Violência de Gênero e Devastação Mãe-Filha
Violência de Gênero e Devastação Mãe-Filha
Violência de Gênero e Devastação Mãe-Filha
Resumo
O trabalho objetiva analisar os impactos transgeracionais da violência de gênero contra o
feminino na devastação entre mãe-filha. Adotou-se o estudo teórico, reflexivo e conceitual
acerca do tema a partir da caracterização de gênero oriunda das teorias feministas de Simone
de Beuvoir, Judith Butler e do conceito de devastação, bem como, do feminino na lógica da
sexuação proposto por Jacques Lacan. O trabalho demonstra que a presença da psicanálise nas
discussões das relações de gênero revela o caráter não binário da sexuação e traz uma nova
dimensão para a repetição transgeracional da violência de gênero presente na história entre
mãe e filha. Conclui-se que a psicanálise contribui, a seu modo, para o desenvolvimento de
uma sociedade plural na qual a norma do sujeito encontre seu lugar na tessitura social.
Palavras-Chave: Devastação; Gênero; Violência; Feminino; Sexuação.
Abstract
The objective of this work is to analyze the transgenerational impacts of gender violence
against women in the devastation between mother and daughter. It was adopted a theoretical,
reflective and conceptual study on the subject. This research allowed to verify that the
characterization of gender derived from feminist theories, such as those of Simone de
Beauvoir and Judith Butler, seem at first sight to be opposed to Freudian and Lacanian
psychoanalysis. Opposing this position, this work demonstrates that the presence of
psychoanalysis in discussions of gender relations reveals, in fact, the non-binary character of
sexuation. It is concluded that psychoanalysis contributes in its own way to the development
of a plural society in which the norm of the subject finds its place in the social fabric.
Keywords: Devastation; Genre; Violence; Feminine; Sexuation.
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar los impactos transgeneracionales de la violencia de
género contra las mujeres en la devastación entre madre e hija. Se adoptó un estudio teórico,
reflexivo y conceptual sobre el tema. Esta investigación permitió verificar que la
caracterización de género derivada de las teorías feministas, como las de Simone de Beauvoir
y Judith Butler, parecen a primera vista opuestas al psicoanálisis freudiano y lacaniano. En
oposición a esta posición, este trabajo demuestra que la presencia del psicoanálisis en las
discusiones sobre las relaciones de género revela, de hecho, el carácter no binario de la
sexuación. Se concluye que el psicoanálisis contribuye a su manera al desarrollo de una
sociedad plural en la que la norma del sujeto encuentra su lugar en el tejido social.
3
Introdução
Metodologia
4
Neste artigo optou-se por uma metodologia qualitativa e teórica capaz de fomentar o
debate de ideias entre o campo filosófico e feminista de Judith Butler e o da psicanálise de
orientação lacaniana. Para isso, buscou-se realizar um levantamento bibliográfico do tema em
obras específicas dos referidos pensadores, tais como, Problemas de gênero de Butler (2016)
e o Seminário 20 de Lacan (1975) e extrair de ambas as obras, dois eixos orientadores, ou
seja, duas categorias que funcionassem como chaves de leitura para a articulação do
pensamento dos dois autores.
A primeira categoria foi a noção de transgeracionalidade na violência conjugal de
gênero em relação à mulher, já que ela permite articular, no campo estrutural da sociedade,
como este fenômeno atravessa gerações de mulheres, quase como uma transmissão que se dá
de mãe para filha. A segunda categoria orientadora da discussão foi a linguagem, à medida em
que ela estrutura o campo simbólico da nomeação, tanto no pensamento de Butler quanto no
de Lacan. Desta forma, e recorrendo às elaborações de Simone de Beuvoior (1970), em
Segundo Sexo, evidencia-se as questões relativas ao modo como a noção de gênero e de
violência de gênero encontra aparato no social e na realidade psíquica.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A categorização dos tipos de violência doméstica, que pode ser física, sexual,
patrimonial, psicológica e moral; a violência contra a mulher constitui qualquer ação
ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
5
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a
mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. (Beuvoir, 1970, p.
9)
Será em meio à estrutura hierárquica da heterossexualidade, na qual as relações de
gênero se produzem que o pensamento de Butler (2014) se desenvolve a partir do século XX,
ao interrogar o que é a noção de gênero? Segundo escreve: “[...] gênero é o aparato pelo qual
a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas
8
Segundo escreve a autora, essa perspectiva faz com que uma destas “[...] sexualidades
seja excluída, para que seja atribuída às pretensões autorreferentes do sujeito”. (2014, p. 102).
Em outro trabalho, a autora reafirma sua posição ao destacar que no ensino lacaniano há a
existência de estruturas sexuais, ou seja, o homem como possuidor de falo e a mulher como
um ser castrado, que existe como objeto de desejo do Outro do social, sendo esse Outro
representado pelo masculino heterossexualizado. (Butler, 2016).
Nesse âmbito, a produção de uma noção de gênero comporta uma norma, uma função
regulatória que delimita através da linguagem os papéis atribuídos a homens e mulheres. A
linguagem, o Outro simbólico, define e regula o sujeito no laço social, na cultura, na
sociedade e na relação consigo mesmo. Do ponto de vista cultural, o que resulta dessa
normatização são papéis, identidades, máscaras sociais que situam o indivíduo em certos
lugares, sustentando-o em certas insígnias que autorizam certos indivíduos a assumirem
posturas violentas em relação a outros. Para Butler (2014, p. 261):
Nesse sentido, gênero opera para assegurar determinadas formas de relações sexuais
reprodutivas e para proibir outras formas. O gênero de alguém, nessa perspectiva, é
um índice das relações sexuais prescritas e proscritas pelas quais um sujeito é
socialmente regulado e produzido (Butler, 2014, p. 261).
Na perspectiva da autora, é por isso que o gênero não pode ser visto como um
conjunto de categorias binárias, mas sim,como características fluidas, que mudam, que não se
mantêm fixas até mesmo em certos contextos. Argumenta Butler (2014) que a ideia de uma
sexualidade elaborada fora dos padrões do binarismo supõe uma quebra da suposta referência
9
adotada pelo sujeito no laço social. Sua defesa sobre a perspectiva de identificações múltiplas
implica em uma discordância em relação à lei paterna na psicanálise, o que supostamente
balançaria seu arcabouço teórico.
Se gênero é a forma congelada que a sexualização da desigualdade assume, então a
sexualização da desigualdade precede o gênero e o gênero é seu efeito (Butler, 2014). A
separação entre sexo e gênero busca ampliar a questão na intenção de romper com padrões
normativos que induzem determinadas práticas sexuais a estarem condicionadas a um gênero
ou outro. No entanto, a própria limitação da expressão sexual do gênero queer demonstra, por
si só, que um papel de gênero não está ligado à hierarquia da heterossexualidade, a exemplo
de pessoas trans que evidenciam uma radical desconexão entre gênero e sexo. Constata-se,
portanto, a diferença entre corpos sexuados e gêneros construídos.
simbólica masculina, onde a intenção é sempre produzir um sentido, trata-se, como escreve
Lacan, da sustentação de semblantes da sexualidade:
[...] o normal, dizem que ele é mais uma norma masculina [norme male], justamente
em um jogo linguístico, em francês, com o normal e com a norma masculina (norme
mâle), que podemos compreender em articulação com os processos de constituição
dos gêneros e seus semblantes sexuados no lado masculino da sexuação (Lacan,
(1972/2003, p 480).
Isso porque, para a psicanálise, o termo sexualidade é limitado para se pensar aquilo
que é da ordem do feminino, já que se refere a uma norma puramente biológica dos sexos, na
qual o corpo dos seres falantes é desconsiderado a partir de sua natureza subjetivada. O corpo,
em psicanálise é uma construção simbolizada do imaginário, portanto, não pode ser definido,
nem pelo social, nem pelo biológico puramente. Assim, “[...] no sentido corriqueiro dos
termos, o homem e a mulher, não sabemos do que se trata”. (Lacan, 1971-71/2011, p. 38). O
não-binarismo de gênero se apresenta na teoria lacaniana pela determinação de um sentido
universal, bem como do escape de sentido. Trata-se de uma lógica fálica em torno de um furo
na topologia tensionada da psique que proporciona o aspecto da falta, determinante para a
construção do sujeito desejante, que goza inconscientemente com esse buraco.
Para a psicanálise, a lógica em questão é a da sexuação. Entender melhor o conceito da
sexuação consiste em considerá-lo em um modo inconsciente de gozo, ou seja, no modo como
um gozo Outro opera no inconsciente produzindo significante. As fórmulas da sexuação são
propostas por Lacan (1973-1973/1982) na tábua da sexuação em seu Seminário 20. Ele divide
a tábua em dois lados, o lado masculino localizado do lado esquerdo e o lado feminino do
lado direito. Não se trata, contudo, de uma divisão sexual, mas, de modos de satisfação,
modos de gozo no qual, do lado esquerdo o sujeito tenta produzir um todo-fálico, um sentido
que universaliza. É o simbólico marcado pela figura da lei, da ordem e do dito. O lado direito,
o lado mulher, produz uma lógica não-toda, que não necessita de um sentido ou de um dito, o
lado mulher opera com o real da castração. É assim que esta teorização de Lacan (1971-
72/2011), busca compreender a sexualidade para além do modelo de gênero socialmente
imposto, já que afirma que o sexo não define nenhuma relação no ser falante. Daí seu axioma
da não existência da relação sexual, já que, havendo linguagem, a anatomia e a biologia não
podem determinar nada nos seres falantes.
A psicanálise é uma prática cuja produção de sentido se articula com o furo, pois o
sentido não dá conta de representar a experiência toda, por isso, o gozo fálico é parcial e
limitado. Afinal, o sentido mesmo “(...) indica a direção na qual ele fracassa”. (Lacan, 1972-
11
73/2008, p.85). Nesse sentido, todo sujeito é masculino, pois, todos estão na linguagem. A
linguagem fura o inconsciente, somos castrados por ela e pela função fálica. Esse furo é a
inexistência da relação sexual, essa inexistência é literalmente o horror ao feminino da tábua,
esse feminino que aponta para uma falta de sentido, fora da norma fálica, pressupondo aí que
o normal, supostamente, seria ter um falo.
Essa tensão estrutural entre sentido e furo é o que torna o sujeito desejante e faltante
na relação com o Outro. Logo, a função da tábua da sexuação opera em todos de forma não-
binária. Segundo Lima e Vorcaro (2017, p. 38):
Dessa forma, tanto para Bulter (2003; 2014; 2016) quanto para Lacan (1972-1973
1982) a linguagem é fator primordial para o sujeito, ainda que para Butler, a questão pareça
estar fortemente ligada ao contexto social e, para Lacan, esteja situada no inconsciente. Em
ambas as teorias, o gênero é construído performaticamente em relações apenas ilusórias (Lima
& Vorcaro, 2018), e por meio disso entende-se que a identidade adotada em relação à noção
de gênero é algo subjetivo e que todo ser falante vai se localizar hora ou outra em algum dos
lados da tábua, de acordo com seu modo de gozo.
(...) um mito é criado a partir de outro mito, e, pela via da repetição, este mito é
reproduzido. Ao tratar das questões pela via das fórmulas da sexuação, ficam
cravadas na teoria as categorias sexuais feminino/masculino como únicas
possibilidades, correndo-se os riscos de reafirmação do padrão heteronormativo.
(Lima, 2018, p. 5)
Tem-se com isso a constatação de que, ao contrário das críticas de Butler (2003; 2014;
2016), a psicanálise desde a teorização lacaniana da sexuação considera uma clínica não
binária, bem como, não hierarquizada em função da noção de gênero. Ainda que o
pensamento e as contribuições de Judith Butler e Jacques Lacan comportem divergências,
ambos parecem considerar a linguagem enquanto o campo aberto à significações e
ressignificações normativas. Em seu papel normativo, a linguagem ordena e regula o laço
social, ainda que sua natureza comporte um mal-estar estrutural. Dessa forma, nela o sujeito
constrói identidades e sustenta certos semblantes. É também aí, na precariedade do laço
social, que as relações de gênero se estabelecem demarcando a subordinação de um sujeito a
outro, em virtude das insígnias culturalmente construídas em torno de certas definições do que
é ser mulher e do que é ser homem, bem como, das possibilidades de alterar o lugar da mulher
no discurso.
o inconsciente como uma outra cena na qual as relações de violência nas parcerias amorosoas
encontram caminhos via os impasses que a feminilidade inscreve através do recalque. Como
heranças geracionais, transmite-se os impasses, mas, não a resposta acerca do feminino, do
tornar-se mulher.
A partir do conceito de Devastação Mãe-filha é preciso atentar para o conceito de
Outro primordial que, segundo Lacan (1964-1965), situa a questão na “relação de objeto no
real”. O discurso se faz presente como forma de ordenação dessa relação, sobre a qual o bebê
é corporificado através desse Outro caracterizado pela mãe. Para a criança, a mãe vem para
ocupar o lugar de principal significante, uma vez que o lugar do Outro instiga o gozo, ainda
que em relação ao desejo exista uma dualidade que corresponde ao lugar do Outro onipotente
e do Outro faltante. Nessa perspectiva de ambivalência na relação com a mãe, a menina passa
a se afastar em direção ao pai, podendo carregar consigo sentimentos hostis e de raiva, o que
pode durar uma vida toda e pode nunca haver de fato uma separação com a mãe, ainda que
venha a se casar e constituir o companheiro como um herdeiro dessa mãe e dos conflitos
consolidados pela dualidade.
Para abordar a forma como cada mulher constrói sua posição frente ao feminino é
preciso se aprofundar um pouco mais na sexualidade feminina, interesse que movimenta a
psicanálise desde o seu princípio, com Freud (1931/1996). Em seus estudos acerca da
sexualidade feminina, ele a difere completamente da masculina, isso porque para as meninas a
relação edipiana é marcada por sua relação com sua mãe muito além do que para os meninos,
situando o tempo pré-edípico como regulador do desenvolvimento da psique da mulher. O
pré-édipo marca a relação inseparável de uma menina com sua mãe, essa relação mal
elaborada aparece nas repetições sintomáticas de parcerias amorosas em que algumas
mulheres tendem a repetir em seus parceiros e objetos de amor, a relação mal resolvida do
sintoma na estrutura familiar. Ocorre, contudo, que, para além de evidenciar o sintoma do pai
ou dos pais, o que se encontra é, inevitavelmente, o conflito que vive com sua mãe. Esse
conflito consiste em uma busca de referencial de feminilidade na mãe que, por sua vez,
também não possui.
Rinaldi (2003, p. 2) diz que, “[...] os encontros e desencontros entre mãe e filha no
permanente trabalho de ‘tornar-se mulher’ levado a efeito por cada menina, trabalho este ao
qual a mãe também está submetida pela sua condição feminina”. A sexualidade feminina é
inscrita sobre a perspectiva da dualidade uma vez que, segundo Kuss (2016, p.248-249), a
menina não sai completamente do tempo pré-edípico no qual estabeleceu a intensa relação
com a mãe, pois, ao ser inscrita no complexo de édipo não é possível encontrar uma saída
14
para feminilidade por meio da identificação ao significante fálico, como acontece com a
masculinidade. Sob essa perspectiva, ainda que a sexualidade feminina inclua a sexualidade
masculina, pois há somente uma libido, a menina é convocada a retornar a essa relação com a
mãe para que seja possível encontrar uma saída para a sua feminilidade para além do gozo
fálico que se apresenta insuficiente nesse contexto.
Analisando o que se entende a partir de Mello e Souza (2021, p.759), o gozo fálico
traz o sentido, responsável por dar um revestimento ao corpo conferindo a significação e a
simbolização da castração proporcionada pela linguagem. A maneira como cada sujeito se
posiciona com significantes conferidos pela inscrição fálica determina como ele irá se
relacionar com o mundo. O sujeito falante não é abarcado pelo registro fálico de forma
absoluta. O gozo Outro, também considerado como gozo feminino, é lido por Lacan (1966-
1967/2004) como para além da linguagem enquanto uma suposição lógica, traz ao sujeito uma
relação com o Real, que por sua vez não é totalmente simbolizado, e leva a uma experiencia
para além do que é considerado sexual, onde existe a possibilidade de experenciar a diluição
do ego, o que se assemelha a teoria do gozo místico. Já o gozo do Outro aparece como uma
perturbação nos processos de simbolização, trazendo uma angústia diante do processo
psíquico do sujeito completamente localizado no gozo fálico. Comparece como absoluto
intrusivo, não barrado, produzindo uma angústia relativa à intrusão do Real no Imaginário
aquém de qualquer contorno simbólico.
Para Freud (1931/1996), a relação amorosa de uma mulher devastada é marcada pela
busca de uma parceria que demonstre seu bom relacionamento edipiano com a figura paterna,
se deparando entretendo com o laço pré-edipiano mal elaborado com a figura materna. A
escolha do objeto de amor é ligada a ausência do processo de subjetivação, a consequência é
um sintoma, a escolha de um relacionamento que a violente, como um compromisso entre o
desejo inconsciente e processos de defesas. O desejo, como desejo do Outro e a demanda
como defesa de desejo são aspectos que possibilitas a falta e fixa o gozo, que leva a repetição.
Sobre isso, em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina, Lacan (1960-
62/1998, p. 734) disse: “Uma noção de carência afetiva, ligando sem intermediação às falhas
reais dos cuidados maternos os distúrbios do desenvolvimento, é reforçada por uma dialética
de fantasias das quais o corpo materno é o campo imaginário”. A colocação lacaniana enfatiza
a demanda de amor infinita que uma menina dirige à sua mãe e o modo como isso fracassa.
Ela acusará a mãe de ter falhado, independente da conexão de sua queixa com a realidade.
Diante dos conceitos apresentados fica o questionamento: como uma mulher pode
construir sua subjetividade atravessada pela violência de gênero? Os encontros e desencontros
15
entre mãe e filha no permanente trabalho de “tornar-se mulher” levado a efeito por cada
menina, trabalho este ao qual a mãe também está submetida pela sua condição feminina.
Assim como Zalcberg parafraseia em seu livro, "Para toda mulher, há sempre três mulheres:
ela mesma, sua mãe e a mãe de sua mãe” (Winniccot, citado por Zalcberg, 2012, p. 6). Essa
passagem de Winnicott demonstra a importância do aspecto transgeracional na construção da
psique feminina, evidenciando que as condições de desigualdade das mulheres atravessam
gerações criando consequências complexas nos arranjos tradicionais e convocando o sujeito a
reinventar modos de lidar com os efeitos dos ordenadores simbólicos do gênero na sociedade.
Espera-se da mãe a resposta sobre o que é ser mulher. Entretanto, assim como a filha
não possui esse saber, a mãe também não o tem. Tanto uma quanto a outra, terão que
descobrir por si mesmas. Tal como escreve Beauvoir (1970), não se nasce mulher, torna-se
mulher.
Há uma eterna tensão de algo não resolvido entre Mãe-Filha. “A presença insistente e
a submissão a atos recorrentes de violência, como mostram as evidencias apresentadas
anteriormente, as mulheres submetidas a essa condição de violência colocam em ato,
acontecimentos traumáticos que não lhes possibilitaram a construção de seu nome próprio
“(Neves, 2014, p. 455). Uma mulher devastada está assujeitada ao Outro na condição de lhe
gerar profundo sofrimento existencial e um corpo marcado por um gozo que não se divide,
um corpo de excessos de traumas revelados pela violência.
Nesta condição a mulher busca na relação amorosa receber tal saber sobre sua
feminilidade, consequentemente se doa indiscriminadamente às parcerias românticas, que há
devastam tal qual a mãe. Neves, (2014) afirma que a cada vivência com seu companheiro em
que um ato de violência ganha destaque, coloca o sujeito diante da repetição, de uma forma de
relação, marcada pelo não reconhecimento de sua condição de sujeito. É a condição de não ser
simbolizada que a via traumática da repetição. Na devastação, o sujeito está em dificuldades
na relação com o desejo do Outro primordial e cada mulher terá que elaborar à sua maneira as
amarrações possíveis desta relação. Sem isso ela é reduzida ao silencio, e seu corpo aos
excessos de seu modo de gozo. A estrutura psíquica de uma mulher é ligada ao real do corpo e
é através do gozo do corpo que a repetição da relação amorosa sintomática vai aparecer,
portanto para algumas mulheres a impossibilidade de uma relação materna saudável vai
significar um confronto direto com o desejo do Outro no real sem limites. Para Neves (2014),
trata-se de um ataque sobre o corpo que expõe a gravidade da violência sofrida, um corpo
marcado por traumas, cortes, cicatrizes, indicando a presença de uma intensidade pulsional
que resiste a uma inscrição desejante.
16
A clínica demonstra que além das marcas deixadas na superfície do corpo, os efeitos
da violência de gênero na subjetividade da mulher resultam ainda em diversos transtornos e se
manifestam como doenças nos sistemas digestivo e circulatório, dores e tensões musculares,
desordens menstruais, depressão, ansiedade, suicídio, uso de entorpecentes, transtorno de
estresse pós-traumático (TEPT), além de lesões físicas, e em situações extremas, privações e
assassinato tanto da vítima quanto do agressor (Carvalho-Barreto, 2009). O sentimento de
desestabilidade, silenciamento, confusão, angústia, isolamento e dependência do agressor são
visualizados em mulheres que apresentam dificuldades em sair de uma relação violenta.
Quando uma mulher nessa situação assume um nível de autonomia o agressor aumenta os
níveis de violência. De acordo com Carvalho-Barreto (2009, p.88):
Considerações Finais
17
Para a psicanálise uma das formas pelas quais o impacto da violência de gênero incide
sobre a psiquê pode ser observada nos processos de devastação subjetiva e transgeracional
que ocorrem nas relações parentais entre mãe e filha. O sujeito na contemporaneidade é
atravessado por inúmeras questões que acentuam um sofrimento no Real do Corpo, esse
sofrimento pode ser observado frequentemente em contextos de violência de gênero
envolvendo mulheres. Já dizia Miller (1998, p. 114), que a demanda de amor da mulher
retorna a ela sob a forma de devastação.” A condição de ser mulher implica, muitas vezes, no
convívio com violências intensificadas pelas repetições pelo modo de gozo feminino, mas
também, pelo aparato estrutural presente na cultura frente a relações de opressão.
Através das noções de sexuação presente na psicanálise lacaniana, evidencia-se que o
feminino na mulher está para além da linguagem, para além do falo, para além das normas. A
dicotomia homem e mulher, ainda que seja produzida e reproduzida como norma pela
sociedade e reforçada por meio da linguagem, não pode nela encontrar sua representação toda.
Nem tudo é significante.
Se o próprio Lacan adverte que “[...] deve renunciar à prática da psicanálise o analista
que não for capaz de considerar a subjetividade no horizonte de sua época (Lacan, 1953/1998:
322)”, parece fundamental que a psicanálise possa ser pensada de forma política! É
fundamental que esteja disponível ao debate das questões de seu tempo, pensando em
modelos de construções psíquicas menos cis normativos e que integrem não só novos
modelos de parentalidade, mas também, à própria invenção do feminino diante o Outro sexo,
ou seja, das próprias relações amorosas.
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