Cyberpunk e Pos Modernismo
Cyberpunk e Pos Modernismo
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Adriana Amaral∗
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que o cyberpunk é uma visão de mundo atual filme Blade Runner – considerado como o pri-
que engloba literatura, música, cinema, teorias, a meiro filme cyberpunk, tanto nas concepções de
cultura jovem e a cultura da MTV e a cultura do conteúdo como de forma – originado do livro Do
PC/Macintosh. Nesse contexto, são citados Mary androids dream of eletric sheep? de Philip K.
Shelley, Philip K. Dick e J.G. Ballard, Gibson e Dick. “Somos nossa memória, mas se ela pode
outros escritores, McLuhan, Wiener, Walter Ben- ser implantada que garantia há para nossa identi-
jamin e Baudrillard como teóricos e a música de dade?” (DICK apud McCARRON, 1995, p. 264)
Patti Smith, Lou Reed, Ramones, Sex Pistols (a Este é outro ponto que McCarron (1995) des-
geração punk ) como fontes de sua influência. taca na temática cyberpunk, a questão da identi-
A visão cyberpunk reconhece o enfraqueci- dade/existência e o fim da memória privada. Se-
mento do espaço público e o aumento da priva- gundo ele, o computador, seja o hardware ou
tização da vida social, na qual os laços sociais o software, é importante por ser uma metáfora
fortes não existem mais. Para os autores, nesse para a memória humana. Ele também indica que
espaço público as pessoas são tecnologizadas e nos textos (aqui em um sentido amplo, incluindo
reprimidas ao mesmo tempo, sendo que a tecno- imagens, sons, jogos, filmes, etc) há um desdém
logia media nossas vidas sociais. É ainda mais em relação ao físico, uma fascinação com as for-
fácil de perceber tais características nas imagens mas pelas quais a carne é irrelevante comparada
mostradas nos produtos culturais como videocli- com a memória. Quanto aos personagens, eles
pes, filmes, livros, comerciais, todos enfatizando são, em sua maioria, meio humanos, meio an-
a interação e interface homem-máquina, seja via dróides e, em geral, os cyborgues são mais huma-
internet, realidade virtual, RPGs, etc. nizados que os próprios humanos. Apesar disso,
Na visão dos autores é através da hipereste- os leitores procuram a supremacia do humano em
tização do quotidiano que viemos a nos conhe- relação à máquina, justamente, como afirma Bau-
cer, através da ficção, “in an increasingly hype- drillard (1997), em função dos erros e da impre-
raestheticized everyday life, it is through vari- visibilidade das atitudes humanas em relação aos
ous fictions that we endavour to come to know seres maquínicos.
ourselves.” (FEATHERSTONE e BURROWS, McCarron (1995) lista ainda outros pontos
1995, p.13) centrais na ficção cyberpunk:
Já McCarron (1995) afirma que o cyberpunk
• Falta de interesse pela reprodução bioló-
apresenta questões filosóficas de ordem moderna
gica;
nos remetendo diretamente à dicotomia cartesi-
ana mente/corpo, no qual a mente pura apresenta • Há possibilidade de mundos paralelos;
um desprendimento puritano do corpo, sendo
• Ataque ao corpo (compra de próteses e im-
este, um acidente de percurso, desconectado da
plantes que indicam o desejo do consumo, a
substância pura da mente. Ele apresenta a in-
grande crença americana de auto-inventar-
teração humana e mecânica como indissociável
se);
e conflituosa, todavia central na narrativa cyber-
punk. • O ciberespaço é apresentado teologica-
Essa mesma narrativa, segundo ele, questiona mente;
as hierarquias humanas propondo uma diminui-
ção e, quase um borrão, nas diferenças entre ani- • Há uma sátira ao “capitalismo” e à “socie-
mais, humanos, andróides, etc. Ele cita como dade” em geral, mas, há uma utilização ex-
exemplo desse questionamento hierárquico, o tensiva dos meios de comunicação para di-
vulgar essas obras;
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No cyberpunk, a cidade aparece tanto como associação entre esse estilo literário/visual com a
um parque temático, quanto uma simulação, estrutura comercial da cultura de massa, através
combinando símbolos da era espacial de alta tec- da qual o estilo é difundido.
nologia com a visão vitoriana do crescimento de- Para finalizar as relações entre ficção-
sordenado e não planejado. A cidade aparece científica e pós-modernidade Bukatman (1998)
como uma entidade negativa, um espaço escuro afirma que tanto nas teorias pós-modernas
e superpovoado quebrado por formas de neon quanto na ficção-científica, através da sua
e estruturas corporativas, sendo claustrofóbica e linguagem – iconográfica e narrativa – o choque
monádica. Os detritos do passado reaproveitado do novo é estetizado e examinado; além disso,
misturam-se aos shopping-centers onde o tempo ambas possuem uma ahistoricização, contudo
não parece passar. O espaço terminal é o domínio com uma perspectiva crítica, pois a ficção-
do cyberpunk. científica transforma nosso próprio presente
Nesse cenário, o submundo e a escuridão da em um passado determinado de algo que virá,
rua são componentes essenciais do gênero e nos o que remonta novamente à idéia de Roberts
remontam às origens góticas da ficção-científica. (2000) de que a ficção-científica é extremamente
Roberts (2000) afirma que o ar sombrio, o estra- nostálgica e romântica.
nhamento, o sobrenatural e o etéreo são cons- Por fim, o autor explicita a relação entre a
tituintes da literatura gótica do final do século ficção-científica e os efeitos especiais tão acla-
XIX tendo em Edgar Allan Poe e em Blake al- mados e criticados por sua presença como formas
guns de seus textos fundadores. Frankestein de de convencimento fenomenológico: “Further, the
Mary Shelley aparece como o grande paradigma special effect is often a product of the very tech-
do gênero gótico, porém apontando para a ficção- nologies that the narrative attempts to explain and
científica em seus pontos mais célebres. A ques- ground.” (BUKATMAN, 1998, p.14)
tão da razão e da ciência, do progresso desorde- No que diz respeito ‘a estética, Bukatman
nado que as mesmas proporcionam ao homem, (1998) afirma que o cyberpunk tem suas ima-
a existência humana, a morte de Deus e tantas gens centradas no surrealismo, enquanto Roberts
outras idéias encontram no famoso romance um (2000) já vê a ficção-científica como um misto
modelo que ainda é citado até os dias de hoje. entre realismo e simbolismo.
Bukatman (1998) explica que essa nova repre- Nessa pequena análise entre cyberpunk e pós-
sentação do espaço (seja a cidade, seja o cibe- modernidade ainda é preciso ressaltar uma outra
respaço) aponta para uma desorientação ou des- posição que tem a ver com a atitude cyberpunk e
locamento de um mapa cognitivo para que o su- não diretamente com seus textos.
jeito possa compreender os novos termos da exis- Para Barbrook (2001), o cyberpunk nos Esta-
tência na contemporaneidade. Segundo ele, a dos Unidos é um filhote da ideologia californiana
cultura dominante é definida pela acelerada mu- da década de 60 em duas correntes que se relaci-
dança tecnológica, especialmente eletrônica. onam e se chocam, estando estampada nas atitu-
Segundo Bruce Sterling, que além de escri- des dos hackers e crackers (piratas digitais) que
tor cyberpunk também é teórico, “o novo modo acreditam no livre fluxo de informação e na pi-
do ser é o estado tecnológico da mente – techno rataria de dados. Uma outra vertente encontra-se
state of mind”. (STERLING apud BUKATMAN, na fundação da ONG EFF (Eletronic Free Fron-
1998). Para ambos esse modo do ser possui uma tiers) fundada por John Perry Barlow, ex-letrista
aproximação entre a ficção e a teoria tanto estilís- e compositor da banda hippie Greatful Dead e
tica quanto tematicamente. Isso possibilita uma atualmente lobbysta no senado norte-americano
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para o não-controle da internet pela polícia e McCARRON, Kevin. Corpses, Animals, Machi-
pelo sistema. Apresenta-se aqui uma relação en- nes and Mannequins: The Body and Cyber-
tre cowboys, hippies e cyberpunks, apenas lem- punk. In: FEATHERSTONE, Mike; BUR-
brando que o que une os dois grupos é a utopia ROWS, Roger (ed.). Cyberspace Cyberbo-
de um estado não-controlado, sendo que a EFF dies Cyberpunk. London: Sage, 1996.
prega um renascimento eletrônico da democracia
jeffersoniana misturando anti-autoritarismo ao li- McINERNEY, Jay. Brilho da noite, cidade
beralismo. grande. Porto Alegre: L&PM, 1986.
BARBROOK, Richard, CAMERON, Andy. Ca- SIM, Stuart. The Routledge Critical Dictionary
lifornian Ideology. In: LUDLOW, P (ed.). of postmodern thought. New York: Icon
Crypto Anarchy, Cyberstates, and Pirate Books, 1999.
Utopias. Cambridge: MIT Press, 2001.
WOLFE, Tom. A palavra pintada. Porto Alegre:
BENEDIKT, Michael. Cyberspace first steps. L&PM, 1990.
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