existência de uma contínua repetição, algo

que atua de modo compulsivo na vida de algumas pessoas que buscam uma instituição de

apoio e assistência às vítimas de violência.

A psicanálise, enquanto constructo teórico, oferece a possibilidade de se estabelecer

um entendimento mais profundo sobre a violência, a história dos agressores e de suas vítimas.

O estudo freudiano identifica a presença de um tipo de mal-estar na cultura, que se articula

diretamente com o estabelecimento de uma lei social geral, que acaba por intervir nos

relacionamentos e orientar comportamentos grupais e individuais. Nesse contexto grupal, a lei

desempenha um papel preponderante, e sua atuação, igualmente, pode ser compreendida

como um tipo de violência. Assim é, por impedir a concretização de certos desejos

individuais, estabelecendo proibições e limites que possibilitam a ordem social em uma

comunidade ou cultura.

Assim ocorre na família, pois é no ambiente doméstico que muitos atos violentos

ocorrem, inclusive para tentar garantir um determinado nível de convivência. É o que


3

chamamos de limites. Dessa maneira, o ato violento acaba se configurando como socialmente

aceito, por causa da imposição das regras sociais, as quais impedem que os sujeitos procedam

do modo como lhes convém.

Apesar da existência de regras sociais de convivência e de leis estabelecidas pelas

instituições do Estado, os atos violentos continuam a acontecer, sugerindo a existência de uma

cadeia que se repete continuamente. Esse fato poderá contribuir de modo significativo para a

recorrência da violência. Muitas vezes, essa realidade encontra-se restrita a um sujeito, que

tende a ser revitimizado. O desafio do profissional da psicologia se configura a partir da

necessidade de se estabelecer um entendimento dinâmico quanto ao que está acontecendo, de

modo a que seja possível encontrar uma saída mais saudável.

A reflexão que aqui é apresentada encontra-se alicerçada na experiência de estágio

realizada em uma Instituição de Saúde do Distrito Federal, o que possibilitou qualificar

significativamente a revisão bibliográfica realizada por este trabalho. Proporcionou confirmar

aspectos teóricos e consolidar entendimentos realizados a partir do estabelecimento de

possíveis relações causais entre a história individual do sujeito vitimado, a violência sofrida e

o próprio agressor. Mostrou-se igualmente importante a presença de uma escuta qualificada,

capaz de perceber os aspectos sutis que estão presentes nos discursos daqueles que são vítima

de atos violentos.

Os casos que exemplificam e auxiliam esta reflexão, são de mulheres que procuraram

a instituição por terem sofrido algum tipo de violência. Suas identidades, por motivos éticos,

serão preservadas, mas a escolha de chamá-las genericamente de “Maria”, traz a

intencionalidade de expressar o caráter comum que a violência adquiriu em nossos dias.

Com o intuito de discutir essas questões, organizamos o trabalho em três capítulos. No

primeiro capítulo, iniciamos a reflexão sobre a temática da violência a partir de sua inserção

social, como aspecto integrante da trama do tecido social. Nesse entendimento, foram
4

utilizados conceitos apresentados por Morin (2007), de modo a ser possível contextualizar a

complexidade em que o fenômeno da violência se apresenta e faz suas vítimas.

Por estar assim tão intimamente ligado à história da humanidade, encontramos nos

mitos e nas tradições religiosas algumas explicações possíveis para a origem da violência e da

lei que sustenta o funcionamento da sociedade. Se o ato violento emerge no sujeito como

parte de sua essência, identifica-se a intervenção de um ente divino que estabelece a lei, que

dita limites às suas ações. Paradoxalmente, esse conjunto de regras também pode constituir-se

em um tipo e em um grau de violência, pois o sujeito fica impedido de dar vazão a seus

impulsos, sendo obrigado a limitar-se às regras socialmente estabelecidas. Freud (1913 [1912-

13]) torna essas questões presentes, ao publicar “Totem e Tabu” e assim, universaliza o horror

ao incesto como uma lei social que determina o comportamento dos sujeitos em muitas

culturas e sociedades. A partir deste e de outros trabalhos de Freud, é trazida à luz toda a base

da estrutura cultural e social do ocidente, onde a violência não consegue ser coibida por meio

das leis. Com efeito, torna-se uma questão de interesse público e suscita o estabelecimento e a

garantia de Direitos Humanos reconhecidos internacionalmente, juntamente com ações que

visam à saúde pública.

A violência encontra-se disseminada em todo o tecido social e faz vítimas em todos os

níveis e segmentos. A violência de gênero, isto é, aquela direcionada especificamente contra

as mulheres, constitui-se em uma das mais comuns e frequentes. Contudo, o ato violento

projeta-se também entre as gerações, atingindo crianças, adolescentes e idosos. Constitui-se,

dessa maneira, em uma realidade ampla e interligada, que suscita o debate e a busca constante

de alternativas que a minimizem e apontem possíveis soluções.

No segundo capítulo, é apresentada a base conceitual em que a reflexão proposta por

este trabalho se sustenta. A violência é uma ocorrência que não acontece de modo isolado e

esporádico, ao contrário, mostra-se amplamente disseminada na sociedade e frequentemente


5

se faz presente na vida cotidiana. Neste contexto, é possível observar uma particularidade, a

repetição de eventos violentos na vida de determinados sujeitos. Essas situações, que a

princípio podem passar despercebidas, pouco a pouco trazem à cena a realidade inquietante da

revitimização. Na tentativa de compreendermos esses fenômenos, buscamos na Psicanálise

uma sustentação teórica, permitindo assim explicar a recorrência da violência, e mesmo

identificar uma saída saudável à repetição de atos violentos na vida do sujeito.

Estudos como o de Melman (2008) e Costa (2003) oferecem uma compreensão

psicanalítica acerca da violência enquanto fenômeno individual e social, a partir das

possibilidades de gozo e das interdições impostas por leis universais. Essas concepções nos

remetem a Freud (1930 [1929]) e a seu trabalho “O Mal-Estar na Civilização”. Aí se mostra

possível compreender dinamicamente a violência a partir do desenvolvimento do sujeito, de

suas possibilidades de satisfação e de suas frustrações.

Essa abordagem fundamentada nos estudos psicanalíticos retoma o caráter instintivo

da agressividade, localizando-a nos estágios iniciais do desenvolvimento e nas articulações

que o sujeito fará entre o prazer e a realidade. Inserindo-se nesse universo de análise, a

violência pode ser compreendida como parte de um todo maior e não mais como uma

ocorrência isolada. É a partir dessa compreensão que será possível a construção de uma saída

mais saudável, de um destino mais produtivo e socialmente adequado para os impulsos do

sujeito.

O terceiro capítulo relata uma experiência de estágio em uma instituição pública do

Distrito Federal, que acolhe e atende pessoas vítimas de violência. A vivência da realidade

abrangida por este serviço possibilitou corroborar os aspectos teóricos revistos e apresentados

nos capítulos anteriores.

A violência, enquanto uma questão de saúde pública, bem como a importância social

de um local onde as vítimas possam ser acolhidas por uma equipe multidisciplinar, ficaram
6

muito claras durante a experiência de estágio realizada. Dessa maneira, ao serem relatadas as

situações vivenciadas, os acolhimentos e atendimentos realizados, é possível retomar cada

aspecto teórico citado. O próprio embasamento teórico, com sustentação na Psicanálise,

mostra sua atualidade e representatividade para a compreensão e sustentação das intervenções

terapêuticas realizadas.

Por tratar-se de uma instituição pública, faz-se necessária uma abordagem ágil e focal,

de modo a atender a grande demanda existente. Contudo mostra-se indispensável uma escuta

diferenciada na intervenção psicológica. Ouvir em profundidade o que é trazido pela pessoa

vitimada pela violência abre a possibilidade de um entendimento ampliado da história do

sujeito e pode conferir uma efetividade maior à intervenção terapêutica.

As experiências relatadas oferecem a possibilidade de observar, a partir da prática,

como se dá a recorrência da violência, assim como a importância da atuação do psicólogo

neste espaço como parte de uma equipe multidisciplinar. Dessa atuação poderá depender o

“recomeçar a vida” das vítimas de violência.


7

Capítulo 1: Complexidade e violência.

Cotidianamente a expressão “complexidade” é utilizada, sem a percepção real da

profundidade de seu significado. Para compreender de que modo será utilizada aqui, faz-se

necessário retomá-la em sua origem, enquanto uma dimensão epistemológica das teorias

tradicionais do paradigma sistêmico. Assim, “Complexidade significa entrelaçamento de

causas” (Minayo, 2007, p.135). A autora esclarece que esse é um tema que possui uma

abordagem ampla, incluindo “sistemas complexos, organizações complexas, complexidade da

sociedade, dentre outros”. Para o entendimento que faremos nesta reflexão, consideraremos o

termo complexidade também na sua referência de que “um sistema complexo é formado por

grande número de unidades constitutivas e interrelacionadas e uma enorme quantidade de

interações” (p.135).

É sob essa ótica que será tratado o fenômeno da violência neste trabalho. Edgar Morin

(2007), em sua obra, “Introdução ao Pensamento Complexo”, aborda a complexidade com

nuanças e delimitações que aqui servirão de norteadoras.

A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de

constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno

e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de

acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem

nosso mundo fenomênico (Morin, 2007, p.13) .

Será a partir dessa conceituação que a violência será aqui estudada. Não como um

acontecimento isolado, mas em sua teia factual, atual e histórica. Sob essa ótica, o indivíduo

não será percebido exclusivamente nos papéis de algoz e de vítima, mas na sua totalidade em

que se encontram emaranhados, protagonistas e coadjuvantes de histórias humanas que,

cotidianamente, inundam a mídia, os hospitais, as delegacias e a vida dos sujeitos.


8

1.1. Uma origem mítica para a violência.

Uma das maneiras de explicar realidades naturais e humanas muitas vezes é realizada

com o auxílio dos mitos. Dentro de uma visão antropológica, o “Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa” (2004) define mito como o “relato simbólico, passado de geração em

geração dentro de um grupo, que narra e explica a origem de determinado fenômeno, ser vivo,

acidente geográfico, instituição, costume social, etc” (p.1936).

Um dos relatos míticos sobre os primórdios da história humana está descrito na

história bíblica dos irmãos Caim e Abel. A Bíblia narra no livro do Gênesis, no capítulo

quatro, que, após os irmãos fazerem a oferta a Deus do resultado de seus trabalhos, Caim

ficou “muito enfurecido e andava de cabeça baixa”, isso porque “Javé gostou de Abel e de sua

oferta e não gostou de Caim e da oferta dele.” Na sequência1, Deus adverte Caim sobre os

sentimentos que inundavam seu coração dizendo-lhe: “Se você agisse bem, andaria com a

cabeça erguida; mas, se você não age bem, o pecado está junto à porta, como fera acuada,

espreitando você. Por acaso, será que você pode dominá-la?” O desfecho dessa história é

conhecido: Caim convida seu irmão Abel para ir ao campo e lá o assassina (p.17).

Esse mito traz a simbolização de uma realidade humana comum, muitas vezes

banalizada em ambientes policiais, nos hospitais públicos e mesmo pelos veículos de

comunicação. É a concepção da violência constituída a partir dos efeitos produzidos nas

vítimas. Percebida por muitos, a partir de aspectos exteriores, como a pessoa que realizou o

ato violento, a cena onde a violência aconteceu e a vítima. Entendida genericamente como um

mal individual e social: “como fera acuada espreitando você”.

Não é nova a ideia de que o bem e o mal são conceitos relativos. Por exemplo, o

antigo filósofo chinês Chu Hsi – cujas reflexões ocorreram há tanto tempo que

ninguém sabe ao certo quando ele viveu – ensinava que o bem e o mal não existem em

1
NOTA: A ortografia, neste trabalho (inclusive nas citações), segue as normas do Novo Acordo Ortográfico,
com base na seguinte referência: Bechara, E. (2008). O que muda com o novo acordo ortográfico. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira.
9

si mesmos; ao contrário, eles são conceitos aplicados às coisas de acordo com os

benefícios que trazem para quem as manipula ou para o ser humano em geral

(Sanford, 1988, pp.15-16).

A violência, ao ser estudada a partir de sua estrutura mítica e pelo viés da

complexidade, possibilita-nos compreendê-la de modo mais amplo. Tal visão poderá nos

conduzir a entender o que leva alguém a agredir e, igualmente, o que está por trás das

repetições de atos violentos de que algumas pessoas são vítimas.

Como podemos perceber no mito de Caim e Abel, existia uma força que movia o

primeiro no sentido de agredir, de destruir seu irmão, talvez como uma tentativa para obter a

exclusividade do amor de Javé. Seja qual fosse o motivo, fica claro que existia um impulso

irresistível que movia Caim na direção da consumação desse ato violento.

Com base neste mito e relembrando a trajetória histórica da humanidade, segundo

Perrone e Nannini2 (2007), percebe-se que “desde sempre, o homem utilizou a força para

dominar e transformar a natureza para assegurar sua sobrevivência em seu nicho ecológico”.

Sua ação não se restringia só a aspectos de sobrevivência, mas “também para subjugar aos

mais débeis, quando corpos e bens podiam servir para satisfazer os desejos dos mais

poderosos” (p.36).

Essa força que impulsiona o indivíduo a buscar sua própria satisfação em detrimento

do outro e de seu bem-estar, pode ser percebida como um mal. “Em se tratando do mal, a

primeira coisa com a qual nos defrontamos é que, de um ponto de vista humano, sua

conceituação depende sempre do ângulo onde está o observador” (Sanford, 1988, p.14).

A metáfora bíblica de Caim e Abel tem sua sequência em uma descendência que

podemos entender como similaridade ao que hoje se conhece como transmissão

transgeracional da violência. Miticamente, a violência estaria projetada para as gerações

2
Todas as traduções efetuadas dos autores Perrone e Nanini são de minha inteira responsabilidade.
10

futuras, em uma quantidade de energia capaz de durar para sempre. Na descendência de

Caim encontramos Lamec, que a certo momento diz às suas duas mulheres: “(. . .) por uma

ferida, eu matarei um homem, e por uma cicatriz matarei um jovem. Se a vingança de Caim

valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete” (Gênesis, Capítulo 4, versículo 23, p.18).

A gênese da violência, conforme nos apresentam Perrone e Nannini (2007), segue

proporcionalmente os mesmos passos do mito que apresentamos. “A expressão desse

fenômeno é a relação de dominação e submissão, na qual quem domina satisfaz seu desejo e

obtém prazer, na mesma proporção daquele que deve submeter-se o faz, para salvar sua vida

ou para evitar a dor” (p.36).

Percebemos, por meio dessa visão mítica, uma raiz da origem do que denominamos

“violência” e que aqui buscamos entender, separando-a do “tecido” de onde complexamente

exerce sua atividade e, ainda mais, localizá-la na dimensão do psiquismo humano. O que

fica evidente até agora é que “a violência tornou-se o fermento da inquietação cotidiana”

(Costa, 2003, p.11).

O pensamento mítico explica os fenômenos naturais e humanos, sem estabelecer uma

divisão entre bem e mal. Atribui, contudo, à ação divina a responsabilidade por determinados

fenômenos e mesmo por sentimentos e desejos humanos. Dessa maneira, surge a necessidade

de se encontrar formas “para reagir ao medo” que situações como “a miséria, a doença, a

violência e a morte” causam (Buoro, Schilling, Singer e Soares, 1999, p.10).

O pensamento judaico-cristão traz Deus (Javé), por meio de histórias míticas, como

um ente organizador, capaz de auxiliar o sujeito a lidar com os medos que a impotência

frente às forças da natureza e de toda a realidade que estavam a sua volta lhe causava. Da

mesma forma, em relação a seu mundo externo, “uma instância divina estabelece uma lei no

que é essencial, obrigando o homem a renunciar à força e a controlar seus desejos” (Perrone

e Nannini, 2007, p.36).


11

1.2. A Lei enquanto instância paterna de origem divina.

Essa visão de Deus como aquele que instaura uma “lei” é antropologicamente

compartilhada por muitas culturas e diferentes credos religiosos, tanto no Ocidente quanto no

Oriente. Na primeira metade do Século XX, a influência da “lei”, no desenvolvimento do

psiquismo humano e da nossa cultura, é trazida à luz pela teoria psicanalítica de Sigmund

Freud. Essa “lei”, que era até então trazida por meio de tradições míticas, passa, a partir de

agora, a ser explicitada como um elemento determinante no desenvolvimento humano, dela

dependendo a definição das estruturas psíquicas e o estabelecimento de funcionamentos mais

ou menos saudáveis.

Em “Totem e Tabu”, Freud (1913 [1912-13]) apresenta a questão do horror ao

incesto, a partir dos estudos e reflexões sobre o modo de vida de povos primitivos e de suas

práticas totêmicas.

O que é um totem? Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e

temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a

água), que mantém relação peculiar com todo o clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito

guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros,

reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã

estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir

seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras) (p.21).

A figura totêmica traz implícita em si uma ou mais leis a que os membros do clã

precisam se sujeitar para que possam permanecer com parte do grupo, mesmo que isso

implique abrir mão de seus desejos e impulsos particulares. É a materialização da lei tribal.

Freud vai mais longe e estabelece uma relação mais direta entre a existência de totens e a

sexualidade. “Em quase todos os lugares em que encontramos totens, encontramos também

uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, consequentemente,
12

contra o seu casamento. Trata-se então da „exogamia‟, uma instituição relacionada com o

totemismo” (Freud, 1913 [1912-13], p.23).

Freud vai adiante com sua reflexão a respeito da relação existente entre o totem e a

exogamia3 e chega a afirmar que essa “(. . .) realiza mais (e, assim, visa a mais) do que a

prevenção do incesto com a própria mãe e irmãs. Torna impossível ao homem as relações

sexuais com todas as mulheres de seu próprio clã (. . .)” (Freud, 1913 [1912-13], p.25). O

objetivo que desejamos alcançar aqui se refere a localizar a violência na complexidade da

história humana e, especificamente, nos comportamentos que a psicodinâmica desencadeia.

Na Psicanálise, encontramos diversos conceitos que apontam nessa direção, deixando claro

que as condutas hoje apresentadas possuem sua origem em tempos passados do

desenvolvimento da espécie humana.

Freud (1939 [1934-38]) apresenta a ideia de “trauma primitivo – defesa – latência –

desencadeamento da doença neurótica – retorno parcial do reprimido: tal é a fórmula que

estabelecemos para o desenvolvimento de uma neurose” (p.99). Essa ideia nos propõe

considerar a possibilidade de que:

(. . .) ocorreu na vida da espécie humana algo semelhante ao que ocorreu na vida dos

indivíduos, de supor, isto é, que também aqui ocorreram eventos de natureza

sexualmente agressiva, que deixaram atrás de si consequências permanentes, mas que

foram, na sua maioria, desviados e esquecidos (. . .) (Freud, 1939 [1934-38], pp.99-

100).

Esses eventos podem permanecer durante muito tempo como que adormecidos e

depois disso “(. . .) entraram em vigor e criaram fenômenos semelhantes a sintomas, em sua

estrutura e propósito” (Freud, 1939 [1934-1938], p.100).

3
Exogamia: cruzamento de indivíduos não aparentados ou com grau de parentesco distante. (Dicionário Hossais
da Língua Portuguesa, 2007, p.1286).
13

O pensamento de Freud expresso em seu trabalho, “Moisés e o Monoteísmo” (1939

[1934-38]), baseou-se em postulados darwinianos, nos quais o homem primitivo viveria em

pequenos grupos que denominava de hordas4. Esses agrupamentos, supostamente comuns a

todos os homens primitivos, estariam sob a liderança de um macho de grande poder. “O

macho forte era senhor e pai de toda a horda, e irrestrito em seu poder que exercia com

violência” (p.100). Ele segue dizendo que o passo decisivo para uma mudança nessa

organização social, parece ter sido marcada pelo momento em que os irmãos expulsos da

horda, “(. . .) vivendo numa comunidade, uniram-se para derrotar o pai e, como era costume

naqueles dias, devoraram-no cru” (p.101).

Essa visão histórica mostra a evolução de uma comunidade humana primitiva,

estruturada a partir de intervenções violentas. Contudo tais atos precisaram ser abandonados

para que pudesse surgir, talvez, a primeira forma de organização social, conforme Freud

(1939 [1934-38] p.101) sugere. Ele apresenta que “a primeira forma de organização social

ocorreu com uma renúncia ao instinto, um reconhecimento das obrigações mútuas, a

introdução de instituições definidas, pronunciadas invioláveis (sagradas) (. . .)” (p.101). Esse

tipo de entendimento estaria certamente nos “primórdios da moralidade e da justiça”. Dessa

maneira, conclui-se que “cada indivíduo renunciou a seu ideal de adquirir a posição do pai

para si e de possuir a mãe e as irmãs” (pp.101-102).

Na sequência de seu escrito, Freud (1939 [1934-38], estabelece uma relação direta

entre o totemismo como uma forma de “adoração de um substituto paterno”, apresentando os

rituais surgidos, a partir de então, como a origem primitiva de todas as religiões, “(. . .) de ele

ter sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações morais” ( p.102).

Temos, a partir de então, uma associação direta entre as “leis morais e a divindade”.

Essa relação é muito bem exemplificada pela história de Moisés, que entrega ao povo hebreu

4
Horda: bando indisciplinado, malfazejo, que provoca desordem, brigas etc. (Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, 2004, p.1551).
14

tábuas de pedra com dez mandamentos escritos por Deus. Leis a que estavam sujeitos os

israelitas daquela época e que influenciaram todo o pensamento ocidental e mesmo inspiram

as leis vigentes em nossa época. Melman (2008) entende que “(. . .) somos de uma espécie

suficientemente desnaturada para não encontrar em nós mesmos as regras de nossa conduta”

(p.97). Essa construção de regras é muito exigente e, igualmente, indispensável à

estruturação pessoal e social. Foi por este motivo que as “tábuas da lei” judaica tornaram-se o

aspecto central da vida e um vínculo social de ordem divina, capazes de oferecer regras de

conduta que se mantém por milênios.

Como é possível perceber, a cultura impõe aos membros de uma sociedade que se

submetam aos seus ditames, sob pena de exclusão do grupo. Essa realidade é experimentada

desde tenra idade, pois o bebê somente consegue sobreviver se for cuidado por alguém e, a

tal fato, condiciona-se uma progressiva aceitação dos horários, procedimentos e valores de

quem realiza esses cuidados maternos.

De acordo com Perrone e Nannini (2007), existem cinco posições existenciais

relacionadas à interiorização da lei: “impor-se, afirmar-se, integrar-se, existir e crescer”

(p.48). Cada uma delas expressa uma forma de articulação pessoal com a lei e dá a ideia de

um curso a ser seguido pelo indivíduo, mesmo porque “o sofrimento somente aparece como

resultado de uma experiência de confrontação com quem, a sua vez, decide impor-se. É uma

dor que gera sede de vingança, de represálias, de separação” (p.49).

1.3. Violência e saúde pública.

Modernamente, a questão da violência ocupa um lugar de destaque nas discussões

científicas, possivelmente por encontrar-se na origem da constituição dos agrupamentos

humanos. Está presente em todos os grupos sociais, e seu estudo é cada vez maior, certamente

por existirem valores que a ela se contrapõem diretamente, denominados de “Direitos

Humanos”. “Destaca-se a unificação da violência enquanto questão ético-política e a


15

demonstração de sua extrema diversidade enquanto situações concretas de estudo e

intervenção” (Schraiber, Oliveira, Couto, 2006, p.112).

Cada dia mais as perguntas em torno da temática da violência se multiplicam, partindo

dos mais diversos ambientes, seja dos meios acadêmicos ou da sociedade civil em geral. Não

são raros os questionamentos dos jornalistas frente a situações de violência e crueldade

explícitas, buscando uma resposta razoável para atos que denominam como bárbaros.

Apesar de toda essa perplexidade frente a tais ocorrências, é reduzido o número de

publicações científicas a respeito do assunto. Especialmente, as que abordem o tema de modo

ampliado e em suas múltiplas manifestações.

Schraiber, et al. (2006), apresentam que “no plano internacional e nacional, a

violência é reconhecida como questão social e de saúde pública. É considerada mundialmente

violação de direitos, embora com expressões variadas em diferentes contextos” (p.113).

Podemos perceber que dois fenômenos ocorrem paralelamente: “a expansão de domínios da

violência” e a “a expansão dos direitos humanos e sociais”. O próprio Estado age de modo

violento, “(. . .) tal qual nos crimes de guerra ou abusos e negligências de suas instituições

(. . .)” e dessa maneira, “(. . .) estende-se às situações de caráter interpessoal no mundo

privado”. Os autores apresentam uma posição enfática, ao afirmarem que “não bastarão para

seu controle apenas apelos aos sensos de responsabilidade ética e social dos indivíduos”. Será

necessária a “redefinição desses sensos, do ponto de vista moral e legal” (p.113).

De um lado, a sociedade clama pelos direitos humanos e, por outro, pelos direitos

individuais alicerçados nos valores próprios da pos-modernidade. Como conciliar interesses

pessoais e coletivos? Como controlar os desejos e impulsos direcionados à obtenção de

prazer, se a instância da lei encontra-se fragilizada em suas características essenciais: “geral,

igualitária, permanente, obrigatória e promulgada pelos representantes do povo” (Perrone e

Nannini, 2007, p.40).


16

Minayo e Souza (2006) nos auxiliam a observar a violência sob uma perspectiva mais

profunda, sugerindo-nos, por exemplo, que existem sociedades tradicionalmente mais

violentas do que outras. Afirmam, também, que “(. . .) as formas de violência se articulam

criando uma expressão cultural naturalizada nas relações e nos comportamentos (. . .)”.

Quanto à violência, sugerem que seja sempre compreendida “(. . .) como um fenômeno de

expressão e parte constitutiva dos processos históricos complexos”. O aspecto tipicamente

humano da violência fica evidenciado pelo significado que possui e pelo caráter intencional.

E ainda, que temos que lidar com “violências”, pois são múltiplas e que cabe investir em sua

compreensão, por meio da produção de conhecimento científico e empírico, lembrando-nos

sempre de que “(. . .) a compreensão de cada parte precisa ser articulada ao todo” (pp.42- 43).

A realidade das sociedades ocidentais caracteriza-se pela presença de instituições

esvaziadas de sua função paterna. Ou seja, tal função é detentora de uma lei capaz de conter

as manifestações agressivas e de garantir uma relativa estabilidade nas relações sociais, seja

dentro de um grupo seja entre diferentes grupos de uma sociedade, que é cada vez mais

global. Esse enfraquecimento é sentido nas relações familiares deste início do século XXI,

em que pais e mães não sabem como devem se comportar. Não sabem mais a diferença entre

autoridade e autoritarismo, estão confusos entre dois papéis: amigos ou pais dos próprios

filhos. São comuns as manchetes nos veículos de comunicação, em que filhos aparecem em

tamanho grande, tendo pela mão o pai e a mãe em tamanhos reduzidos. Essa metáfora traduz

bem a debilidade da força da lei paterna, daquela lei de origem divina, capaz de levar os

indivíduos a abrirem mão de seus desejos instintivos e optarem pelas regras sociais aceitas,

de modo a permanecerem no grupo. Dessa maneira, os “impasses para lidar com a liberdade

no exercício de direitos sociais e humanos de forma conexa com correlatos compromissos

sociais e responsabilidades éticas e civis constituem o centro dessa crise (. . .)” (Schraiber et

al. 2006, p.113)


17

A violência tornou-se objeto de estudo da saúde pública, exatamente por sua

abrangência, mas não se percebe, como afirmam Perrone e Nannini (2007), “(. . .) um

fenômeno indiscriminado ou multiforme.” Segundo esses autores, a violência pode ser

classificada em duas formas distintas: “A violência agressão, que se encontra entre pessoas

vinculadas por uma relação de tipo simétrico, por assim dizer, igualitária. Ou a violência

castigo, que tem lugar entre pessoas implicadas em uma relação de tipo complementar, ou

dita, não igualitária” (p.57). Como afirmam Schraiber et al. (2006), deparamo-nos com o

estabelecimento de uma relação que leva a “(. . .) liberdade de exercício de direitos à

coisificação desse outro, ruptura interativa que fundamenta as violências”. Isso nos leva a

constatar que estamos diante de uma “ambivalência ética”, isto é, as escalas de valores estão

sendo substituídas “(. . .) por valores móveis (. . .), por uma agenda de valores fluída,

maleável conforme as oportunidades (quase sempre de mercado) e, pois, sem possibilidade de

permanência no tempo”. É um posicionamento diante da realidade que permite uma “(. . .)

„adoção‟ de valores adaptáveis aos desejos e ao próprio alargamento do que venham a ser ou

não direitos”. E assim, deparamo-nos com o “(. . .) estabelecimento a partir dos anos 80, da

era dos desmoronamentos5, com a falência de políticas e intervenções protetoras exatamente

dos direitos conquistados” (p.113).

Essa realidade social contemporânea nos impõe naturalmente uma pergunta quanto à

relação que se estabelece entre identidade e violência, face o enfraquecimento das instituições

que naturalmente exerciam o papel de guardiãs da lei. Costa (2003) apresenta o conceito de

identidade, baseado nas ideias De Levita (1966)6, como estruturado por meio de duas bases

diferentes: “o corpo e o conjunto de papéis sociais”. E afirma que “a identidade surge,

concomitantemente, como correlato da imagem do corpo ou dos estímulos físicos dele

5
Hobsbawm, E. (2002). Era dos extremos: o breve século XX:1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.
6
De Levita, D. J. (1966). On the psychoanalyt concept of identity. In Int. Journal of Psychoanal.47, pp.299−139.
18

provenientes e como ponto de condensação dos papéis do indivíduo em sua interação social”

(p.109).

Para que possamos compreender melhor a articulação social existente entre a

identidade dos sujeitos e a violência, podemos recorrer ao conhecido Relatório Mundial sobre

Violência e Saúde publicado pela Organização Mundial da Saúde em 2002, que desempenha

um importante papel frente a essa temática. Sua importância reside no fato de que “(. . .) torna

público e mundial o problema da violência, ampliando o debate e permitindo a construção de

referências para os diversos movimentos regionais” (Schraiber et al. 2006, p.113). O relatório

é igualmente importante, porque “(. . .) valoriza e resignifica o problema da violência, além de

conferir um todo à problemática: unifica-se a violência enquanto questão a ser enfrentada, ao

mesmo tempo em que se definem as distintas violências enquanto diversidades dessa questão

plural” (pp.113- 114).

O relatório traz à luz a violência em seu caráter de invisibilidade, que muitas vezes

surpreende a sociedade por eventos inesperados, inexplicáveis do ponto de vista racional,

mas coerentes com um modo de viver em que pequenos e múltiplos tipos de abusos se dão

cotidianamente. Essa “invisibilidade” surpreende a muitos, especialmente quando algum fato

promove a sua percepção social e fica clara uma trágica trajetória, repleta de agressões

sofridas e caladas no interior das famílias e das instituições. “O curioso fenômeno de que a

maioria destas pessoas sigam vivendo juntas, apesar do sofrimento, sempre fascinou os

observadores, que se perdem em conjecturas” (Perrone e Nannini, 2007, p.65).

Outra contribuição muito importante do relatório reside no fato de mobilizar a

comunidade mundial em relação a essas ocorrências que atingem a muitas pessoas de países

e classes sociais diferentes, em busca de uma compreensão maior dessa realidade e à

realização de intervenções efetivas que promovam sua reversão (Schraiber, et al. 2006).
19

É importante que esteja claro que “a violência não se resume às delinqüências”.

Temos outras manifestações que se encontram, de certa forma, “naturalizadas”, mas que se

constituem atos violentos direcionados a homossexuais, crianças, mulheres, idosos,

deficientes físicos, dentre outros grupos específicos. As agressões se manifestam por meio da

exclusão e mesmo “lesões físicas ou emocionais” (Minayo e Souza, 2006, p.43).

A atuação da sociedade contra a violência, especialmente aquela que acontece no

interior das famílias, esbarra em alguns fatores sutis e que não são facilmente detectados. É

como se existisse um acordo estabelecido entre o agressor e sua vítima e, em um âmbito

maior, com outras pessoas a estes relacionadas. Perrone e Nannini (2007) afirmam que

“certamente, existe um tipo de acordo ligado tanto à resignação, quanto a fascinação, que os

mantém juntos”. Apesar de parecer contraditório, à primeira vista, podemos por outro lado

compreender que “os atores constroem um marco relacional que logo os faz cair em uma

armadilha. É o que se define como consenso implícito rígido, em cujo interior determinadas

mensagens verbais e não verbais, desencadeiam o ato violento” (p.66).

É possível imaginar que não existe um acordo consciente estabelecido entre as

pessoas para quem a agressão seja um componente explícito. O que acontece é “(. . .) uma

armadilha relacional, de onde a violência aparece como uma necessidade de manter o

equilíbrio entre cada um deles e com os outros”(Perrone e Nannini, 2007, p.67). Os autores

complementam ainda que esse tipo de acordo possui lugar estabelecido, momentos e assuntos

específicos que desencadeiam os atos violentos, estando, igualmente, definidos códigos que

atuam como desencadeadores das reações violentas.

1.4. A Violência e suas vítimas.

O ato violento não escolhe vítimas − dirige-se igualmente para as mulheres, os

homens, as crianças e os idosos. Da mesma forma, os agressores encontram-se também

espalhados nesses grupos.


20

Não somente os agressores e as possíveis vítimas devem ser considerados, em uma

análise dos atos violentos, mas também os tipos de violência que podem ser exercidos, “uma

grande superposição das violências física, sexual e psicológica tem sido encontrada, o que

também se deve esperar das violências contra crianças e idosos”. (Schraiber et al. 2006,

p.115).

O estabelecimento de uma relação entre ato violento e gênero é muito comum, talvez

por ser um tipo de agressão recorrente, cujos registros remontam à história. Outro aspecto a

ser considerado reside no fato de a agressividade ser aceita como natural no comportamento

masculino, possivelmente como uma herança comportamental dos líderes das hordas

primitivas.

O movimento feminista, surgido na segunda metade do século XX, trouxe à cena as

situações de violência a que estavam expostas as mulheres, especialmente dentro do

ambiente familiar, e cobrou um tratamento igualitário, isto é, que não fosse essa situação

compreendida como normal, tendo em vista a diferença de gênero. A partir disso, ficou assim

entendida a “violência de gênero”:

A violência de gênero é aquela exercida pelos homens contra as mulheres, em que o

gênero do agressor e o da vítima estão intimamente unidos à explicação desta

violência. Dessa forma, afeta as mulheres pelo simples fato de serem deste sexo, ou

seja, é a violência perpetrada pelos homens mantendo o controle e o domínio sobre as

mulheres (Casique e Furegato, 2006).

Os movimentos sociais que clamam pelos direitos das minorias têm buscado obter

uma situação mais igualitária entre homens e mulheres, inclusive suscitando a promulgação

de leis específicas que lhes garantam a necessária proteção. Da mesma forma, “a produção da

área de saúde sobre a „Violência contra a Mulher‟, na década de 90, foi bastante diversificada

de acordo com temáticas, instituições de onde se originaram, objetivos específicos,


21

abordagens teóricas e métodos de pesquisa” (Souza et al., 2006 in Minayo e Souza, p.61). A

partir desses estudos, foi possível estabelecer uma delimitação mais clara quanto a violência

de gênero, bem como aspectos a ela correlatos.

A violência de gênero pode manifestar-se de muitas formas sendo mais comum a

intrafamiliar e a que ocorre no ambiente de trabalho. Sua materialização pode se dar por meio

de “agressões físicas, psicológicas e sociais”. Focalizamos nossa atenção à violência

intrafamiliar, aquela em que o agressor é membro da família, compartilha o mesmo domicílio

com sua vítima. “As agressões incluem violação, maltrato físico, psicológico, econômico e,

algumas vezes, pode culminar com a morte da mulher maltratada”. O agressor, muitas vezes,

é alguém que mantém um relacionamento afetivo, “como marido e mulher ou adultos contra

menores ou idosos de uma família” (Casique e Furegato, 2006).

É possível perceber com certa facilidade, que a violência de gênero é uma construção

social a que estão sujeitos tanto homens quanto mulheres, apesar dos papéis de algoz e vítima

já aparecem previamente estabelecidos. “Nesse sentido, a ordem social opera como uma

imensa máquina simbólica, ratificando a dominação masculina sobre a qual se ancora”

(Gomes, 2006, in Minayo e Souza p.207).

É, contudo, importante não esquecermos que a violência, enquanto “organização

relacional”, conforme nos sugerem Perrone e Nanniny (2007), por uma via diferente,

vitimiza igualmente os homens. Com base nessa concepção, a violência de gênero poderá ser

compreendida em sua real dimenção, isto é, que vitimiza igualmente a mulheres e homens e

em diferentes faixas etárias.

A violência não se restringe apenas à dimensão “genero”, mas projeta-se entre as

gerações, tanto para as crianças e adolescentes, quanto para os idosos. Para as crianças e

adolescentes, em geral os atos violentos possuem uma conotação disciplinadora, isto é,

justifica-se o ato violento por conta de uma motivação positiva e benéfica ao agredido. Essa
22

realidade vai além dos limites das famílias e se infiltra nas instituições sociais de amparo e

atendimento às crianças abandonadas ou mesmo às crianças tidas como “infratoras”.

Apesar de terem existido muitas iniciativas desde a década de 90, buscando

compreender, identificar, caracterizar e mesmo propor interveções sociais positivas, muito

ainda existe a ser feito. Assim temos, como afirmam Assis e Constantino (2006) in Minayo e

Souza, “o que foi produzido, frequentemente fundamentado na lei de proteção que se

constituiu com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)”, que representou um avanço

“(. . .) na compreensão do fenômeno, na desmitificação do pátrio poder e dos maus-tratos

como problemática de foro privado e conseguiu questionar a família, a sociedade e o proprio

Estado em seu poder normatizador e punitivo” (p.183-184). Certamente, esse avanço não

abrange a toda a realidade, “muito há por fazer, sobretudo no sentido de articulação da

construção teórica com a ação política e com a prática de atenção e prevenção”. Se

desejamos construir um país mais civilizado, onde exista uma ampliação da cidadania,

necessitaremos conhecer sempre mais sobre a violência e criar estruturas de proteção para as

crianças e os adolescentes, de modo a “(. . .) contribuir para seu crescimento e

desenvolvimento (. . .)” (p.184).

Ocupar-se da violência é uma atribuição que demanda uma visão ampliada de todo o

ambiente e de todas as suas manifestações. Nesse sentido, faz-se necessário encarar inclusive

a ocorrência de atos violentos contra pessoas idosas, fato que também deixa de ser tratado em

ambientes privados e passa a ser objeto de discussões públicas, promovidas pela mídia, por

entidades que se ocupam de direitos individuais e das minorias, e ainda, aquelas próprias dos

ambientes acadêmicos.

Toda sociedade se depara com a realidade da violência, como uma “(. . .) grande

contradição que vivemos: nunca houve tantas leis e garantias, e o mundo parace nunca ter

sido tão violento como hoje” (Buoro et al., 2001, p.11). Seja onde e como for, “as violências
23

contra pessoas mais velhas precisam ser compreendidas tendo em vista, pelo menos três

parâmetros: demográfico, socioantropológico e epidemiológico”. (Minayo e Souza, (2006) in

Minayo e Souza, p.225). O avanço da medicina e das condições de vida das populações,

trouxeram como consequência uma expectativa maior de vida às pessoas. Tal fato torna ainda

mais visível a incidência da violência contra pessoas com mais de 60 anos, conforme nos

mostram Minayo e Souza (2006) in Minayo e Souza:

Assim, mesmo que a vitimização dos velhos seja um fenômeno cultural secular, cujas

manifestações são também facilmente reconhecidas nas mais antigas estatísticas

epidemiológicas, a quantidade de idosos dá realce a esse problema, pois ele se impõe,

do ponto de vista social (p.226).

É de se esperar que o aumento populacional de pessoas com mais idade acabe por

gerar uma nova realidade, em que suas necessidades e desejos sejam efetivamente

considerados. Da mesma forma como são hoje percebidas − um novo nicho de consumidores

potenciais − seus direitos e deveres passam a ser considerados e mesmo ressignificados.

O idoso na sociedade é colocado muitas vezes em uma posição desvalorizada, como

alguém “improdutivo” e, portanto, que não serve mais aos interesse coletivos. Essa visão é

contraposta exatamente pela dependência que muitas famílias apresentam dos rendimentos

recebidos pelos seus idosos, geralmente fruto de aposentadorias. Esses problemas estruturais

são visíveis e muitos deles se ocupam. “No entanto, nada se iguala aos abusos e negligências

no interior dos próprios lares, onde choque de gerações, problemas de espaço físico e

dificuldades financeiras costumam se somar ao imaginário social que considera a velhice

como decadência” (Minayo e Souza, 2006, in Minayo e Souza, p.228).

O tema violência demanda uma abordagem rica e diversa, exatamente pela

complexidade que a caracteriza. Se por um lado nos é possível trazer muitas concepções, por

outro, deparamos-nos com algumas ausências. “Essas se referem a segmentos populacionais


24

específicos e enfoques relevantes que deixaram de ser tratados, como raça/etnia e mesmo

gênero” (Schraiber, et al. 2006, p.118). É necessário termos claro que “se de um lado, isto

mostra a complexidade do próprio tema violência, cujas expressões concretas e particulares

exigem grande dispersão de tratamento, de outro lado, entende-se que os estudos sobre

violência e saúde encontram-se, ainda, em momento inicial de sua produção” (Schraiber, et

al. 2006, p.118).

Procuramos compreender a violência a partir de sua concepção mítica, de traços

histórico-sociais e de seus atores, sejam eles algozes ou vítimas. E podemos resumi-la por

meio da definição apresentada por Faleiros (2000), que utilizaremos neste trabalho:

“Violência, aqui não é entendida, como ato isolado, psicologizado pelo descontrole, pela

doença, pela patologia, mas como um desencadear de relações que envolvem a cultura, o

imaginário, as normas, o processo civilizatório de um povo” (p.17).


25

Capítulo 2: Violência e compulsão à repetição.

O ato violento desperta na sociedade uma recorrente pergunta quanto aos motivos que

o fazem surgir em todos os níveis sociais, vitimando a homens e mulheres de todas as idades

e em diferentes culturas e etnias. As respostas surgem igualmente dos vários segmentos

sociais em âmbito global, focalizando um ou mais aspectos dessa complexa realidade.

A proposta deste capítulo é fundamentada na teoria psicanalítica acerca da violência

e tem por objetivo refletir sobre aspectos psíquicos implicados na origem do ato violento,

com seus protagonistas e coadjuvantes. Não é nossa pretensão responder completamente,

mas tentaremos identificar questões relacionadas à multicausalidade psíquica dos sujeitos e

de seus desejos e na impossibilidade de realização destes. O sujeito assim constituído tem

que dar um destino aos impulsos que o movem em busca da satisfação, movimento que tende

à contínua repetição.

2.1. A Violência sob o olhar da Psicanálise.

Esse tema não é tradicionalmente objeto de estudo da Psicanálise e “(. . .) a

dificuldade que encontramos na sistematização da violência deve-se, em boa parte, à precária

atenção que a própria teoria psicanalítica, em geral, e não só entre nós, dedica ao assunto”

(Costa, 2003, p.12). Com efeito, a complexa realidade social em que estamos imersos, suscita

uma reflexão mais profunda sobre a ocorrência e recorrência de atos violentos, exemplos de

crueldade que chocam e geram uma pergunta que fica, em geral, sem resposta: por que isso

acontece?

Melman (2008) identifica que a Psicanálise não consegue esquivar-se da violência e

de seus efeitos individuais e sociais e afirma: “Vou tentar lhes dar notícia de algumas

proposições que chegam, de algum modo, ao psicanalista a partir de sua prática, e submeter

essas proposições a sua atenção e a seu exame” (p.75).


26

Essa crescente onda de violência que assola as comunidades, não permite que nenhum

segmento social ou eixo de conhecimento permaneça alheio ou indiferente. Exige cada vez

mais um compromisso ético e político.

Ética e política estão presentes na psicanálise, especialmente quando se trata da

leitura dos fenômenos socioculturais de nossa época e da interrogação da prática

psicanalítica. A interface entre a política e a ética da psicanálise evidencia-se nos

eventos sociais e clínicos, (. . .) os quais remetem aos discursos elucidativos de

modalidades do laço social e da dimensão política do gozo, do sintoma e da

construção da realidade. Os discursos a que estão expostos os sujeitos do capitalismo

avançado indicam o modo de laço constituído por uma cultura que os empurra

violentamente ao gozo, sob a forma de consumo, de lucro ou de sofrimento (Rosa,

Carignato e Berta, 2006, p.36).

Melman (2008) apresenta essa realidade por meio do relato da história clínica de um

paciente que não está submetido a qualquer tipo de violência. “(. . .) um jovem extremamente

simpático, e que tem a seguinte característica: ele não sofre, eu lhes garanto, nenhuma

violência, nada” (p.87). Sua rotina mostra-se absolutamente tranqüila, sem nenhuma situação

em que seja obrigado a fazer algo que não deseja. Assim, “ele se levanta de manhã quando

quer, e depois, durante o dia, nenhuma obrigação, nenhum constrangimento”. Como atividade,

“ele pode, eventualmente, fazer algumas fotos que uma mamãe bem situada poderá vender a

uma revista”. Seu dia se caracteriza por fazer apenas o que quer e quando quer. “À noite”,

também não possui “nenhuma obrigação, nenhum constrangimento”, isto é, ter que se

encarregar de alguma atividade ou responsabilizar-se por alguma coisa que não fosse de seu

pleno agrado. Apesar dessa vida sem quaisquer violência, originada pela imposição de

responsabilidades ou atividades não prazerosas, há, certamente, situações que ele mesmo “(. . .)

pôde se impor”. Essas, referem-se “(. . .) ao uso do álcool e das drogas” (p.87). Apesar de
27

estarem relacionadas à busca de mais satisfação, trazem consigo algum tipo de desprazer, seja

pela repreensão social direta ou indireta, ou mesmo pelos sintomas físicos e reações

emocionais ocasionados pela diminuição dos efeitos químicos que produzem no organismo

(Melman, 2008, p.87).

Como compreender o que se passa com esse jovem? Não seria natural pensar que ele

tem todas as condições para realizar-se, para ter uma existência saudável? Essa constatação,

que pode parecer paradoxal, traz em si um diagnóstico inesperado: “ele sofre da liberdade, ele

é inteiramente livre, inteiramente, e isso o mergulha nesse estado de indiferença, de neurastenia

e de crítica, aliás, do modo como passa por sua existência” (Melman, 2008, p.87).

Essa possibilidade ilimitada de gozo, ou sua busca, articula-se diretamente com as

situações de violência que se apresentam. De um lado nos deparamos com o “princípio do

prazer” e, de outro, com a “pulsão de morte”. Contudo “(. . .) afirmar que a pulsão de morte é a

„desrazão do princípio do prazer‟ implica em dizer que ela é a „desrazão da desrazão‟. Esta

proposição carece de sentido” (Costa, 2003, p.17).

Para entendermos melhor de que modo esses aspectos se relacionam, precisamos

recorrer à instância paterna, que na atualidade mostra-se tão debilitada. Melman (2008)

apresenta a ideia da existência de uma violência paradoxal, que é introduzida exatamente por

conta da recusa de nossa cultura atual ao que poderíamos denominar de “violência magistral”,

isto é, aquela que tem sua referência direta com a instância paterna. Dessa forma, o que

Melman (2008) percebeu em seu percurso clínico “constituiria, de alguma maneira, um apelo a

um retorno a uma autoridade desse tipo (. . .) se trataria de uma violência, mas cujos efeitos nos

são conhecidos – estamos habituados a ela, todas as nossas tradições estão aí para testemunhá-

lo – a violência do papai se ouso dizer?” (pp.87 e 88).

É necessário compreender que não se trata de uma apologia à violência, mas sim a

compreensão do modo como ela aparece no dinamismo psíquico e que é traduzida nos atos
28

violentos do cotidiano brasileiro e mundial. Por mais paradoxal que possa parecer à primeira

vista, é exatamente desse conflito que é possível a estruturação do sujeito e sua possibilidade

de dar um destino produtivo aos seus impulsos.

(. . .) eu nunca poderia esquecer ou negligenciar o fato de que devemos a nosso amor

pelo pai, ao nosso ódio também, um vai com o outro, e o ódio é muitas vezes uma

maneira de perenizar o amor, devemos a ele um certo número de consequências que

remetem a essa outra obra de Freud, “Mal-estar na civilização” (Melman, 2008, p.88) .

Desde as hordas primitivas é possível identificar a presença e o papel da violência nos

grupos sociais e na cultura. Costa (2003) apresenta sua visão a respeito disso, por meio da

proposta de uma reflexão que se baseia na ideia de que a violência está diretamente

relacionada à cultura e à própria possibilidade das pessoas viverem em sociedades

organizadas. Isso se deve ao caráter impositivo que os hábitos e costumes são passados às

novas gerações, por meio do que ele denomina de “atos pedagógicos” (p.21).

Esse processo educativo que socializa os indivíduos carrega em si a força da instância

paterna, por meio da lei, um tema do qual a Psicanálise se ocupa, por estar diretamente ligado

à maneira como os indivíduos irão lidar com seus próprios desejos, de modo a garantir

satisfação e, igualmente, conseguirem permanecer inseridos em uma sociedade.

O ato violento, como o destino dado a um impulso interno, traz consigo o indivíduo

que o pratica à cena social. Se olharmos atentamente as diferentes manifestações humanas no

cotidiano, iremos identificar que apresentam, de modos distintos, sutis ações violentas.

Melman (2008), ao apresentar questão sobre “o que me torna violento?”, identifica

três tipos de violência: a imaginária, a simbólica e a real. A primeira é exemplificada pela

conduta das crianças, que tendem a ser violentas e a agredir as mais fracas. Ele identifica que

tais atos violentos são dirigidos àquelas que são identificadas como as mais fracas ou débeis.

Isso estaria relacionado “a imagem, que ela vive como deficiente, que esse semelhante lhe
29

propõe” (p.75). A agressão seria decorrente da possibilidade de que essa imagem pudesse vir

a “perturbar a imagem ideal de si mesmo” (Melman, 2008, p.76).

Para descrever a violência simbólica, Melman (2008) recorre à cena conjugal em que

a relação que se estabelece entre os cônjuges está carregada de atos violentos. Isso se dá pelo

fato de o amor estar relacionado à existência de uma “assimetria” entre esses parceiros e que

essa instala uma situação na qual a relação só é possível pelo consentimento de um em

relação às vontades e desejos do outro. Contudo isso pode se exacerbar, e um dos cônjuges

ficar submetido às vontades e desejos do outro. A violência, que poderá se manifestar nessas

situações, prescinde de qualquer “ato motor”, mas ser igualmente eficiente. Aquele que está

submetido, também poderá não suportar mais tal situação e vir a rebelar-se, utilizando-se o

ato violento com a simbolização de sua inconformidade com a situação a que está submetido.

É o que a Psicanálise denomina de “acting out” ou passagem ao ato.

A terceira manifestação da violência pode ser observada pela via do real, isto é, um

indivíduo pode tornar-se presente, existir socialmente, por meio da prática de um ato

violento. Se recorrermos à memória, poderemos achar vários exemplos veiculados pela

mídia, que nos dão ideia de que tal seja verdade. Esses casos que ocupam, em geral, os

horários de maior audiência e trazem à cena nacional um sujeito que não conseguiria ser

percebido de outra forma. Melman (2008) sugere que, nesses casos, a violência seria

decorrente da marginalidade social, do sentir do sujeito de que a sociedade em que vive não o

reconhece, de que não consegue nela existir.

O olhar que a Psicanálise lança sobre a questão da violência baseia-se no

entendimento freudiano, conforme apresenta Costa (2003), de que “não existe um „instinto de

violência‟. O que existe é um instinto agressivo que pode coexistir perfeitamente com a

possibilidade do homem desejar a paz e com a possibilidade do homem empregar a

violência” (p.35).
30

Frente a essa visão, deparamo-nos com outro aspecto dessa “complexa” realidade,

que se refere à existência de, no mínimo, um par de pessoas, o agressor e sua vítima. Isso é

tão óbvio, que pode passar despercebido que existam papéis bem definidos e, de certa

maneira, estruturados, que são desempenhados por cada um desse atores na cena violenta.

Partindo dessa ideia, defrontamo-nos com um aspecto que parece ser essencial à

compreensão da violência: os papéis de cada um desses atores e seu correspondente psíquico

inconsciente.

Os indivíduos, em sua relação no meio social, como vimos anteriormente, são

obrigados a desempenhar papéis, a utilizar determinadas máscaras, como forma de garantir a

sua permanência no grupo. Assumir um papel implica, em maior ou menor grau, abrir mão

dos próprios desejos. Essa configuração que a lei social instaura mostra-se, até certo ponto,

bastante efetiva. Contudo, já é em si mesma uma violência.

Se apurarmos um pouco mais essa visão, iremos encontrar nas relações que se

estabelecem na sociedade, sob a força dessa lei de convivência social, indivíduos

estratificados em duplas ou em grupos específicos, cada um com seu papel a desempenhar,

com polaridades diferentes e alternáveis de algoz e de vítima. Temos aqui um aspecto no

qual não pensamos usualmente e que se refere à existência de um papel inconsciente a ser

desempenhado pela vítima, pois em geral prendemos nossa atenção ao ato violento e a quem

o pratica.

2.2. O mal-estar que a violência traz.

“Qual o lugar do desejo inconsciente nesse relacionamento eu-sociedade? E o que

dizer da própria sociedade? É ela um facilitador da expressão e do desenvolvimento humanos

ou serve para restringir e deformar o eu?” (Elliot, 1996, p.55). Com essas perguntas, próprias

de uma investigação embasada nos conceitos e princípios da Psicanálise, pensaremos sobre o

mal estar que a violência traz às pessoas e às sociedades.


31

Freud (1930 [1929]), em seu trabalho “O Mal-Estar na Civilização” apresenta

algumas realidades, que veremos mais adiante, e estão relacionadas à complexidade social

em que se insere a questão da violência. Ele inicia identificando que, primordialmente, a

criança não consegue se diferenciar do ambiente em que está e só o faz ao longo do tempo,

na medida em que a estrutura do Eu vai amadurecendo. Exemplifica isso afirmando que “ela

deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que

posteriormente identificará como sendo os seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la

de sensações a qualquer momento (. . .)” (p.84). Ao perceber isso, a criança começa a

apropriar-se de um tipo de entendimento que a diferencia do ambiente e isso vai formando

seu Eu. Essas experiências são muitas vezes sofrimentos que, ao serem identificados como

exteriores ao Eu, promovem um movimento de afastamento dessa fonte de desprazer.

Desse modo, dá-se o primeiro passo no sentido da introdução do princípio da

realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro. Essa diferenciação,

naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra

sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais somos ameaçados

(Freud, (1930 [1929]), p.85).

Não é difícil constatar, que a vida impõe aos indivíduos muitas situações que geram

sofrimento, ou o impedem de satisfazer-se plenamente. A isso Freud (1930 [1929]) sugere a

existência do que denomina de “construções auxiliares”, que agem como paliativos quando

da ocorrência do sofrimento ou do desprazer. Acrescenta ainda que, na busca da felicidade,

as pessoas agem de duas formas: evitam o sofrimento e buscam o prazer. Sintetiza tudo isso

afirmando: “Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do

princípio do prazer” (p.94).

Junto a isso, Freud (1930 [1929]), constata que a felicidade intensa surge em

decorrência da vivência de uma situação em que diferentes aspectos contrastem. Por isso
32

mesmo, evitar um sofrimento já se constituiria em um tipo de prazer, e a satisfação de um

instinto equivaleria à felicidade.

Contudo, conforme Costa (2003) afirma, o argumento da natureza biológica do ato

violento mostra-se inconsistente, por buscar se sustentar no entendimento “(. . .) de que a

violência é produto da conduta humana movida pelo instinto e não pela razão”. Essa

afirmação baseia-se na constatação de que nem sempre a violência é irracional, isto é, não é

uma “ação puramente instintiva” (p.36). Classificar o ato violento como irracional sugere que

seja desencadeado pela emoção, o que também não se configura, pois o agir com violência

não exclui necessariamente a razão. “A violência provocada pela emoção pode ser racional e

frequentemente o é” (p.37). Um exemplo disso são as ações violentas premeditadas, em que é

possível perceber um excesso de emoção, mas também a presença da razão.

É possível perceber que o indivíduo é movido por forças internas ao buscar satisfazer

suas necessidades e, assim, obter prazer e ser feliz. Mas não é possível “uma satisfação

irrestrita de todas as necessidades (. . .) colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o

seu próprio castigo” (Freud, (1930 [1929]), p.96).

A investigação freudiana sobre a felicidade (Freud, 1930 [1929]) apresenta três fontes

para o sofrimento humano, as quais se mostram direta ou indiretamente relacionadas à

violência que se manifesta na sociedade atual. A primeira e a segunda dessas fontes residem

respectivamente na constatação de que “nunca dominaremos completamente a natureza”

(p.105), e que nosso corpo “permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com

limitada capacidade de adaptação e realização” (p.105). É certo que essa percepção dos

limites humanos é incômoda, mas aprendemos ao longo de nossa história a nos “afastar um

pouco e a mitigar outro tanto” (p.105). É em relação à terceira, que nossa atenção se detém,

pois relaciona-se à “fonte social do sofrimento” (p.105), isto é, as leis que nós mesmos

estabelecemos socialmente não nos garantem proteção contra o sofrimento, pelo contrário,
33

são responsáveis por ele. Isso se dá, em decorrência de não conseguirmos dar plena vazão

aos impulsos, tendo que encontrar caminhos alternativos para sua descarga. “Esse argumento

sustenta que o que chamamos de civilização é em grande parte responsável por nossa

desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às

condições primitivas” (Freud, (1930 [1929]), p.105).

2.3. Entre o prazer e realidade de um ato violento

Anteriormente já nos referimos ao caráter instintivo da agressividade e aqui o

retomaremos, com o objetivo de compreendermos o que Costa (2003), baseado em Winnicot7,

define como o “estado teórico” da violência (p.40). Esta é apresentada a partir da relação

estabelecida entre a mãe e o bebê. A agressividade que pode ser observada do bebê em

relação a sua mãe, ou a quem ocupe esse lugar, está na proporção “do material nutritivo para o

animal” (p.40). A mãe é percebida como aquela fonte de satisfação das necessidades

primordiais, capaz de proporcionar bem-estar, mesmo que passageiro. Costa (2003) conclui

que essa agressividade, puramente instintiva, que aqui se pode observar, receberá dessa

mesma mãe e do ambiente “o sentido de „maldade‟ ou „inocuidade‟” (p.41). Essa, segundo ele

afirma, “(. . .) „qualifica humanamente o instinto‟, tornando-o uma manifestação pulsional, ou

seja, „um desejo dirigido a um objeto‟ (bom ou mau) e „portador de um afeto‟ (bom ou mau)”

(Costa, 2003, p.41).

Freud (1920) em “Além do Princípio do Prazer” define o princípio do prazer como o

grande norteador dos destinos dos impulsos, de modo que o resultado a ser obtido no final

coincida com a redução de uma tensão, o evitar do desprazer ou uma produção de prazer.

Decidimos relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação presente na

mente, mas que não se encontra de maneira alguma „vinculada‟ e relacioná-los de tal

7
Winicot, D. W. (1971). De la pèdiatrie à la psychanálise. (2ª ed.). Paris: Payot.
34

modo, que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o

prazer, a uma diminuição (Freud, 1920, p.18).

Essa afirmação necessita ser bem compreendida, conforme Freud (1920) mesmo

afirma, para que não fiquemos com a ideia de que existe uma “dominância do princípio do

prazer”, mas sim, de que existe “uma forte tendência” nesse sentido (p.20). É igualmente

importante considerarmos as situações em que o princípio do prazer não consegue êxito em

seus propósitos. Freud (1920) apresenta que a situação em que o princípio do prazer é

substituído pelo princípio da realidade, como forma do Eu de se autopreservar frente às

exigências do mundo externo. Isso não se configura em um abandono e sim em uma

substituição por outra forma de obter o prazer ou de tolerar temporariamente o desprazer.

Especialmente quando se trata de instintos de ordem sexual, o princípio da realidade pode ser

vencido e mesmo os conteúdos que foram objeto de repressão encontram “(. . .) caminhos

indiretos a uma satisfação direta ou substitutiva, esse acontecimento, que em outros casos

seria uma oportunidade de prazer, é sentida pelo ego como desprazer” (Freud,1920, p.21).

Costa (2003) considera que “(. . .) a cultura pode exigir do indivíduo um desempenho

ou atributos que redundam em violência para com ele próprio” (p.43). Ao analisar essa

questão, estabelece uma relação entre situações violentas a que os indivíduos se submetem

voluntariamente e o prazer que delas decorrem. Faz isso trazendo à cena ideias que se

encontram contidas em um ensaio de Bettelheim8 sobre as “feridas simbólicas”.

Nesse estudo, são apresentados os rituais de iniciação de sociedades etnológicas, em

comparação “(. . .) a pactos de alianças, entre adolescentes esquizofrênicos (. . .) demonstra

que só há violência quando o sujeito que sofre a ação agressiva sente no agente da ação um

desejo de destruição” (pp.41 e 42). Trazendo para a atualidade, Costa (2003) destaca as

8
Bettelheim, B. (1979). Feridas simbólicas. Lisboa: Moraes Editores.
35

cirurgias plásticas, muitas vezes realizadas através de procedimentos violentos, percebidas

como “um meio de atingirem um prazer maior” (Costa, 2003, p.43).

Temos, assim, uma exposição voluntária a uma violência, que é orientada pelo

princípio do prazer, muita vezes em detrimento do próprio princípio da realidade, pois o

indivíduo tem evidências dos riscos a que está se expondo e, mesmo assim, se submete aos

mesmos. Freud (1920) em sua investigação, busca estabelecer uma distinção clara entre o

que denomina de “instintos do ego”, que tendem à morte e dos “instintos sexuais” que se

direcionam ao prolongamento da vida.

Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais

definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se

dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e

instintos de morte (Freud, 1920, p.73).

Costa (2003) preocupa-se em diferenciar os aspectos que revestem o ato violento,

afirmando que “não existe violência sem desejo de destruição, comandando a ação agressiva

e, em consequência, que violência não é uma propriedade do instinto” (p.43).

Para Freud não existe pulsão agressiva em si, mas há um dualismo pulsional que faz

com que a pulsão de destruição seja freqüentemente erotizada, aliando-se à

sexualidade. Nesse jogo entre Eros e Thanatos, para escapar à autodestruição, o

indivíduo é levado a destruir o outro, ainda que sua necessidade de amor contrarie

essa pulsão. Talvez isso explique por que os atos de violência têm sempre seus

observadores apaixonados (Koltai, 1999, p.78).

Ao trazermos essa dualidade para o estudo da violência, deparamo-nos com o destino

final que o indivíduo dá a seus impulsos e de que maneira tudo aquilo que foi retirado da

consciência, por meio da repressão, torna-se novamente presente por meio da compulsão à

repetição.
36

2.4. Uma saída saudável à repetição da violência.

Freud (1920) afirma que cabe ao processo psicanalítico fazer com que o inconsciente

se torne consciente. Contudo, observou-se que não era possível ao paciente “(. . .) recordar a

totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é possível recordar, pode ser

exatamente a parte essencial” (p.31). Dessa maneira, tudo aquilo que não consegue ser

recordado acaba por ser repetido na relação transferencial que é estabelecida entre o paciente

e o analista.

O mostrar-se por meio da transferência é uma forma possível de manifestação, pois a

resistência que impede a sua plena expressão é fruto da ação do que Freud (1920) denomina

de “sistemas mais elevados da mente” (p.32), exatamente aqueles que são os responsáveis

pela sua repressão da consciência. Assim, tudo o que foi reprimido continua buscando

manifestar-se, mas não conseguindo fazê-lo, manifesta-se por meio da compulsão à repetição.

Freud (1920) afirma que a ação terapêutica, busca por meio do princípio da realidade,

auxiliar o paciente a suportar o desprazer causado pela expressão daquilo que foi reprimido,

sob a égide do princípio do prazer. O que é “reexperimentado” por meio da repetição faria o

Eu experimentar uma sensação desagradável, “no entanto, constitui desprazer de uma espécie

que já consideramos e que não contradiz o princípio do prazer: desprazer para um dos

sistemas e, simultaneamente, satisfação para outro” (p.33).

Conforme se nota, a compulsão à repetição mostrou a Freud que a agressividade não

diz da desintegração do ser vivo, mas da forma ruidosa que ele encontra para se

preservar na cultura. Se há no humano uma obsessão para restituir o equilíbrio, o que

repete é a pulsão de morte, verdade impossível, em uma compulsão que afirma a

ausência de homeostase no vivo (Ferraril, 2006, p.56).

A busca de uma saída saudável para o que se encontra reprimido, de acordo com o

que Freud (1920) apresenta, encontra-se na possibilidade de ser dado um novo destino ao
37

impulso. “A transferência é aqui considerada como um „fragmento da repetição‟. O que se

repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao ser capturado nestas repetições,

toma o lugar da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência” (Garcia-Roza, 1986,

p.23).

A recorrência de atos violentos é facilmente observada nos registros policiais e de

serviços de saúde. Contudo é comum não serem percebidos em seu caráter mais profundo,

como tradução repetitiva, por meio do ato violento, de conteúdos reprimidos da consciência.

Possivelmente, estão alicerçados em impulsos sexuais infantis, cujo destino pulsional se

expressa no atual momento da vida do sujeito. E ainda mais, em geral as atenções estão

voltadas para o agressor e, até, para sua repetição de atos violentos. O que quase nunca se

escuta dizer refere-se à compulsão à repetição da violência por parte daquele que sofre a

ação, a vítima. Uma reflexão sobre esses aspectos, talvez possa nos indicar possíveis

motivos, de ordem inconsciente, que predispõem ou favorecem que ocorra com um indivíduo

à revitimização. Por meio do processo psicanalítico de escuta e de elaboração, mostra-se uma

possibilidade de identificar situações desse tipo e, assim, possibilitar a criação de condições

que evitem novas atuações, por meio da repetição, de conteúdos reprimidos da consciência.

Garcia-Roza (1986) apresenta a repetição constituindo-se por meio de “máscaras”,

como um “disfarce”. Esse entendimento nos faz compreender que uma máscara encobre

outra máscara, em uma sequência em que não é possível encontrar qual é a primeira. Dessa

maneira, quando a repetição acontece, não estamos diante de uma representação. “(. . .) A

repetição não representa uma coisa, ela „significa‟ algo, ela é em sua essência de natureza

simbólica” (p.44).

Quando nos defrontamos com a recorrência de um ato violento, especialmente quando

estamos diante de um sujeito revitimizado, agora podemos pensar sobre o que é que aí está
38

sendo repetindo. O ato violento que vitimiza estaria aqui como uma máscara que

simbolicamente encobre algo mais profundo, algo que se encontra erotizado.

Aquilo que a psicanálise nos fala é dessa repetição interminável, desse jogo amoroso

que constitui a ligação de Eros com um passado reencontrado. O que se repete aqui é

o sexual, ou melhor, a repetição é constituinte sexual (Garcia-Roza, 1986, pp.44 e

45).

Freud (1920) fala de um “caráter instintual” para as situações em que uma compulsão

à repetição se apresenta. Esses momentos estariam localizados nas primeiras atividades da

vida mental infantil e também se fariam presentes durante o tratamento psicanalítico. É certo

que um evento, ao acontecer pela primeira vez, causa um impacto diferenciado. Podemos

então nos questionar sobre o motivo pelo qual a repetição acontece, pois perderia

gradativamente sua capacidade de impressionar, de possibilitar uma descarga prazerosa da

energia pulsional. “Nada disso contradiz o princípio de prazer: a repetição, a reexperiência de

algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer” (p.53).

Garcia-Roza (1986) descreve a repetição como “(. . .) o ato pelo qual a pulsão é

presentificada mas, ao mesmo tempo, o ato pelo qual ela permanece oculta” (p.52). De

alguma forma, o que está se repetindo tem a ver com o que Freud chama de “experiência

primária”, apesar de que ao longo de seu trabalho, ele tenha abandonado a ideia de que

existiria uma situação traumática na origem dos sintomas neuróticos. Ficou apenas a

“experiência primária” enquanto “(. . .) o momento de instauração de uma experiência

diferencial não apenas quantitativa como também qualitativa: a do prazer-desprazer” (p.47).

Dessa experiência primária do encontro amoroso mãe-filho, da relação prazer-desprazer e da

ação do recalcamento primário se constitui a pulsão sexual.

O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação completa, que

consistiria na repetição de uma experiência primária de satisfação. Formações


39

reativas e substitutivas, bem como sublimações, não bastarão para remover a tensão

persistente do instinto reprimido, sendo que a diferença de quantidade entre o prazer

da satisfação que é „exigida‟ e a que é realmente „conseguida‟, é que fornece o fator

impulsionador (. . .) (Freud, 1920, p.60).

Ao nos defrontarmos com a repetição de atos violentos, nos quais estão envolvidos o

autor da ação e a vítima, poderemos agora identificar que é uma “máscara”, uma de uma

cadeia. Saberemos também que se trata de uma pulsão de origem sexual, originada de uma

primitiva relação de prazer-desprazer. “O que sem dúvida alguma é marcado pela repetição é

Eros, a pulsão sexual. Assim como o nosso primeiro encontro amoroso é já uma repetição,

repetição de encontros que não foram vividos por nós, os demais encontros são também

repetições” (Garcia-Roza, 1986, p.51).

Na relação terapêutica, por meio da transferência que se estabelece, é possível

identificar o lugar que o analisando está ocupando em um determinado momento e as pulsões

que se apresentam. É um repetir terapêutico, se assim se pode dizer, que, por meio da

interpretação, poderá vir a promover a elaboração de desejos reprimidos e ser dado um

destino possível a essa descarga de energia psíquica. Esse novo caminho para a descarga

pulsional, que podemos entender como mais saudável, interromperia a cadeia de repetição da

violência, tanto para quem pratica o ato violento quanto para quem é uma recorrente vítima.
40

Capítulo 3: Relato de uma experiência de estágio.

Esta experiência de estágio foi realizada em uma instituição pública localizada no

Distrito Federal, que acolhe pessoas vítimas de violência, de qualquer gênero e idade e

promove a adoção de medidas preventivas contra acidentes domésticos. As atividades são

realizadas por meio de uma equipe multidisciplinar composta por médicos, psicólogos,

enfermeiros, assistentes sociais, advogados e técnicos da área de saúde.

A participação nas atividades promovidas nesse local de estágio surpreendeu por

possibilitar o contato com uma realidade pouco discutida durante o curso de Psicologia, que é

a violência psicológica, física e sexual. Esse contexto evidenciou que o profissional da

psicologia precisa estar em constante formação, pois somente as teorias psicológicas não

abrangem totalmente um universo que envolve diversas áreas: a social, a jurídica e a médica.

Foi o que aconteceu, pois além do atendimento psicológico, muitos casos necessitavam de

encaminhamento médico, social e mesmo jurídico. Frente a essa realidade, fez-se necessário

estudar a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o IV livro da

constituição de Direito de Família.

Os exemplos de violência que são citados no desenvolvimento dos tópicos a seguir

terão as identidades das vítimas preservadas, por meio do uso genérico do nome “Maria”,

acompanhado de um segundo nome fictício, de modo a possibilitar a adequada e necessária

diferenciação, apenas para fins reflexivos.

3.1. Conhecendo a violência e suas vítimas sob a perspectiva da saúde pública

O fato de realizar esta experiência de estágio, atuando nesta temática da violência, foi

possível pela existência em algumas localidades do Brasil de serviços estruturados de

acolhida às vítimas de violência de qualquer natureza. Nesses espaços encontram-se

disponíveis serviços próprios ao atendimento e encaminhamento de providências relacionadas

à recuperação da saúde física e emocional, à proteção da integridade física e psicológica, ao


41

cuidado dos aspectos sociais e ao encaminhamento de medidas legais previstas na legislação

vigente no país.

Tudo isso encontra respaldo legal na Constituição Federal, em seu artigo 227, onde se

lê:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Constituição Federal do

Brasil. 1988. Texto consolidado até a Emenda Constitucional nº 57 de 18 de dezembro

de 2008)

Em decorrência do que está expresso na Constituição, o Ministério da Saúde elaborou

em 1999, a “Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da

Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”9, onde são lançadas as bases operacionais

da política de atendimento a mulheres e adolescentes que sofreram violência sexual,

proporcionando então que o Sistema Único de Saúde (SUS) desenvolva os serviços de

atendimento às vítimas de violência e redes de referência. Dessa forma, esse espaço encontra-

se constituído de modo a acolher a pessoa que vem em busca de auxílio e a própria vítima da

violência. Após ser realizado o atendimento da ocorrência, são realizados todos os

encaminhamentos necessários e tomadas as providências cabíveis naquele momento.

A atividade, para ter efetividade, necessita do apoio de órgãos do governo e de

serviços públicos. No Distrito Federal, temos: a Delegacia de Proteção à Criança e ao

9
Ministério da Saúde. Norma técnica prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra
mulheres e adolescentes. Brasília: Ministério da Saúde; 1999. Disponível em http://portal.saude.gov.br. Acesso
em15 jan. 2009.
42

Adolescente − DPCA, a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher − DEAM,

Conselhos Tutelares, a Vara da Infância de da Juventude − VIJ, o Adolescentro, Centros de

Referência Especializados de Assistência Social − CREAS, Casa Abrigo, Promotorias de

Justiça, dentre outros, que trabalham com atendimento e proteção às vítimas de violência.

A Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal editou, no final do ano de 2008,

um “Manual para Atendimento às Vítimas de Violência na Rede de Saúde Pública no DF”,

onde podemos encontrar a afirmação de que “a palavra „violência‟ tem uma conotação

negativa porque é associada a um ato moralmente reprovável, de tal forma que quem comete

intencionalmente esse tipo de ato é obrigado a justificá-lo” (p.7). Assim sendo, existem

algumas condições para que se possa caracterizar um ato como sendo violento, são elas:

“causar um dano a terceiros, usar a força (física ou psíquica), ser intencional ou ir contra a

livre e espontânea vontade de quem é objeto do dano” (p.7).

Dentre os tipos de atos violentos que podem ser praticados, de acordo com o que o

Manual aborda dos que são mais frequentes no local onde realizei a experiência de estágio,

destacam-se os seguintes: “violência física, psicológica, sexual e negligência” (pp.9, 10 e

11).

A mortalidade e morbidade por violência têm aumentado em todo o país. Situa-se

como a segunda causa de morte em nossa população. Em média, as causas externas

provocam 120.000 mortes por ano no Brasil. Diante disso, a violência caracteriza-se

como sério problema de Saúde Pública, pois causa forte impacto na saúde da

população brasileira (Manual para Atendimento às Vítimas de Violência na Rede de

Saúde Pública no DF, 2008, p.7).

Tendo em vista essa realidade que se torna cada vez mais comum em todas as

comunidades, nas diferentes culturas e países do mundo, passa-se a exigir a intervenção do

Estado, como forma de minimizar os efeitos dos atos violentos praticados e para promover a
43

sua prevenção. A exigência dessa atuação também procede da sociedade civil, por meio de

diversos organismos.

É importante salientar que cada vez mais se configura um entendimento comum e

contrário a todo e qualquer tipo de ato violento, e mesmo, ao que possa servir de estímulo à

violência. “Logo, a violência não é objeto restrito e específico da área da saúde, mas está

intrinsecamente ligado a ela, na medida em que esse setor participa do conjunto das questões

e relações da sociedade” (Minayo e Souza, 1997, p.520).

O Distrito Federal, bem como outras capitais brasileiras, enfrenta uma alta incidência

de violência, conforme pude observar durante o período em que realizei o estágio. As vítimas

mais comuns são as mulheres, as crianças e os adolescentes, e os tipos de violência com

maior ocorrência são a física e a sexual. É importante salientar que esses tipos de atos

violentos não acontecem isoladamente, mas geralmente são acompanhados por violência

psicológica e muitas vezes em decorrência da negligência dos cuidadores, o que também é

classificado, por alguns estudiosos do tema, como um tipo de violência.

3.2. Um espaço social de acolhida e atuação multidisciplinar para os casos de

violência.

A realidade da violência exige que sejam instituídos espaços sociais públicos para a

acolhida de denúncias desse tipo de ocorrência. É importante um espaço diferenciado para

acolher as vítimas e suas famílias e, também, para a realização de intervenções terapêuticas,

inclusive junto aos autores dos atos violentos que aceitam participar de atividades de

recuperação ou de reeducação.

O estágio em psicologia que realizei foi em um desses espaços, estando entre minhas

primeiras atividades realizar a acolhida às pessoas que procuravam esse serviço público. Pude

perceber, imediatamente, que o simples ato de acolher a pessoa que chegava e ouvi-la relatar a

situação de violência por ela vivenciada ou que vitimara alguém de sua família já se
44

configurava em uma importante atuação, que oferecia segurança, proteção e a possibilidade

de uma alternativa para a situação de sofrimento que estava sendo vivenciada.

Um exemplo da importância desse primeiro momento encontra-se evidenciado no que

experimentei durante o estágio que realizei. Certo dia uma das psicólogas que trabalha na

instituição, solicitou que eu acolhesse uma mulher que acabara de chegar. Ela demonstrava

um grande sofrimento e preocupação para com sua mãe, Maria das Dores. Ao relatar o que

estava acontecendo, disse que o pai sempre foi muito violento e que há mais de trinta e cinco

anos ele agride fisicamente sua mãe e faz ameaças com arma de fogo. Contou que seus pais,

atualmente moram em uma chácara e seus irmãos moram na cidade. Relatou que havia

marcado uma consulta médica para sua mãe e no dia marcado foi buscá-la; chegando à

chácara não a encontrou. Andou em volta da casa e não viu ninguém. Passado um tempo viu

seu pai sair do meio do mato. Ela, com medo, saiu correndo e ouviu o pai disparar a arma para

o alto. Ela conseguiu se esconder e ligar para um dos irmãos ir até lá com a polícia. Após foi

até a casa de um vizinho e lá encontrou sua mãe com a roupa rasgada, pois ela havia se

escondido em uma “grota”. Quando a polícia chegou seu pai fugiu. Desde então a mãe está na

cidade com os filhos. Afirmou, finalmente, que sua mãe desejava ser atendida ali, pois tinha

ouvido falar sobre o trabalho que a Instituição fazia em relação à violência. Após ouvi-la

atentamente, perguntei-lhe se conhecia a Lei Maria da Penha, e ela respondeu que não. Falei

rapidamente sobre a Lei e marquei um horário para atender a ela e a sua mãe.

Após realizar a acolhida, a ocorrência é registrada, e o caso é levado à equipe

multidisciplinar que passa a ocupar-se dele. Cada profissional trata do aspecto específico que

lhe cabe, mas igualmente garante a necessária integração entre todos os procedimentos a

serem adotados.

Sublinhamos que a reflexão sobre a interdisciplinaridade e multiprofissionalidade no

campo da práxis violência e saúde não é uma imposição externa e sim exigência
45

epistemológica intrínseca e essencial. (. . .) Ao se lidar com o tema da violência, só se

alcançará legitimidade através da argumentação num coro polifônico e dialógico

(Minayo e Souza,1997, p.528).

Uma das psicólogas do local pediu para que atendêssemos juntas a Sra. Maria das

Dores e sua filha que nos havia procurado na semana anterior. Maria das Dores chegou ao

atendimento bastante fragilizada e falou sobre o episódio de violência já relatado por sua

filha. Ela disse que necessita de ajuda judicial, mas que no momento não sentia coragem para

tomar nenhuma atitude. A psicóloga da instituição disse que, no momento, o mais importante

é que ela pudesse se fortalecer e propôs que, posteriormente, ela buscasse atendimento com a

advogada da equipe. Propôs também uma consulta com um psiquiatra para avaliar a

possibilidade de uma depressão. Maria das Dores, apesar de sua fragilidade, disse que

desejava fazer conforme as orientações que estava recebendo. Assim sendo, os

encaminhamentos foram realizados, e ficou marcado seu retorno na próxima semana para

atendimento psicológico.

A importância desse espaço de acolhida e o apoio da atuação de uma equipe

multidisciplinar mostra-se muito eficiente e produtivo para o encaminhamento de

providências para o atendimento das situações de violência.

O enfrentamento da violência intrafamiliar e de gênero começa com a decisão e a

determinação das mulheres de se reapropriar de suas vidas e a de seus filhos. O

primeiro passo para sair da situação de violência (. . .) ocorre quando as mulheres

decidem revelar essa situação a uma pessoa fora do âmbito doméstico (Presser,

Meneghel e Hennington, 2008, p.131) .

A sequência dada ao atendimento psicológico de Maria das Dores demonstra que, após

ser dado o primeiro passo, que se configura no ato de relatar a violência sofrida, torna-se

possível, apesar das dificuldades, retomar a própria vida e começar a escrevê-la de modo
46

diferente daquele até então vivido. Ela relata que se sente muito confusa e fragilizada. Não

consegue dormir direito – ela está tomando antidepressivo há apenas um dia − diz que espera

que, à medida que o tempo passa, ela vai conseguir se organizar. Diz que às vezes pensa em

morrer, porém a lembrança dos netos, que lhe dão muito afeto, a fazem mudar de pensamento.

Afirma que, apesar das dificuldades, continua a amar o marido, mas tem certeza que esse

sentimento é só por parte dela. Relata que gosta de ir à terapia, pois “essas coisas só pode

dizer nesse espaço” (sic).

Na sequência dos atendimentos, Maria das Dores passa a afirmar estar mais animada.

Diz que já consegue sair para passear e fazer compras. Relata, também, que desde jovem

(doze anos) seus namorados sempre a ameaçavam, e ela dizia que nunca queria casar com um

homem violento. Contudo, não foi o que ocorreu, pois seu marido foi sempre muito violento.

Conta que ele costumava dizer que “o inocente tem que pagar pelo pecador”. Relatou também

que ele voltou a se aproximar indo até a casa onde ela está, mas que não fez ameaças, só

entrou, andou pelos cômodos e foi embora.

Um aspecto que muito chamou a minha a atenção, foi uma afirmação feita a seguir por

ela, em que diz querer saber o que ele vai decidir fazer em relação à situação deles. Percebe-

se claramente sua submissão, evidência de uma permissão inconsciente que deu ao marido o

direito de decidir tudo por ela, chegando ao ponto de não ser mais capaz de possuir uma

opinião própria sobre esse assunto. Diante dessa constatação, perguntei o que ela pensava

fazer diante da situação. Ela me respondeu que nunca havia pensado nisso.

3.3. A repetição da violência e a revitimização.

Algumas ocorrências de violência se repetem frequentemente, contudo passam a

chamar nossa atenção, quando ocorrem com uma mesma vítima, isto é, o sujeito sofre um

mesmo tipo de violência, duas ou mais vezes e em situações muito semelhantes. Frente a

situações assim, pude presenciar, em minha experiência de estágio, profissionais acostumados


47

àquele ambiente de atendimento público e às situações de violência afirmarem com surpresa:

“eu não acredito, de novo com ela...Eu gostaria de entender o porquê disso”.

Como já vimos anteriormente, existe um encadeamento de “máscaras” que se sucedem

e que expressam um determinado destino pulsional e, como tal, podem ligar-se a uma

determinada estruturação do desejo (Garcia-Roza, 1986, p.44). Os autores Sarti, Barbosa e

Suarez (2006) descrevem um aspecto muito importante nas ocorrências de violência urbana.

Apesar de a referência estar relacionada à incidência de homicídios entre jovens do sexo

masculino, traz à luz a questão de que pense igualmente na vítima e no agressor, enquanto

“construções simbólicas” (p.169). É sob essa ótica que se abre uma possibilidade de

entendimento sobre a recorrência da violência e a revitimização.

Um caso por mim atendido no estágio possibilitará refletirmos sobre o que estamos

tratando aqui. Uma das psicólogas responsáveis pelo local onde realizava o estágio

encaminhou para que eu atendesse Maria Madalena, uma jovem de 15 anos, que no fim de

semana fora vítima de estupro por um rapaz de 28 anos. Ela solicitou que eu e a assistente

social a acompanhássemos até a DEAM para ela prestar depoimento, pois, como o fato

ocorreu no final de semana quando a DPCA não possui plantão, a ocorrência foi registrada

naquela delegacia. Os momentos vividos na delegacia foram de muita tensão, pois lá se

encontravam sua responsável e a dona da loja em que Maria Madalena trabalhava. Foi essa

mulher quem apresentou o rapaz que a estuprou. A adolescente ficou muito nervosa ao vê-la e

disse que essa senhora é namorada de um amigo desse rapaz, e que ao mesmo tempo havia

marcado encontro com o rapaz de 28 anos. Ela teria solicitado que Maria Madalena

“quebrasse um galho”, para que os dois rapazes não se encontrarem em sua casa, e que

deveria simular ser namorada do rapaz de 28 anos. Disse que “ninguém da família acredita

nela” e afirmou: “tá vendo só, minha responsável, ao invés de estar comigo, tá com aquela
48

mulher e acreditando em tudo o que ela diz. Ninguém acredita em mim (. . .) é sempre assim”

(sic).

O depoimento foi muito conturbado, devido à postura do agente policial que estava

relatando os fatos, tendo sido interrompido, a nosso pedido, por conta do constrangimento a

que Maria Madalena estava sendo submetida. Essa ocorrência também me levou a refletir

sobre a revitimização. Apesar de estar sob proteção do Estado, Maria Madalena estava sendo

exposta a situações que, de alguma forma, faziam-na novamente vítima de um ato violento.

Maria Madalena foi chamada a depor. Quem nos recebeu foi um policial.

Primeiramente ele esclareceu a importância de ela dizer a verdade, pois o acusado de estupro

poderia ser condenado a uma pena que varia entre seis a doze anos de prisão; ele também

acrescentou que só poderia ouvi-la porque ela estava acompanhada por duas pessoas maior de

idade. Assim que iniciou o depoimento, o policial a interrompeu. Ele disse: “a história que

você está me contando não bate com o depoimento da dona da loja, do rapaz acusado de

estupro, do dono do hotel, dos vizinhos... você diz que conheceu o rapaz no dia e eles dizem

que você estava namorando...” (sic). Maria Madalena começou a chorar e disse que era

mentira. Nesse momento, fomos obrigadas a intervir e dissemos ao policial que ele não estava

permitindo que Maria Madalena falasse. Eu lhe disse que ele estava emitindo opinião formada

pelos depoimentos já colhidos. Afirmei que ela deveria falar sem ser interrompida e que no

momento o papel dele era só o de ouvir e registrar o depoimento. Ele concordou e disse que

não iria mais interrompê-la. Perguntou se Maria Madalena estava tomando medicação e

solicitou o nome. Ela mostrou uma cartela de fluoxetina com quinze comprimidos, dos quais

faltavam três. O policial então procurou o laudo do IML e começou a ler. Ele leu a parte que

dizia que no exame realizado não foram encontrados resíduos vaginais. Ela começou a dizer

que não era verdade, que estava errado (. . .) O policial percebeu, então, que estava lendo o
49

laudo errado – era o laudo de outro estupro sofrido por Maria Madalena no mês de março

daquele mesmo ano.

Uma coincidência apenas? Sou levada a pensar que não, pois existem muitas situações

que estão se repetindo no caso Maria Madalena, mesmo porque ela é uma dentre tantas outras

“Marias” com que nos deparamos com a recorrência da violência, e até de um mesmo tipo de

ato violento. E, assim, retorna a pergunta sobre o que favorece a revitimização.

Estamos diante do que a bibliografia define como sendo “violência de gênero”, isto é,

“(. . .) a ocorrência de maus tratos cometidos contra a mulher e a violação de seus direitos”

(p.205). Gomes (2006) baseado nas idéias de Bordieu10, segue falando sobre as questões

relacionadas à organização social que acaba por reforçar a possibilidade da existência de uma

dominação masculina. E, ainda, que “a partir dessa construção social, a incorporação da

dominação ocorre ou é reforçada pela violência simbólica (. . .)”. A visão aqui apresentada

“(. . .) vai além da consciência e da vontade de quem é por ela atingido, mas também por uma

relação de cumplicidade”. Essa cumplicidade, por servir de modos diferentes, poderá tanto

“(. . . ) contribuir para sua perpetuação, quanto para a sua transformação”. (Gomes, 2006 in

Minayo e Souza, p.207)

Parece-me que essa “violência simbólica” de alguma forma justifica ao agressor seus

atos e também serve à vítima conformar-se com seu “trágico destino”. No caso de Maria

Madalena, a violência de gênero se repete em momentos e situações diferentes. Diretamente,

temos a ocorrência de violência sexual, vista também presente na conduta agressiva e

preconceituosa do policial que colhe seu depoimento. É um homem que, do alto de sua

posição funcional, junto a uma instituição policial, já inicia seu trabalho, prevenindo-a de que

seu depoimento poderá “acabar com a vida de um homem de 28 anos”... Será que lhe ocorreu

10
Bourdieu, P. A. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertand Brasil.
50

pensar que a atitude do homem de 28 anos, da mesma forma, pode ter acabado com a vida

desta jovem de 15 anos?

Outro fato, que chama a atenção por estar se repetindo, refere-se ao fato de o policial

explicitar que não está acreditando no depoimento de Maria Madalena, citando os fatos, a

partir de depoimentos de outras pessoas, as quais também poderiam estar faltando com a

verdade. Isso me lembra o que Maria Madalena nos disse na Delegacia, após encontrar com

sua responsável: “ninguém acredita em mim”. Por que ninguém pode acreditar no que diz

Maria Madalena? Por que ela tem que ser vítima da violência real do estupro e da simbólica

da descrença? Que tipo de gozo essa situação está trazendo aos seus atores?

Se ampliarmos a reflexão sobre esse tipo de recorrência e, especificamente, sobre o

que ocorre com Maria Madalena, poderíamos retroceder às relações primordiais estabelecidas

entre o bebê e sua mãe, momentos em que se instauram nossos códigos básicos de

relacionamento. Não podemos esquecer que, nessa relação mãe-filho, já existe algum tipo de

violência, apesar de a podermos considerar até positiva, na sua condição de estruturante do

Eu. Contudo é a partir desse modelo que impele o sujeito a comportar-se como não deseja, de

modo a que esteja garantido algum nível de satisfação, que são estabelecidos os padrões de

comportamentos que tenderemos a repetir, mesmo que de modo sofisticado. Garcia-Roza

(1986) afirma “que sem dúvida alguma é marcado pela repetição é Eros, a pulsão sexual”.

Esse entendimento reforça a ideia de que existe uma atualização de nossas experiências

primordiais, nas situações e ocorrências a que estamos sujeitos na atualidade. “Assim como o

nosso primeiro encontro amoroso é já uma repetição, repetição de encontros que não foram

vividos por nós, os demais encontros são também repetições”. E Freud deixa-nos claro que

essa repetição é de cunho sexual. Isto é, refere-se a nossa forma de amar e, principalmente, de

sermos amados ou ainda, de nos fazermos amar (Garcia-Roza, 1986, p.51).


51

A repetição da violência é, em si mesma, uma ocorrência intrigante. Por que um ato

violento ocorre mais de uma vez, em condições semelhantes, com uma mesma vítima? O que

de simbólico dessa recorrência se pode apreender? Como estamos falando de simbolismo,

talvez auxilie nossa compreensão recorrermos a uma figura mítica que muito se aplica a esta

reflexão. O mito grego de “Sísifo”, em sua pena eterna de rolar um bloco de mármore

montanha acima, vê-lo rolar para baixo e ter que repetir para sempre esse mesmo ato,

materializa, de certa forma, a repetição pulsional. Existe uma quantidade de energia,

relacionada a uma situação afetiva primordial, que necessita receber um destino. Já existe um

destino que foi traçado e que deverá ser seguido e o será, a não ser que um novo possa se

estabelecer, e isso poderia se dar por meio da intervenção terapêutica. Dessa forma, a

utilização da figura mítica de Sísifo mostra-se muito adequada pois, como apresenta Garcia-

Roza (1986), “a análise é interminável, porque somos remetidos a esse jogo interminável das

repetições” (p.46).

3.4. A importância da escuta na intervenção psicológica.

Em uma instituição pública que realiza o atendimento às pessoas vítimas de violência,

é um procedimento usual escutar o relato da ocorrência, bem como da história desse sujeito,

mesmo que de modo breve e objetivo. Essa escuta efetivamente se dá, contudo, em meio aos

ruídos do ambiente, que estão relacionados ao grande volume de pessoas a serem acolhidas,

aos procedimentos legais a serem efetivados. Existem também as limitações físicas impostas

pelo local onde as atividades são realizadas, e que podem comprometer significativamente o

“ouvir em profundidade” o que está sendo dito por aquela vítima de um ato violento.

Na experiência de estágio que realizei, deparei-me em muitos momentos com essa

realidade e pude perceber que existiam muitas coisas sendo ditas pelos sujeitos que

procuravam atendimento, mas que não era possível uma escuta ativa do que estava sendo dito,

daquilo que estava além dos fatos estritamente relacionados à violência sofrida. Percebi que
52

essa escuta talvez possibilitasse que fossem encontradas respostas para perguntas como: “por

que é que essa pessoa sempre é vítima desse mesmo ato violento?”

Tenho claro que a proposta de atuação em psicologia existente no local onde realizei

meu estágio está diretamente vinculada às condições impostas pela realidade. Apesar disso,

observo que existem “casos” que necessitam de uma escuta diferenciada, que considere

aspectos próprios da subjetividade dos sujeitos, relacionados às suas estruturas afetivas e que

interferem e, talvez, até possam favorecer a revitimização. Dessa maneira, a possibilidade de

falar sobre o que se está vivendo, sobre as próprias dores e a história de vida, permite ao

sujeito dar a conhecer-se e, por meio da relação terapêutica, reconhecer-se.

Bucher (2005) apresenta a psicoterapia como uma relação em que não existem

instrumentos ou agentes que possam atuar como mediadores, que possam intermediar o

relacionamento. “Seu único „meio‟ é o ambiente humano em si, numa configuração muito

especial que é aquela do diálogo humano, da „conversa‟, onde não intervêm outras forças

além da linguagem” (p.27).

Realizei o acolhimento a uma jovem que aqui chamarei de Maria Angélica. Ela estava

muito agitada e apresentava uma grave confusão mental. Parei para ouvir seu relato e pude

perceber que, por meio desse discurso, estava diante de uma pessoa com um possível

sofrimento psíquico grave. Em certo momento, ao ver uma equipe de televisão que passava

pelo local, agitou-se ainda mais e disse: “eles estão aqui para me filmar” (sic). Perguntei-lhe o

motivo pelo qual eles desejavam filmá-la, e ela afirmou que era porque queriam mostrar na

televisão como ela não era uma boa mãe. Permaneci ouvindo seu relato que, mesmo

permeado de fatos que, visivelmente, não condiziam com a realidade, identificavam focos de

grande sofrimento e sinalizavam o seu particular funcionamento psíquico. Com base nessas

informações, obtidas por meio de uma escuta diferenciada, foi possível estruturar um tipo de
53

intervenção terapêutica da equipe multidisciplinar, que possibilitou garantir condições de

integridade física e o atendimento médico necessário naquele momento.

O psicanalista Contardo Calligaris (2008), ao falar sobre a vocação do psicoterapeuta,

aponta algumas características de caráter que julga importantes, e duas delas me parecem

indispensáveis à escuta diferenciada na intervenção psicológica. A primeira refere-se a “um

gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes que

sejam de você” (p.10). E a segunda, a meu ver complementa perfeitamente a primeira,

especialmente para quem atua, como eu o fiz, em uma instituição pública que acolhe vítimas

de atos violentos: “uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o

mínimo possível de preconceito” (Calligaris, 2008, p.12).

A atuação clínica do psicólogo exige uma postura de acolhida incondicional a esse

sujeito que vem para falar de suas dores e sofrimentos. Nesse sentido, o acolhimento

compreende, também, ouvir de modo diferenciado o relato que é feito. Oliveira e Fonseca,

(2006) destacam a dificuldade que mulheres que sofreram violência sexual, ou mesmo que

presenciaram situações de violência contra os filhos, para relatarem suas experiências. Muitas

vezes, mulheres identificadas como poliqueixosas, ao serem ouvidas com uma atenção

diferenciada, sentiram-se encorajadas a relatar as violências sexuais de que foram vítimas.

“Percebia algo oculto, não dito, por parte de algumas mulheres, porém, não conseguia

descobrir de que se tratava” (p.609), relatou um dos profissionais pesquisados. E conta, ainda,

que buscou um profissional mais experiente para auxiliá-lo. Com a ajuda deste, passou

a “(. . .) dar mais tempo para as mulheres se expressarem. A partir daí foi estabelecendo

articulações entre alguns elementos trazidos pelas mulheres, relacionados às diversas queixas

diversas (sic) e começou exercitar o ato da escuta” (p.609).

A possibilidade de ser ouvido em sua dor confere ao sujeito acesso a um lugar social,

onde sua existência é considerada, tem importância e merece atenção e cuidados. No caso das
54

vítimas de violência, observa-se que a escuta diferenciada, ativa e empática, restitui, de certa

forma, a autoestima. O fato de relatar o ato violento sofrido mostra-se como o início de uma

mudança de papéis, levando o sujeito da posição passiva de vítima, a de autor de uma

denúncia, uma manifestação de reação que pode levá-lo a reelaborar a própria história. E tal

movimento pessoal provoca efeito em todo um sistema social, interferindo sadiamente no

meio em que esse sujeito interage.

De acordo com Bucher (2005), a intervenção psicoterápica diferencia-se da relação

terapêutica geral, por poder contar com a participação ativa do paciente. “Psicoterapia se

refere, portanto, a um modo muito particular de encarar o ser humano e, por conseguinte, os

processos de interação terapêutica, possibilitados entre duas (ou mais) pessoas pela mera ação

da fala” (p.27) . Segue apresentando essa “interação terapêutica”, como um momento de

“(. . .) atos e experiências recíprocas de compreensão, interpretação e significância

vivencial (. . .)” (p.39).

O falar e ser ouvido instaura uma relação que torna possível a tradução, por meio de

palavras, de sentimentos e, quem sabe até, de uma nova dinâmica de desejo desconhecido do

Eu. Se algo existe, possui uma quantidade de energia investida em si e interfere na vida do

sujeito, passará pelo processo de simbolização, a possibilidade de elaboração e de

redirecionamento desse impulso. Garcia-Roza (1986) diz que “é a palavra que cria o passado

e o futuro” e ainda considera que “(. . .) é a palavra que permite a dois sujeitos o

reconhecimento, não apenas um do outro, mas também de ambos em relação ao mesmo

objeto” (p.122). Essa concepção traz em si uma forte crença no poder da palavra, como aquela

que, ao nominar alguma coisa ou algum sentimento, liberta-nos de nossa própria

subjetividade. Acrescenta Garcia-Roza, (1986): “No homem, a palavra desprende-se da coisa

e faz com que as próprias coisas formem um sistema de signos/significantes que transcende

inteiramente a ordem natural” (p.123).


55

A importância da escuta diferenciada também foi por mim percebida em seus efeitos

terapêuticos, no caso de Maria das Dores. Após alguns encontros, no qual trouxe suas

dificuldades com o marido e sua total sujeição a ele, a ponto de não conseguir mais identificar

os próprios desejos e vontades, começa a perceber-se novamente como sujeito. Ela disse que

recebeu a visita do irmão que a convidou para passar uns tempos em outra cidade. Disse que

estava decidida a ir. Maria das Dores disse também que está com vontade de começar a fazer

alguma coisa. Indaguei o que ela gostaria de fazer. Ela prontamente respondeu que faria

“qualquer coisa”. Pedi como ela se chamava e ela disse que seu nome era Maria das Dores.

Questionei se o seu nome era “qualquer coisa”, ela então começou a falar que, quando estava

com o marido, era “qualquer coisa”, relembrou muitos momentos de sofrimento... após disse

não querer mais ser “qualquer coisa”.

Esse movimento, que podemos observar na postura de Maria das Dores perante a

vida, demonstra a importância que a relação terapêutica seja, conforme Bucher (2005),

“(. . .) num autêntico encontro de comunicação existencial, numa interação profunda que

suscite ressonâncias naquele nível que, apesar de todas as individualidades e temáticas

pessoais, compartilhamos todos (. . .)” (p.40). Isso fica claramente descrito no que afirmou

Maria das Dores, em um dos atendimentos realizados. Disse que percebe que aos poucos “está

se abrindo”, que parecia uma ostra, fechada e com medo, porém está permitindo que o brilho

da pérola que estava escondida comece a surgir. E falou ainda: “quero transformar a pérola

em uma joia bem brilhante” (sic).

3.5. O “recomeçar a vida” das vítimas de violência.

Em geral, as pessoas que são vítimas de algum ato violento, principalmente se este

constitui-se em um fato isolado em suas vidas, depois de tomadas as medidas protetivas


56

previstas na Lei Maria da Penha11 e de um acompanhamento médico e psicológico inicial,

conseguem retomar suas vidas, mesmo que levando consigo as marcas da violência sofrida.

Existem outras situações em que o sujeito fica como que bloqueado, inerte, não

conseguindo forças para dar sequência à própria vida. Pude acompanhar que esses casos estão

relacionados àquelas situações de violência que apresentam algum tipo de recorrência, isto é,

que não se constituem em ato isolado do qual aquela pessoa foi vítima. São casos de violência

de gênero continuado, praticados por cônjuges ou companheiros, por genitores ou

responsáveis por menores de idade ou, ainda, situações de recorrência da violência em um

mesmo sujeito, por pessoas que não detêm relação de parentesco, mas que se inserem em uma

mesma cena que se repete continuamente.

Mezan (1991), observa que “o que se repete é o doloroso” e diz que “(. . .) contra a

repetição não há defesa, já que o ego torna necessária, por sua própria estratégia, a expressão

do reprimido por esta via” (p.255). Para entendermos isso, temos que ter claro que “(. . .) o

ego reprime o que é desagradável para ele, mas prazeroso do ponto de vista da pulsão; isto

seria perfeitamente explicável à luz do Princípio do Prazer (. . .)”. Com base nesse

entendimento do dinamismo psíquico, podemos entender o “caráter compulsivo da repetição”.

Podemos então entender que “a repetição está, na verdade, „mais aquém‟ do Princípio do

Prazer” (p.255).

Para o trabalho que é realizado em uma instituição de saúde pública, os casos de

revitimização demandam maior atenção e cuidados. A pessoa não consegue retomar a própria

vida, mas permanece estagnada, ocupando um mesmo lugar, repetindo sempre um mesmo

discurso e sofrendo de forma recorrente as mesmas violências.

Frente a essa realidade, surge um grande desafio ao profissional da Psicologia, que foi

o que vivi em minha experiência de estágio. Exercer uma escuta diferenciada para essas
11
Lei que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível
em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm - 55k. Acesso em 13 de abr. 2009.
57

histórias nas quais acontece a recorrência de atos violentos, de modo a conseguir identificar

quais são os possíveis fatores que a favorecem. Possibilitar uma intervenção terapêutica mais

efetiva, que consiga promover um movimento, um deslocamento desse lugar erotizado,

conforme teoriza a Psicanálise, o de vítima.

Oliveira e Fonseca (2006) também identificaram a necessidade de uma contínua e

adequada capacitação dos profissionais para a realização de uma efetiva intervenção

psicológica. “Os discursos deixaram claro que é preciso um movimento por parte dos

profissionais para sair da impotência e se tornarem novos agentes de mudança social, capazes

de dar uma direção para as mulheres que vivem em situação de violência sexual” (p.610).

É importante estabelecer uma distinção entre os casos em que a violência mostra-se

recorrente. Existem situações familiares que favorecem uma sujeição da vítima ao seu

agressor, e que se diferencia totalmente daquelas situações de repetição, em que o sujeito

vivencia repetidas vezes um mesmo tipo de violência, praticadas por pessoas diferentes em

situações similares. O caso de Maria das Dores, que já abordamos anteriormente, apresenta-

nos uma situação de recorrência de violência de gênero, em que o agressor é o cônjuge. Nessa

situação específica, a intervenção terapêutica, decorrente de uma escuta diferenciada, pôde

identificar que a tendência à sujeição sempre se mostrou presente na vida de Maria das Dores.

O que se estabeleceu na relação com o marido, e que durou muito tempo, apenas foi a

repetição exacerbada de um “deixar-se bater”.

Gomes (2006) traz um entendimento que se mostra muito pertinente à situação

vivenciada por Maria da Dores, ao afirmar que “(. . .) a incorporação da dominação ocorre ou

é reforçada pela violência simbólica, efetivada não só para além da consciência e da vontade

de quem por ela é atingido (. . .)”; segue trazendo um aspecto que neste caso mostra-se

significativo: “(. . .) mas também por uma relação de cumplicidade que tanto pode contribuir

para sua perpetuação como para sua transformação” ( in Minayo e Souza, 2006, p.207).
58

Um das psicólogas responsáveis pelo Serviço de Psicologia da instituição solicitou que

eu realizasse sozinha o atendimento de Maria das Dores, pois ela teria que fazer outro

atendimento emergencial. Maria das Dores já vinha sendo acompanhada há algum tempo. Ela

estava feliz com a presença do irmão. Ele reforçou o apoio a ela e disse que seus irmãos

aguardavam sua visita. Ela disse que pretende ficar um tempo com eles e pensar qual será “o

rumo que vai dar para sua vida”. Relatou que gosta muito de sua família. A partir desse

momento, passou a falar de sua vida quando seus pais estavam vivos. Contou que eles eram

muito amorosos e se davam muito bem. Seus pais morreram no mesmo ano, e ela tinha

dezesseis anos na época. Ela disse que a mãe morreu de tristeza pela morte do marido. Após

esse período, ela foi morar com os tios. Maria das Dores já estava noiva, mas seus tios não

queriam o casamento. Eles alegavam que ela tinha que casar com um primo. Chegaram a

ameaçar seu noivo e a ela com uma arma. Eles não suportaram a pressão da família e

terminaram o noivado.

Costa (2003), ao falar sobre identidade e violência, apresenta um aspecto que auxilia

na compreensão do que aconteceu com Maria das Dores. “A violência traumática seria

produzida pelo acúmulo de excitações que, rompendo a barreira do dispositivo protetor do

ego, desestabiliza a homeostase psíquica por meio da dor ou angústia” (p.121).

Após curto período de tempo, ela conheceu seu atual marido, e em quatro meses eles

casaram. Maria das Dores relembrou o sofrimento que sempre foi a convivência com o

marido, bem como o aperto que sentia na garganta por não conseguir falar com ninguém

sobre o que sentia. Relatou que, com a visita do irmão, pela primeira vez falou sobre o que

sentia. Disse que o aperto que sentia está menor.

Podemos observar que, gradativamente, Maria das Dores consegue verbalizar sobre o

que está acontecendo em sua vida e o faz inicialmente a uma filha, depois aos profissionais do

serviço de psicologia e, após, aos irmãos. É importante lembrar que a escuta diferenciada
59

identificou que a baixa autoestima não era decorrente apenas da sujeição à violência, mas que

tinha uma história mais longa, relacionada, provavelmente, a uma alienação à vontade de

outras pessoas, que bem expressa sua resposta comum, ao ser perguntada sobre sua vontade

em relação a fazer alguma escolha: “qualquer coisa serve” (sic).

Dentre as muitas ocorrências com que tive contato, e mesmo atendi, chamam a

atenção aquelas em que a vítima retorna várias vezes à instituição, por ter sofrido novamente

uma violência e, muitas vezes, em situação muito semelhante. Essas repetições, de acordo

com Garcia-Roza (1986), sugerem a existência de uma espécie de compulsão, “(. . .) que foi a

princípio a única manifestação da pulsão de morte apontada por Freud (. . .)”. Continua

dizendo que “(. . .) encontrava sua justificativa no fato de que contrariava o princípio de

prazer, ou melhor, ela nos remetia para um „além do princípio do prazer‟(. . .) ” na

verdade, “(. . .) nenhuma das instâncias psíquicas parecia se beneficiar dela” (p.54).

Esse tipo de situação de repetição compulsiva, pode ser encontrada no caso de Maria

Madalena, cuja história já iniciamos a contar anteriormente. Conforme relatei, o depoimento

na delegacia DEAM teve que ser interrompido devido à postura adotada pelo policial que

anotava o relato. Eu e a Assistente Social dissemos que a menor não tinha condições

emocionais de prestar depoimento daquela forma. Afirmamos que seria melhor ela ser ouvida

na DPCA, e o policial concordou e nos acompanhou até a saída. Maria Madalena chorava

muito e dizia que queria ir embora e, assim, retornamos à instituição. Nos acontecimentos que

se seguiram a esse momento, é possível perceber a forte atuação da pulsão de morte. Quando

chegamos, Maria Madalena pediu para ir ao banheiro. Eu a acompanhei até a porta e aguardei

do lado de fora. Quando ela saiu começou a dizer que queria morrer. Eu perguntei o motivo

pelo qual ela estava dizendo isso. Ela revelou que havia ingerido toda a cartela de

comprimidos para a depressão. Devido a isso, busquei auxílio, e ela foi encaminhada para a

emergência de um hospital. Maria Madalena se debatia e chorava não deixando a equipe se


60

aproximar. Eu tentei acalmá-la dizendo que as pessoas só iriam se aproximar para realizar um

procedimento médico e que eu estaria com ela o tempo todo. Assim, ela se acalmou. A equipe

realizou a “lavagem estomacal”. Maria Madalena ficou em observação e, como é menor de

idade, tentamos encontrar um familiar para acompanhá-la durante a noite. Contudo, ninguém

da família concordou em ficar com ela. Frente a essa situação e ao risco que significava deixá-

la sozinha, uma das psicólogas da instituição permaneceu com Maria Madalena naquela noite.

No dia seguinte foi solicitada a abertura de pasta especial na Vara da Infância e Juventude,

bem como a urgência de uma casa abrigo.

Uma situação como a de Maria Madalena traz, mais uma vez, a pergunta sobre o que é

que está sendo atualizado e repetido em cada episódio de violência que é por ela vivido.

“(. . .) A colocação em evidência da compulsão de repetição introduz o problema de saber a

que finalidade ela obedece” (Mezan, 1991, p.255). Somente uma escuta diferenciada poderá

oportunizar um entendimento dinâmico profundo do que existe na estrutura de Maria

Madalena, possibilitando que sejam promovidas intervenções terapêuticas que lhe permitam

retomar a própria vida, apropriando-se de uma compreensão a respeito dos próprios impulsos.

De acordo com esse autor, o organismo para sobreviver frente a uma grande quantidade de

excitação psíquica, necessita encontrar uma forma de descarga e o faz por meio da repetição,

o que guarda total coerência com o Princípio do Prazer, postulado por Freud. “Repetir é

procurar ganhar o controle da situação, e também preparar o indivíduo para resistir melhor a

traumas futuros, dotando-o na capacidade de desenvolver angústia e desta forma estar

prevenido quando eles ocorrerem” (p.256).

Frente à realidade vivida por Maria Madalena, o “recomeçar a própria vida” poderá

estar relacionado à criação de uma estrutura de apoio, que lhe ofereça uma sustentação

familiar adequada, de modo que possa surgir um novo destino para a pulsão. Possivelmente,

será também necessário um suporte psicoterápico individual, para que ela possa saber mais a
61

respeito de seu próprio desejo, podendo evitar situações que a revitimizem. Tal qual acontece

nos casos de delinquência, conforme nos apresenta Costa (2003), os fatos que ocorrem com

Maria Madalena “tampouco podem ser interpretados como simples provocações masoquistas,

produtos de uma qualquer culpa inconsciente” (p.133). Sua postura me leva a imaginar que,

na verdade, ela está “exigindo da realidade o que lhe foi extorquido pelo ambiente materno”.

É como se manifestasse “por um caminho „ilegal‟, a crença na lei e nos seus direitos a uma

vida psíquica, fora da psicose”. É como se tudo a que acabasse exposta, fosse “(. . .) uma

trincheira contra a perda do sentido da realidade ou, o que é mais grave, contra o avanço da

própria morte” (p.133).

Os desafios que se apresentam cotidianamente no local onde realizei essa experiência

de estágio apontam para a mesma direção do que apresentam Moreira, Galvão, Melo e

Azevedo (2008), que percebem a complexidade em que se insere a problemática da violência,

o que demanda uma atuação ampliada, que consiga ir além dos aspectos médicos, legais e,

mesmo, de apoio psicológico.: “(. . .) acredita-se que este tipo de atitude não é suficiente para

o adequado enfrentamento do problema” e essa concepção considera a necessidade de uma

atuação que seja capaz de “sustentar mudanças de comportamento” (p.1057).

Recomeçar a vida é sempre um desafio para quem é vítima de um ou mais atos de

violência. Apesar da complexidade de que se reveste toda atividade que é realizada nesse

campo de atuação, especialmente em uma instituição pública, é estimulante poder perceber,

como tive a oportunidade de fazê-lo, que é possível realizar intervenções terapêuticas que

promovam significativos movimentos na vida dos sujeitos, o que justifica a continuidade e o

aperfeiçoamento contínuo de semelhantes serviços de saúde.


62

Considerações finais

“Por que isso sempre acontece com essa pessoa?” Essa foi a questão que motivou

nossa reflexão psicanalítica sobre a violência e sua recorrência na vida de alguns sujeitos. O

objetivo geral a que nos propomos foi refletir, a partir da teoria psicanalítica, sobre a maneira

como a violência se configura em meio à complexidade do tecido social e de que forma

poderíamos estabelecer uma compreensão a respeito de suas manifestações. Desse modo, a

estruturação de um contexto maior, por meio da análise dos mitos estabelecidos e utilizados

pela cultura para explicar os acontecimentos da realidade, foi de grande utilidade para a

compreensão das bases desse fenômeno e possibilitou estabelecer um diálogo com a teoria

psicanalítica. Enquanto objetivo específico referimo-nos a recorrência da violência,

entendida como uma compulsão à repetição.

A psicanálise freudiana, ao examinar a cultura na busca de identificar as causas

primordiais dos desejos que movem os sujeitos, conseguiu perceber a determinante ação da

lei. E essa lei, como uma instância de ordem paterna, é aquela que instaura a própria cultura,

pois, ao proibir o incesto, amplia as possibilidades de relacionamento entre os sujeitos.

Paradoxalmente, a própria lei que estabelece os limites de convivência entre as

pessoas insere-se na vida das pessoas com certo grau de violência. Isso se dá de modo

natural, mas não é por isso que perde sua característica violenta. Se o sujeito deseja agir de

uma determinada forma, de acordo com seus próprios desejos, e alguém ou alguma coisa lhe

diz “não”, deparamo-nos com uma força que impede ou se propõe a impedir a consumação

de um ato. Por meio desse entendimento, compreendemos que nem toda violência é

necessariamente ruim, e que pode ser necessária à convivência social.

Essa configuração permitiu que fosse estabelecida uma diferenciação entre um ato

violento que vitimiza alguém, e os limites próprios da convivência social a que todos nós

estamos sujeitos. Com base nessa compreensão, ficou mais fácil perceber a violência
63

enquanto ação que obriga alguém a fazer algo que não deseja, em um momento, local e

condições com as quais não concorda, diferenciando-a do “ato violento” que é condenado

pela legislação, das ações de cunho educacional e de convivência social.

A pergunta pela recorrência da violência se estruturou a partir da experiência feita

durante o estágio realizado em uma instituição pública de atendimento a vítimas de violência,

e foi gradativamente fundamentando uma compreensão mais profunda a partir dessa reflexão

teórica. Os episódios de recorrência da violência exigiram que fôssemos mais além, e

buscássemos compreender os motivos que levam um sujeito a ser vítima, duas ou mais vezes,

de atos violentos, frequentemente, de mesma ordem ou características.

Esse tipo de identificação se deu por meio de uma escuta diferenciada, disposta a

ouvir além dos fatos, além do que é óbvio. Uma escuta que se ocupa da afetividade existente

e de muitas maneiras expressa, com o objetivo de preencher lacunas de entendimento que a

escuta trivial de um relato pode suscitar. O tratamento de tudo o que é assim percebido

mostrou-se mais fácil com o auxílio da teoria freudiana e de sua abordagem sobre a

“compulsão à repetição”, o que era o nosso objetivo específico.

A compreensão de que existem sutilezas diferencia as vítimas de violência. Existem

aquelas em que o ato violento é apenas uma ocorrência acidental. Já em outras, acontece a

recorrência do ato violento. Esse entendimento pode possibilitar a reconstrução, por meio da

intervenção clínica, de uma saída saudável. Ou, psicanaliticamente falando, do

estabelecimento de um destino mais adequado para as pulsões do sujeito.

A experiência realizada durante o estágio possibilitou identificar que a recorrência da

violência possui causas que necessitam ser identificadas e, dentro do possível, tratadas de

modo a que a vítima tenha a possibilidade de não se tornar novamente vítima de um ato

violento.
64

Apesar de compreender as limitações impostas pelo espaço de atendimento em uma

instituição pública, ficou claro que, em alguns casos, é necessária uma escuta diferenciada,

que possibilite a identificação de uma possível “compulsão à repetição”. É a partir desse

entendimento que será possível o encaminhamento de uma solução terapêutica capaz de

auxiliar o sujeito na elaboração dos conteúdos psíquicos que favorecem a revitimização.

Por conta da abrangência que a violência tem na sociedade, seu tratamento torna-se

cada vez mais uma questão de saúde pública. Assim sendo, é necessária a identificação de

soluções efetivas, que devolvam e, mesmo, promovam a saúde física e emocional e garantam,

dessa forma, a otimização do investimento de recursos públicos, a melhoria da saúde psíquica

das pessoas e da qualidade de vida das populações.


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