Choque 03
Choque 03
Choque 03
O que pretendemos desvelar com o exemplo citado é a facilidade com que damos
respostas aos processos acompanhados em campo e como nem sempre estas conseguem ser
desnaturalizadas: os padrões, o normativo, as zonas de conforto, os estereótipos e a própria
noção de racionalidade nos reposicionam por sobre a linear estrada das convenções e
literalmente nos cegam para a multiplicidade que ganha formas na experiência. Ao passo que
demos corpo à nossa prática cartográfica, que despimos os sentidos para os afetos e
oferecemos-nos como passagem ao desconhecido, ao estranho, é que alcançamos, de fato, os
processos e a riqueza de significados e realidades que eles são capazes de oferecer. Agora
experienciada, predada e digerida, a condição de sentir, de ser afetado pelos Pokémon
derrubados dos ginásios (situação que vivenciamos inúmeras vezes após o episódio) nos
coloca sob outra perspectiva, nos propõe uma espécie de empatia ou mesmo de alteridade em
relação à amiga que Solo quase perdeu: permitimos-nos então tocar por outras singularidades
e, portanto, ampliar nosso universo. Permitimos-nos acessar um plano comum.
Como sintetizam Kastrup e Passos (2014), “o plano comum envolve então ampliação e
alargamento das subjetividades pela conexão com singularidades heterogêneas e semióticas
até então estranhas” (p. 37). Assim, entendemos que nos movimentos e circularidades que
envolvem os entrecruzamentos de singularidades e semióticas diversas, há uma parcela de
permeabilidade, de sintonia entre ritmos, de conexões que implicam a habitação de um
território existencial.
Por conseguirmos tatear tal plano, também tivemos aguçadas nossas percepções para
uma série de características dos personagens com os quais constituímos esses momentos.
Dentre essas, destacamos as relacionadas ao conjunto de códigos partilhados pelo grupo de
jogadores: expressões idiomáticas, coloquialismos, gracejos, mas também códigos que se
revelam em posturas corporais, em trejeitos e sutis movimentos que conseguimos interpretar
por meio de uma comunicação que se estabelece numa mediação por referentes do próprio
jogo Pokémon GO – como o olhar cabisbaixo em direção à tela do smartphone, as mudanças
de direção nas caminhadas justamente para os locais onde se avistaram Pokémon cobiçados
ou mesmo o suave girar da digital do indicador ao realizar o arremesso de uma Pokébola
curva. Para além das percepções, foi o próprio contágio através do uso que nos revelou tais
idiossincrasias.
Como exemplificamos nas cartas-diários, a comunicação entre os jogadores encontra-
se permeada de gírias e expressões específicas, fenômeno que culmina numa espécie de
dialeto próprio entre os personagens do meio: vão desde miscelâneas com a língua inglesa
(lure, candy, dust, buddy, spammar, shine, counter, fly etc.) até apropriações de termos já
conhecidos e ressignificados conforme as dinâmicas e interações deflagram remodelagens
(“derrubar” ginásios, “deitar” chefes de Reide). Além de permitirem a fluência da
comunicação, tais códigos também se apresentam como elementos de identificação e
reconhecimento entre seus usuários.
Figura XX: exemplos das redes de compartilhamento de informações entre os Treinadores. Fonte: Acervo
pessoal.
1
termo coloquial popular nas redes sociais e grupos de aplicativos mensageiros para os Treinadores que se
deslocam “fisicamente” durante a prática do jogo.
compor a dinâmica da atividade sob a perspectiva presencial em Pokémon GO. Assim,
entendemos que:
Por fim, convém a este cartógrafo depositar algumas ressalvas em relação à prática do
fly (uso de aplicativos para simular a geolocalização dos usuários, ou meramente “fake
GPS”): apesar de inúmeros relatos de personagens desmerecendo a atividade ao longo das
cartas-diários – e vez ou outra questionada e também refutada pelo pesquisador na qualidade
de Treinador –, prezamos por deixar claro que não renegamos as subjetividades possivelmente
engendradas por/nessa maneira de jogar Pokémon GO, apenas se trata de que o presente
trabalho não alcança esse plano comum e em decorrência disso é incapaz de produzir dados
substanciais para interpretações mais profundas. Por outro lado, mesmo que minimamente,
ressaltamos a faceta desviante dessa prática, seu caráter subversivo e de microrresistência às
regras usualmente impostas no jogo.