Sist Penal e Criminaliz FINAL 2

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SISTEMA PENAL

E CRIMINALIZAÇÃO
Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Adriana Marmori Lima


Reitora
Dayse Lago de Miranda
Vice-Reitora

Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEB

Diretora
Sandra Regina Soares

Conselho Editorial

Titulares Suplentes
Adelino Pereira dos Santos Marielson de Carvalho B. da Silva
Alan da Silva Sampaio Nivaldo Osvaldo Dutra
Ana Lúcia Gomes da Silva Cláudia Paranhos de J. Portela
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Marineuza Matos dos Anjos Nilza da Silva Martins de Lima
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Monalisa dos Reis A. Pereira Luciete de Cássia S. L. Bastos
Nadja Santos Vitória Josilda B. L. M. Xavier
Nilson Roberto da S. Gimenes Monica Matos Ribeiro
Paulo César Souza García Carla Severiano de Carvalho
Valério Hillesheim Virgínia Queiroz Barreto
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado
Ney Menezes de Oliveira Filho
Fabiano Pimentel
Organizadores

SISTEMA PENAL
E CRIMINALIZAÇÃO
periculosidade e construção
probatória no discurso jurídico

Salvador
EDUNEB
2023
© 2023 Autores
Direitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia.
Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica,
resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma.
Depósito Legal na Biblioteca Nacional.
Impresso no Brasil em 2023.

Coordenação Editorial
Elisângela Santana dos Santos
Coordenação de Design
Sidney Silva
Capa e Diagramação
Rodrigo Caiobi Yamashita
Revisão Textual
Tikinet Edições Ltda
Revisão Textual de Provas
Denise Dias de Carvalho Sousa
Revisão de Diagramação de Provas
Henrique Rehem Eça
Imagens de Capa
91648152 (textura de aniagem) | AdobeStock

FICHA CATALOGRÁFICA
Bibliotecária: Regina Simão Paulino – CRB 6/1154

Prado, Alessandra Rapacci Mascarenhas, Pimentel, Fabiano, Oliveira Filho, Ney Menezes
(Organizadores)
Sistema penal e criminalização: periculosidade e construção probatória no discurso
jurídico / Organização de Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado, Fabiano Pimentel e
Ney Menezes de Oliveira Filho. – Salvador: EDUNEB, 2023.
266 p.
ISBN 978-65-88211-78-6

1. Direito Penal. 2. Direito Processual Penal. 3. Sistema Penal Brasileiro. 4. Criminalização.


5. Periculosidade. 6. Criminologia Crítica. 7. Desigualdade Penal. I. Título. II. Prado,
Alessandra Rapacci Mascarenhas, Organizadora. III. Pimentel, Fabiano, Organizador. IV.
Oliveira Filho, Ney Menezes, Organizador.
CDD 345

Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEB


Rua Silveira Martins, 2555 – Cabula
41150-000 – Salvador – BA
editora@listas.uneb.br
portal.uneb.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 9

A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE


NO DIREITO PENAL E NO PROCESSO PENAL SOB A
CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL 21
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO DA


PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA 67
Catharina Maria Tourinho Fernandez

ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA


E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA PENA EM FACE
DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO 83
Bernardo Sodré Carneiro Leão
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO COROLÁRIO


DOS DIREITOS HUMANOS 129
Fabiano Pimentel

CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS


POLICIAIS: UM ESTUDO SOBRE SENTENÇAS DE
TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA 147
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro
Ney Menezes de Oliveira Filho
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO:
O CONTROLE JUDICIAL DE VALIDADE DAS NARRATIVAS
POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS 193
Artur Ribeiro Alves

RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:


MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS
NO ÂMBITO DO STJ 249
Karina Calixto de Mattos

SOBRE OS/AS AUTORES/AUTORAS 263


APRESENTAÇÃO

A presente coletânea é composta de textos que visam discutir a atua-


ção do sistema penal brasileiro a partir de questionamentos sobre
processos de criminalização que ocorrem ainda sustentados pela
ideia de defesa social, pautados (explícita ou implicitamente) na
noção indeterminada de periculosidade, muitas vezes legitimados
pelo processo de produção e avaliação das provas.
A partir de discussões travadas no âmbito do Núcleo de Estudos
sobre Sanção Penal (NESP-UFBA), grupo de pesquisa cadastrado no
Diretório de Grupos do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), entre
seus pesquisadores e a comunidade acadêmica, sobre a racionalidade
penal; e a partir da proposta de pesquisa contida no projeto A pericu-
losidade como fundamento para a intervenção penal e a relativização da
racionalização do poder punitivo, pesquisadores assumiram o propósi-
to de deslindar o quanto a periculosidade ainda alicerça a intervenção
penal na imposição da privação da liberdade — seja na modalidade de
prisão cautelar, seja como espécie de pena —, para repensar a inter-
venção penal a partir dos resultados encontrados, bem como no que
diz respeito à culpabilidade e à individualização da pena, colocando à
prova a racionalização do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
Considerando que o processo de criminalização, que passa
pelo juízo de periculosidade, é legitimado também pela construção
probatória, na produção das evidências a serem consideradas nas de-
cisões para afirmar o convencimento dos magistrados, considerou-se
importante que parte das pesquisas tratasse da análise de questões
relacionadas à prova. Dessa forma, a coletânea conta também com

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado |
Ney Menezes de Oliveira Filho | Fabiano Pimentel (Organizadores)

a colaboração da produção do Grupo Direito Penal e Democracia,


coordenado pelo professor Fabiano Pimentel.
Desde o Iluminismo, a sanção penal é justificada por discur-
sos filosóficos e políticos, consubstanciando-se em leis penais e nos
seus respectivos preceitos. Com isso, o poder de punir, no Estado
moderno, é exercido pelos três Poderes sob o manto da legalidade e
de uma perseguida legitimidade. No cenário europeu, fundamenta-
-se a pena como uma resposta racional do Estado em detrimento do
terror de outrora, que se impunha por meio de suplícios.
A criminologia clássica — a partir de autores como Cesare
Beccaria, Gian. Romagnosi e Francesco Carrara — é a responsável
por assimilar as premissas do Iluminismo. A rejeição da irraciona-
lidade da vingança penal, a pena como uma contra motivação para
o crime e, ao mesmo tempo, como restauração do direito violado,
estão entre as principais contribuições decorrentes do referido movi-
mento cultural e filosófico. Os clássicos ainda equiparavam o sujeito
infrator ao cidadão comum, tendo como pressuposto da responsabi-
lidade penal o livre-arbítrio.
Para parte significativa da literatura criminológica, a etapa
científica da criminologia se inicia na segunda metade do século
XIX, quando Enrico Ferri associa o livre-arbítrio à ideia de ilusão
subjetiva e Cesare Lombroso explica o crime em função de aspectos
bioantropológicos. Trata-se de uma outra perspectiva criminológi-
ca, denominada de paradigma etiológico ou criminologia positivis-
ta, por intermédio da qual o sujeito infrator ganha protagonismo.
Assim, a abordagem causal-explicativa dos positivistas substitui o
método dedutivo-abstrato dos clássicos.
A formulação da ideia de periculosidade pela criminologia po-
sitivista — segundo a qual, por ser anormal ou doente, o delinquente
é avaliado em função do seu potencial danoso e das probabilidades de
reincidência — foi decisiva para a legitimação e a regulamentação da

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SISTEMA PENAL E CRIMINALIZAÇÃO
periculosidade e construção probatória no discurso jurídico

imposição de medidas de segurança como forma de controle social


dos inimputáveis em razão de doença mental, mas não só.
A partir, principalmente, das ciências médicas (mais espe-
cificamente da Psiquiatria) e suas interseções com o Direito Penal,
foi construído o binário periculosidade-criminalidade, e apontada
como intrínseca a relação entre periculosidade e doença mental,
bem como a probabilidade de cometimento de novos delitos.
Philippe Pinel (1745–1826) foi pioneiro na separação entre delin-
quentes e enfermos mentais, mas a Criminologia Positivista acabou
por reaproximá-los, ao tratar, por exemplo, do criminoso louco, su-
jeito propenso ao crime por distúrbio mental ou atrofia moral, como
destacou Enrico Ferri (2006).
No Brasil, a criminologia positivista ganhou relevo a partir dos
estudos, pesquisas e escritos produzidos na área da Medicina Legal,
a exemplo das contribuições prestadas por Nina Rodrigues, na Bahia;
Afrânio Peixoto, no Rio de Janeiro; e Oscar Freire, em São Paulo.
A obra de Nina Rodrigues (1862–1906) é um marco na recepção do
pensamento criminológico positivista no Brasil, viabilizando o desen-
volvimento de pesquisas etiológicas com o método empírico, toman-
do por objeto pessoas negras e os povos indígenas. Como resultado,
defendeu, além da eugenia, a responsabilização diferenciada das raças
e a identificação de marcas de degenerescência na população negra.
Nesse contexto, merece destaque o modelo integrado de ciên-
cias criminais, desenvolvido por Franz Von Liszt, como resultado
de pesquisas realizadas na Escola de Marburgo (1850). Segundo
o autor, Direito Penal, criminologia e política criminal integram
o tríptico que configura o referido modelo. Enquanto o Direito Penal
— ciência do “dever ser”, normativa e fundada no método dedutivo-
-abstrato — é incumbido de criminalizar condutas e fixar as sanções
correspondentes, a criminologia e a política criminal são coadjuvan-
tes. A primeira, considerada uma ciência auxiliar, buscaria a obser-
vação da realidade, com o objetivo de encontrar respostas para as

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado |
Ney Menezes de Oliveira Filho | Fabiano Pimentel (Organizadores)

questões-fetiche das ciências criminais: “quem é o criminoso? Por


que ele delinque?”; a segunda seria o conjunto de estratégias de-
senvolvidas pelos Poderes Executivo e Legislativo para inibir novos
comportamentos desviados.
Ademais, é exatamente entre a segunda metade do século
XVIII e o século XIX que são desenvolvidas e aprofundadas as deno-
minadas teorias legitimadoras da pena de retribuição e de prevenção
(intimidação, dissuasão), respostas positivas para a questão do fun-
damento da pena, e assim o Direito Penal moderno se desenvolve
sob a justificativa de objetivar a limitação ao poder político.
Se de um lado, para a proteção desses direitos, que passam a
ser reconhecidos nos textos constitucionais, o recurso à pena passa
a ser cada vez mais recorrente, por outro lado, os princípios ganham
relevância e previsão constitucional, adotados como fundamentos
dos sistemas jurídicos, como limites impostos à produção do direito,
ao exercício do poder.
Entretanto, a função de contenção do sistema jurídico-
-penal (mais especificamente, da dogmática, da legislação e das
decisões judiciais) é contestada pela Criminologia da Reação
Social e pela Criminologia Crítica, que se apoiam não mais sobre
um paradigma etiológico (para saber quais as causas do crime e
quem é o delinquente), mas sobre a investigação dos processos ou
condições de criminalização.
Com o giro metodológico ou virada epistemológica ocorrida
na década de 1960, houve o redirecionamento do interesse cognitivo
da disciplina para além do sujeito infrator. Este perde o protagonis-
mo em detrimento do controle social e da vítima. Conforme asse-
vera Vera Regina Pereira de Andrade (1996), a criminologia deixa
de se concentrar nas causas individuais da criminalidade e passa a
investigar o papel decisivo do sistema penal na (re)produção e legiti-
mação das assimetrias de raça, classe e gênero.

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SISTEMA PENAL E CRIMINALIZAÇÃO
periculosidade e construção probatória no discurso jurídico

A pena então é considerada como um ato político, um ato


de violência do Estado contra determinados grupos sociais. Como
alerta Lola Anyar de Castro, o funcionamento do sistema penal
não condiz com as prescrições normativas, pois, “ainda que proibi-
dos pelo sistema penal aparente, há procedimentos diferenciais para
as classes subalternas no terreno fático:

[…] execução penal à margem dos Direitos Humanos:


carência de condições dignas de vida, de acesso à infor-
mação, à comunicação, a prestações culturais ou des-
portivas etc., e sofrimentos físicos e morais excedentes
aos prescritos por lei (Anyar de Castro, 1984, p. 246).

Na década de 1970, essa transição paradigmática se apresen-


tou na América Latina com as contribuições da referida autora e da
professora também venezuelana Rosa Del Olmo. Com inúmeras dife-
renças em relação aos países centrais, a criminologia latino-americana
ganhou contornos específicos, enunciando uma flagrante crise de
legitimidade do sistema penal, como sustenta Zaffaroni (1991, p. 35):

Com o aparecimento da criminologia da reação social


na América Latina, manifestou-se — com maior evi-
dência do que nos países centrais, em razão da vio-
lência operativa mais forte ou menos sutil de nossos
sistemas penais marginais — a falsidade do discurso
jurídico-penal. […] Se nos países centrais, o discurso
jurídico-penal pôde sustentar-se por certo tempo sem
maiores variantes, ignorando a crítica criminológica
ou sociológica, para o penalismo latino-americano
essa situação revelou-se particularmente insustentá-
vel, em razão da gravidade dos resultados práticos da
violentíssima operacionalidade dos sistemas penais.

Há também que se chamar a atenção para as denúncias reali-


zadas por pesquisadores que utilizamos como referências as teorias

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado |
Ney Menezes de Oliveira Filho | Fabiano Pimentel (Organizadores)

críticas da raça. Segundo esses autores, a exemplo de Ana Flauzina,


Márcia Calazans e Camila Prando, a criminologia crítica — em
função de sua matriz epistêmica europeia e marcadamente marxista
— não conseguiu avançar nas análises das consequências do contro-
le penal racial, perpetuando o pacto narcísico da branquitude.
Nesse sentido, para além da política criminal de combate às
drogas (às pessoas), duas questões parecem contribuir para esse processo
de criminalização que tem impulsionado o encarceramento em massa
no Brasil: uma é o axioma da periculosidade vinculado à ideia de defesa
social; outra, a produção e a avaliação das provas pelo Poder Judiciário.
Na década de 1970, ainda que de maneira tímida, chegam
ao Brasil as contribuições do paradigma da reação social, que, no
lugar de estudar o sujeito infrator, concentram-se na análise dos pro-
cessos de criminalização e de institucionalização dos considerados
anormais, oportunidade em que se destacam os trabalhos de Rosa
Del Olmo, Lola Anyar de Castro, Michel Foucault, Erving Goffman,
Alessandro Baratta e Eugênio Raul Zaffaroni.
Em paralelo, ganha força a crítica antimanicomial, que considera
as instituições psiquiátricas agências de normalização e estigmatização,
(re)produtoras de violência e exclusão social. Trabalhos interdisciplina-
res, conjugando os saberes criminológico e psicológico, são desenvolvi-
dos por Cristina Rauter, Edson Passetti, Antonio Nery, Mariana Weigert,
Ludmila Trindade e Haroldo Caetano. Questiona-se a permanência da
periculosidade como pressuposto da medida de segurança.
As perspectivas abolicionistas e o movimento antimanicomial
ganham espaço na produção científica, o que se revela com o aumen-
to do número de pesquisas empíricas (documentais, etnográficas)
sobre o funcionamento do sistema penal e os processos de crimi-
nalização, inclusive das pessoas portadoras de transtorno mental.
É nesse sentido que as produções científicas mais recentes avan-
çam para uma análise da prisionalização e da manicomialização no
Brasil como processos marcados não apenas por questões de classe,

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SISTEMA PENAL E CRIMINALIZAÇÃO
periculosidade e construção probatória no discurso jurídico

mas também de gênero e raça, como sinalizam Vera Malaguti Batista,


Vera Regina Pereira de Andrade, Carmen Hein, Ana Gabriela
Mendes Braga, Luciano Góes, Thula Pires, Ana Flauzina, Camila
Prando, entre outros/as pesquisadores/as.
No campo do processo penal, constata-se dificuldade similar
para a prevenção geral da vingança pública, ou seja, no sentido de li-
mitar as atividades do poder punitivo. Ainda que exista um arcabou-
ço normativo no ordenamento jurídico-penal brasileiro, os direitos
fundamentais previstos não são suficientes para conter o arbítrio no
Estado no exercício do potestas puniendi. Nesse sentido, observa-se
como a política de drogas, em simbiose com o discurso jurídico das
decisões, tem proporcionado o encarceramento em massa e a morte
de pessoas negras e pobres no Brasil.
Considerando a possibilidade do encarceramento, os proces-
sos criminais que conduzem à condenação por tráfico, em regra,
valem-se dos testemunhos policiais como único meio de prova,
ainda que uma versão diferente seja explicitada pelo réu ou que
nenhuma outra prova seja contrastada nos autos. Trata-se de um
processo penal que, no lugar de garantir os direitos do cidadão, viola
as premissas constitucionais correlatas à prisão, escapando das suas
funções formalmente declaradas. Na mesma perspectiva de argu-
mentação, encontra-se a contribuição de Maria Gorete Marques de
Jesus, quando analisa, em sua tese, a construção da verdade jurídica
nos processos criminais de tráfico de drogas.
Dessa forma, o primeiro texto, A infiltração do axioma da peri-
culosidade no Direito Penal e no processo penal sob a condescendên-
cia da dogmática penal, de autoria de Alessandra Rapacci Mascarenhas
Prado, apresenta uma análise crítica sobre o axioma da periculosida-
de e sua infiltração no Direito Penal e no Direito Processual Penal,
revelando a inconsistência científica e a perspectiva ideológica desse
instituto, indicando a necessidade de desconstrução de qualquer fun-
damentação dogmática centrada na ideia de periculosidade.

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado |
Ney Menezes de Oliveira Filho | Fabiano Pimentel (Organizadores)

O segundo artigo, A natureza feminina como elemento da pe-


rigosidade: crime, mulheres e loucura, de autoria de Catharina Maria
Tourinho Fernandez, tem por objetivo analisar a introdução de elemen-
tos relacionados à natureza feminina, bem como à fisiologia dos corpos
femininos, no conceito de perigosidade, utilizado como justificativa
fundante e instrumento de manutenção das medidas de segurança
aplicadas às mulheres consideradas loucas — portanto inimputáveis —
quando da constatação da prática de condutas tipificadas como delitivas.
No terceiro texto, Onde está o perigo no crime de furto:
raça e classe na não substituição da pena em face do estereótipo da
perido sujeito, Bernardo Sodré Carneiro Leão e Alessandra Rapacci
Mascarenhas Prado, considerando o processo de criminalização se-
cundária, em que a reprovação penal recai sobre o sujeito (sob o ar-
gumento de sua perigosidade), e não sobre o fato, partem do seguinte
questionamento: quais fatores aparecem na construção do juízo da
perigosidade na fundamentação das sentenças condenatórias que
negam a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas
de direitos nos casos de crime de furto? Para tanto, foram analisa-
das decisões judiciais proferidas no âmbito do Núcleo de Prisão em
Flagrante de Salvador, sob a perspectiva da criminologia crítica, as-
sociada à perspectiva racial da questão criminal. Percebeu-se, por
fim, que a classe e a raça são fatores centrais nos encarceramentos e
que a periculosidade é frequentemente associada à reincidência, sem
que haja preocupação com a individualização ou a contextualização
das circunstâncias do caso concreto.
O quarto texto, O interrogatório parcial como corolário dos di-
reitos humanos, de autoria de Fabiano Pimentel, analisa o instituto do
interrogatório judicial e a sua natureza de meio de defesa, classificando-
-o como corolário dos direitos humanos. Essa premissa implica no
direito fundamental a um interrogatório parcial, no qual seja possível
exercer parcialmente o direito ao silêncio, de modo que a estratégia e a
conveniência de utilização seja livre e atribuída ao acusado e sua defesa.

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SISTEMA PENAL E CRIMINALIZAÇÃO
periculosidade e construção probatória no discurso jurídico

Em seguida, o quinto artigo, Construção probatória e depoi-


mentos policiais: um estudo sobre sentenças de tráfico de drogas em
Camaçari/BA, escrito por Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro e
Ney Menezes de Oliveira Filho, consiste em um estudo sobre a força
probatória do depoimento do policial que participou da diligência
da prisão do acusado em casos de tráfico de drogas. A pesquisa foi
desenvolvida a partir da seguinte problematização: qual a principal
fundamentação das decisões de condenação por tráfico de drogas
na Comarca de Camaçari, Bahia, no período correspondente aos
anos de 2021 a 2022? Como objetivo geral, buscaram-se as razões/
motivos do convencimento do julgador nas sentenças, tendo como
standard probatório o depoimento pessoal dos agentes de segurança
envolvidos nas diligências da prisão. O estudo se deu por meio da
análise dessas decisões, exaradas nas Varas Criminais de Camaçari,
Bahia. Quanto à metodologia, optou-se pela pesquisa empírica, rea-
lizada através do estudo de oito sentenças, avaliadas por meio de for-
mulário criado na plataforma Microsoft Forms, sendo utilizadas as
abordagens qualitativa e quantitativa. Demonstrou-se, como resulta-
do, a fragilidade das provas utilizadas na sentença para a condenação
dos acusados, já que majoritariamente ancoradas nos elementos do
inquérito, além da predileção pelas narrativas propostas pelas teste-
munhas de acusação, em detrimento da versão do réu.
Na sequência, o artigo Verdade jurídica e construção do delito:
o controle judicial de validade das narrativas policiais nos processos
de tráfico de drogas, de autoria de Artur Ribeiro Alves, analisa de
que forma o testemunho policial é valorado pelo Poder Judiciário
nos processos de tráfico de drogas, intentando identificar os fatores
endo e exoprocessuais que influenciam na razão de decidir. Para
tanto, concentra-se a análise na interação entre o aparato policial e
o sistema de justiça criminal. A metodologia da pesquisa consistiu
na análise jurisprudencial e teórica acerca do tema. Inicialmente,
é examinada a evolução da legislação de drogas e da sua simbiose

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado |
Ney Menezes de Oliveira Filho | Fabiano Pimentel (Organizadores)

com a seletividade racial do sistema penal. Em seguida, são examina-


das as dinâmicas do flagrante, levando em consideração a noção de
suspeição policial. Ainda, são considerados os estímulos institucio-
nais e externos que podem influenciar na ação policial. Por fim, são
examinados dezenove acórdãos proferidos no âmbito de apelação
pelos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
A partir dessa análise, constatou-se que um sistema de crenças é
responsável pela presunção de idoneidade do testemunho policial.
O texto que finaliza a coletânea, Risco de reiteração e Direito
Penal do autor: uma análise quanto aos fundamentos para manuten-
ção de prisões preventivas no âmbito do STJ, de autoria de Karina
Calixto de Mattos, analisa a seletividade penal em casos de pedidos
de revogação de medidas cautelares pessoais pelo Superior Tribunal
de Justiça (STJ). Foi realizada análise de conteúdo dos acórdãos profe-
ridos ao longo do mês de junho do ano de 2022, relativos ao crime de
corrupção, tanto ativa quanto passiva. Foram consideradas como hi-
póteses iniciais a existência de maior incidência de prisões preventivas
quando o crime de corrupção está associado ao tráfico de drogas e à
correlação entre periculosidade e o risco de reiteração utilizada como
fundamento para a decretação/manutenção de prisões preventivas
quando o crime de corrupção aparece associado ao tráfico de drogas.
Dessa forma, os autores e as autoras pretendem contribuir para
uma reflexão a respeito da necessidade de mudanças na construção
da dogmática penal e da dogmática processual penal, partindo das
denúncias realizadas pelas perspectivas críticas da criminologia
quanto ao funcionamento seletivo do sistema penal.

Fabiano Pimentel
Ney Menezes de Oliveira Filho
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado
Organizadores

18
SISTEMA PENAL E CRIMINALIZAÇÃO
periculosidade e construção probatória no discurso jurídico

REFERÊNCIAS

ANYAR DE CASTRO, Lola. Derechos humanos, modelo integral


de la ciencia penal, y sistema penal subterraneo. In: ZAFFARONI,
Eugenio Raul (org.). Sistemas penales y derechos humanos en
América Latina (primer informe). Bueno Aires: Depalma, 1984.
p. 233-247.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico
ao paradigma da reação social: mudança e permanência de
paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 14, abr./jun. 1996.
p. 276-287.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda
de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

19
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA
PERICULOSIDADE NO DIREITO
PENAL E NO PROCESSO PENAL SOB A
CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

3. Esta Corte Superior firmou entendimento de que a


medida de segurança é aplicável ao inimputável e tem
prazo indeterminado, perdurando enquanto não for
averiguada a cessação da periculosidade (Precedentes
STJ)1 (Brasil, 2021, p. 1, AgRg. no HC 455452 / PR).

Conforme pacífica jurisprudência desta Corte, a pre-


servação da ordem pública justifica a imposição da
prisão preventiva quando o agente possuir maus ante-
cedentes, reincidência, atos infracionais pretéritos, in-
quéritos ou mesmo ações penais em curso, porquanto
tais circunstâncias denotam sua contumácia delitiva
e, por via de consequência, sua periculosidade (Brasil,
2022a, p. 1, HC 727509 / PR).

1
Inclusive, chama a atenção que o referido julgado afasta a aplicação da Súmula n. 527 do
próprio STJ, sem qualquer referência a argumentos doutrinários, apenas citando o HC
112227 / RS, T5, Rel. Ministro Jorge Mussi, j. 17/06/2010 e o AgRg no REsp 1555227 / MG,
j. 23.04.2018, que afirma que “somente com base em parecer médico poderá o magistrado
decidir acerca da liberação do internado” e cita como precedente o HC 233474 / MT, T6,
Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 19/04/2012, que se refere ao prazo indeterminado.

21
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

3. A desnecessidade de dados técnicos ou exames


feitos por especialistas não exime julgador de aferir, a
partir de elementos concretos dos autos — relaciona-
dos à índole do réu, seu histórico social e familiar, sua
vida social etc. —, uma maior ou menor propensão
à prática de crimes ou um grau maior ou menor de
periculosidade do agente (Brasil, 2022b, p. 1, AgRg no
HC 629109).

Três decisões do Superior Tribunal de Justiça, três situações distintas:


uma referente ao tempo de cumprimento da medida de segurança;
a segunda, à decretação de prisão cautelar; e a terceira, à dosimetria
da pena. Um ponto em comum: decisões judiciais (reiteradas) que
implicam na privação da liberdade, tendo por fundamento a pericu-
losidade do agente.
Observa-se que, em regra, em decisões como essas não se dis-
cute a adoção da periculosidade como fundamento: no máximo, são
discutidos os limites da sua implicação — a exemplo de como avaliar a
personalidade e a conduta social do agente, na dosimetria — ou o risco
para a ordem pública, nas prisões cautelares. São, portanto, decisões
que partem do dogma da periculosidade, isto é, da consideração do
estado perigoso como atributo de determinadas pessoas, que colocam
em risco a ordem social e justificam, assim, a intervenção penal.
Passado mais de um século das primeiras discussões sobre
a definição de periculosidade, e a despeito de sua inconsistência2
(Bruno, 1977; Foucault, 2001; Barros-Brisset, 2011; Rauter, 2013;
Caetano, 2019), esse conceito permeia tanto o Direito Penal quanto
o Direito Processual Penal, seja expressamente, como pressuposto
da medida de segurança—, seja disfarçadamente, como medida da
2
Desde as primeiras discussões a respeito da disciplina jurídica do estado perigoso nas
Assembleias da União Internacional de Direito Criminal, na Europa, entre 1892 e 1912,
é perceptível a falta de uniformidade de entendimento sobre a adoção de um conceito de
estado perigoso em razão de sua amplitude e falta de clareza. Sobre a discussão nas referidas
Assembleias, ver: Bruno, 1977.

22
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

individualização da pena (na análise da personalidade, da condu-


ta social, dos antecedentes e da reincidência)—, e fundamento da
prisão cautelar (na análise do perigo para a ordem pública).
Tais constatações nos levam a questionar o papel da dogmá-
tica penal diante das arbitrariedades de decisões judiciais pautadas
no argumento da periculosidade como meio de defesa da sociedade.
Dessa forma, o objetivo desta pesquisa foi analisar como o
axioma da periculosidade se expandiu para além da legitimação da
intervenção penal sobre a pessoa portadora de transtorno mental,
abrangendo não apenas a imposição da medida de segurança, mas
também seu papel como lastro maior para o encarceramento em
massa e a seletividade do sistema penal.
O texto foi construído a partir de pesquisa teórica, pautada
em perspectivas criminológicas críticas a respeito da periculosida-
de, bem como de fontes indiretas, isto é, pesquisas empíricas que
tiveram como objeto decisões judiciais referentes à dosimetria da
pena, à decretação de prisão cautelar e à imposição de medida de
segurança. Ainda, a fim de analisar se a dogmática penal cumpre
o papel limitador do poder punitivo, conduzimos uma pesquisa
documental, que teve por objeto acórdãos do Superior Tribunal de
Justiça que abordam a periculosidade, para instruir um dos recortes
apontados na pesquisa.

FORMULAÇÃO DA PERICULOSIDADE E SUA


INDETERMINAÇÃO

No campo jurídico penal, as primeiras construções dogmá-


ticas foram edificadas sob a inspiração do Iluminismo, e adotaram
uma perspectiva metafísica da responsabilidade, do crime e da pena.
A dogmática penal, assim, consiste na sistematização de conceitos
que viabilizam a conformação, a interpretação e a aplicação do

23
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

direito positivado. Inicialmente, essa abordagem foi fortemente


influenciada pela Filosofia, visando racionalizar o poder punitivo
do Estado por meio da garantia da legalidade e de um Direito
Penal centrado nos fatos.
Nessa formulação, o ser humano é abstratamente conside-
rado sujeito de direitos que deve obediência à norma jurídica, que
serve à sua proteção. A responsabilidade penal é fundamentada
no livre-arbítrio; conduta, consciência e vontade são pontos de
partida para a sistematização das teorias do crime, que se define
como violação da norma jurídica sujeita a uma pena. Esta é uma
forma de limitar o poder punitivo do Estado e garantir segurança
jurídica aos cidadãos. Inicialmente, atribuiu-se à pena a finalida-
de de retribuição, posteriormente justificada como meio de pre-
venção (geral) do delito. No entanto, a estrutura lógico-abstrata
da dogmática penal, seu método técnico-jurídico, apartado dos
dados ontológicos, são postos em xeque com o desenvolvimento
da criminologia positivista, que denuncia a ineficácia do Direito
Penal para conter a criminalidade.
A criminologia positivista, pautada na luta contra o delito,
adotando o modelo causal-explicativo, concebe o crime como um
fenômeno observável, um ente natural, um dado pré-constituído,
resultante de patologias ou anormalidades individuais e/ou sociais.
Nessa abordagem, o ser humano torna-se objeto de estudo, consi-
derando-se sua diversidade (diferenças entre criminosos e não-cri-
minosos; classificação dos criminosos), e a intervenção penal passa
a se justificar em razão de um determinismo bioantropológico e/ou
psicossocial, visando a defesa social.
Assiste-se, desde então, a um estreitamento da relação entre
o Direito Penal, a Antropologia e, principalmente, a Psiquiatria
Forense, pela via da criminologia positivista, que tem como objeto o
estudo do crime a partir da perspectiva do delinquente, perquirindo

24
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

sobre o nexo causal entre fatores biológicos, antropológicos e sociais


e a criminalidade.
A ideia de periculosidade surge associada à noção de degene-
rescência em Morel (1857), que, considerando traços morais e físicos,
apoiado nos conceitos de norma e normalidade, “propôs classificar
os degenerados através de seus graus de perigos e localizá-los mesmo
antes de qualquer delito” (Barros-Brisset, 2011, p. 46), considerando
que “[...] aqueles que portam um estado doentio, como o da alie-
nação mental, são perigosos para a segurança pública e, portanto,
mesmo sem ser culpados, devem ser sequestrados da sociedade”
(Barros-Brisset, 2011, p. 46).
Nesse contexto, Rafael Garófalo (1916, p. 123) afirmava que
o delito

[...] está sempre no indivíduo e é a revelação de


uma natureza degenerada, quaesquer que sejam as
causas, antigas ou recentes, d’essa degeneração […]
[e] é o effeito de causas individuaes actuando n’um
particular ambiente physico ou em particulares con-
tingencias sociaes; mas, como estas condições existem
também para os que não delinquem, ellas não podem
ser senão causas occasionaes: — o verdadeiro factor
do delicto deve procurar-se no modo de ser especial
do indivíduo, que a natureza creou delinquente.

A causa desse “modo de ser especial” foi revelada em outro


texto:

[…] a diminuta sensibilidade, a imprevidencia, a


volubilidade, a lascivia extrema e a crueldade são
anormaes nas raças superiores, communs nas inferio-
res; não constituem desvios do typo humano, mas do
typo aperfeiçoado que os povos cultos representam
(Garófalo, 1916, p. 127, grifo do autor).

25
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Garófalo se referiu, em diversas passagens à anomalia moral,


à nomalia psíquica e à perversidade inata dos criminosos,3 para
então propor que o “critério positivo da penalidade” fosse a temibi-
lidade do agente em sua obra De un criterio positivo en la penalidad
(1880). Referira-se à temibilidade como “[...] a perversidade cons-
tante e ativa do delinquente e a quantidade de mal previsto que se
deve temer por parte do mesmo” (apud Ferri, 2006, p. 114–115).
A questão seria definir “[...] qual o processo para determinar a
perversidade constante do réu e o grau de sociabilidade que porven-
tura subsista n’elle” (Garófalo, 1916, p. 345), se “[...] o delinquente é
por completo destituído de senso moral e portanto insusceptível de
toda a adaptação ou se o seu frouxo senso moral, suffocado por ha-
bitos ou ainda por particulares e excepcionais circumstancias, pode
resurgir em novas condições de vida” (Garófalo, 1916, p. 345-346).
Dessa forma, Garófalo (1916, p. 346) defendeu que a penalidade não
deve ser proporcional à gravidade do delito, mas à temibilidade do
réu, e em razão dela se justifica, para atender à função de prevenção,
de obstáculo ao perigo.
Segundo Enrico Ferri (2006, p. 114–115), essa formulação
conferiu “valor científico e função jurídica no ordenamento da
justiça penal” à periculosidade, como “perigo que representa o
autor do crime em relação às probabilidades de repetir outras ações
criminosas”. Assim, consolidou-se, no âmbito da Escola Positiva, a
periculosidade4 como pressuposto e/ou medida da intervenção em
defesa da sociedade.

3
Enrico Ferri (2006, p. 84–85) considera que “o delinquente é sempre um anormal” — por
diversas razões (atavismo, degeneração, falta de desenvolvimento, patologias, atipia ou
desvios endocrinológicos). “O homem que comete um crime, seja por impulso próprio
fisiopsíquico dominante (causa endógena) ou por predomínio de condições do meio (causa
exógena), encontra-se em condições anormais” (Ferri, 2006, p. 86).
4
Segundo Arturo Rocco, a temibilidade é a consequência da periculosidade, com o que concor-
daram diversos autores (Ferri, 2006, p. 115). Verifica-se que o termo periculosidade (perigosi-
dade, estado perigoso, étad de danger, gefährlichkeit, dangerousness) foi o mais difundido.

26
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

A criminologia positivista então estabeleceu como critério


para justificar a intervenção penal o determinismo, ou, mais especi-
ficamente, a perigosidade criminal — “[...] o homem com sua carga
hereditária e as suas deformações criadas pela vida, esse homem que
se extraviara da norma e em quem possivelmente existiam condições
que o levariam novamente a delinquir”, condição “que os tornava ini-
migos potenciais da sociedade” (Bruno, 1984, p. 258).
O reconhecimento da periculosidade como pressuposto da
intervenção penal foi objeto de intensos debates nos Congressos da
União Internacional de Direito Criminal (1892 a 1913). Diversos
foram os posicionamentos: desde a crítica à amplitude da definição
e, consequentemente, a contrariedade à sua regulamentação jurídica
ou à “determinação concreta daquelas categorias de delinquentes
perigosos” (a exemplo dos reincidentes, alcoólicos, deficientes de
qualquer espécie, mendigos e vagabundos); da sugestão do requisito
da prática do primeiro delito como critério definidor à referência ao
estado transitório da periculosidade; da indicação da periculosidade
em razão da reincidência à periculosidade por antecedentes heredi-
tários; da imposição de medida de segurança para determinadas ca-
tegorias de indivíduo à aplicação para todos considerados perigosos,
inclusive imputáveis (Bruno, 1977).
Foram intensos os debates em torno da elaboração do con-
ceito de periculosidade. Enquanto o grupo francês, preocupado
por evitar arbitrariedades, resistia à sua disciplina legal, o grupo
belga-alemão, interessado pela defesa social, insistia no seu reconhe-
cimento (Bruno, 1977). Assim, por pequena maioria, foi expedida
uma resolução que, embora considerasse “inadmissível a aplicação
legislativa, ao código penal, de um conceito geral do estado peri-
goso”, recomendava o exame da “determinação concreta daquelas
categorias de delinquentes perigosos” aos quais seriam aplicadas as
medidas de segurança5 (Bruno, 1977, p. 16–17). Então, no Congresso
5
Ver também Jimenez de Asúa, 1920, p. 20–21.

27
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

de 1913, foi reconhecido o estado perigoso, ainda que não fosse pro-
posta qualquer definição.
Em outro plano, governos seguiram a política criminal defen-
sista e acolheram a formulação do estado perigoso, fazendo-a reper-
cutir na legislação ou em projetos de leis (Jiménez de Asúa, 1920).
Na sequência, Jiménez de Asúa (1920) defendeu que a dis-
cussão sobre livre-arbítrio deveria ficar a cargo da filosofia, devendo
interessar ao Direito Penal a noção de estado perigoso e sua utili-
zação como medida para individualização do tratamento. Embora
adepto da formulação de temibilidade, Jiménez de Asúa (1920, p. 19)
assumiu que, ao ser ampliado, o conceito de estado perigoso adotado
pela Escola da Defesa Social perdeu “aquela concepção clara e gene-
ralizada6 formulada por Garófalo, o que resultou nas discrepâncias
e vaguezas das novas definições, sendo quase impossível determinar,
naquele momento, a concepção de estado perigoso. Segundo de Asúa
(1920, p. 23), não era possível “[...] aceitar o estado perigoso como
fórmula parcial, coexistente com os conceitos de imputabilidade e
culpabilidade, no antigo sentido, falar de perigo para a sociedade em
certos casos e entender que não existe em otros”.7
O autor concluiu, porém, que o medo da arbitrariedade dos
julgadores não poderia criar obstáculos à tarefa defensista, pois:

[...] os juízes do novo sistema penal, verdadeiros mé-


dicos sociais, não terão [...] outras limitações senão as
impostas por sua prudência e honestidade, aliadas à sua
competência científica (Jiménez de Asúa, 1920, p. 33).8

6
No original: “aquella concepción clara y generalizada” (Jiménez de Asúa, 1920, p. 19).
7
No original: “aceptar el estado peligroso como fórmula parcial, coexistente con los
conceptos de imputabilidad y culpabilidad, en el viejo sentido, hablar de peligro para la
sociedad en ciertos casos y entender que no existe en otros” (Jiménez de Asúa, 1920, p. 23).
8
No original: “[…] los jueces del sistema penal nuevo, verdaderos médicos sociales, no
tendrán, […], otras limitaciones que las que les impongan su prudencia y honradez, unidas
a su competencia cientifica” (Jiménez Dde Asúa, 1920, p. 33).

28
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

Verifica-se, portanto, que a construção do Direito e da dog-


mática área penal cedeu espaço para institutos gestados pelas deno-
minadas ciências auxiliares, a criminologia e a política criminal e,
principalmente, o saber médico, que passou a interferir diretamente
nos rumos do Direito Penal.
Jimenez de Asúa (1920) sustentava, ainda, que as medidas de
segurança cumpririam a função de prevenção mais que a de repres-
são, própria das penas, as quais tinham caráter expiatório, sendo pos-
sível que essas últimas fossem totalmente substituídas por aquelas.
Enrico Ferri, inclusive, elaborou uma distinção entre pericu-
losidade social, que é verificada antes da prática do delito e envolve
anormalidade físico-psíquica do sujeito —, tornando-o, por razões
de segurança, inadaptável à vida livre —, e periculosidade crimi-
nal, que é verificada após a prática do delito e diz respeito ao crime
cometido ou a seu potencial ofensivo e o perigo que representa a
possibilidade de sua repetição ou do cometimento de outras ações
criminosas. Esse critério é considerado pela justiça penal com o ob-
jetivo de “[...] conseguir a adaptação da sanção repressiva à persona-
lidade do criminoso” (Ferri, 2006, p. 137).
Adolfo Prins (apud Jiménez de Asúa, 1920, p. 25; Soler, p. 65,
1929) sustentou que o estado perigoso se manifestava não apenas
em relação às pessoas que violavam as normas, mas também antes
do crime; o perigo social, porém, resultaria da criminalidade). Para
Jiménez de Asúa, reconhecer a perigosidade pré-delitual teria a van-
tagem de unificar as sanções sob o manto da garantia jurisdicional,
suprimindo a ação da polícia de segurança.
Sebástian Soler (1929), contrariamente, questionava a pe-
rigosidade pré-delitual e seus fundamentos, apontando sua ficção,
especialmente quando os mendigos são incluídos entre as classes
perigosas. Ele considerava que a relação não parecia suficientemente
clara, e o perigo criminal da mendicância inexato, na maioria das
vezes. Por isso, advertia que

29
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

[…] o mendigo deve interessar ao Estado não como


um delinquente possível, senão como mendigo, como
indivíduo derrotado que se soma nas filas de uma
classe desamparada, improdutiva, testemunho vivo
da inferioridade da nossa organização social, de nossa
inconsciente indiferença (Soler, 1929. p. 199–200).

Soler sustentava ainda a inadequação da aplicação dessa


teoria, por insuficiente, à infância abandonada, aos alienados men-
tais e, à “semi-loucura”. Sua adoção efetivaria uma ficção absoluta,
ora abrangendo todos os mendigos e alienados, ora selecionando
dessas categorias sujeitos que, além de mendigos, loucos etc., são jul-
gados individualmente perigosos, restringindo o alcance do necessá-
rio direito de intervenção do Estado sobre um número maior que o
daqueles que oferecem um perigo puramente criminal (Soler, 1929).
Em razão do risco em que punha as garantias individuais à li-
berdade dos cidadãos, e por medo da arbitrariedade dos juízes, foram
levantadas muitas objeções contra essa formulação (Jimenez de Asúa).

A CONCILIAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE COM


O DIREITO PENAL DO FATO

A superação da disputa estabelecida entre os adeptos da Escola


Clássica e da Escola Positiva — livre arbítrio versus determinismo,
retribuição versus defesa social/prevenção, culpabilidade versus pe-
rigosidade —, ocorreu a partir das propostas apontadas pelas “di-
reções intermediárias”, principalmente pela Escola Sociológica ou
Político-Criminal, representada por Franz Von Liszt, e pela Terceira
Escola Italiana, que teve como expoentes Alimena e Carnevalle
(Gracia Martin, 2007). Conforme Salo de Carvalho (2013a, p. 271),
a consolidação da dogmática penal se dá a partir de uma contradi-
ção, “[...] como reação às pretensões epistemológicas do positivismo

30
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

criminológico e, ao mesmo tempo, como harmonização e incorpo-


ração de suas premissas no discurso jurídico”; ou, nas palavras de
Anibal Bruno (1977, p. 26):

[…] essa dubiedade de posição em frente ao pro-


blema conduz à aceitação concorrente de princípios
doutrinariamente divergentes: estado perigoso e res-
ponsabilidade moral; medida de segurança e pena;
crime, fenômeno natural, e crime, entidade jurídica.
Dualismo justo e aceitável na legislação atual, ilógico e
estéril na doutrina.

Nesse sentido, Saleilles (2006, p. 149), após confrontar pos-


tulados da Escola Clássica com as formulações da escola positiva,
concluiu que

[…] o determinismo e a liberdade compenetram-se


como duas condições indispensáveis, ambas, para
vida social; sem lei de causalidade somente há o im-
previsto; sem a relação das causas secundárias, não
cabe juízo equitativo. Mas sem a ideia de liberdade
não há, pelo menos no sentir popular, nem moral,
nem justiça.

E, a partir daí, tenta compatibilizar a responsabilidade, funda-


da na liberdade, com a individualização da pena, baseada no estado
de criminalidade.

A periculosidade presumida
Quanto à periculosidade, Grispini (apud Bruno, 1977,
p. 20-24) a considerava “[...] o conceito fundamental de todo o direi-
to criminal”, servindo tanto como “[...] pressuposto para aplicação de
uma sanção criminal, quanto no caso em que se determina a aplica-
ção de uma medida de polícia”; a definia como “[...] a capacidade de

31
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

uma pessoa de tornar-se, com probabilidade, autora de um delito”;


e defendia que ela deveria servir como “[...] um conceito fundamen-
tal de todo Direito Penal”.
Em oposição, Soler (1929, p. 189) denunciava não ser a pe-
rigosidade, “[...] por impossibilidade teórica e prática, um critério
científico”, mas apenas uma ficção jurídica, e, ainda assim, imprecisa
e indeterminada, aconselhando muita prudência, também em rela-
ção à periculosidade pós-delitual.
Mesmo sem critérios definidores específicos e determinados
pela Psiquiatria Forense, pela criminologia ou pelo Direito Penal;
ainda que presumida e sem possibilidade de individualização,
a periculosidade foi adotada, em muitas legislações, com suporte na
doutrina, como axioma legitimador da intervenção penal para inim-
putáveis em razão de doença mental ou mesmo para imputáveis. Isto
porque a dogmática penal de base liberal, que se propôs instrumento
de contenção do poder punitivo, cedeu espaço a construções da cri-
minologia positivista, o que se espelha na legitimação da intervenção
penal sobre o louco infrator sob a justificativa de contenção da peri-
culosidade e no disfarce da periculosidade em “equivalentes funcio-
nais” (Zaffaroni; Batista; Slokar, 2017, p. 176), isto é, como medida
da pena, sob o argumento de individualização — compactuando
com a atribuição de fins utilitaristas à pena (de prevenção geral ou
especial) —, ou como fator determinante da prisão cautelar em caso
de risco para a ordem pública.
No caso do “louco infrator”, considerando a legislação penal
brasileira, a periculosidade sempre foi presumida, não havendo que
se produzir provas sobre tal estado, sendo suficiente o exame de insa-
nidade; e o fim da medida de segurança, condicionado à cessação de
periculosidade atestado por laudo médico, a despeito da inexatidão
deste termo.
Maria Fernanda Tourinho Peres e Antônio Nery Filho
(2002, p. 352–353) sustentam a fragilidade da periculosidade como

32
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

fundamento da medida de segurança, criticam a associação norma-


lizada entre loucura e estado perigoso, pois a doença já mostra o
agente “em sua personalidade criminal, em sua máxima periculosi-
dade”, constatada em laudo psiquiátrico que examina sua sanidade
mental, sem que o juiz precise analisar as circunstâncias pessoais do
agente no caso concreto. Os psiquiatras forenses tornam-se, então,
os “árbitros da criminalidade”9 (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1390).
A presunção de periculosidade decorre, portanto, de um saber
moralizante, que se impõe como verdade, e permite a imposição
da segregação sem necessidade de prova da condição de perigoso,
porque intrínseca ao “louco” que comete um fato típico e antijurídi-
co. Presume-se, assim, ser essa pessoa:

[…] um sujeito incapaz de responder, de saber,


de falar por si mesmo da sua experiência; portanto,
um sujeito que não precisa ser considerado e escutado
enquanto um ser falante capaz de saber transmitir o
que importa sobre sua vida, ainda que seja ao seu
modo (Barros- Brisset; Juncal, 2018, p. 3–4).

Além disso, percebe-se a dificuldade de o indivíduo retomar


a liberdade, seja em razão da indefinição do que é periculosidade —
e a dúvida acarreta a sua continuidade —, seja porque a internação
agrava seu estado.
Observa-se, portanto, a infiltração do Direito Penal do autor
no Direito Penal do fato com a condescendência da dogmática penal.
Aceita-se a convivência de uma teoria que parte de uma ideologia li-
beral — pautada na legalidade, a partir da consideração do fato, mas
não distanciada do sujeito — com uma teoria que parte da ideologia
da defesa social, pautada na periculosidade, a partir da consideração

9
Pesquisas informam que, em regra, os juízes reproduzem ipsis litteris os laudos; mas,
em alguns casos em que os laudos concluem pela liberdade, os juízes infirmam a periculo-
sidade com uma interpretação própria dos laudos.

33
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

de atributos pessoais para legitimação ou como medida da interven-


ção penal (pena; prisão cautelar). Como diz Vera Regina Pereira de
Andrade (2003, p. 181), “[...] há um concurso de discursos na legiti-
mação do sistema que não obedecem a uma coerência interna”.
A despeito de questionamentos e desconstruções realizadas
em diversas áreas — da psiquiatria às ciências sociais, por exemplo
— sobre a definição e adoção da periculosidade como critério le-
gitimador da violência estatal, bem como sobre o poder atribuído
à psiquiatria e à consistência dos laudos periciais, essa conciliação
prevalece na dogmática, orientando legislador e magistrados/as
(Roesler; Lage, 2013), além de teóricos e docentes do Direito Penal.
Pesquisas que tiveram por objeto os laudos psiquiátricos indi-
cam sua falta de consistência científica. Na década de 1970, Foucault
(2001, p. 51) alertava que os exames psiquiátricos não correspondiam
ao saber psiquiátrico vigente, e que “[...] nenhuma prova histórica
de derivação do exame penal remeteria nem à evolução do direito,
nem à evolução da medicina, nem mesmo à evolução geminada de
ambos”. A partir da análise de laudos psiquiátricos e seus termos,10
Foucault (2001, p. 21) conclui que

[…] o exame psiquiátrico permite constituir um


duplo psicológico-ético do delito. Isto é, deslegalizar
a infração tal como é formulada pelo código, para
fazer aparecer por trás dela seu duplo, que com ela
se parece […], e que faz dela não mais, justamente,
uma infração no sentido legal do termo, mas uma ir-
regularidade em relação a certo número de regras que
podem ser fisiológicas, psicológicas, morais etc. […]

10
São as noções que encontramos perpetuamente em toda essa série de textos: “imaturidade
psicológica”, “personalidade pouco estruturada”, “má apreciação do real”. Todas essas
são expressões que encontrei efetivamente nesses exames: “profundo desequilíbrio
afetivo”, “sérios distúrbios emocionais”. Ou ainda: “compensação”, “produção imaginária”,
“manifestação de um orgulho perverso”, “jogo perverso”, “erostratismo”, “alcebiadismo”,
“donjuanismo”, “bovarismo” etc. (Foucault, 2001, p. 20).

34
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

O que é mais grave é que, na verdade, o que é proposto


nesse momento pelo psiquiatra não é a explicação do
crime: na realidade, o que se tem de punir e a própria
coisa, e é sobre ela que o aparelho judiciário tem de
se abater.

Bernard L. Diamond (1974, apud Roesler; Lage, 2013, p. 360)


explica:

Se o psiquiatra subestima […] o perigo e libera um


paciente que mais tarde comete um ato violento,
ele será exposto a críticas severas. Se, em contra-
partida, ele prevê em excesso […] o perigo, ele não
sofrerá qualquer consequência dessa previsão falha,
porque sua previsão poderia ter se tornado verda-
deira se não tivesse havido intervenção (como a
institucionalização).

E assim a loucura (atualmente denominada transtorno mental


pela psiquiatria forense),11 declarada no laudo de insanidade, é per-
petuada como reveladora da periculosidade (presumida), fundamen-
tando a aplicação, pelo juiz, da medida de segurança, que é cumprida
em uma unidade denominada psiquiátrica, mas que é também de
custódia, sob a promessa de fazer cessar a periculosidade.

11
Mitjavila e Mathes (2012, p. 1384–1385), ao analisarem significados e formas de enunciação
de periculosidade criminal, afirmam que “[...] a posição majoritariamente encontrada […]
caracteriza-se por questionar o grau e alcance das relações entre doença mental e periculo-
sidade criminal, sobretudo a partir de resultados de pesquisas de origem anglo-saxônica que
destacam a existência de fracas ou nulas correlações entre ambas as variáveis, principalmente
nos casos de estudos populacionais”. Entretanto, “[...] a noção de ‘transtorno mental’, e não
mais a de loucura, […], é o principal fundamento contemporâneo da medicalização do crime
e da periculosidade criminal”, o que “faz com que se assegure sua permanência como objeto da
psiquiatria”. “Na medida em que se tende a associar etiologicamente a personalidade criminal
com transtornos da personalidade […] a segregação e confinamento dos indivíduos assim
diagnosticados acabam sendo as respostas sociais e técnicas em que os universos jurídico-
-penal e médico, uma vez mais, convergirão” (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1389).

35
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Essa vinculação naturalizada entre crime, perigo e loucura


para a normalização da classificação normais/anormais tem servido
para legitimar a criminalização de determinadas pessoas conside-
radas indesejáveis no grupo social — em razão de sua classe, raça
(Castelo Branco, 2019) ou gênero (Santos, 2020) — e seu abando-
no nos hospitais psiquiátricos, o que reforça a estigmatização da
“loucura” (Goffman, 1974; Foucault, 2001). E mais: a presunção
da periculosidade, diz Fernanda Otoni Barros-Brisset (2018, p. 2),
“indubitavelmente […] permite a realização do genocídio silencioso
das pessoas algemadas por tal sentença segregativa”.

Desconstrução da periculosidade como categoria válida


à fundamentação da intervenção penal
Nas ciências sociais, a exemplo da criminologia crítica
(Castelo Branco, 2019), e do próprio Direito Penal (Fragoso, 2013;
Karam, 2002; Carvalho, 2013b; Caetano, 2019), questionamentos
são feitos sobre a validade do axioma positivista da periculosidade.
Juarez Cirino dos Santos (2006, p. 638) também aponta:

[…] a inconsistência desses fundamentos: primeiro,


nenhum método científico permite prever o compor-
tamento futuro de ninguém; segundo a capacidade
da medida de segurança para transformar condutas
antissociais de inimputáveis em condutas ajustadas de
imputáveis não está demonstrada.

Fernanda Otoni Barros-Brisset (2011, p. 49) afirma que:

[…] essa engenhoca conceitual está a serviço de


uma ficção, e mesmo por ser ficção não deixa de ter
efeitos mortíferos ao incidir no real dos corpos e das
práticas institucionais, na maioria das vezes, calando

36
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

e mortificando a resposta do sujeito em sua singulari-


dade inequívoca e impossível de prever.

Esse artifício talvez ainda sobreviva porque alimenta


a arte do discurso do mestre, político-gestor, em fazer
crer ser possível presumir a periculosidade das pes-
soas e garantir a segurança para os demais. Contudo,
o perigo aí se instala quando essa ideia termina por
suturar a possibilidade de novas leituras para os atos
humanos e sua articulação intrínseca ao contexto
sociológico de cada época.

Mitjavila e Mathes (2012, p. 1391) alertam para possíveis con-


sequências socioculturais da utilização dos modelos etiológicos de
construção da periculosidade criminal, e destacam:

[…] sua contribuição à despolitização dos fenômenos


da saúde e da criminalidade e, consequentemente,
à despolitização das instâncias públicas e coletivas e à res-
ponsabilização crescente dos indivíduos e suas famílias
na provisão de cuidados e no controle da criminalidade.

Claudia Roesler e Leonardo Lage (2013, p. 14), ao analisarem


indicadores de periculosidade

[...] encontrados em laudos periciais elaborados pelo


IML do Distrito Federal: concluem que (a) muitos
indicadores não têm qualquer relação com a doença
mental em questão, em especial aqueles relativos à
‘curva vital’ e à ‘morfologia do crime’ […]; (b) outros,
além de terem pouco a ver com a questão da insanida-
de mental, contêm excepcional conteúdo valorativo;
por fim, (c) chama atenção a sua abrangência.

A falta de conexão das perícias com o real singular de cada caso


também é apontada por Fernanda de Barros-Brisset e Regina Juncal

37
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

(2018, p. 3–4), que aduzem: “[...]partindo de premissas higienistas e


ideológicas, as perícias apresentam como possível um mundo que só
existe nas confabulações do examinador”, e contaminam e dirigem
a doutrina e a prática penal, demonstrando “a força do saber espe-
cializado, seu poder sobre os destinos da loucura no âmbito penal”.
Lembrando que “[...] a naturalização da loucura como intrinsecamen-
te perigosa, bem como o conceito de periculosidade trata-se de um
esquema moral que foi normatizado”; e que o poder que se exerce com
o estabelecimento da ideia de um sujeito padrão (que não existe):

[…] contribui historicamente para a padronização


de comportamentos, a criação de norma e a noção
de desvio. Não diz necessariamente sobre as reais
capacidades de pessoas concretamente consideradas
(Barros-Brisset; Juncal, 2018, p. 6).

E concluem:

A presunção de que o dito ‘louco infrator’ é uma


ameaça intrínseca à sociedade só seria admissível
se essa presunção se estendesse a todo e qualquer
indivíduo, pois nada mais humano que o crime e a
loucura. Fora isso, tal presunção se revela segregativa,
destrói possibilidades de conexões inéditas e invia-
bliza a construção de uma saída democrática quanto
ao modo como nossa sociedade responde aos crimes
praticados por quem quer que seja. Afinal, não existe
crime normal, todo crime é fora da lei, fora da norma,
portanto, anormal (Barros-Brisset; Juncal, 2018, p. 9).

Neusa Maria Guareschi e Mariana Weigert (2015, p. 776) susten-


tam a importância de se afastar o conceito de periculosidade, e assim

[…] retirar[-se] o principal alicerce de toda a


lógica perversa que se volta ao sujeito interno nos

38
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

manicômios judiciários brasileiros. E […], apontar


a impossibilidade científica de se precisar o grau de
perigo e as futuras condutas de alguém leva todo o
regime de verdade estruturado sobre a periculosidade
à lenta e irreversível desconstrução.

O Movimento Antimanicomial, que se espalha pelo


mundo ocidental a partir das décadas de 1960 e 1970, repercute
no Brasil e tem como uma de suas conquistas a promulgação da
Lei no. 10.216/01, denominada Lei de Reforma Psiquiátrica, que esta-
belece uma nova perspectiva para política de saúde mental, garantin-
do cidadania à pessoa portadora de transtorno mental, contribuindo
para dissociar a loucura do perigo. Além disso, em termos legislati-
vos, em 2015, foi promulgado o Estatuto da Pessoa com Deficiência
(Lei no. 13.146), norma

[...] destinada a assegurar e a promover, em condições


de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais por pessoa com deficiência, visando à
sua inclusão social e cidadania (art. 1o.).

O artigo 84 prevê que “[...] a pessoa com deficiência tem asse-


gurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de
condições com as demais pessoas”. E, apenas quando necessário, “[...]
a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”.
Portanto, há uma mudança de paradigma no tratamento
da autonomia e do exercício de direitos — a exemplo do direito à
propriedade, ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à pri-
vacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto — da pessoa
com deficiência mental, considerando sua autonomia e o exercício
da cidadania.
Porém, no processo penal, em razão da presunção de periculosi-
dade e do estigma de incapacidade de manifestação, o “louco infrator”

39
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

não participa, permanece em silêncio, como advertem Fernanda


Barros-Brisset e Regina Juncal (2018, p. 5) — “os peritos falam em seu
lugar”. Portanto, considerando o reconhecimento dessas pessoas como
sujeitos de direito, se elas são submetidas a um processo, que pode
ter como resultado a privação da liberdade, é preciso lhes garantir o
acesso à justiça, à fala perante o juiz. As autoras entendem que:

Conferir a esses sujeitos a possibilidade de alçar tal


força pulsional ao campo do discurso, servindo-
-se da língua própria para conferir forma simbólica
ao impossível de dizer que precipitou o ato, é uma
aposta no laço social: uma sutura no lugar da ruptura.
É dar condições para que ele possa estabelecer outras
saídas para a sua angústia que não a passagem ao ato,
que não o crime, enquanto responde por sua posição,
ou seja, seu modo de viver a pulsão. Quanto a isso, somos
todos loucos, porque ‘há o gozo’; pulsa no ser uma coisa
que ultrapassa a jurisdição do pensamento, pois há uma
vontade que não pensa, que não tem governo, nem
nunca terá (Barros-Brisset; Juncal, 2018, p. 5).12

As críticas que desconstroem o axioma da periculosidade, bem


como as alterações legislativas que reconhecem a cidadania das pessoas
com deficiência mental, precisam repercutir também na esfera penal
— seja do ponto de vista da legislação, seja do da dogmática penal —,
possibilitando repensar as formas de controle social exercidas sobre

12
O PAI-PJ — Programa de Atendimento Integral ao Paciente Judiciário, do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, é um dispositivo conector entre o serviço de saúde mental e o
poder judiciário, que visa atender o paciente judiciário longe do regime de internação per-
manente, dos hospitais psiquiátricos. Fernanda de Barros-Brisset e Regina Juncal (2018,
p. 8) afirmam que “o êxito do PAI-PJ se mostra não apenas por articular a rede de saúde
mental como Poder Judiciário sem se pautar na periculosidade para o direcionamento do
tratamento, mas também por demonstrar que, ao ampliar os recursos discursivos e mate-
riais favorecem o laço social, a redução da passagem ao ato é uma resposta, como demonstra
a redução a quase zero da reincidência por crimes hediondos”.

40
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

as pessoas com deficiência mental. Mas, como sugere Fernanda de


Barros-Brisset (2018, p. 3), é preciso dialogar com:

[…] o saber dos ‘loucos’. Não é mais possível, […],


que os pré-conceitos sobre a loucura, forjados desde o
século XVIII, continuem a determinar e assujeitar tais
pessoas a essa tecnologia de controle e mortificação
que é a medida de segurança. Portanto, a mudança
de paradigmas deve acontecer para além do ‘saber
especializado’.

INFILTRAÇÃO DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL


E NO PROCESSO PENAL: AS FISSURAS ABERTAS PARA A
SELETIVIDADE PENAL

Embora aparentemente rechaçada em relação aos imputáveis,


a periculosidade é também associada à aplicação da pena, assim
como na seara processual, especificamente, à decretação da prisão
provisória.

Individualização da pena como instrumento de


prevenção do crime
Zaffaroni et al.(2017, p. 177) alertam:

[…] quando, por evidentes razões política e jurídi-


cas constitucionais e internacionais, vedou-se o uso
deste conceito [periculosidade] atrelado a tantos
genocídios, esforços para encontrar um equivalente
funcional surgiram aferrados às ideologias mais in-
compatíveis e desencontradas.

41
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

É importante ressaltar como o axioma da perigosidade conse-


gue se imiscuir em um denominado Direito Penal do fato. Conforme
Zaffaroni et al. (2017, p. 176–177), após a falência do positivismo é
possível identificar uma série de tentativas de substituir a periculo-
sidade “[...] por outro conceito que — sob o nome de culpabilidade
— operasse como seu funcional”. A partir do momento em que a
culpabilidade passa a ser considerada, além de categoria do delito,
“medida da pena”, abre-se uma brecha para que seja convertida, por
alguns, em uma culpabilidade de autor.
Então, à culpabilidade se soma o axioma da individualização
da pena. Nesse contexto, observa-se que individualização ganha
status de princípio garantista, mas também sem desenvolvimento
consistente sobre seus contornos, sua definição. Há um silêncio
sobre sua origem pautada nas premissas da criminologia positivista,
e seu atrelamento à função da pena de prevenção (tratamento, recu-
peração ou reintegração social).
É preciso considerar que a proposta inicial de uma teoria
de individualização da pena, elaborada por Raymond Saleilles,
em 1898, teve por base formulações da escola positiva, isto é, de que
a pena, enquanto um meio de defesa e de segurança pública, e não de
expiação ou reprovação, deve se adequar à natureza da perversidade
do agente, para impedir que se revele em novos atos.13
Em sua monografia sobre esse tema, Saleilles (2006, p. 135
e 228 e 235–237) sustenta que “[...] é necessária uma individua-
lização fundada na criminalidade subjetiva do ato”, “segundo a
criminalidade passiva do agente”, considerando a intensidade da
criminalidade, com “amplo espaço à apreciação judicial”, a partir
da classificação dos agentes em incorrigíveis (tendo por base a

13
Saleilles (2006, p. 124) refere que “[...] já em 1869, Walhberg, ao mesmo tempo que colocava
em circulação a própria palavra individualização, já estabelecia com riqueza de detalhes que
conservam hoje sua importância, a relação indispensável entre a subjetividade psicológica
do indivíduo e a determinação da pena”.

42
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

reincidência), os que não necessitam de reforma (com ausência de


delito anterior) e recuperáveis.
A individualização, portanto, inicialmente foi pensada para
ser um instrumento de reintegração social, para adequar a pena
ao indivíduo, visando compatibilizar a organização jurídica tra-
dicional com certas soluções da escola italiana (Saleilles, 2006).
Saleilles propõe que a natureza da pena deve ser determinada
segundo a criminalidade passiva do agente (a que se identifica
com o fundo do caráter), isto é, a natureza do agente, a origem
da criminalidade individual, a intensidade e o tipo de crimina-
lidade devem ser consideradas no momento da individualização
pelo juiz. Enquanto isso, a medida terá como critério a criminali-
dade ativa (fator psíquico que deu origem ao impulso do crime),
isto é, o motivo (Saleilles, 2006).
Segundo Ferrajoli (2002, p. 366–367), o problema da justifi-
cação da “[...] medida da pena, independente do delito cometido,
é um problema moral e político”. Como diz Zaffaroni (2011, p. 259)14:

[...] não é possível ignorar os dados sociais sobre o efetivo


exercício do poder punitivo possibilitado pela lei penal. E o
certo é que, ao longo da história — seja lá o que diz o direito
penal — o poder punitivo sempre foi exercido escolhendo
pessoas, ou seja, invariavelmente como se o direito penal
fosse de autor, o que, com variações por vezes importantes,
continua até o presente.

É possível perceber na legislação penal brasileira, mesmo após


a reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984, a in-
fluência da Escola Positiva e o quanto alguns critérios a serem con-
siderados pelo juiz para a individualização da pena estão pautados
14
No original: “no es posible ignorar los datos sociales acerca del efectivo ejercicio del poder
punitivo habilitado por la ley penal. Y lo cierto es que, a lo largo de la historia — dijese lo
que dijese la ley penal — el poder punitivo se ejerció siempre eligiendo personas, o sea,
invariablemente como si el derecho penal fuese de autor, lo que, con variantes a veces
importantes, continúa hasta el presente” (Zaffaroni, 2011, p. 259).

43
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

na ideia de periculosidade, ainda que parte da doutrina entenda que


a reprovação, como juízo de valor da culpabilidade, deva levar em
consideração a conduta do agente e não quem ele é.
O artigo 59 do Código Penal estabelece que, para determi-
nação da pena, devem ser considerados: “[...] culpabilidade, ante-
cedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e
consequências do crime”, o que se aproxima muito dos critérios su-
geridos por Enrico Ferri (2006, p. 139) para avaliação da periculosi-
dade criminal: “[...] a gravidade do delito, os motivos determinantes
e a personalidade do agente”, principalmente no que diz respeito a
esse último. O autor italiano refere-se à obrigação de juntada da cer-
tidão de antecedentes penais ao processo como mais um indicativo
da “necessidade de conhecer a personalidade do agente”; e à necessi-
dade de a “personalidade do sujeito ser colocada em primeiro plano”,
pela lei penal, “[...] com um sistema de normas que deem realidade
ao princípio da Escola Positiva, a saber: adaptar a sanção do crime à
periculosidade do criminoso” (Ferri, 2006, p. 163).
Nesse sentido, Michael Foucault (1987, p. 165) adverte:

[…] utilizar de processos de individualização para


marcar exclusões — isso é o que foi regularmente
realizado pelo poder disciplinar desde o começo do
século XIX: o asilo psiquiátrico, a penitenciária, …,
de um modo geral todas as instâncias de controle
individual funcionam num duplo modo: o da divisão
binária e da marcação (louco-não-louco; perigoso-
-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação
coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde
deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo;
como exercer sobre ele , de maneira individual, uma
vigilância constante etc.).

Vinícius Machado (2009, p. 92–93), ao analisar 501 procedi-


mentos de aplicação da pena em sentenças condenatórias proferidas

44
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

no Tribunal de Justiça do Distrito Federal nos anos de 2006 a 2007,


observa que a culpabilidade é a circunstância judicial mais utilizada
para justificar a fixação da pena base acima do mínimo legal (apare-
cendo em 76,5% desses casos). A análise de tal circunstância, entre-
tanto, aparece como um discurso mecânico, automático, utilizando
“[...] expressões como ‘a conduta demonstrada pelo acusado eviden-
cia regular índice de reprovabilidade, tendo em vista que possuía o
potencial conhecimento da ilicitude dos fatos, sendo socialmente
reprovável o seu proceder quando dele se exigia comportamento
diverso” ou é reprovável porque praticou determinada conduta —
subtraiu ou tirou a vida de alguém. Nesse último caso, a avaliação
da culpabilidade se equipara à avaliação do estado perigoso, ou seja,
ela se revela através do crime praticado, segundo ensinamentos de
Grispigni.15 No Brasil, o principal marco dos fundamentos normati-
vos para aplicação da pena são os princípios da individualização e da
proporcionalidade da pena, sem que exista, entretanto, um suporte
teórico sistematizado, adequado, aprofundado para sua interpreta-
ção e aplicação. No tocante à individualização, sua análise é feita,
principalmente, a partir do disposto na legislação penal. Observa-se,
de forma geral, o tímido desenvolvimento da dogmática penal nesse
aspecto, com forte influência ainda da criminologia positivista na
definição de tais critérios, tanto do ponto de vista teórico quanto do
ponto de vista da individualização judicial.

15
Segundo Heitor Carrilho (1948, p. 34), Filippo Grispigni desenvolveu considerações “[...]
no sentido de demonstrar que o primeiro elemento sobre o qual se baseia a apreciação
da periculosidade é precisamente o delito realizado, o qual, no seu entender, sendo um
meio para a apreciação do psiquismo do autor e tendo, portanto, além de um valor causai,
também um valor sintomático, é o elemento apropriado para um juízo neste sentido. E diz,
textualmente: ‘O crime é sempre o elemento de primária e decisiva importância para o juízo
da periculosidade’”. Segundo Anibal Bruno (1977, p. 32), “Grispigni põe em consideração,
para o estudo da periculosidade, os seguintes elementos: 1o. O delito cometido, elemento
para ele de máximo valor sintomático. 2o. Conduta posterior ao delito. 3o. A vida anterior.
4o. Perícia antropológica ou psiquiátrica”.

45
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Pesquisas que têm por objeto sentenças condenató-


rias de mulheres pela prática do crime de tráfico de
drogas revelam como a prática desse delito por si só
é considerada como indicativo da periculosidade das
rés. Acrescenta-se que são pesquisas que informam
os perfis das condenadas como mulheres negras e
economicamente vulnerabilizadas. Nessas decisões
também se repete a generalização dos critérios va-
lorados pelo/as magistrado/as. O fundamento para
imposição da pena superior ao mínimo legal foi a má
conduta social da ré — uma vez que ela não possuía
ocupação lícita, obtendo seu sustento somente através
do tráfico de drogas — e as graves consequências do
crime, tendo em vista que ‘[…] corrompe o indivíduo,
a família e a sociedade, sendo ‘porta de entrada’ para
outros crimes de elevada violência, psíquica e física
[…] (Prado; Silva, 2020, p. 137).

A periculosidade também se infiltra na consideração dos


antecedentes e da reincidência. No primeiro caso, há decisões que
contrariam o princípio da presunção de inocência e afastam a pena
do mínimo legal com base em inquéritos policiais, sentenças crimi-
nais, absolutórias ou condenatórias, ainda não transitadas em jul-
gado (Machado, 2009, p. 98; Fernandes; Oliveira; Fernandez, 2020,
p. 171–173). Além disso, os antecedentes, segunda circunstância
com maior destaque na fundamentação da dosimetria da pena nas
sentenças analisadas por Machado (2009, p. 98–99), por vezes eram
referidos de forma sintética “os antecedentes são desabonadores” ou
“registra maus antecedentes”.
Vale lembrar que a reincidência em crime doloso, na redação
original do Código Penal de 1940, estava prevista entre as hipóteses
de presunção de periculosidade (art. 78, IV), seguindo orientação da
criminologia positivista. Além disso, atualmente, é uma das agravan-
tes previstas no artigo 61, inciso I, do Código Penal Brasileiro, além

46
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

de repercutir em diversos momentos da execução da pena — desde


a determinação do regime inicial de cumprimento da pena à conces-
são ou vedação de direitos.
Assim como a loucura, a reincidência foi associada à existên-
cia de um impulso criminoso intrínseco à pessoa que comete um
crime ou à sua perversidade. Nesse sentido, Heitor Carrilho (1948,
p. 40), ao aderir aos ensinamentos da Escola Positiva, diz que o rein-
cidente é aquele que:

[…] não se adaptou e persistiu na atividade antissocial,


é o que permaneceu insensível às normas corretivas e
passou indiferente a todas as boas sugestões e trata-
mentos para a vida harmônica. A reincidência é, não
raro, a clara revelação de impulsões e de perversões.

Verifica-se, portanto, como adverte Vera Regina Pereira de


Andrade (2003, p. 233), que “[...] a dogmática penal se apoia em
crenças e fundamentos teóricos totalmente desacreditados pelo co-
nhecimento contemporâneo”.
A defesa da reincidência como reveladora da periculosida-
de, nos termos postos por Carrilho (1948, p. 40), desconsidera as
possíveis causas externas da reiteração de condutas consideradas
criminosas. O autor, além disso, afirma que peritos, ministério pú-
blico, juiz e administração penitenciária se esforçam para garantir a
regeneração do condenado; nesse último caso,

[...] humanizando, como deve[m], a privação da liberda-


de, aplica[m] os processos terapêuticos que se supõem
capazes de regenerar o reincidente. Mas, apesar desses
esforços, não raro, triunfam as razões da reincidência.

Tais razões se apartam da realidade social, do concreto fun-


cionamento do sistema penal e das repercussões do sistema prisional
sobre os indivíduos a ele submetidos.

47
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Em pesquisa realizada em 374 sentenças condenatórias do Distrito


Federal, Machado (2009, p. 101) verifica que a personalidade aparece
como terceira circunstância mais citada para justificar a pena acima do
mínimo legal (47,7%). Machado (2009, p. 102–103) registra que

[...] as sentenças condenatórias se pautam pelo deter-


minismo em 90% dos casos, o que se notabiliza em
expressões como ‘personalidade voltada para o crime’,
‘personalidade distorcida’, ‘personalidade comprome-
tida com a prática de delitos […]’

Muitas dessas expressões trazem sua própria justificação.


O que falta, prossegue o autor, é

[…] o individualizar nos procedimentos de aplicação


da sanção penal. […] Esse sujeito é apresentado em
um discurso pronto, cujo teor já cuida de seu caráter
delinquente, da sua natureza anormal, de sua tendên-
cia ao crime. Se os indivíduos são sempre os mesmos,
‘farinha do mesmo saco’, o individualizar perde o
sentido (Machado, 2009, p. 129).

Dina Alves (2017, p. 112), ao analisar o caso de uma mulher


“negra, sem dentes, homossexual, carroceira e vivendo nas ruas da
cidade”, flagrada com 18 pedras de crack e R$ 540,00, e com onze
passagens pelo sistema prisional paulista até 2014 em razão do tráfi-
co de drogas, registra:

Embora a quantidade de droga apreendida e seu estado


de penúria sugerisse que D. Joana fosse apenas uma ven-
dedora localizada no andar de baixo do lucrativo comér-
cio de drogas, ela teve a condenação de 8 anos, 10 meses
e 20 dias de reclusão no regime inicialmente fechado,
sob a alegação do juiz de que é uma ‘perigosa’ trafican-
te de drogas.Na sentença, o juiz — um jovem branco,

48
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

de acordo com Dona Joana — afirmou que a mulher


tinha ‘um caráter incorrigível’ e demonstrava ‘uma per-
sonalidade deformada e voltada à prática delituosa’.

Dina Alves (2017, p. 112) observa que a condenação baseada em


sua “temibilidade” contrasta “com a leniência jurídica sobre jovens de
classe média envolvidos com o tráfico de drogas”. E chama atenção para

[…] os termos subjetivos da sentença que indicam a


suposta predisposição pessoal para o crime revelam/
escondem uma ‘episteme racial’ (Fanon, 1967) que
nos remete aos discursos científicos do século XIX.

Dina Alves, no artigo Rés negras, juízes brancos, reporta o caso


de uma mulher negra, empregada doméstica, que aos 29 anos de idade
foi condenada, pelo roubo de um prestobarba e de R$ 41,00, em uma
farmácia, a uma pena de 7 anos, 3 meses e 3 dias de reclusão. Além disso,
foi decretada a perda do pátrio poder dos filhos menores e a inclusão
deles em casa de adoção. Na versão da ré, ela não estava dentro do esta-
belecimento no momento do fato. Na fundamentação da sentença cons-
tava que “a ré apresenta personalidade voltada para o crime e, portanto,
não tem condições de ter convivência com seus filhos, ensejando assim
a majoração da reprimenda”. Alves (2017, p. 116) constata: “[...] a sen-
tença não pune apenas Verônica, mas criminaliza a maternidade negra”.
É certo que não é comum encontrar menção expressa pre-
conceituosa ou discriminatória relacionada às questões de gênero,
classe ou raça. Porém, isso não significa que esses marcadores não
interfiram na valoração das circunstâncias a que têm conhecimento
magistrados e magistradas, como pondera Debora Moreno (2019).
A autora observa, por outro ângulo, a omissão dos magistrados de
neutralizar as condições econômicas e a maternidade das rés negras,
desconsiderando circunstâncias quando estas deveriam interferir no
abrandamento da punição.

49
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Juarez Tavares (2011, p. 129) assinala que as circunstâncias


do artigo 59 do Código Penal devem ser ponderadas e submetidas
ao crivo de necessidade e proporcionalidade. Assim, após exame da
culpabilidade, os demais critérios, complementares “[...] devem ser
considerados em favor do réu, e não contra ele”. Entretanto, não é
isso que acontece nas sentenças de uma forma geral. O que se verifi-
ca, muitas vezes, é o registro de circunstâncias desfavoráveis, apenas.
Outra referência generalizante, comum nas sentenças condena-
tórias por tráfico de drogas, diz respeito à motivação do crime, isto é,
ao “desejo de lucro fácil”, como destacam Daniel Fernandes, Debora
Oliveira e Gabriel Fernandez (2020). Os autores e a autora confron-
tam a assertiva a partir da crítica feita por Vera Malaguti Batista ao
risco de morte a que se expõem as pessoas envolvidas com o tráfico
de drogas, bem como a exploração a que são submetidas algumas
pessoas, que ficam apenas com uma pequena parte do lucro; trata-se,
portanto, de atividade de alto risco. Algumas vezes, à atividade ilícita
se soma algum trabalho lícito, subsistindo, ainda assim, a dificuldade
financeira. Fernandes, Oliveira e Fernandez observam a vulnerabilida-
de socioeconômica dessas pessoas, a despeito do lucro apontado nas
decisões, e como ela é ampliada a partir da intervenção penal.16
Mais uma vez é percebida a distorção da análise da condição
econômica das rés, colocando-as na condição de merecedoras de
maior punição, quando o contrário seria o mais acertado, em con-
traposição ao Direito Penal do autor.
Vê-se, pois, que predomina a aplicação da pena fundada em
formas de conduta de vida — como elemento da culpabilidade que
encobre a periculosidade como pano de fundo, muitas vezes não es-
pecificadas. Embora parte da doutrina pretenda estabelecer limites à

16
Os autores e a autora inclusive concluem que “[...] seria possível afirmar que a valoração
da ideia de lucro fácil para ampliar a pena figuraria como forma bis in idem, de ‘dobra de
punição’ inconstitucional” (Fernandes; Oliveira, Fernandez, 2020, p. 163–164).

50
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

culpabilidade como medida da pena e à individualização, este não é


o posicionamento que predomina na prática judicial.
A despeito da doutrina brasileira conferir à periculosidade
apenas a função de fundamento da intervenção penal para os “loucos
infratores”, e sustentar a culpabilidade como medida da pena, perce-
be-se que os postulados deterministas prevalecem no que diz respei-
to à individualização judicial da pena, favorecendo à seletividade de
pessoas vulnerabilizadas pela classe, pela raça e/ou pelo gênero.

Perigo para ordem pública como fundamento da prisão


cautelar
A periculosidade também está presente, de maneira implícita,
no Direito Processual Penal, vinculada ao instituto da prisão caute-
lar. Nesse caso, verifica-se que a referência à periculosidade remonta
à associação que a Escola Positivista construiu entre periculosidade
e “reiteração criminosa”,17 habitualidade e modo de vida sob a roupa-
gem de “garantia da ordem pública”, inclusive

[…] quando a motivação é baseada em fatos ligados


à pessoa do acusado (periculosidade, por exemplo) e
não à conduta por ele praticada, as chances da prisão se
prolongar por todo o processo são exponencialmente
aumentadas, sobretudo porque elementos intrínsecos
à pessoa do agente o acompanham indefinidamente
(Chaves Junior; Silva, 2020, p. 67).

Juan Antonio Lascuraín (2013), ao tratar sobre a prisão provi-


sória mínima, diz que a prisão cautelar é a expressão com que deno-
minamos uma das instituições jurídicas que mais custa se encaixar

17
O que justificou, inclusive, por um tempo — da promulgação do Código Penal de 1940 à
sua reforma em 1984 — a adoção do sistema do duplo binário (imposição de medida de
segurança também para imputáveis perigosos).

51
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

em um ordenamento jurídico de legitimação democrática. Por isso


deve ser medida excepcional. De acordo com o Código de Processo
Penal Brasileiro:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada


como garantia da ordem pública, da ordem econô-
mica, por conveniência da instrução criminal ou para
assegurar a aplicação da lei penal, quando houver
prova da existência do crime e indício suficiente de
autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade
do imputado.

A primeira hipótese diz respeito à “garantia da ordem públi-


ca”, cuja origem, segundo Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa
(2015), remonta à Alemanha da década de 1930, período em que
o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e
aberta para prender. Inclusive, pesquisas revelam o recurso frequen-
te a esse fundamento para decretação de prisões cautelares no Brasil,
associando-o à periculosidade do agente ou ao receio de reiteração
criminosa. Os autores entendem tratar-se de previsão inconstitu-
cional, por não ter função cautelar, pois não tutela o processo, mas
transforma a prisão em medida de segurança pública, “de polícia do
Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo
penal”; além de ser “imprescindível a estrita observância ao princí-
pio da legalidade e da taxatividade”, sendo impossível diagnosticar a
perigosidade do agente (Lopes Junior; Rosa, 2015).
Odone Sanguiné também entende que, nessa hipótese, a pri-
são “nada tem que ver com os fins puramente cautelares e proces-
suais que oficialmente se atribuem à instituição”, mas lhe é atribuí-
da função de segurança da sociedade contra a criminalidade. “Isso
revela que a prisão preventiva cumpre funções reais (preventivas
gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natu-
reza” (Sanguiné, 2001, p. 29).

52
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

Pesquisa realizada para investigar os elementos estruturais


e ideológicos que fomentam o uso abusivo da prisão provisória
no Brasil (especificamente no Distrito Federal, Rio Grande do Sul,
Paraíba, Tocantins, Santa Catarina e São Paulo), concluiu, após aná-
lise de julgados sobre tráfico de drogas, que a frequência do argu-
mento da ordem púbica como balizador das decretações das prisões
revela “[...] um padrão decisório que perpassa os diferentes tribunais
de justiça das capitais pesquisadas” (Azevedo et al., 2018).
Esse mesmo Relatório (Azevedo et al., 2018, p. 264) registra
que, no tocante ao crime de roubo, em alguns dos Tribunais (SC, SP
e RS), a “garantia da ordem pública” e a reincidência dos pacientes
foram determinantes para a manutenção da prisão preventiva, “des-
consideradas as condições subjetivas favoráveis, como residência
fixa e emprego lícito”.
Da mesma forma que na individualização da pena, ao avaliar
a necessidade de garantia da ordem pública, os tribunais reconhe-
cem os registros de antecedentes relativos a atos infracionais ou a
condenações sem o trânsito em julgado como indicativos de perigo
de reiteração delitiva e da personalidade voltada para o crime,
e não concedem a liberdade, na maioria dos casos. Conforme
observado por Azevedo et al. (2018, p. 275), “A reincidência, por
sua vez, é lida frequentemente como elemento que incide negativa-
mente sobre a personalidade do acusado”.
O Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal, em convênio
com o Tribunal de Justiça da Bahia (IBADPP, 2017, p. 32), ao realizar
pesquisa sobre as audiências de custódia realizadas em Salvador, verifi-
cou que, das 285 decisões analisadas que decretaram prisão preventiva,
114 fizeram referência à periculosidade do sujeito como fundamen-
to, em conjunto ou não com outros requisitos legais; e em 199 casos,
o receio da reiteração criminosa foi fundamento para decretar a prisão.
Bernardo Leão e Alessandra Prado (2021), ao analisar 67 casos
de furto apreciados pelo Núcleo de Prisão em Flagrante de Salvador,

53
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

no ano de 2018, constataram que em todas as ocasiões as autoridades


judiciárias apontaram para a necessidade de decretar a cautelar pri-
sional como forma de impedir a reiteração delitiva, fundamentando
suas decisões na periculosidade do sujeito ou no fundado receio de
reiteração criminosa; em alguns casos, nas duas coisas. Observam
os autores que “[...] tais termos, frequentemente, foram usados com
enorme abstração, sem qualquer referência a elementos específicos
da situação fática analisada” (Leão e Prado, 2021, p. 1732), e que

[…] em algumas decisões, as autoridades judiciárias


fizeram questão de ressaltar que ‘o fato do agente
ser primário e ter residência fixa, não lhe garante
alvará permanente de impunidade’ (APF no 0341277–
75.2018.8.05.0001) (Leão; Prado, 2021, p. 1736).

Nesse mesmo sentido, sinalizam os resultados encontrados na


análise de decisões dos Tribunais de Santa Catarina, São Paulo e Rio
Grande do Sul, constantes no Relatório Analítico Propositivo Justiça
Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais (Azevedo et al., 2018),
referentes aos crimes de furto, observando-se que foram mantidas
prisões preventivas sob os argumentos de “garantia da ordem públi-
ca” e da reincidência, acrescentando que foram “[...] desconsideradas
as condições subjetivas favoráveis, como residência fixa e emprego
lícito e, também a projeção de regime menos gravoso em caso de
condenação” (Azevedo et al., 2018, p. 264).
Pesquisa realizada por Chaves Junior e Silva (2020, p. 66 –70), que
teve por objeto acórdãos do TJSC, também encontra como resultado a
decretação ou a manutenção da prisão cautelar com base em “caracterís-
ticas do sujeito, notadamente à sua periculosidade”; além das referências
à “reiteração da conduta delitiva” e a “fazer do crime meio de vida”.
Portanto, a periculosidade também está presente, de maneira im-
plícita no ordenamento jurídico, no Direito Processual Penal, vinculada
ao instituto da prisão cautelar e de forma expressa nas decisões judiciais.

54
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

Nesse caso, verifica-se que a referência à periculosidade re-


monta à associação que a Escola Positiva construiu entre periculosi-
dade e “reiteração criminosa”.18
Em geral, verifica-se alto grau de abstração na avaliação da pe-
riculosidade, o que serve como indicativo de risco para a ordem pú-
blica nas decisões, dada a falta de indicação de circunstâncias fáticas
específicas para sua caracterização (Leão; Prado, 2021, p. 1732). Por
vezes, a perigosidade é identificada com a possibilidade de reiteração
criminosa, fazendo-se referência à “[...] mera existência de antece-
dentes criminais, ações penais em curso ou outras prisões preventivas
decretadas”19 (Leão; Prado, 2021, p. 1733); ou associada “[...] à neces-
sidade de garantir a ordem pública, de preservar a paz social ou de
garantir a aplicação da lei penal” (Leão; Prado, 2021, p. 1732).
E assim surge mais uma brecha para que o Direito Penal do
autor se infiltre também no processo penal e opere a seletividade do
sistema penal (Leão; Prado, 2021; IBADPP, 2017; IDDD, 2019).
A interferência de estereótipos na apreciação dos casos de prisão
em flagrante, embora não conste expressamente nas decisões, é reconhe-
cida pelos atores envolvidos com as audiências de custódia em alguns
Estados brasileiros (SP, RJ, PE, RS, DF), segundo consta na análise de
entrevistas realizadas e registradas no Relatório Analítico Propositivo
Justiça Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais (Azevedo et al., 2018,
p. 298), as quais comunicam:

[…] a existência de um saber profissional acumulado


que indica que os operadores da justiça criminal são
18
O que justificou, inclusive, por um tempo — da promulgação do Código Penal de 1940 à
sua reforma em 1984 — a adoção do sistema do duplo binário (imposição de medida de
segurança também para imputáveis perigosos).
19
“Há caso no qual a ficha de antecedentes criminais teve o condão de demonstrar ao órgão
julgador que o sujeito ‘[...] atesta história de vida caracterizada pela delituosidade, já tendo
ele dado mostras de haver optado pela criminalidade como estilo de vida, podendo vir
a cometer novos delitos da mesma espécie’ (Bahia. APF no 0341277–75.2018.8.05.0001).”
(Leão; Prado, 2021, p. 1733).

55
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

capazes de ‘bater o olho’ e reconhecer na aparência


e na apresentação corporal do acusado um conjunto
de informações relevantes para a sua decisão, o que
pode explicar a filtragem racial e a reprodução de um
tratamento desigual entre negros e brancos.

Em um outro texto, Jaqueline Sinhoretto (2022, p. 73–74),


que também participou da pesquisa acima citada e realizou análise
dos dados, informa que “a este saber do reconhecimento de quem é
ou não criminoso utilizando apenas o olhar sobre o corpo os poli-
ciais dão o nome de tirocínio”, prática à qual a autora atribui estreita
correlação com a filtragem racial, e que, nas audiências de custódia,
é assimilada pelos atores da justiça criminal.

Onde se esperaria a mobilização de um saber jurídico


sobre direito processual, garantias do acusado, direi-
tos constitucionais, encontra-se a o reforço de ‘bater o
olho’ e formar o juízo a partir dos sinais exibidos na
corporalidade, onde estão presentes todas as marcas
da racialização, do gênero, da posição de classe.

Para vários operadores jurídicos, a satisfação com a


criação das audiências de custódia não está relacio-
nada à possibilidade de ser uma instância de recurso
judicial capaz de frear a filtragem racial. Ao contrário,
os operadores acreditam que a audiência de custódia
trouxe a oportunidade também para eles de ‘bater
o olho’ e mobilizar o tirocínio na decisão judicial.
Na maioria dos casos, como foi mostrado na análise
quantitativa, a filtragem racial é confirmada.

A análise jurídica do caso tem, para eles, menor re-


levância do que o conhecimento obtido através do
olhar sobre o corpo. Esta é a porta aberta para que
os estereótipos e a estigmatização do corpo da pessoa
que é apresentada à audiência de custódia prevaleçam

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A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

em relação à isonomia de tratamento baseada em di-


reitos fundamentais. Desta forma, o saber sobre o cri-
minoso prevalece em relação ao saber sobre a conduta
(Sinhoretto, 2022, p. 73–74, grifo do autor).

A partir de dados analisados por Bernardo Leão e Alessandra


Prado (2021, p. 1727), referentes a 477 pessoas presas em flagrante em
Salvador no ano de 2018, com relação ao perfil racial, observa-se que:

2 foram identificadas como pretas, 288 como pardas e


87 como negras, sem esclarecimento se eram pardas ou
pretas, ao passo que apenas 2 foram identificadas como
brancas e 1 como amarela. Por fim, 97 tiveram a raça/
etnia não identificada no auto de prisão em flagrante.
A identificação dessas características é feita pela auto-
ridade policial. Portanto, não há como se precisar se a
identificação racial é baseada na autodeterminação ou
na heterodeterminação. Destacamos que, na cidade
cuja população é identificada como 45,6% parda,
36,5% preta e 17,1% branca (IBGE, 2017), dentre as
380 pessoas alcançadas pelas autoridades policiais com
alguma identificação racial, apenas 2 (0,52%) foram
identificadas como brancas, enquanto as outras 98,68%
foram identificadas como negras. Verifica-se, portanto,
a sub-representação das pessoas brancas, enquanto
uma sobre representação das pessoas negras.

Da mesma forma, o Relatório Analítico Propositivo Justiça


Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais (Azevedo et al., 2018,
p. 296) assinala que “[...] o tratamento judicial é mais duro para os
acusados negros, incluindo o que se passa na audiência de custódia”.
Destacam-se, a seguir, os dados referentes a São Paulo, Estado que
possui a maior população carcerária do país:

[…] entre as pessoas brancas conduzidas à audiência


de custódia 49,4% permaneceu presa e 41% recebeu

57
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

liberdade provisória com cautelar. Entre os negros (que


são maioria na amostra) 55,5% teve a prisão mantida
e 35,2% recebeu liberdade provisória com cautelar,
o que indica que o tratamento judicial é mais duro
para os acusados negros, incluindo o que se passa na
audiência de custódia (Azevedo et al., 2018, p. 74).

Em relação à cor/raça, 68% dos presos eram negros


(considerando a soma de pretos e pardos). Levando-se
em consideração que o percentual de habitantes negros
na cidade de São Paulo gira em torno de 35%, é possível
observar a sobrerrepresentação de negros presos em
flagrante na capital (Azevedo et al., 2018, p. 88–89).

No caso específico da “garantia da ordem pública”, segundo


Cristina Zackseski e Patrick Gomes (2016, p. 110), sua indetermina-
ção pode corresponder “[...] ao que não pode ser dito, pois ao dizê-lo
o legislador ou o intérprete da lei poderia contrariar outros dispositi-
vos legais, direitos fundamentais e princípios constitucionais”.
Vera Regina Pereira de Andrade (2003) chama a atenção
para o fato de que a imprecisão da linguagem, a fluidez de limites
e contradições internas estão presentes tanto no ordenamento jurí-
dico quanto na dogmática penal. É o que observamos em relação
à periculosidade e seus desdobramentos — a norma penal a toma,
implicitamente, como pressuposto e a dogmática não lhe confere
definição precisa; da mesma forma, isso acontece com os termos in-
dividualização da pena (está prevista expressamente no texto cons-
titucional art. 5o, CF, mas não definida) — e a garantia da ordem
pública (prevista no Código de Processo Penal, mas não definida).
Referências, veladas ou explícitas, à periculosidade podem ser
um instrumento, como diz Dina Alves (2017, p. 113–114), por meio
do qual os “[...] juízes adaptam, conscientes ou inconscientemente,
os discursos racializados em pressupostos subjetivos para justificar
punições e criminalizar os grupos vulneráveis.”

58
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
NO PROCESSO PENAL SOB A CONDESCENDÊNCIA DA DOGMÁTICA PENAL

A periculosidade, a individualização da pena e a garantia da


ordem pública são, portanto, formulações que favorecem à perma-
nência do chamado racismo institucional, isto é:

[…] um sistema generalizado de discriminações


inscritas nos mecanismos rotineiros, assegurando
a dominação e a inferiorização dos negros sem que
haja necessidade de teorizá-la ou justificá-la pela
ciência (Pires; Lyrio, 2014, p. 9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora, atualmente, a dogmática seja conformada para ins-


trumentalizar e legitimar o poder de punir pela legalidade e pela
construção de um Direito Penal do fato (Andrade, 2003) — a exem-
plo do garantismo de Ferrajoli (2006)—, de uma forma geral, não
conseguiu se desprender da base etiológica e determinista, como,
por exemplo, do binômio periculosidade/defesa social.
Com todas as críticas apresentadas ao longo dos anos pelas
criminologias da reação social, ainda que uma nova perspectiva de
racionalização do Direito Penal tenha se vislumbrado, a periculo-
sidade continua pautando institutos e construções teóricas, mesmo
que implicitamente.
Apesar de todas as críticas à formulação do axioma da peri-
culosidade pela Escola Positiva, a ideia de que pessoas representam
risco à sociedade pela probabilidade de voltar a delinquir teve ampla
repercussão na dogmática penal. Essa concepção justifica a inter-
venção penal em relação a indivíduos anteriormente excluídos da
responsabilização penal, como é o caso das pessoas com deficiência
mental; a legislação dela derivada passou a prever a aplicação de me-
didas de segurança como meio de proteger a sociedade e, ao mesmo
tempo, possibilitar a regeneração do indivíduo perigoso.

59
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Para não ceder espaço e poder às ciências médicas no trata-


mento do “criminoso”, escolas penais italianas e alemãs conciliaram
dogmas que, à primeira vista, poderiam parecer excludentes. Assim,
a construção de um Direito Penal do fato não se fez de forma inte-
gral, mas com fissuras provocadas pela infiltração da noção de peri-
culosidade como base para a determinação da pena, bem como para
a decretação de prisão provisória.
É necessário que a movimentação que se iniciou nos anos 1970,
que implicou em uma revisão da política pública em saúde mental —
com a promulgação da Lei de Reforma Psiquiátrica — que estremece
as paredes da dogmática penal, repercuta em sua desconstrução.
No tocante à pena, ao considerar que a culpabilidade servirá
como sua medida, mas sem desenvolver uma sistematização teórica
consistente sobre aplicação da sanção, a dogmática penal acaba por
admitir formulações da escola positivista que servirão como substra-
to dos critérios de individualização da pena.
A aplicação do conceito de periculosidade à individualização
da pena e à prisão cautelar dos inimputáveis em razão de deficiência
mental tem efeitos semelhantes. Isso cria uma brecha para a seletivi-
dade do sistema penal, levando à criminalização e à estigmatização
de determinados grupos, sem mencionar os efeitos do aprisiona-
mento, que resultam em uma mortificação de uma subjetividade.
A presença da periculosidade como fundamento da intervenção
penal é incompatível com um sistema que se pretende garantidor.
É fundamental reconhecer que a dogmática penal deve ser
reestruturada por meio de uma análise crítica do funcionamento do
sistema penal, apartada dos dogmas deterministas, em uma relação
integrativa com outros saberes. Isso inclui um diálogo com as pes-
soas que são objeto do saber produzido pelas ciências da saúde e
pelas ciências criminais, para que se promova uma abordagem mais
abrangente e interdisciplinar.

60
A INFILTRAÇÃO DO AXIOMA DA PERICULOSIDADE NO DIREITO PENAL E
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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

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66
A NATUREZA FEMININA COMO
ELEMENTO DA PERIGOSIDADE:
CRIME, MULHERES E LOUCURA

Catharina Maria Tourinho Fernandez

Ao estudar o conceito de perigosidade dos indivíduos que, mesmo apre-


sentando distúrbios mentais que afastam a sua imputabilidade penal,
são submetidos ao poder punitivo estatal pela prática de condutas tidas
como delituosas, pode-se constatar a efetivação do conceito de perigo
atrelado à loucura, socialmente construído com o objetivo de criar ins-
trumentos de controle e respostas à conduta delitiva por eles praticadas.
A indeterminação do que se entende por perigosidade, no âmbito
da aplicação e execução das medidas de segurança, tomando por base o
panorama geral predominantemente masculino dentro do universo dos
indivíduos considerados inimputáveis, subsidia o silenciamento com-
pleto do indivíduo que, uma vez institucionalizado, carregará as marcas
dessa condição de forma irrestrita até que se constate a cessação do
estado de perigo, cujos limites e conceitos não se consegue identificar.
Entretanto, ao realizar o recorte de gênero para vislumbrar a
perigosidade da mulher considerada louca e delinquente, podem-se
identificar elementos deterministas ligados à natureza dos corpos
femininos, ao papel essencial dado pela sociedade à feminilidade e
à sexualidade que compõem irrestritamente o conceito de perigo
atribuído à criminosa louca. Esses elementos estão diretamente
relacionados à fisiologia exclusiva da mulher, subsidiando a ideia

67
Catharina Maria Tourinho Fernandez

de maior propensão à loucura, o que justificaria tratamento diverso


daquele empregado ao criminoso louco, pois envolve, além da ins-
titucionalização, a domesticação dos seus hábitos.
Nesse sentido, pode-se constatar que, em sua maioria, cri-
minosas loucas são descritas como aquelas que não conseguem se
enquadrar nos papéis femininos predeterminados pela sociedade,
afastando-se do conceito de mulher maternal, esposa, doméstica,
familiar e sexualmente apática. Segundo Lombroso e Ferrero (2017),
a inclinação feminina ao cometimento de condutas delituosas é exa-
cerbada por determinados períodos do ciclo menstrual, pela gravi-
dez, pelo parto ou pela menopausa, para além do exercício de uma
sexualidade altamente reprimida pelo meio social.
Portanto, o estudo realizado visa demonstrar que elementos
ligados ao que se entende por “natureza feminina” são acoplados ao
conceito de perigosidade atrelado à conduta delitiva de mulheres
consideradas loucas, de modo que o perigo por elas representado,
diferente da periculosidade do louco infrator, é resumido e inferiori-
zado à análise de elementos fisiológicos.
Assim, há de se constatar que as características da fisiologia femi-
nina são comumente elencadas, ainda na atualidade, como indícios de
predeterminação delituosa, atreladas automaticamente às mais diversas
condições psiquiátricas incapacitantes, perpetuando o conceito de pe-
rigosidade “nata”, não só ligada aos elementos de raça, como também
à anatomia feminina, viabilizando o controle irrestrito e perpétuo dos
corpos femininos, historicamente, destinados à domesticação.

A PERICULOSIDADE COMO FUNDAMENTO DA MEDIDA


DE SEGURANÇA

A primeira menção à loucura relacionada ao delito na his-


tória brasileira remonta ao Código Criminal do Império, de 1830.

68
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

Influenciado pela Escola Clássica, esse Código determinava que os


loucos de todo gênero não seriam julgados criminosos, salvo se ti-
vessem lúcidos intervalos e neles cometessem o crime, devendo ser
recolhidos às suas respectivas famílias (Prado, 2018).
Posteriormente, em 1890, o Código Penal da República trouxe
o conceito de imputabilidade, de modo que não eram considerados
criminosos os que, por imbecilidade nativa ou enfraquecimento
senil, fossem absolutamente incapazes de imputação. Os indivíduos
considerados isentos de culpabilidade seriam entregues às suas fa-
mílias ou recolhidos aos hospitais de alienados, se o estado mental
apresentado assim exigir, “para a segurança do público” (Prado,
2018, p. 23).
O ideal de segregação daqueles considerados doentes mentais
esteve presente nas duas legislações, seja com o isolamento no am-
biente familiar, seja no recolhimento aos chamados hospitais de alie-
nados, caso necessário à segurança pública. Tem-se aqui a primeira
referência sutil ao binômino perigosidade e defesa social.
Foi exatamente pelo desenvolvimento do conceito de perigo-
sidade que o louco infrator passou a figurar no âmbito penal, já que
o cometimento de delitos demonstrava a sua periculosidade e, por-
tanto, a necessidade de repressão da conduta. Com a medicalização
do Direito Penal promovida pela Psiquiatria, o tratamento passou
a ser feito mediante aplicação das chamadas medidas de segurança
(Prado, 2018).
Nesse sentido, o Código Penal brasileiro de 1940 passou a
isentar de pena o indivíduo que “por doença mental, ou desenvol-
vimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou
omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou
de determinar-se de acordo com esse entendimento” (Brasil, 1940,
art. 22), prevendo expressamente a perigosidade presumida dos re-
feridos agentes (Prado, 2018).

69
Catharina Maria Tourinho Fernandez

A resposta à periculosidade do louco infrator permanece na


segregação, vigendo no Brasil, após a reforma da Parte Geral do
Código Penal em 1984, o sistema vicariante. Esse sistema prevê a
aplicação da medida de segurança por tempo indeterminado aos
inimputáveis — em substituição à pena — enquanto durar a peri-
culosidade, por meio de internamento ou tratamento ambulatorial.
Com a reforma psiquiátrica promovida pela Lei no. 10.216/2001
e a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência em 2015,
os portadores de doença mental passaram a ser considerados ex-
pressamente como sujeitos de direitos fundamentais, com o obje-
tivo de promover a inclusão social obstada pelos longos períodos
de segregação. Assim, a execução da medida de segurança passou a
ser preferencialmente executada em meio aberto e extra-hospitalar,
através dos Centros de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais
Terapêuticos e leitos de atenção integral, prevalecendo a excepcio-
nalidade da internação, sem abandonar, entretanto, a periculosidade
como fundamento e justificação da medida (Prado, 2018).
Há de se constatar, entretanto, a completa inexistência de um
conceito técnico-jurídico para o que seria a periculosidade dos agen-
tes considerados inimputáveis. Dessa forma, trata-se de um conceito
indeterminado e aberto, influenciado diretamente pelos determinis-
mos biológico, social e antropológico, que permanecem como base
para sua aplicação até os dias atuais (Prado, 2018).
Ao tratar da periculosidade como elemento intrínseco à lou-
cura, Fernanda Otoni de Barros-Brisset (2011, p.46) refere-se a essas
teorias deterministas:

De Pinel a Lombroso, passaram-se cem anos, e a ex-


ceção dos dementes foi se tornando a regra de todos
os delinquentes, e o que não mudará nesse discurso,
seja nos monomaníacos, seja nos degenerados ou no
homem delinquente, é a ideia pineliana de um déficit

70
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

moral intrínseco na loucura, o que faz dos loucos


indivíduos intrinsecamente perigosos.

Perigo e loucura andam intrinsecamente ligados pelas teorias


deterministas, voltadas em sua maioria ao referencial masculino de
louco infrator. Mas o recorte proposto no presente artigo nos per-
mite identificar elementos da natureza feminina tidos como essen-
cialmente perigosos. Aliados à periculosidade inerente à condição
de louca, esses elementos demonstram a perpetuação da inimputa-
bilidade feminina, já que, conforme o estado do seu ciclo menstrual,
eventos como gravidez, parto e amamentação, ou ainda a menopau-
sa, as mulheres são consideradas naturalmente “doentes” (Moura;
Popperl, 2019, p. 57) e propensas à degenerescência psiquiátrica.
As mesmas bases que criaram o conceito determinista de peri-
culosidade, fundamento de aplicação e perpetuação das medidas de
segurança para o louco infrator, ao se referirem à loucura feminina,
relacionando-a à delinquência, atrelam o estado de perigo ao rom-
pimento de elementos do que se entende por essência feminina. Isso
perpetua a periculosidade da mulher infratora que padece de doença
mental, à medida que aponta o risco de novos eventos delituosos aos
estados biológicos e fisiológicos do corpo feminino.
Lombroso e Ferrero (2017), na obra a Mulher Delinquente
(La donna delinquente, 1893), fazem menção a casos de mulheres
que foram consideradas loucas e infratoras, justificando a conduta
delitiva pelo não cumprimento do papel social, familiar e reprodutor
da mulher na sociedade, ou pela desvirtuação de comportamentos
sociais esperados dos corpos femininos. Os autores afirmam cate-
goricamente que a manifestação da loucura se dá pela sexualidade
exacerbada, rompendo-se, assim, a apatia sexual socialmente espera-
da. Também dizem haver maior propensão a condutas delituosas nos
períodos menstruais, de gravidez, amamentação, parto, pós-parto e
menopausa (Lombroso; Ferrero, 2017).

71
Catharina Maria Tourinho Fernandez

Nesse sentido, ao conceito de periculosidade — que é de


todo indeterminado no universo da loucura masculina, constando
como elemento constitutivo da doença mental — aplicam-se novos
parâmetros quando se trata de louca infratora. Isso ocorre devido
às características inerentes ao sexo feminino apontadas como exas-
peradoras do estado de periculosidade, não podendo ser cessadas
em nenhum momento, já que abarcam toda a vida reprodutiva e não
reprodutiva da mulher, da juventude à velhice.

A MULHER E A LOUCURA

Entender os elementos que compõem o arquétipo da “mulher


louca”, submetida ao poder punitivo estatal através da imposição de
medida de segurança, exige que se analise o desenvolvimento dos
estudos psiquiátricos, com enfoque no corpo feminino. Esse exame
parte da preconcepção de inferioridade atribuída à mulher durante o
século XX, perpetuada nos elementos sociais, políticos e culturais da
sociedade à época (Moura; Popperl, 2019), que permanecem incrus-
tados na concepção hodierna dos corpos femininos, principalmente
daqueles percebidos como desviantes.
A suposta inferioridade física e mental feminina foi identifi-
cada a partir da análise de elementos naturais do corpo da mulher de
maneira determinista. Isso ocorreu com a consolidação do processo
de medicalização da loucura, monopolizado pela ciência médica
psiquiátrica. Essa abordagem estava aliada às concepções culturais e
sociais da época, que indicavam um destino exclusivo para os corpos
femininos na maternidade (Moura; Popperl, 2019), atribuindo a
“normalidade” da psique feminina ao cumprimento de deveres so-
ciais e familiares preestabelecidos.
A conformação dos estudos de anatomofisiologia à predestina-
ção social do papel feminino permitiu a construção de uma íntima

72
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

associação entre a fisiologia feminina e a loucura (Moura; Popperl,


2019). Nesse sentido, chamam atenção as conclusões apontadas pelos
autores Brunno Moura e Mariana Popperl (2019, p. 57), que analisa-
ram as mulheres submetidas ao Manicômio Judiciário de São Paulo:
No contexto de descobertas acerca da natureza feminina e de
sua sexualidade, observa-se uma linha tênue que separava a fisio-
logia da patologia, levando à conclusão de que, mesmo em estado
de normalidade, o corpo feminino é doente. Estas considerações,
a partir do início do século XX, fizeram os especialistas concluírem
que alguns fenômenos fisiológicos exerciam uma ordem maior sobre
a vontade das mulheres. Assim, o sexo era responsável pelas maiores
transformações no corpo e no estado mental das mulheres e, portan-
to, a sexualidade se converteria no grande temor dos psiquiatras e gi-
necologistas. Se o corpo feminino se revela doente mesmo em estado
de normalidade, como constatado pela ciência médica dominante
no século XX, pode-se identificar uma predestinação feminina à lou-
cura, atrelada principalmente ao controle da sexualidade, justificado
em elementos naturais da fisiologia da mulher. Esses elementos eram
acionados sempre que o papel socialmente destinado aos corpos
femininos não fosse devidamente cumprido, notadamente no que
concerne aos deveres domésticos e familiares.
Diante disso, pode-se constatar que as mulheres destinadas
aos estudos psiquiátricos eram aquelas que não se comportavam
dentro da normalidade socialmente aceita para os corpos femininos,
se opondo ao exercício do seu papel familiar ou não o exercendo de
acordo com os padrões de conduta predeterminados. Vale ressaltar
que o local de exercício das referidas imposições sociais era delimi-
tado e influenciado diretamente por questões raciais e econômicas,
principalmente após os processos de abolição da escravatura e in-
dustrialização dos centros urbanos (Moura; Popperl, 2019).
Nota-se que o conceito de loucura historicamente direciona-
do ao gênero feminino demonstra uma estrutura institucionalizada

73
Catharina Maria Tourinho Fernandez

de controle social e repressão, exercidos diretamente sobre os corpos


femininos que se opunham ao local preestabelecido para exercício
da sua sociabilidade. Essa lógica perversa considera todas as mulhe-
res mentalmente incapazes, em virtude dos elementos fisiológicos
intrínsecos à natureza feminina, e pune as manifestações de prazer e
sexualidade como exercício pleno da loucura. Isso as torna perigosas
e passíveis de internamento e invisibilidade completa.
Mas quais seriam, então, os elementos naturais dos corpos
femininos que ligam a sua fisiologia às patologias psiquiátricas?
Em verdade, pode-se iniciar a análise pelos fenômenos fisiológi-
cos exclusivos do sexo feminino, como a menstruação, a gravidez,
o parto e a menopausa, além dos mitos fundadores do conceito de
feminilidade: delicadeza, fragilidade, instinto materno natural, de-
dicação aos cuidados domésticos e submissão, construções sociais e
políticas (Silva; Garcia, 2019), mitos criados pela lógica capitalista de
controle dos corpos em questão.
As condições biológicas da loucura feminina foram determi-
nadas no final do século XIX por Lombroso e Ferrero, na obra A
Mulher Delinquente: a prostituta e a mulher normal. É possível iden-
tificar essas determinações no capítulo destinado à louca criminosa
(Lombroso; Ferrero, 2017, p. 576), na qual os autores afirmam que
“[...] uma das peculiaridades da loucura criminosa, que é apenas um
exagero do estado normal, é a excitação que se manifesta no período
menstrual, na gravidez e na menopausa” (Lombroso; Ferrero, 2017,
p. 576). Em outra passagem, os autores apontam a propensão à lou-
cura criminosa por mulheres grávidas nos seguintes termos: “[...] as
mesmas coisas podem ser ditas sobre a influência da gravidez. Leblon
cita uma mulher que, a cada gravidez, tinha um violento desejo de
matar o seu marido, a quem ainda amava” (Lombroso; Ferrero, 2017,
p. 577). Ademais, os autores também reforçam a ligação do papel
social feminino com o ambiente doméstico, apontando a loucura

74
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

e a delinquência como diagnóstico para qualquer manifestação de


resistência ou oposição da mulher:
Em suma, encontramos na criminosa insana, como em crimi-
nosas comuns, ainda que mais profundamente nessas, a reversão das
características mais específicas da mulher: como o pudor, a docilida-
de e a apatia sexual (Lombroso; Ferrero, 2017, p. 579).
Segundo Thaiga Silva e Marcos Garcia (2019), a formulação do
arquétipo feminino como ser doméstico, domesticável e desprovido
de prazeres sexuais, já que destinado à reprodução, é influenciada
diretamente pela lógica capitalista que

[…] necessita da produção e reprodução no lar de


seres humanos para o trabalho, mediante a criação
da figura típica da dona de casa, ao mesmo tempo
em que cristaliza o trabalho doméstico como aquele
não produtivo e sem remuneração (Silva; Garcia,
2019, p. 44).

Ao se constatar a associação da loucura e da delinquência a


atributos da natureza física da mulher, pode-se afirmar que o con-
trole social dos seus corpos é inerente à sua condição de gênero. Isso
ocorre em função das especificidades do sexo feminino, ao qual é
destinado um papel que viabiliza a construção da estrutura social
capitalista. A ciência médica concorre para a segregação e domesti-
cação forçada dos ímpetos de resistência da mulher através do diag-
nóstico de doença psiquiátrica, que acompanha a paciente durante
toda a sua vida, visto que essa condição une as manifestações da lou-
cura às condições naturais da sua estrutura corporal e às expectativas
sociais quanto a seu comportamento familiar, afável e sexualmente
apático. Sobre esse processo, Silva e Garcia (2019, p. 44) comentam:

Lugar de ambiguidades e espaço por excelência da


loucura, o corpo e a sexualidade femininos inspi-
raram grande temor aos médicos e aos alienistas,

75
Catharina Maria Tourinho Fernandez

constituindo-se em alvo prioritário das intervenções


normatizadoras da medicina e da psiquiatria. Muitas
crenças pertencentes a antigas tradições e no âmbito
dos mais variados saberes — muitas das quais re-
montam à antiguidade clássica — seriam retomadas
e redefinidas pelo alienismo do século XIX. Entre os
alienados considerados ‘rebeldes a qualquer trata-
mento, por razões mais morais do que propriamente
médicas’, Pinel incluía as mulheres que se tornavam
irrecuperáveis por ‘um exercício não conforme da
sexualidade, devassidão, onanismo ou homosse-
xualidade’ O temperamento nervoso, intimamente
relacionado à predisposição, às nevroses e nevralgias,
era frequentemente considerado como típico das
mulheres, ‘cujas funções especiais ao sexo, em muito
contribuem para o seu desenvolvimento’.

Em verdade, pode-se constatar que a sexualidade feminina


é apontada por muitos autores como a manifestação inequívoca
da loucura, perversão e delinquência, na medida em que “[...] um
aspecto característico da mulher louca, e consequentemente da cri-
minosa louca, é o exagero sexual” (Lombroso; Ferrero, 2017, p. 577).
Assevera Elenice Ribeiro Nunes dos Santos que a maldade
feminina era justificada no mito do Jardim do Éden, difundido pelas
religiões cristãs. Isso possibilitava que o seio familiar se apropriasse
e controlasse a sexualidade feminina por meio da utilização de um
discurso moral-religioso (Santos, 2020).
Segundo Engel (2006), os traços de loucura, no que concer-
ne às mulheres, estão diretamente ligados à sexualidade e ao que se
chama de essência; haveria, portanto, elementos fisiológicos ineren-
tes ao corpo feminino que não se confundem com o exercício da
razão. Esses elementos constituem etiquetas deterministas que ligam
a fisiologia da mulher diretamente à doença mental, num ciclo que
parece inquebrável. O corpo feminino, ao deixar de exercer a sua

76
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

“essência de feminilidade”, é naturalmente considerado louco e, va-


riando conforme as diversas fases do sistema reprodutor ou revelan-
do-se no exercício da sua sexualidade, é tido como biologicamente
inclinado à delinquência.
Seguindo a lógica apresentada, a manifestação da sexualidade
feminina é diretamente atrelada à loucura, de modo que o desejo
sexual apenas pode existir se extremamente controlado, conforme o
padrão predeterminado de apetite sexual apático (Silva; Garcia, 2019).
Esses padrões são descritos por aqueles que detém o poder científico,
em sua maioria homens brancos, reforçando os estereótipos eurocen-
tristas, colonizadores que, além de criar paradigmas sobre o feminino,
reprimem a sexualidade da mulher e todas as demais condutas que
desviam o papel reprodutor e doméstico a elas preestabelecido.
Ao analisar os prontuários médicos das mulheres no processo
de desinstitucionalização na cidade de Sorocaba/SP, considerando
como as questões de gênero se articulam com a loucura, Thaiga Silva
e Marcos Garcia (2019) concluem que as marcas da institucionali-
zação feminina são caracterizadas por limites ainda mais rígidos,
tendo em vista a necessidade de se enquadrar a louca no papel de ser
mulher, mãe e esposa. Nesse contexto, o campo psiquiátrico desem-
penha uma função de normalização/padronização de comportamen-
tos considerados aceitáveis para mulheres egressas de manicômios,
e a não adequação aos referidos padrões como fator que contribui
para a perpetuação das suas internações e institucionalizações.
A loucura masculina, quando delinquente, se manifesta atra-
vés da sua capacidade de desempenhar ou não os seus papéis racio-
nais socialmente atribuídos, ou de se determinar racionalmente no
momento da conduta criminosa; a mulher é historicamente diminuí-
da e silenciada, reduzida ao que se espera dos seus comportamentos
essenciais, ao seu corpo e à sua sexualidade (Silva; Garcia, 2019).
Ademais, o tratamento destinado às mulheres em cumpri-
mento de medida de segurança é voltado diretamente aos afazeres

77
Catharina Maria Tourinho Fernandez

domésticos, bem como à padronização dos seus comportamentos de


acordo com a “essência feminina”. Essa abordagem aumenta ainda
mais o grau de segregação da medida quando comparado às opções
de tratamento garantido aos homens em igual condição, conforme
indicado por Cunha (1986 apud Silva; Garcia, 2019, p. 44):

Pode-se afirmar, também, que o manicômio repro-


duz os estereótipos de gênero, afinal, enquanto se
relegava aos homens as atividades ao ar livre, o que
contribuiria para a cura, no caso das mulheres isso se
daria por meio do trabalho doméstico, corroboran-
do a ideia de que a condição feminina se relacionava
aos espaços fechados.

Mesmo com a abolição dos manicômios, a lógica manico-


mial permanece presente nas residências e abrigos, onde se pode
constatar a supervisão e vigilância constantemente exercida pelas
profissionais responsáveis pelo tratamento das loucas infratoras,
garantindo aos corpos femininos marcas da institucionalização
diversas das do universo masculino. A mulher interna permanece
confinada nos domínios do privado, realizando atividades domés-
ticas, vivendo completa negação de sua autonomia, sendo obstadas,
principalmente, à vivência da sexualidade, pelo risco a ela atrelado
(Silva; Garcia, 2019).
Assim, a castração do prazer feminino, aliada à punição física
perpetuada pelo controle estatal sob os corpos das mulheres, através
da loucura delinquente, conduzem à privação da liberdade e à do-
mesticação obrigatória, elementos de tratamento da doença mental.
Essa práticas são perpetuadas até a atualidade, encontrando-se nos
antigos manicômios, hoje abrigos e residências — em suma, nos
locais destinados ao tratamento de pacientes psiquiátricas submeti-
das ao controle estatal.

78
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a periculosidade do louco infrator o sujeita à aplicação de


medida de segurança, uma vez reconhecida a impossibilidade racio-
nal de o indivíduo compreender e se determinar diante da prática de
conduta delituosa — e, portanto, sua inimputabilidade, em que pese
não haver uma definição jurídica específica para o suposto perigo
atrelado à loucura —, para as mulheres em igual situação, o cenário
demonstra diferenças acentuadas.
Isso porque, como visto, historicamente, é considerada louca
a mulher que não cumpre o papel social previamente estabelecido
para os corpos femininos, rompendo com o ambiente doméstico e
familiar para o qual foi destinada, deixando de atender aos padrões
do que se pode considerar como essência da feminilidade, ou natu-
reza feminina, sendo assim consideradas desviantes.
Em linhas gerais, ao romper com o ciclo de domesticação
familiar, utilizando de condutas tipificadas como delituosas normal-
mente praticadas no interior do seio familiar, a mulher será conside-
rada, para além de louca, por não cumprir o seu papel socialmente
estabelecido, infratora e, portanto, passível de aplicação da medida
de segurança ante à sua inimputabilidade.
Atente-se que, historicamente, não se analisa no compor-
tamento dos corpos femininos a capacidade de compreender e se
determinar racionalmente diante dos fatos delituosos praticados.
Em vez disso, examina-se o desvio de conduta que tem por referencial
expectativas sociais e morais sobre o papel da mulher em sociedade,
tornando-a, assim, louca, infratora e, consequentemente, perigosa.
Entretanto, o conceito indeterminado e aberto de periculosi-
dade presente na loucura masculina, por si só já estigmatizante e in-
clinado à perpetuidade, contrasta com o perigo atribuído aos corpos
femininos. Para as mulheres, são apontados elementos biológicos

79
Catharina Maria Tourinho Fernandez

e fisiológicos dos seus corpos em todas as fases do ciclo menstrual


e reprodutor que, segundo as teorias deterministas, exasperam sua
periculosidade, instigando e induzindo à prática delituosa.
Dessa forma, desde a primeira menstruação até o período da
menopausa e na proximidade de eventos como a gravidez e o parto,
a mulher é considerada propensa a condutas delitivas insanas. A de-
monstração da sua sexualidade é utilizada como forma de identificar
o estado latente de loucura e perigo, restringindo consideravelmente
o que se entende por periculosidade feminina e acoplando ao termo
elementos inerentes à inexistência do ser na condição de mulher.
A diferenciação no conceito de periculosidade aplicado a
homens e mulheres no contexto da loucura e do cometimento de
delitos se revela igualmente acentuada, quando da condução do
tratamento a eles garantido, na execução da medida de segurança.
Isso evidencia um cenário de segregação ainda maior dos corpos
femininos, pois, ao ser institucionalizada, a mulher é submetida a
tratamento para a sua reinserção no ambiente doméstico interno
e não no meio social, como se objetiva com o louco infrator. Esse
processo recria padrões de comportamento considerados essencial-
mente femininos.
Para a mulher, a periculosidade abrange conceitos determi-
nistas relacionados à sua própria existência. Isso faz que o estado
de perigo e loucura, indispensável à execução das medidas de segu-
rança, nunca cesse. Essa condição é reverberada e exacerbada pelos
ciclos do próprio corpo feminino, presentes ao longo de toda a sua
vida, e constatados pelos eventos de manifestação da sua sexualida-
de, considerada doentia e exacerbada, não condizente com a femini-
lidade que Lombroso e Ferrero (2017) associam à apatia sexual.
Pode-se concluir que o prazer feminino é visto como louco
e perigoso. Essa percepção se estende à tentativa de romper com a
domesticação social, experiência historicamente vivida pelos corpos
femininos durante a criação familiar. Como estratégia de tratamento

80
A NATUREZA FEMININA COMO ELEMENTO
DA PERIGOSIDADE: CRIME, MULHERES E LOUCURA

e cura, identificam-se a vigilância constante e a padronização dos


comportamentos de acordo com a feminilidade predeterminada.
Essa dinâmica se reproduz em residências e abrigos que, embora
tenham abandonado a nomenclatura de manicômios, não rompe-
ram com a lógica manicomial.
Constata-se, assim, que a segregação da mulher rotulada
como louca, que tem início no rompimento da lógica doméstica e
familiar e na frustração de expectativas quanto à essência/natureza
feminina, não se encerra com o tratamento, uma vez que este não
visa sua reinserção social. Ao contrário dos homens, a quem se pode
atribuir responsabilidade por condutas futuras após o término da
inimputabilidade, as mulheres enfrentam um tratamento destinado
a reinseri-las no ambiente interno doméstico, novamente segregadas,
perpetuando um ciclo contínuo e inquebrável de controle, castração
e domesticação dos corpos femininos ditos desviantes.

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO:
RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA
PERICULOSIDADE DO SUJEITO

Bernardo Sodré Carneiro Leão


Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

O presente texto visa analisar os resultados alcançados pela pesquisa


elaborada no âmbito do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC), edital
2019–2020, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPQ), vinculada ao Projeto de Pesquisa
A periculosidade como fundamento para a intervenção penal e a rela-
tivização da racionalização do poder punitivo, do Núcleo de Estudos
sobre Sanção Penal da Universidade Federal da Bahia (NESP-UFBA).
Esta investigação decorre de inquietações geradas a partir de
estudos de perspectivas criminológicas acerca da realidade do siste-
ma punitivo brasileiro, mais especificamente no que diz respeito à
manipulação do dogma da periculosidade pelos atores do sistema de
justiça criminal. Dessa forma, buscou-se verificar a persistência de
resquícios da criminologia positiva no sistema penal brasileiro, espe-
cificamente nos casos em que os magistrados de Salvador deixam de
substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de direito nos
crimes de furto, tendo como motivação o perigo abstrato do sujeito,
com ênfase nos marcadores de raça e classe social.

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Para tanto, selecionamos sentenças proferidas pelo delito de


furto no ano de 2018, na comarca de Salvador/BA, para operar uma
análise de conteúdo (Bardin, 1977) e investigar as fundamentações
adotadas pelas autoridades judiciárias na substituição ou não da pena
privativa de liberdade por restritivas de direitos, com destaque para
o frequente uso da periculosidade do sujeito como motivação abs-
trata para negar tal direito. Dentre os objetivos, buscamos também
investigar a existência de referências a aspectos raciais e sociais dos
réus nas fundamentações.
Considerando o processo de criminalização secundária,
em que a reprovação penal recai sobre o sujeito, sob o argumento de
sua perigosidade, e não sobre o fato, partimos do seguinte questio-
namento: quais fatores aparecem na construção do juízo da perigo-
sidade na fundamentação das sentenças condenatórias por furto que
negam a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas
de direitos? Formulamos a hipótese de que, além da classe, o racis-
mo é fator determinante para as autoridades judiciárias afirmarem a
periculosidade do sujeito e decretar prisões.
Com base nos dados apresentados pelo Departamento
Penitenciário Nacional (Brasil, DEPEN, 2020), o Brasil é o país com
a terceira maior população carcerária mundial, com 702.069 pes-
soas em situação de cárcere, número muito maior que o de vagas
(442.349) nas unidades prisionais brasileiras. Dentre essas, 277.263
pessoas estão encarceradas, provisoriamente ou com condenação
definitiva, por crimes contra o patrimônio, como roubo e furto, con-
tabilizando mais de 1/3 da população carcerária nacional.
A preocupação dos legisladores brasileiros em punir, especifi-
camente, condutas que violam a propriedade privada pode ser per-
cebida pelo extenso rol de crimes contra o patrimônio previstos no
Código Penal, bem como pelas altas penas fixadas a eles. Na América
Latina, “[...] a população de nossas prisões é composta, em sua maio-
ria, de infratores contra a propriedade e de pequenos traficantes de

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

tóxicos proibidos” (Zaffaroni, 2013, p. 317). Isso ocorre pois o sis-


tema punitivo é construído em prol de funções não declaradas de
seleção e controle social, de modo que a desigualdade é estruturante
das agências penais (Baratta, 2002). Sua operatividade real não está
em prevenir delitos graves, mas em selecionar e eliminar um deter-
minado público.
A seletividade penal, no Brasil, é marcada também pelo perfil
racial, posto que pretos e pardos constituem 66,31% das pessoas
que se encontram privadas de liberdade, ao passo que represen-
tam 55,4% da população brasileira (DEPEN, 2020; IBGE, 2010).
O encarceramento em massa é o instrumento utilizado pelo sistema
punitivo brasileiro, cujas origens remontam ao colonialismo e à es-
cravidão, para manutenção não só do controle social e econômico,
mas também racial, o que justifica sua incidência preferencial nos
delitos de drogas e patrimoniais (Flauzina, 2006).
Segundo Góes (2015), a construção da questão criminal,
conforme elaborada pelos criminólogos positivistas, segue como o
fio condutor desse controle social dos indesejáveis, com o papel de
atribuir um falso caráter científico aos discursos racistas e elitistas
produzidos no senso comum e legitimar a seleção racial e de classe
dos alvos desse sistema. Dessa forma, importa verificar se ainda há
o uso de estereótipos e estigmas sociais e raciais como justificativa
para rotular determinados sujeitos como perigosos e fundamentar
a necessidade de seu encarceramento.
Tipificado no artigo 155 do Código Penal (Brasil, 1940) pela
conduta de “[...] subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”,
ao furto simples é cominada a pena de reclusão entre um e quatro
anos. Mesmo com o aumento de pena de 1/3, em caso de o delito
ser praticado por repouso noturno, ou nas hipóteses qualificadas nas
quais são previstos novos limites de pena, é um delito sem violência
ou grave ameaça à pessoa.

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

No entanto, apesar de ser um crime de baixa lesividade, que


atinge apenas bem jurídico patrimonial e, geralmente, bens indivi-
duais, há uma forte incidência do sistema punitivo sobre esse delito,
junto com os demais crimes patrimoniais. Na Comarca de Salvador,
dos 5.588 casos de prisão em flagrante que foram levados à audiên-
cia de custódia no ano de 2018, englobando todos os delitos, 477
corresponderam ao crime de furto, isoladamente ou em conjunto
com outros delitos, — cerca de 9% dos casos —, sendo 433 apenas
por tal delito, conforme dados extraídos do relatório elaborado pela
Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA, 2019), resultante
de pesquisa quantitativa acerca das audiências de custódias na co-
marca soteropolitana nos anos de 2015 a 2018.
Como o relatório da DPE/BA (2019) tratou de uma análise
quantitativa, operamos uma investigação de cunho majoritaria-
mente qualitativa para verificar a ocorrência da seletividade penal
no âmbito local, na comarca de Salvador, especificamente diante do
delito de furto, por ser patrimonial, sem violência ou ameaça, por-
tanto, sem maior lesividade. Ademais, delimitamos o estudo sobre
as sentenças condenatórias nas quais a pena privativa de liberdade
não foi substituída por restritivas de direitos, por ser a justificativa
centrada na valoração de critérios subjetivos.
Das 433 audiências de custódia pelo crime de furto, deli-
neamos uma pesquisa documental sobre os autos eletrônicos dos
78 processos que já se encontravam sentenciados ou extintos, que
consiste na análise de textos escritos e registrados (Cellard, 2008).
Adotamos uma investigação de cunho explicativo e descritivo, para
tentar explicar e descrever o fenômeno da seletividade penal na sen-
tença condenatória que nega a substituição da pena, além de verifi-
car se é possível estabelecer relações com as variáveis extrajurídicas
de raça e classe social (Gil, 2008).
Posteriormente, submetemos a redação das 12 sentenças con-
denatórias pelo delito de furto nas quais não foi operada a substituição

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

da pena ao procedimento de análise de conteúdo (Bardin, 1977). Pela


predominância do juízo acerca das características do sujeito, enfoca-
mos o estudo nessas condenações que negaram a substituição para
verificar os fundamentos utilizados e se há alusão a características
socioeconômicas e raciais do sujeito encarcerado para justificar sua
periculosidade e a não substituição da pena.
Realizamos, por fim, a análise conjunta dos dados quantita-
tivos dos sujeitos e dos fundamentos encontrados no conteúdo das
sentenças condenatórias que negaram a substituição da pena pelo
crime de furto, com ênfase nos fatores extrajurídicos de raça e classe,
em diálogo com a construção teórica marxista da criminologia crí-
tica (Baratta, 2002), em conjunto com a teoria agnóstica da pena
(Zaffaroni, 2015) e com a crítica racial desenvolvida por Flauzina
(2006) e Góes (2014).

O ESTIGMA DA PERICULOSIDADE NO ENCARCERAMENTO


EM MASSA

Nesta pesquisa, faremos um breve panorama da incidência


seletiva do sistema penal brasileiro, com destaque para o uso do
estigma da periculosidade na perseguição diante dos crimes patri-
moniais, especificamente o delito de furto. Como apresenta Góes
(2014), foi a Escola Positiva italiana que desenvolveu a noção de
periculosidade, por meio de um paradigma evolucionista e de uma
pretensa hierarquia entre as raças para definir quem seriam os sujei-
tos mais perigosos e propensos à prática de delitos. Assim, no estudo
do encarceramento em massa e seletivo pelos crimes de furto, im-
porta fazer alguns comentários sobre esse movimento positivista do
pensamento criminológico.

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

A Escola Positiva italiana e a racialização do sujeito


perigoso
A criminologia como disciplina autônoma, com a adoção do
método científico e de estudos empíricos, foi desenvolvida com a
Escola Positiva italiana, cujo marco inicial foi o lançamento do livro
Tratado Antropológico Experimental do Homem Delinquente, por
Cesare Lombroso, em 1876. Nesse período, marcado também pelos
estudos de Enrico Ferri e Rafael Garófalo, buscava-se a investigação da
etiologia do fenômeno criminal, ou seja, os criminólogos utilizavam
diferentes abordagens empíricas multidisciplinares para tentar identi-
ficar as causas dos comportamentos ditos criminosos (Molina, 1992).
Para os positivistas, o fenômeno criminal era uma patolo-
gia, de forma que era necessário investigar suas causas com vistas
a buscar uma profilaxia adequada ou uma “cura deste mal” (Góes,
2015, p 114). Diante disso, Lombroso partiu dos estudos da antro-
pologia criminal e da medicina para buscar a origem do fenômeno
criminal em aspectos bioantropológicos e fisionômicos dos sujeitos.
O pesquisador italiano adotou como metodologia de pesquisa
a realização de autópsias nos corpos dos sujeitos encarcerados nas
prisões europeias, em busca de definir o que ele chamou de “tipo-
logias criminais”. Em 1885 Lombroso apresentou, em L’uommo
Delinquente, um estudo no qual distinguia seis grupos distintos de
sujeitos delinquentes, com base em suas características fisionômi-
cas, a saber: o nato ou atávico, o louco moral, o epiléptico, o louco,
o ocasional e o passional (Elbert, 1998).
Em um estudo desenvolvido acerca das obras de Lombroso,
Góes (2015) afirma que o delinquente nato foi apresentado como
uma subespécie humana, degenerado e atávico, como um ser que
não evoluiu como os demais da espécie. Influenciado pelas teorias
evolucionistas da época, houve uma forte racialização na definição
do sujeito criminoso, que foi:

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

[…] consubstanciada na degeneração e infantilidade


da população nativa do novo continente, que por sua
vez embasou o conceito de raça, criado em termos
científicos biológicos no início do século XIX (Goés,
2015, p. 65).

As características fenotípicas, dentre as quais a cor da pele,


eram utilizadas para identificar o grupo social ao qual o sujei-
to pertencia, bem como para verificar o grau de evolução do su-
jeito e a sua tendência a cometer crimes. O racismo foi apoderado
pelo saber científico criminológico desenvolvido pelos positivistas,
em especial por Lombroso, em suas abstrações acerca das caracterís-
ticas antropológicas e fisionômicas que acarretam a propensão para
o crime (Góes, 2015).
Nesse contexto, Ferri desenvolveu a noção de periculosidade,
perigosidade ou temibilidade do sujeito, posteriormente aprofunda-
da por Garófalo, para representar a quantidade de mal que se pode
prever e temer por parte do delinquente, ou seja, a quantificação do
grau de perversidade (Elbert, 1998). Assim, a Escola Positiva italia-
na justificava a prisão como meio de defesa social contra os sujeitos
considerados socialmente perigosos, para os ressocializar e reinte-
grar à sociedade, mas também para neutralizar os que não podiam
ser ressocializados (Andrade, 1995).
Os estudos desenvolvidos sobre a questão criminal pelos po-
sitivistas italianos, fortemente atrelados às teorias evolucionistas,
reforçaram os estereótipos racistas defendidos pelo saber científico
eurocentrista da época. Portanto, além de definir as populações nati-
vas da África, Ásia e das Américas como espécies ou raças inferiores
e subdesenvolvidas, suas características fenotípicas foram utilizadas
para representar os sujeitos delinquentes, apresentados como de-
generados e perigosos, que deveriam ser retirados da sociedade e,
inclusive, neutralizados.

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Um giro epistemológico: da etiologia para a reação social


A preocupação com a etiologia do delito perdeu seu lugar
central nas investigações criminológicas a partir da metade do
século XX, diante das influências dos estudos de correntes fenome-
nológicas e da sociologia do desvio desenvolvidos na América do
Norte (Andrade, 1995). O foco do estudo do fenômeno criminal foi
deslocado para a investigação dos processos envolvidos na definição
da conduta delituosa e do sujeito criminoso. Assim, o paradigma
etiológico deu lugar ao paradigma da reação social.
Importante papel nessa virada epistemológica teve Émile
Durkheim, com sua teoria estrutural-funcionalista da anomia, que
apresentou o delito não como uma patologia relacionada às carac-
terísticas biopsicológicas ou sociais do sujeito, mas como um mero
fato social, um fenômeno normal da sociedade. Diante desse novo
paradigma, foram desenvolvidas novas investigações acerca do fe-
nômeno criminal, por meio do estudo dos processos de interações
sociais e de criminalização (Baratta, 2002).
Em sua obra, Outsiders, Becker (2008) aponta que o crime
não é uma conduta em si, nem o criminoso é um sujeito que comete
um crime por si só, pois a criminalidade não é uma característica
ontológica do sujeito ou da sua conduta. Ela, em verdade, é um
status atribuído por um processo duplo de seleção e etiquetamento.
O sistema penal é visto como um processo dinâmico e seletivo de
criminalização exercido pelas agências de controle social em várias
etapas, como um mecanismo integrado.
Os processos de criminalização primária são realizados pelo
legislador ao escolher e definir certas condutas como crime. A se-
cundária ocorre quando um determinado sujeito é selecionado pelas
agências policiais e judiciais, processado, encarcerado e etiquetado
como criminoso. Destaca-se o papel da polícia na segunda etapa
de criminalização, por ser a agência responsável pela seleção dos

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

sujeitos levados ao poder judiciário (Andrade, 1995). Há ainda a


chamada criminalização terciária, que corresponde aos processos de
interação social que provocam a internalização desse rótulo desvian-
te pelo sujeito, fazendo-o ser considerado um outsider, ou seja, “[...]
aquele que se desvia das regras do grupo” (Becker, 2008, p. 17).
Dessa forma, o rótulo ou o estigma é uma consequência
das decisões políticas dos grupos sociais que detêm o poder de
criar as regras e aplicar as sanções. Estes que, na sociedade bra-
sileira, são historicamente formados por homens, brancos e per-
tencentes às classes econômicas mais altas. Portanto, classe, raça
e gênero estão relacionados diretamente às distinções de poder
nos processos de criminalização e etiquetamento. Becker (2008,
p. 22), ao reconhecer a falibilidade do sistema penal, destaca que
“[...] sendo uma consequência da reação de outros ao ato de uma
pessoa” podem ocorrer etiquetamentos sem desvios. O inverso
também é válido: pessoas podem infringir as regras e nunca
serem detectadas ou selecionadas.
Ante essa ruptura paradigmática, Baratta (2002, p. 159) apre-
senta a passagem do interacionismo simbólico para a criminologia
crítica, na qual ele constrói “[...] uma teoria materialista, ou seja,
econômico-política, do desvio, dos comportamentos socialmen-
te negativos e da criminalização”. Com as influências marxistas,
o controle social é incluído como parte do fenômeno criminal, na
tentativa de compreender o delito e os sujeitos envolvidos levando
em conta o conflito entre as classes, os interesses em discussão e o
contexto socioeconômico.
Dessa forma, Baratta (2002, p. 161), para além de consi-
derar o desvio como um status atribuído a certos indivíduos por
um duplo processo de seleção, afirma que a criminalidade é um
“bem negativo” distribuído na sociedade com base na desigual-
dade social dos sujeitos e na hierarquia dos interesses protegi-
dos, tanto pelo processo de produção das normas quanto pela

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

sua aplicação pelo Direito Penal. Assim, o autor refuta o mito da


defesa social, ao afirmar que ela oculta a real função do sistema
penal e sua desigualdade por excelência na distribuição do estig-
ma da criminalidade.
O Direito Penal não é aplicado, nem “protege” a todos, de
forma isonômica. Assim como sua incidência não depende do dano
ou risco social decorrente da infração da lei. Os mecanismos sele-
tivos dos processos de criminalização tendem a privilegiar os inte-
resses das classes dominantes, imunizar as condutas praticadas por
elas e direcionar sua atuação às classes subalternas, para reproduzir
e conservar as condições econômicas desiguais conforme a escala
vertical da sociedade (Batista, 2011).
Wacquant (2003), ao estudar sobre as relações raciais e so-
cioeconômicas entre o cárcere, o gueto e a escravidão no contexto
estadunidense, apresenta a pena como uma forma de dominar de-
terminados grupos sociais e gerir os indesejáveis. Pontua, também,
que a instituição carcerária se desenvolve com a industrialização e
o capitalismo, sendo essencial na produção de miséria e de margi-
nalização social. Essa relação entre capital, indústria e prisão é tão
forte que Davis (2018, p. 71) apresenta o sistema penal como um
“complexo industrial-prisional”.
A atuação desigual e seletiva dos processos de criminalização
faz parte do próprio sistema penal e cumpre uma função de manu-
tenção do status quo, por meio da reprodução de desigualdades e
da gestão da miséria. No entanto, a teoria da criminologia crítica
foi desenvolvida com bases marxistas, no contexto europeu do con-
flito de classes, sem levar em consideração as peculiaridades histó-
ricas, sociais, raciais e de gênero da sociedade brasileira. Portanto,
a adaptação crítica desse estudo para o contexto marginal brasileiro
é necessária, com o fito de investigar a realidade violenta do sistema
carcerário no Brasil.

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

Um estudo decolonial no realismo marginal brasileiro


O estudo da questão criminal na América Latina perpassa
pela compreensão do poder mundial como em uma estrutura em
que há o centro (Norte do Globo Ocidental) e a periferia, que abarca
diversas marginalidades. Enquanto os primeiros são prestigiados
como produtores dos saberes, as margens são conservadas em uma
condição intencional de quase isolamento (Zaffaroni, 1998). Nesse
contexto, grande parte dos estudos latino-americanos desenvolvidos
acerca da criminologia e da política criminal consistiram em tradu-
ções acríticas das teorias centrais no nosso contexto marginal, diante
do ideal de modernidade eurocentrista (Batista, 2011).
No cenário brasileiro, a criminologia positiva, baseada na su-
perioridade racial, na antropologia e no darwinismo, foi importada
para dar pretensão científica à desigualdade social e racial experi-
mentada no colonialismo, a qual serviu, inclusive, de argumento
para os processos eugênicos de embranquecimento da população
brasileira, ao longo da história, como forma de “modernizar” a civi-
lização (Góes, 2014).
Apesar das fortes heranças africanas e indígenas, o desen-
volvimento histórico brasileiro foi marcado pela afirmação da
cultura da Europa latina e pela eliminação dos demais grupos
culturais da identidade social. Nesses processos, o sistema penal
assumiu o papel deixado pela escravidão de manter a subjugação
dos povos negros e indígenas, por meio da violência e do exter-
mínio (Flauzina, 2006).
Diante disso, urge um estudo do fenômeno criminal que
rompa com essa lógica centralizadora do saber e com as formas co-
loniais de ver, experienciar e viver, o que Maldonado- Torres (2019)
chama de decolonialidade. O pesquisador deve assumir sua posição
marginal e a função política de sua investigação, de forma a apresen-
tar críticas baseadas nos próprios contextos e experiências vividas,

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com a formulação de um discurso e um modo de pensar fundamen-


tado nos fenômenos próprios da sua realidade.
A sociedade brasileira possui bases colonialistas ampara-
das ideologicamente no racismo institucionalizado, bem como na
apropriação e no genocídio de corpos negros. Flauzina (2006, p. 12)
define o racismo como “[...] uma doutrina, uma ideologia ou um
sistema sobre que se apoia determinado segmento populacional con-
siderado como racialmente superior, a fim de conduzir, subjugar um
outro tido como inferior”.
Da escravidão até o sistema prisional, diversos instrumentos
foram e são utilizados para manter essa dominação racial, de modo
que não se pode isolar o estudo do sistema carcerário da ques-
tão racial. O sistema carcerário cumpre, com muito sucesso, sua
função oculta: a manutenção de “[...] um projeto de Estado volta-
do para a eliminação da população negra” (Flauzina, 2006, p. 170),
configurando-se como um aparelho de manutenção do status quo de
um pacto social sustentado pelas elites brancas.
A constituição da raça é um dos principais fatores que dire-
ciona os processos de criminalização, seleção e estigmatização no
contexto latino-americano, bem como no brasileiro. Segundo Segato
(2007, p. 152, tradução nossa):1

A raça que está nos cárceres é a do não branco, a


daqueles em que lemos uma posição, uma herança
particular, a passagem de uma história, uma carga de
etnicidade muito fragmentada, com uma correlação
cultural de classe e estrato social.

Isso representa o que Mbembe (2016), com base na noção de


biopoder elaborada por Foucault, define como Necropolítica. Tendo
1
No original: “[…] la raza que está en las cárceles es la del no blanco, la de aquellos en los que
leemos una posición, una herencia particular, el paso de una historia, una carga de etnicidad
muy fragmentada, con un correlato cultural de clase y de estrato social” (Segato, 2007, p. 152).

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

em vista que a expressão máxima da soberania é o poder de decidir


quem pode viver e quem deve morrrer, e que isto está diretamente
associado à política de raça.
Nesse cenário, Flauzina (2006) pontua a importância de
refutar o mito da democracia racial, que silencia as versões his-
tóricas dos dominados e difunde a ilusão de uma sociedade pací-
fica, como forma de manter a superioridade social e racial sem o
conflito direto. Pires e Lyrio (2014, p. 3) chamam a atenção para
a “cegueira da cor” percebida no Poder Judiciário brasileiro que,
em defesa de uma suposta neutralidade e universalidade, ignora
voluntariamente o fator “raça” e as barreiras socioeconômicas
em suas análises, de forma a produzir e perpetuar desigualdades.
Segundo elas:

O sucesso desse modelo pernóstico de categorização


de seres humanos deriva, além de circunstâncias
econômicas, sociais, políticas e culturais muito bem
definidas, da naturalização dessa hierarquia, do não
reconhecimento do sistema de privilégios que ela
engendra e da consequente negação/cegueira quanto
à sua existência (Pires; Lyrio, 2014, p. 9).

O Poder Judiciário transforma o cárcere no “local do negro”


(Góes, 2017, p. 21), de modo que o alto risco de vida aos negros antes
mesmo de movimentada a máquina judiciária, já com a intervenção
truculenta da polícia. Esta realidade delineia um contexto de racis-
mo institucional, pois há um:

[…] sistema generalizado de discriminações inscritas


nos mecanismos rotineiros, assegurando a domina-
ção e a inferiorização dos negros sem que haja neces-
sidade de teorizá-la ou justificá-la pela ciência (Pires;
Lyrio, 2014, p. 9).

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Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Assim, “[...] a fim de suprir essa debilidade, criminólogos e


criminólogas críticos devem assumir o racismo como variável subs-
tantiva da constituição do sistema penal brasileiro” (Flauzina, 2006,
p. 14). Essa “cegueira de cor” deve ser afastada por uma mudança
significativa nos referentes que regem as relações sociais, com a pro-
dução e a adoção de novas epistemologias, bem como na atuação das
instituições e dos agentes público, além de uma expansão de políti-
cas públicas antirracistas, especialmente dentro do Poder Judiciário
(Pires; Lyrio, 2014).
Diante do exposto, aproximamos a pesquisa ao conceito social
e marginal do sistema penal brasileiro, estruturado basilarmente nos
conflitos de raça e classe. Isso ensejou a amplitude do referencial
teórico adotado, de modo a aliar a criminologia crítica com as crí-
ticas raciais apresentadas por Flauzina (2006), Góes (2014) e Pires e
Lyrio (2014), para analisar a persistência da criminologia positivista
no encarceramento em massa, nas sentenças proferidas por furto no
ano de 2018 em Salvador.

AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS COMO MEDIDAS


DE DESCARCERIZAÇÃO E A DESLEGITIMIDADE
DO SISTEMA PENAL

O Código Penal (Brasil, 1940) chama de penas restritivas de


direitos o rol de penas alternativas inseridos no artigo 43 pela Lei
no 7.209/1984. Com a alteração pela Lei no 9.714/1998, o artigo 44
passou a determinar a substituição da pena privativa de liberdade
fixada em até 4 anos, em caso de crime doloso cometido sem violên-
cia ou grave ameaça à pessoa, pela pena de multa ou por penas res-
tritivas de direitos; se o crime for culposo, a substituição independe
da pena fixada. Ademais, não pode o réu ser reincidente em crime
doloso. Por fim, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social,

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

a personalidade do agente, o motivo e as circunstâncias do delito


devem indicar que a substituição seria suficiente.
O artigo ainda dispõe que “[…] se o condenado for reincidente,
o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação
anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não
se tenha operado em virtude da prática de mesmo crime”.
Portanto, o Código Penal excepciona a exigência de não ser
o réu reincidente, desde que não se trate de reincidência específica
e o julgador entenda ser a substituição recomendável socialmente
(Brasil, 1940).
As penas restritivas de direitos são introduzidas no or-
denamento jurídico brasileiro legitimadas pelo argumento da
proporcionalidade, principalmente, mas também pelo da indivi-
dualização da pena. Isto é, penas mais brandas para delitos com
danos menores; penas cumpridas em liberdade para indivíduos
com reduzida perigosidade.
Nesses termos, tais medidas são defendidas por movimentos
chamados por Andrade (2006, p. 168) de minimalismos reformis-
tas, os quais utilizam o signo da despenalização e os princípios
da intervenção mínima e da ultima ratio para justificar reformas
penais. No entanto, tais reformas não afastam a “eficácia invertida”
da sanção, mais associada à pena privativa de liberdade. Ao con-
trário, sob o argumento de reduzir a incidência do sistema penal,
contribuem para relegitimá-lo e fortalecer o controle social. Davis
(2018, p. 16) afirma que “[...] abordagens que se baseiam exclusiva-
mente em reformas ajudam a reproduzir a ideia absurda de que não
há alternativa às prisões”.
Zaffaroni (2015), na formulação da teoria agnóstica da pena,
resgata a discussão apresentada por Barreto (1926) sobre a deslegi-
timidade e irracionalidade do exercício do poder penal, afirmando
a consequente deslegitimidade tanto das penas prisionais como das

97
Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

medidas alternativas. Assim como a guerra, a pena é um ato de


poder irracional de imposição de dor. Portanto, qualquer discurso
criminal que almeje legitimar ou racionalizar o sistema penal está
condenado ao fracasso.
Nesse sentido, Andrade (2006, p. 174) conceitua como mini-
malismos-meio os modelos que,

[...] partindo da aceitação da deslegitimação do sis-


tema penal, concebida como uma crise estrutural
irreversível, assumem a razão abolicionista porque
não veem possibilidade de relegitimação do sistema
penal, no presente e no futuro.

Diante disso, o papel cautelar do criminólogo consiste em re-


duzir as violências provocadas pelo sistema penal e subtrair os con-
flitos da agência judicial, pela busca de novas formas de resolução
(Zaffaroni, 2013). Davis (2018) chama de alternativas abolicionistas
as estratégias e as instituições que ocupem o espaço tomado pela
prisão, em busca do desencarceramento e com o objetivo final de
tornar a prisão obsoleta, retirando-a “das paisagens sociais e ideoló-
gicas de nossa sociedade” (Davis, 2018, p. 84).
Não estamos aqui defendendo o contexto reformista, de le-
gitimação das penas restritivas sob o argumento da evitação do en-
carceramento. O que a presente investigação se predispõe a fazer é
verificar se a seletividade penal está inserida em casos de não substi-
tuição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos. Com
a análise de sentenças condenatórias pelos crimes de furto, busca-se
identificar os discursos presentes nas fundamentações das autorida-
des judiciais para negar as substituições de pena, e se há lastro em
aspectos raciais e socioeconômicos.

98
ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

DADOS QUANTITATIVOS ACERCA DOS SUJEITOS PRESOS


EM FLAGRANTE POR FURTO

A partir do contexto exposto, aproximamos o estudo teó-


rico da criminalização produzida pelo sistema penal à verificação
da ocorrência do fenômeno da seletividade penal na prática, com
ênfase na influência dos marcadores de raça e classe social nos pro-
cessos de criminalização secundária. Neste tópico, apresentamos o
estudo quantitativo empreendido com base nos autos de prisão em
flagrante dos 78 casos selecionados, com vistas a expor o perfil racial,
o gênero, a classe social, o percentual de condenados que responde-
ram ao processo em liberdade ou não, os regimes iniciais determi-
nados nas sentenças condenatórias e a proporção entre condenados
que obtiveram a substituição.

Perfil racial/étnico e de gênero


Inicialmente, analisamos os perfis racial/étnico dos 78 sujei-
tos sentenciados, diante da identificação feita pela polícia acerca da
cor da pele das pessoas presas em flagrante. As agências policiais
exercem diretamente a função seletiva do poder punitivo, pois estão
nas ruas vigiando e selecionando os candidatos a serem levados às
agências judiciais (Zaffaroni, 2013).
Nessa etapa, foram identificadas 48 pessoas como pardas,
nove como negras e uma como preta,2 ao passo que apenas uma
foi identificada como branca; nos outros 19 casos não encontramos

2
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE; 2010), a cor ou raça pode
ser identificada como branca, preta, parda, amarela, indígena ou sem declaração. No entan-
to, utilizamos o termo negro em alguns casos, já que foi o adotado por diversos policiais,
como consta no banco de dados do relatório da Defensoria do Estado da Bahia (Bahia,
2019). Atentamos para o fato de que a classificação feita pelos policiais parece desconsiderar
a nomenclatura utilizada pelo IBGE, que se refere ao negro como gênero, do qual pretos e
pardos são espécies.

99
Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

identificação. Portanto, dentre os casos analisados, 58 (74%) sujei-


tos foram identificados como negros, o que demonstra a incidência
racialmente seletiva do sistema policial e penal, como apontada por
Flauzina (2006) e Góes (2014).
Como a identificação é feita pela autoridade policial, não há
certeza se foi utilizado o critério da autodeterminação ou da hetero-
determinação. Em outras palavras, não se sabe se a polícia leva em
consideração a determinação do próprio sujeito acerca do seu perfil
étnico/racial ou se ela o identifica de acordo com a forma na qual o
sujeito é visto pela pessoa que conduziu sua prisão em flagrante.
Na cidade cuja população é identificada como 45,6% parda,
36,5% preta e 17,1% branca (IBGE, 2019), dentre as 59 pessoas
com alguma identificação racial, apenas uma (1,7%) identificada
como branca foi alcançada pelas autoridades policiais, enquanto as
outras 98,3% foram identificadas como negras. Há, portanto, uma
sub-representação das pessoas brancas e uma sobrerrepresentação
das pessoas negras.
Diante do marcador de gênero, 65 (83%) pessoas foram
identificadas como homens e 13 (17%) como mulheres. Nesse caso,
a análise dos dados é limitada pela heterodeterminação feita pela
autoridade policial, que identifica o gênero do sujeito preso em fla-
grante. Dentre essas 13 mulheres, cinco foram condenadas, mas em
todos esses casos foi operada a substituição da pena privativa por
penas restritivas de direitos.
Apesar de as mulheres constituírem uma minoria quantitati-
va, suas especificidades são qualitativamente relevantes, uma vez que
o sistema prisional tem como regra o masculino, por ser construído
pela ótica patriarcal. Portanto, as mulheres encarceradas vivenciam
formas de violência diferentes das existentes nas prisões masculinas
(Davis, 2018). No entanto, o marcador de gênero não constituiu
objeto desta pesquisa, pois, em todas as 12 condenações nas quais a
pena não foi substituída, os réus foram identificados como homens.

100
ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

Perfil social: renda média, escolaridade e local de


residência
A identificação acerca do perfil social do sujeito é mais difícil,
pois não pode ser aferida com base em características isoladas, es-
pecialmente porque muitos deles não informaram todos os quesitos
sobre escolaridade, renda média mensal e local de residência. Assim,
analisamos esses três dados em conjunto para verificar um perfil
social majoritário dos sujeitos selecionados pelas agências policiais.
No que tange ao aspecto da renda mensal, em 14 (18%) oca-
siões ela foi identificada como inexistente, em 32 (41%) vezes foi
informada como de até um salário-mínimo, e chega a dois salários-
-mínimos para três (3,8%) pessoas; as outras 29 não informaram.
O fato de em nenhum caso ter sido declarada renda mensal superior
a dois salários-mínimos já indica que os sujeitos estão nas categorias
socioeconômicas mais vulneráveis da sociedade.
Contudo, operamos uma análise desse indicador em conjunto
com a escolaridade, para delimitar com mais precisão a classe social
dos flagranteados. Ao somar as pessoas que se identificaram como
sem escolaridade (2), com as que possuem 1o grau incompleto (37),
concluíram o 1o grau (4), começaram o 2o grau e não concluíram
(9) e que possuem 2o grau completo (6), há um total de 58 (74,3%)
pessoas. As demais 20 não informaram qualquer grau de escolarida-
de. Esses números permite amparar a hipótese de que tais réus são
selecionados de estratos socioeconômicos mais hipossuficientes.
Por fim, com relação aos locais onde os flagrados residem,
em seis ocasiões os sujeitos foram identificados como “moradores
de rua” (7%). Além desses, os bairros/regiões citados mais vezes,
quatro vezes cada, foram Ribeira, Fazenda Coutos e Nordeste de
Amaralina. Depois, aparecendo três vezes, Pernambués, Sussuarana e
Liberdade. Informados duas vezes foram os bairros de Águas Claras,
Centro, Itapuã, Pelourinho, Pirajá, Paripe, Plataforma e Uruguai.

101
Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Os demais foram citados apenas em uma ocasião, são eles: Amaralina,


Arembepe, Bairro da Paz, Barbalho, Barris, Cajazeiras, Calçada,
Caminha de Areia, Canabrava, Castelo Branco, Cosme de Farias,
Engenho Velho de Brotas, Fazenda Grande, Federação, Gamboa,
Itinga, Jardim Cajazeiras, Jardim Cruzeiro, Lauro de Freitas, Lobato,
Marechal Rondon, Maré, Massaranduba, Ondina, Pau da Lima,
Periperi, Pituba, Santa Mônica, São Cristóvão, Saramandaia, Sete
Portas, Tororó. Por fim, em uma ocasião não foi informado bairro
ou região de residência.
Pelo exposto, o público-alvo da seleção policial é composto
majoritariamente por pessoas com menos que o 2o grau completo e
com renda média mensal de até um salário-mínimo. Com relação ao
local de residência, destaca-se a perseguição a sujeitos identificados
como “moradores de rua” e residentes em bairros tradicionalmen-
te conhecidos como mais populares da cidade de Salvador, como
Ribeira, Fazenda Coutos, Nordeste de Amaralina, Pernambués,
Sussuarana, Liberdade, Águas Claras, Centro, Itapuã, Pelourinho,
Pirajá, Paripe, Plataforma e Uruguai, perfazendo 43 dos 78 proces-
sos (55,1%), conforme dados da Companhia de Desenvolvimento
Urbano do Estado da Bahia (2016).

Local da ocorrência do suposto furto


Outro dado relevante extraído dos autos de prisão em flagran-
te foi o local da ocorrência do furto, como informado pelo policial
que fez a lavratura do auto. Dentre eles, destacam-se os seguintes
bairros/regiões: Caminho das Árvores com sete aparições, Brotas
e Pituba com seis, Barra com cinco e Itapuã com quatro. Em três
ocasiões, os delitos ocorreram em Barris, Campo Grande, Comércio,
Ondina, Paripe, Rio Vermelho e São Cristóvão. Por duas vezes,
em Canela, Centro, Luís Anselmo, Paralela e Tancredo Neves. Por
fim, aparecendo apenas uma vez estão Água de Meninos, Amaralina,

102
ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

Calçada, Caminho de Areia, Costa Azul, Graça, Jardim Cruzeiro,


Jardim Nova Esperança, Lapa, Lobato, Matatu de Brotas, Nordeste de
Amaralina, Pau Miúdo, Pelourinho, Pituaçu, Plataforma, Politeama,
STIEP e Trobogy.
Esse indicador demonstra os locais onde há maior incidên-
cia da atividade de seleção das agências policiais, ou seja, os bair-
ros ou regiões em que houve mais prisões em flagrante. Chama a
atenção o fato de apenas seis bairros de Salvador, conhecidos por
serem habitados por pessoas com maior poder aquisitivo (Bahia,
CONDER, 2016) — Caminho das Árvores, Pituba, Barra, Campo
Grande, Ondina e Rio Vermelho, registrarem 27 dentre as 78 prisões
analisadas (34,6%), ao passo que foram identificadas como locais de
residência de apenas dois dos 78 réus (2,5%).
Além de verificar para quem o Estado distribui o status de cri-
minoso, vemos com esses dados quem são as pessoas e quais são os
locais que merecem a “proteção” pela ação desse poder punitivo. Isso
se associa à tese de que o marcador social, ao lado da raça, é funda-
mental não só para a distribuição dos privilégios na sociedade, mas
para marcar a atuação essencialmente desigual e violenta do sistema
punitivo (Baratta, 2002; Flauzina, 2006; Goés, 2014).

Prisões preventivas decretadas, pena fixada na


sentença e regime inicial
Na análise dessas 78 decisões, outro dado colhido foi a quan-
tidade de pessoas que tiveram a prisão em flagrante convertida em
preventiva e quantas puderam responder ao processo em liberdade.
Após a realização de audiência de custódia, a cautelar prisional foi de-
cretada em 29 (37,1%) ocasiões, em uma (1,3%) situação foi determi-
nada a prisão domiciliar do réu, ao passo que em 44 (56,4%) casos foi
concedida liberdade provisória (30 deles com medidas cautelares, dois
com medidas e monitoração eletrônica e 12 sem medidas nem fiança).

103
Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Em outro (1,3%) caso, a prisão em flagrante foi relaxada, e nos demais


três (3,8%) houve fiança arbitrada e recolhida pela autoridade policial.
Em todos os casos nos quais foi decretada a prisão preven-
tiva, as sentenças foram condenatórias, exceto em uma situação,
na qual o réu faleceu no curso do processo, de modo que sua
punibilidade foi extinta. Portanto, das 33 pessoas condenadas por
furto, 28 (88,9%) responderam ao processo em situação de encar-
ceramento preventivo.
Esses dados apresentam um indicativo do aspecto repressivo
do sistema processual penal, chamado por Zaffaroni (2014, p. 110)
de sistema “pré-condenatório ou cautelar”, o qual já esgota grande
parte do poder punitivo estatal de forma imediata e urgente, muitas
vezes como uma condenação sem sentença. Assim, verifica-se que a
seleção penal é operada com grande intensidade pelas agências poli-
ciais, porta de entrada do sistema penal brasileiro (Wanderley, 2017),
as quais estão nas ruas operando as prisões em flagrante.
Por fim, nas 33 sentenças condenatórias, o regime inicial de
cumprimento de pena fixado foi o aberto em 25 (75,8%) ocasiões,
o semiaberto em seis (18,2%) casos, e em apenas dois (6%), houve a
determinação do início do cumprimento de pena em regime fecha-
do. Fato este que reforça a baixa lesividade do delito de furto, tendo
em vista que, em 31 sentenças (94%), a pena foi fixada em menos de
quatro anos, o que permite a fixação do regime inicial aberto, bem
como a substituição da pena. Tal patamar foi ultrapassado em apenas
duas (6%) sentenças, que fixaram penas definitivas em quatro anos e
quatro meses ou quatro anos e sete meses.

ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO?

Dentre as 33 condenações investigadas, verificamos 12 (36,4%)


casos em que a pena privativa de liberdade não foi substituída por

104
ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

penas restritivas de direito; nos demais 21 (63,6%) casos a substitui-


ção foi operada. Antes da análise do conteúdo dessas 12 sentenças,
sistematizamos alguns dados quantitativos sobre elas.
Com relação ao regime fixado para o cumprimento de pena
nesses casos em que não houve a substituição, em quatro (33,3%)
situações o regime inicial foi o aberto. Além disso, a substitui-
ção não ocorreu em todas as seis (50%) sentenças que fixaram o
regime inicial semiaberto, nem nas duas (16,7%) que fixaram o
regime inicial fechado.
Quanto às características raciais/étnicas dos sujeitos, nove
(75%) dos sentenciados que não tiveram a pena substituída foram
identificados como pardos (7) e negros (2), enquanto os três demais
não tiveram identificação. Nenhum dos condenados que tiveram a
substituição da pena negada foi identificado como branco. Quanto
ao gênero, como já informado, apenas réus homens não tiveram a
pena substituída, uma vez que a substituição ocorreu em todas as
sentenças condenatórias com rés do gênero feminino.
No que tange à classe social, verificou-se que a renda média
mensal em seis (50%) ocasiões era de cerca de um salário-mínimo,
sendo inexistente em um (8,3%) caso e nos cinco demais não foi
informada. A escolaridade, por sua vez, em seis (50%) situações foi
declarada como 1o grau incompleto, em outra (8,3%) como 1o grau
completo e em duas (16,7%) vezes como 2o grau incompleto; em três
casos não foi citado grau de escolaridade.
Com relação aos bairros ou regiões informados como local
de residência dos sujeitos que foram condenados e não tiveram a
pena substituída não houve repetições, sendo cada um referido
apenas uma vez. São eles: Uruguai, Liberdade, Ribeira, Federação,
Santa Mônica, Calçada, Águas Claras, Tororó e Barris. A cidade de
Lauro de Freitas foi citada uma vez e uma pessoa foi identificada
como “morador de rua”.

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Por fim, apenas houve repetição dentre os bairros/regiões nos


quais os fatos delitivos teriam sido praticados, conforme o relatado
pela autoridade policial, com relação à Barra e à Brotas, sendo infor-
mados duas vezes cada. Os demais não foram repetidos, sendo eles
Ondina, Pituba, Barris, Centro, Campo Grande, Água de Meninos,
Luís Anselmo e Matatu de Brotas.
Apesar de a seleção judicial ser limitada pela seleção policial,
uma vez que são os policiais que efetuam as prisões e apresentam às
autoridades judiciárias os sujeitos a serem julgados, há a reprodução
de um determinado público-alvo nessa distribuição desigual do es-
tigma de criminoso, corroborando o discurso de Baratta (2002).
Após a coleta dos dados quantitativos, partimos para a análise
qualitativa dessas 12 sentenças condenatórias, pelo delito de furto
isoladamente, nas quais a pena privativa de liberdade não foi substi-
tuída por penas restritivas de direito, por meio do método da análise
de conteúdo apresentado por Bardin (1977), o qual permite certa li-
berdade ao pesquisador. Nesse sentido, destacamos nas decisões das
autoridades judiciais trechos utilizados para justificar a manutenção
da prisão, com o fito de confrontá-los com os dados quantitativos
coletados e sistematizados.

Periculosidade do sujeito: reincidência e falta de


atividade laboral regular lícita como indicativos de falta
de senso de responsabilidade
Em sete decisões, a negativa da substituição seguiu a mesma
linha argumentativa: “não atendida a hipótese do inciso II, do art. 44,
do Código Penal, deixo de converter a pena privativa de liberdade em
restritiva de direito” (Bahia, 2019a, AP 0570115–44.2018.8.05.0001).
De fato, a análise do conteúdo das sentenças selecionadas expôs que
o fundamento usado, majoritariamente, para negar a substituição da

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos foi o da


reincidência do sujeito, como se pode perceber nos seguintes trechos:

De igual modo, atendendo o que dispõe a regra


ínsita no artigo 44 do Código Penal, DEIXO DE
SUBSTITUIR A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
POR RESTRITIVA DE DIREITOS porque ausentes
os requisitos subjetivos. Com efeito, a condenação
anterior transitada em julgado evidencia que, tanto
o início do cumprimento da pena em regime menos
gravoso, quanto a substituição da pena privativa,
não serão eficientes, mormente porque sequer tinha
cumprido integralmente a pena imposta quando
voltou a delinquir, o que é indicativo da falta de senso
de responsabilidade necessário (Bahia, 2019b, AP
0508388–84.2018.8.05.0001).

Verifica-se que o denunciado possui contra si


duas sentenças condenatórias transitadas em
julgado, uma proferida no Processo no 0323995–
97.2013.8.05.0001, que originou o Processo de
Execução Penal no 0305198–34.2017.8.05.0001 e
outra no Processo no 0308827–89.2012.8.05.0001,
que veio dar ensejo ao Processo de Execução Penal
no 0339880–49.2016.8.05.0001, donde se conclui
que o réu possui antecedentes e é reincidente. […]
Não atendida a hipótese do inciso I, do art. 44, do
Código Penal, deixo de converter a pena privativa de
liberdade em restritiva de direito (Bahia, 2019c, AP
0560949–85.2018.8.05.0001).

Atendendo o que dispõe a regra ínsita no artigo 44


do Código Penal, DEIXO DE SUBSTITUIR A PENA
PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE
DIREITOS porque ausentes os requisitos subjetivos.
Com efeito, a condenação anterior transitada em
julgado (fls. 194/210) evidencia que a substituição

107
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não será eficiente, nem socialmente recomendável,


mormente porque é indicativo da falta de senso
de responsabilidade necessário (Bahia, 2019d, AP
0567009–74.2018.8.05.0001).

A reincidência é utilizada pelos julgadores praticamente como


sinônimo de periculosidade e de falta de senso de responsabilidade
do sujeito. O rótulo de perigoso é atribuído pelo julgador para o réu
reincidente como modo de legitimar a sua seleção, segregação e en-
carceramento, em um violento processo de estigmatização.
De forma semelhante, em uma ocasião, a não substituição
foi justificada pela multirreincidência, uma vez que o réu tinha sido
condenado em três outras ações penais, com trânsito em julgado an-
terior, mas também pela quantidade de pena fixada, no caso, quatro
anos e quatro meses de reclusão. Importante destacar que a pena
foi elevada pelo juízo de reprovação feito pelo órgão julgador ante a
reincidência e os antecedentes do réu:

Sob este aspecto, diga-se de passagem, a vista da


existência de três condenações anteriores transita-
das em julgado que tiveram suas penas unificadas,
encontrando-se ainda em andamento o processo de
execução penal, vemos que o primeiro denunciado,
em verdade, é multirreincidente, situação que deverá
ser valorada em momento oportuno durante a etapa
de dosimetria da sua sanção penal em concreto. […]

Incabível a substituição da pena (artigo 44, do Código


Penal), bem como a aplicação do sursis (artigo 77 do
Código Penal), em ambos os casos por não estarem
preenchidos os requisitos subjetivos (multirrein-
cidência e circunstância judicial desfavorável) e
objetivos (quantidade de pena privativa de liberdade
aplicada) à concessão dos benefícios. […]

108
ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

Feitas estas considerações iniciais, observo que no


caso em debate a conduta do denunciado [nome reti-
rado pelo autor] afeta a tranquilidade e harmonia da
ordem pública, seja pela gravidade em concreto das
práticas delitivas e ilícitas que geram perdas da paz
social, seja por colocar em perigo a sociedade, por se
tratar de acusado multirreincidente (fl. 145), eis que
praticou o delito em questão no curso do cumprimen-
to das penas que lhes foram impostas por fatos ante-
riores ao apurado neste processado, o que demonstra,
concretamente, que a restrição da liberdade do referi-
do denunciado, neste momento, é medida impositiva
que visa resguardar a paz social e a ordem pública
(Bahia, 2019e, AP 0547705–89.2018.8.05.0001).

Ao afirmar que o réu reincidente é necessariamente perigoso


para a sociedade e deve ser encarcerado, as autoridades judiciais im-
putam as condutas tidas como criminosas direta e unicamente aos
sujeitos processados, reduzindo-as a escolhas de uma pessoa incapaz
de permanecer em convívio com a sociedade. A atenção do sistema
penal está no sujeito, não nos processos de seleção e controle social.
O sujeito tem a substituição da pena negada pelo fato de já ter
sido condenado anteriormente, ao passo que, aprisionado, mesmo
que consiga sair com vida das unidades prisionais, recebe um es-
tigma do qual dificilmente conseguirá se livrar, seja em relação à
sociedade ou ao próprio sistema penal.
Verifica-se o grande peso que o sistema punitivo atribui à
reincidência, como um “indicativo da falta de senso de responsa-
bilidade” (Bahia, 2019d, AP 0567009–74.2018.8.05.0001), utilizado
para justificar o encarceramento preventivo, aumentar a pena, negar
o direito de recorrer em liberdade, negar a substituição da pena pri-
sional, dentre outros “benefícios” que são obstados aos reincidentes.

109
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Nesse sentido, a substituição foi negada também em casos nos


quais o réu não é reincidente. Em uma situação, a fundamentação
para a manutenção da prisão foi apenas a quantidade da pena, fixada
em quatro anos e sete meses de reclusão: “Abstenho-me de aplicar
à espécie a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva
de direitos, em razão do disposto no art. 44, inciso I do CPB” (Bahia,
2019g, AP 0524978–39.2018.8.05.0001).
Destaca-se, nesse caso, que, apesar de a autoridade judicial afir-
mar que o réu é primário, vez que não “[...] atestam os autos existên-
cia de condenação criminal transitada em julgado em seu desfavor”
(Bahia, 2019g, AP 0524978–39.2018.8.05.0001), as circunstâncias ju-
diciais foram valoradas negativamente diante da existência de ações
penais em curso como forma de aumentar a pena. Assim, percebe-se
na fundamentação da sentença trechos que demonstram a visão do
órgão julgador acerca da periculosidade do réu:

Assinale-se, por fim, que consultando os antecedentes


criminais do acusado acostados aos autos, verifica-se
que este delito não foi um episódio esporádico em
sua vida, não sendo um neófito, e que o acusado com
frequência, ou mesmo habitualmente, infringe a lei,
especialmente com a prática de crimes de mesma
natureza e objeto […]

A sua conduta social traduziu-se não ser a esperada


para o convívio comunitário, pois demonstrou não ter
respeito pelo bem alheio, tendo outras 03 (três) ações
penais públicas incondicionadas em seu desfavor, por
delitos de mesma natureza: dois na 7a Vara Criminal, e
um na 9a Vara Criminal, nesta comarca, evidenciando
dedicação a atividades criminosas, estando ausente,
ademais, prova nos autos de que exerça qualquer
atividade laboral regular lícita (Bahia, 2019g, AP
0524978–39.2018.8.05.0001).

110
ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

A construção argumentativa nesse caso utiliza a falta de com-


provação de atividade laboral regular lícita pelo réu como um indi-
cativo de que ele conduz “sua vida na vertente criminosa” (Bahia,
2019g, AP 0524978–39.2018.8.05.0001). Incide uma dupla violência
estatal contra os sujeitos em condições de vulnerabilidade socioeco-
nômica, uma vez que a ausência de atividade laboral lícita pelo réu já
indica uma ineficiência ou omissão do Estado, o qual deve assegurar
condições mínimas de existência para todos.
No entanto, tal circunstância é conhecida pelo órgão julgador
apenas para ser valorada negativamente e fundamentar sua prisão,
sem qualquer exercício de compreensão. Assim, a vulnerabilidade
social do sujeito é usada para o definir como um criminoso con-
tumaz, em uma argumentação construída também na existência de
três ações penais em curso, mesmo sabendo que em nenhuma delas
houve sequer condenação, que dirá trânsito em julgado.
Para o julgador, apesar de não haver condenação anterior com
trânsito em julgado, não há dúvidas de que o réu não só praticou
outros delitos, mas dedica sua existência a atividades consideradas
criminosas. Assim, a autoridade judicial flexibiliza o princípio da
presunção de inocência diante da inexistência de trabalho formal
e passa a condenar o sujeito não só criminalmente, mas como um
indivíduo incapaz de conviver em sociedade.
Por fim, em três ocasiões a substituição foi negada com fun-
damento no inciso III, do artigo 44 do Código Penal, o que exige que
as circunstâncias judiciais sejam favoráveis e indiquem pela substi-
tuição (Brasil, 1940), mesmo diante da pena fixada na sentença não
superar quatro anos e da não existência de reincidência.
Em um caso, o órgão julgador leva em consideração a exis-
tência de uma sentença condenatória transitada em julgado anterior,
mas que já decorreu o prazo de cinco anos desde o seu cumprimen-
to, para afirmar que o réu possui maus antecedentes. Com base nisso,
conclui que a substituição da pena não é socialmente recomendável:

111
Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

De outro vértice, embora possua outro processo


criminal ajuizado contra si nesta Comarca e, inclu-
sive, ter sido condenado por sentença transitada em
julgado (fls. 154/160), já decorreu o prazo de cinco
anos após o cumprimento da sentença condenatória
anterior. Não há, portanto, reincidência, nos termos
do artigo 63 do Código Penal. Além disto, para a ca-
racterização do furto privilegiado a lei não exige bons
antecedentes, mas, tão somente, a primariedade. […]

Atendendo o que dispõe a regra ínsita no artigo 44


do Código Penal, DEIXO DE SUBSTITUIR A PENA
PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE
DIREITOS porque ausentes os requisitos subjetivos.
Com efeito, a condenação anterior transitada em jul-
gado (fls. 154/160) evidencia que a substituição não
será eficiente, tampouco socialmente recomendável
(Bahia, 2019k, AP 0517007–03.2018.8.05.0001).

Nas outras duas situações, a substituição é considerada ine-


ficiente e não recomendável socialmente diante da existência de
outras ações penais em curso contra o sujeito processado, ressaltan-
do inclusive condenações em grau de recurso:

Quanto aos antecedentes criminais, observa-se que


o denunciado foi condenado pelo Juízo de Direito
da 10a Vara Crime desta Comarca, nos autos da
Ação Penal no 0555563–11.2017.8.05.0001 (roubo),
encontrando-se o feito em grau de recurso. Ademais,
verifica-se que o mesmo responde a mais 03 (três)
Ações Penais nesta Comarca, a primeira em trâmite
junto à 2a Vara Especializada Criminal (roubo), Proc.
no 0531216–45.2016.8.05.0001, a segunda perante à 1a
Vara dos Feitos Relativos aos Crimes Praticados Contra
Criança e Adolescente (roubo), Proc. no 0343017–
78.2012.8.05.0001, e a terceira em curso na 14o Vara

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

Criminal, Proc. no 0540310–17.2016.8.05.0001 (furto


qualificado pelo rompimento de obstáculo), sendo ne-
gativa esta circunstância, contudo não implicando em
reincidência, em face da ausência de seus requisitos […]

Deixo de converter a pena privativa de liberdade em


restritivas de direitos, bem como aplicar os sursis da
pena, em face do réu não preencher os requisitos pre-
vistos no art. 44, inciso III, e art. 77, inciso II, ambos
do Código Penal, considerando a análise das circuns-
tâncias judiciais acima procedida (Bahia, 2019l, AP
0542343–09.2018.8.05.0001).

De outro vértice, embora respondam a outros pro-


cessos nesta Comarca, é tecnicamente primário. Não
há, portanto, reincidência, nos termos do artigo 63 do
Código Penal. Além disto, para a caracterização do
furto privilegiado a lei não exige bons antecedentes,
mas, tão somente, a primariedade […]

Atendendo o que dispõe a regra ínsita no artigo 44


do Código Penal, deixo de substituir a pena privativa
de liberdade por restritiva de direitos porque ausentes
os requisitos subjetivos posto que a substituição, em
princípio, não é suficiente, tampouco socialmente re-
comendável, sobretudo porque o denunciado registra
outras ações penais em andamento contra si, inclusive
com condenação em grau de recurso e já foi condena-
do a cumprimento de medida socioeducativa (Bahia,
2019m, AP 0564517–12.2018.8.05.0001).

Apesar de ser considerada sinônimo de periculosidade, a rein-


cidência é desnecessária para afirmar ser o réu perigoso, posto que é
comum a mitigação do princípio da presunção de inocência diante
do julgamento exercido pelas autoridades judiciais para além do fato,
mas para o sujeito em si. Dessa forma, o julgador define quem são os
sujeitos que tendem a praticar delitos como característica ontológica

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

da sua personalidade, sendo perigosos por assim entenderem as au-


toridades judiciais.

Classe e raça: análise dos dados quantitativos em


conjunto com a do conteúdo
Os dados quantitativos colhidos na pesquisa revelam como
as agências policiais elegem seus alvos dentre, especialmente,
homens, negros e de setores socioeconômicos mais desprivilegiados.
Em contrapartida, essas mesmas agências atuam para reprimir os su-
jeitos que praticam crimes patrimoniais, com destaque, nos bairros
e regiões mais economicamente privilegiados da cidade de Salvador
(Bahia, 2016). Portanto, percebemos, na atuação prática das agências
punitivas, o pressuposto revelado por Flauzina (2006) e por Góes
(2014), de que a atuação do sistema penal brasileiro cumpre uma
função seletiva e racista.
Por sua vez, na análise qualitativa das sentenças, verificamos
menção a fatores sociais em apenas uma ocasião, na qual a falta de
ocupação lítica do réu foi utilizada como indicador de sua pericu-
losidade, justificada a manutenção da pena prisional na convicção
de que o sujeito dedicava sua vida à vertente criminosa. A menção
expressa ao desemprego para fundamentar a necessidade do seu
encarceramento reforça a operatividade real do sistema penal,
de selecionar e estigmatizar os sujeitos que não se encaixam no
modelo neoliberal, que não são considerados autoexploráveis nem
autocontroláveis (Casara, 2018).
No entanto, dentre as justificativas utilizadas para afirmar a pe-
riculosidade do sujeito e fundamentar a não substituição da pena, não
encontramos referência explícita a marcadores raciais. Apesar disso,
na sociedade e no Poder Judiciário brasileiro, o racismo se manifesta
de forma institucional, pois decorre “[...] do alto grau de naturalização
da hierarquia racial e dos estereótipos que inferiorizam determinado

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

grupo enquanto afirmam a superioridade de outro” (Pires; Lyrio, 2014,


p. 6). Tanto que, entre as 12 sentenças nas quais não houve substitui-
ção, nove dos réus condenados eram negros, ao passo que não foram
encontrados homens brancos. Conforme Alves (2017, p. 113–114):

Mais uma vez, os jargões jurídicos ‘personalidade


desajustada e perigosa’, “personalidade incompatível
com o convívio social” demonstraram que, embora
raça, como categoria biológica, seja um tabu nos
discursos punitivos, juízes adaptam, conscientes ou
inconscientemente, os discursos racializados em
pressupostos subjetivos para justificar punições e
criminalizar os grupos vulneráveis.

Os membros dos estratos sociais dominantes, dos quais per-


tencem a maioria das autoridades judiciárias, são condicionados
culturalmente a estigmatizar os “outros” devido a traços biológicos,
fisionômicos e fenotípicos. Portanto, o racismo está presente nas
atuações policiais e judiciais, mas, diante da “cegueira de cor” (co-
lorblindness), sua existência não é mencionada, nem é reconhecido o
sistema de privilégios que se perpetua pela manutenção das hierar-
quias raciais (Alexander, 2018).
A prisão, conforme Wacquant (2006), é uma instituição pe-
culiar cujas origens remontam à escravidão, criada pela elite para
controlar e gerir a miséria, para serem depositados os sujeitos “in-
domesticáveis” e extrair o máximo de lucro dessas pessoas. Davis
(2018, p. 13), por sua vez, afirma que ela

[...] funciona ideologicamente como um local abstrato


no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos
da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras
questões que afligem essas comunidades das quais os
prisioneiros são oriundos em números tão despropor-
cionais […].

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

Esse é um sistema que gera lucro enquanto explora a riqueza


social e reproduz as desigualdades existentes, ao passo que mantém
“[...] as condições que levam as pessoas à prisão” (Davis, 2018, p. 13).
Tal relação se dá de modo bastante semelhante no contexto sócio-
-histórico brasileiro, pois uma pequena elite exerce o controle punitivo
como forma de exploração e de manutenção do controle patrimonial.
Com a transição da escravidão para o sistema prisional, o con-
trole dos corpos indesejados passou do privado para o público, mas
com o mesmo objetivo de preservar o status quo. A prisão retoma
o papel da escravidão de gerir a miséria, criminalizando condutas
que ameaçam romper com a desigualdade estruturante e que trazem
riscos à acumulação capitalista. Diante disso, a forte perseguição aos
crimes patrimoniais, bem como aos delitos de droga, serve a esse
propósito de manter controle social, econômico e racial, por meio do
encarceramento em massa (Flauzina, 2006).
De fato, as agências judiciais usam do juízo de periculosidade e
do estigma da reincidência para justificar o encarceramento daqueles
que não são considerados aptos a conviver em sociedade ou que, su-
postamente, não demonstram responsabilidade social, com o empre-
go de argumentos abstratos para selecionar e estigmatizar tais sujeitos.
Entretanto, a crença de que o Poder Judiciário é neutro e
imune às desigualdades estruturais existentes na sociedade brasileira
oculta a distribuição essencialmente desigual do rótulo de criminoso
pelo sistema penal. Na prática, a seleção policial extrai dos grupos
raciais e sociais historicamente oprimidos aqueles que serão levados
às agências judiciais, os quais terão maior chance de receber o estig-
ma da periculosidade, como um privilégio negativo (Lages, Ribeiro,
2019; Baratta, 2002).
São as pessoas negras as majoritariamente presas em flagran-
te, bem como as que são condenadas e têm a substituição da pena
negada sob o argumento de sua periculosidade. Esta associação
de pessoas negras à criminalidade, muitas vezes, é feita de forma

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

não intencional ou não explícita (Barros, 2008; Pires, Lyrio, 2014;


Wanderley, 2017). Apesar disso, o racismo velado no conteúdo dos
discursos é institucionalizado na atuação prática do sistema puniti-
vo, como argumentam Pires e Lyrio (2014, p. 9):

O racismo institucional aparece como um sistema


generalizado de discriminações inscritas nos me-
canismos rotineiros, assegurando a dominação e a
inferiorização dos negros sem que haja necessidade
de teorizá-la ou justificá-la pela ciência.

A reincidência é apontada como demonstrativo da absoluta


incapacidade do sujeito de conviver em sociedade, mas, quando não
presente, qualquer ação penal ou prisão preventiva em curso serve
para que os julgadores apliquem esse rótulo do sujeito como alguém
perigoso. Assim, o termo periculosidade do sujeito permite a tomada
de decisões baseadas em estigmas raciais e sociais, enquanto permite a
manutenção da aparência de neutralidade racial das agências judiciais
e acoberta o racismo que determina o teor dessas sentenças.
Ainda em continuidade com as relações coloniais, o sistema
penal, como posto, é muito mais complexo do que o existente no
positivismo criminológico, pois não há a necessidade de ser aber-
tamente racista. Tanto que muitos órgãos julgadores se limitam a
adotar motivações abstratas, em noções amplas de reincidência ou
maus antecedentes, como dizer que a prisão é socialmente recomen-
dada, para cumprir a função de manutenção de desigualdades sem
romper com a ilusão de segurança e justiça social.
Dessa forma, apesar de não encontrar marcadores raciais
expressos no conteúdo das sentenças que negaram a substituição
da pena pelo delito de furto, em Salvador, com a presente pesquisa,
compreendemos a existência de um racismo institucionalizado nas
agências de controle punitivo. Na atuação das agências judiciais, ave-
riguamos, além do uso do estigma da reincidência e da periculosidade

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

no controle social dos povos, historicamente, oprimidos, um con-


texto de racismo não declarado que reproduz as relações raciais de
poder em um processo de continuidade com as relações coloniais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, trouxemos à discussão a função do sistema


penal de retirar da sociedade aqueles que incomodam. Investigamos
a ocorrência prática da seletividade penal nos processos de crimina-
lização secundária, por meio da análise de dados quantitativos sobre
os sujeitos presos em flagrante e condenados por furto e da análise
de conteúdo das sentenças condenatórias que negaram a substitui-
ção da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos.
Propusemos verificar o uso da periculosidade do sujeito como fun-
damento para a manutenção da pena prisional.
Assim, delimitamos a abordagem apenas nos delitos de furto
por serem sem violência ou grave ameaça, na comarca de Salvador/
BA, cidade em que realizamos a coleta de dados, no ano de 2018,
para buscar a maior atualidade possível dos dados. Destacamos a
importância da Defensoria Pública do Estado da Bahia (Bahia,
2019), que forneceu a base de dados do Relatório das Audiências de
Custódias de Salvador/BA: anos 2015–2018, na extração dos dados
que foram objetos desta pesquisa.
Pela ótica da criminologia crítica, compreendemos o delito
como um bem negativo distribuído na sociedade de forma inversa-
mente proporcional aos privilégios, por um duplo processo de sele-
ção e estigmatização, diferentemente da visão positivista do crime
como uma característica ontológica. Ademais, como a sociedade
brasileira é historicamente estruturada na escravidão, no racismo e
no genocídio dos não brancos, a atuação do sistema penal é também
fundamentalmente marcada pelo fator racial.

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

A prisão é uma instituição cujas origens remontam aos pro-


cessos de escravização, cuja operatividade real é a de selecionar e
marginalizar pessoas não brancas de classes sociais mais baixas.
Assim, o sistema penal e a pena não podem ser legitimados racional-
mente, pois geram a imposição seletiva e racista de violência e sofri-
mento, ao passo que imunizam os crimes praticados por membros
dos grupos sociais e raciais privilegiados na sociedade.
Dentre os 78 casos analisados, foram proferidas 33 sentenças
condenatórias, dentre as quais 12 não tiveram a pena privativa de li-
berdade substituída por penas restritivas de direitos. Nesses 12 casos,
todos os sujeitos eram homens, sendo a maioria identificada como
pardos (7) ou negros (2), nenhum branco, renda média de até um
salário-mínimo (7) e nível de escolaridade em até 2o grau comple-
to (9). Nesse sentido, verificamos, com a análise dos dados, que as
pessoas presas em flagrante pelos delitos de furto, bem como as que
foram condenadas e tiveram a substituição da pena negada, foram
identificadas, majoritariamente, como homens, negros, com renda
mensal de até um salário-mínimo, e com até 2o grau incompleto.
Ademais, constatamos a distribuição desigual do rótulo de
criminoso na sociedade soteropolitana com relação aos locais de
residência das pessoas, de modo que o sistema penal atinge de forma
mais violenta pessoas identificadas como “moradores de rua” ou re-
sidentes de bairros mais populares de Salvador. Por outro lado, com
relação aos bairros de ocorrência das prisões, observamos a distri-
buição desigual também do “privilégio” de ser protegido pelo siste-
ma penal, pois os locais onde houve maior quantidade de flagrantes
foram regiões de residência de população mais abastada socioecono-
micamente (Bahia, 2016).
Posteriormente, na análise de conteúdo das sentenças conde-
natórias em que foi negada a substituição da pena, notamos como
a reincidência é a circunstância mais utilizada para fundamentar a
periculosidade do sujeito, como um suposto indício de falta de senso

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Bernardo Sodré Carneiro Leão |
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado

de responsabilidade necessário. Além disso, a existência de antece-


dentes criminais, outras ações penais em curso ou condenações sem
trânsito em julgado foram argumentos adotados para justificar a não
substituição, associados em geral à ideia de ser a substituição ineficaz
e não socialmente recomendável.
Nessa análise qualitativa das fundamentações das decisões
proferidas pelas autoridades judiciais, não foi encontrada menção
explícita a marcadores raciais. No entanto, com relação à questão
de classe, verificamos o uso da ausência de profissão regular lícita
para legitimar a necessidade do encarceramento; caso em que há
uma dupla violência estatal contra o réu, que já sofre as dificuldades
da desigualdade social e ainda tem essa vulnerabilidade valorada
negativamente para fundamentar sua prisão.
Apesar de não se afirmar de forma declarada que os sujeitos
vistos como perigosos são homens, negros e pobres, foram eles os
presos em flagrante que foram condenados e tiveram a substituição
da pena negada. O etiquetamento desses sujeitos como pessoas pe-
rigosas e sem senso de responsabilidade necessário para cumprir
a pena fora da prisão é um instrumento da operatividade real do
sistema punitivo.
As fundamentações abstratas das prisões no perigo do sujeito
e na reincidência, no contexto de racismo institucional do sistema
penal brasileiro, contribuem para dar aparência de neutralidade a
decisões baseadas em discursos social e racialmente estereotipados,
conservando as desigualdades e hierarquias existentes desde as inva-
sões portuguesas. O racismo não precisa ser declarado nas decisões
judiciais, pois ele está institucionalizado na sua operacionalidade
real. O silêncio cumpre a função de manter as hierarquias raciais e
sociais, existentes desde os processos coloniais, com uma aparência
de neutralidade racial do Poder Judiciário.
Portanto, para compreender melhor os processos de sub-
jugação dos povos não brancos oprimidos ao longo da história

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ONDE ESTÁ O PERIGO NO CRIME DE FURTO: RAÇA E CLASSE NA NÃO SUBSTITUIÇÃO
DA PENA EM FACE DO ESTEREÓTIPO DA PERICULOSIDADE DO SUJEITO

brasileira pelo sistema penal, não basta investigar o que foi dito e escrito
no corpo das sentenças, deve se questionar também o que está no
campo do não dito. A presente pesquisa contribuiu para revelar
quem são os sujeitos considerados perigosos pelas agências judiciais,
mas também para demonstrar que os fundamentos substantivos
desse juízo de temibilidade não estão expressos nas sentenças, reve-
lando a importância de novas investigações empíricas para além de
pesquisas documentais e de análises de dados quantitativos.

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127
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

Fabiano Pimentel

O direito ao silêncio encontra respaldo não apenas na legislação pro-


cessual brasileira como também em diversos dispositivos reconhe-
cidos internacionalmente. Nos últimos tempos, em sede nacional,
a discussão acerca do exercício desse direito retornou aos holofotes
fundamentada especificamente no seguinte questionamento: o in-
terrogatório parcial está abarcado também entre os direitos funda-
mentais e humanos?
Entretanto, em que pese a larga escora constitucional garan-
tida ao interrogatório parcial, chama atenção a expressiva quan-
tidade de decisões denegatórias, impedindo que o réu opte por
exercer o seu direito ao silêncio parcialmente, ainda que se esteja
diante de um meio de autodefesa que deveria ser livremente exer-
cido pelo seu detentor.
As flagrantes violações constitucionais perpetradas pelas
decisões denegatórias que impedem o interrogatório parcial, am-
plamente encontradas na práxis forense, motivaram a escrita do
presente estudo, o qual visa responder aos questionamentos an-
teriormente mencionados mediante análise do arcabouço teórico
nacional e internacional sobre o tema, bem como dos princípios
basilares do processo penal, dentre eles a ampla defesa e a dignida-
de da pessoa humana.

129
Fabiano Pimentel

O CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS E SUAS


CARACTERÍSTICAS

Inicialmente, vale destacar alguns conceitos sobre os direitos


humanos. José Joaquim Gomes Canotilho (2003) aduz que direitos
humanos e direitos fundamentais são termos utilizados, no mais
das vezes, como sinônimos. Entretanto, segundo a origem e o signifi-
cado, podem ter a seguinte distinção: direitos do homem são direitos
válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnatu-
ralista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem,
jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espácio-temporal.
Os direitos humanos derivariam da própria natureza humana e daí o
seu caráter inviolável, intemporal e universal: os direitos fundamentais
seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica con-
creta. Para Peces-Barba (1982 apud Miguel, 2014, p. 393):

Direitos humanos são faculdades que o direito atribui


a pessoa e aos grupos sociais, expressão de suas neces-
sidades relativas à vida, liberdade, igualdade, partici-
pação política ou social, ou a qualquer outro aspecto
fundamental que afete o desenvolvimento integral
das pessoas em uma comunidade de homens livres,
exigindo o respeito ou a atuação dos demais homens,
dos grupos sociais e do Estado, e com garantia dos
poderes públicos para restabelecer seu exercício em
caso de violação ou para realizar sua prestação.

Liborio L. Hierro (2016, p. 115, tradução nossa) aloca os direi-


tos humanos como uma espécie do gênero direitos subjetivos:

Os direitos humanos parecem ser um tipo ou espécie


do gênero dos direitos subjetivos. A própria noção
de direitos subjetivos é relativamente moderna […] e
parece ligada à afirmação do indivíduo como soberano

130
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

sobre si próprio, uma afirmação que se desenvolve em


paralelo com a do Estado como soberano coletivo.1

Assim, podemos conceituar os direitos humanos como aque-


les inerentes a todas as pessoas. São direitos mínimos de existência
e sobrevivência humana, cujas violações representam graves ofen-
sas à dignidade humana e devem ser severamente reprimidas. São
garantias contra o arbítrio estatal, uma verdadeira defesa contra os
excessos governamentais a brindar a vida, a liberdade e a fraternida-
de entres os povos.
Pode-se destacar, ainda, algumas características dos direitos
humanos. Segundo Theresa Rachel Couto Correia (2005), os direi-
tos humanos possuem características próprias que os diferenciam
dos demais direitos; dentre as principais estão o internacionalismo,
a universalidade e a indivisibilidade, sendo a manutenção da dig-
nidade humana o cerne de todos estes direitos.
Sobre a indivisibilidade, a autora afirma que está relacionada
com a compreensão integral dos direitos humanos, os quais não ad-
mitem fracionamentos, de modo que

[…] atualmente, o entendimento predominante é de


que todos os direitos humanos são interdependentes
e indivisíveis, cabendo aos direitos civis e políticos
importante papel na consecução do desenvolvimento
(Correia, 2005, p. 100).

Definidas as bases conceituais e as características dos direitos


humanos, passamos a analisar o tema do interrogatório, fase pro-
cessual tão importante no Processo Penal e suas repercussões nos
Direitos Humanos.
1
“Los derechos humanos parecen ser un tipo o especie del género de los derechos subjetivos.
La noción misma de derechos subjetivos es relativamente moderna […] y aparece ligada a
la afirmación del individuo como soberano sobre si mismo, afirmación que se desarrolla
paralelamente a la del estado como soberano colectivo” (Hierro, 2016, p. 115).

131
Fabiano Pimentel

O INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE DEFESA

Inicialmente, cumpre esclarecer a natureza jurídica do inter-


rogatório. Tal ponto de partida é extremamente importante para
a compreensão deste instituto processual penal. Compreender
o interrogatório como um mero meio de prova é dar ao institu-
to uma visão extremamente reducionista. Não, o interrogatório
não é apenas um meio de prova, ou mais uma prova típica, é muito
mais do que isso. O interrogatório é um meio de defesa, na melhor
expressão, um meio de autodefesa.
É no interrogatório que o réu tem a possibilidade, se quiser, de
exercer sua autodefesa, ou seja, de explicar os fatos de acordo com
a sua versão, de se defender, pessoalmente, das acusações que lhe
foram imputadas pelo Estado-Acusador. Neste mesmo sentido, Ada
Pellegrini Grinover (2004, p. 10):

Do direito ao silêncio, consagrado em nível constitu-


cional, decorre logicamente a concepção do interroga-
tório como meio de defesa. Se o acusado pode calar-se,
se não mais é possível forçá-lo a falar, nem mesmo
por intermédio de pressões indiretas, é evidente que
o interrogatório não pode mais ser considerado ‘meio
de prova’, não é mais pré-ordenado à colheita de prova,
não visa ad veritatem quaerendam. Serve, sim, como
meio de auto-defesa […] Assim, a correta conceituação
do interrogatório — em face da doutrina, primeiro;
em face da Constituição, depois, e, mais tarde, pela
incorporação do Pacto de São José da Costa Rica ao
ordenamento brasileiro — é a de que constitui ele meio
de defesa, que — se e conforme o acusado falar — pode
eventualmente servir como fonte de prova.

Em consagração ao exposto pela doutrina, a jurisprudência


dos Tribunais Superiores, no Brasil, reconhece pacificamente o

132
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

interrogatório como meio de defesa do acusado, conforme se verifica


na ementa do HC 11.1567 AGR/AM (Brasil, STJ, 2014):

EMENTA: ‘HABEAS CORPUS’ — RÉU MILITAR


— DEVER DO ESTADO DE ASSEGURAR AO RÉU
MILITAR TRANSPORTE PARA COMPARECER
À AUDIÊNCIA DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMU-
NHAS, AINDA QUE O JUÍZO PROCESSANTE
TENHA SEDE EM LOCAL DIVERSO DAQUELE
EM QUE SITUADA A ORGANIZAÇÃO MILITAR
A QUE O ACUSADO ESTEJA VINCULADO (DE-
CRETO No 4.307/2002, ART. 28, N. I) — PEDIDO
DEFERIDO — INTERROGATÓRIO JUDICIAL
— NATUREZA JURÍDICA — MEIO DE DEFESA
DO ACUSADO — POSSIBILIDADE DE QUAL-
QUER DOS LITISCONSORTES PENAIS PASSIVOS
ACOMPANHAR O INTERROGATÓRIO DOS
DEMAIS CORRÉUS, NOTADAMENTE SE AS
DEFESAS DE TAIS ACUSADOS MOSTRAREM-
-SE COLIDENTES — PRERROGATIVA JURÍDICA
CUJA LEGITIMAÇÃO DECORRE DO POSTU-
LADO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA
— DIREITO DE PRESENÇA E DE COMPARECI-
MENTO DO RÉU AOS ATOS DE PERSECUÇÃO
PENAL EM JUÍZO — NECESSIDADE DE RESPEI-
TO, PELO PODER PÚBLICO, ÀS PRERROGATI-
VAS JURÍDICAS QUE COMPÕEM O PRÓPRIO
ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE
DEFESA — A GARANTIA CONSTITUCIONAL
DO ‘DUE PROCESS OF LAW’ COMO EXPRESSIVA
LIMITAÇÃO À ATIVIDADE PERSECUTÓRIA DO
ESTADO (INVESTIGAÇÃO PENAL E PROCES-
SO PENAL) — O CONTEÚDO MATERIAL DA
CLÁUSULA DE GARANTIA DO ‘DUE PROCESS’
— PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL — MAGISTÉRIO DA DOUTRINA

133
Fabiano Pimentel

— CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERI-


ZADO — RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

Tal entendimento não se esgota na doutrina e jurisprudência


brasileiras, vez que o Supremo Tribunal da Espanha possui prece-
dentes no mesmo sentido:

Esta é a doutrina que este Tribunal de Cassação


tem seguido com absoluta reiteração, desde os
tempos mais remotos. Assim, podemos ler no STS
2545/2001, de 4 de Janeiro de 2002, que o direito do
arguido a permanecer em silêncio — nemo tenetur
se detegere — é um dos recursos mais característicos
dos processos penais de inspiração liberal, e o seu
pressuposto constitucional e legislativo significa a
renúncia de o réu ser um mero instrumento de prova.
Assim, o interrogatório torna-se essencialmente um
meio de defesa, visando dar eficácia à contradição
e permitir ao interrogado refutar a acusação e
argumentar a fim de se justificar. A declaração do
interrogado durante a investigação e no julgamento
é assim essencialmente de natureza auto-defensiva;
é um recurso opcional que só eles podem utilizar
(STS, 2010, tradução nossa).2

O referido Tribunal espanhol já decidiu pela nulidade de-


corrente do cerceamento de autodefesa em um caso em que não foi

2
“Esta es la doctrina que ha seguido esta Sala Casacional con absoluta reiteración, desde
muy antiguo. Así, se puede leer en la STS 2545/2001, de 4 de enero de 2002, que el derecho
del imputado a guardar silencio — nemo tenetur se detegere — es uno de los rasgos más
caracterizados del proceso penal de inspiración liberal y su asunción constitucional y
legislativa significa la renuncia a tener a aquél como mero instrumento de prueba. Así,
el interrogatorio se convierte esencialmente en un medio de defensa, orientado a dar
efectividad a la contradicción y a permitir al sometido a proceso refutar la imputación y
argumentar para justificarse. La declaración del imputado durante la investigación y del
acusado en el juicio, tiene, de este modo, un carácter esencialmente autodefensivo; es un
recurso de utilización facultativa, del que sólo ellos pueden disponer” (STS, 2010).

134
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

possibilitada ao réu a última palavra em sede processual penal; o que


se assemelha com o ordenamento jurídico brasileiro no que tange
ao interrogatório, que, com o advento da Lei no 11.719/2008, foi co-
locado como último ato da instrução probatória, reforçando a sua
natureza de meio de defesa. Vejamos decisão proferida pelo Tribunal
Supremo de Madrid (2000):

O primeiro fundamento baseia-se no artigo 5.4 da Lei


Orgânica do Poder Judiciário, argumentando que o
direito à proteção judicial efetiva e a um julgamento
com todas as garantias, contemplado nos artigos 24.1
e 2 da Constituição, em relação ao artigo 739 da Lei de
Processo Penal, foi violado porque ao acusado não foi
concedido o direito à última palavra, de acordo com
as disposições da referida lei.

[…]

Tendo em conta as referências nacionais e interna-


cionais, temos de concordar que este é um direito
fundamental cuja validade não pode ser subordinado
ao desenvolvimento legislativo nacional.

[…]

Consequentemente, o seu efeito imediato é a anulação


do julgamento oral, a fase em que o defeito ou violação
do direito é cometido, e a reintegração do processo
no momento do início do plenário. Isto resulta na
consequente contaminação dos juízes que estiveram
envolvidos no julgamento, o que torna necessário
que o novo julgamento seja conduzido por juízes

135
Fabiano Pimentel

diferentes, a fim de garantir a imparcialidade objec-


tiva exigida a qualquer tribunal (STS, 2000, tradução
nossa).3

Com isso, resta evidente que o interrogatório é um meio de


autodefesa, é o momento processual em que o réu pode, se quiser,
exercer o seu direito constitucional de defesa. Logo, podemos afir-
mar que o interrogatório não é um mero meio de prova, não é uma
mera prova típica prevista na legislação processual penal, já que o
fundamento da ampla defesa só se concretiza em sua integralidade
com a utilização do binômio defesa técnica e autodefesa. Só há defesa
efetiva com este entendimento, ou seja, de que o interrogatório é um
pilar da ampla defesa.

O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO UM DIREITO HUMANO

Partindo da premissa de que o interrogatório é um meio de


defesa, corolário dos direitos humanos, nada justifica a negativa
judicial do interrogatório parcial que consiste no direito de réu de
silenciar total ou parcialmente, responder às perguntas das partes ou
não, de omitir, total ou parcialmente os fatos, no exercício do direito
de autodefesa.
3
“El motivo primero se ampara en el artículo 5.4 de la Ley Orgánica del Poder Judicial,
por estimar que se ha vulnerado el derecho a la tutela judicial efectiva y a un juicio con
todas las garantías, contemplados en el artículo 24.1 y 2 de la Constitución, en relación
con el artículo 739 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, por no haberse concedido el
derecho a la última palabra al acusado conforme dispone dicha norma. […] A la vista de
las referencias internas e internacionales, debemos convenir que se trata de un derecho
fundamental cuya vigencia no puede quedar supeditada al desarrollo legislativo interno.
[…] En consecuencia, su efecto inmediato es la anulación del juicio oral, fase en la que se
comete el defecto o vulneración del derecho, y la retroacción de las actuaciones al momento
de la iniciación del plenario. Ello produce la consiguiente contaminación de los Magistrados
que han intervenido en su celebración, lo que da lugar a la necesidad de que el nuevo juicio
se celebra por unos Magistrados distintos, con objeto de garantizar la imparcialidad objetiva
exigible a todo órgano jurisdiccional” (STS, 2000).

136
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

Sobre o direito ao silêncio parcial, Nereu José Giacomolli


(2016, p. 236 apud Delfino, 2020, p. 25):

O direito ao silêncio atinge, portanto, especificamen-


te, o direito de ficar calado, de não se pronunciar,
de responder somente aos questionamentos que não
produzam incriminação, bem como o de responder
total ou parcialmente às perguntas formuladas.
Trata-se da denominada autodefesa negativa […]
O suspeito, acusado, réu, imputado, na esfera crimi-
nal, após ser devidamente informado da acusação,
elege a melhor estratégia defensiva, a qual poderá ser
a de não declarar, a de não comparecer, a de não se
submeter a procedimentos, metodologias de colheita
de prova que possam afastar o seu estado de inocência.

Neste mesmo sentido, Maria Elisabeth Queijo (2012, p. 248–


–249 apud Delfino, 2020, p. 25):

A posição mais consentânea com o nemo tenetur se


detegere, como direito fundamental que é, objetivando
a tutela do acusado contra risco de autoincriminação,
é permitir ao acusado que exerça o direito ao silên-
cio, durante o interrogatório do mérito, livremente.
Mesmo porque não se poderia exigir dele que fizesse
opção pelo direito ao silêncio, ou não, antes de conhe-
cer as perguntas que seriam formuladas, exceto se se
tratasse de estratégia defensiva previamente traçada.
Desse modo, poderá o acusado não responder a ne-
nhuma pergunta, como poderá responder a algumas
delas e silenciar com relação a outras que entenda
expô-lo a risco de autoincriminação. Fica assim asse-
gurada integralmente sua liberdade de autodetermi-
nação no interrogatório.

137
Fabiano Pimentel

Para Delfino (2020), a negativa ao interrogatório parcial


acarreta uma série de violações aos princípios constitucionais apli-
cados ao processo penal. Aponta o autor que o interrogatório é uma
oportunidade para o acusado, considerando que neste momento ele
poderá contraditar os fatos narrados pelo órgão acusador na ocasião
da denúncia ou da queixa-crime, além de afrontar as acusações rea-
lizadas pela vítima e os fatos descritos pelas testemunhas durante a
instrução. Nota-se, portanto, que:

[…] negar ao acusado a oportunidade de expor a sua


versão dos fatos pelo simples motivo dele ter se recu-
sado a responder às perguntas da autoridade judicial
e do órgão acusador viola o exercício da autodefesa
do acusado — e consequentemente implica mácula à
ampla defesa (Delfino, 2020, p. 11).

A negativa advinda desse cenário desrespeita a autodetermi-


nação do réu, bem como a sua liberdade, uma vez que não o permi-
te se decidir sobre a melhor forma de exposição da sua versão em
juízo, o que denota nítida influência do magistrado sobre o direito de
defesa, que, em verdade, pertence ao acusado. Em consonância com
o exposto, Delfino (2020, p. 11) ainda aponta:

Igualmente, há violação ao contraditório, pelo simples


fato de que apenas a acusação conseguiu expor a sua
versão dos fatos a contento, no momento que ofertou
denúncia ou queixa-crime, de modo que o acusado
não teve a oportunidade de expor a sua versão dos
fatos da forma que melhor lhe aprouvera. E, pior,
teve interpretado contra si o exercício do direito ao
silêncio, circunstância que redunda em enorme pre-
juízo jurídico ao sujeito passivo da persecução penal e
flagrante desrespeito ao nemo tenetur se detegere.

138
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

A conduta em tela também viola o princípio da pre-


sunção da inocência. No processo penal o encargo
probatório acerca da culpabilidade compete ao órgão
acusador, motivo pelo qual o acusado não tem o
dever de colaborar com a acusação na formação da
sua culpa. Dessa forma, assiste ao imputado o direito
de escolher a melhor forma de se autodefender, pelo
que é plenamente possível que ele, estrategicamente,
não responda aos questionamentos da autoridade ju-
dicial e do órgão acusador, sobretudo porque a regra,
no processo penal brasileiro, é que estes façam pergun-
tas com o intento de incriminá-lo e não de absolvê-lo.

Isto posto, resta claro que qualquer restrição ao interrogatório


parcial, ofende direitos humanos, como a ampla defesa, o contraditó-
rio, a presunção de inocência e o princípio da não autoincriminação.

O DIREITO AO SILÊNCIO E À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO

O direito de não autoincriminação consiste na prerrogativa


que tem o réu de não colaborar na produção de qualquer meio de
prova que venha a prejudicá-lo. Em outras palavras, trata-se do di-
reito de não constituir prova contra si mesmo. A expressão nemo
tenetur se detegere significa “não tema se deter”, no sentido que o réu
não deve temer a conduta negativa, ou seja, não deve temer se negar
a constituir prova que o prejudique.
Queiroz (2017, p. 1) esclarece que o princípio da não autoin-
criminação significa que o possível acusado de infração penal

[…] pode (livremente) colaborar ou não colaborar


com a investigação, já que é sujeito de direito e não
simples objeto da prova; mas, se não quiser cooperar,
ninguém poderá obrigá-lo a tanto, razão pela qual,

139
Fabiano Pimentel

quando houver ilegal constrangimento, a confissão ou


prova assim obtida será ilícita e arbitrária a eventual
prisão.

Este direito está garantido nos seguintes dispositivos dos


Pactos Internacionais de Direitos Humanos:

Art. 14, 3, g, do Pacto Internacional sobre Direitos


Civis e Políticos de 1966: ‘ARTIGO 14 […] 3. Toda
pessoa acusada de um delito terá direito, em plena
igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: […]
g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem
a confessar-se culpada’.

Art. 8o, 2, g, da Convenção Americana de Direitos


Humanos de 1969: ‘Artigo 8. Garantias judiciais […]
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se
presuma sua inocência enquanto não se comprove le-
galmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa
tem direito, em plena igualdade, às seguintes garan-
tias mínimas: […] direito de não ser obrigado a depor
contra si mesma, nem a declarar-se culpada’.

Art. 5o, inc. LXIII, Constituição Federal do Brasil


de 1988: ‘Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a in-
violabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-
de, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…] o preso será informado de seus direitos, entre os
quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada
a assistência da família e de advogado’ (Brasil, 1988).

Entretanto, segundo Theresa Argemí (2019), a Convenção


Europeia de Direitos Humanos não impede que o direito ao silêncio
seja apreciado negativamente, desde que analisado conjuntamente
com as demais provas acusatórias, as quais devem ser capazes de

140
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

exigir uma resposta ao réu, deixando-o em uma situação em que ele


não tenha uma resposta lógica a oferecer.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos já firmou entendi-
mento no sentido de que, em que pese o direito ao silêncio ser fun-
damental para um julgamento justo, não goza de caráter absoluto,
de modo que ele pode, excepcionalmente, ser interpretado em desfa-
vor do réu, assumindo um viés condenatório, se as provas fornecidas
pelo acusador forem suficientemente sólidas para exigir uma respos-
ta ao réu, de modo que a sua omissão possa, razoavelmente, permitir
inferir que o réu é culpado (Coll, 2021).
Eis um grave equívoco. Entender negativamente o silêncio,
ou o presumir a culpa pelo exercício do direito de não incrimina-
ção é uma violação aos direitos humanos. Nenhuma presunção ou
prejuízo pode advir do silêncio, seja ele parcial ou total. Nenhuma
presunção de culpa pode ser declarada judicialmente pelo juiz,
no exercício do direito de não autoincriminação.
Asencio Mellado (1963, p. 80) critica essa mitigação do direito
ao silêncio:

[…] se o direito fundamental conceder a possibilida-


de de permanecer em silêncio, só pode ser exercido
recorrendo ao silêncio, de modo que extrair qualquer
prova de culpa equivaleria a anular a eficácia de um
direito que só pode ser exercido desta forma (tradu-
ção nossa).4

Neste mesmo sentido, Gallego (2017) aponta a importância


de não se registrar em ata de audiência ou qualquer declaração as
perguntas que foram feitas ou teriam sido feitas, mas não obtiveram
respostas por parte do réu. Segundo o autor (2017, p. 11):

4
“Si el derecho fundamental concede la posibilidad de callarse sólo podrá ser ejercitado ha-
ciendo uso del silencio, con lo que extraer cualquier dato de culpabilidad sería tanto como
anular la eficacia de un derecho que sólo así puede ser ejercitado” (Mellado, 1963, p. 80).

141
Fabiano Pimentel

Nenhuma disposição da Lei de Processo Penal se refere


a esta possibilidade, pelo que temos de considerar que
ela não é admissível. Esta prática não tem qualquer uti-
lidade e é uma expressão de uma certa tendência para
não aceitar o silêncio como um direito privado, por-
tanto, de efeitos negativos. Não faz sentido registar as
perguntas; não há explicação suficiente para tal registo,
porque se o silêncio não implica nada, então também
não há perguntas deixadas sem resposta. Apenas uma
tendência inquisitorial, uma relutância em abandonar
formas anacrónicas de proceder que incluíam sempre a
cooperação do acusado, mesmo de uma forma forçada
(tradução nossa).5

Para Gallego, o direito ao silêncio é uma manifestação do di-


reito de defesa, e não uma renúncia a este. Assim, nenhuma prova
acusatória pode diminuir o seu valor, já que a forma de manifestação
desse direito é de livre escolha do acusado e seu defensor, funcionan-
do como estratégia processual.

Portanto, o direito ao silêncio é uma manifestação do


direito de defesa ou, melhor dizendo, da autodefesa do
acusado. Não implica, ao contrário do que se poderia
pensar, a renúncia ao exercício da defesa. Ou seja,
o acusado pode optar por permanecer em silêncio,
não respondendo a algumas ou a todas as perguntas
que lhe são feitas, mas ao mesmo tempo pode propor
o uso de provas ilibatórias a fim de eliminar a sus-
peita da prática do ato punível que pesa sobre ele.

5
“En ningún precepto de la Ley de Enjuiciamiento Criminal se hace referencia a esta
posibilidad, por lo que hemos de considerar que no es admisible. Esta práctica carece de
utilidad alguna y es expresión de una cierta tendencia a no aceptar el silencio como derecho
privado, pues, de efectos negativos. Carece de sentido que haya de hacer constar las preguntas;
no tiene una explicación suficiente dicha constancia, pues si el silencio nada implica, menos
tampoco las preguntas dejadas de responder. Sólo una tendencia inquisitiva, una resistencia
a abandonar anacrónicas formas de proceder que incorporaban siempre la colaboración del
imputado, incluso de manera forzada” (Gallego, 2017, p. 11).

142
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

E vice-versa, pode expressar o seu livre arbítrio para


testemunhar, renunciando ao exercício do direito à
prova. O direito ao silêncio, como manifestação es-
pecífica do direito de defesa, não exclui outras ações,
nem é incompatível com elas, nem pode ser avaliado o
exercício de outras condutas a fim de diminuir o valor
do silêncio (Gallego, 2017, p. 6–7, tradução nossa).6

Assim, considerando que a ampla defesa abarca, não apenas


o exercício da defesa técnica, como também o direito à autode-
fesa, a utilização do interrogatório parcial pelo Réu representa a
efetivação do direito de se defender livremente, utilizando-se das
estratégias pertinentes ao caso, e somente assim é que se pode
garantir a efetividade dos direitos humanos previstos nos pactos
e tratados internacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, podemos concluir que o direito ao silêncio é um co-


rolário dos direitos humanos e que sua extensão pode ser total ou
parcial. O réu pode não responder nenhuma pergunta, pode res-
ponder apenas às perguntas do juiz, ou do Promotor ou apenas as
perguntas da defesa técnica. O exercício deste direito deve ser pleno,
sem qualquer redução.

6
“Por consiguiente, el derecho al silencio es una manifestación del derecho de defensa o, mejor
dicho, de la autodefensa del imputado. No implica, en contra de lo que pudiera pensarse,
la renuncia a ejercitar la defensa. Es decir, el imputado podrá optar por permanecer en
silencio, no contestando a alguna o a todas las preguntas que se le formulen, pero al mismo
tiempo podrá proponer la práctica de pruebas de descargo tendentes a hacer desaparecer
la sospecha de la comisión del hecho punible que pesa sobre él. Y viceversa, aquél podrá
manifestar su libre voluntad de declarar, renunciando al ejercicio del derecho a la prueba.
El derecho al silencio, como manifestación específica del derecho de defensa, no excluye
otras actuaciones, ni es incompatible con ellas, ni el ejercicio de otras conductas puede ser
valorado en orden a menguar el valor del silencio” (Gallego, 2017, p. 6–7).

143
Fabiano Pimentel

Além disso, nenhum prejuízo pode advir do silêncio, nenhuma


presunção de culpa pode ser declarada pelo exercício do direito de não
autoincriminação. Só assim, verdadeiramente, será possível garantir a
eficácia dos direitos humanos, permitindo que o exercício da autode-
fesa seja lido sob a ótica constitucional, festejando a ampla defesa.

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acusado en el procedi-miento del Tribunal Del Jurado. Fiscal
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144
O INTERROGATÓRIO PARCIAL COMO
COROLÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS

DELFINO, Leonardo. O silêncio seletivo do acusado no


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PECES-BARBA, Gregorio. Tránsito a la Modernidad y Derechos
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145
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E
DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE
DROGAS EM CAMAÇARI/BA

Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro


Ney Menezes de Oliveira Filho

O presente artigo apresenta uma análise crítica sobre a atividade das


agências penais (criminalização secundária) no que concerne ao
delito de tráfico de drogas. Trata-se de análise documental que, por
intermédio de uma abordagem qualitativa, evidencia a construção
probatória nestes processos criminais, apontando para o papel de-
cisivo que os depoimentos policiais possuem na fundamentação das
decisões, ainda que a versão do réu seja, em muitos casos, distinta.
Para a análise dos dados, optou-se pelo modelo de formulário
gerado pela plataforma Microsoft Forms, com um questionário geral
(disponibilizado em Apêndice) composto por perguntas relaciona-
das a todas as oito sentenças selecionadas. Das questões elaboradas,
duas tiveram caráter discursivo e as demais, de múltipla escolha
(para as questões de múltipla escolha, a plataforma gerou gráficos e
dados percentuais acerca dos dados estudados).
No intuito de organizar a investigação, buscou-se a construção
de um significado para os dados encontrados, além de compreender
e analisar, em perspectiva científica, os impactos dessas práticas

147
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

judiciais na sociedade. No mais, quanto ao tema em tela, pretendeu-


-se, dadas as possibilidades e limitações desta pesquisa, estudar e
analisar, no âmbito da Comarca de Camaçari/BA, as principais teses
de fundamentação das sentenças criminais de tráfico de drogas.
Para a obtenção dos dados, organizou-se um formulário com-
posto por nove perguntas, referentes às informações colhidas nas
sentenças, tais como: quantidade de acusados; tipificação do crime
imputado na denúncia; existência ou não de condenação; quantida-
de de testemunhas de acusação ouvidas em juízo; quantidade de tes-
temunhas de defesa ouvidas em juízo; quantidade de policiais como
testemunhas de acusação; pena em caso de condenação; e regime
penal estabelecido para cumprimento.
Da análise deste formulário, cujos dados foram quantificados
pela própria plataforma, pôde-se extrair porcentagens que permitem
a identificação e a interpretação de importantes informações para
a presente pesquisa. Vale mencionar que todas as sentenças sele-
cionadas tiveram imputação do crime de tráfico de drogas, porém
o processo de no 0500978–84.2020.8.05.0039 (Sentença 4) teve
também a imputação de crime de porte de armas, e no processo de
no 0700629–63.2021.8.05.0039 (Sentença 3), com dois réus, além do
crime de tráfico, também foi imputado o de associação para o tráfico.
No Brasil, as questões relacionadas à política de drogas são,
há muito tempo, debatidas nos mais diversos âmbitos da sociedade,
e, considerando os impactos sociais desses crimes, cabe mencionar,
a priori, alguns dados, referentes ao período de julho a dezembro
de 2021, fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN). Segundo esse órgão, no período supramencionado,
a população prisional no Brasil foi estimada em 749.233 pessoas
(excluídos os presos que estão sob custódias das Polícias Judiciárias,
Batalhões de Polícias e Bombeiros Militares) e, desse total, 219.398
presos respondem pelo crime de tráfico de drogas. No caso do Estado
da Bahia, os dados mais recentes da Secretaria de Administração

148
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

Penitenciária e Ressocialização (SEAP) informou um total de 12.515


pessoas aprisionadas, sendo a capacidade máxima real de 11.551,
resultando em um excedente de 1.193 pessoas (Bahia, 2022).
Adotando como parâmetro os primeiros meses do ano de
2021, um ranking mundial realizado pelo site G1, em parceria com
o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) e o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, situou o Brasil na 26a posição no
quesito taxa de aprisionamento por 100 mil habitantes (Silva et al.,
2021). Nessa contagem, considerando o número de presos provisó-
rios, o Brasil ocupava o 103o lugar (Silva et al., 2021); já o estado da
Bahia apresentou o menor percentual estadual no ranking geral de
prisões por habitantes, apesar de figurar como o Estado com maior
percentual, se contabilizados também os presos provisórios, ficando
com 49,4% do cômputo nacional.
Diante da problemática trazida pelo grande encarceramento,
especificamente as prisões que decorrem de crimes contidos na Lei
de Drogas, como tráfico, torna-se relevante abordar a questão pro-
batória na judicialização e consequente condenação desses casos, es-
pecialmente no que tange à participação policial em todas as etapas
desse processo. Dito isso, parte-se do seguinte problema: qual a
principal fundamentação das decisões de condenação por tráfico de
drogas na Comarca de Camaçari, na Bahia, no período correspon-
dente aos anos de 2021 e 2022?
Visando responder ao problema, propõe-se buscar as razões
do convencimento do julgador nas ações criminais de tráfico de
drogas, tendo como lastro probatório o depoimento pessoal dos
agentes envolvidos nas diligências da prisão. Nesse sentido, dentro
das possibilidades proporcionadas por esta investigação, propôem-
-se, como meios para concretizar o objetivo geral: (i) uma discussão
acerca da política de drogas no Brasil, inserida na Lei de Drogas,
a partir de uma perspectiva criminológica, (ii) a apresentação da
questão probatória na Lei de Drogas e (iii) a análise dos elementos

149
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

probatórios utilizados comumente no procedimento de tráfico de


drogas, especificamente em algumas sentenças condenatórias cri-
minais por tráfico de drogas, ao longo dos anos de 2021 e 2022, da
Comarca de Camaçari/ BA.
Quanto à estrutura teórico-metodológica, optou-se pelo
método empírico, respaldado em pesquisas qualitativas e em leituras
de livros, artigos, teses, leis, jurisprudências e decisões judiciais, tendo
como corpus as sentenças dos anos de 2021 e 2022, cujo recorte espa-
ço-analítico refere-se ao município baiano de Camaçari e às decisões
exaradas pela Primeira e Segunda Vara Criminal. Para fundamentar
as discussões propostas, recorreu-se a diversos autores, entre os quais
podem ser citados estes: Carvalho (2016), Andrade (1999), Semer
(2019), Lopes Júnior (2020), Matida (2009) e Jesus (2016, 2020).
Para apresentar os dados coletados e as reflexões desenvol-
vidas acerca do tema em estudo, dividiu-se esta pesquisa em três
partes, que correspondem às três seções de desenvolvimento. Após
as questões introdutórias deste trabalho, apresenta-se, na segunda
seção, uma breve discussão, em uma perspectiva criminológica, sobre
a política de drogas no Brasil; na terceira seção, analisa-se a questão
probatória no processo penal, considerando os textos teóricos que
tratam da Lei de Drogas, dando ênfase à questão do crime de tráfi-
co de drogas; e, antes das considerações finais, expõe-se, na quarta
seção, uma análise das sentenças criminais condenatórias por tráfico
de drogas no âmbito da cidade de Camaçari, nos anos de 2021 e 2022.

UMA PERSPECTIVA CRIMINOLÓGICA DA POLÍTICA DE


DROGAS NO BRASIL

Os caminhos que levaram às repressões ligadas ao uso e à


venda de substâncias ilícitas foram cimentados em algumas legisla-
ções e normas que vigoraram para possibilitar que o Estado usasse

150
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

seu poder punitivo, até o estabelecimento da atual Lei de Drogas.


Decorrente de condições externas de “consolidação da ideologia da
diferenciação” (Carvalho, 2016), a Lei no 11.343/2006 (Brasil, 2006)
manteve o discurso jurídico-político de repressão mais elevado ao
tráfico de drogas (seguindo o padrão predominante na legislação
anterior), e para o usuário ou dependente utilizou o discurso médico-
-jurídico (Carvalho, 2016).
No caso específico da Lei no 11.343/2006 (BRASIL, 2006)
e da perspectiva do usuário, a Lei de Drogas estabelece uma distin-
ção conceitual e penal, no que concerne à pena propriamente dita,
entre traficantes e usuários de drogas, provocando consequências
processuais, sociais, individuais e, principalmente, penais, já que o
“acusado”, se considerado usuário de drogas, sofrerá reprimendas
que podem variar entre advertências sobre o uso de droga, prestação
de serviço à comunidade ou medida educativa de comparecimento
ao programa ou curso educativo, de acordo com a redação do caput
do artigo 28 da Lei no 11.343/2006.
Já de acordo com o caput do artigo 33 da Lei de Drogas (Brasil,
2006), a pessoa condenada por tráfico de drogas terá uma pena
estipulada entre cinco e 15 anos de reclusão, além do pagamento
de multa. De modo comparativo, pode-se perceber a diferença de
intervenção que o legislador buscou dar ao usuário e ao traficante,
já que este recebe pena de reclusão (privativa de liberdade) e aquele,
reprimendas, como, por exemplo, advertência.
Além disso, como descrito no §2o do artigo 28 da referida
Lei, algumas circunstâncias subjetivas são indicadas pelo legislador
como caracterização da posse de droga destinada ao uso pessoal,
quais sejam “[…] a quantidade da substância apreendida, o local
da ação, as circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes
criminais do agente” (Brasil, 2006) cabe ao juiz avaliar cada caso.
Esses critérios, desprovidos de objetividade legal, contribuem para
uma espécie de “insegurança” processual, haja vista que a lei não

151
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

estabelece, por exemplo, a diferença entre a quantidade de drogas


que torna alguém usuário ou traficante. Nesse sentido, conforme
destaca Talmelli (2014, p. 3), existe

[…] grande discussão no que diz respeito aos cri-


térios elencados pelo §2o do art. 28 da referida lei,
e um dos que mais se destacam é o da quantidade
de drogas que o agente possui, de modo que dá-se
como solução a essa discussão inserir no dispositivo
quantidades determinadas de cada substância entor-
pecente, de maneira que se pudesse objetivamente
enquadrar o indivíduo como usuário ou traficante a
partir da quantidade de drogas que possuísse.

Nesse hiato legislativo, que evidencia a dificuldade em se de-


terminar, no caso concreto, o que constitui “uso”, ainda prevalece a
dificuldade em compreender, por exemplo, o bem jurídico tutelado
pela referida Lei, qual seja: a saúde pública. Esse bem, no contexto
do crime estipulado ao usuário, atua como uma das “justificativas”
para que o Estado faça uso do seu poder de punir, provocando con-
sequências jurídicas que contrariam preceitos constitucionais e jurí-
dicos como um todo.

[…] No Estado Democrático de Direito, todo o


dispositivo legal criminalizador (isto é, toda regra
que proíbe a realização de determinada conduta
sob a ameaça de uma sanção penal) há de ter como
elemento primário a ocorrência de uma lesão ou um
perigo concreto de lesão ao bem jurídico que se pre-
tende proteger com a proibição, bem jurídico este que
delimita o campo de incidência da regra definidora
da conduta criminalizadora e que pode ser definido
como a relação de disponibilidade de um sujeito com
o objeto, identificável ao direito que o sujeito tem de
dispor (isto é, de usar, de aproveitar) de certos objetos

152
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

como a vida, a saúde, o patrimônio etc., a lesão ou


o perigo de lesão ao bem jurídico (isto é, sua afeta-
ção) revelando-se exatamente quando uma conduta
impede ou perturba a disposição desses objetos, que,
assim, necessariamente, hão de ser de titularidade de
terceiros (Karam, 2002, p. 138).

Da discussão sobre o bem jurídico tutelado — a saúde públi-


ca — no artigo relacionado ao uso de entorpecentes, surge também
a questão de como essa justificativa de punição promove contro-
vérsias constitucionais. Em um estudo sobre o artigo 28 da Lei de
Drogas. Garcia (2020?) afirma que as disposições elencadas por
esse artigo não dizem respeito a ninguém, senão ao próprio in-
divíduo no âmbito de sua liberdade individual, que é protegida,
inclusive, pelo inciso X, do artigo 5o, da CF-88. Portanto, não
poderia ser objeto de criminalização, conforme redação dada no
fragmento a seguir:

Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção


de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:

X — são invioláveis a intimidade, a vida privada, a


honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação. (Brasil, 1988 apud Garcia, 2020?).

Essa “nova” perspectiva legislativa em prol do usuário na


atual Lei de Drogas, apesar de embrulhada em uma roupagem
mais inclinada a um discurso “médico-jurídico” e de “patologiza-
ção do usuário”, como destacado por Carvalho (2016), continua
utilizando o sistema penal como uma forma aparentemente mo-
ralizadora de “castigar” a conduta de uso de drogas. Nesse viés,

153
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

a utilização do aparelhamento estatal para reprimir — utilizando


advertências, por exemplo — uma conduta relativa à esfera indi-
vidual expõe muito a forma como o ordenamento jurídico-legis-
lativo se ocupa de “pequenas causas” em nome de uma “ideologia
de defesa social”.
Para Baratta (2002), a “defesa social”, ou o conceito de ideo-
logia da defesa social ou do “fim”, apresenta-se como uma união
entre a ciência jurídica e a noção social do homem (na condição
de indivíduo indivíduo) sobre si mesmo e sobre os outros indiví-
duos do meio social, cujo nascedouro remonta à revolução bur-
guesa na Europa. A “fusão” entre pensamento científico-jurídico
e pensamento ideológico-social, um legitimando o outro, formam
a ideologia da defesa social.

A ideologia da Defesa Social nasce como siste-


ma de controle social contra a criminalidade.
O controle social tem no sistema penal (espécie
daquele gênero) engenharia específica, programa-
da funcionalmente para tal missão: erradicação da
criminalidade. […] Apesar das diferenças relativas
ao método e objeto da ciência penal em suas dife-
rentes vertentes […], a Ideologia da Defesa Social
apresenta funcionalidade justificante (legitima-
dora) e racionalizadora da intervenção punitiva
(Baratta, 2002, p. 45).

Parece haver, portanto, uma espécie de justificação/legitima-


ção do sistema penal e de suas instituições e poderes, sustentada no
discurso de controle social da criminalidade. Além disso, o controle
criado (e esperado) não parece ser apenas o controle institucional,
mas também o ideológico-social, que aflora nos cidadãos uma pos-
tura combativa contra determinados crimes e, sobretudo, a figura de
determinados “criminosos”.

154
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

A construção social da criminalidade e o crime de tráfico


de drogas no Brasil: a eficácia invertida do sistema penal
Amparados em alguns valores considerados comuns a todos
os cidadãos de um grupo social, ou Estado, o crime e o sistema
penal surgem como uma construção social. Da mesma maneira que
esses valores (alguns mais e outros menos relevantes) definem um
grupo como sociedade, eles também determinam como seus mem-
bros devem reagir à ruptura de um desses valores por um de seus
membros. Nessa lógica, substituindo a ideia de “valores sociais” por
“interesses sociais”, alguns são vistos como mais importantes por
uma parcela de indivíduos, e uma parcela ainda menor torna-se res-
ponsável pela aplicação das sanções em função do descumprimento
de tais regras.
De acordo com Baratta (2002), a criminologia dispõe-se a
estudar e a questionar o “interesse social” que ancora algumas con-
dutas condenáveis socialmente — que ele denomina de desvio —
ensejando a “criminalidade”.

O desvio não é algo que precede as definições e


as reações sociais, mas uma realidade construída
mediante as definições e as reações, e que, através
delas, adquire a qualidade desviante ou criminosa.
Deste ponto de vista, a criminalidade não é, portan-
to, uma qualidade ontológica, mas um status social
atribuído através de processos (informais e formais)
de definição e mecanismos (informais e formais)
de reação. Se a criminalidade é um ‘bem negativo’
que, como os outros bens positivos ou negativos de
cujo processo dependem os diversos status sociais,
é atribuído a determinados indivíduos, o acento
das teorias criminológicas se desloca, repetimos, da
criminalidade para os processos de criminalização
(Baratta, 2002, p. 118).

155
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

De modo geral, esses processos de criminalização, bem como


a criminalidade, para serem entendidos socialmente como tais, pas-
saram por etapas de definição e por mecanismos formais e informais
(Baratta, 2002). Sob essa lógica, o que é o crime, assim como o motivo
pelo qual ele é entendido como “bem negativo”, é compreendido se-
gundo um interesse social, que o qualifica como tal. Apesar disso,
e ainda que essa conduta seja amparada pela justificativa do interesse
social/comum, esse sistema de criminalização é constituído e per-
petuado por um grupo específico de pessoas (um grupo pequeno,
inclusive), que detém o poder de atribuir essas regras como normas
e executá-las, em nome de toda uma sociedade. Assim, segundo
Baratta (2002, p. 119), as

[…] teorias conflituais da criminalidade negam


o princípio do interesse social e do delito natural,
afirmando que: a) os interesses que estão na base da
formação e da aplicação do direito penal são os in-
teresses daqueles grupos que têm o poder de influir
sobre os processos de criminalização — os interesses
protegidos através do direito penal não são, pois, inte-
resses comuns a todos os cidadãos; b) a criminalidade,
no seu conjunto é uma realidade social criada através
do processo de criminalização. Portanto, a criminalida-
de e todo o direito penal têm, sempre, natureza política.

Acerca da construção das normas sociais e, neste caso, crimi-


nais, introduzidas em uma realidade penal e ancoradas em uma es-
pécie de interesse social, Andrade (1999) destaca a eficácia invertida
do sistema penal. Segundo a autora, o sistema penal possui uma fi-
nalidade que não só se diferencia da que ele próprio afirma ter, como
também lhe é contrária, o que provoca consequências negativas para
todos, principalmente para os atores considerados “alvos” desse sis-
tema, gerando uma reprodução de desigualdades, legitimada pelo
mesmo sistema que afirma ter a intenção contrária.

156
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

Por “eficácia invertida”, Andrade (1999) entende a função in-


versa do sistema penal que se dispõe a gerar uma segurança jurídica
dentro do ordenamento, valendo-se de um discurso social de com-
bate à criminalidade e de proteção aos bens jurídicos considerados
essenciais aos indivíduos, mas acaba por perpetuar desigualdades
sociais e engendrar, de modo seletivo, a criminalidade.

Mas é precisamente o funcionamento ideológico do


sistema — a circulação da ideologia penal dominante
entre os operadores do sistema e no senso comum
ou opinião pública — que perpetua a ‘ilusão de se-
gurança’ por ele fornecida, justificando socialmente a
importância de sua existência e ocultando suas reais e
invertidas funções. Daí apresentar uma eficácia sim-
bólica sustentadora da eficácia instrumental invertida
(Andrade, 1999, p. 31).

A seletividade edificada neste processo — restrito a uma


camada social dominante — possui um forte poder ideológico e
político. Se no meio social, de modo geral, ocorrem desigualdades
(das mais diversas), com alguns grupos subjugados a outros — seja
por diferenças econômicas, de raça, de gênero etc. —, obviamente,
na construção social do sistema penal também se perpetuará essa
mesma discrepância, já que esse sistema é elaborado e conduzido
pelos mesmos grupos dominantes.

Reitera-se, pois, que há uma profunda conexão fun-


cional entre o macrocosmo social e o funcionamento
do microcosmo penal, que expressa e reproduz, ma-
terial e ideologicamente. O sistema penal revela-se
como um subsistema funcional da produção material
e ideológica (legitimação) do sistema social global;
ou seja, das relações de poder e propriedade existentes
e por isso a proteção que ele confere aos bens jurídi-
cos é sempre seletiva (Andrade, 1999, p. 34).

157
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

Em síntese, considerando o recorte desta pesquisa, pode-se


perceber que o sistema penal tende a produzir, a seu modo, condutas
entendidas como socialmente reprováveis, mas que são, de fato, re-
provadas (do modo que se institui) pelos indivíduos que compõem
os subsistemas que realizam e dão vida ao sistema penal, como
conhecido atualmente. Nesse viés, em sintonia com a proposta de
pesquisa apresentada neste texto, observa-se que:

Valendo-se do mistério e da fantasia que cercam as


substâncias tornadas ilícitas, do superdimensiona-
mento das eventuais repercussões negativas da dis-
seminação de suas oferta e demanda, de apressadas
ou mesmo falsas informações, de palavras ocas, de
significado desvirtuado ou indefinido, mas plenas
de carga emocional, como ‘narcotráfico’ ou ‘crime
organizado’, que são repetidas e interiorizadas, para
expressar algo misterioso e poderoso, a ser enfren-
tado não importa com que meios, o Estado máximo,
vigilante e onipresente atende, com as drogas qua-
lificadas de ilícitas, à necessidade pós-moderna de
criação de novos inimigos e fantasmas que, como
as bruxas e hereges de outrora, comovendo e assus-
tando, ensejam a busca dos rigores da repressão,
da maior intervenção do sistema penal (Andrade,
1999, p. 34).

Conforme postulações de Andrade (1999), o sistema penal


sustenta o imaginário social (ideologia da defesa social) de um delito
(o tráfico de drogas, especificamente) que conta com um histórico
marginal de “inimigo da sociedade”, e utiliza uma roupagem cientí-
fica para, em suma, dar continuidade ao seu poder punitivo e, assim,
perpetuar o funcionamento dessa máquina, que parece tender a uma
continuidade perversa.

158
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

A PRODUÇÃO PROBATÓRIA E O CRIME DE TRÁFICO


DE DROGAS

De modo geral, enquanto procedimento judicial, o processo se


estabelece e se justifica pela busca de uma “verdade processual” e pelo
convencimento do Estado-juiz. Nesse momento, a defesa e a acusação
tentam legitimar, dentro das possibilidades admitidas no ordenamen-
to jurídico, suas versões do fato, encontrando essa possibilidade pela
via da produção probatória. A respeito desse assunto, buscando cons-
truir um conceito para a expressão “processo penal” e estabelecer uma
relação deste com a “pena” propriamente dita, Lopes Júnior (2020,
p. 45) observa que existe “[…] uma íntima e imprescindível relação
entre delito, pena e processo, de modo que são complementares”. Por
isso, um não existe sem o outro, e o processo penal surge para “[…]
delimitar o delito e impor uma pena”, sendo este o “[…] caminho ne-
cessário para a pena” (Lopes Júnior, 2020, p. 45).
Em um tom mais crítico da realidade penal brasileira, por
exemplo, interessante percepção tem a autora Maria Lúcia Karam
(2013, p. 70) ao expressar que:

A expansão do poder punitivo incorpora ao controle


social exercido através do sistema penal parâmetros
bélicos que exacerbam a hostilidade contra os selecio-
nados sofredores concretos e potenciais da pena, ao
acrescentar às ideias sobre o ‘criminoso’[…].

Em uma perspectiva mais normativa, entretanto, pode-se


entender o Direito e a esfera criminal como um meio do qual se uti-
liza uma sociedade para garantir o cumprimento de certas normas
e regras, que devem ser analisadas sob o prisma indissociável das
garantias constitucionais previstas e da observância ao Estado
Democrático, podendo, através dessas condições, fazer uso de seu
poder punitivo. Portanto, o processo penal encontra sua justificativa

159
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

na possibilidade jurídica de penalizar um indivíduo, cuja pena,


no mesmo sentido, encontra sua viabilidade somente dentro de tal
processo (Lopes Júnior, 2020); é nele (e por causa dele) que as partes,
defesa e acusação, conseguem construir suas versões (suas verdades)
do fato, cujo conjunto denomina-se “produção probatória”.
No contexto do ordenamento jurídico brasileiro, as provas
admitidas possuem previsão legal e servem às partes no processo,
que utilizam esse meio para construir suas próprias narrativas re-
lacionadas ao fato de que trata o processo. De acordo com Lopes
Júnior (2020, p. 558), no que concerne à definição do termo provas
no processo, “[…] são os materiais que permitem a reconstrução
histórica e sobre os quais recai a tarefa de verificação das hipóteses,
com a finalidade de convencer o juiz (função persuasiva)”.
Nesse sentido, cabe um breve parêntese acerca da justaposição
feita entre “provas” e “verdade” no processo, entendimento levado a
cabo ao longo de todo o procedimento. O próprio processo parece
querer exigir da defesa e da acusação uma verdade sobre os fatos que
foge à possibilidade processual. Essa “verdade” e sua impossibilidade
jurídica são analisadas por Matida (2009, p. 17):

A verdade absoluta é impossível para o processo,


assim como o é fora dele. Por outro ângulo: a verda-
de absoluta é impossível de ser obtida qualquer que
seja o contexto da experiência e, sendo o processo
um desses contextos, não poderia se passar diferente
com ele. Assim, a verdade relativa é o único sentido
sensato que o termo verdade pode assumir, dentro e
fora do processo.

A esse respeito, Jesus (2016, p. 60) também oferece relevantes


contribuições ao debate:

Analisar o processo de constituição jurídico penal


da infração significa revelar os procedimentos pelos

160
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

quais os operadores do direito buscam a adequação


entre o fato e o que a lei penal define como sendo
as condições de possibilidade de uma infração.
Não se aplica a lei aos fatos, mas os fatos à lei. Entre
a realidade rica e contraditória e a forma fixa em que
ocorre a intervenção da justiça criminal, se inscre-
ve um processo complexo de produção da verdade
que é essencial ao funcionamento da justiça.

O procedimento, então, tem início com a prisão em flagran-


te, normalmente realizada pela polícia ostensiva, que “julga”, ali
no caso concreto, se a apreensão cabe ao porte (uso) ou ao tráfico
(comercialização); posteriormente, essa situação fática é levada a
uma autoridade policial, que dá prosseguimento às investigações —
no âmbito do inquérito policial —, até o procedimento ser levado,
de fato, ao judiciário, aí sim sob o crivo do contraditório. Quanto
a esse “julgamento” prévio, baseado na narrativa policial, realizado
pela autoridade policial, bem como sua repercussão dentro do pro-
cesso, Jesus (2016, p. 32) assevera que a:

[…] classificação do tipo de infração penal apresen-


ta um considerável peso nos flagrantes envolvendo
drogas, pois ela irá nortear o tipo de pena que o acu-
sado receberá. Se a autoridade policial entender que
uma pessoa encontrada com determinada quantidade
de drogas a estava portando para uso próprio, ela
será encaminhada à delegacia onde será registrado
um Termo Circunstanciado. Se a autoridade policial
entender que ela portava droga com o fim de comer-
cializá-la, essa pessoa será presa em flagrante e será
elaborado um auto de prisão com base no crime de
tráfico de drogas.

Com base no entendimento iniciado no âmbito do inquéri-


to, normalmente com a prisão em flagrante, na narrativa policial, o

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Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

processo penal tem início e toma forma, com a polícia assumindo o


papel de grande “testemunha”, já que

[…] ela que vai narrar os fatos como crime, e oferecer


ao sistema de justiça criminal os ‘indícios’ de ‘mate-
rialidade’ e ‘autoria’, elementos fundamentais para o
início de uma ação penal (Jesus, 2016, p. 34).

Além de oferecer os indícios de autoria e de materialidade,


dentro do procedimento judicial, a polícia, na figura do policial os-
tensivo e da autoridade policial, possui uma especial participação,
visto que “[…] são os policiais do flagrante que figuram majorita-
riamente como testemunhas nos casos de tráfico de drogas”, por isso
mesmo “[…] eles estão na ponta e no centro de todo o processo de
incriminação na política de drogas” (Jesus, 2016, p. 34). Por conse-
guinte, a interação entre a narrativa policial da prisão em flagrante
e o percurso probatório, que tenta se construir a partir do processo
de judicialização penal, estão intrinsecamente relacionados e são
interdependentes. Conforme discussão apresentada ao longo deste
capítulo, que visa, ainda, compreender em que medida esse procedi-
mento pode influenciar as partes e o curso do processo.

AS PROVAS COMUMENTE UTILIZADAS NOS PROCESSOS


CRIMINAIS DE TRÁFICO DE DROGAS

Ao analisar o papel dos juízes no sentenciamento de tráfico


de drogas, Semer (2019), considerando sentenças referentes a diver-
sos Estados brasileiros, observou que os recursos probatórios co-
mumente utilizados nos referidos procedimentos estão, em grande
parte, atrelados aos depoimentos dos policiais que participaram das
prisões em flagrante.

162
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

O que vamos perceber com a pesquisa das sentenças é


que, de fato, não existe nenhuma relação entre a pro-
palada gravidade do fato, a relevante intensidade das
penas e um processo penal cercado de maiores cuida-
dos. Talvez em nenhum outro tipo penal, a colheita de
provas seja tão modesta quanto no tráfico de drogas.
A marca central, como veremos, é a importância su-
prema dos relatos das testemunhas policiais, nas quais
se concentram praticamente todo o repositório das
provas obtidas em juízo — ademais da importação dos
elementos do inquérito que, grosso modo, também se
restringem aos policiais. Nada disforme, assim, das
prisões, muito mais centradas no patrulhamento de
rua do que na investigação (Semer, 2019, p. 299).

Nessa investigação, partindo dos dados empíricos corres-


pondentes às sentenças utilizadas em sua pesquisa, Semer (2019)
constatou que, nos processos analisados, 54% dos acusados ne-
garam a autoria (13,52% confessaram, 27,62% admitiram porte,
4,86% outros). No curso da instrução, em média, a acusação ouviu
2,42 testemunhas, enquanto a defesa ouviu 0,97. A informação
mais impressionante diz respeito à relação das testemunhas arro-
ladas pela acusação, com 90,46% sendo provenientes das forças de
segurança — 58,17% de policiais militares (Semer, 2019). A cons-
tatação de que a esmagadora maioria das testemunhas arroladas
pela acusação constitui-se de profissionais da segurança pública,
majoritariamente policiais militares, demonstra que, no caso da
pesquisa de Semer (2019), a polícia ostensiva assume um papel de
protagonismo nos processos envolvendo o tráfico de drogas, já que
participa das prisões em flagrante e retorna ao juízo para confirmar
suas narrativas anteriores.
De modo geral, não há qualquer restrição legal à participação
de policiais como testemunhas de acusação nos processos criminais,
porém

163
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

[…] deverá o juiz ter muita cautela na valoração


desses depoimentos, na medida em que os policiais
estão naturalmente contaminados pela atuação que ti-
veram na repressão e apuração do fato (Lopes Júnior,
2016, p. 749).

Isso porque “[…] é evidente que o envolvimento do policial


com a investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e le-
gitimar os atos (e eventuais abusos) praticados” (Lopes Júnior, 2016,
p. 749). Nesse sentido, Jesus (2020, p. 2) tece contribuições sobrema-
neira relevantes:

Analisando os processos criminais, podemos nos per-


guntar quais são as provas consideradas pelos juízes
e que lhes permitem decidir pela condenação ou
absolvição das pessoas acusadas de tráfico de drogas.
Majoritariamente, aquelas produzidas pelos policiais
do flagrante. Mas em que consistem tais provas? Nas
narrativas desses agentes da lei e nas substâncias
apreendidas. No limite, é a polícia que define quem
é ‘usuário’ e quem é ‘traficante’ É esse agente que
vai narrar os fatos como crime e oferecer à justiça
criminal os ‘indícios’ de ‘materialidade’ e ‘autoria’
considerados fundamentais para o início de uma ação
penal. E são esses mesmos policiais do flagrante que
vão figurar como testemunhas nos casos de tráfico de
drogas, constituindo-se, ao mesmo tempo, em autores
das narrativas e personagens ‘testemunhas’ de todo o
processo de incriminação na política de drogas.

A valoração desses depoimentos funda-se na perspectiva


de que os policiais são agentes públicos representantes do Estado
e, portanto, possuidores da presunção de veracidade em suas nar-
rativas. Além dos questionamentos que surgem das problemáticas
advindas da prova testemunhal em si, há ainda o fato de que estas

164
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

são as provas mais utilizadas nos processos de tráfico, situação que


remete a duas importantes questões: por que o simples fato de ser
agente público concede a essa testemunha a presunção de veraci-
dade na sua narrativa? E quais as consequências dessa condição no
processo? A presunção de veracidade dos depoimentos policiais e o
lugar da produção de provas da defesa nos processos criminais de
tráfico de drogas A presunção de inocência é um dos grandes pilares
de sustentação do sistema acusatório. A expressão latina in dubio pro
reo significa que, na dúvida, deve-se decidir em favor do réu. Nesse
sentido, o artigo 5o inciso LVII da Constituição Federal informa que
“[…] ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória” (Brasil, 1988, s. p.), reafirmando a
ideia de que, “[…] ao consagrar constitucional e convencionalmente
a presunção de inocência, fez o legislador uma escolha política pro-
cessual importante” (Lopes Júnior, 2016, p. 575). Portanto, o

[…] in dubio pro reo é uma manifestação da pre-


sunção de inocência enquanto regra probatória e
também como regra para o juiz, no sentido de que
não só não incumbe ao réu nenhuma carga probató-
ria, mas também no sentido de que para condená-lo
é preciso prova robusta e que supere a dúvida razoá-
vel. Na dúvida, a absolvição se impõe (Lopes Júnior,
2016, p. 576).

A insuficiência de provas ou a fragilidade do standard pro-


batório ensejariam, portanto, a absolvição do réu no processo.
O artigo 386 do Código de Processo Penal, por meio do inciso
VII, destaca as hipóteses em que o juiz deverá absolver o réu
quando, por exemplo, não “[…] existir prova suficiente para a
condenação” (Brasil, 1941, s. p.). No caso do imaginário jurídico,
entretanto, predomina uma inclinação a reconhecer o depoimen-
to policial como envolto em uma presunção de veracidade, decor-
rente do cargo público que ocupa e que, em tese, faz deste meio de

165
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

prova um grande pilar de sustentação para fundamentar decisões.


Como exemplificado no excerto a seguir:
Ademais, esta Corte tem entendimento firmado de que os
depoimentos dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante são
meio idôneo e suficiente para a formação do édito condenatório,
quando em harmonia com as demais provas dos autos, e colhidos
sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, como ocorreu na
hipótese (Brasil, 2020). Nessa perspectiva, ao analisar as recepções
da narrativa policial pelos agentes judiciários, bem como o fato de
que a confiança jurídica no depoimento (e atividade) policial está
pautada em uma “crença”, à qual a autora atribui o significado de “ato
de fé”, Jesus (2016, p. 195) ressalta que o argumento da “fé-pública” é
usado para conceder a esses depoimentos cunho de legalidade, sem
fazer grandes questionamentos acerca de seu conteúdo. Desse modo,

O repertório de crenças cria um tipo de campo de


imunidade da narrativa policial, e que pode ser es-
tendida aos próprios policiais. […] juízes e promoto-
res, no Estado Democrático de Direito, dispõem de
meios para questionar os policiais, já que apresentam
como uma de suas prerrogativas o controle externo
da atividade policial e a proteção de proteção de
garantias de direitos. As análises demonstraram que
raramente os operadores assumem esse papel. Trata-
se de acomodações das crenças dos operadores do
direito, sobretudo promotores e juízes, com relação
às narrativas dos policiais, que se estende ao próprio
policial. Ao invés de observarem os princípios cons-
titucionais como presunção da inocência, princípio
do contraditório e da ampla defesa, bem como o
devido processo legal, promotores e juízes tendem
a acreditar nas narrativas policiais, sem questionar
possíveis situações de ilegalidade ou abusos (Jesus,
2016, p. 195).

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CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

Os resultados de outra pesquisa, realizada por Caldas e Prado


(2020) no período de agosto de 2016 a julho de 2017, tendo como
objeto de estudo os julgados do Tribunal de Justiça da Bahia, mos-
tram que das 50 apelações selecionadas de crimes relacionados ao
tráfico e à associação para o tráfico de drogas, porte e posse de armas,
66% contavam apenas com o depoimento dos policiais responsáveis
pelo flagrante como meio de prova. Nesses casos, 92% das vezes o
Tribunal manteve a decisão de condenação do primeiro grau.
Considerando o contexto do Estado da Bahia, cabe men-
cionar o Decreto no 12.556/2011 (Bahia, 2011), ainda vigente, que
trata da regulamentação de uma espécie de prêmio especial a ser
pago a policiais civis e militares quando da apreensão de armas de
fogo advindas de porte ilegal, estabelecendo um tipo de compensa-
ção pelo serviço, conforme redação dada pelo artigo 3o do referido
Decreto, a saber:

Art. 3o — O Prêmio Especial será pago por arma de fogo


apreendida, dividindo-se o seu valor em partes iguais
entre os componentes da equipe, patrulha ou guarnição
que efetuar a apreensão da arma (Bahia, 2011).

Em seu encargo, o juiz possui o livre convencimento para


basear suas decisões, mas necessita fundamentá-las com as provas
produzidas durante a instrução probatória, em procedimento ju-
dicial. Apesar disso, as discussões supradesenvolvidas permitem
ressaltar o predomínio de uma espécie de tendência judicial, ainda
que não apontada de modo individual para a figura do juiz, mas,
sim, para o sistema como um todo, em atribuir “crença” diversa ao
depoimento policial, testemunha de acusação.
Nesse viés, Lopes Júnior (2020, p. 99) em estudo no campo
da psicologia social sobre a teoria da “dissonância cognitiva”, citan-
do o jurista alemão Bernd Schünemann e no intuito de investigar o
efeito psíquico, e consequentemente decisório, atrelado à atividade

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Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

do juiz, buscou analisar “[…] as formas de reação de um indivíduo


frente a duas ideias, crenças ou opiniões antagônicas, incompatí-
veis, geradoras de uma situação desconfortável” e “[…] a forma
de inserção de elementos de ‘consonância’ […] que reduzam a dis-
sonância e, por consequência, elimine o estresse gerado”. Isso está
relacionado, de modo aparente, com a atividade que o juiz precisa
desempenhar, em especial o juiz criminal. Nas palavras de Lopes
Júnior (2020, p. 99):

O autor traz a teoria da dissonância cognitiva para o


campo do processo penal, aplicando-a diretamente
sobre o juiz e sua atuação até a formação da decisão,
na medida em que precisa lidar com duas ‘opiniões’
antagônicas, incompatíveis (tese de acusação e defesa),
bem como com a ‘sua opinião’ sobre o caso penal, que
sempre encontrará antagonismo frente a uma das
outras duas (acusação ou defesa). Mais do que isso,
considerando que o juiz constrói uma imagem mental
dos fatos a partir dos autos do inquérito e da denún-
cia, para recebê-la, é inafastável o pré-julgamento
(agravado quando ele decide anteriormente sobre
prisão preventiva, medidas cautelares etc.). É de se
supor — afirma Schünemann — que ‘[…] tendencial-
mente o juiz a ela se apegará (a imagem já construída)
de modo que ele tentará confirmá-la na audiência
(instrução), isto é, tendencialmente deverá superes-
timar as informações consoantes e menosprezar as
informações dissonantes’.

Bernd Schünemann confirma que quanto mais o juiz se envol-


ve com a investigação preliminar, de modo a tomar conhecimento
e receber a denúncia, por exemplo, menor será seu interesse nos
atos da defesa e, com isso, maior será a possibilidade de condenação
(apud Lopes Júnior, 2020). Isso acontece porque toda “[…] pessoa
busca um equilíbrio do seu sistema cognitivo, uma relação não

168
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

contraditória”, e a “[…] tese da defesa gera uma relação contraditória


com as hipóteses iniciais (acusatórias) e conduz à (molesta) disso-
nância cognitiva”, promovendo uma espécie de tendência à “[…] au-
toconfirmação das hipóteses” e “[…] busca seletiva de informações”
(Schünemann apud Lopes Júnior, 2020, p. 101).
Para Semer (2019), a atuação combativa do juiz parte de
uma postura que quer pretender tomar para si responsabilida-
des que não lhe pertencem, seguindo o senso comum, a fim de
relativizar as sugestões científicas e, de certo modo, assumir um
lugar que não lhe pertence juridicamente. Nesse sentido, observa
o seguinte:

Quanto mais cede ao senso comum, mais se alheia


do rigor técnico, mais mergulha no pragmatismo
envergonhado, menos consegue exercer o poder que
tem às mãos: a defesa intransigente dos princípios
e normas que conformam o ordenamento jurídico.
As presunções que o ajudam a formar sua livre con-
vicção, a idoneidade dos policiais e a suspeição dos
réus, o esfacelamento dos limites legais, a busca por
uma verdade que pode estar em qualquer canto e por
outro lado ser obtida de qualquer forma, não lhes
prestigia. A presunção da culpa o torna praticamente
indispensável (Semer, 2019, p. 433).

Considerando a literatura jurídica utilizada para a constru-


ção desta pesquisa, nota-se a existência de uma forte ligação entre
o depoimento policial, a sua influência nos processos criminais de
tráfico e o aparente papel de coadjuvante destinado à defesa e à sua
produção probatória nesses processos, quando comparada à acusa-
ção. Nessa perspectiva, na próxima seção, analisa-se um corpus de
sentenças condenatórias, no intuito de compreender, de modo em-
pírico, quais são os grandes pilares que consubstanciam as decisões
dos juízes da Primeira e da Segunda Vara Criminal de Camaçari/BA.

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Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
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FUNDAMENTAÇÃO DE SENTENÇAS CONDENATÓRIAS DE


TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA: A QUESTÃO DO
LIVRE CONVENCIMENTO COMPROMETIDO

Nesta seção, após a apresentação dos dados acerca das sen-


tenças condenatórias pelo crime de tráfico de drogas na cidade
de Camaçari, tendo como recorte temporal o período compreen-
dido entre os anos de 2021 e 2022, propõe-se uma leitura/análise
dessas informações, ancorada no repertório teórico discutido
nas seções anteriores. Para esta amostra, escolheu-se um total de
oito sentenças criminais proferidas pelas 1o e 2o Vara Criminal
de Camaçari, sendo estas as únicas varas destinadas à matéria
criminal na cidade.
As sentenças foram solicitadas através de e-mail, para ambas
as Varas Criminais, as quais prontamente enviaram dez decisões,
das quais oito foram selecionadas para esta análise. Os proces-
sos analisados foram os seguintes: 8039123–96.2021.8.05.0039
(Pes-quisa de campo, Sentença 1); 0700226–94.2021.8.05.0039
(Pesqui-sa de campo, Sentença 2); 0700629–63.2021.8.05.0039 (Pes-
quisa de campo, Sentença 3); 0500978–84.2020.8.05.0039 (Pesquisa
de campo, Sentença 4); 0507404–83.2018.8.05.0039 (Pesquisa de
campo, Sentença 5); 0502842–94.2019.8.05.0039 (Pesquisa de campo,
Sentença 6); 0700053–70.2021.8.05.0039 (Pesquisa de campo, Sentença
7); 0700232–04.2021.8.05.0039 (Pesquisa de campo, Sentença 8).
Dentre as sentenças estudadas, 88% foram de processos
com um único acusado e 12% com dois acusados no polo passivo.
Quanto à quantidade de testemunhas de acusação ouvidas em juízo,
63% das sentenças tiveram duas testemunhas e 37%, três ou mais,
o que significa que a totalidade dos processos contou com oitivas
de testemunhas de acusação — a maioria com duas testemunhas,
no mínimo. Entre essas testemunhas arroladas pela acusação, todas

170
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

eram policiais (agentes de segurança), com dois policiais em 63%


dos processos e três ou mais policiais em 37%.
Em relação à quantidade de testemunhas de acusação ouvi-
das em juízo, os dados são idênticos, em números, aos dados que
pretendem avaliar a quantidade de policiais atuando como teste-
munhas de acusação, isso porque a totalidade das testemunhas de
acusação nos processos corresponde aos agentes de segurança públi-
ca. Em contrapartida, quanto às testemunhas de defesa, 63% dos
processos não tiveram nenhuma testemunha ouvida e 37% tiveram
apenas uma. Na totalidade das decisões analisadas houve condena-
ção, com penas entre quatro e oito anos em 75% dos casos, e entre
zero e quatro anos em 25%.
Quanto ao regime penal, os dados mostraram que em 75%
das sentenças o regime imposto foi o semiaberto e em 25%, o regime
aberto. Essa é a totalidade de informações coletadas através dos dados
extraídos das sentenças, através da plataforma mencionada, que serve
de objeto às interpretações e reflexões apresentadas a seguir.
Considerando a vastidão de possibilidades de enfoque, a partir
da fundamentação das decisões, optou-se pela filtragem dos pontos
que mais se alinhassem ao problema proposto por esta pesquisa,
quais sejam: (I) a relevância processual, para o convencimento do
juiz, das narrativas policiais em detrimento da versão dada pelo réu;
(II) a fundamentação para a negativa da alegação de tortura e preli-
minares de ilegalidade da busca e apreensão (solicitadas pela defesa)
que ensejaram a prisão; e (III) a fundamentação de autoria e mate-
rialidade. Nos tópicos seguintes, trata-se dos aspectos considerados
importantes, em algumas sentenças do escopo selecionado, quanto à
fundamentação das decisões e ao aproveitamento dos depoimentos
dos policiais nas condenações.

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Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

Do convencimento do juiz: versão do réu x versão


dos policiais
Em todos os processos analisados neste estudo, os policiais que
participaram da prisão em flagrante atuaram como testemunhas de
acusação (cada processo com, no mínimo, dois policiais, de acordo
com os dados do formulário). O lastro probatório firmado nesses
processos criminais de tráfico de drogas está intrinsecamente ligado
à produção da prova testemunhal, que se ancora nos depoimentos e
nas versões dos agentes de segurança pública. Por isso, é importante
observar o contexto das narrativas.
No caso da Sentença 1, por exemplo, os policiais afirmaram
em juízo que o réu do processo pertencia à facção criminosa, infor-
mando prisões anteriores. Com base no segundo trecho da sentença,
os policiais destacam um “modus operandi” do acusado capaz de,
conforme tal depoimento, justificar a abordagem. Eis um fragmento
desse depoimento:

Na Justiça, os policiais civis ratificaram seus depoi-


mentos anteriores, com as mesmas narrativas e acres-
centaram que o réu pertence à facção […]. Disseram
ainda que ele já foi preso em outras oportunidades
e já escapou algumas vezes das abordagens, sempre
dispensando a droga ao avistar os policiais (Pesquisa
de Campo, Sentença 1).

O réu, no entanto, em sua versão, afirmou não ser dono das


drogas, explicando ter tomado conhecimento dessas substâncias so-
mente na delegacia, formando, assim, versão diversa da estabelecida
pelas testemunhas de acusação. Segue trecho do depoimento do réu:

Por sua vez, em juízo, o réu negou ser o dono das


drogas apreendidas, somente vendo o saco preto na
delegacia. […] Garantiu possuir ocupação lícita e

172
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

negou responder outros processos. Contudo, mudou


sua versão, quando mencionado seus antecedentes
criminais manchados, garantindo que já tinha sido
preso em flagrante com liberação na Audiência de
Custódia (Pesquisa de Campo, Sentença 1).

Em resumo, os policiais afirmaram que o réu pertencia à


facção criminosa, sendo, portanto, traficante de drogas contumaz.
O réu, em contrapartida, negou a posse das drogas relatadas nos fatos
que ensejaram o processo. Diante de versões divergentes, o juiz criou
sua convicção baseando-se na narrativa policial, oportunidade em
que se observa um comprometimento com a demanda acusatória,
como se destaca no trecho a seguir:

Desse modo, pelo conjunto probatório, firmei meu


convencimento de que o réu é traficante de drogas,
gerente do ponto da Rua […] pertencente à facção
[…] não comprovou ocupação lícita, era o dono
das drogas arrecadadas pelos agentes policiais civis
e responde nesta Comarca às Ações Penais no […],
nesta Vara Criminal e no […], na 2a Vara Criminal de
Camaçari-BA. […] Quanto ao delito de tráfico privi-
legiado, o réu já foi preso reiteradas vezes no contexto
da traficância e ainda é pessoa conhecida na localidade
por vender e distribuir drogas na Rua da Malícia. Sua
conduta ao ver a polícia é sempre de dispensar o ma-
terial ilícito e evadir-se do local. Além disso, os relatos
das testemunhas de acusação, em juízo, são no sentido
de que o réu é gerente do tráfico e que pertence à facção
(Pesquisa de Campo, Sentença 1, grifos nossos).

Os trechos indicados nesse excerto — “é pessoa conhecida na


localidade por vender e distribuir drogas”, “sua conduta é sempre
dispensar o material ilícito e evadir-se do local”, “os relatos das teste-
munhas de acusação em juízo são no sentido de que o réu é gerente

173
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

do tráfico” — são informações utilizadas pelo juiz para fundamen-


tar sua decisão. No entanto, constituem, a priori, narrativas dadas
pelos policiais, e embora não se possa descredibilizá-las, tampouco
se pode tomá-las como “verdade”, sem possibilidade de contestação.
Na fundamentação judicial da sentença, alguns aspectos
merecem ser detalhados. Ao apresentar o conceito de “standard
probatório” em seção anterior, destacou-se seu significado de “[…]
suficiência probatória, o ‘quanto’ de prova é necessário para proferir
uma decisão, o grau de confirmação da hipótese acusatória” (Lopes
Júnior, 2016, p. 574). Para Lopes Júnior (2016), há um “mínimo”
de diversidade de provas que precisa ser atingido na formação do
conjunto probatório do processo, como preceitua o artigo 155 do
Código de Processo Penal:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apre-


ciação da prova produzida em contraditório judicial,
não podendo fundamentar sua decisão exclusivamen-
te nos elementos informativos colhidos na investiga-
ção, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis
e antecipadas (Redação dada pela Lei no 11.690,
de 2008) (Brasil, 1941).

Embora possa decidir de acordo com as provas produzidas,


o juiz deve considerar que esse lastro probatório não pode ser ba-
seado somente em elementos do inquérito, já que este tem natureza
informativa. De fato, os depoimentos das testemunhas de acusação
são produzidos em juízo, mas é possível se atingir um “mínimo” de
provas, sendo estas decorrentes, basicamente, do inquérito policial?
No caso da fundamentação da Sentença 1, há fragilidade
probatória se for admitido o texto do artigo 155 do Código de
Processo Penal (Brasil, 1941) e o conceito de “standard probatório”,
já que o juiz se baseia, para firmar a convicção de que o acusado é
“gerente do tráfico”, “conhecido por vender drogas na localidade”,

174
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

na narrativa policial para legitimar a sua fundamentação na sen-


tença. Ainda assim, o acusado foi condenado a uma pena de 5 anos,
em regime semiaberto.
Ademais, no caso da Sentença 5, o acusado alegou que os
policiais que participaram da diligência (os mesmos que prestaram
depoimento no juízo) forjaram a droga, afirmando que a substância
não lhe pertencia e apresentando, portanto, versão diversa daquela
da acusação. O juiz firmou o seguinte entendimento:

A narrativa apresentada por ele carece de qualquer


amparo no acervo probatório produzido durante
a instrução. Não é verossímil a alegação que foi for-
jada pelos agentes policiais a imputação da quanti-
dade da droga ao acusado, pois implicaria serem os
policiais detentores de grande estoque circulante de
drogas, sem contar com as regularmente apreendidas
e registradas. Além disso, não é verossímil a alegação
que a polícia circula portando quantidade expressiva
de droga sem formalizar a sua apresentação e apreen-
são. Não há como acolher a pretendida absolvição
pugnada pela defesa por ausência de provas (Pesquisa
de Campo, Sentença 5, grifos nossos).

A simples afirmação de que as alegações feitas pelo acusado


contra os policiais são mentirosas, sem qualquer outro meio de
prova produzido em juízo que sustente tal entendimento (apenas
a narrativa policial diversa), faz surgir duas questões: (i) de fato,
o valor probatório do depoimento policial é diferente se comparado
à versão do réu; e (ii) a prevalência da “crença” na atividade policial
(sequer admitindo versão contrária), em detrimento da versão do
acusado, que nesse processo, ainda assim, foi condenado por tráfico
a cinco anos em regime semiaberto.
As duas questões remetem, a partir dos dados analisados,
ao fato de que, na atividade judicante, no lugar da prevalência do

175
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

livre convencimento motivado pelas provas produzidas no processo


penal, há um livre convencimento comprometido com os depoi-
mentos dos policiais (e, por consequência, com a própria acusação),
utilizados, em regra, como prova única para a condenação dos réus
por tráfico.
Como já discutido, segundo ressalta Jesus (2016, p. 195),
a “crença” na atividade policial configura-se como um “ato de fé”,
haja vista que o “[…] repertório de crenças cria um tipo de campo
de imunidade da narrativa policial, e que pode ser estendida aos
próprios policiais”. No processo penal brasileiro, a presunção de
inocência é princípio constitucional basilar, previsto no artigo 5o,
inciso LVII, por meio da seguinte redação: “Ninguém será conside-
rado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condena-
tória” (Brasil, 1988).
A esse respeito, Lopes Júnior (2020, p. 140) observa que tal
presunção “[…] exige uma preocupação, nesse sentido durante
o processo penal, um verdadeiro dever, imposto ao julgador de
preocupação com o imputado, uma preocupação de tratá-lo como
inocente”. Logo, a aparente predileção do juiz em aceitar a narrativa
policial, recusando, em algum grau, os fatos alegados pelo acusado,
serve como atribuição de culpabilidade ao réu, o que fere o prin-
cípio da presunção de inocência, já que, em regra, o réu não deve
ser considerado culpado, nem tratado processualmente como tal,
especialmente nesse contexto de fragilidade probatória.

DA FRAGILIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO DE AUTORIA


E MATERIALIDADE

No estudo das sentenças selecionadas, observou-se um


padrão no que concerne à fundamentação de autoria e materialida-
de, razão pela qual se propôs um tópico específico para a exposição

176
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

dessa questão. Assim, vale ressaltar que é “[…] absolutamente ilegal


acusar alguém, ou pedir a condenação no final do processo, quando
não existe justa causa, punibilidade concreta ou prova suficiente de
autoria e materialidade” (Lopes Júnior, 2020, p. 352). Considerando
essa assertiva, no caso da Sentença 1, constatou-se que a materiali-
dade está respaldada em elementos do inquérito policial e em prova
testemunhal produzida em juízo, além dos laudos de constatação das
substâncias apreendidas pelos policiais. Portanto, a autoria tem sua
confirmação baseada no depoimento policial. Eis um fragmento:

De início, verifico que a materialidade do crime de


tráfico de drogas restou comprovada pela certidão de
ocorrência policial, auto de apreensão e oralidade co-
lhida sob os crivos da investigação e do contraditório,
bem como pelos Laudos de Constatação e Definitivo
que atestam serem as drogas apreendidas substâncias
entorpecentes proscritas no território nacional.

Quanto à autoria, os policiais civis […] disseram,


na fase investigativa, que estavam realizando di-
ligências para apurar uma denúncia anônima de
tráfico de drogas feita contra o réu que se localizava
na […]. Ao chegarem na localidade, avistaram o
denunciado anônimo, montado numa bicicleta,
pessoa essa conhecida de outras prisões (Pesquisa
de Campo, Sentença 1).

Na Sentença 2, o padrão se repete:

A materialidade delitual está sobejamente comprovada


por meio dos elementos constantes dos autos: auto de
exibição e apreensão, à fl. 11, laudo preliminar de cons-
tatação da substância de natureza tóxica à fl.12 e laudo
pericial definitivo às fls. 59–60. A comprovação da
autoria, por sua vez, emana dos depoimentos colhidos
em juízo e perante a autoridade policial, especialmente

177
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

dos depoimentos prestados pelos policiais responsáveis


pela prisão (Pesquisa de Campo, Sentença 2).

Novamente, na Sentença 4, observa-se uma estrutura dis-


cursiva semelhante às anteriores. Além disso, há, ainda, o uso da
“confissão” feita no âmbito do inquérito policial como apoio, como
destacado no excerto a seguir:

A materialidade delitual está sobejamente compro-


vada por meio dos elementos constantes dos autos:
auto de exibição e apreensão da droga, constante
à fl.18, laudo preliminar de constatação da droga
apreendida à fl.19 e laudo definitivo à fl.68. Assim,
não prospera a alegação da nobre defesa dos acu-
sados, no sentido de que não há provas da mate-
rialidade delitiva, em virtude da ausência de laudo
definitivo, haja vista que o mesmo foi devidamente
incurso nos autos à fl 68.

Da autoria

A comprovação da autoria por parte dos acusados


emana dos depoimentos colhidos em juízo e perante a
autoridade policial, prestados pelos policiais respon-
sáveis pela prisão, e pelas confissões dos acusados em
sede de Delegacia (Pesquisa de Campo, Sentença 4).

Ainda que seja possível a utilização da confissão para funda-


mentar uma decisão, ela precisa estar “em conformidade e harmo-
nia” com as demais provas produzidas no processo (Lopes Júnior,
2016). No caso da sentença supracitada, ressalta-se a dependência
substancial que a ação penal tem no inquérito policial, de modo a
não produzir provas novas, confirmando aquelas já apresentadas
pelo inquérito, peça informativa. Nesse sentido, é importante con-
siderar que, no limite,

178
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

[…] é a polícia quem define quem é ‘usuário’ e quem


é “traficante”. É ela que vai narrar os fatos como crime,
e oferecer ao sistema de justiça criminal os “indícios”
de ‘materialidade’ e ‘autoria’, elementos fundamentais
para o início de uma ação penal. Importante destacar
também que são os policiais do flagrante que figuram
majoritariamente como testemunhas nos casos de
tráfico de drogas. Eles estão na ponta e no centro do
processo de incriminação na política de drogas (Jesus,
2016, p. 34).

Segundo observações de Jesus (2016, p. 113), o

[…] inquérito policial apenas confere à narrativa po-


licial do flagrante um caráter de prova, atualizando-a
no formato de uma verdade policial, que será extensi-
vamente utilizada nas fases processuais.

A lógica processual parece seguir a mesma perspectiva quando


utiliza elementos informativos do inquérito policial e, no máximo,
as refaz em juízo, no intuito de passá-las pelo crivo do contraditório,
como se pode verificar nos trechos destacados das sentenças supra-
citadas.das preliminares de ilegalidade e tortura
Na Sentença 2, a defesa alegou ilegalidade quanto à busca pes-
soal do acusado e à invasão de domicílio. Nas alegações finais, dentre
outras teses, pugnou que fosse “[…] declarada a nulidade probatória,
aduzindo violação de domicílio, bem como seja reconhecida a nuli-
dade da busca pessoal” (Pesquisa de Campo, Sentença 2). O julgador
desse processo, por sua vez, manifestou-se neste sentido:

No caso em tela, os agentes policiais ouvidos em juízo


narraram que o acusado demonstrou ‘nervosismo’ ao
avistar a guarnição policial e tentou evadir-se. A des-
confiança é legítima quando o policial detecta alguma
anomalia no comportamento do indivíduo, um gesto

179
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

corporal ou algo atípico em suas vestes, pertences


ou veículo. Foi o que aconteceu. A permissão para a
revista decorre da desconfiança justificada no sentido
de que a pessoa traz consigo armas ou outros objetos
ilícitos ou perigosos, evidenciando-se a urgência de
se executar a diligência. Não sendo possível conseguir
um mandado a tempo de concretizar a busca, a lei
processual dispensa a autorização judicial. De mais
a mais, da prova colhida em juízo, nem o acusado e
tampouco as testemunhas mencionam recusa do réu
para ser revistado, o que autorizaria a busca pessoal.
REJEITO, portanto, a preliminar suscitada (Pesquisa
de Campo, Sentença 2, grifo nosso).

Nessa mesma perspectiva, o juiz negou a preliminar solicitada


pela defesa, com relação à suposta invasão de domicílio:

Alega a defesa que os agentes policiais invadiram o


imóvel do acusado, sem apoio nem ordem judicial.
Trata-se de mera alegação, dissociada da prova colhi-
da em juízo, que aponta em sentido oposto. Nenhuma
das testemunhas ouvidas menciona a tal invasão.
Inclusive, os relatos dos agentes policiais dão conta
que a abordagem e a revista pessoal do réu se deu
em via pública, não havendo qualquer incursão em
casas. A defesa desistiu da oitiva da testemunha que
supostamente teria presenciado a invasão de domi-
cílio. Por fim, a nobre Defensoria Pública aduziu
que requereu a este Juízo relatório do GPS da viatura
que efetuou a prisão do acusado, a fim de lastrear a
tese de violação de domicílio, mas que não logrou
êxito face equívoco do cartório em informar data
errada aos órgãos. Apesar de mencionar a importân-
cia da prova, ciente do equívoco desta serventia, não
requereu o refazimento dela. Nada a prover, portan-
to (Pesquisa de Campo, Sentença 2, grifos nossos).

180
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

Em sentido diverso, no seu depoimento em juízo, o acusado


negou os fatos narrados pela versão policial. Ainda assim, o juiz,
ao firmar seu convencimento, entendeu que o réu mudou a versão
que havia dado no âmbito do inquérito policial “com o fim de se
esgueirar da persecução penal”, utilizando-se somente de elemen-
tos presentes na fase inquisitorial e dos depoimentos policiais para
formar tal convicção. Segue trecho completo:

O réu […] muito embora tenha negado os fatos


durante o seu interrogatório judicial (fl.121), em
seu interrogatório policial (fls.13–14) declarou que
a droga apreendida pela polícia lhe pertencia e se
destinaria à comercialização. Informou local de sua
compra e o valor que foi pago por ela. Contudo, em
juízo, variou a sua narrativa com o fim de se esguei-
rar da persecução penal. Relatou ser usuário e que a
droga encontrada em seu poder era para o seu uso
pessoal. O único ponto em comum entre as narrativas
é a alegação de que ele foi abordado dentro de casa e
não em via pública, a fim de arguir violação de domi-
cílio. […] Acrescentou que a droga encontrada não se
destinaria à comercialização e sim para seu uso pes-
soal (Pesquisa de Campo, Sentença 2, grifos nossos).

Quanto à diferença entre a narrativa utilizada na fase inquisi-


torial e a versão informada na fase judicial, o acusado informou que
houve divergência porque teria sido torturado pelos policiais que
realizaram a abordagem. Eis o trecho referente a essa informação:

Informou que viu-se obrigado a confessar o crime de


tráfico de drogas na Delegacia porque teve receio dos
agentes policiais que efetuaram a sua prisão, em face
das agressões físicas praticadas por estes quando da
sua abordagem. A afirmação não é verossímil, tendo
em vista que relatou também que não que sofreu

181
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

qualquer coação ou agressão (física ou moral) da


autoridade policial e que os agentes policiais não se
fizeram presentes no momento do seu interrogatório
em Delegacia. Desta forma, a nova narrativa apre-
sentada por ele carece de qualquer amparo no acervo
probatório produzido durante a instrução (Pesquisa
de Campo, Sentença 2, grifos nossos).

Nota-se uma tendência na utilização de elementos da fase in-


quisitorial, por parte do juiz, para aferir inverossimilhança quanto
ao depoimento do acusado em juízo, chegando à conclusão de que a
narrativa do réu não possui veracidade por ter sido divergente.
Cabe, também, destacar o depoimento da testemunha de
defesa do acusado, em juízo, informando não ter presenciado os
fatos, não se constituindo, portanto, testemunha ocular, ainda que
tenha dado sua versão do ocorrido:

Em juízo, a testemunha de defesa […] relatou ser


irmã do acusado e não ter presenciado o momento
da prisão de […]. Afirmou que o seu marido testemu-
nhou o momento em que os agentes policiais adentra-
ram no imóvel e abordaram o acusado, mas que não
quis prestar depoimento em juízo, ‘porque ficou com
medo dos policiais’ (Pesquisa de Campo, Sentença 2).

Na fundamentação, o juiz, para desconsiderar a versão do


acusado, afirmou tratar-se “[…] de mera alegação, dissociada da
prova colhida em juízo, que aponta em sentido oposto”, já que
nenhuma “[…] das testemunhas ouvidas menciona a tal invasão”
(Pesquisa de Campo, Sentença 2). No entanto, vale ressaltar que as
testemunhas oculares ouvidas foram os policiais que participaram
da abordagem, que não teriam motivo para confirmar a versão do
réu contra si mesmos.

182
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

Concernente à atribuição de suficiência probatória no depoi-


mento policial para deslegitimar a versão do acusado, o juiz afirmou
que os “[…] relatos dos agentes policiais dão conta que a abordagem e
a revista pessoal do réu se deu em via pública, não havendo qualquer
incursão em casas” (Pesquisa de Campo, Sentença 2). Desse modo,
o julgador parece convencido das alegações de modo suficiente para
afirmar não ter havido incursão em casas, nem mesmo se valendo do
benefício da dúvida.
Tratando dos processos criminais de tráfico de drogas, Jesus
(2016, p. 63) observa que a narrativa do acusado é “recepcionada
com reservas” em sede judicial, visto que, quando as versões são dis-
sonantes (em juízo versus em inquérito), o juiz adota esse argumento
para invalidar o depoimento do acusado, ainda que o interrogatório
na fase inquisitorial seja feito sem o crivo do contraditório e ampla
defesa, e mesmo que o réu alegue tortura.
As alegações de tortura na abordagem, indicadas pelo acusa-
do, foram entendidas pelo julgador como insuficientes, em razão da
contradição no depoimento do acusado (inquérito versus juízo), por
isso afirmou que a versão do réu se constituía-se em estratégia para
“esgueirar-se da persecução penal”. Porém, quando o réu afirmou ter
admitido a posse das drogas por ter sofrido agressões pelos policiais
no momento da abordagem, o julgador entendeu a explicação do
réu como mentirosa, por não ter, na fase inquisitorial, relatado tais
acontecimentos. Isso comprova que os:

[…] juízes não concebem a violência como um proce-


dimento adotado pelos policiais durante a abordagem.
Ao restringir a justificativa da violência ao âmbito
pessoal (ou privado), o juiz afasta o entendimento
de que o uso da violência pode ter ocorrido, por
exemplo, de forma arbitrária pelo policial. Desvia-se a
possibilidade de entender um ato de agressão policial
como violência institucional (Jesus, 2016, p. 143).

183
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

Assim, ao desconsiderar ao menos a possibilidade de agressão,


o juiz não somente assume uma postura tendenciosa de privilegiar o
depoimento policial, como também desconsidera a referida alegação
(como se a possibilidade de um acusado ter sido agredido no mo-
mento da abordagem nada tivesse a ver com o processo), justamente
quando o fato que interessa ao mundo jurídico tem início e está re-
lacionado com toda a produção de prova posterior. De certo modo,
“[…] os juízes apresentam certa resistência em fiscalizar o trabalho
da polícia, talvez porque precisem legitimar o trabalho policial para
que seu próprio seja realizado” (Jesus, 2016, p. 143).
Evidentemente, esse tema enseja debates profundos acerca
das violências policial e institucional, que, ainda que não façam
parte do escopo desta pesquisa, deve servir de sustentáculo para,
no mínimo, questionamentos sobre as dinâmicas desenvolvidas
no processo penal em sua instância probatória e, em algum grau,
sobre o próprio sistema penal. Portanto, considerando as análises
empreendidas neste texto, pode-se perceber, por exemplo, a exis-
tência de uma postura alheia à violência no sistema penal quando,
ao tomar conhecimento de uma alegação de violência e tortura,
decide ignorá-la. No entanto, esse comportamento pode contribuir
para a violência institucional, além de ensejar processos penais
fundamentados na fragilidade de uma escolha entre qual narrativa
merece ser contemplada e qual merece ser condenada. Nessa lógica,
a dicotomia “bom versus mau”, no sistema penal, não só se perpetua,
como ainda encontra legitimidade e campo fértil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para desenvolver o estudo proposto, que buscou anali-


sar a principal fundamentação das decisões de condenação por
tráfico de drogas na Comarca de Camaçari/BA, no período

184
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

correspondente aos anos de 2021 e 2022, adotou-se a abordagem


empírica, com análise documental de oito sentenças, seguin-
do critérios estabelecidos por um formulário e organizados na
plataforma Microsoft Forms, à qual todas as decisões foram sub-
metidas. De modo geral, objetivou-se entender as razões do con-
vencimento do juiz nos processos criminais de tráfico de drogas,
atentando às provas produzidas em juízo, às versões admitidas (ou
não) pela defesa e acusação, bem como à influência das narrativas
dos policiais — da abordagem ao depoimento como testemunhas
de acusação, em juízo — para a formação da convicção do juiz e,
consequentemente, para as condenações.
Construiu-se uma pesquisa bibliográfica, fundamentada nos
dispositivos legislativos. Respeitadas as limitações de uma pesqui-
sa desta proporção, discutiu-se a temática da política de drogas no
Brasil, inserida na Lei de Drogas, ancorada em uma perspectiva
criminológica e em sua relação com a questão probatória nos pro-
cessos criminais de tráfico de drogas. Assim, visando apresentar e
analisar os dados coletados nas pesquisas bibliográfica e empírica, na
segunda seção desta pesquisa expôs-se, tendo como base uma pers-
pectiva criminológica, a questão enunciada pela Lei no 11.343/2006
quanto aos significados e aplicações da expressão usuário de drogas,
discutindo-se a Lei de Drogas como lei penal em branco no or-
denamento jurídico, a lacuna legislativa e o problema jurídico e
processual da distinção entre usuário e traficante de drogas, como
também a problemática da construção social da criminalidade e de
sua relação com o crime de tráfico no Brasil, tomando como base o
conceito de eficácia invertida (Andrade, 1999). Na seção seguinte, dis-
cutiu-se, brevemente, a organização do sistema acusatório brasileiro,
a questão da produção de provas no ordenamento jurídico, os
tipos de provas comumente utilizados nos processos criminais de
tráfico de drogas, além da questão da presunção de veracidade dos
depoimentos judiciais e do lugar da produção de provas da defesa

185
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

no processo criminal de tráfico de drogas. Na quarta e última seção,


com base na apresentação dos dados colhidos, desenvolveu-se a aná-
lise e interpretação dos resultados informados.
Da análise dos dados, notou-se que o quantitativo das testemu-
nhas de acusação nos processos de tráfico de drogas sempre foi muito
superior ao das testemunhas de defesa (100% dos processos tiveram
testemunhas de acusação ouvidas em juízo, 63% dos processos não
tiveram nenhuma testemunha de defesa e 38% tiveram uma), cuja
totalidade das testemunhas arroladas pelo polo ativo constitui-se de
policiais que participaram da abordagem. Nesse sentido, através dos
recortes dos trechos importantes das decisões, constatou-se que a
prova testemunhal é basilar para a fundamentação das sentenças —
sendo todas, inclusive, condenatórias, com 75% dispondo penas que
vão de quatro a oito anos; para os outros 25%, com penas variando
entre zero e quatro anos, prevaleceu o regime semiaberto.
Além das provas testemunhais, observou-se que alguns ele-
mentos do Inquérito Policial são utilizados para a fundamentação
da decisão, como, por exemplo, o auto de prisão em flagrante e o
laudo pericial de constatação, que, em juízo, é refeito (através da
droga apreendida na delegacia) e considerado o laudo definitivo.
Esses são os critérios definidos pelo julgador para atestar a autoria e a
materialidade dos crimes e para fundamentar as condenações. Desse
modo, se é possível admitir que as provas produzidas em juízo pos-
suem o condão de atestar (para o julgador) a autoria desses crimes,
sendo estas provas, basicamente, testemunhais (com a maioria das
testemunhas auxiliando a acusação, os policiais), pode-se afirmar,
também, que a acusação atua como parte importante na construção
da “verdade processual”.
Pelo exposto, entende-se que a figura do policial é peça im-
portante para o desenvolvimento do processo de tráfico, pois par-
ticipa da abordagem (pré-inquisitorial), do próprio inquérito com
a autoridade policial e também depõe em juízo. Além de participar

186
CONSTRUÇÃO PROBATÓRIA E DEPOIMENTOS POLICIAIS: UM ESTUDO
SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

de todas as fases, a figura policial é responsável pela narrativa que se


mostra suficiente ao convencimento do juiz, ou seja, que “dá conta”
de uma fundamentação para a condenação. Traçando-se um parale-
lo, entre o conceito de standard probatório atribuído pela doutrina
e as provas efetivamente utilizadas no “conjunto probatório” dos
processos analisados nesta pesquisa, pode-se afirmar que o “lastro”
não é tão vasto assim (com muitas provas emprestadas do inquérito
policial), e a afirmação de que são “suficientes” e que “dão conta” de
uma condenação é, no mínimo, questionável.
Ademais, de uma maneira que não foi possível explicar por
meio de embasamento jurídico, constatou-se que o estudo dessas
decisões evidencia uma predileção pela versão dos policiais em
detrimento da versão do acusado, de modo que o convencimento
do juiz mostrou-se em consonância, muitas vezes, com a narrativa
apresentada pela acusação. Nesse viés, vale destacar as repetições de
frases do discurso policial na fundamentação do julgador e a des-
confiança nas palavras do réu, que partem do pressuposto de que
este pretendia “esgueirar-se da persecução penal”.
Com base nos dados apresentados nesta pesquisa empírica,
tanto na quantificação como nos trechos observados, percebeu-se que
o depoimento policial figura como peça-chave para a fundamentação
das sentenças, sendo a versão policial, por vezes, eleita como a narra-
tiva considerada suficiente ao convencimento do julgador para a con-
denação. Nessa lógica, a defesa, portanto, sai em desvantagem nesse
jogo, em razão da falta de respaldo jurídico. Na verdade, parece haver,
de fato, uma “crença” na atividade policial e em sua narrativa em nome
de um descrédito no réu (subjugando o princípio da presunção de ino-
cência), que já adentra o processo como um algoz para o sistema.
O julgador participa deste entrave como autoridade que “fala”
através do sistema penal (punitivo). É ele, em último grau, quem
detém a “crença” na atividade policial e que, consequentemente,
toma as narrativas da acusação para fundamentar suas decisões.

187
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

A imparcialidade é questionável, e a figura do juiz criminal, nas sen-


tenças aqui analisadas, revela-se participativa, assumindo uma pos-
tura inquisitorial, olvidando o princípio da presunção de inocência e,
por vezes, tomando um lugar que é próprio da acusação, ignorando
a imparcialidade que deveria ser inerente à conduta do magistrado.
Essas observações evidenciam que o sistema penal precisa se
ocupar em garantir que os meios escolhidos através dos postulados
constitucionais sejam assegurados dentro do processo penal. Isso
não implica tratar a questão como se existissem lados dicotômicos
de “bom versus mau”, ou assumir partidos e posturas de qualquer um
dos lados. Pelo contrário, o estabelecimento de uma parcialidade é
fundamental ao processo penal, condição que assegura a não relativi-
zação das garantias e dos direitos constitucionais para todas as partes
envolvidas. Evidentemente, a discussão da temática em tela não se
esgota neste estudo, haja vista toda e qualquer forma de produção
de conhecimento e de debates — neste e em outros ramos da ciência
— ser imprescindível e ensejar a produção de novos conhecimentos.

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189
Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro |
Ney Menezes de Oliveira Filho

medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção


social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para
repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas;
define crimes e dá outras providências. Brasília: Presidência da
República, 2022. Disponível em: https://‌www.‌planalto.‌gov.‌br/‌ccivil_‌
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SOBRE SENTENÇAS DE TRÁFICO DE DROGAS EM CAMAÇARI/BA

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192
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO
DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS
NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS1

Artur Ribeiro Alves

Em se tratando de processos envolvendo acusações por tráfico de


drogas, o testemunho policial assume papel de destaque para a eluci-
dação dos fatos. Na maioria dos casos, os agentes de segurança são as
únicas testemunhas do processo, considerando a alegada dificuldade
de obtenção de prova testemunhal diversa do depoimento policial.
Ademais, a ausência de critérios objetivos para a diferenciação
entre “usuários” e “traficantes” na Lei 11.343/2006 ampliou a parti-
cipação do agente de polícia na persecução criminal. Os parâmetros
estabelecidos pelo art. 28, §2o da referida lei, que influenciam no
convencimento judicial sobre a tipificação da conduta do agente, in-
cidem nas provas produzidas pelos policiais condutores do flagrante.
Desse modo, o material probatório produzido pelos policiais,
constituído pelo relato do flagrante e pelas substâncias apreendidas,
muitas vezes, figura como elemento decisivo sobre a autoria do delito
nos éditos condenatórios. Dificilmente são produzidas novas provas
em momento posterior ao flagrante.

1
Uma versão inicial deste estudo foi apresentada à Universidade Federal da Bahia como tra-
balho de conclusão do curso de graduação em Direito.

193
Artur Ribeiro Alves

A jurisprudência dos Tribunais Superiores admite a utilização


do testemunho policial nos processos de tráfico de drogas, diver-
gindo somente quanto às condições de validade deste testemunho.
A doutrina, por sua vez, sinaliza que o depoimento policial deve ser
recebido com certa reserva, tendo em vista a tendência do agente
de segurança em querer demonstrar que a ação intentada por ele foi
legítima (Tourinho Filho, 2010).
Nas acusações por tráfico de drogas, o depoimento policial
não é a única porta de entrada da versão desses agentes no processo.
Isso porque, as narrativas policiais, juridicamente formatadas, são
inseridas no inquérito e, posteriormente, na denúncia, como descri-
ção dos fatos. Nesse contexto, é o policial do flagrante quem decide o
que será levado ao processo judicial.
Portanto, há uma linha tênue entre a descrição do fato e a
versão policial, uma vez que ambas são produzidas pelo agente con-
dutor do flagrante diretamente envolvido na ação. Nesse cenário,
a versão dos fatos sustentada pelos policiais em audiência consiste
em uma reprodução das informações contidas na peça acusatória.
Assim, os depoimentos prestados tendem a confirmar as alegações
da denúncia e, como são vistos como “plenamente convincentes e
idôneos” (Brasil, 2017), são suficientes para a condenação judicial.
Dada essa realidade, o presente estudo tem por objetivo
analisar o tratamento dado pelos magistrados do Poder Judiciário
às narrativas policiais no julgamento de casos envolvendo fla-
grante por tráfico de drogas, de maneira a identificar quais são
as balizas utilizadas para a (in)validação dessas narrativas, bem
como os fatores que são (des)considerados pelo magistrado na
tomada de decisão.
Para tanto, o presente artigo dedica-se ao exame da interpretação
judicial sobre a narrativa policial nos casos de tráfico de drogas, tendo
como objeto de estudo os acórdãos proferidos na esfera de recurso de
apelação criminal pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.

194
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

O resultado desta pesquisa evidencia que a tomada de decisão,


nos casos em que há presunção absoluta do testemunho policial, é
fundamentada e legitimada com base na narrativa policial. A palavra
do agente de segurança se sobrepõe às demais provas, sendo repetida
e incorporada à lógica argumentativa do magistrado sem ressalvas.

A POLÍTICA DE DROGAS E O SISTEMA DE JUSTIÇA


CRIMINAL

A proibição das drogas serve de instrumento para o con-


trole de determinados grupos. O argumento de combate ao uso
indevido de substâncias entorpecentes legitima e justifica as ações
repressivas de todo tipo de governo contra grupos marginalizados
(Flauzina, 2006).
Zaffaroni, em uma palestra proferida no 1o Seminário da Law
Enforcement Against Prohibition (LEAP) Brasil, afirmou que “[…]
droga é uma palavra criada pela proibição. Na realidade, o que existe
são tóxicos. Tóxicos: alguns deles são proibidos e justamente esses
que são proibidos se chamam drogas.” (Revista da EMERJ, 2013,
p. 115). Partindo dessa premissa, é possível inferir que a droga en-
quanto substância proibida é uma construção política, assim como,
conforme destaca Shecaira (2014, p. 235), “[...] a proibição das drogas
é um sistema global de poder estatal” engendrado em “[…] normas
internacionais muito estritas […]”.
Ainda sobre a noção de droga, o rótulo de “drogado” trata-
-se, como destaca Velho (2004), de uma categoria de acusação social.
Segundo o autor:

[…] drogado é uma acusação moral e médica que


assume explicitamente uma dimensão política, sendo,
portanto, também uma acusação totalizadora. […]

195
Artur Ribeiro Alves

O fato de os acusados serem moralmente nocivos segun-


do o discurso oficial, pois têm hábitos e costumes des-
viantes, acaba por transformá-los em ameaça ao status
quo, logo em problema político (Velho, 2004, p. 61).

Na historiografia da construção política da droga, a origem da


criminalização não pode ser encontrada, pois, conforme pontua Salo
de Carvalho (2016, p. 13), esse momento inexiste,2 de modo que a
construção do proibicionismo ocorreu gradativamente. Nas palavras
de Valois (2017, p. 97), “[...] foram necessários muitos distúrbios,
mentiras científicas, interesses políticos e, principalmente, a cegueira
oriunda do interesse pessoal de alguns indivíduos” para que o dis-
curso hegemônico sobre o tratamento político-criminal das drogas
fosse punitivista.

A LEGITIMAÇÃO DAS POLÍTICAS DE DROGAS: ENTRE O


PROIBICIONISMO E A REDUÇÃO DE DANOS

No tocante à política criminal das drogas, nas palavras de


Boiteux (2006, p.46):

[…] a proibição repousa sobre a premissa da supressão


da oferta por meio da interdição geral e absoluta de todo
o uso, comércio e produção, que passaram a ser previs-
tos como crime, e sancionados com pena de prisão.

As políticas transnacionais de combate às drogas proibicionis-


tas se dão especialmente a partir de três documentos básicos. O pri-
meiro, a Convenção Única sobre Drogas Narcóticas da Organização
das Nações Unidas (1961), além de criar mecanismos transnacionais
2
Salo de Carvalho (2016, P. 13) argumenta que “[...] se o processo criminalizador é invaria-
velmente moralizador e normalizador, sua origem é fluida, volátil, impossível de ser adstrita
e relegada a objeto de estudo controlável”.

196
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

de controle sobre a produção, distribuição e comércio de drogas,


marca o início do processo de militarização da segurança pública
sobre a sociedade civil (Boiteux, 2006).
No segundo documento, a Convenção sobre Substâncias
Psicotrópicas (1971), destaca-se a inclusão das drogas psicotrópicas
no rol das substâncias proibidas e sujeitas ao controle internacional.
“O modelo político-criminal de controle passou da órbita do discurso
médico-jurídico ao discurso jurídico-político” (Carvalho, 1996, p. 196).
Por fim, a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes
e Substâncias Psicotrópicas (1988), ainda em vigor, consolida a po-
lítica repressiva, com o recrudescimento do combate ao poder mili-
tar, econômico e financeiro do tráfico internacional. Tem-se a “[...]
ampliação das hipóteses de extradição, cooperação internacional e
do confisco de ativos financeiros dos traficantes, unificando e refor-
çando os instrumentos legais já existentes” (Boiteux, 2006, p. 41).
Tais convenções impulsionaram o ideário proibicionista e
influenciaram diversos países a adotarem medidas estritamente re-
pressivas e de proibição das drogas.

Notadamente, o assunto ‘droga’ transcende os limites


da saúde pública e da moral, marcando terreno na
esfera da política internacional e passa a se constituir
tópicos relevante na política externa das grandes po-
tências (Boiteux, 2006, p. 47).

Como destaca Boiteux (2006), a influência norte-americana


foi decisiva na elaboração de uma política proibicionista internacio-
nal de drogas. É a partir dos anos 1930, após a liberação do consumo
de álcool em 1933, e com a subsequente proibição da maconha, que
o controle penal sobre drogas dos EUA inicia uma grande campa-
nha proibicionista. Essa campanha, fortalecida ao longo da segunda
metade do século XX, influenciou fortemente o endurecimento das
legislações internacionais de controle de drogas.

197
Artur Ribeiro Alves

A política criminal de repressão às drogas na América Latina,


após a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 da ONU,
se constituiu a partir do discurso médico-jurídico. Vários governos
implementaram novas legislações com o objetivo de adequar as
normas internas ao tratado internacional de repressão, além de im-
portar o modelo de combate às drogas norte-americano.
O Brasil, assim como outros países latino-americanos, como
Venezuela e Colômbia, adotou a política proibicionista defendida pela
ONU. Influenciado pela Ideologia da Defesa Social (IDS), o país editou,
em 10 de fevereiro de 1967, o Decreto-Lei 159, que iguala aos entorpe-
centes as substâncias capazes de determinar dependência física e/ou psí-
quica. Posteriormente, ao editar o Decreto-Lei 385/68, que modificou o
art. 281 do Código Penal para estender a punição ao consumidor, o país
rompe com o discurso da diferenciação, “[...] criminalizando usuário
com pena idêntica àquela imposta ao traficante” (Carvalho, 2016, p. 62).
A partir da década de 1970, e em especial após a entrada em
vigor da Lei 5.726/71, o Brasil retoma o discurso médico-jurídico,
“[…] com a identificação do usuário como dependente (estereóti-
po da dependência) e do traficante como delinquente (estereótipo
criminoso)” (Carvalho, 2016, p. 64). Entretanto, a Lei empregava o
mesmo tratamento punitivo para o traficante e o usuário.
Nos anos seguintes, o modelo repressivo foi sendo alterado
mediante a institucionalização do discurso jurídico político belicista.
Entre as décadas de 1980 e 2000, o controle de entorpecentes, em
nível legislativo, produziu severas legislações, dentre as quais desta-
ca-se a Lei de Crimes Hediondos (Lei no 8.072/90), a qual equiparou
o tráfico ilícito de entorpecentes aos crimes de natureza grave.
Por tudo isso, o controle de entorpecentes no Brasil durante a
segunda metade do século XX é marcada por uma política de drogas
extremamente repressiva, notadamente em relação ao tráfico, respon-
sável pelo aumento dos níveis de encarceramento e da criminaliza-
ção de determinados segmentos sociais. Essa repressão ganha novos

198
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

contextos a partir da inserção da atuação militar no controle de entor-


pecentes e atinge o ápice com a Nova Lei de Drogas (Lei no 11.343/06).

“ISSO É TRÁFICO?”: A ATUAL LEI DE DROGAS E A


TIPIFICAÇÃO CRIMINAL

Como destacado no tópico anterior, o estatuto político-criminal


da Lei no 6.368/76 legou ao Brasil uma política de repressão irrestrita
assentada no modelo estadunidense de “guerra às drogas”. Entretanto,
tal política não logrou êxito em acabar com o uso ilícito dos entorpe-
centes. Ao contrário, a despeito do aumento do encarceramento de pes-
soas por envolvimento com drogas, há um aumento da criminalidade.
Assim, a Nova Lei de Drogas (Lei no 11.343/06) é gestada em
um contexto de disfuncionalidade da Lei no 6.368/76, endurecimento
da repressão às organizações criminosas responsáveis pelo comércio
ilegal de entorpecentes e deslocamento do discurso de “guerra às
drogas” para o de “redução de danos”. No momento histórico da for-
mulação da Lei 11.343/06, “[…] o usuário de drogas torna-se objeto de
discursos e práticas estatais do saber médico; já os traficantes tornam-
-se alvo do (sic) saber criminal sendo endereçados os discursos que o
enquadram como o inimigo social” (Campos, 2015, p. 38).
Dessa maneira, o estatuto repressivo inaugura dois sistemas de
resposta punitiva, com diferentes tipos de punições para a venda e o
uso de drogas. Com relação ao usuário, o art. 28 da Lei no 11.343/06
despenaliza o delito de posse de drogas e do cultivo de plantas para
uso pessoal, sancionando tais condutas com penas alternativas, quais
sejam: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços
à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa
ou curso educativo, não sendo admitida a prisão do usuário em fla-
grante, ainda em se tratando de reincidência. Em todo caso, o rito a
ser adotado deve ser o sumaríssimo.

199
Artur Ribeiro Alves

Atualmente, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF)


o Recurso Extraordinário de no 635.659/SP, em que se discute a
constitucionalidade do art. 28 da Lei no 11.343/06. O recurso foi
interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo após o
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo condenar uma pessoa
presa com três gramas de maconha. A defensoria alega que o art.
28 da Lei 11.343/2006 viola a Constituição Federal pois contraria
o direito à intimidade e à vida privada do indivíduo. O julgamento
teve início em 2015, tendo sido proferido, até este momento, os votos
dos ministros Gilmar Mendes (relator), Edson Fachin e Luís Roberto
Barroso — todos no sentido de descriminalizar a conduta prevista
no art. 28 da Lei 11.343/06. Atualmente, o julgamento do recurso
encontra-se fora do calendário de julgamentos da Corte Suprema.
De outro modo, o art. 33 da Lei no 11.343/06 recrudesce a pu-
nição ao traficante de drogas, com a imposição de penas privativas de
liberdade fixadas entre cinco e 15 anos (com a possibilidade de au-
mento nos casos em que a atividade criminosa incluir a participação
em organizações criminosas e envolver tráfico interestadual e transna-
cional) e pena pecuniária de 500 a 1.500 dias-multa, restringindo as
hipóteses de incidência dos substitutos penais, além de impor regimes
de cumprimento de pena mais severos por ser equiparado à hediondo.
Além disso, a lei de 2006 estabeleceu categorias do delito de
tráfico de drogas (“traficantes profissional” e “traficantes ocasionais”)
e prevê a possibilidade de redução da pena de um sexto a dois terços3
no caso de acusado primário, com bons antecedentes, que não se
dedique a atividade delitiva e nem integre organização criminosa.
A definição de tráfico prevista na Nova Lei de Drogas é am-
parada por tipos penais abertos e genéricos que maximizam a in-
criminação. O caput do art. 33 da Lei 11.343/06 elenca 18 condutas
delitivas ligadas ao tráfico de drogas: importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer,
3
Parágrafo 4o do artigo 33 da Lei no 11.343/2006.

200
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, mi-


nistrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, que podem ser come-
tidas a título oneroso ou gratuito, ou seja, independe da existência
(ou intuito) de lucro.
Os crimes relativos ao tráfico de drogas são de tipo misto
alternativo, pelo que a prática de qualquer uma das condutas in-
tegradoras do tipo consuma o crime, e de perigo abstrato, sendo
assim, independem da violação ou perigo concreto ao bem jurídico
tutelado (a saúde pública) para a sua configuração (Nucci, 2010),
perfazendo-se pela mera conduta, o que dar margem a incriminação
de atos meramente preparatórios.
A Lei 11.343 de 2006, em termos interpretativos, foi cons-
truída de modo a operar como mecanismo de coerção, através do
recrudescimento penal para o tráfico de drogas, e como mecanismo
preventivo, mediante o desencarceramento do uso de drogas.

Com isto, a intenção dos legisladores era deslocar o


usuário do sistema de justiça criminal para o sistema de
saúde e assistência social e, de modo contrário, punir
mais duramente o traficante (Campos, 2015, p. 52).

Portanto, embora a política de “redução de danos” tenha


assumido destaque no cenário internacional, a base ideológica da
Lei no. 11.343/06 induz e corrobora com a manutenção do siste-
ma proibicionista. Como acentua Salo de Carvalho (2016, p. 118),
mantém-se o discurso da diferenciação, “[...] em detrimento de
projetos políticos alternativos (descriminalizadores) moldados a
partir das políticas públicas de redução de danos”.
Em face da correlação entre as descrições dos crimes de tráfico
(art. 33) e de porte para consumo (art. 28) no que tange às condutas
“adquirir”, “guardar”, “ter em depósito”, “transportar” e “trazer consi-
go”, é possível enquadrar o agente em ambos os delitos.

201
Artur Ribeiro Alves

O diferencial entre as condutas incriminadas, e que


será o fator que deflagrará radical mudança em sua
forma de processualização e punição, é exclusiva-
mente o direcionamento/finalidade do agir […]
(Carvalho, 2016, p. 305).

De modo geral, a Lei de Entorpecentes, em termos de sanção e


intervenção penal, distingue claramente a resposta penal para o tráfico
e para o porte. No entanto, a lei não dispõe de critérios objetivos que
permitam diferenciar, com o mínimo de precisão possível, o “usuário”
do “traficante”, de modo que o juízo de tipicidade é baseado:

[…] nas circunstâncias sociais do crime, relatadas


primeiramente pelo policial responsável pela prisão
e, depois, ratificadas (ou não) pelos operadores de
direito (defensores e advogados, promotores e juízes)
(Carlos, 2015, p. 7).

O ordenamento jurídico brasileiro adota o sistema da quan-


tificação judicial, segundo o qual recai “[…] sobre a autoridade ju-
diciária a competência para deliberar se a droga encontrada com o
agente era para consumo pessoal ou para o tráfico” (Brasileiro, 2016,
p. 709). Por sua vez, o sistema da quantificação legal, adotado por
outros ordenamentos jurídicos, diferencia as condutas fixando um
quantum diário para o consumo pessoal, o qual, se ultrapassado,
caracteriza o delito de tráfico de drogas.
Ao contrário do Brasil, outros países, a exemplo de Portugal
e Espanha, adotam o “quantidades-limites (QLs)” como critério
para diferenciação dos crimes de tráfico e de porte para consumo.
Tal método caracteriza o delito conforme a quantidade de drogas
apreendidas. Assim, além de servir de baliza para o juízo de tipicida-
de, o QLs pode ser utilizado “[…] para definir se a infração deve ser
retirada do sistema de justiça criminal; e para determinar as penas
aplicáveis nos casos de tráfico de drogas” (Carlos, 2015, p. 7).

202
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Após analisar o impacto da adoção do QLs sobre o número


de prisões por tráfico de drogas no Brasil, Juliana Carlos (2015,
p. 9) verificou que “[...] 54% das pessoas presas por posse de ma-
conha e 19% dos presos por posse de cocaína nos dados analisados
teriam sido considerados usuários (e não traficantes de drogas) e
não teriam sido presos”.
O modelo da lei brasileira é discricionário, ou seja, o juízo de
tipicidade é feito a partir das circunstâncias fáticas do caso concreto.
De acordo com o art. 28, §2o da Lei 11.343/06, para diferenciar os
crimes de tráfico e de porte para consumo

[...] o juiz atenderá à natureza e à quantidade da


substância apreendida, ao local e às condições em
que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do
agente” (Brasil, 2006)

Sendo assim, embora diversas as sanções e as intervenções


penais, processuais penais e penitenciárias dos crimes de tráfico e de
porte para consumo, a ambiguidade das estruturas dos tipos incri-
minadores e a ausência de critérios objetivos que possam caracteri-
zar tais condutas cria, conforme destaca Carvalho (2016), uma zona
cinzenta entre o mínimo e o máximo da resposta penal, o que pode
acarretar punições injustas e desproporcionais.

A LEI NO. 11.343/2006: DISCRICIONARIEDADE ARBITRÁRIA


E CHANCELA DA ATUAÇÃO POLICIAL

As alterações legislativas ocasionadas pela Lei 11.343/2006


não promoveram uma redução da população privada de liberdade,
muito pelo contrário. Segundo levantamento feito por Jesus (2016) a
partir de dados coletados pelo Departamento Penitenciário Nacional

203
Artur Ribeiro Alves

(DEPEN), de 2006 a 2014 houve um aumento de 339% do encarcera-


mento por tráfico de drogas.
Majoritariamente, os casos de tráfico de drogas processados
pelo sistema de justiça criminal estão relacionados com o varejo, no
qual atuam os pequenos vendedores. De acordo com Jesus (2016,
p. 37), “[...] ao sistema de justiça criminal chega aquilo que é selecio-
nado pelos policiais […]”. A autora ainda acrescenta que

[...] somente vai ser visível à justiça criminal aquilo


que a polícia leva ao seu conhecimento, sendo des-
conhecido o tráfico de grande porte, que segundo a
literatura é organizado em bases empresariais.

A ausência de critérios objetivos para realizar o juízo de tipi-


cidade promoveu um alargamento do poder da polícia em definir
a conduta delitiva (Jesus, 2016). Como destaca Brasileiro (2016),
no início da persecução penal incumbe à autoridade policial e ao pró-
prio Ministério Público estabelecer o juízo prévio de incriminação.
Em razão da discricionariedade concedida pela Lei
11.343/2006, as atividades repressivas e persecutórias, ainda que
realizadas nos moldes legais, são marcadas pelas “[...] concepções
policiais sobre quem sejam os traficantes e os usuários” (Grillo;
Policarpo; Veríssimo, 2011, p. 142).
A divisão binária entre usuário e traficante da Lei 11.343/2006
ampliou o poder policial, de modo que se estabeleceu práticas de
barganha e negociação sobre o juízo prévio de incriminação (Grillo;
Policarpo; Veríssimo, 2011, p. 141). A construção dos tipos usuários e
traficantes no discurso policial presentes nos registros das ocorrências
são, por vezes, atravessados por ilegalismos, sendo a prática extorsiva e
a violência institucional preponderantes (Teixeira, 2012, p. 226).
Para Grillo, Policarpo e Veríssimo (2011, p. 142), a adequação
do juízo de subsunção feita pela polícia se estabelece “[...] a partir

204
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

de negociações discursivas sobre a versão do fato”. “É a narrativa


do ‘condutor’ que fornece os elementos para encaixar o fato em um
artigo do código penal” (Grillo; Policarpo; Veríssimo, 2011, p. 142).
Assim, a polícia é quem define os delitos que serão levados ao conhe-
cimento do judiciário.
Não obstante o magistrado não fique vinculado ao juízo de
subsunção feito pela polícia, na prática, as declarações da polícia,
inseridas no relatório do inquérito, são convalidadas pelo judiciário,
uma vez que este faz apenas uma fraca reavaliação (Valois, 2017).
Como destaca Jesus (2016, p. 38), em diálogo com Teixeira
(2012), “[...] o que vai para o sistema de justiça criminal é justamente
aquilo que foi selecionado pelas forças policiais, a partir de determi-
nadas ‘opções na gestão diferencial da lei’ pela polícia”, sem que se
tenha conhecimento da verdadeira atuação policial.
Como assinalado por Campos (2015) em estudo sobre as im-
plicações da Lei 11.343/2006, o perfil social do acusado apresenta
uma eficácia discursiva no juízo de tipicidade dos registros das ocor-
rências. Neste sentido, o autor pondera que, no sistema de justiça,
a posição social do incriminado permite que o discurso policial seja
aceito como verdadeiro e preponderante.
Após analisar 667 autos de prisão em flagrante em casos de
tráfico em São Paulo (SP), Santos (SP) e Campinas (SP), o Núcleo
de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo constatou
que 91% dos réus presos em flagrante por tráfico de drogas foram
condenados quase que, exclusivamente, com base no depoimento
dos policiais que participaram da ocorrência (Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo, 2011, p. 78).
O levantamento realizado pela Defensoria Pública do Rio
de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
(SENAD) explicita a preponderância do discurso policial nas
sentenças judiciais por tráfico de drogas. Após analisar 2.591

205
Artur Ribeiro Alves

sentenças proferidas pelos juízes da Capital e Região Metropolitana


do Rio de Janeiro no período entre agosto de 2014 e janeiro de
2016, verificou-se que em 94,95% dos casos houve o depoimento
de algum agente de segurança, ainda que em conjunto com outras
testemunhas, e em 62,33% dos casos, o agente de segurança foi o
único a testemunhar no processo.
A pesquisa expõe que em 53,79% (1.979) dos casos o depoi-
mento do agente de segurança foi a principal prova valorada pelo
juiz para a formação do seu convencimento e, ao mesmo tempo,
evidenciou que em 71,14% (1.597) deste total as únicas testemunhas
ouvidas na instrução penal foram os próprios agentes de seguran-
ça, sendo que a sentença foi condenatória em 65,35%, parcialmente
condenatória em 57,53% e absolutória em 12,14% (Haber, Carolina
D. (Coord.), 2018).
Observa-se, portanto, que a ampliação do poder concedido
aos policiais pela Lei no. 11.343/2006 no que diz respeito à defini-
ção da conduta delitiva, bem como a chancela do Poder Judiciário
à atuação policial, notadamente do policial militar, responsável pelo
policiamento ostensivo e pelo registro da maioria dos flagrantes,
transfere ao agente de segurança a tutela do controle punitivo.

ABORDAGEM POLICIAL E SELETIVIDADE PENAL:


A CONSTRUÇÃO DO JUÍZO DE INCRIMINAÇÃO

De acordo com Jesus (2016), a legislação de drogas brasileira


reforça a seletividade penal ao inserir marcadores sociais da pessoa
acusada como elemento de definição da conduta delitiva. Tal se-
letividade integra um sistema de criminalização de determinados
corpos amparado por duas dimensões estruturantes, quais sejam:
a criminalização primária, própria dos poderes Legislativo e Executivo
que elegem as condutas puníveis; e a criminalização secundária,

206
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

realizada pelas agências formais de controle (polícia, ministério públi-


co e justiça) (Flauzina, 2006).
A agência policial — que está na ponta do organograma do
sistema penal — é a porta de entrada da criminalização. Tendo em
conta a seletividade da ação policial, a noção de suspeito é atraves-
sada por parâmetros sociais estigmatizantes, os quais, construídos
pelas práticas policiais e pela sociedade englobante, são decisivos
para a criminalização (Flauzina, 2006).
Silva (2009) pondera que há dois tipos de atividade policial, uma
voltada aos suspeitos e outra destinada aos indivíduos não-suspeitos.
A atividade policial destinada a este último grupo se assemelha às ações
dirigidas às vítimas, nas quais o policial é visto como um prestador de
serviço público. Por sua vez, a atividade direcionada aos indivíduos
suspeitos opera no campo da repressão. Segundo o autor, a construção
do indivíduo suspeito é feita por meio de marcadores sociais.

A tipologia do indivíduo suspeito descrita pelos


policiais militares é constituída por percepções de
gênero, étnicas/raciais, geracionais e sócio-culturais.
Descrever a lógica que orienta tal construção neces-
sita de uma reflexão histórica, econômica, política e
cultural. Dessa forma, as diversas técnicas de policia-
mento mediadoras das interações entre policiais e os
suspeitos são dirigidas segundo uma complexa repre-
sentação das estratificações sociais que os policiais
detêm (Silva, 2009, p. 97).

As agências formais de controle (polícia, ministério público,


justiça) operam na criminalização desses indivíduos. De modo que,
“[...] os vícios de operacionalização dos instrumentos de contro-
le penal são características desse artefato” (Flauzina, 2006, p. 28).
Vê-se, pois, que a validação da ação policial serve à manutenção de
instrumentos de controle e ao próprio sistema de criminalização de

207
Artur Ribeiro Alves

determinados indivíduos. Os procedimentos de incriminação inci-


dem sobre corpos vistos como potencialmente criminosos.
De acordo com dados do Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo, a população aprisionada por tráfico de
drogas é composta, majoritariamente, por homens (87%), jovens na
faixa etária de 18 a 29 anos (75,6%), negros (59%), com até o pri-
meiro grau de ensino completo (60%) (NEV/USP, 2011 apud Jesus,
2016, p. 20). Portanto, o perfil social do preso por tráfico de drogas é:
homem, jovem, negro e com baixa escolaridade.
Ao atrelar o juízo de incriminação a parâmetros com pouco
ou nenhum grau de objetividade, como é o caso das circunstâncias
sociais e pessoais do agente, a tipificação da conduta é, com regu-
laridade, feita sob a influência de códigos sociais estigmatizantes,
como destaca um dos informantes da pesquisa realizada por Grillo,
Policarpo e Veríssimo (2011, p. 142):

Se um cara é pego com drogas, mesmo que em pe-


quena quantidade, e estiver em um lugar onde todo
mundo sabe que tem uma boca, se ele morar naquela
comunidade, ele pega tráfico. Se o cara for lá de
Duque de Caxias, mesmo que esteja com uma quan-
tidade maior, vai pegar uso, pois a gente sabe que ele
não tava vendendo ali. Mas aí a gente pede a carteira
de trabalho. Se ele tiver emprego, tudo bem, mas se
não tiver emprego, tava comprando droga com que
dinheiro? Era pra revender, né? Aí ele pega tráfico.

Há uma construção orientada à diferenciação de padrões de


acesso à Justiça Criminal, sobretudo, no que tange à filtragem racial.
Os dados levantados pelo veículo de jornalismo “Agência Pública”
ilustram como o judiciário ao aplicar a legislação de drogas opera
de forma seletiva. Em análise de sentenças judiciais proferidas por
magistrados da cidade de São Paulo, verificou-se que, em relação

208
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

ao crime de tráfico de drogas, pessoas negras foram condenadas em


70,9% dos casos, ao passo que pessoas brancas foram condenadas
em 66,8% dos casos. A diferenciação também ocorre em relação aos
casos de desclassificação do acusado como traficante e reclassifica-
ção como usuário de drogas: 7,7% entre os brancos e 5,3% entre os
negros (Barcelos; Domenici, 2019).
As articulações entre aparato policial e o sistema de justiça
criminal estabelecem padrões de judicialização discricionários que
reforçam a filtragem racial. Trata-se de um modelo de controle social
em que o racismo institucional é o elemento central das políticas
públicas do Estado. Neste sentido, nas palavras de Flauzina (2006,
p. 116), “[...] o sistema penal na contemporaneidade também cria as
condições para que sua atuação possa incidir sobre os corpos negros”.
Assim, as agências formais de controle, integrantes do apa-
relho político estatal, convergem para a intensificação da “gestão
de corpos abjetos” (Rui, 2012) e para a disseminação de um regime
racial de “produção de verdade” (Foucault, 2004), que favorece a

[…] transposição de decisões tomadas no âmbito do


aparato policial para dentro do aparato judicial, ou seja,
permite a convivência, no mesmo espaço institucio-
nal, de um Estado Policial e de um Estado de Direito
(Duarte; Muraro;Lacerda; Garcia, 2014, p. 85).

RACISMO E POLÍTICA DE DROGAS

O uso de substâncias entorpecentes sempre esteve presen-


te em diferentes culturas. A difusão da ideia de que determinados
psicoativos causavam mal à sociedade e por isso deveriam ser proi-
bidos legitimou (e legitima) a perseguição de determinados grupos.
No Brasil, a relação entre o controle da população negra e a repressão
ao uso de substâncias entorpecentes antecede ao período republicano.

209
Artur Ribeiro Alves

O primeiro documento conhecido que restringe o uso


da maconha foi uma postura da Câmara Municipal
do Rio de Janeiro, de 1830, penalizando a venda e o
uso do ‘pito do pango’, sendo ‘o vendedor [multado]
em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele
usarem, em 3 dias de cadeia’ (Saad, 2019, p. 16).

A criminalização do uso do “pito do panga” (cannabis), comu-


mente utilizado pela população negra, ainda no período imperial,
evidencia o caráter racista da decisão, visto que, além de proibir o
uso de um elemento da cultura negra, impõe uma punição mais
severa aos escravizados.
Mais de cem anos depois, as primeiras ações de combate às
“drogas” intentadas pelo Estado brasileiro visavam a proibição do
consumo de maconha, também conhecida como “ópio do pobre” e
“fumo de Angola”. Em 1932, a referida substância é inserida no rol
de entorpecentes de venda proibida através do Decreto 20.930 (Rosa;
Guimarães, 2021).
As articulações entre os discursos jurídico, médico e midiático
legitimaram a repressão. Na imprensa, o uso de maconha era asso-
ciado à “vagabundagem”, enquanto os estudos médico-legais, por sua
vez, associavam a maconha à loucura. Nesse mesmo período, outras
substâncias psicoativas circulavam no país, como a cocaína e a mor-
fina. Contudo, o uso destas substâncias não era repreendido, pois seu
consumo era feito, majoritariamente, pela elite branca (Saad, 2019).
Imperava na elite política e intelectual da época o discurso
de “ordem e progresso”, segundo o qual práticas e costumes negros
representavam um empecilho à construção de uma nação civili-
zada (Saad, 2019). A criminalização da maconha serviu de pre-
texto para a perseguição da população afrodescendente, uma vez
que a planta estava inserida nas práticas culturais dessa população.
Destarte, não se buscava combater a substância em si, mas sim os
costumes da população negra (Saad, 2019).

210
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

A repressão ao consumo de maconha era direcionada para


locais de ajuntamento, trabalho e divertimento popular, geralmente
ocupados por negros e mestiços (Souza, 2012, p. 26). Assim, as primei-
ras medidas públicas de enfrentamento ao consumo de entorpecentes,
lastreadas por uma concepção racista, tinham por objetivo assegurar
a manutenção das antigas estruturas sociais mediante à perseguição,
encarceramento e exclusão da população pobre do país, composta,
em sua grande maioria, por negros e pardos (Macrae, 2016, p. 36).
A repressão ao consumo da maconha é intensificada ao longo
da primeira metade do século XX, com a criação de órgãos especializa-
dos e o ingresso do país no debate internacional de combate às drogas.
A associação da maconha apenas às “classes pobres e incul-
tas” ocorre até a metade da década de 1960, quando a substância
passa a ser vinculada, também, aos jovens das classes médias e aos
movimentos libertários de contestação, que surgiram na década de
60 (Souza, 2012). Contudo, a repressão continuou sendo dirigida às
populações mais vulneráveis.
No Brasil, historicamente, as leis sobre drogas estão assen-
tadas em ideologias racistas que orientam o controle repressivo.
De acordo com Rosa e Guimarães (2021, p. 29),

[…]as políticas sobre drogas no Brasil, desde suas


origens, interseccionam as dimensões de classe social,
gênero e étnico-raciais, com direção bem delineada
da elite masculina branca contra os homens pobres
e negros.

Assim, a atual Lei de Drogas reforça o controle social repressivo


e seletivo sobre a população negra. À vista disso, Boiteux aduz que:

[…] a cor da pele é um elemento essencial na de-


finição seletiva de quem vai ser preso, bem como
na diferenciação entre quem vai ser condenado

211
Artur Ribeiro Alves

como traficante e quem será tratado como usuário,


sendo certo que a grande maioria dos presos no sis-
tema penitenciário brasileiro é de homens, negros
ou pardos, com ensino fundamental incompleto
(Boiteux, 2016, p. 374).

Nessa perspectiva, a legislação de drogas opera em favor do


controle penal sobre o corpo negro, que corresponde à “clientela
do sistema penal” (Flauzina, 2006). Sendo assim, a atual Lei de
Drogas cumpre sua função, qual seja, o encarceramento da po-
pulação negra.
Para Vera Malaguti Batista (2003), a demonização do tráfi-
co de drogas, desde o pós-ditadura, além de fortalecer os sistemas
de controle social, aprofundou o caráter genocida desses sistemas.
A autora aduz que

[…] o mercado de drogas ilícitas havia propiciado


uma concentração de investimentos no sistema
penal (bem como a concentração de lucros daquela
atividade), mas, principalmente, propiciado argu-
mentos para uma política permanente de genocídio
e violação dos direitos humanos entre as classes vul-
neráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas
do Rio de Janeiro, sejam camponeses colombianos ou
imigrantes indesejáveis no hemisfério norte (Batista,
2003, p. 20–21).

Sérgio Adorno (1996), em estudo sobre a desigualdade entre


negros e brancos no sistema de justiça criminal brasileiro, alude que
a justiça penal é mais severa com relação a criminosos negros do que
com criminosos brancos. Tal assimetria também ocorre nas prisões
em flagrante, de tal maneira que esta incide mais em réus negros do
que em réus brancos, o que evidencia uma maior vigilância policial
sobre a população negra.

212
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Essa diferença de intervenção impacta diretamente na


composição carcerária. Segundo dados do anuário brasileiro de
segurança pública (2022), 67,5% das pessoas que estão privadas
de liberdade são de cor/raça negra. O relatório aponta para uma
tendência de crescimento do aprisionamento de pessoas negras.
Em 2011, a porcentagem de pessoas negras sob custódia do
Estado era de 60,5%. Em 2021, esse número subiu para 67,5%,
enquanto o número de brancos encarcerados decaiu, chegando ao
patamar de 29% em 2021.
Segundo Flauzina (2006), essa assimetria da atuação das
agências de criminalização secundária se justifica pelo fato de tais
agências formatarem a criminalidade em função da seleção de indi-
víduos para as fileiras da punição. Essa seleção é orientada por “[...]
processos de recrutamento racialmente consagrados dentro da pauta
neoliberal” (Flauzina, 2006, p. 89).
Conforme destaca Boiteux (2016), o aumento da repressão ao
tráfico pela Lei 11.343/2006 teve como consequência a superlotação
carcerária, sendo certo que a população negra foi a mais encarcera-
da, conforme os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública
mencionados anteriormente. Diante dessa realidade, é possível con-
cluir que a repressão ao comércio de drogas ilícitas serve de mecanis-
mo para a manutenção do controle penal sobre corpos negros.
O crescimento do encarceramento de pessoas negras não de-
corre de um aumento da criminalidade por parte dessa população,
como o sistema penal quer fazer crer, mas sim da criminalização
desse grupo por parte das agências de controle.
Portanto, a lógica de guerra às drogas, que perdura desde o
século passado, em verdade, é uma “guerra contra as pessoas” (Valois,
2017) escolhidas pelo aparato penal. Essa escolha não é aleatória,
pois é orientada pelo racismo que retroalimenta o “sistema penal de
práticas genocidas” (Flauzina, 2006).

213
Artur Ribeiro Alves

A PRODUÇÃO DE PROVAS NOS FLAGRANTES POR


TRÁFICO DE DROGAS

Em novembro de 2021, foi flagrado, em uma via movimenta-


da da cidade de São Paulo, um jovem negro algemado a uma moto
da Polícia Militar em movimento.

Após ser detido com 5 kg de maconha enquanto con-


duzia uma moto na avenida Professor Luiz Ignácio
Anhaia Mello, zona leste da capital paulista, Jhonny
Ítalo da Silva, 18, foi arrastado em via pública antes
de ser levado à delegacia para registro do flagrante
(Barreto Filho, 2022).

O ato de tortura teve grande repercussão nacional, com a cir-


culação do vídeo que constitui prova irrefutável do ocorrido. Meses
depois, em 24 de março de 2022, o juiz da 11a Vara Criminal da
Comarca de São Paulo/SP condenou o réu com base no testemunho
do policial militar condutor do flagrante e na confissão do acusado
(São Paulo, 2022). Contudo, a sentença não menciona a ilegalidade
praticada pelos agentes de segurança.
O caso narrado traz à tona o abismo que separa o discurso
jurídico-penal das práticas realizadas pelas agências de controle.
Na realidade, o sistema de justiça criminal chancela e valida as ações
da polícia, enquanto naturaliza as ilegalidades e os excessos.
No horizonte deste debate, está presente não só as interações
entre aparato policial e o sistema de justiça criminal, mas também as
dinâmicas e práticas por trás das narrativas policiais dos flagrantes
de tráfico de drogas lidas pelo sistema judicial.
Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault (2002) afirma
que a prática penal define formas de verdade que derivam de re-
lações de poder, controles políticos e controles sociais. Segundo o
autor, a verdade jurídica é estabelecida pela prova. Nessa perspectiva,

214
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

a construção da verdade de que determinado fato é crime ocorre


através da atividade probatória, pela qual “o caso passa por uma
transformação progressiva, daquilo que no início era uma ‘trama da
vida’ para um ‘fato jurídico’” (Jesus, 2016, p. 59).
O crime de tráfico de drogas ocorre na modalidade per-
manente nas formas expor à venda, ter em depósito, transportar,
trazer consigo e guardar. Em tal modalidade delitiva a consumação
pode protrair-se no tempo (Brasileiro, 2016). Assim, enquanto o
sujeito estiver guardando ou portando ilicitamente substâncias en-
torpecentes haverá o estado de flagrância, o que autoriza a prisão
em flagrante e afasta a necessidade de prévia autorização judicial
para ingresso no imóvel.
Nos termos do art. 302 do Código de Processo Penal (Brasil,
1941), estará em flagrante delito quem: (i) está cometendo a infração
penal; (ii) acaba de cometê-la; (iii) é perseguido, logo após, pela au-
toridade, pelo ofendido e por qualquer pessoa, em situação que faça
presumir ser autor da infração; (iv) é encontrado, logo depois, com
instrumentos, armas, objetos e papéis que façam presumir ser ele
autor da infração.
A visibilidade do delito é requisito básico da condição de
flagrância. Assim, a ação delitiva deve ser patente e inequívoca.
A situação de flagrância autoriza a prisão em flagrante. Como expli-
ca Aury Lopes Júnior (2019, p. 720):

[…] a prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar,


de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada
pela possibilidade de ser adotada por particulares ou
autoridade policial, e que somente está justificada
pela brevidade de sua duração e o imperioso dever
de análise judicial em até 24h, onde cumprirá ao juiz
analisar sua legalidade e decidir sobre a manutenção
da prisão (agora como preventiva) ou não.

215
Artur Ribeiro Alves

Segundo dados do NEV/USP, na cidade de São Paulo, 86% dos


flagrantes de tráfico de drogas foram realizados pela Polícia Militar e
apenas 9,58% pela Polícia Civil (NEV/USP, 2011, p. 34). Assim, o policial
militar, que atua na ponta do sistema penal, realizando o policiamento
ostensivo, é responsável pela grande maioria dos registros de flagrante.
Silva (2009) pontua que a interação entre o policial militar e
os indivíduos não suspeitos, os suspeitos e os criminosos é marcada
pela doutrina policial (conjunto de saberes presentes na formação
profissional das academias de polícia) e pela sociabilidade policial,
adquirida por meio da informalidade, da vivência do trabalho po-
licial e dos currículos ocultos4 presentes nos cursos oficiais. Nas
palavras do autor, “[...] tanto a doutrina policial quanto os saberes
construídos e adquiridos são instrumentos que auxiliam a constru-
ção da realidade objetiva policial” (Silva, 2009, p. 58).
Em se tratando de crime de tráfico de drogas, segundo dados
de pesquisas realizadas no país,5 a prisão em flagrante delito é, em sua
maioria, precedida da abordagem policial em via pública (Wanderley,
2017). Tais abordagens são guiadas pela “moralidade policial” e por
critérios prévios de suspeição (Medeiros, 2016). A atuação policial
volta-se àqueles que circulam pelos espaços públicos com o figurino
social dos delinquentes (Batista; Zaffaroni; Alagia; Slokar, 2003).
A construção policial do tipo ideal do indivíduo suspeito é
informada por representações e códigos que elaboram e definem a
verdade policial sobre o crime. Dessa forma, a repressão policial é
4
Trata-se do “[...] conhecimento empírico subjetivo em debate com a legislação brasileira, com
as técnicas policiais estudadas e com as normas de condutas internas” (Silva, 2009, p. 74).
5
Como exemplo, pode-se citar a pesquisa coordenada por Evandro Piza Duarte et al., 2014.
O autor se baseia em dados coletados através da aplicação de questionários a 125 processos
penais arquivados relativos ao delito de tráfico nas cidades de Brasília (DF), Curitiba (PR)
e Salvador (BA). Segundo os dados da pesquisa, em Brasília, 94% dos flagrantes da polí-
cia militar foram antecedidos pela abordagem policial em via pública, em Curitiba 76%, e
em Salvador 83%. Cabe notar também que, de acordo com a pesquisa, em Brasília, 91,1%
dos acusados eram negros, em Curitiba 30,6%, e em Salvador 100% (Duarte et al., 2014,
p. 108-110).

216
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

direcionada aos indivíduos estigmatizados como possíveis crimino-


sos. A atuação policial cria o “tipo ideal de indivíduo suspeito” e o
tipo ideal de indivíduo não-suspeito (Silva, 2009).
As práticas policiais que se estabelecem no dia a dia resultam
de uma rede de relações institucionais formais e informais que com-
põem padrões de suspeição (Duarte; Muraro; Lacerda; Garcia, 2014),
os quais, associados ao que Roberto Kant de Lima (1997) chamou de
“arbitragem policial”, ocasionam eventuais violações de direitos e ga-
rantias. Nestas situações, consuma-se um autoritarismo do agente de
segurança que se encarrega de punir diretamente o infrator.
O poder discricionário da polícia e o conjunto de símbolos da
prática policial viabilizam intervenções coercitivas arbitrárias:

As polícias põem em prática uma série de infrapena-


lidades justificadas por um imperativo de prevenção
geral e que se fundam em uma noção frouxa e vaga
de suspeição, presumida em relação a determinados
grupos e categorias sociais (Wanderley, 2017, p. 54).

Tais atos, não raro praticados escancaradamente no espaço pú-


blico, são tratados como excepcionais episódios de desvio funcional.
O controle da atividade policial, a despeito das ilegalidades e
violações de direitos, é deficitário. A grande maioria das ilegalidades
e excessos praticados pela polícia não chegam ao conhecimento do
judiciário. O auto de prisão em flagrante, documento que formaliza a
prisão, costuma apresentar “declarações objetivas e sucintas das tes-
temunhas, quase sempre exclusivamente policiais, sem que se saiba
verdadeiramente a forma de atuação policial” (Valois, 2017, p. 504).
Segundo Misse (2011, p. 19), “o inquérito policial é a peça
mais importante do processo de incriminação no Brasil. É ele
que interliga o conjunto do sistema, desde o indiciamento de
suspeitos até o julgamento”. A vagueza do auto de prisão em

217
Artur Ribeiro Alves

flagrante não obsta sua inserção no conjunto de elementos que


constrói o fato criminal e, outrossim, que sirva como ato inicial
do inquérito policial.

A NARRATIVA POLICIAL E A (IN)VALIDAÇÃO DA


NARRATIVA DA PESSOA ACUSADA

O procedimento de formalização da prisão em flagrante (re-


gulado pelo art. 304 e subsequentes do CPP) inicia-se com a apre-
sentação imediata do preso à autoridade policial, que deverá ouvir o
condutor, seguido das testemunhas que presenciaram os fatos e/ou a
prisão, e, por fim, interrogar o acusado (Lopes Júnior, 2019). Sendo
assim, incumbe à autoridade policial, após ouvir os relatos, deliberar
sobre o flagrante e, em caso de manutenção da prisão, lavrar o fla-
grante e remeter o auto de prisão ao juiz competente.
Em se tratando de flagrante por porte de drogas, são raros os
casos de testemunhas além do próprio policial que realizou a prisão.
Assim, no âmbito da prova testemunhal, o que chega para o processo
e para a avaliação do magistrado são somente os depoimentos de
policiais colhidos por policiais que, na fase processual, serão revistos
sob a égide do princípio do contraditório (Valois, 2017).
Três argumentos são comumente utilizados para justificar a
sobrevalorização do depoimento policial: a alegada dificuldade de
obtenção de prova testemunhal, decorrente da concepção moral da
sociedade sobre o crime de tráfico de drogas, ao qual ninguém quer
se ver envolvido, ainda que como testemunha (Valois, 2017); a ine-
xistência de um conjunto fático-probatório robusto e contundente
(Wanderley, 2017); e a presunção de fé pública da palavra policial,
pela qual “[...] se presume que as informações do sumário policial
são legítimas e verdadeiras” (Eilbaum, 2006, p.254).

218
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Destarte, a sobrevalorização do depoimento policial resulta na


recepção judicial das narrativas policiais como uma descrição siste-
mática dos fatos, e não como uma narrativa produzida pelo policial
responsável pela abordagem e prisão (Jesus, 2016).
Lopes Júnior (2019) aduz que não há óbice ao testemunho po-
licial. Contudo, o autor destaca que a valoração desses relatos deve
levar em consideração que os policiais estão naturalmente contami-
nados pela atuação que tiveram na repressão e apuração do fato.
De outra parte, a inexistência de investigação prévia e poste-
rior à identificação e abordagem de suspeitos pela prática de tráfico
de drogas é responsável pela construção de narrativas assentadas em
ilações, presunções e assertivas dos policiais quanto a dinâmica da
abordagem, em geral associadas a elementos de suspeição (apreen-
são de dinheiro em espécie, local em que ocorreu o flagrante, modo
de acondicionamento da droga, situação empregatícia/profissional
do acusado, entre outros) (Wanderley, 2017).
Nesse contexto de protagonismo do testemunho policial as-
sociado à inexistência de um conjunto probatório robusto e contun-
dente, as informações inscritas nos processos, na maior parte das
vezes, são, como aponta Valois (2017, p. 506), declarações sucintas,
“[...] não raramente sendo um depoimento cópia do outro, nunca
indicando, os próprios policiais condutores, as razões pelas quais
consideram o indiciado traficante”.
A palavra do policial condutor do flagrante é ratificada pelo
delegado de polícia e passa a fazer parte do inquérito policial como
descrição dos fatos. Nesse cenário, a versão policial sobre a dinâmica
delitiva é recepcionada pelo sistema de justiça criminal, que valida
tal narrativa.
Segundo Garcia (2015, p. 52), há um automatismo judicial na
apreciação da prova que se manifesta pela prevalência do testemunho
policial em detrimento das demais provas. Nas palavras do autor, “[...]

219
Artur Ribeiro Alves

esse automatismo judicial revela uma gestão da prova de caráter es-


sencialmente inquisitorial que se pontua seletivamente à população
negra.
Ressalta-se aqui o voto do Ministro-Relator Gilmar Mendes,
do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso
Extraordinário 635.659/SP, que demonstra como opera o automatis-
mo judicial na gestão da prova:

O padrão de abordagem é quase sempre o mesmo: ati-


tude suspeita, busca pessoal, pequena quantidade de
droga e alguma quantia em dinheiro. Daí pra frente,
o sistema repressivo passa a funcionar de acordo com
o que o policial relatar no auto de flagrante, já que a
sua palavra será, na maioria das vezes, a única prova
contra o acusado (Voto do Relator, p. 19).

Ainda acerca da ratificação da narrativa policial pelo dele-


gado de polícia, remete-se aos ensinamentos de Grinover (1990).
Segundo a autora, o direito à prova assegura a possibilidade de a
parte se servir das provas para apresentar ao juiz a realidade do
evento posto como fundamento da ação e da execução. Em se tra-
tando de crime de tráfico de drogas, as provas produzidas em juízo
são atravessadas pela versão dos fatos sustentadas pelos policiais.
Assim, o direito do acusado de se opor ao que foi alegado na de-
núncia é esvaziado pela sobrevalorização da palavra do policial.
Nos dizeres de Garcia (2015, p. 80):

[…] nesse caso, se limita a defesa a criar outra versão


sobre o que já é existente e pré-construído, sendo
muitas vezes forçada a produzir novo conjunto proba-
tório para de fato provar a inocência e a versão diversa
da inicialmente produzida.

220
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

De modo que, como afirma Wanderley (2017), opera-se uma


virtual inversão do ônus da prova, recaindo sobre o acusado o dever
de provar fato positivo que negue a acusação.
Portanto, a inversão do ônus da prova se insere em uma dinâ-
mica de violação do princípio da presunção da inocência, uma vez
que à atribuição do ônus da prova à acusação, de que trata a primeira
parte do art. 156 do CPP, segundo o qual “a prova da alegação in-
cumbirá a quem a fizer”, decorre do referido princípio constitucional.
Badaró (2003, p. 233) defende que

[...] o princípio do in dubio pro reo impede que se im-


ponha ao acusado qualquer ônus probatório na ação
penal condenatória, mesmo em relação às excludentes
de ilicitude e de culpabilidade.

Lopes Júnior (2019, p. 431), por sua vez, é incisivo ao afirmar


que “[...] a carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar
que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável)”.
Em síntese, embora o CPP vede a condenação baseada ex-
clusivamente em elementos produzidos na fase investigatória, em
se tratando do crime de tráfico de drogas, há uma valorização dos
procedimentos investigatórios na fase processual, notadamente do
depoimento policial, de modo que recai sobre o acusado a obri-
gação de provar sua inocência. Tem-se, portanto, uma inversão
do ônus da prova e, por consequência, a violação do princípio da
presunção da inocência.

INTERESSES ARTICULADOS NA GESTÃO DO FLAGRANTE

As políticas de segurança pública, no Brasil, operam


orientadas pela estratégia de guerra às drogas. A atuação das

221
Artur Ribeiro Alves

instituições de segurança pública, notadamente a Polícia Militar,


é pautada pela repressão e pelo encarceramento penal. Segundo
Valois (2017), essa tônica de guerra às drogas estabelece como
critério de produtividade policial o número de prisões, inclusive
com a atribuição de prêmios.
Dentro de um contexto de autoritarismo e discricionariedade
da atuação policial, adotar como critério de produtividade policial
a quantidade de prisões pode produzir ilegalidades, como prisões
arbitrárias, flagrantes forjados e invasões de domicílio (Jesus, 2016).
Além disso, essa abordagem direciona a atuação policial para o
campo favorável à maior quantidade de prisões, qual seja, o campo
das drogas, em face da fácil ocorrência do flagrante pelo simples
porte da substância (CPP, art. 302, I) (Valois, 2017).
Dessa maneira, Valois (2017, p. 496) destaca que

[...] o policial, diante desse contexto, interessado em


aumentar a sua produtividade, acaba envolvido cada
vez mais com o ambiente relacionado às drogas, agra-
vando a possibilidade de corrupção.

A professora Luciana Boiteux (2009, p. 43–44) comenta os


desdobramentos dessa interação:

Frente à grande rentabilidade do mercado ilícito, e das


dificuldades de repressão, uma parte considerável dos
policiais, mal pagos e menos armados do que os trafican-
tes, vai acabar se associando ao tráfico e passar a usufruir
de parte dos altos lucros gerados pelo mercado ilícito.
Não se trata de mera imoralidade, pois muitas vezes isso
se dá por questões mesmo de sobrevivência, diante do
poderio bélico, econômico e político dos traficantes.

O Estado de Pernambuco, através da Lei Estadual 16.170/2017,


instituiu o programa de bonificação aos policiais civis e militares do

222
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Estado com base em indicadores de produtividade, dentre os quais


está a repressão ao crack (art. 3o, III) (Pernambuco, 2017). Em sentido
semelhante, o Estado da Bahia, por meio da Lei Estadual 12.043/11,
instituiu a gratificação por apreensão de arma de fogo paga aos po-
liciais militares (Bahia, 2011). Caldas e Prado (2020, p.12) destacam
que a produtividade policial não é objeto de análise judicial, exceto nos
casos em que há um interesse privado do policial em relação ao réu.
A atividade policial é influenciada pelo ambiente político,
social, legal e organizacional no qual está inserida (Oliveira, 2010).
Assim, as dinâmicas externas orientam a atuação dos agentes da
força pública, os quais, em vista de atender aos anseios e cobranças
do público em geral e das autoridades políticas, violam direitos e
garantias fundamentais.
A pesquisa coordenada por Duarte et al., 2014 constatou que
a preocupação principal dos agentes de segurança é a de que o tra-
balho desenvolvido na rua seja validado pelo delegado de polícia;
a atuação policial é voltada para obter elementos que possam jus-
tificar a abordagem policial. A formalização do auto de prisão em
flagrante demonstra a eficiência da ação intentada pelo agente de
segurança. Segundo Duarte et al. (2014, p. 112),

“[…] ainda que o policial não apresente um interesse


direto na condenação deste ou daquele indivíduo, ele
possui um interesse mediato, individual e corpora-
tivo, porque o flagrante concluído demonstra a sua
eficiência profissional.

Portanto, é possível concluir que os agentes da força pública


atuam orientados por estímulos institucionais (programas de prê-
mios e bonificação) e estímulos externos (anseios e cobranças do
público em geral e das autoridades políticas), cuja consequência é a
linha tênue entre o legal e o ilegal nas práticas policiais. Tais estímu-
los não são levados em consideração pelo sistema de justiça criminal.

223
Artur Ribeiro Alves

A LEITURA DAS NARRATIVAS POLICIAIS PELO SISTEMA


JUDICIÁRIO: A ARGUMENTAÇÃO DOS ACÓRDÃOS DO TJBA

Para elucidar de maneira empírica como se dá a interpreta-


ção judicial sobre a narrativa policial nos casos de tráfico de drogas,
realizou-se uma pesquisa com abordagem qualitativa.
Dessa forma, por meio de pesquisa jurisprudencial das de-
cisões de segundo grau do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
(TJBA), notadamente acórdãos proferidos na esfera de recurso de
apelação criminal, o estudo investiga como se dá a interpretação
das narrativas policiais pelos magistrados do Poder Judiciário do
Estado da Bahia.
Destaca-se que, por se tratar de pesquisa que utiliza infor-
mações de acesso público, nos termos da Lei no. 12.527/11, não há
necessidade de registro junto ao Comitê de Ética em Pesquisa.
A escolha do TJBA se deu em razão da competência residual
afetar à Justiça Estadual, na qual é processado e julgado o alvo prin-
cipal da política de repressão às drogas e o tráfico de varejo, que se
submete à vigilância policial. Em virtude da vasta quantidade de
decisões proferidas pelos magistrados de primeiro grau e da vedação
ao reexame de fatos e provas pelos Tribunais Superiores,6 a pesquisa
restringiu-se às decisões proferidas pelo segundo grau no âmbito de
apelação, uma vez que esta modalidade recursal permite o reexame
de fatos e provas de forma ampla.
A pesquisa foi realizada no sítio eletrônico do TJBA,7 no
campo “Jurisprudência”. As palavras-chave utilizadas na área de
busca foram “tráfico de drogas”, “testemunho” e “policial”. Houve de-
limitação temporal entre 01/01/2021 e 31/12/2021. A classe da ação
marcada foi “Apelação”.

6
É o teor das Súmulas 07/STJ e 279/STF. Acesso em: 27 jun. 2022.
7
Disponível em: http://www5.tjba.jus.br/portal/

224
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

A pesquisa retornou com 22 resultados. Após consulta indivi-


dualizada dos precedentes, foram excluídos um processo em que o réu
confessou em juízo ser autor do delito; dois processos que contaram
com testemunho diverso do depoimento policial; e um processo que
não tratava do delito de tráfico de drogas. Assim, o estudo se restringe
à 19 acórdãos relacionados ao cometimento dos crimes previstos nos
artigos 33 (tráfico de drogas) e 35 (associação para o tráfico) da Lei no.
11.343/06, isoladamente, ou em conjunto entre si ou com outros delitos.
A atividade de investigação objetivou, através da leitura e do
registro de informações contidas nos precedentes, compreender a
dinâmica institucional sobre a recepção dos testemunhos policiais
pelos magistrados. Para tanto, foi observado o raciocínio utilizado
pelos magistrados na acolhida dos depoimentos, não sendo analisa-
do, portanto, o conteúdo dos depoimentos policiais.
Em posse dos acórdãos, procedeu-se à análise que consistiu
em responder aos seguintes questionamentos: 1o) Qual é a condição
que torna possível que as narrativas policiais sejam concebidas como
verdade? 2o) Como os magistrados justificam a escolha da versão
policial em suas decisões?
A partir dessas perguntas exploratórias, foram analisados os
seguintes aspectos quanto aos elementos argumentativos: (i) tipo
de testemunho; (ii) violação de domicílio X crime permanente;
(iii) narrativa territorial; (iv) menção aos relatos do inquérito;
(v) incorporação do vocabulário policial; (vi) influência do repertório
pessoal; (vii) controle da ação policial; (viii) alegação de ilegalidades.

A recepção de testemunhos de agentes de segurança


Predomina nos acórdãos do recorte amostral a narrativa pro-
duzida na fase policial. A palavra do agente de segurança é valorada
na sentença (e também na decisão de segundo grau) como elemento
central para a comprovação da tese acusatória. Dos 18 precedentes

225
Artur Ribeiro Alves

analisados, em apenas um o desembargador reformou a decisão para


absolver o apelante. Em todos os casos, a produção de prova em juízo
se limitou à oitiva dos policiais e ao interrogatório do réu.
Um aspecto que chama a atenção nos acórdãos é a padroni-
zação da estrutura argumentativa. A fundamentação das decisões
apresenta formulações semelhantes, com as mesmas citações de ju-
risprudência e jargões jurídicos, como ocorreu nas decisões abaixo:

Denota-se, portanto, que as testemunhas, em unísso-


no, confirmaram a narrativa constante na peça acu-
satória, de forma clara e concisa, em harmonia com
o teor dos depoimentos colhidos ainda na fase inqui-
sitorial. Nesse panorama, não se vislumbra qualquer
razão para se apreciar com reservas o testemunho dos
policiais militares, mesmo porque não há nos autos
qualquer indício de eventual interesse destes em in-
criminar o Apelante. (Bahia, 2021).

Denota-se, portanto, que as testemunhas, em unísso-


no, confirmaram a narrativa constante na peça acu-
satória, de forma clara e concisa, em harmonia com
o teor dos depoimentos colhidos ainda na fase inqui-
sitorial. Nesse panorama, não se vislumbra qualquer
razão para se apreciar com reservas o testemunho dos
policiais militares, mesmo porque não há nos autos
qualquer indício de eventual interesse destes em in-
criminar o Apelante. (Bahia, 2021).

Oportuno ressaltar que, conforme assevera Lopes Júnior


(2019), a fundamentação das decisões é instrumento de controle
da racionalidade, sendo necessário, portanto, argumentos cog-
noscitivos seguros e válidos. Assim, argumentações previamente
estruturadas terminam por desconsiderar elementos do caso e, por
conseguinte, violam princípios garantistas, especialmente o devido
processo legal.

226
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Percebe-se que os magistrados tendem a validar as narrati-


vas dos condutores dos flagrantes, conforme é possível observar no
caso abaixo:

[…] a condição funcional dos Policiais não os impede


de depor acerca dos atos de ofício dos quais tenham
participado, tampouco possuindo o condão de su-
primir ou fragilizar a credibilidade de suas assertivas;
pelo contrário, trata-se de testemunhas ouvidas sob o
crivo do contraditório, mediante regular compromisso,
e que travaram contato direto com a ação criminosa e
seu autor no curso de atividade intrinsecamente estatal,
daí porque se mostram aptas a contribuir, de modo de-
cisivo, na elucidação do fato (Bahia, 2021, grifo nosso).

O magistrado da decisão exposta confere ao relato policial


uma credibilidade inquestionável, além de reforçar a ideia de que
policiais são presumidamente idôneos por exercerem função públi-
ca. Também é de se notar que o testemunho policial opera como
descrição dos fatos. A formulação “travaram contato direto com a
ação criminosa e seu autor” é utilizada como argumento para dar
credibilidade à palavra do policial.
Observa-se da leitura dos acórdãos que os magistrados se
apoiam na jurisprudência dos Tribunais Superiores para justificar a
adoção do testemunho policial como fundamento da decisão. É o
caso do processo citado abaixo:

[…] em pese o nobre labor defensivo, com a análise


retrospectiva dos fatos a partir da prova coligida e
segundo os critérios interpretativos e valorativos fi-
xados pelo STF e pelo STJ, tem-se por legitimada a
compreensão formada pelos agentes policiais sobre a
necessidade da diligência empreendida, que resultou
na efetiva apreensão de drogas e conseguinte prisão
em flagrante do Apelante (Bahia, 2021).

227
Artur Ribeiro Alves

Consoante precedentes dos Tribunais Superiores, é válida a


prova testemunhal exclusivamente formada por policiais. De acordo
com Valois (2017), este posicionamento decorre da impossibilidade de
se ter outras testemunhas para além dos agentes públicos responsáveis
pela prisão em flagrante. Nas palavras do autor, “[...] se não aceitarmos
testemunha exclusivamente policial, não conseguiremos outras teste-
munhas e não condenaremos ninguém” (Valois, 2017, 490).
Bitencourt (2012, p. 469, grifos do autor), discorrendo sobre
o flagrante forjado, problematiza a adoção da prova testemunhal ex-
clusivamente de policiais e, comentando sobre o tema, pondera que

[…] não se justifica que um jovem preso com peque-


na quantidade de tóxicos, em um barzinho lotado de
pessoas, tenha como prova testemunhal somente a
declaração dos policiais, que têm nítido e justificado
interesse no coroamento de seu trabalho. Polícia não
é testemunha, é agente repressor, e sua versão é con-
tagiada pela função repressiva que exerce, despida da
condição de neutralidade exigida de um depoimento
testemunhal. É inadmissível, como testemunha, o ar-
rolamento da autoridade policial (ou mesmo agente ou
auditor fiscal ou similar) pelo Ministério Público, como
rotineiramente tem acontecido nos últimos tempos,
pois a manifestação da autoridade policial, segundo o
Código de Processo Penal, tem sede e momento pro-
cessual próprios: o relatório final do inquérito policial.

Segundo Valois (2017, p. 491), o entendimento jurispruden-


cial acerca do testemunho policial banaliza o trabalho de investiga-
ção da própria polícia, uma vez que,

[...] sendo autorizada pelo judiciário a prender, e a


servir de testemunha de suas próprias apreensões,
não há motivos para buscar mais dados, gastar tempo
e dinheiro com mais investigações.

228
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

A lógica argumentativa das decisões se baseia no trabalho da


polícia. Em todos os acórdãos analisados, os magistrados tendem a
estabelecer ligação entre os depoimentos colhidos na fase do inqué-
rito policial e os depoimentos repetidos diante do juiz e das partes.
A semelhança dos testemunhos policiais é elemento suficiente para
a validade da narrativa policial. Chama atenção o seguinte trecho do
acórdão de apelação:

[…] denota-se, portanto, que as testemunhas, em unís-


sono, confirmaram a narrativa constante na peça acusa-
tória, de forma clara e concisa, em harmonia com o teor
dos depoimentos colhidos ainda na fase inquisitorial
(Bahia, 2021).

Em alguns processos analisados, a defesa alegou violação


de domicílio perpetrada pelos policiais que efetuaram a prisão em
flagrante. O argumento recorrente nos acórdãos para rechaçar tal
alegação é o de que o tráfico de drogas é um crime permanente,
o que afasta a garantia constitucional da inviolabilidade de domicí-
lio. Conforme verificado, por vezes os magistrados enfatizam na de-
cisão que o acesso ao domicílio foi franqueado pelo acusado, como
ocorreu no acórdão a seguir:

[…] de modo que a entrada dos agentes públicos no


imóvel referido se enquadra à ressalva da garantia
insculpida no art. 5o, XI, da CF/88, independente de
autorização, muito embora, conste, nos depoimentos
destes, a autorização do Réu para tanto, caindo por
terra a tese defensiva (Bahia, 2021, grifo nosso).

Segundo Valois (2017, p. 477), “[...] o judiciário não deve-


ria convalidar tal assertiva, e a mesma devia ser inclusive motivo
de suspeita com relação ao próprio procedimento policial”. E prosse-
gue o autor afirmando que “[...] não se pode dar crédito à afirmação

229
Artur Ribeiro Alves

de que uma pessoa com algum tipo de substância ilícita em casa teria
permitido à polícia entrar para realizar uma revista”.
O argumento tecnicista utilizado pelos magistrados, uma vez
mais, é construído a partir da narrativa policial. Percebe-se que os
magistrados incorporam a palavra policial em sua base argumentati-
va. O magistrado escreve:

[…] os policiais que efetuaram a prisão do Recorrente


justificaram a entrada no domicílio dele em decorrên-
cia da continuação da diligência que se iniciou em via
pública, oportunidade em que, segundo informam,
o Acusado foi encontrado trazendo consigo significa-
tiva quantidade de entorpecentes, momento em que
ele mesmo teria comunicado guardar mais drogas em
casa (Bahia, 2021).

O repertório pessoal dos desembargadores também é utiliza-


do para legitimar a narrativa policial. Em uma das decisões analisa-
das o magistrado insere em sua argumentação convicções sobre as
dinâmicas do tráfico:

Inclusive, o que se nota num dos vídeos cortados é que


o acusado é abordado por um veículo preto, conversa
com o motorista, o veículo estaciona adiante, o réu se
aproxima do veículo e ‘interage’ com o motorista […]
Dita imagem é indicativa da prática do comércio de
entorpecente […] Acrescente-se que as testemunhas
informaram que estavam na localidade descrita na
denúncia, onde são comuns diligências relacionadas
ao tráfico de drogas (Bahia, 2021, grifo nosso).

Outro ponto recorrente na fundamentação dos precedentes


é a citação do território. Foi observado que as percepções policiais
sobre o local do flagrante são inseridas nas decisões e influenciam na
tomada de decisão.

230
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Os magistrados inserem em seus discursos o repertório


profissional sobre as dinâmicas de rua dos agentes de segurança.
A expressão “local conhecido como ponto de tráfico de drogas”, por
exemplo, comumente utilizado pelos policiais para descrever o local
do flagrante, aparece com uma certa frequência nos argumentos dos
acórdãos analisados, como ocorreu no caso a seguir:

Constata-se, portanto, que, no momento da prisão em


flagrante, o apelante estava na posse de significativa
quantidade de cocaína, em via pública, sendo o local
conhecido como ‘ponto de tráfico de drogas’, circuns-
tâncias que evidenciam a efetiva caracterização do
delito previsto no art. 33, caput, da Lei 11.343/2006,
não sendo possível o acolhimento do pleito absolutó-
rio formulado pela Defesa (Bahia, 2021, grifo nosso).

Miguel (2017) constatou em sua pesquisa que os magistrados


utilizam o conceito “local de intenso tráfico de drogas” como crité-
rio para diferenciar o usuário e o traficante. Segundo o autor, “[...]
o imaginário dos Magistrados ao falarem de ‘local de intenso tráfico’
é que estes são aqueles bairros periféricos” (Miguel, 2017, p. 89).
Essa seletividade penal define quem são os condenados por
tráfico de entorpecentes, de modo que

[...] em uma ação policial, um mero usuário, morador


de uma região de ‘intenso tráfico de drogas’ poderá
ser abordado pelos policiais e, posteriormente, ser au-
tuado como traficante de droga (Miguel, 2017, p. 90).

Não foi observada, nos precedentes do recorte amostral,


menção à existência de interesses dos agentes de segurança na prisão
do réu. A motivação do flagrante é inquestionável, mesmo quando
questionada pela defesa. Neste sentido, os elementos de suspeição
(apreensão de dinheiro em espécie, local em que ocorreu o flagrante

231
Artur Ribeiro Alves

e o modo de acondicionamento da droga) são suficientes para justi-


ficar a atuação policial, como faz constar:

[…] não se vislumbra qualquer razão para se apreciar


com reservas o testemunho dos policiais mesmo porque
não há nos autos qualquer indício de eventual interesse
destes em incriminar o Apelante (Bahia, 2021).

Assim, nem estímulos institucionais nem estímulos externos


são levados em consideração nas decisões dos magistrados:

É a crença na conduta policial. Afirma a ideia de que


policiais, quando agem com interesse de prejudicar
alguém, o fazem com pessoas que conhecem. É como
se a violência policial e prisão arbitrária somente
pudesse ser justificada na linha da vingança e de um
interesse privado/particular do policial em prejudicar
o réu (Jesus, 2016, p. 2018).

A obtenção de elemento incriminador em desfavor do réu con-


fere credibilidade à ação policial e afasta o controle em juízo da motiva-
ção do flagrante, de modo que a abordagem somente será questionada
caso haja evidências de interesse pessoal do agente de segurança, con-
forme o desembargador manifestou na decisão mencionada abaixo:

Registra-se que, inexistindo nos autos qualquer con-


duta e prática dos policiais que ponham em dúvida a
veracidade de suas informações e que tenham interes-
se na condenação do Apelante, sua versão apresenta-
da, em contrariedade à versão dos agentes públicos,
demanda prova, o que não restou demonstrado nos
autos (Bahia, 2021).

Essa crença na conduta policial chancela as ações policiais de


controle discricionário do espaço das ruas (Freitas, 2020), de forma

232
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

que alegações de ocorrência de arbitrariedades e abuso policial não


são consideradas pelos magistrados, mesmo diante de indícios da
ocorrência de ilegalidades, como ocorreu no caso a seguir:

Entretanto, não obstante o laudo de exame de lesões


corporais de fls. 77/78 ateste que o Apelante apresen-
tava ‘Equimoses avermelhadas, localizadas em região
infra-escapular direito’ no dia dos fatos narrados na
denúncia, ainda que se admita que ele foi agredido no
momento do seu flagrante, antes ou depois da loca-
lização do entorpecente, como não lhe foi imposta a
adoção de nenhuma postura estranha à abordagem,
não há como concluir, sob nenhum ângulo, pela
nulidade das provas amealhadas, uma vez que não
há dependência entre a ilicitude alegada e a prova
utilizada para a condenação, haja vista que é lícito
aos agentes de segurança pública abordarem qualquer
cidadão, como fizeram com o Recorrente, de modo
que o encontro das drogas era, como foi, algo inevitá-
vel, independente de terem usado imoderadamente a
força física (Bahia, 2021).

Para refutar as alegações de ilegalidades na prisão em flagran-


te, o desembargador utiliza o argumento de que “[...] não foram
apresentadas testemunhas de defesa, não houve corroboração da
hipótese fática alternativa” (Bahia, 2021). A versão do réu, para o
magistrado, carece de confirmação, enquanto é “[...] legitimada a
compreensão formada pelos agentes policiais sobre a necessidade da
diligência empreendida” (Bahia, 2021).
Assim sendo, a alegação do acusado é descredibilizada, en-
quanto a narrativa policial é acolhida sem ressalvas. “É a polícia que
dá o tom do debate nos autos […] Se o inquérito dá o tom para o
processo é porque os operadores do direito aceitam a referência”
(Raupp, 2005, p. 61).

233
Artur Ribeiro Alves

Em alguns acórdãos foi observado que os desembargado-


res validaram os depoimentos policiais pois estes se mostraram
“firmes, consistentes e harmônicos” (Bahia, 2021). De outro lado,
foram identificadas decisões em que os magistrados considera-
ram válidas “dissonâncias nos depoimentos dos agentes públicos”
(Bahia, 2021), sob a justificativa de que “denotam desvinculação
dos policiais com o resultado do processo e seu legítimo intuito
de expressarem tão somente o que lhes ocorrer no momento do
depoimento em juízo” (Bahia, 2021).
O que se percebe da análise dos acórdãos é que os desem-
bargadores acolhem as narrativas dos policiais como verdadeiras
mesmo diante de indícios de ilegalidades. Há presunção de idonei-
dade da palavra do agente de segurança consubstanciada pela crença
de que os policiais, na condição de representante de uma instituição
do Estado, não teriam motivos para prejudicar o réu. O controle da
ação policial é superficial, sem questionamentos acerca dos motivos
das operações que resultaram na prisão em flagrante.
A partir do exame feito acima, é possível concluir que a crença
no saber policial, na função policial e na conduta policial possibilita
que as narrativas dos agentes de segurança sejam concebidas como
verdade. Os magistrados justificam a escolha da versão policial
através de argumentos tecnicistas e jargões jurídicos, que, frequente-
mente, impõem ao acusado o dever de provar sua inocência.

A tomada de decisão e a narrativa policial


Considerando os precedentes analisados, é possível concluir
que a credibilidade dada ao depoimento policial, mesmo que exista
incoerência, resulta da concepção de que o agente de segurança re-
presenta uma instituição do Estado. Neste sentido, Foucault (2001,
p. 13–14) aduz que:

234
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

[…] certas provas têm, em si, efeitos de poder, valores


demonstrativos, uns maiores que os outros, inde-
pendentemente de sua estrutura racional própria.
Portanto, não em função da estrutura racional delas,
mas em função de quê? Pois bem, do sujeito que as
produz. […] Assim é que, por exemplo, os relató-
rios de polícia ou os depoimentos dos policiais têm,
no sistema da justiça francesa atual, uma espécie de
privilégio com relação a qualquer outro relatório e de-
poimento, por serem enunciados por um funcionário
juramentado da polícia.

A crença na função social da atividade policial permite que a


narrativa construída por ele seja aceita como verdade (Jesus, 2016).
Para Bourdieu (1998), as interações linguísticas são relações de poder
simbólico. No caso da interação entre o aparato policial e o sistema
de justiça criminal, o discurso policial é o que transmite poder aos
magistrados (Campos, 2015). Portanto, a narrativa policial se insere
em uma dinâmica de validação da própria decisão judicial.
Segundo Jesus (2016, p. 239),

[...] a crença na narrativa policial torna-se um dos


únicos meios pelos quais os juízes conseguem obter o
vocabulário necessário para exercerem o seu poder de
punir, sobretudo casos de tráfico de drogas.

Dessa maneira, a agência policial tem um papel decisivo


na condenação de indivíduos por tráfico de drogas. Freitas (2020,
p. 167), discorrendo sobre a validação judicial da ação policial de
cumprimento de mandado, pontua que

O alargamento da soberania policial reedita a confu-


são entre público e privado na medida em que amplia
o contato entre as práticas policiais e as práticas pri-
vadas de gestão da violência, rasurando as fronteiras

235
Artur Ribeiro Alves

(sempre instáveis nesse campo) entre o legal e o ilegal.


Sem controle estatal de qualquer natureza, submetido
a regimes hierárquicos fortemente desiguais, contan-
do com chancela social para práticas de violência e
dentro de um contexto social de acentuada inclinação
autoritária, os policiais são estimulados ao exercício
de um poder discricionário cuja consequência políti-
ca é a radicalização do Estado […].

O imperativo da palavra policial, no sistema de justiça cri-


minal, insere na decisão judicial uma verdade produzida unilate-
ralmente. Nesse contexto, a verdade jurídica torna-se produto dos
filtros, interesses e seletividade da agência policial. Prevalece a lógica
inquisitorial de produção da verdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, verificou-se que a legislação de


drogas, alicerçada pelo racismo, reforça a seletividade penal e permi-
te uma margem de discricionariedade à atuação policial. O paradig-
ma proibicionista, em paralelo com o racismo institucional, orientou
as políticas de drogas adotadas no Brasil.
O modelo de resposta punitivista da atual lei de drogas se
subdivide em dois sistemas, um pautado pela despenalização do
consumo e o outro pela repressão do tráfico. Contudo, a lei não
adotou critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante,
de tal forma que essa diferenciação acaba sendo feita pelas agências
formais de controle, notadamente a polícia.
A atuação dessas agências é orientada por parâmetros sociais
seletivos e preconceituosos. Os elementos de suspeição observados
pela agência policial direcionam a abordagem do agente de segu-
rança aos grupos mais vulneráveis, negros e pobres especificamente.

236
VERDADE JURÍDICA E CONSTRUÇÃO DO DELITO: O CONTROLE JUDICIAL DE
VALIDADE DAS NARRATIVAS POLICIAIS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE DROGAS

Esse contexto, conforme verificado no exame dos acórdãos, não é


levado em consideração pelo judiciário.
Prevalece a noção de que o testemunho policial é presumi-
damente idôneo. Nessa perspectiva, o depoimento é legitimado, a
despeito de possíveis irregularidades na ação policial. A sobrevalo-
rização do testemunho policial inverte o ônus da prova, violando o
princípio do in dubio pro reo.
A presunção de fé pública do testemunho policial integra
um sistema de crenças acerca da instituição policial que permeia o
imaginário social, inclusive do magistrado. Esse sistema de crenças
é o que possibilita que as narrativas dos agentes de segurança sejam
concebidas como verdade.
Após a leitura e o exame dos acórdãos, é possível inferir que
o poder judiciário sobrevaloriza a narrativa policial. Os magistrados
inserem em sua argumentação o repertório profissional dos agentes
de segurança. As concepções pessoais dos magistrados também são
inseridas nas decisões para reforçar e validar a narrativa do condu-
tor do flagrante, apesar da aparente neutralidade do discurso. Essas
concepções são amparadas por estereótipos e preconceitos sociais.
A utilização de jurisprudência dos Tribunais Superiores e de
jargão jurídico é uma prática recorrente nas decisões, que costumam
ter a mesma estrutura argumentativa e os mesmos tópicos de funda-
mentação, em que a menção à narrativa policial é recorrente.
As alegações de abuso durante a abordagem são rebatidas pelo
judiciário. Os magistrados condicionam a avaliação das alegações à
apresentação de prova que possa comprovar tais violações. Por sua vez,
contradições no depoimento policial não invalidam o testemunho, pois,
na visão do judiciário, são naturais devido à natureza do depoimento.
Os motivos da ação policial não são considerados pelo Poder
Judiciário. A existência de elementos de suspeição é suficiente para
validar o trabalho da polícia. Assim, programas de incentivos e

237
Artur Ribeiro Alves

pressões políticas não são levados em consideração. A baliza do ma-


gistrado se restringe aos elementos de suspeição. Portanto, a apreen-
são de dinheiro em espécie e substâncias ilícitas em ‘local conhecido
como “ponto de tráfico de drogas” é suficiente para validar a ação.
Por conseguinte, é possível constatar que o automatismo na
recepção da narrativa policial faz parte do sistema de repressão do
sistema penal. O judiciário como agência de controle ratifica a seleção
feita pela agência policial. O sistema de justiça criminal chancela a
atividade policial, sem questionar a seletividade dessas ações. Assim,
“[...] a clientela do sistema penal vai sendo regularmente construída
de maneira tão homogênea e harmônica que de nada poderíamos
suspeitar” (Flauzina, 2006, p. 26).
Por fim, é possível concluir que as agências sociais de controle
atuam em conjunto para a manutenção do sistema penal. Nesse ce-
nário, a lei de drogas é vaga em seus comandos normativos e confere
uma discricionariedade à atuação policial, sendo esta, por sua vez,
chancelada pelo sistema de justiça criminal.

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Anos E 10 (Dez) Meses De Reclusão Em Regime Inicial Semiaberto
E Ao Pagamento De 582 (Quinhentos E Oitenta E Dois) Dias-
Multa Pela Prática Do Crime De Tráfico De Drogas. (Art. 33
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241
Artur Ribeiro Alves

BAHIA. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (1. Câmara


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248
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL
DO AUTOR: MANUTENÇÃO DE PRISÕES
PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

Karina Calixto de Mattos

O presente trabalho foi motivado pelos debates travados nas aulas


da disciplina de Tópicos Especiais, ministrada pela Profa. Alessandra
Rapacci Mascarenhas Prado, no Programa de Pós-graduação em
Direito da Universidade Federal da Bahia, e especialmente pela
análise da seletividade penal e do perfil dos sujeitos rotulados
como perigosos para fins de decretação de prisões preventivas.
Visa, assim, investigar a seletividade penal na análise de pedidos de
revogação de prisões preventivas pelo Superior Tribunal de Justiça
(STJ), instância preponderantemente revisional, na qual, após a
filtragem inicial do sistema em âmbito policial e de primeiro grau,
o rótulo de perigoso se torna ainda mais enraizado nos sujeitos
selecionados pelo sistema penal.
Para a construção desta pesquisa, partiu-se das seguintes
hipóteses: I) há maior incidência de prisões preventivas quando
o crime de corrupção está associado ao tráfico de drogas; e II)
a periculosidade e o risco de reiteração são comumente utiliza-
dos como fundamentos para a decretação/manutenção de prisões
preventivas, quando o crime de corrupção aparece associado ao
tráfico de drogas.

249
Karina Calixto de Mattos

DA CULTURA DO ENCARCERAMENTO

Temos, no Brasil, uma política criminal cada vez mais rigorosa,


com a elaboração maciça de leis especiais e a previsão de penas cada
vez mais severas, em que, muitas vezes, prende-se para, só depois,
investigar e julgar. Dados do Departamento Penitenciário Nacional
(Depen, 2021) indicam que, no período entre julho e dezembro de
2021, dos 670.714 presos em unidades prisionais no Brasil, 196.830,
aproximadamente 30%, são presos provisórios. Esses alarmantes nú-
meros mostram que se vive, no Brasil, uma cultura encarceradora,
que infla, cada dia mais, o falido sistema penitenciário.
Como contramovimento a essa cultura encarceradora,
destacam-se duas importantes medidas que foram inseridas ao or-
denamento jurídico brasileiro, visando evitar prisões ilegais e des-
necessárias. A primeira delas foi a inclusão das medidas cautelares
diversas da prisão. Em 4 de maio de 2011, após dez anos tramitando
no Congresso Nacional, o Projeto de Lei no 4.208/2001 foi converti-
do na Lei no 12.403/11, que realizou uma reforma parcial no Código
de Processo Penal, passando a prever medidas cautelares pessoais
diversas da prisão, pondo fim ao binômio liberdade-prisão (Gomes
et al., 2011, p. 29):

Para contornar o problema prisional decorrente do


excesso de prisioneiros, não basta apenas apostar
nas penas e medidas alternativas à prisão que são
aplicadas no momento da condenação definitiva.
O cenário nacional exigia (urgentemente) medidas
que possibilitassem alternativas também à prisão
cautelar, já que esta é a principal responsável pela
superlotação carcerária.

No entanto, como já advertia, à época, Audrey Borges de


Mendonça (2011, p. 11):

250
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:
MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

[…] a efetividade das alterações e a aplicação de


sua principiologia dependerão, sobretudo, de uma
mudança de mentalidade dos operadores do direito.
Incumbe a nós, intérpretes e aplicadores do direito,
contribuir para extrair da nova legislação a sua
máxima eficácia, sobretudo na busca de um processo
penal mais efetivo e equânime.

Não foi o que aconteceu. Estudos mostram que as medidas cau-


telares diversas da prisão funcionam na prática, muitas vezes, como
alternativas à liberdade, e não à prisão. Nesse sentido, destaca-se a
conclusão de pesquisa realizada pelo Instituto de Defesa do Direito de
Defesa (IDDD) (2019, p. 119), que, em 2019, acompanhou e analisou
os dados de audiências de custódia realizadas em todo o Brasil:

Como o nome deste relatório sentencia, para a clien-


tela preferencial do sistema de Justiça penal, o direito
à liberdade irrestrita acabou. Menos de 1% dos casos
monitorados teve como desfecho a concessão de li-
berdade provisória sem medida cautelar. Em capitais
como São Paulo, nenhuma liberdade irrestrita foi
concedida ao longo de todo o monitoramento. Esse
dado é alarmante. O uso recorrente de medidas caute-
lares, embora seja uma alternativa à prisão e implique
menor interferência do Estado na vida do cidadão,
passa a ser uma muleta utilizada pelos/as magistra-
dos/as, que já não conseguem pensar o processo penal
sem aprisionar o/a acusado/a.

Outra importante medida visando a redução do encarcera-


mento foi a inserção das audiências de custódia, que, muito embora
estivessem previstas no ordenamento jurídico brasileiro desde
6 de novembro de 1992, quando o Brasil ratificou a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (1992), somente em 15 de de-
zembro de 2015 passaram a ser regulamentadas e, nacionalmente,

251
Karina Calixto de Mattos

implementadas em âmbito nacional, a partir da Resolução no 213, do


Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (Brasil, 2015).
Conforme conclui pesquisa conduzida no Núcleo de Prisões
em Flagrantes de Salvador/BA, em que se acompanharam e analisa-
ram os autos de prisão e flagrante e decisões relativas a audiências
de custódia realizadas nos meses de abril, maio e junho de 2018
(De Mattos, 2018, p. 76):

[…] a realização deste ato, de forma isolada, não é su-


ficiente para que alcance os fins pretendidos com sua
inserção pela Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e previsão pelo Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e pela Resolução no 213/2015 do CNJ.
Faz-se imprescindível, para tanto, romper com a cultura
inquisitorial e encarceradora vigente, respeitando as
garantias fundamentais da pessoa presa, em especial a
presunção de inocência, e aos fundamentos das medi-
das cautelares pessoais, tanto prisionais, como diversas
da prisão, só sendo legítimas e constitucionais quando
apresentam natureza cautelar, com o fim de resguardar a
persecução criminal e a aplicação da lei penal.

Vê-se, portanto, que, ainda que tais institutos representem um


grande avanço, estão muito longe de resolver a questão do encarce-
ramento provisório em massa. Prende-se muito, provisoriamente e,
reiteradamente, de maneira ilegal, mas não de forma indiscriminada.

DA SELETIVIDADE PENAL NO ÂMBITO DO STJ

Inicialmente, cumpre destacar um dado quantitativo importan-


te que foi observado na realização desta pesquisa. Em todo o mês de
junho do ano de 2022, foi proferido um total de cinco acórdãos sobre
pedidos de revogação de medidas cautelares pessoais. Desses, quatro

252
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:
MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

tratavam de prisões preventivas e um de medidas cautelares diversas


da prisão, relativas ao crime de corrupção, passiva e/ou ativa.
O número em questão, por si só, já revela a seletividade do sis-
tema penal, sobretudo quando se considera que, no mesmo período,
houve a prolação de 127 acórdãos que analisaram a prisão preventiva
em relação ao crime de tráfico de drogas. Registre-se, ainda, que em
três dos cinco acórdãos relativos ao crime de corrupção imputou-
-se a prática do crime contra a administração pública associado ao
crime de tráfico de entorpecentes, e em todos esses casos a prisão
provisória foi mantida.
Esses dados demonstram a predileção das agências policiais
e judiciais pela autuação e prisão provisória pelo crime de tráfico
de drogas, aqui contraposto ao crime de corrupção, por ser um dos
crimes que gera maior impacto na sociedade — embora, em com-
paração, seja muito menor a ação repressiva do Estado, ao menos
quando não é praticado em associação com o crime de tráfico de en-
torpecentes. Conforme ressaltam Alessandra Rapacci Mascarenhas
Prado e Bernardo Sodré Carneiro Leão (2021 apud Flauzina,
2006, p. 1.725), a seleção e o encarceramento em massa são “[...]
o[s] instrumento[s] utilizado[s] pelo sistema punitivo brasileiro para
manutenção do controle social, econômico e racial, incidindo prin-
cipalmente nos delitos de drogas e patrimoniais”.
A prisão preventiva foi mantida nos quatro processos em que
se pediu a revogação. A medida cautelar pessoal aplicada foi afasta-
da apenas em um dos processos, que tratava de medidas cautelares
diversas da prisão, por crimes de corrupção ativa e passiva, organiza-
ção criminosa, desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro, em
que o paciente era prefeito municipal.
No processo em que foi mantida a custódia preventiva, no
qual o crime de corrupção não apareceu associado ao crime de trá-
fico de drogas, a prisão foi fundamentada na garantia da ordem pú-
blica, ante a alegada gravidade concreta das condutas delitivas, e na

253
Karina Calixto de Mattos

suscitada necessidade de se “[...] restaurar a credibilidade da Justiça”


(Brasil, 2022a, p. 2), uma vez que o suposto autor do fato estaria su-
postamente descumprindo ordem de prisão domiciliar.
Nos três casos em que o crime de corrupção apareceu asso-
ciado ao crime de tráfico de drogas, verificaram-se fundamentações
genéricas, indiscriminada imputação de constituição de organização
criminosa e o fundamento pela garantia da ordem pública, espe-
cialmente sob os argumentos de periculosidade do agente e risco de
reiteração delitiva.
No primeiro desses casos, a prisão preventiva foi mantida sob
fundamentos genéricos, diante da gravidade concreta dos delitos:
“[…] como forma de garantir a ordem pública, a conveniência da
instrução criminal e a aplicação da lei penal” (Brasil, 2022b, p. 5),
bem como pela “[...] necessidade de se interromper ou diminuir a
atuação de integrantes de organização criminosa” (Brasil, 2022b,
p. 6), que caracteriza risco de reiteração delitiva.
No segundo processo envolvendo tráfico de drogas, a prisão
preventiva foi mantida sob a mesma justificativa de que as ativida-
des da dita organização criminosa apresentariam reiteração delitiva.
Destacou-se a necessidade de manutenção da custódia preventiva
sob o abstrato e injustificado argumento da necessidade de se garan-
tir a instrução criminal, em razão dos alegados

[…] estreitos laços com integrantes de facção crimi-


nosa do Primeiro Comando da Capital, de modo que
a liberdade dos acusados neste momento poderia
representar grave risco à instrução criminal, além do
iminente risco à ordem pública criado pela possibili-
dade de reiteração de tais condutas (Brasil, 2022c, p. 5).

Ademais, a custódia preventiva foi justificada, também de


forma genérica e infundada, pela necessidade para garantir a aplica-
ção da lei penal:

254
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:
MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

[…] porquanto se trata de organização supostamente


voltada à prática do tráfico de drogas e, sendo assim,
com grande influxo de caixa de modo a viabilizar
eventual fuga do acusado que, diga-se, ficou foragido
por mais de cinco meses (Brasil, 2009).

Aqui também houve fundamentação pela garantia da ordem pú-


blica sob o argumento de haver risco de reiteração delitiva, destacando-
-se precedente do STF (Brasil, 2022, p. 5), no sentido de que “[...] a
necessidade de se interromper ou diminuir a atuação de integrantes de
organização criminosa é fundamentação cautelar idônea e suficiente
para a preventiva”.
Por fim, no terceiro processo em que há imputação do crime
de corrupção associado ao tráfico de entorpecentes, fundamentou-
-se a garantia da ordem pública pela gravidade concreta dos delitos,
risco de reiteração, antecedentes criminais e pela periculosidade do
suposto autor do fato. Neste caso, manteve o STJ a prisão preventiva,
sob o argumento de que restou:

[…] demonstrada a gravidade concreta do crime


praticado, revelada, na maioria das vezes, pelos meios
de execução empregados, ou a contumácia delitiva do
agente, a jurisprudência desta Casa autoriza a decre-
tação ou a manutenção da segregação cautelar, dada a
afronta às regras elementares de bom convívio.

Nos casos investigados, observou-se que a periculosidade e


o risco de reiteração só foram utilizados como fundamentos nos
casos que envolviam imputação de tráfico de drogas. Também foi
comum a imputação de constituição de organização criminosa,
o que, de maneira quase automática, justificou a decretação/manu-
tenção da prisão preventiva como forma de interromper ou dimi-
nuir a atuação de seus membros (risco de reiteração).

255
Karina Calixto de Mattos

Assim como o fundamento da garantia da ordem pública, que


tem conceito aberto e indeterminado, incompatível, portanto, com
os princípios da legalidade estrita e da segurança jurídica, a pericu-
losidade e o risco de reincidência também são conceitos indetermi-
nados, servindo a fins não declarados do sistema penal (Prado; Leão,
2021, p. 1.740):

A adoção do discurso da periculosidade pelo controle


penal permite que a autoridade judiciária mantenha
a aparência de neutralidade racial, ao tratar da rein-
cidência, de circunstâncias do modus operandi ou
de antecedentes criminais como indícios de perigo-
sidade, ao passo que encarcera, de forma acentuada,
homens, negros, jovens e pobres. O sistema vigente
é mais sofisticado do que a racionalidade da crimi-
nologia positivista, pois permite a manutenção do
papel funcional do sistema punitivo no extermínio
da população negra, sem precisar ser abertamente
racista, uma vez que há outros elementos da estrutura
social e do sistema penal que reproduzem as hierar-
quias sociais e raciais. Entendemos que o que leva o
órgão julgador a assegurar que o sujeito investigado é
tão perigoso a ponto de ser urgente o seu encarcera-
mento para proteger a paz social não são os aspectos
afirmados na fundamentação das decisões. Tanto que
muitos se furtam a esse trabalho de buscar motivações
e recorrem a frases de alta abstração, como dizer que
a prisão é importante para inibir a reiteração delitiva.

Não por acaso, a origem do fundamento da garantia da ordem


pública para a decretação de prisões preventivas remonta ao na-
zismo alemão, representando uma “autorização geral e aberta para
prender”, de modo a permitir o extermínio de raça (Lopes Júnior,
2014, p. 108-109):

256
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:
MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

Grave problema encerra ainda a prisão para garantia


da ordem pública, pois se trata de um conceito vago,
impreciso, indeterminado e despido de qualquer refe-
rencial semântico. Sua origem remonta à Alemanha
da década de 30, período em que o nazifascimo
buscava exatamente isso: uma autorização geral e
aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma
mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores,
adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que
tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e
indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos
prepotentes

No único caso em que a prisão preventiva foi mantida,


e que não envolvia tráfico de drogas, o fundamento da garantia
da ordem pública foi justificado, exclusivamente, na gravidade
concreta da conduta (fundamento de fixação de pena, que, por-
tanto, em âmbito cautelar, representa ilegal antecipação de pena),
apresentando-se, ainda, como fundamento da cautelar, a suposta
(e ilegal) necessidade de se restaurar a credibilidade da justiça.
Em nenhum dos casos de manutenção da custódia preventiva,
houve a necessária análise quanto à suficiência ou não de medi-
das cautelares diversas da prisão.
Chama especialmente a atenção que, em habeas corpus im-
petrado em face de decisão pela ampliação de medidas cautelares
diversas da prisão, no processo que envolvia crimes de corrupção
ativa e passiva, desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro pra-
ticados por prefeito, muito embora o fundamento para alargamento
das medidas aplicadas fosse o risco de reiteração em contramão ao
entendimento do STJ nos processos envolvendo tráfico de drogas,
a Corte Superior destacou a impossibilidade de se presumir o risco
de reiteração, revogando as medidas.

257
Karina Calixto de Mattos

Após ampla investigação, em que houve prisões em flagrante dos


supostos autores do fato, a aplicação de medidas cautelares diversas da
prisão e a nova representação do parquet pela prisão preventiva ante
fato superveniente praticado por organização criminosa que alegada-
mente configuraria risco de reiteração, o STJ afastou, expressamente,
o alegado risco de reiteração e a garantia da ordem pública, entenden-
do não haver fundamentos para as medidas cautelares pessoais.
Em resumo, os mesmos fundamentos genericamente apre-
sentados para justificar a prisão preventiva, nos casos envolvendo
o crime de tráfico de drogas, foram concretamente analisados no
único processo que envolvia prefeito, sendo expressamente afasta-
dos. Isso ocorreu mesmo que o relatório tenha indicado que este
era o único procedimento lastreado em ampla operação policial
que culminou na prisão em flagrante do paciente.
Em processos envolvendo tráfico de drogas, a conveniência
da instrução criminal foi abstratamente citada como fundamen-
to para a custódia preventiva, sem qualquer justificativa concreta.
No caso ora em questão, diversamente, mesmo tendo havido impu-
tação de corrupção de testemunhas, a conveniência da instrução não
foi sequer objeto de análise.
Do mesmo modo, malgrado tenha sido a necessidade de se as-
segurar a aplicação da lei penal apresentada como fundamento para
a manutenção da prisão preventiva em processo envolvendo tráfico
de entorpecentes, sob o argumento de que “[...] se trata de organi-
zação supostamente voltada à prática do tráfico de drogas e, sendo
assim, com grande influxo de caixa de modo a viabilizar eventual
fuga do acusado” (Brasil, 2022c, p. 5), não foi tal fundamento sequer
aventado nesse último caso, em que pese tenham os supostos autores
sido presos em flagrante, na posse de vultosa quantia em espécie.
Notadamente, o suposto poderio econômico do investiga-
do não permite que se presuma risco de que se furtará à aplicação
da lei penal, por evidente e inconstitucional afronta ao princípio

258
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:
MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

da presunção de inocência (art. 5o, LVII, da Constituição Federal,


Brasil, 1988). Por tal razão, não errou o Juízo ao não considerar
a existência de risco à aplicação da lei penal pelo simples fato de
ter sido o paciente encontrado com grande quantia em dinheiro.
No entanto, tal entendimento demonstra a discrepância de trata-
mento a depender de quem está sendo investigado, no caso, entre
Chefe do Poder Executivo Municipal e suposto agente envolvido
na venda de entorpecentes.
Não obstante, no primeiro caso, mesmo que a apreensão
de quantia milionária não gerasse risco de fuga, no segundo caso,
entendeu a Corte que a simples conjectura de que — por estar as-
sociado ao tráfico de drogas, que faz presumir grande influxo de
caixa — poderia o investigado fugir, furtando-se à aplicação da lei
penal. Tal entendimento não apenas fere a garantia constitucional
à presunção de inocência, mas escancara que o entendimento pela
custódia preventiva ou não foi feito com base no inconstitucional
Direito Penal do autor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos acórdãos proferidos pelo STJ, no mês de junho


do ano de 2022, pelo crime de corrupção ativa e passiva, mostrou a
seletividade e criminalização secundária no âmbito do STJ. Em três
dos quatro processos que tratavam de prisões preventivas, o crime
de corrupção apareceu associado ao crime de tráfico de drogas.
Em todos esses casos foi mantida a custódia preventiva, o que refor-
ça a confirmação da hipótese inicial deste trabalho de que há maior
incidência de prisões preventivas quando o crime de corrupção está
associado ao tráfico de drogas.
O único caso em que houve revogação das medidas caute-
lares pessoais foi em crime de corrupção não associado ao tráfico

259
Karina Calixto de Mattos

de entorpecentes, praticado por Prefeito, que tratavam de medidas


cautelares diversas da prisão.
A periculosidade e o risco de reiteração surgiram como jus-
tificativa para o fundamento da garantia da ordem pública apenas
nos casos envolvendo tráfico de entorpecentes. Notavelmente, essa
justificativa foi expressamente afastada no caso envolvendo prefeito,
o que também reforça a hipótese de que a periculosidade e o risco
de reiteração são comumente utilizados como fundamentos para a
decretação/manutenção de prisões preventivas, quando o crime de
corrupção aparece associado ao tráfico de drogas.
Para além disso, os dados observados denunciam a seletivi-
dade do sistema penal, também no âmbito preponderantemente
revisional do STJ (após, portanto, a filtragem policial e judicial em
primeiro grau). Nesta instância, a estigmatização do indivíduo como
perigoso, com risco de reiteração e ameaça à ordem pública, reflete
uma abordagem claramente voltada para o Direito Penal do autor.
Essas características acabam se sedimentando no pré-apenado, difi-
cultando sua capacidade de se livrar delas.

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comentários à Lei no 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.

260
RISCO DE REITERAÇÃO E DIREITO PENAL DO AUTOR:
MANUTENÇÃO DE PRISÕES PREVENTIVAS NO ÂMBITO DO STJ

BRASIL. AgRg no HC n. 748.506/PA. Relator: Ministro Rogerio


Schietti Cruz. Pará: Superior Tribunal de Justiça, 2022a. Disponível
em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_
registro=202201900943&dt_publicacao=23/08/2022. Acesso em:
20 nov. 2023.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. HC n. 734.042/SP Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior.
São Paulo: Superior Tribunal de Justiça, 2022c. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_
registro=202200992696&dt_publicacao=27/06/2022. Acesso em:
20 nov. 2023.
BRASIL. RHC n. 157.942/SP. Relator: Ministro Sebastião Reis
Júnior. São Paulo: Superior Tribunal de Justiça, 2022b. Disponível
em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_
registro=202103864976&dt_publicacao=27/06/2022. Acesso em:
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BRASIL. Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015. Dispõe
sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial
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adm?documento=3059. Acesso em: 18 set. 2018.
DE MATTOS, Karina Calixto. A audiência de custódia como medida
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de Curso (Monografia) - Faculdade Baiana de Direito e Gestão,
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FLAUZINA, Ana. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o
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– Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília,

261
Karina Calixto de Mattos

DF, 2006. Disponível em: < <https://www.cddh.org.br/assets/


docs/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf> Acesso em: 15/12/2023.
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— IBADPP. Relatório final de atividades: grupo de pesquisa
sobre audiências de custódia: Convênio de Cooperação Técnico-
Científico TJ/BA e IBADPP. Salvador: Tribunal de Justiça do Estado
da Bahia: Instituto Baiano de Direito Processual Penal, 2017.
Disponível em: http://‌www5.‌tjba.‌jus.‌br/‌unicorp/‌images/‌relatorio_‌p
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INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA (IDDD).
O fim da liberdade: a urgência de recuperar o sentido e a efetividade
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br/pesquisa-revela-o-fim-da-liberdade-nas-audiencias-de-
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MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas
cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011.
PRADO, Alessandra Rapacci Mascarenhas; LEÃO, Bernardo Sodré
Carneiro. A periculosidade na decretação de prisão preventiva por
furto em Salvador: controle racial e de classe. Rev. Bras. de Direito
Processual Penal, Porto Alegre, v. 7, n. 3, p. 1713-1749, set.-dez.
2021. Disponível em: https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/
view/627. Acesso em: 13 jul. 2021.

262
SOBRE OS/AS AUTORES/AUTORAS

Artur Ribeiro Alves


Bacharelando em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1740924114304336.
E-mail: arturribeiro497@gmail.com

Bernardo Sodré Carneiro Leão


Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós-graduando
em Direito Constitucional pela Faculdade CERS e Membro do Núcleo
de Estudos sobre Sanção Penal (NESP).
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8285595213437507.
E-mail: bernardoscleao@hotmail.com

Catharina Maria Tourinho Fernandez


Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Bacharel em Direito
pela Universidade Federal da Bahia e Bacharel Interdisciplinar em
Humanidades com ênfase em Estudos Jurídicos pela Universidade
Federal da Bahia. Advogada Criminalista.
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7803911936424564.
E-mail: catharina.fernandez@hotmail.com

263
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado |
Ney Menezes de Oliveira Filho | Fabiano Pimentel (Organizadores)

Karina Calixto de Mattos


Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito,
Bacharel em Direito pela Universidade Salvador (UNIFACS),
Professora de Direito Penal da Faculdade São Salvador (BA) e
Docente do Curso Prática na Advocacia — PNA (PB). Advogada
Criminalista.
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2868035289105580.
E-mail: karinacalixtoadv@gmail.com

Maria Louise Oliveira da Silva Ribeiro


Bacharelanda em Direito pela Universidade do Estado da Bahia e
Coordenadora de Grupo de Trabalho da 1o Vara Criminal, Júri e
Execuções Penais da Comarca de Simões Filho/BA.
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2868035289105580.
E-mail: oliveiramarialouise@gmail.com

264
Formato: 150 x 210 mm
Fonte: Myriad Pro 15, 12 e 11; Minion Pro, 11, 10 e 8
Miolo: papel Pólen Soft, 80 g/m2
Capa: papel Supremo, 300 g/m2
Impressão: dezembro 2023
Gráfica: ImpressãoBigraf
Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado
Mestra e Doutora em Direito pela PUC-SP. Bacharela em Direito
pela Universidade Federal da Bahia. F  oi pesquisadora visitante da
Universidade de Utrecht – Holanda. É Professora de Direito Penal
da Faculdade de Direito da UFBA. Integrante do Programa de Pós-
graduação em Direito da UFBA. Ex-Presidente e atual membro do
Conselho Penitenciário do Estado da Bahia. 
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2158993363327030. 
E-mail: alessandra.prado@ufba.br
Ney Menezes de Oliveira Filho
Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mestre em
Família na Sociedade Contemporânea (Programa de Pós-graduação
em Família na Sociedade Contemporânea da UCSAL – ingresso
em 2012 – 2014). Especialista em Direito do Estado. Graduação e
Bacharelado em Direito (2002 – 2007), pelo Centro Universitário
Jorge Amado. 
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1010918105635239. 
E-mail: ney1083@gmail.com
Fabiano Cavalcante Pimentel
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade
de Coimbra/IGC. Doutor e Mestre em Direito Público pela
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Especialista
em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal da Bahia. Professor Adjunto de Direito Processual Penal e
Prática Penal da Universidade Federal da Bahia e da Universidade do
Estado da Bahia. Advogado Criminalista. 
C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7922451287614596. 
E-mail: fpimentel@uneb.br

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