4-firmino
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ABSTRACT: This article intends to follow the initial proposal of Judith Butler in Gender
Trouble, that gender is not either an essence or a social construct, but a production of power.
Taking feminism as a theme to initially discuss the identity, we see her question to expand to
genre in general and get to the notion of subject. From the genealogical critique of Michel
Foucault and his notion of power, Butler intends to perform a critique of identity categories
and ,specifically, identity as the basis of feminist political action.
Introdução
1 Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara – SP – Brasil. Mestre pelo
programa de Pós-graduação em Educação Escolar. E-mail: flahenfir2@gmail.com.
2 Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara – SP - Brasil. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual. E-mail: patriciaporchat@fc.unesp.br.
Doxa: Rev. Bras. Psicol. Educ., Araraquara, v.19, n.1, p. 51-61, jan./jun. 2017. ISSN: 1413-2060
DOI: 10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819 51
Flávio Henrique FIRMINO e Patricia PORCHAT
o gênero nesse contexto é condição fundamental para aqueles que hoje se debruçam sobre as
transformações sociais relativas às sexualidades e às identidades de gênero. Problemas de
gênero foi o marco inicial, em 1990, de um debate que até hoje vem sendo realizado em
inúmeros países e em diversos campos do conhecimento acerca do gênero como fundamento
para lutas políticas, bem como para o estabelecimento de atitudes de exclusão, preconceito e
violência. Afinal, o que é o gênero?
É nesse sentido que a crítica genealógica se torna útil no pensamento de Butler: para
denunciar a captura da identidade nas redes de poder-saber e apontar a necessidade de um
novo tipo de política feminista.
[...] talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para
contestar as próprias reificações do gênero e a identidade – isto é, uma
política feminista que tome a construção variável da identidade como um
pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo político.
(BUTLER, 2003, p. 23).
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Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero”
Butler explica que o conceito de gênero foi forjado como oposição ao determinismo
biológico existente na ideia de sexo, que implica na biologia como um destino: o sujeito
nasceria homem ou mulher e suas diferentes experiências e lugares na sociedade seriam
determinados naturalmente de acordo com o sexo que o sujeito nasceu. Essa determinação
biológica serve à naturalização da desigualdade entre homens e mulheres. Ao se naturalizar o
poder, oculta-se como seus mecanismos operam, bem como a possibilidade de contestação e
transformação da estrutura social. O conceito de gênero surge então para afirmar que as
diferenças sexuais não são por si só determinantes das diferenças sociais entre homens e
mulheres, mas são significadas e valorizadas pela cultura de forma a produzir diferenças que
são ideologicamente afirmadas como naturais.
A autora argumenta que, no entanto, a noção do gênero como construção pode
também levar a um tipo de determinismo, não biológico, mas cultural.
Se entendermos o gênero como uma construção cultural, que difere de sexo, um corpo
que ao nascer tem vagina ainda não é mulher. Mas justamente nesse ainda não haveria um
determinismo cultural que diz que quem nascer com vagina será uma mulher? Se a biologia
não é destino, a cultura o seria?
Para Simone de Beauvoir (1970) “não se nasce mulher, torna-se”. Butler dirá que essa
afirmação parece sugerir que o gênero é variável e volitivo, comportando uma dimensão de
escolha e de agência por parte do sujeito, na possibilidade de tornar-se algo que não está dado
a priori. Essa suposta possibilidade de escolha nos leva a perguntar: o que determina o que nos
tornamos? De que maneira nos tornamos isso? Em que medida alguém escolhe seu gênero?
De acordo com Butler, Beauvoir afirma que “se torna mulher”, mas sempre sob uma
compulsão cultural a fazê-lo. Nesse momento do texto, Butler não aprofunda essa ideia de
escolha feita sob uma compulsão cultural. No entanto, Beauvoir (1970) nos leva a pensar que
a suposta escolha implícita no “tornar-se” é sempre feita no contexto de um imperativo
cultural a fazê-la. Há no sujeito que nasce com vagina, por exemplo, um tornar-se que parece
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5 No contexto da discussão da existência lésbica no pensamento feminista, a poeta, professora e crítica estadunidense
Adrienne Rich propôs a ideia da heterossexualidade compulsória como, a grosso modo, uma
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Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero”
instituição política que retira o poder das mulheres (RICH, 2010). A ideia de heterossexualidade compulsória
tem sido pensada por alguns autores (MISKOLCI, 2012; SALIH, 2013) como a ordem dominante em que os
sujeitos se vêem solicitados a ser heterossexuais, sendo imposto o modelo do casal heterossexual.
de poder se fortalece, já que não nos é apresentado como um regime, como uma lei que é
imposta, mas como um fato natural da vida. Sendo natural, como questioná-lo? Estando sua
característica repressora oculta pela naturalização, como questionar a opressão de um regime
político se ele se apresenta como uma lei natural ou nem mesmo como uma lei, mas como um
desejo natural? Essa naturalização e essencialização do gênero e do desejo heterossexual é
amplamente operada nas milhares de imagens que são veiculadas nas novelas, filmes,
desenhos, materiais didáticos, revistas e na publicidade. Na verdade, o que se vende é a ideia
da heterossexualidade como a única forma viável de existência.
Segundo Butler (2003, p.37) “[...] as pessoas só se tornam inteligíveis ao adquirir seu
gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero.” Por isso, a
discussão sobre a identidade não pode vir antes da discussão sobre a identidade de gênero.
Se as pessoas precisam ser reconhecidas como homens ou mulheres para “ter” uma identidade
de gênero e consequentemente uma identidade inteligível, e essas categorias – homem e
mulher – dizem respeito a uma produção discursiva, tem-se que a própria identidade é uma
produção discursiva, um efeito do discurso. Nesse sentido, o sujeito não é anterior ao que ele
expressa, mas é justamente um efeito do que ele expressa.
[...] o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido
como preexistente à obra. [...] não há identidade de gênero por trás das
expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas
próprias “expressões” tidas como seus resultados. (BUTLER, 2003, p. 48,
grifo do autor).
“Ser homem”, por exemplo, não se trata de uma identidade masculina que seja anterior
à expressão de atos masculinos. Não há uma identidade que seja anterior e causa dos meus
atos. São esses atos, feitos repetidamente, que produzem a aparência de uma substância fixa e
estável, que produzem uma identidade masculina que tem a aparência de ser permanente,
ainda que seja instável e exija um fazer contínuo de atos culturalmente significados como
masculinos. Assim, o gênero não é algo que somos, mas algo que fazemos (SALIH, 2013).
Para Butler, atos, gestos e atuações produzem o efeito de um núcleo ou substância
interna. Esses atos são performativos, no sentido de que a identidade que pretendem expressar
é fabricada por eles, “[...] manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios
discursivos.” (BUTLER, 2003, p.194). Eles criam a ilusão de um núcleo interno e regular do
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De acordo com Butler, gêneros inteligíveis são aqueles que “[...] instituem e mantém
relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.” (BUTLER,
2003, p.38). Ainda para a autora, essa matriz cultural, “[...] por intermédio da qual a
identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‘identidade’ não possam
‘existir’.” (BUTLER, 2003, p.39). A coerência da identidade de gênero e a existência de
gêneros inteligíveis exigem que certas configurações entre sexo, gênero, práticas sexuais e
desejo sejam excluídas. Trata-se de um regime de poder, portanto, que garante a existência de
certas identidades ao preço da exclusão de outras: para que A exista e tenha sentido, B, C e D
não devem existir.
No entanto, não apenas a possibilidade, mas a própria existência da configuração de
atributos como sexo, desejo, gênero e práticas sexuais fora da sequência habitual e
hegemônica denuncia essa sequência como também sendo um arranjo artificial, produzido, em
vez de uma substância ou essência. Ou seja, a denúncia do caráter produzido do gênero e a
visualização de seus atributos de forma descontínua nos faz questionar a artificialidade da
continuidade do que antes víamos como sólido e permanente. É o que acontece no caso
Herculine Barbin, um/uma hermafrodita do século XIX que não pode ser classificada/o nos
termos de um binarismo heterossexual que estabelece uma correlação simples entre sexo e
gênero e que classifica as pessoas em macho/fêmea ou masculino/feminino. A própria
existência de Herculine atenta contra a coerência da matriz heterossexual ao denunciar sua
instabilidade.
No terceiro capítulo de Problemas de gênero, Butler discute com mais clareza o potencial de
descontinuação da matriz heterossexual que certos corpos desempenham com seus atos e que
impossibilitam que falemos em gêneros verdadeiros ou falsos, já que qualquer gênero pode
ser entendido nos termos de uma imitação. Nesse sentido, não há como pensar em original e
imitação, como se, por exemplo, o gênero da travesti fosse uma imitação do “gênero original”
da “mulher”. Tanto a travesti quanto a mulher desempenham atos que tem como efeito a
produção de uma identidade considerada feminina. Em vez de ser uma cópia ou imitação da
mulher original, a travesti ou a drag, ao revelar o caráter da performatividade do gênero em
seus atos, gestos e atuações apontam para o fato de que também a mulher dita original tem sua
identidade produzida pela repetição estilizada desses mesmos atos, gestos e atuações,
considerados em nossa cultura como femininos. Assim, a existência de um “ser” que
descontinua a sequência habitual entre sexo anatômico e gênero aponta a descontinuidade que
há na aparente unidade e solidez da mulher original: os elementos de sua identidade contínua
– sexo e gênero – passam a ser vistos como separados: o sexo não necessariamente determina
o gênero e, assim como a drag ou a travesti, a mulher “de verdade” precisou tornarse mulher,
em um processo que nada tem de natural e automático. A inscrição de signos de feminilidade
se fez por um esforço normatizante no contexto da heterossexualidade compulsória e sua
compulsão por binarismos. Nesse sentido, Butler afirma que
No bojo dessa reflexão, Butler apresenta a noção de paródia de gênero, afirmando que ela não
presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitem.
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Assim, Butler parece sugerir que o “original” é na verdade o efeito de um discurso originário,
que contínua e historicamente se inscreve nos sujeitos e nas relações entre eles, originando
corpos que com o passar do tempo adquirem o status de originais.
A denúncia realizada pelos corpos “incoerentes” ataca o próprio sistema de podersaber que
nega sua inteligibilidade. Faz-se um movimento inverso: denuncia-se a ininteligibilidade do
sistema que confere inteligibilidade, pois se determinados corpos “não cabem” em seu
esquema, ele não serve para explicar o gênero. Questionar seu saber sobre o gênero implica
em, ao mesmo tempo, questionar seu poder. Quando o corpo extrapola as fronteiras que
tentam delimitá-lo e regulá-lo, acaba por implodir o sistema que tentava capturá-lo, pois
subverte sua lógica e denuncia sua impotência explicativa. Diferentemente de uma política
que afirma as identidades produzidas no interior desse sistema, o questionamento da coerência
identitária ataca a própria ordem que tenta instituí-la, embaralhando noções que sustentam
mecanismos de poder responsáveis pela produção de corpos dóceis.
A elaboração da concepção de identidade, gênero e sujeito como produção permite focar a
ação política na análise dos mecanismos de poder que engendram essas produções, sem que
seja necessário partir de uma identidade pré-definida para definir essa ação. Até mesmo o
questionamento dessas categorias a partir da noção de produção é necessário para resistir a
engessamentos.
Vimos que Butler, ao desenvolver a noção de gênero como ato performativo, coloca a
identidade como efeito desses atos que, com o tempo, adquire a aparência de substância. Essa
noção também leva ao deslocamento do sujeito da posição de anterioridade e causa dos atos
para a posição de efeito desses atos executados repetidamente. A partir dessas novas
concepções de identidade e sujeito, o sujeito do feminismo pode ser deslocado da identidade
“mulher” para um não-lugar onde ele não tem uma definição precisa, no sentido de que é
constituído na medida em que age, atua e luta contra engessamentos, imposições e induções.
O não-lugar do sujeito do feminismo não o livra de ser engendrado pelos mecanismos de
poder, mas permite que “ele” tenha maior liberdade de movimentos e maior potencial de
resistência contra aquilo que ao tentar defini-lo, o imobiliza. A multiplicidade de atos e de
formas de ser e de existir se constitui como a força criativa necessária ao escape de categorias
identitárias e à desorganização de sequências normatizadoras. Escapar à categoria “mulher”
como fundacional para o feminismo abre um campo de manobra para combater uma matriz
que encontra seu potencial de “assujeitamento” justamente na imobilidade das identidades.
Doxa: Rev. Bras. Psicol. Educ., Araraquara, v.19, n.1, p. 51-61, jan./jun. 2017. ISSN: 1413-2060
DOI: 10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819 60
Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero”
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 4.ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1970.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 41.ed. Petrópolis: Vozes,
2013.
SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução de Guacira Lopes Louro. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013.
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