Caso Clínico ORL
Caso Clínico ORL
Caso Clínico ORL
12006
1 relatosdecaso
Meningite bacteriana:
complicação inesperada de
otite média aguda
Joana Oliveira Ferreira,1 Inês Simões Tinoco,1 Joana Fernandes2
RESUMO
Introdução: A otite média aguda é uma patologia frequente nos cuidados de saúde primários. Raramente apresenta complica-
ções; porém, quando existem revelam-se graves e com importante morbimortalidade. Com este artigo pretende-se descrever
um caso de meningite aguda secundária a otite média aguda e as suas implicações para a saúde e qualidade de vida do doente
e da família.
Descrição do caso: Homem de 42 anos, ativo, pertencente a família nuclear, que recorreu ao médico de família por apresen-
tação inaugural de otite e sinusite agudas, com sintomas de intensidade fruste. Três dias após a instalação do quadro sintomá-
tico surgiu agravamento clínico, rapidamente progressivo e degradante do estado geral. O utente deu entrada no serviço de ur-
gência em estado comatoso, pirexia e crise convulsiva. Em contexto de urgência realizaram-se meios complementares de diag-
nóstico, como punção lombar, tomografia computorizada e angiotomografia, que confirmaram diagnóstico de meningite agu-
da bacteriana por Streptococcus pneumoniae e acidente vascular cerebeloso direito, ambos em resultado de complicações de
otite média aguda.
Comentários: A otite média aguda pode ser observada em diferentes fases de apresentação clínica. Quando evolui para mas-
toidite pode culminar em meningite e trombose dos seios venosos cerebrais. Este caso descreve a evolução clínica de um diag-
nóstico desfavorável de otite média aguda complicada. Aborda o papel do médico de família como gestor da doença, impor-
tante na articulação de cuidados de saúde primários e secundários, na reabilitação do utente e acompanhamento familiar. Aler-
ta ainda para a importância da capacitação do utente para os sinais e sintomas de desvio da evolução clínica esperada.
Mastoidite aguda
Temperatura Otite média aguda Meningite bacteriana Alta hospitalar
corporal (ºC) Sinusite aguda Acidente vascular cerebeloso Reabilitação física
40 ºC
38 ºC
36 ºC
Tempo (dias)
Figura 2. Cronograma de evolução clínica (D. infeciosas = doenças infeciosas; SU = serviço de urgência; USF = Unidade de Saúde Familiar).
utente. A relação médico-doente torna-se uma com- giológico das lesões endocranianas, apresentando dis-
ponente importante para a compreensão e aceitação cretas melhorias das lesões assinaladas.
das expectativas da doença. A MF assumiu uma posi- Ao 12º dia de doença, após extubação, estabilização
ção privilegiada para exercer uma medicina centrada na hemodinâmica e recuperação do estado de consciência,
pessoa e na família, com otimização da comunicação foi transferido para o serviço de doenças infeciosas para
entre os cuidados de saúde primários e secundários. A continuidade dos cuidados. Apresentava, neste mo-
acessibilidade ao contacto com a MF, seja direto (con- mento, importantes limitações motoras, destacando-se
sulta na unidade de saúde, consulta domiciliária) ou in- a hemiparesia esquerda, desequilíbrio e disartria. Man-
direto (via telefone ou email), permitiu o acompanha- teve internamento neste serviço durante mais nove dias,
mento holístico numa família com critérios de risco e apresentando favorável evolução clínica e imagiológica,
vulnerabilidade. com progressiva recuperação da autonomia.
As hemoculturas foram negativas. Dos exames rea- Teve alta a 28/12/2016 com indicação para terapêu-
lizados salientam-se: líquido cefalorraquídio (LCR) pu- tica anticoagulante e corticoterapia em ambulatório.
rulento com presença de proteínas (545mg/dL), eritró- Manteve seguimento na consulta externa no serviço de
citos (500/µL) e leucócitos (9.800/µL); pesquisa de doenças infeciosas.
Cryptococcus por tinta-da-china negativa; cultura do A atuação da MF na reabilitação física do utente com-
LCR positiva para Streptococcus pneumoniae multisen- plementou a continuidade de cuidados e estabeleceu a
sível (resistente apenas a penicilina). Estabeleceu-se, ligação entre cuidados de saúde primários e secundá-
por fim, o diagnóstico de meningite bacteriana secun- rios. Foi requisitado o acesso a cuidados de fisioterapia,
dária a otite média aguda. com treino de marcha e recuperação de proprioceção,
Após o antibiograma fez-se ajuste terapêutico, com- manutenção de vacinação e possibilidade de acompa-
pletando nove dias de ceftriaxone 2.000mg de 12 em 12 nhamento especializado no foro psicológico (Figura 2).
horas. Cumpriu durante o internamento esquema de Em janeiro de 2017, a esposa do utente agenda con-
hipocoagulação com enoxaparina 1mg/kg de 12 em 12 sulta programada na sua MF para a atualizar da situa-
horas, dexametasona, oxigenoterapia e fluidoterapia. ção clínica e proceder à prorrogação de certificado de
O utente foi periodicamente sujeito a controlo ima- incapacidade temporária. O utente foi reavaliado,
registando-se melhoria franca do estado clínico. No en- tite, petrosite ou paralisia facial) e complicações não
tanto, a limitação motora, ainda evidente, impedia o otológicas ou intracranianas (meningite, abcesso cere-
utente de realizar atividades físicas outrora assumidas bral e trombose dos seios venosos).2,5 A sua incidência
pelo próprio. Com a assumida dificuldade física em su- bem como a morbimortalidade diminuíram graças à in-
bir escadas até ao quarto do casal, o utente viu-se trodução de antibioterapia.1-3
obrigado a permanecer na sala, nomeadamente du- A mastoidite aguda pode estender-se anatomica-
rante o descanso noturno, despoletando um impacto mente, atingindo os seios venosos e precipitando o
emocional na restante família. A esposa verbalizou a di- transporte de microorganismos através da barreira he-
ficuldade na gestão da compreensão e aceitação de ex- mato-encefálica, justificando o desenvolvimento de
pectativas na recuperação morosa da doença, princi- meningites bacterianas.2-5
palmente por parte dos filhos. Salientou também os A complicação intracraniana mais comum da mas-
obstáculos na organização da nova rotina diária e fi- toidite é a MB, sendo a etiologia mais frequente a infe-
nanceira da família. Destacou-se a sobrecarga física da ção por Streptococcus pneumoniae.1-2,4 Estima-se uma
esposa, única adulta ativa a gerir a rotina diária fami- incidência aproximada de 0,1-1% de casos de MB por
liar, prestando apoio ao marido, dependente para al- Streptococcus pneumoniae secundária a OMA e/ou mas-
gumas das atividades da vida diária; transporte dos fi- toidite aguda.4 Segundo o estudo realizado por Casado
lhos às atividades escolares e extraescolares; confeção Flores e colaboradores, alguns sinais foram associados
das refeições e tarefas domésticas e gestão dos encar- a indicadores de mau prognóstico clínico: prescrição de
gos financeiros mensais com um orçamento familiar antibiótico na semana que antecede a admissão hospi-
económico diminuído. A MF disponibilizou uma escu- talar do doente, choque, anomalias pupilares e leucoci-
ta ativa, a possibilidade de auxílio médico domiciliário tose > 6.000/µL. Registou ainda que 35,8% destes não
e a manutenção de processos de reabilitação física e psi- apresentavam qualquer sinal meníngeo ao exame neu-
cológica, assim como a possibilidade de ativação de rológico e 11,6% sinais meníngeos duvidosos.6
apoios sociais e económicos. A OMA é frequente no dia-a-dia do médico de famí-
lia. As complicações são raras; no entanto, é essencial
COMENTÁRIO estar atento. Nem sempre a gravidade da apresentação
A OMA é uma patologia frequente em Portugal. Pode inicial se correlaciona com o desenrolar do quadro clí-
dividir-se em cinco etapas clínicas: tubotimpânica, hi- nico. Cabe ao MF alertar e capacitar o utente e família
perémica, exsudativa, supurativa e perfuração espon- para eventuais complicações, informando para os si-
tânea timpânica (Quadro 1).2 Estas fases relacionam-se nais e sintomas de alarme.
diretamente com a intensidade da clínica. Este caso vem revelar a transformação inesperada de
Cerca de 1 a 5% dos casos de OMA apresentam com- uma primeira avaliação do utente com sinais clínicos
plicações que se classificam em dois tipos: complica- frustes, apresentando-se apirético, sem alterações signi-
ções otológicas ou intratemporais (mastoidite, labirin- ficativas à otoscopia ou do estado geral. Porém, evoluiu
desfavoravelmente com uma rápida progressão para [Controversies in the treatment of acute otitis media: literature review]. Rev
Port Otorrinolaringol Cir Cérvico-Fac. 2012;50(2):141-5. Portuguese
mastoidite e MB, gerando-se uma situação clínica grave.
2. Govea-Camacho LH, Pérez-Ramírez R, Cornejo-Suárez A, Fierro-Rizo R,
O internamento de 18 dias, o adverso estado geral do Jiménez-Sala CJ, Rosales-Orozco CS. Abordaje diagnóstico y terapéutico de
utente, bem como a sua lenta recuperação tiveram im- las complicaciones de la otitis media en el adulto: serie de casos y revisión
pacto não só no indivíduo, mas também a nível familiar. de la literatura [Diagnosis and treatment of the complications of otitis me-
dia in adults: case series and literature review]. Cir Cir. 2016;84(5):398-404.
O caso clínico tem como objetivo lembrar que, como
Spanish
MF, somos o primeiro contacto do utente com o servi- 3. Geyik MF, Kokoglu OF, Hosoglu S, Ayaz C. Acute bacterial meningitis as a
ço de saúde. Além da correta recolha da anamnese, rea- complication of otitis media and related mortality factors. Yonsei Med J.
lização do exame objetivo de forma adequada e insti- 2002;43(5):573-8.
4. Golmarvi S, Devue K, Hachimi-Idrissi S. A case of group A streptococcal
tuição de uma terapêutica correta, é essencial capaci-
meningitis following acute otitis media. Eur J Emerg Med. 2006;13(5):299-
tar o utente para o reconhecimento de sinais e sinto- 301.
mas que possam estar associados a desvios da evolução 5. Zernotti ME, Casarotto C, Tosello ML, Zernotti M. Incidencia de complica-
clínica esperada. ciones de otitis media [Incidence of complications of otitis media]. Acta
Esta descrição clínica reflete também a importância da Otorrinolaringol Esp. 2001;56(2):59-62. Spanish
6. Casado-Flores J, Aristegui J, de Liria CR, Martinón JM, Fernández C. Clinical
organização, multidisciplinaridade e interação entre os data and factors associated with poor outcome in pneumococcal menin-
cuidados de saúde primários e secundários que, quando gitis. Eur J Pediatr. 2006;165(5):285-9.
presentes, constituem o pilar de auxílio e promoção de
melhores cuidados de saúde com impacto físico e men- CONFLITO DE INTERESSES
Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.
tal. Demonstra ainda a importância do MF na continui-
dade de cuidados ao utente, nomeadamente na reabili- ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
tação e na continuidade de cuidados à família no acom- Joana Oliveira Ferreira
panhamento de situações de risco e vulnerabilidade. E-mail: jo.oliveira.ferreira@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-0054-6383
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Machado MP, Marques MC, Santos AR, Dores L, Simão M, Macor C, et al. Recebido em 14-02-2017
Controvérsias no tratamento da otite média aguda: revisão de literatura Aceite para publicação em 05-06-2018
ABSTRACT