Mila GRE Iros

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OS MILAGREIROS

Rio de Janeiro, 24.09.2021


Durante os anos em que cursei os programas regulares de stricto sensu tive a
oportunidade de conhecer muita gente talentosa – que só conseguia estar ali – pois
contava com a bolsa paga pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (o CNPq). Fazer o curso de pós-graduação stricto sensu envolve um
expressivo grau de renúncia pessoal, de aprendizado nas relações com os docentes e
outros discentes, e de transformadora intensidade de leitura, reflexão e pesquisa. Se tudo
der muito certo, o recruta do sistema de ensino completará os anos de vinculação
institucional sem nenhum grande trauma, depressão, estresses reiterados, ganho de peso,
ou crise familiar.
Entretanto, mesmo se o êxito da conclusão se tornar realidade, nada garante que
haverá um emprego a sua espera, uma posição valiosa no próprio mundo acadêmico, ou
que o produto da pesquisa ganhe a atenção de leitores ou investidores. Trocando em
miúdos, ainda que o estudioso ingresse no seleto número de (cerca) 400 mil mestres e
200 mil doutores no Brasil – um ínfimo percentual diante de 213 milhões de brasileiros
–, a possibilidade de que a função do título alcançado seja ornar a parede de sua casa, e
nada mais, é concreta.
De outra monta, para além das pesquisas de campo, a publicação de textos em
periódicos de renome e a circulação de livros educacionais transformadores, boa parte
dos depósitos de pedidos de patentes, cultivares, topografias e circuitos integrados advém
exatamente desses bravos “guerreiros” vinculados às universidades de ponta. Ou seja, no
Brasil a inovação patrícia é profundamente vinculada a vida das Instituições de Ensino
Superior (IES). Por tal razão, quando se coteja o contingenciamento do orçamento público
destinado ao Ministério da Educação e ao Ministério da Ciência e Tecnologia, tais
contenções resultarão em déficits de investimento em pesquisa, desenvolvimento e
inovação.
Em reportagem de O Globo de 31.05.2021, os jornalistas Julia Noia e Bruno
Alfano descreveram minuciosamente a erosão nominal do orçamento do CNPq de (ambos
em bilhões) R$3,1 em 2013, para uma constante involução até atingir R$1,2. Se a
cidadania se der conta de que o processo inflacionário nesses mais de oito anos foi
depauperador, o valor real do desinvestimento é ainda mais cruel. Na prática, além disto
importar na redução do quantitativo de bolsas disponíveis, também há um reflexo no
número das próprias vagas oferecidas pelas IES, corta-se o investimento em estrutura, e
basicamente se aloca as potencialidades inovativas para o binômio “cuspe e giz”.
Diante da crise do momento alguém poderia ventilar a isonomia do “aperto de
cinto” orçamentário, visto que quase todas as rubricas, por mais importantes que sejam,
foram sujeitas a uma severa dieta. Seriam os valores de bolsa uma forma de paternalismo
estatal a enriquecer os pesquisadores? Os montantes destinados em dezembro/2020 eram
na ordem de R$400 para estudantes de graduação vinculados à iniciação científica;
R$1.500 para mestrandos; e o montante de R$2.200 para os doutorandos. Não seria este
o contexto do filme “A Festa de Babette”, e mesmo neste convescote minguado gestões
públicas das mais diversas matrizes políticas “esqueceram” de atualizar tais valores. Ou
seja, ao se dedicar com exclusividade à vida da pesquisa, os destinatários da bolsa foram
tendo que se alimentar com menos qualidade, contar com doações de parentes, improvisar
na forma de se transportarem. Quem sabe não passam a fazer fotossíntese?!
Logo, maximiza-se a elitização do acesso à pós-graduação, já que apenas os
herdeiros ou aqueles que cumularão a vida acadêmica com uma labuta paralela (também
conhecidos como malabaristas) conseguirão participar de tal experiência. Sai-se de uma
existência do pluralismo democrático-includente rumo ao viver plutocrático-excludente.
Mas como se contabiliza no plano do almejado superávit fiscal a evasão cerebrina
das inteligências nacionais que migraram para o exterior; a oportunidade desperdiçada da
jovem mente que viu a ausência de bolsas servir como barreira à entrada na IES; ou do
laboratório fechado que foi substituído por aulas puramente teóricas? As criações que
melhorariam a qualidade dos brasileiros, atentas aos problemas canarinhos (barbeiro,
esquistossomose, dengue), permanecerão in fieri?
Ao que parece, as prioridades políticas não destinam, apenas, expectativas para
que dos pesquisadores e cientistas advenham criações disruptivas. A real predileção é que
se produzam milagres.
Pedro Marcos Nunes Barbosa – Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados e Professor do
Departamento de Direito da PUC-Rio

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