Violência de Gênero e Devastação Mãe-Filha

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Violência de gênero e devastação Mãe-Filha: diálogos sobre transgeracionalidade em


Beuvoir, Butler e Lacan

Gender violence and mother-daughter devastation: dialogues on transgenerationality


from Butler to Lacan

Violencia de género y devastación madre-hija: diálogos sobre la transgeneracionalidad


de Butler a Lacan
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Resumo
O trabalho objetiva analisar os impactos transgeracionais da violência de gênero contra o
feminino na devastação entre mãe-filha. Adotou-se o estudo teórico, reflexivo e conceitual
acerca do tema a partir da caracterização de gênero oriunda das teorias feministas de Simone
de Beuvoir, Judith Butler e do conceito de devastação, bem como, do feminino na lógica da
sexuação proposto por Jacques Lacan. O trabalho demonstra que a presença da psicanálise nas
discussões das relações de gênero revela o caráter não binário da sexuação e traz uma nova
dimensão para a repetição transgeracional da violência de gênero presente na história entre
mãe e filha. Conclui-se que a psicanálise contribui, a seu modo, para o desenvolvimento de
uma sociedade plural na qual a norma do sujeito encontre seu lugar na tessitura social.
Palavras-Chave: Devastação; Gênero; Violência; Feminino; Sexuação.

Abstract
The objective of this work is to analyze the transgenerational impacts of gender violence
against women in the devastation between mother and daughter. It was adopted a theoretical,
reflective and conceptual study on the subject. This research allowed to verify that the
characterization of gender derived from feminist theories, such as those of Simone de
Beauvoir and Judith Butler, seem at first sight to be opposed to Freudian and Lacanian
psychoanalysis. Opposing this position, this work demonstrates that the presence of
psychoanalysis in discussions of gender relations reveals, in fact, the non-binary character of
sexuation. It is concluded that psychoanalysis contributes in its own way to the development
of a plural society in which the norm of the subject finds its place in the social fabric.
Keywords: Devastation; Genre; Violence; Feminine; Sexuation.

Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar los impactos transgeneracionales de la violencia de
género contra las mujeres en la devastación entre madre e hija. Se adoptó un estudio teórico,
reflexivo y conceptual sobre el tema. Esta investigación permitió verificar que la
caracterización de género derivada de las teorías feministas, como las de Simone de Beauvoir
y Judith Butler, parecen a primera vista opuestas al psicoanálisis freudiano y lacaniano. En
oposición a esta posición, este trabajo demuestra que la presencia del psicoanálisis en las
discusiones sobre las relaciones de género revela, de hecho, el carácter no binario de la
sexuación. Se concluye que el psicoanálisis contribuye a su manera al desarrollo de una
sociedad plural en la que la norma del sujeto encuentra su lugar en el tejido social.
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Palabras llave: Devastación; Género; Violencia; Femenino; Sexuación.

Introdução

No contexto da disparidade de gênero, com o avanço das teorias feministas e o


enrijecimento da legislação referente à violência conjugal vivenciada pelas mulheres, a
exemplo da realidade brasileira (Lei 11.340, Brasil, 2006), observa-se o aumento do estudo
sistemático das teorias de gênero, sobretudo no mundo ocidental (Matos, 2008; Hoppen &
Vanz, 2020). Em consequência deste avanço a clínica contemporânea da psicanálise atenta às
angústias e sintomas produzidos pelo sujeito em sua época, participa destes esforços,
contribuindo com seu modo particular de considerar a dimensão humana.
Frente a este cenário, este artigo interroga os efeitos dos ordenadores simbólicos do
contemporâneo no contexto da violência de gênero contra o feminino a partir dos efeitos
transgeracionais da devastação entre mãe-filha. O percurso proposto inicia-se abordando a
caracterização de gênero oriunda de teorias feministas presentes nas obras da pensadora
contemporânea Judith Butler (2014; 2016) que, à primeira vista, parece se contrapor
fervorosamente à teoria Freudiana e posteriormente Lacaniana no que se refere à
caracterização normativa de gênero “feminino” e “masculino”.
A dimensão inconsciente do feminino é considerada a partir da lógica não-binária
presente nos processos de sexuação, tal como pode ser encontrado na psicanálise freudiana e
lacaniana, revelando uma perspectiva que vai além do modelo de gênero socialmente imposto,
bem como do modelo biológico da sexualidade. Apesar do artigo circunscrever a discussão
em torno do feminino na mulher, o horror ao feminino também se evidencia nas práticas de
violência dirigidas a todo e qualquer sujeito (gays, lésbicas, transexuais) cuja lógica da
sexuação encontra-se marcada por isso que Lacan (1985) chamou de Outro gozo, o gozo
feminino. “O novo reino do não todo, que não é mais exclusivo das mulheres, mas, ao qual
elas têm acesso mais direto, anula as diferenças e universaliza as relações” (Zalcberg, 2013, p.
474).
Como resultado, este artigo enfatiza que as convergências e divergências entre a
psicanálise e o feminismo, fomentam o avanço do debate social acerca do lugar do feminino
na sociedade, seus aparatos culturais, transgeracionalmente amalgamados no simbólico, e sua
construção para cada sujeito.

Metodologia
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Neste artigo optou-se por uma metodologia qualitativa e teórica capaz de fomentar o
debate de ideias entre o campo filosófico e feminista de Judith Butler e o da psicanálise de
orientação lacaniana. Para isso, buscou-se realizar um levantamento bibliográfico do tema em
obras específicas dos referidos pensadores, tais como, Problemas de gênero de Butler (2016)
e o Seminário 20 de Lacan (1975) e extrair de ambas as obras, dois eixos orientadores, ou
seja, duas categorias que funcionassem como chaves de leitura para a articulação do
pensamento dos dois autores.
A primeira categoria foi a noção de transgeracionalidade na violência conjugal de
gênero em relação à mulher, já que ela permite articular, no campo estrutural da sociedade,
como este fenômeno atravessa gerações de mulheres, quase como uma transmissão que se dá
de mãe para filha. A segunda categoria orientadora da discussão foi a linguagem, à medida em
que ela estrutura o campo simbólico da nomeação, tanto no pensamento de Butler quanto no
de Lacan. Desta forma, e recorrendo às elaborações de Simone de Beuvoior (1970), em
Segundo Sexo, evidencia-se as questões relativas ao modo como a noção de gênero e de
violência de gênero encontra aparato no social e na realidade psíquica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A transmissão geracional da violência de gênero conjugal na mulher e a subjetividade


feminina

A transmissão geracional da violência de gênero contra a mulher, é um fenômeno


arraigado em séculos de patriarcado que, em muitos aspectos produziu, entre outros fatos, a
naturalização de discursos de ódio e misoginia. Autores como Diniz (2011), Falcke, Rosa e
Madalena (2012), Paixão et al (2015) e outros, atestam em seus estudos os efeitos danosos da
violência de gênero transmitida não só no macro campo da sociedade, mas, também, de
geração em geração no interior das famílias. É a microfísica do poder de Foucault (2013) que
controla os corpos e os objetificam a partir da noção de gênero. De acordo com o Art. 1o da
Lei n° 11.340, de 7 agosto de 2006, a violência de gênero caracteriza-se como:

A categorização dos tipos de violência doméstica, que pode ser física, sexual,
patrimonial, psicológica e moral; a violência contra a mulher constitui qualquer ação
ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
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ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. A definição é,


portanto, ampla e abarca diferentes formas de violência contra as mulheres: A
violência doméstica, a violência ocorrida na comunidade e a violência institucional.
(Brasil, 2006)

Consoante com a Política Nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres


(PNEM, 2011), não se pode entender a violência contra mulheres sem se considerar a
dimensão de gênero, entendido aqui como a construção social, política e cultural da (s)
masculinidade (s) e da (s) feminilidade (s). Da mesma forma, a compreensão deste fenômeno
circunscreve as relações entre homens e mulheres a partir do reconhecimento de dimensões
próprias à raça/etnia, classes e gerações que contribuem para sua exacerbação. Nesta diretriz
de enfrentamento, tal política pública também alerta para o modo como a produção de
desigualdades entre os gêneros são produzidas e reproduzidas diariamente pela sociedade na
vida de mulheres, no que tange ao modo como a violência de gênero é transmitida, sobretudo
via as relações conjugais. Ainda que não seja o foco deste trabalho, cabe enfatizar que, da
mesma forma, este aparato normativo se enraíza no mundo do trabalho, da religião, nos
espaços públicos e nas relações amorosas e domésticas:

A violência contra as mulheres só pode ser entendida no contexto das relações


desiguais de gênero, como forma de reprodução do controle do corpo feminino e das
mulheres numa sociedade sexista e patriarcal. As desigualdades de gênero têm,
assim, na violência contra as mulheres, sua expressão máxima que, por sua vez,
deve ser compreendida como uma violação dos direitos humanos das mulheres. (...)
Foram feitas 1.352 entrevistas, apenas com mulheres, em 119 municípios, incluídas
todas as Capitais e o DF. Do total de entrevistadas, 57% declararam conhecer
mulheres que já sofreram algum tipo de violência doméstica. A que mais se destaca
é a violência física, citada por 78% das pessoas ouvidas pela pesquisa. Em segundo
lugar aparece a violência moral, com 28%, praticamente empatada com a violência
psicológica (27%).” (PNEM 2011, pp. 13 - 21).

Os dados levantados mostram um alto índice de violência vivenciadas pelas mulheres,


assim como, em outras fontes como no Portal da Transparência (2022), observa-se formas
diversas de violência de gênero, tais como, o abandono dos companheiros junto à mulheres
que passam a ter de vivenciar situações de maternidade compulsória. O portal da
transparência informa que em junho de 2021, 173.041 mil crianças foram registradas sem o
pai, de acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais. E, desta
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forma, muitas mulheres experimentam a solidão diante da maternidade como um fato


naturalizado socialmente, apenas pelo fato de serem mulheres.
Saffioti (2005) diz que essa fragilidade da rede de apoio e a forma como a violência de
gênero é perpetrada socialmente cria no imaginário social a certeza de impunidade,
incentivando a atitude agressiva. A presença insistente de violências no contexto feminino
evidencia que mulheres devastadas se encontram em condições de desamparo psíquico e,
portanto, fragilizadas no que se refere à construção de sua própria subjetividade. Situam-se,
assim, como sujeitos que se limitam através do desejo do Outro a um espelhamento
imaginário na relação com questões, também perpetradas na história geracional das mulheres
de sua família. Não raro, repetem a história de violência presente em outras gerações entre
mães e filhas.

As mulheres em situação de violência materializam, em suas relações e em suas


condições de vida, um modo de construção subjetiva marcada por avassaladora
passividade, na qual as condições psíquicas que permitem o domínio das forças
pulsionais pelos processos de simbolização não são dadas, mantendo tais forças
submetidas à intensidade traumática. (Terezinha, 2014, p. 455)

Um dos fatores que influenciam a violência de gênero é o fato da masculinidade estar


ligada diretamente à dominação e ao controle da noção de honra, revelando a presença ainda
fortemente marcada do patriarcado na sociedade contemporânea. A própria etimologia de
família (famulus em latim) significa: “[...] as coisas e pertences do senhor” (Engels,
1884/2002), ou seja, indica a ordem patriarcal. A desconstrução de padrões estruturais de
gênero na educação das crianças é ressaltada como uma forma de repercutir a construção de
novas masculinidades (Carvalho-Barreto et al., 2009, p. 88). O cuidado com as crianças
ultrapassa a barreira familiar à medida em que passa a ser entendido como um cuidado da
sociedade como um todo.
Neste contexto, o efeito de famílias marcadas pela violência é a produção de sujeitos
atravessados pelos significantes da agressividade. Autores como Carvalho-Barreto (2009),
chegam a afirmar que mulheres que sofreram violência quando criança e/ou presenciaram a
mãe sofrer, costumam buscar parceiros violentos e tornar-se pessoas impotentes à violência.
Ainda que a perspectiva do autor carregue em si um tom generalista e, por isso, requeira
alguma cautela, é fato que a estrutura familiar patriarcal naturalizou as agressões masculinas
contra a mulher e a passividade feminina, o que contribui para o ciclo da violência.
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A linguagem e seus efeitos na noção de gênero no feminismo de Beuvoir e Butler e, na


psicanálise de Lacan

Quando a psicanálise surge no século XVIII e XIX o corpo feminino herda


concepções nas quais está identificado como definia-se por uma disfunção do falo, um corpo
patologizado, deficitário, que situava a mulher no âmbito doméstico e na submissão ao
homem, pai, marido, detentor do poder sobre o espaço público. Por esse viés, evidencia-se
uma perspectiva normativa em que o masculino e o feminino surgem como reguladores da
heterossexualidade. Considerando que ainda hoje, relacionamentos heterossexuais são vistos
como normativos na sociedade e que a norma somente persiste quando é atualizada na prática
social, nestas relações, os padrões de comportamento delimitados para mulheres e homens
contribuem para a produção do gênero em si.
Segundo escreve Cossi (2020, p. 1), a década de 1970 foi um período em que Lacan
esteve presente no meio feminista entre a segunda e a terceira onda do feminismo. Esboça-se
“(...) de um lado, o que veio a ser denominado estudos de gênero norte-americanos, e de
outro, o feminismo psicanalítico francês”. Mas, talvez a feminista mais paradigmática para a
psicanálise seja Simone de Beuvoir. Em o Segundo Sexo, Beauvoir (1970, p. 9), escreve uma
frase que tem grande valor para a psicanálise: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.
Desta forma, provoca uma subversão no modo de pensar o feminino, através de um
pensamento que destitui modos normativos de conceitua-lo e que muito interessará a
psicanálise.

Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a
mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. (Beuvoir, 1970, p.
9)
Será em meio à estrutura hierárquica da heterossexualidade, na qual as relações de
gênero se produzem que o pensamento de Butler (2014) se desenvolve a partir do século XX,
ao interrogar o que é a noção de gênero? Segundo escreve: “[...] gênero é o aparato pelo qual
a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas
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intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume”.


(Butler, 2014, p. 253).
A autora critica a psicanálise, ao enfatizar a manutenção privilegiada da norma fálica,
por reconhecer aí um caráter binário, homem e mulher, que se define pela marca de ter ou não
ter o falo. Para Judith Butler (2004, p. 259); sobre a lei do Pai Simbólico...
“É a lei” é assim um signo de lealdade à lei, um sinal do desejo de que a lei seja
uma lei indisputável, um impulso teológico dentro da teoria psicanalítica que
pretende tirar do jogo qualquer crítica ao pai simbólico, a lei da própria psicanálise.
Assim, o estatuto atribuído à lei é, de maneira não surpreendente, o mesmo estatuto
atribuído ao falo, no qual o falo não é apenas o “significante” privilegiado no
esquema lacaniano, mas torna-se o traço característico do aparato teórico no qual
esse significante é introduzido.

Segundo escreve a autora, essa perspectiva faz com que uma destas “[...] sexualidades
seja excluída, para que seja atribuída às pretensões autorreferentes do sujeito”. (2014, p. 102).
Em outro trabalho, a autora reafirma sua posição ao destacar que no ensino lacaniano há a
existência de estruturas sexuais, ou seja, o homem como possuidor de falo e a mulher como
um ser castrado, que existe como objeto de desejo do Outro do social, sendo esse Outro
representado pelo masculino heterossexualizado. (Butler, 2016).
Nesse âmbito, a produção de uma noção de gênero comporta uma norma, uma função
regulatória que delimita através da linguagem os papéis atribuídos a homens e mulheres. A
linguagem, o Outro simbólico, define e regula o sujeito no laço social, na cultura, na
sociedade e na relação consigo mesmo. Do ponto de vista cultural, o que resulta dessa
normatização são papéis, identidades, máscaras sociais que situam o indivíduo em certos
lugares, sustentando-o em certas insígnias que autorizam certos indivíduos a assumirem
posturas violentas em relação a outros. Para Butler (2014, p. 261):

Nesse sentido, gênero opera para assegurar determinadas formas de relações sexuais
reprodutivas e para proibir outras formas. O gênero de alguém, nessa perspectiva, é
um índice das relações sexuais prescritas e proscritas pelas quais um sujeito é
socialmente regulado e produzido (Butler, 2014, p. 261).

Na perspectiva da autora, é por isso que o gênero não pode ser visto como um
conjunto de categorias binárias, mas sim,como características fluidas, que mudam, que não se
mantêm fixas até mesmo em certos contextos. Argumenta Butler (2014) que a ideia de uma
sexualidade elaborada fora dos padrões do binarismo supõe uma quebra da suposta referência
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adotada pelo sujeito no laço social. Sua defesa sobre a perspectiva de identificações múltiplas
implica em uma discordância em relação à lei paterna na psicanálise, o que supostamente
balançaria seu arcabouço teórico.
Se gênero é a forma congelada que a sexualização da desigualdade assume, então a
sexualização da desigualdade precede o gênero e o gênero é seu efeito (Butler, 2014). A
separação entre sexo e gênero busca ampliar a questão na intenção de romper com padrões
normativos que induzem determinadas práticas sexuais a estarem condicionadas a um gênero
ou outro. No entanto, a própria limitação da expressão sexual do gênero queer demonstra, por
si só, que um papel de gênero não está ligado à hierarquia da heterossexualidade, a exemplo
de pessoas trans que evidenciam uma radical desconexão entre gênero e sexo. Constata-se,
portanto, a diferença entre corpos sexuados e gêneros construídos.

A dissonância entre gênero e sexualidade é, assim, afirmada a partir de duas


diferentes perspectivas: uma pretende demonstrar possibilidades para a sexualidade
que não estejam constrangidas pelo gênero, de modo a romper a causalidade
reducionista de argumentos que os vincula; a outra procura mostrar possibilidades
para gênero que não estejam pré-determinadas por formas da heterossexualidade
hegemônica (Butler, 2014, p. 270).

Butler (2011) reitera a importância de englobar ao discurso social o não-binarismo de


gênero como forma de amenizar a pressão cultural sobre os corpos.

Quando se fala em performance de gênero, geralmente significa que estamos


representando um papel, ou que estamos, de alguma maneira, atuando, e que esta
atuação ou interpretação é crucial para o gênero que somos e o gênero que
apresentamos para o mundo. Dizer que o gênero é performativo é um pouco
diferente, visto que, para algo ser performativo, significa que isso produz uma série
de efeitos. Agimos, falamos, e andamos de modos que consolidam a impressão de se
ser um homem ou uma mulher. Agimos como se esse “ser homem” ou “ser mulher”
fosse uma realidade interna genuína, ou fosse simplesmente uma verdade, um fato
sobre nós, mas na verdade é um fenômeno que está sendo produzido o tempo todo, e
reproduzido o tempo todo, portanto, dizer que o gênero é performativo é dizer que
ninguém é realmente de um gênero desde o início. Eu sei que é polêmico, mas esse é
o meu postulado (Butler, 2011).
A psicanálise, por sua vez, ao falar por si mesma, demonstra que, para o inconsciente,
o masculino e o feminino não se definem por relações de gênero, tampouco na distinção
biológica dos sexos. Se, por um lado, a normatização do gênero é demarcada pela ordem
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simbólica masculina, onde a intenção é sempre produzir um sentido, trata-se, como escreve
Lacan, da sustentação de semblantes da sexualidade:
[...] o normal, dizem que ele é mais uma norma masculina [norme male], justamente
em um jogo linguístico, em francês, com o normal e com a norma masculina (norme
mâle), que podemos compreender em articulação com os processos de constituição
dos gêneros e seus semblantes sexuados no lado masculino da sexuação (Lacan,
(1972/2003, p 480).

Isso porque, para a psicanálise, o termo sexualidade é limitado para se pensar aquilo
que é da ordem do feminino, já que se refere a uma norma puramente biológica dos sexos, na
qual o corpo dos seres falantes é desconsiderado a partir de sua natureza subjetivada. O corpo,
em psicanálise é uma construção simbolizada do imaginário, portanto, não pode ser definido,
nem pelo social, nem pelo biológico puramente. Assim, “[...] no sentido corriqueiro dos
termos, o homem e a mulher, não sabemos do que se trata”. (Lacan, 1971-71/2011, p. 38). O
não-binarismo de gênero se apresenta na teoria lacaniana pela determinação de um sentido
universal, bem como do escape de sentido. Trata-se de uma lógica fálica em torno de um furo
na topologia tensionada da psique que proporciona o aspecto da falta, determinante para a
construção do sujeito desejante, que goza inconscientemente com esse buraco.
Para a psicanálise, a lógica em questão é a da sexuação. Entender melhor o conceito da
sexuação consiste em considerá-lo em um modo inconsciente de gozo, ou seja, no modo como
um gozo Outro opera no inconsciente produzindo significante. As fórmulas da sexuação são
propostas por Lacan (1973-1973/1982) na tábua da sexuação em seu Seminário 20. Ele divide
a tábua em dois lados, o lado masculino localizado do lado esquerdo e o lado feminino do
lado direito. Não se trata, contudo, de uma divisão sexual, mas, de modos de satisfação,
modos de gozo no qual, do lado esquerdo o sujeito tenta produzir um todo-fálico, um sentido
que universaliza. É o simbólico marcado pela figura da lei, da ordem e do dito. O lado direito,
o lado mulher, produz uma lógica não-toda, que não necessita de um sentido ou de um dito, o
lado mulher opera com o real da castração. É assim que esta teorização de Lacan (1971-
72/2011), busca compreender a sexualidade para além do modelo de gênero socialmente
imposto, já que afirma que o sexo não define nenhuma relação no ser falante. Daí seu axioma
da não existência da relação sexual, já que, havendo linguagem, a anatomia e a biologia não
podem determinar nada nos seres falantes.
A psicanálise é uma prática cuja produção de sentido se articula com o furo, pois o
sentido não dá conta de representar a experiência toda, por isso, o gozo fálico é parcial e
limitado. Afinal, o sentido mesmo “(...) indica a direção na qual ele fracassa”. (Lacan, 1972-
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73/2008, p.85). Nesse sentido, todo sujeito é masculino, pois, todos estão na linguagem. A
linguagem fura o inconsciente, somos castrados por ela e pela função fálica. Esse furo é a
inexistência da relação sexual, essa inexistência é literalmente o horror ao feminino da tábua,
esse feminino que aponta para uma falta de sentido, fora da norma fálica, pressupondo aí que
o normal, supostamente, seria ter um falo.
Essa tensão estrutural entre sentido e furo é o que torna o sujeito desejante e faltante
na relação com o Outro. Logo, a função da tábua da sexuação opera em todos de forma não-
binária. Segundo Lima e Vorcaro (2017, p. 38):

(...) é fundamental desprender a sexuação dos semblantes sexuados. Precisamos não


confundir sexuação (enquanto lógica inconsciente de gozo) com formas socialmente
reificadas de semblantes sexuados. Isso significa compreender a sexuação para além
das formas generificadas ainda atuais ou mesmo já anacrônicas de conceber o que é
(e como deve ser) um homem ou uma mulher.

Dessa forma, tanto para Bulter (2003; 2014; 2016) quanto para Lacan (1972-1973
1982) a linguagem é fator primordial para o sujeito, ainda que para Butler, a questão pareça
estar fortemente ligada ao contexto social e, para Lacan, esteja situada no inconsciente. Em
ambas as teorias, o gênero é construído performaticamente em relações apenas ilusórias (Lima
& Vorcaro, 2018), e por meio disso entende-se que a identidade adotada em relação à noção
de gênero é algo subjetivo e que todo ser falante vai se localizar hora ou outra em algum dos
lados da tábua, de acordo com seu modo de gozo.

(...) um mito é criado a partir de outro mito, e, pela via da repetição, este mito é
reproduzido. Ao tratar das questões pela via das fórmulas da sexuação, ficam
cravadas na teoria as categorias sexuais feminino/masculino como únicas
possibilidades, correndo-se os riscos de reafirmação do padrão heteronormativo.
(Lima, 2018, p. 5)

Recorrendo ainda às contribuições de Cossi e Dunker (2017), o gênero seria uma


instabilidade, não sendo natural às identidades, sendo assim, não podemos ver a binaridade
como uma estrutura estável, já que a heterossexualidade seria algo performativo e repetitivo.
A repetição dessa performance cria a ilusão de identidade e coerência. Cria a falsa ideia de um
modelo original e único. A simples ideia da existência fora dessa repetição causa o
sentimento de desconforto social presente na inadequação corporal e de gênero.
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Tem-se com isso a constatação de que, ao contrário das críticas de Butler (2003; 2014;
2016), a psicanálise desde a teorização lacaniana da sexuação considera uma clínica não
binária, bem como, não hierarquizada em função da noção de gênero. Ainda que o
pensamento e as contribuições de Judith Butler e Jacques Lacan comportem divergências,
ambos parecem considerar a linguagem enquanto o campo aberto à significações e
ressignificações normativas. Em seu papel normativo, a linguagem ordena e regula o laço
social, ainda que sua natureza comporte um mal-estar estrutural. Dessa forma, nela o sujeito
constrói identidades e sustenta certos semblantes. É também aí, na precariedade do laço
social, que as relações de gênero se estabelecem demarcando a subordinação de um sujeito a
outro, em virtude das insígnias culturalmente construídas em torno de certas definições do que
é ser mulher e do que é ser homem, bem como, das possibilidades de alterar o lugar da mulher
no discurso.

O que pode uma Devastação

No contexto da violência geracional entre mãe-filha, o conceito de devastação ganha


relevância para a psicanálise. Freud (1931/1996, p. 261), lamentou ter subestimado ao longo
de sua obra da importância da relação mãe-filha para a feminilidade: “(...) a problemática não
é, no fundo, outra coisa, senão o retorno inelutável da relação antiga com a mãe”. A
devastação entre mãe-filha pode se apresentar como uma perda de limites do corpo desejante,
um silenciamento da subjetividade e a repetição de padrões sintomaticamente recalcados na
história familiar, produzindo, não raro, situações de violência de gênero.
A devastação, por sua vez, é um conceito apresentado por Lacan (1972/2011) como
resposta de um tempo pré-edípico da constituição do sujeito, cuja elaboração é marcada por
relações conturbadas com a mãe e com a própria noção do que é ser mulher, uma vez que é
esperado pela menina que venha da mãe tal resposta. Porém, também para a mãe é impossível
que se tenha esse saber, já que ela também não o teve acessado pela via do significante. O
aforismo lacaniano de que a Mulher não existe se refere, exatamente, a esta discussão. Não se
trata da mulher considerada de forma empírica, mas, ao fato de que, para a psicanálise, não há
no inconsciente um significante do feminino. Cada sujeito cujo modo de gozo é marcado pela
posição feminina deverá constituir-se como tal.
Por isso, Lacan (1975-1976/2007) em O aturdito, indica que para além da relação
entre mãe e filha, a devastação abarca também os efeitos advindos das relações amorosas.
Para uma mulher, ele escreve, o amor pode ser uma devastação. A psicanálise situa, portanto,
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o inconsciente como uma outra cena na qual as relações de violência nas parcerias amorosoas
encontram caminhos via os impasses que a feminilidade inscreve através do recalque. Como
heranças geracionais, transmite-se os impasses, mas, não a resposta acerca do feminino, do
tornar-se mulher.
A partir do conceito de Devastação Mãe-filha é preciso atentar para o conceito de
Outro primordial que, segundo Lacan (1964-1965), situa a questão na “relação de objeto no
real”. O discurso se faz presente como forma de ordenação dessa relação, sobre a qual o bebê
é corporificado através desse Outro caracterizado pela mãe. Para a criança, a mãe vem para
ocupar o lugar de principal significante, uma vez que o lugar do Outro instiga o gozo, ainda
que em relação ao desejo exista uma dualidade que corresponde ao lugar do Outro onipotente
e do Outro faltante. Nessa perspectiva de ambivalência na relação com a mãe, a menina passa
a se afastar em direção ao pai, podendo carregar consigo sentimentos hostis e de raiva, o que
pode durar uma vida toda e pode nunca haver de fato uma separação com a mãe, ainda que
venha a se casar e constituir o companheiro como um herdeiro dessa mãe e dos conflitos
consolidados pela dualidade.
Para abordar a forma como cada mulher constrói sua posição frente ao feminino é
preciso se aprofundar um pouco mais na sexualidade feminina, interesse que movimenta a
psicanálise desde o seu princípio, com Freud (1931/1996). Em seus estudos acerca da
sexualidade feminina, ele a difere completamente da masculina, isso porque para as meninas a
relação edipiana é marcada por sua relação com sua mãe muito além do que para os meninos,
situando o tempo pré-edípico como regulador do desenvolvimento da psique da mulher. O
pré-édipo marca a relação inseparável de uma menina com sua mãe, essa relação mal
elaborada aparece nas repetições sintomáticas de parcerias amorosas em que algumas
mulheres tendem a repetir em seus parceiros e objetos de amor, a relação mal resolvida do
sintoma na estrutura familiar. Ocorre, contudo, que, para além de evidenciar o sintoma do pai
ou dos pais, o que se encontra é, inevitavelmente, o conflito que vive com sua mãe. Esse
conflito consiste em uma busca de referencial de feminilidade na mãe que, por sua vez,
também não possui.
Rinaldi (2003, p. 2) diz que, “[...] os encontros e desencontros entre mãe e filha no
permanente trabalho de ‘tornar-se mulher’ levado a efeito por cada menina, trabalho este ao
qual a mãe também está submetida pela sua condição feminina”. A sexualidade feminina é
inscrita sobre a perspectiva da dualidade uma vez que, segundo Kuss (2016, p.248-249), a
menina não sai completamente do tempo pré-edípico no qual estabeleceu a intensa relação
com a mãe, pois, ao ser inscrita no complexo de édipo não é possível encontrar uma saída
14

para feminilidade por meio da identificação ao significante fálico, como acontece com a
masculinidade. Sob essa perspectiva, ainda que a sexualidade feminina inclua a sexualidade
masculina, pois há somente uma libido, a menina é convocada a retornar a essa relação com a
mãe para que seja possível encontrar uma saída para a sua feminilidade para além do gozo
fálico que se apresenta insuficiente nesse contexto.
Analisando o que se entende a partir de Mello e Souza (2021, p.759), o gozo fálico
traz o sentido, responsável por dar um revestimento ao corpo conferindo a significação e a
simbolização da castração proporcionada pela linguagem. A maneira como cada sujeito se
posiciona com significantes conferidos pela inscrição fálica determina como ele irá se
relacionar com o mundo. O sujeito falante não é abarcado pelo registro fálico de forma
absoluta. O gozo Outro, também considerado como gozo feminino, é lido por Lacan (1966-
1967/2004) como para além da linguagem enquanto uma suposição lógica, traz ao sujeito uma
relação com o Real, que por sua vez não é totalmente simbolizado, e leva a uma experiencia
para além do que é considerado sexual, onde existe a possibilidade de experenciar a diluição
do ego, o que se assemelha a teoria do gozo místico. Já o gozo do Outro aparece como uma
perturbação nos processos de simbolização, trazendo uma angústia diante do processo
psíquico do sujeito completamente localizado no gozo fálico. Comparece como absoluto
intrusivo, não barrado, produzindo uma angústia relativa à intrusão do Real no Imaginário
aquém de qualquer contorno simbólico.
Para Freud (1931/1996), a relação amorosa de uma mulher devastada é marcada pela
busca de uma parceria que demonstre seu bom relacionamento edipiano com a figura paterna,
se deparando entretendo com o laço pré-edipiano mal elaborado com a figura materna. A
escolha do objeto de amor é ligada a ausência do processo de subjetivação, a consequência é
um sintoma, a escolha de um relacionamento que a violente, como um compromisso entre o
desejo inconsciente e processos de defesas. O desejo, como desejo do Outro e a demanda
como defesa de desejo são aspectos que possibilitas a falta e fixa o gozo, que leva a repetição.
Sobre isso, em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina, Lacan (1960-
62/1998, p. 734) disse: “Uma noção de carência afetiva, ligando sem intermediação às falhas
reais dos cuidados maternos os distúrbios do desenvolvimento, é reforçada por uma dialética
de fantasias das quais o corpo materno é o campo imaginário”. A colocação lacaniana enfatiza
a demanda de amor infinita que uma menina dirige à sua mãe e o modo como isso fracassa.
Ela acusará a mãe de ter falhado, independente da conexão de sua queixa com a realidade.
Diante dos conceitos apresentados fica o questionamento: como uma mulher pode
construir sua subjetividade atravessada pela violência de gênero? Os encontros e desencontros
15

entre mãe e filha no permanente trabalho de “tornar-se mulher” levado a efeito por cada
menina, trabalho este ao qual a mãe também está submetida pela sua condição feminina.
Assim como Zalcberg parafraseia em seu livro, "Para toda mulher, há sempre três mulheres:
ela mesma, sua mãe e a mãe de sua mãe” (Winniccot, citado por Zalcberg, 2012, p. 6). Essa
passagem de Winnicott demonstra a importância do aspecto transgeracional na construção da
psique feminina, evidenciando que as condições de desigualdade das mulheres atravessam
gerações criando consequências complexas nos arranjos tradicionais e convocando o sujeito a
reinventar modos de lidar com os efeitos dos ordenadores simbólicos do gênero na sociedade.
Espera-se da mãe a resposta sobre o que é ser mulher. Entretanto, assim como a filha
não possui esse saber, a mãe também não o tem. Tanto uma quanto a outra, terão que
descobrir por si mesmas. Tal como escreve Beauvoir (1970), não se nasce mulher, torna-se
mulher.
Há uma eterna tensão de algo não resolvido entre Mãe-Filha. “A presença insistente e
a submissão a atos recorrentes de violência, como mostram as evidencias apresentadas
anteriormente, as mulheres submetidas a essa condição de violência colocam em ato,
acontecimentos traumáticos que não lhes possibilitaram a construção de seu nome próprio
“(Neves, 2014, p. 455). Uma mulher devastada está assujeitada ao Outro na condição de lhe
gerar profundo sofrimento existencial e um corpo marcado por um gozo que não se divide,
um corpo de excessos de traumas revelados pela violência.
Nesta condição a mulher busca na relação amorosa receber tal saber sobre sua
feminilidade, consequentemente se doa indiscriminadamente às parcerias românticas, que há
devastam tal qual a mãe. Neves, (2014) afirma que a cada vivência com seu companheiro em
que um ato de violência ganha destaque, coloca o sujeito diante da repetição, de uma forma de
relação, marcada pelo não reconhecimento de sua condição de sujeito. É a condição de não ser
simbolizada que a via traumática da repetição. Na devastação, o sujeito está em dificuldades
na relação com o desejo do Outro primordial e cada mulher terá que elaborar à sua maneira as
amarrações possíveis desta relação. Sem isso ela é reduzida ao silencio, e seu corpo aos
excessos de seu modo de gozo. A estrutura psíquica de uma mulher é ligada ao real do corpo e
é através do gozo do corpo que a repetição da relação amorosa sintomática vai aparecer,
portanto para algumas mulheres a impossibilidade de uma relação materna saudável vai
significar um confronto direto com o desejo do Outro no real sem limites. Para Neves (2014),
trata-se de um ataque sobre o corpo que expõe a gravidade da violência sofrida, um corpo
marcado por traumas, cortes, cicatrizes, indicando a presença de uma intensidade pulsional
que resiste a uma inscrição desejante.
16

A clínica demonstra que além das marcas deixadas na superfície do corpo, os efeitos
da violência de gênero na subjetividade da mulher resultam ainda em diversos transtornos e se
manifestam como doenças nos sistemas digestivo e circulatório, dores e tensões musculares,
desordens menstruais, depressão, ansiedade, suicídio, uso de entorpecentes, transtorno de
estresse pós-traumático (TEPT), além de lesões físicas, e em situações extremas, privações e
assassinato tanto da vítima quanto do agressor (Carvalho-Barreto, 2009). O sentimento de
desestabilidade, silenciamento, confusão, angústia, isolamento e dependência do agressor são
visualizados em mulheres que apresentam dificuldades em sair de uma relação violenta.
Quando uma mulher nessa situação assume um nível de autonomia o agressor aumenta os
níveis de violência. De acordo com Carvalho-Barreto (2009, p.88):

Quanto mais rotineiros e imprevisíveis são os maus-tratos, menos a mulher passa a


dispor de recursos psicológicos para deixar o companheiro, adotando mecanismos
de adaptação e sobrevivência, como dissociação do pensamento, negação ou
anulação dos sentimentos que sente por si e até uma identificação com o agressor.

A violência contra o feminino na mulher pode ser observada também em outras


comunidades como observa Mello e Souza (2021, p.763) pessoas LGBTQIA+ e minorias que
resistam a certas condições vistas como “normais’, também são penalizadas pela ameaça que
representam a lógica patriarcal. Esta violência pode ser lida como um modo de satisfação do
Outro, que escapando a lógica fálica, apresenta uma ameaça a seus processos de
simbolização. Articulando ao gozo do Outro, torna o feminino intrusivo, invasor, pois a
imagem da existência não fálica é insuportável, a figura feminina se equivale à intrusão do
Real no Imaginário, demonstrando a queda das insígnias do simbólica. A capacidade
mediadora do simbólico vem do enodamento dos registros psíquicos, ou seja, a maneira como
foi inscrito seus significantes determina sua relação com a insuficiência do gozo fálico.
Nas experiencias transgeracionais há, portanto, outras heranças que se transmite,
heranças simbólicas recalcadas, que emergem através de sintomas e significantes da violência
que marca o corpo e a relação do sujeito com o Outro. Vale também destacar que a
objetificação da mulher pelo olhar masculino na memória das sociedades, decorre da fantasia
masculina de dominação do objeto explorado pelo machismo estrutural que constitui uma
masculinidade que favorece o repúdio ao feminino.

Considerações Finais
17

Para a psicanálise uma das formas pelas quais o impacto da violência de gênero incide
sobre a psiquê pode ser observada nos processos de devastação subjetiva e transgeracional
que ocorrem nas relações parentais entre mãe e filha. O sujeito na contemporaneidade é
atravessado por inúmeras questões que acentuam um sofrimento no Real do Corpo, esse
sofrimento pode ser observado frequentemente em contextos de violência de gênero
envolvendo mulheres. Já dizia Miller (1998, p. 114), que a demanda de amor da mulher
retorna a ela sob a forma de devastação.” A condição de ser mulher implica, muitas vezes, no
convívio com violências intensificadas pelas repetições pelo modo de gozo feminino, mas
também, pelo aparato estrutural presente na cultura frente a relações de opressão.
Através das noções de sexuação presente na psicanálise lacaniana, evidencia-se que o
feminino na mulher está para além da linguagem, para além do falo, para além das normas. A
dicotomia homem e mulher, ainda que seja produzida e reproduzida como norma pela
sociedade e reforçada por meio da linguagem, não pode nela encontrar sua representação toda.
Nem tudo é significante.
Se o próprio Lacan adverte que “[...] deve renunciar à prática da psicanálise o analista
que não for capaz de considerar a subjetividade no horizonte de sua época (Lacan, 1953/1998:
322)”, parece fundamental que a psicanálise possa ser pensada de forma política! É
fundamental que esteja disponível ao debate das questões de seu tempo, pensando em
modelos de construções psíquicas menos cis normativos e que integrem não só novos
modelos de parentalidade, mas também, à própria invenção do feminino diante o Outro sexo,
ou seja, das próprias relações amorosas.

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