Fichamento Religião Egípcia
Fichamento Religião Egípcia
Fichamento Religião Egípcia
Até pouco tempo era recorrente a afirmação de que os egípcios eram um povo obcecado
com a morte, já que a maioria dos registros que chegaram até nós é proveniente de
material funerário. Essa afirmação, contudo, é simplista demais, uma vez que despreza
os esforços empreendidos pelos egípcios na vida como um todo.
A reconstituição da religião egípcia é por vezes difícil, já que inexistia uma espécie
de código religioso que compilasse seus preceitos como é o caso, por exemplo, da Bíblia
para os cristãos. Havia sim, um corpo de doutrina mais ou menos comum a todo o
território, fruto de tentativas de unificação cultural e a criação de uma “religião nacional”,
mas o que possuímos mesmo são mitos e fragmentos de mitos repletos de variações e
de diferentes versões sobre um mesmo assunto que são, para nós, muitas vezes
contraditórias.
As fontes de que dispomos para reconstruir o pensamento religioso egípcio são
bastante diversas. Relevos pintados em tumbas e nos templos são, por exemplo, ricas
fontes de estudo, da mesma forma que narrativas literárias, em grande parte inspiradas
em mitos divinos. Algumas grandes compilações de textos funerários, como os Textos
das Pirâmides, Textos dos Sarcófagos e Livro dos Mortos são extremamente importantes
para nos auxiliar a compreender a evolução do pensamento religioso em vários
momentos da história egípcia.
Conforme já vimos, os egípcios desenvolveram concepções religiosas bastante
complexas, tanto no que se refere à vida terrena quanto no que se refere à crença na
imortalidade. O pensamento religioso egípcio é bastante pautado na observação da
natureza, a exemplo dos movimentos cíclicos diários - como o nascer e o pôr do sol – e
dos movimentos sazonais, como as cheias do Rio Nilo. É por isso que pdemos entender
por que muitos de seus deuses eram representados na forma antropozoomórfica, ou seja,
uma mistura de homem e animal, como o deus Hórus, que possuía corpo humano e
cabeça de falcão.
Os deuses egípcios funcionavam como personificação de conceitos. Isso significa
dizer que, para os egípcios, o mundo funcionava como uma espécie de rede, na qual
havia vários pontos interligados formando um conjunto. Cada ponto representava um
elemento que, nessa sociedade, era considerado vital à sua sobrevivência e sua
continuidade como, por exemplo, as cheias do Nilo. Esses conceitos eram, por sua vez,
personificados na forma de deuses, como é o caso de Hapi, o deus das cheias. O
conjunto ou a rede formada pela coexistência harmônica de todos esses elementos era
chamada pelos egípcios de maat, a ordem e a justiça, que também possuía um
correspondente na forma divina, uma deusa homônima que era representada com uma
pluma na cabeça.
Esse estado de ordem era, contudo, frágil e impermanente e deveria ser
constantemente assegurado através da realização de rituais nos templos, presididos pelo
faraó em pessoa ou, quando isso não era possível, por sacerdotes do alto escalão. Do
contrário, o universo sucumbiria às forças do caos. Vimos que, segundo o pensamento
egípcio, o mundo era mantido por um frágil equilíbrio, no qual prevalecia a ordem,
também conhecida como maat. Mas o caos, chamado pelos egípcios de isfet, estava
sempre ameaçando a continuidade do mundo e por isso mesmo deveria ser
constantemente combatido.
Para os egípcios antigos, o momento máximo da perfeição do mundo ocorreu no
momento da sua criação, razão pela qual os mitos cosmogônicos adquiriram importância
religiosa central. Não havia um único mito de criação do universo existente no Egito.
Cidade como Mênfis, Hermópolis e Heliópolis tinham cada qual a sua versão da origem
das coisas e, tendo em vista a sua importância política, chegaram a influenciar outras
regiões com a sua tradição. A maioria das versões sobre a criação parte da existência
de um demiurgo criador, que vivia solitário imerso em Nun, as águas primordiais, das
quais teria criado todas as coisas. Outro elemento bastante importante presente na
cosmogonia egípcia é a colina primordial, a qual teria emergido do Nun, e esse quadro
em muito alude ao fenômeno das cheias do Nilo já que, após baixarem as águas, as
terras “emergiam”, simbolizando a fertilidade e regeneração.
No Egito, os templos eram os locais por excelência de realização de rituais aos
deuses. O objetivo central dos cultos e rituais realizados dentro dos templos era reanimar
o poder da criação inibindo o caos e renovando a ordem cósmica que os egípcios tanto
prezavam. A arquitetura templária foi pensada pelos egípcios como um microcosmos, ou
seja, naquele espaço estava também representado o mundo, com todos os seus
elementos principais, em miniatura.
Os templos eram também importantes instituições estatais, e por isso podemos
dizer que a religião produzida pelos sacerdotes era também a religião oficial. Primar pela
continuidade do status quo seria primar também pela continuidade da existência das
hierarquias estabelecidas, a exemplo da obediência à monarquia faraônica. O faraó, ele
mesmo um deus, era o responsável por manter maat na terra; logo, esse princípio
asseguraria também a coesão social, por propiciar o consenso sobre o seu cajado,
conforme apontado pelo egiptólogo Claude Traunecker.
A entrada nos templos não era permitida às pessoas comuns, a não ser em épocas
específicas e em compartimentos também específicos. Isso acontecia porque os templos
eram a morada dos deuses e pertenciam, portanto, ao âmbito do divino, construídos em
terrenos sagrados geralmente separados do mundo comum por grandes muralhas. Os
fiéis poderiam ter contato com os deuses durante os festivais anuais, nos quais as suas
estátuas eram levadas para fora de suas moradas em procissão.
Um papiro atualmente situado em Berlim (Papiro de Berlim 3055) mostra, por
exemplo, os rituais realizados em honra do deus Amon no templo de Karnak, na cidade
de Tebas. Nele, há uma longa lista do que deveria ser feito nos cultos diários à divindade,
acompanhada dos hinos e das fórmulas litúrgicas que deveriam ser recitados a cada ato.
Em um primeiro momento, havia a preparação do culto, que consistia, entre outras coisas,
em acender uma chama e um incenso para purificar o ambiente. A isso se seguia a
abertura do santuário em que se encontrava a estátua do deus, o que seguia certas
normas previamente estabelecidas. Havia uma forma correta de quebrar, por exemplo,
o lacre que selava a porta do santuário.
Fora dos templos e do âmbito da religião oficial fica difícil de saber de que maneira
as pessoas comuns se relacionavam com os deuses e percebiam a religião que lhes era
imposta. Essa dificuldade surge do fato de que a maioria da população egípcia era
analfabeta, e a esmagadora maioria dos documentos que chegaram até nós são
provenientes da visão da elite sobre a sociedade. Sabemos por exemplo, que durante
os festivais era permitido às pessoas em geral consultar o oráculo dos deuses para
buscar respostas às suas angústias pessoais, uma das raras oportunidades que os
egípcios tinham de ficar frente a frente com a divindade.
Um elemento bastante importante da religião popular eram os amuletos apotropaicos,
ou seja, que ofereciam proteção.
Existem registros de que pessoas comuns depositavam ex-votos aos deuses,
espécies de oferendas para a concessão de algum pedido. No Bubasteion, o templo da
deusa Bastet na cidade de Bubástis, foram encontradas inúmeras múmias de gatos
oferecidos como ex-votos, já que esse animal era a forma pela qual Bastet era
representada.
Passaremos, agora, à compreensão de um importante elemento da religião egípcia:
o seu pensamento acerca da morte.
Em primeiro lugar, é preciso compreender que a morte, para os egípcios antigos,
representava algo necessário para que se pudesse atingir um novo nível de existência.
Contudo, ela representava também uma ruptura, a qual traria consequências para o
mundo dos vivos, como a questão da herança e da gestão do patrimônio, por exemplo.
A morte era uma passagem que, como para nós, não era feita sem dor para os que
ficavam e gerava, também, sentimentos de medo e recusa. Por essa razão, os egípcios
utilizavam eufemismos para se referirem a ela.
Não havia, nessa sociedade, uma separação entre o mundo dos vivos e o mundo
dos mortos – tantos estes quanto aqueles faziam parte de uma mesma comunidade. Os
mortos não eram excluídos da sociedade e poderiam, até mesmo, intervir em questões
dos vivos, a pedido deles próprios, conforme observamos através das cartas que os
egípcios escreviam a seus falecidos.
Diferentemente da concepção judaico-cristã, os egípcios não viam o ser através
de uma dualidade entre o corpo e alma. Havia, antes, uma pluralidade de aspectos
corpóreos e não corpóreos que, em conjunto, formavam um indivíduo. Entre os
elementos que compunham o ka, o ba, o corpo, a sombra, o nome e o coração. Para
entendermos melhor as concepções egípcias sobre a morte, devemos compreender,
especialmente, o significado do ka e do ba, que são os elementos não corpóreos.
O ba é o elemento principal da personalidade de um egípcio e pode ser
compreendido como a junção de todos aqueles elementos que fazem de uma pessoa
“única” ou a maneira pela qual uma pessoa se faz conhecer. O ba pode, ainda, ser
traduzido como “princípio de mobilidade”, pois é ele quem permite ao morto transitar em
sua viagem pelos céus. O ba poderia sair da tumba durante o dia, visitar os vivos, mas
deveria retornar ao corpo, seu receptáculo, durante a noite.
O ka é a “força vital” de um indivíduo ou o “princípio de sustento”. Ao ka do morto
deveriam ser apresentadas oferendas constantemente para que esta força vital não se
esvaísse. O ka acompanhava uma pessoa desde o seu nascimento, fazendo parte de
seu corpo durante a vida, mas se separava dele no momento da morte.
Como sabemos, a morte de uma pessoa cessa as suas faculdades físicas e
mentais. Os egípcios acreditavam que era possível reverter esse quadro realizando
certos rituais mágicos, como o Ritual da Abertura da Boca. Nesse ritual um sacerdote se
posicionava atrás do corpo mumificado, usando a máscara de uma importante divindade
funerária, o deus Anúbis. Em frente à múmia, mulheres representavam carpideiras, que
eram contratadas para chorar durante os enterros. Atrás delas, sacerdotes que portavam
instrumentos rituais tocavam a boca do morto para que, com esse gesto, fossem
restauradas as suas faculdades físicas, como a fala. Por último, um sacerdote fazia
libações.
Após a morte, o indivíduo fazia a sua jornada para seu ka. Como o corpo
permanecia na tumba, era o ba quem fazia essa viagem, a qual era repleta de perigos
que deveriam ser vencidos, primeiramente, com a ajuda dos vivos e, posteriormente,
pelo falecido sozinho. A preservação do corpo era importante na medida em que ele
servia como um receptáculo para o ba, que ia visitá-lo na tumba. Era no ritual de
mumificação, portanto, que começavam os preparativos para uma boa morte, uma vez
que seu objetivo era transformar o corpo em algo eterno.
Apesar das crenças funerárias egípcias terem variado ao longo do tempo, o
elemento comum e mais importante de todas as concepções era que o morto pudesse
chegar ao seu estado transfigurado, que era chamado de akh. Essa condição só poderia
ser atingida após a morte e, para o sucesso nessa empreitada, alguns textos funerários
forneciam ajuda essencial - é o caso dos textos das pirâmides, no Reino Antigo, textos
dos sarcófagos, no Reino Médio, e do Livro dos Mortos, no Reino Novo. Era da
união do ka e do ba, após o sucesso da viagem pelos céus, que surgia a nova forma
transfigurada. A travessia ba pelo cosmos ao encontro de seu ka era associada ao ciclo
solar e o horizonte, chamado akhe, era onde se dava a transfiguração.
A vida após a morte representava a integração do falecido aos padrões cíclicos da
natureza. Rá e Osíris eram as principais divindades funerárias justamente por estarem
associados aos ciclos regenerativos naturais – o primeiro era associado ao sol, que
nascia e morria todos os dias, possuindo também outras formas como Khepri, o sol da
manhã, e Atum, o sol vespertino, enquanto o segundo simbolizava a revitalização da
natureza através das cheias do Nilo e do crescimento da vegetação.
A vida após a morte era vista como uma continuidade da vida terrena, por isso
observamos a colocação de pertences na tumba, os quais – acreditava-se – seriam
utilizados pelo morto em sua nova existência. Da mesma forma que os vivos, os mortos
precisavam se alimentar, daí a necessidade de construir uma capela de oferendas, na
qual seriam realizados rituais e depositadas oferendas de alimentos para o ka do morto.
O destino do falecido variou muito ao longo da história egípcia. No Reino Antigo,
somente o rei poderia se tornar um ser imortal, e o seu destino era se juntar aos deuses
nos céus e viver acompanhando Rá, o sol, em uma barca. A ascensão do rei aos céus
poderia ser feita das mais variadas formas possíveis, como consta nos Textos das
Pirâmides, que eram esculpidos nas paredes das pirâmides régias durante o Reino
Antigo. Poder-se-ia, por exemplo, esperar subir aos céus nos ombros da deusa Shu, que
representava firmamento, ou então através de uma escada que levaria até os céus. No
Reino Médio, desenvolveu-se a noção de um mundo dos mortos no Reino de Osíris, que
começou a ser caracterizado de forma mais clara nos Textos dos Sarcófagos (assim
chamados por serem escritos no interior de sarcófagos de indivíduos proeminentes) e
que atingiu sua máxima expressão no Livro dos Mortos, durante o Reino Novo. Nesse
período, acreditava-se que o morto passaria por um julgamento presidido pelo deus
Osíris. Ao chegar no outro mundo o seu coração seria colocado em uma balança ao lado
da pluma da deusa Maat, que representava a ordem e a justiça. Caso o coração do morto
pesasse mais que a pena de Maat isso significaria que ele não havia feito coisas boas
durante a vida terrena e, portanto, não poderia desfrutar da vida após a morte. Seu
coração seria, então, devorado pelo monstro Ammit, e o indivíduo, banido de toda e
qualquer existência posterior.