Choque 03

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3.3.

Choque de Monstro #03: das produções de si (ou cruzando as fronteiras das


subjetividades)

Como verbalizado em momentos anteriores, existe um caráter rizomático a atravessar


e comunicar os nossos choques de monstro, o que implica admitir que mesmo reservando o
subtópico em questão à discussão das produções de si, o formato não exclui a presença desse
elemento fracionado ao longo dos outros debates suscitados até aqui. Logo, temos como
pretensão afirmar que o contato com outros universos de sentidos, com outras formas de agir,
pensar e vivenciar o mundo têm sido descritos e compartilhados desde nossas primeiras
linhas, donde também não aspiramos abarcar em sua completude ao final desta etapa, sob o
risco de recair em reducionismos que contradizem nossa abordagem.
Talvez como elemento aglutinador de grande parte dos processos experienciados e
compartilhados em nosso percurso cartográfico nós possamos destacar a nossa jornada em
busca do acesso ao plano comum – que longe de ser reconhecido por sua homogeneidade ou
reunião de atores com relações de identidade entre si, mas principalmente por sua capacidade
de comunicação entre singularidades e heterogeneidades capaz de fazer emergir a
compreensão de realidades que são complexas (KASTRUP, PASSOS, 2014).
Nessa esteira cabe destacar que os caminhos até esse plano se fizeram (e ainda se
constituem) por meio de uma ampliação da sensibilidade, uma espécie de abertura, um tipo
de baixo limiar às afetações que se insinuam no campo da experiência: talvez por isso este
cartógrafo tenha sucessivas vezes sido “impregnado” por aquilo que Barros (2013a, 2013b)
veio a chamar de olhar de chão, uma atenção às miudezas, àquilo que é comumente relegado
ao esquecimento, que por vezes é solapado por outros afetos que gritam mais alto aos
sentidos. Talvez nessa “hiperalgia” aos afetos, tenhamos contraído uma variação desse olhar
do poeta, quem sabe um olhar de passarinho, uma vez que tratamos de encarar tanto as
pequenezas do chão quanto aquelas acima dele.
Poderíamos abordar com maior minúcia o volumoso número de exemplos oferecidos
em nossos relatos, mas questões relativas à exequibilidade de nosso trabalho urgem,
demandando-nos o crivo da preferência para aquilo que optamos por compartilhar. Nesse
sentido nos valemos das experiências que entendemos como desestabilizadoras, aquelas
capazes de “desfocar” nossas percepções e apropriações num primeiro momento tidas como
estanques, aquelas capazes de nos deixar permeáveis às heterogeneidades que não são
totalizáveis. Optamos então por partilhar a discussão de momentos em que nos aventuramos
no “ir e vir” de cruzar as fronteiras das subjetividades.
Narrado na carta-diário XX – Sábado de Sol (p. XX) e provavelmente com certa
pressa por parte deste cartógrafo, tratamos de rememorar agora o relato do personagem Solo
ao nos contar o causo em que por pouco não teve sua amizade abalada com outra jogadora de
Pokémon GO: “Ela [a amiga] está zangada e nem está falando comigo (risos). Um dia desses
aí eu derrubei um monte de ginásio com os Pokémon dela e ela ficou invocada” (p. XX). A
experiência vivida de estranhamento foi pouco refletida na ocasião, passando meramente por
uma avaliação limitada ao grau de envolvimento com o jogo. Em resumo, nossa afetabilidade
foi provocada, mas pouquíssimo acionada na ocasião. Até o momento praticamente não
tínhamos nos desprendido das identificações automatizadas com o que estava supostamente já
posto em nossa realidade.

O processo de formação do cartógrafo se aproxima da possibilidade de


desidentificar-se dos hábitos que são executados sem uma atenção
cuidadosa. Antes de aprender, trata-se de desprender-se. (...) é preciso
desmanchar a responsividade que nos liga à vida de forma desconectada com
a experiência. O aprendizado é literalmente corporificado e criado; requer
tempo e espaço, respiração, articulação, atenção, disponibilidade para o
desconhecido (POZZANA, 2014, p. 57).

O que pretendemos desvelar com o exemplo citado é a facilidade com que damos
respostas aos processos acompanhados em campo e como nem sempre estas conseguem ser
desnaturalizadas: os padrões, o normativo, as zonas de conforto, os estereótipos e a própria
noção de racionalidade nos reposicionam por sobre a linear estrada das convenções e
literalmente nos cegam para a multiplicidade que ganha formas na experiência. Ao passo que
demos corpo à nossa prática cartográfica, que despimos os sentidos para os afetos e
oferecemos-nos como passagem ao desconhecido, ao estranho, é que alcançamos, de fato, os
processos e a riqueza de significados e realidades que eles são capazes de oferecer. Agora
experienciada, predada e digerida, a condição de sentir, de ser afetado pelos Pokémon
derrubados dos ginásios (situação que vivenciamos inúmeras vezes após o episódio) nos
coloca sob outra perspectiva, nos propõe uma espécie de empatia ou mesmo de alteridade em
relação à amiga que Solo quase perdeu: permitimos-nos então tocar por outras singularidades
e, portanto, ampliar nosso universo. Permitimos-nos acessar um plano comum.
Como sintetizam Kastrup e Passos (2014), “o plano comum envolve então ampliação e
alargamento das subjetividades pela conexão com singularidades heterogêneas e semióticas
até então estranhas” (p. 37). Assim, entendemos que nos movimentos e circularidades que
envolvem os entrecruzamentos de singularidades e semióticas diversas, há uma parcela de
permeabilidade, de sintonia entre ritmos, de conexões que implicam a habitação de um
território existencial.
Por conseguirmos tatear tal plano, também tivemos aguçadas nossas percepções para
uma série de características dos personagens com os quais constituímos esses momentos.
Dentre essas, destacamos as relacionadas ao conjunto de códigos partilhados pelo grupo de
jogadores: expressões idiomáticas, coloquialismos, gracejos, mas também códigos que se
revelam em posturas corporais, em trejeitos e sutis movimentos que conseguimos interpretar
por meio de uma comunicação que se estabelece numa mediação por referentes do próprio
jogo Pokémon GO – como o olhar cabisbaixo em direção à tela do smartphone, as mudanças
de direção nas caminhadas justamente para os locais onde se avistaram Pokémon cobiçados
ou mesmo o suave girar da digital do indicador ao realizar o arremesso de uma Pokébola
curva. Para além das percepções, foi o próprio contágio através do uso que nos revelou tais
idiossincrasias.
Como exemplificamos nas cartas-diários, a comunicação entre os jogadores encontra-
se permeada de gírias e expressões específicas, fenômeno que culmina numa espécie de
dialeto próprio entre os personagens do meio: vão desde miscelâneas com a língua inglesa
(lure, candy, dust, buddy, spammar, shine, counter, fly etc.) até apropriações de termos já
conhecidos e ressignificados conforme as dinâmicas e interações deflagram remodelagens
(“derrubar” ginásios, “deitar” chefes de Reide). Além de permitirem a fluência da
comunicação, tais códigos também se apresentam como elementos de identificação e
reconhecimento entre seus usuários.
Figura XX: exemplos das redes de compartilhamento de informações entre os Treinadores. Fonte: Acervo
pessoal.

A partir dos fragmentos mostrados acima, oferecemos exemplos das variadas


dinâmicas de compartilhamento de informações dos jogadores de Pokémon GO para além das
interações ocorridas enquanto praticam o jogo. Na primeira das três imagens, um dos
Treinadores divulga no grupo a captura de um Pokémon da espécie Rhyhorn detentor de
estatísticas em seu grau mais elevado (15 em ataque, 15 em defesa e 15 em estamina). A
atitude do jogador em questão é repetida por inúmeros outros frequentemente, onde dividem a
localização de monstrinhos raros ou poderosos para que outros membros também possam
adquiri-los.
Na imagem ao centro da composição, está talvez a dinâmica mais presente nos grupos:
o compartilhamento e convite para batalhas de Reide no jogo. Como elas possuem um
temporizador que define sua expectativa de abertura e duração, os prints ajudam outros
Treinadores a programarem-se para o evento e também combinar questões relativas ao
quórum, uma vez que grande parte dos chefes de Reide necessitam da cooperação de vários
jogadores para que possam ser derrotados. É comum que nessas interações sejam feitas listas
de quantos membros podem comparecer e quantas contas serão usadas na batalha.
Comumente também se divulgam os proveitos resultantes das recompensas (Pokémon
capturado no desafio de bônus, doces raros, frutas douradas etc.).
Já a terceira imagem corresponde à divulgação de Poképaradas que oferecem missões
com recompensas valorizadas pelos jogadores: Pokémon poderosos, doces raros, poeira
estelar etc. Assim, ao girar o fotodisco de alguma Poképarada, o jogador registra a missão no
sistema de pesquisa de campo e também compartilha com seus pares.
Figura XX: um exemplo da autoidentificação como “canela” por parte dos jogadores. Fonte: Acervo pessoal.

O relato trazido logo acima corresponde a um trecho de uma conversa em um grupo de


WhatsApp de Treinadores de Teresina, onde os membros comemoravam a recente inclusão de
Pokémon regionais da primeira geração em ovos de 7 quilômetros (as espécies Mr. Mime,
Kangaskahn e Tauros). Como estes eram acessíveis apenas para jogadores no exterior
(Europa, Oceania e América do Norte, respectivamente) ou para usuários de fly, a novidade
foi bem recebida pela comunidade. No episódio, vários jogadores demonstraram empolgação
pela possibilidade de completar a Pokédex de Kanto (relativa aos 151 primeiros Pokémon)
sem necessidade de viagens internacionais, de fornecer o acesso à conta do jogo para usuários
dos respectivos continentes ou mesmo de utilizar artifícios tidos como proibidos pela política
da desenvolvedora do aplicativo.
Além do otimismo, outro fator observado foi o relativo a uma espécie de “orgulho” em
serem jogadores presenciais, os vulgos canelas1. As declarações partiram especialmente após
parte dos Treinadores constatarem que estariam sendo recompensados pela paciência em jogar
“honestamente”, sem a necessidade de fazer uso de simuladores ou outras ferramentas. Ficou
então verbalizada a importância dada à performance nesse universo existencial, ao papel que
ela compõe conjuntamente aos variados elementos que competem e se atravessam para

1
termo coloquial popular nas redes sociais e grupos de aplicativos mensageiros para os Treinadores que se
deslocam “fisicamente” durante a prática do jogo.
compor a dinâmica da atividade sob a perspectiva presencial em Pokémon GO. Assim,
entendemos que:

Não basta o jogo e o espaço heterotópico que permite o acontecimento do


jogo. É também necessário que o sujeito se permita atuar nessa tríade. É
necessária sua performance para que o círculo mágico seja atravessado e o
sujeito fique imerso no jogo, criando uma temporalidade e uma
espacialidade própria de jogo alheia ou fundida com o espaço-temporal da
realidade concreta (OLIVEIRA, 2015, p. 74).

Para além do momento especificado na conversa anterior, é notório nas diversas


interações (sejam em Reides, eventos ou nas redes sociais) a ênfase na performance como
elemento de auto-referenciação entre os Treinadores com os quais vivenciamos e
acompanhamos processos: percebemos um certo prazer em carregarmos a alcunha de canelas
de afirmarmos as distâncias percorridas em uma tarde encalorada ou simplesmente
compartilhar os causos de acidentes ou situações inusitadas durante os deslocamentos.
Assim como o processo de inventar-se como Treinador Pokémon, notamos certa
correlação com a invenção do corpo-mundo do cartógrafo, das aberturas e porosidades aos
afetos que nos interpelam nas dinâmicas e que exigem um corpo performático, um devir-
andarilho capaz de conectar-se aos elementos heterogêneos que se arremetem conforme
enfrentamos a realidade e as incertezas do mundo vivido. Logo, evidenciamos a imbricação
que prevalece nesse duplo Treinador/cartógrafo:

Cartografar é conectar afetos que nos surpreendem e, para tanto, na


formação do cartógrafo é preciso ativar o potencial de ser afetado, educar o
ouvido, os olhos, o nariz para que habitem durações não convencionais, para
além de sua função sensível trivial, ativando algo de suprassensível,
dimensão de virtualidade que só se amplia à medida que é exercitada. O
cartógrafo, assim, vai criando corpo junto com a pesquisa. Trata-se de
ganhar corpo para além da funcionalidade orgânica, biológica. Algo se
passa, algo de virtual pode ser acessado, e aí está o corpo, o mundo e o
tempo que passa (POZZANA, 2014, p. 63-64).

Por fim, convém a este cartógrafo depositar algumas ressalvas em relação à prática do
fly (uso de aplicativos para simular a geolocalização dos usuários, ou meramente “fake
GPS”): apesar de inúmeros relatos de personagens desmerecendo a atividade ao longo das
cartas-diários – e vez ou outra questionada e também refutada pelo pesquisador na qualidade
de Treinador –, prezamos por deixar claro que não renegamos as subjetividades possivelmente
engendradas por/nessa maneira de jogar Pokémon GO, apenas se trata de que o presente
trabalho não alcança esse plano comum e em decorrência disso é incapaz de produzir dados
substanciais para interpretações mais profundas. Por outro lado, mesmo que minimamente,
ressaltamos a faceta desviante dessa prática, seu caráter subversivo e de microrresistência às
regras usualmente impostas no jogo.

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