Historia Espacial
Historia Espacial
Historia Espacial
1. Introdução
2. O Espaço como alegoria e seus
Antes mesmo do advento da tecnologia de modelagem conceitos práticos
3D, a característica mais notável ao se observar os
jogos eletrônicos era, sem dúvida, a sua capacidade de
Ao propor o estudo do espaço nos jogos, é preciso
simular espaços. Desde os jogos abstratos com
pensar nas variadas definições e atribuições que o
objetivos simples como Space Invaders (1978) ou
campo dos estudos de jogos eletrônicos dá ao espaço.
Tetris (1984) até chegar à criação de mundos fictícios,
Ao buscar diferenciar o espaço lúdico do espaço físico,
habitados por personagens, diferentes lugares e
a conclusão mais forte a que se chega, é a de que a
construções e a possibilidade de se interagir com estes,
diferença reside nas “regras” que acompanham o
como em The Elder Scrolls: Arena (1994) e
mundo do jogo, bem como nas convenções flexíveis
Planescape: Torment (1999). As suas diferenças
deste. Enquanto no espaço “real” apenas as leis da
podem ser vistas através da forma como seus espaços
física estão presentes, e as únicas regras são as sociais:
foram planejados.
“Vou tratar a representação espacial nos jogos
Principalmente se levarmos em conta jogos que
eletrônicos como uma operação redutiva que leva a
tentam construir um mundo explorável e aberto, como
uma representação do espaço, não sendo espacial em si
os dois últimos citados no parágrafo anterior,
mesma, mas sim simbólica e baseada em regras.”
observamos uma forma de jogar que mistura a
(AARSETH, 2001, traduzido pelo autor1).
curiosidade e expectativa da exploração; a apreciação,
Espen Aarseth considera o espaço jogável uma
por assim dizer, de objetos e ambientes criados nos
“alegoria do espaço físico”: “Jogos eletrônicos são,
jogos, que transmitem informações e sensações finalmente, alegorias do espaço: eles fingem retratar o
próprias; e o prazer da interação e seus diversos níveis espaço de maneiras cada vez mais realistas, mas
e possibilidades: desde os mais óbvios, como destruir
dependem do seu desvio em relação à realidade para
inimigos, até construir cidades virtuais, conversar com
tornar a ilusão jogável.” (AARSETH, 2001). Todo o
personagens, ou ter uma experiência quase sociológica
argumento de Aarseth gira em torno da idéia que
ao conhecer uma sociedade fictícia e seus costumes,
também usarei neste trabalho: a de que o espaço
como é possível em The Elder Scrolls III: Morrowind
(2002).
Já que os jogos tendem a ser extremamente 1
“I will posit spatial representation in computer games
heterogêneos no que se refere ao nível de elaboração as a reductive operation leading to a epresentation of
dos seus espaços e à caracterização destes, baseada em space that is not in itself spatial, but symbolic and
universos ficcionais, fica difícil definir um conjunto rule-based.”
desenhado nos jogos é uma característica primordial em um determinado espaço, desde o Xadrez e outros
para entender como sua estrutura funciona. Todos os jogos de tabuleiro, além de esportes praticados desde a
elementos que habitam o jogo; o jogador, os antiguidade. Embora um dos autores do artigo que
antagonistas, suas fronteiras, a paisagem, ou a falta defende essa hipótese (Henry Jenkins) já tenha
dela; cada um deles estabelece uma relação única com chamado atenção em outros de seus trabalhos para
o espaço – mesmo que seja de negá-lo, como acontece fatores como a exploração, é importante levar em conta
quando o jogo é interrompido por pequenos filmes um adendo importante, colocado por Steffen P. Walz
com conteúdo narrativo (cutscenes). (2010):
O conceito de que a simulação do espaço precisa
conter regras que se diferenciem do “mundo real” para “... consideramos altamente questionável
ser uma ilusão jogável, faz parte da idéia de que jogos dizer que todos os jogos digitais contêm
possuem regras e mecânicas próprias, e que quando disputas [...] Também temos dúvidas se
elas deixam de funcionar, ou são quebradas, a ilusão se todos os jogos são inspirados em esportes.
quebra junto. É exatamente o conceito descrito por Considere, por exemplo, atividades como a
Salen e Zimmerman (2004) no livro “Rules of Play- interpretação de papéis (role-playing) ou
Game Design Fundamentals”, chamado por eles de exploração, que não necessariamente
“círculo mágico” (magic circle). Quando um ou mais envolvem tentativas de ganhar de um
jogadores começam a jogar, um espaço é criado, seja adversário.” (WALZ, 2010, traduzido pelo
na imaginação, no computador ou no tabuleiro. Há autor3)
uma suspensão de descrença, parecida com a causada
por filmes e livros, que nos faz imergir em suas O ato de explorar ambientes, ou de interpretar papéis,
histórias. Nos jogos, a imersão vem acompanhada de criar seu próprio personagem, ou construir um castelo
regras estabelecidas pelo jogo e, nesse mundo paralelo, virtual, são ações que podem ser desenvolvidas em
elas são inquebráveis. diversos jogos, mas que não caracterizam uma disputa
Outra idéia a ser notada é que o espaço descrito de espaço. Um mesmo jogo pode abrigar
aqui não é sinônimo de “lugar”. Um lugar é uma possibilidades de ganhar/perder, mas ele todo não é
limitação dentro do espaço, que é um conceito mais do necessariamente construído em torno dessa idéia.
que algo físico. Para fins práticos dentro do design do Uma última forma de entender o espaço que pode
jogo, isso significa que o espaço pode ser aproveitado ser considerada é a de que ele pode ser usado como
não só como uma plataforma para a arquitetura de uma plataforma para “arquitetar” narrativas. Este
ambientes imersivos, mas também para objetos e conceito é uma evolução em relação à idéia de que o
agentes que habitem esse ambiente. Entre eles o jogo perfeito seria uma narrativa interativa que se
próprio jogador. O design de jogos busca sempre ser assemelhasse à romances, porém acompanhados de um
orientado a quem joga , analisando suas possíveis sistema imersivo que possibilitasse o jogador a
reações e incorporando as conclusões na estrutura do “entrar” na narrativa, através de mecanismos de
jogo (através do processo de playtesting, por exemplo, realidade virtual (MURRAY, 1997). A idéia de
no qual os designers observam pessoas jogarem arquitetar narrativas (PEARCE, 2002; JENKINS,
protótipos do jogo, fazendo mudanças de acordo com o 2004), no entanto, é um conceito mais adequado, pois
que observam). Isso não quer dizer que, quando se fala engloba possibilidades que o espaço dá para que a
da estruturação do espaço, a experiência do usuário narrativa aconteça.
será fabricada. A experiência é construída apenas pelo O que sabemos que o espaço simulado no jogo
jogador. O que o desenvolvedor do jogo faz é “apenas possibilita é, ao menos, uma experiência de navegação,
desenhar as estruturas e o contexto no qual o jogo exploração e interação com ambientes criados a partir
acontece, moldando indiretamente as ações dos de computação gráfica, com mecânicas próprias.
jogadores” (SALEN e ZIMMERMAN, 2004, traduzido Também é claro que esse ambiente pode ter diferentes
pelo autor2). Este é o conceito de “espaço de tipos de adereços, paisagens e aparência própria, o que
possibilidades” também descrito por Salen e é especialmente significativo para jogos que pretendem
Zimmerman, que é usado por eles em conjunto com o criar “mundos”, com cidades, personagens que
conceito de “emergência”. Segundo os autores, um perambulam arbitrariamente por diversos lugares e
design de regras e de espaço extremamente simples, com os quais o jogador pode dialogar, através de um
como o de Pong (1972), pode gerar infinitas sistema próprio. Exemplos de jogos assim são Fallout
possibilidades, quando unida à agência do jogador. (1997) ou The Elder Scrolls IV: Oblivion (2006).
Parte deste potencial mora, sem dúvida, na Ambos os jogos, desenvolvidos pela Bethesda
característica dos jogos de simularem “espaços
disputados” (contested spaces) (JENKINS e SQUIRE,
2002). Teoricamente, a idéia de jogo estaria 3
“… we consider it highly questionable that all digital
intimamente ligada à idéia de uma disputa realizada games contain contests, especially considering of our
discussion of play pleasures. We are also skeptical of
the assertion that all games are inspired by sports.
2
“… only design the structures and contexts in which Consider, for example, activities such as role-playing
play takes place, indirectly shaping the actions of the or exploration, which do not necessarily involve the
players”. attempt to beat an opponent.”
Softworks, tomariam várias horas do jogador apenas Fludernik traça uma série de critérios e conceitos
para percorrer os seus terrenos de ponta a ponta. Jogos narratológicos para chegar a uma definição geral de
desse tipo se constroem numa estrutura totalmente narrativa:
aberta, que funciona, na verdade, como uma teia que
interliga pontos de interesse, aos quais o jogador pode “Uma narrativa (Fr. récit; Ger.
se dirigir na ordem que bem entender. Sua estrutura Erzählung) é uma representação de um possível
labiríntica desafia o conceito de narrativa, mas sem mundo em um meio lingüístico e/ou visual, no
dúvida nenhuma eles conseguem construir uma centro da qual está um ou vários protagonistas
mitologia em relação à sua própria ficção e à origem de natureza antropomórfica, ancorados
do mundo, sua história, sua situação atual e às pessoas existencialmente num sentido temporal e
que o habitam. espacial e que (na maioria das vezes) realizam
Seja lá qual for a razão, desde os primórdios da ações objetivas (ação e estrutura da trama). São
história dos jogos, os seus desenvolvedores tentaram nas experiências destes protagonistas que as
embutir personagens e histórias nos seus jogos. Mais narrativas se focam, permitindo a imersão dos
do que isso, jogos com uma história própria tendem a leitores num mundo diferente e na vida dos
estar entre os mais vendidos e mais adorados pelos fãs protagonistas.” (FLUDERNIK, 2009, p. 6,
e crítica a cada ano que passa. O espaço parece admitir traduzido pelo autor5).
alguns elementos do que pode se chamar “história”,
admite a construção de um mundo ficcional, e talvez
consiga abrigar diálogos, personagens, etc. Mas como Quando se chega ao papel do narrador, a conclusão,
isso acontece? E qual é a diferença entre a narrativa porém é que qualquer jogo, mesmo que abrigasse
fundamentalmente linear do cinema e da literatura, em momentos narrativos, abrigaria também partes em que
comparação ao que seria nos jogos, com sua a convivência com a interatividade não seria possível,
interatividade? O que é certo, é que o espaço oferece já que “o discurso narrativo modela o mundo narrado
novas possibilidades, e, ao procurarmos compreender o criativamente [...] particularmente através da
conceito de história espacial, é preciso dialogar reconfiguração da ordem temporal na qual os eventos
diretamente coma teoria narratológica, para se dão” (FLUDERNIK, 2009). A narração envolve,
entendermos como a narrativa funciona (ou não) num portanto, um estabelecimento de significado, ao qual se
mundo interativo. chega através de um discurso narrativo (não
necessariamente um narrador). Nos jogos, embora isso
3. Histórias não narradas e o seja possível, não é possível sempre. Embora possa se
discutir o desenho espacial feito pelos desenvolvedores
momento pré-narrativa do jogo como uma possível forma de discurso
narrativo, o mesmo não se pode falar das ações e
O espaço modelado nos jogos abriga uma reações do jogador. Estas se dão a partir de
multiplicidade de possibilidades de interação que mecanismos extra-narrativos, que partem do interator,
possuem potencial lúdico. Seja na tela única de Tetris e não de uma narração.
(1984) ou nos mundos aleatórios e virtualmente Ao separar a narração em três tempos: o tempo da
infinitos gerados em Minecraft (2010), a organização história, o tempo em que é contada e o tempo em que é
do espaço é fundamental para que haja uma lida/assistida, Jesper Juul mostra que, nos jogos, estes
jogabilidade gratificante. No entanto, ainda fica a três tempos são simultâneos. Por se tratar de uma
questão da narrativa: a navegação espacial pode se aliar simulação interativa, o tempo da história é “revivido”
a ela? no agora, o tempo em que é “contada” é sempre o
O que podemos afirmar com certa segurança, é que agora (pois os eventos acontecem de acordo com a
os jogos não devem ser incluídos na categoria de ação imediata do jogador) e o tempo em que é
“narrativas” da mesma forma que filmes, peças de lida/assistida (ou, no caso, jogada) é também o agora.
teatro ou livros, pois “as características dos jogos são Já que a narrativa estabelece um laço com o passado (já
incompatíveis com algumas das definições de narrativa que é uma “recontação”), isso significa que “você não
mais amplamente aceitas dadas pela narratologia” pode ter interatividade e narração ao mesmo tempo”
(FRASCA, 2003, traduzido pelo autor4). O que (JUUL, 2001).
aceitamos como fato neste artigo é que narrativa e
jogos possuem similaridades e campos de interseção
(como a construção de mundos fictícios e a 5
A narrative (Fr. récit; Ger. Erzählung) is a
possibilidade de abrigar seqüências de eventos).
representation of a possible world in a linguistic and/or
As próprias definições de narrativa estudadas
visual medium, at whose centre there are one or
pela narratologia parecem ser bem amplas e
several protagonists of an anthropomorphic nature
abrangentes quando comparadas entre si. Em “An
who are existentially anchored in a temporal and
Introduction to Narratology”, porém, Monika
spatial sense and who (mostly) perform goal-directed
actions (action and plot structure). It is the experience
4
“… the characteristics of games are incompatible of these protagonists that narratives focus on, allowing
with some of the most widely accepted definitions of readers to immerse themselves in a different world and
narrative provided by narratology”. in the life of the protagonists.
Embora Juul esteja certo de acordo com a maioria de seus objetos e habitantes são constituídos de
definição de narrativa com a qual estamos trabalhando, blocos, e muitos destes podem ser extraídos e
o processo de narração, ou o discurso narrativo, é um recolocados em diferentes lugares para erguer
meio pelo qual o leitor/espectador tem a experiência construções. O jogo mistura sobrevivência com
da história. Por mais que durante as ações de um exploração, além da mecânica de mineração e coleta de
jogador o processo narrativo não possa ocorrer, isso recursos para construir objetos e edifícios. Seu mundo
não significa que os elementos da história como é totalmente aberto e virtualmente infinito, já que seu
eventos, personagens e ações também não possam. Os terreno é gerado aleatoriamente, atingindo vários
jogos podem conter mundos interativos ricos em quilômetros quadrados de extensão. O jogador é
possibilidades. Estes espaços podem se propor a “solto” nesse espaço e, a partir da exploração, pode
retratar um universo ficcional próprio. Não é o fato de coletar rescursos como madeira, ferro, ouro e
não poderem ser chamados de “narrativas” que os diamantes. Os recursos são usados para construir
impede de abrigar personagens, eventos significativos, pequenos artefatos como portas ou janelas, armas como
e, quem sabe, até mesmo tramas mais complexas. espadas ou arcos, picaretas para minerar mais rápido,
Focaremos-nos, porém, a partir de agora, em como machados para cortar madeira, etc. O jogador pode
estes mundos ficcionais podem evocar efeitos também usar determinados recursos para erguer e
possíveis apenas através da exploração e ornamentar suas construções, que podem ter o tamanho
experimentação com as propriedades espaciais dos de uma pequena casa, ou atingir a altura de uma
jogos. montanha.
O jogador (que controla um avatar, ou seja,
Ao assumirmos que jogos não são narrativas puras, é um modelo de personagem que simula um habitante do
mais adequado, a partir de agora, usarmos apenas o mundo do jogo) precisa construir seu próprio abrigo, já
termo “história”, nos referindo a um universo ficcional que o jogo simula um sistema de dia e noite. E quando
cujos elementos se manifestam dentro de um espaço a noite cai, criaturas perigosas ocupam qualquer lugar
navegável. Os personagens, a trama, os ambientes e os aberto e não iluminado. Uma vez com seu abrigo
eventos podem exercer suas funções de diversas construído, a maioria dos jogadores começa a explorar
maneiras. Não é incomum encontrar jogos que fazem cavernas e minas subterrâneas, tentando coletar
uso constante de cutscenes, seqüências narrativas materiais para construir novos artefatos ou edifícios.
editadas como se fossem pequenos filmes, que As criaturas agressivas também ocupam os níveis
interrompem a jogabilidade e “obrigam” o jogador a subterrâneos, ou seja, minerar é uma atividade
assistir o que a história precisa dizer. Em outros potencialmente lucrativa, mas também perigosa. Na
momentos, o jogador pode precisar ler textos ou Ilustração 1, vemos uma fortaleza construída
interagir com personagens através de sistemas de inteiramente pelo jogador. O sistema de blocos do jogo
diálogos interativos. Nos focaremos, porém, nas funciona da seguinte maneira: você coleta inúmeros
formas de manifestação dos elementos da história que blocos feitos de diferentes materiais com suas
se dão através da exploração e da interação com o ferramentas (machado, pá, picareta, etc.), e pode
espaço. empilhá-los para erguer construções. No canto inferior
direito está um segundo jogador: Minecraft pode
abrigar mundos compartilhados através de servidores
hospedados na internet.
Ilustração 1 6
6 7
Fonte: http://left-dead- Fonte:
games.blogspot.com/2011/04/mais-2-milhoes-de- http://www.youtube.com/watch?v=MfReRe1fzPo
jogadores-compraram.html (acessado 7/6/2011). (acessado 8/6/2011).
Logo após o seu lançamento, Minecraft obteve uma pode ser apresentada em vários formatos. A
fama assustadoramente grande para um jogo barato e história de vida de Charlemagne pode ter sido
independente. Hoje é um dos jogos distribuídos contada de numerosas maneiras em diferentes
digitalmente mais comprados no mundo. É muito trabalhos históricos, e a história da Branca de
comum encontrar em sites como o Youtube vídeos de Neve na versão dos Irmãos Grimm é totalmente
jogadores que gravaram suas experiências. Esses diferente das versões modernas retrabalhadas
vídeos são muito acessados pela comunidade de ou de paródias do conteúdo da história.”
jogadores de Minecraft, que se organiza em sites onde (FLUDERNIK, 2009, p. 13, traduzido pelo
compartilham também fotos, projetos de construções, autor9).
tutoriais sobre o jogo, modificações que acrescentam
mecânicas novas à jogabilidade, etc. Por oferecer Assim como a vida de Charlemagne ou a história de
possibilidades quase infinitas e valorizar a criatividade, Branca de Neve, a “vida” de um jogador no mundo de
os jogadores se sentem motivados a mostrar as Minecraft pode servir de matéria prima para uma
construções que planejaram e ergueram bloco por narrativa. Isso significa que pode sim haver uma
bloco. Na Ilustração 2, é possível ter a noção das aproximação forte entre o mundo da ficção e o dos
possibilidades que Minecraft guarda. A figura mostra jogos. Esse fato é significativo quando pensamos que
uma cidade construída por um grupo de jogadores de se o ato de jogar não pode coincidir com o ato de
um mesmo servidor. Eles gravaram um vídeo narrar, ele pode ser um momento anterior à narrativa,
mostrando todo o processo, obtendo centenas de um momento pré-narrativa. Uma história que se
milhares de visualizações. constrói sem a interferência da narração, que se forma
E por ser um jogo que oferece tesouros (e perigos), no próprio momento em que se joga. Isso é o que
os usuários também estão interessados em saber como chamamos aqui de “história espacial”.
os outros jogadores se saíram em suas aventuras. Em Isso exige que desenvolvamos novas maneiras
outros vários exemplos, jogadores podem gravar de produzir sentido para os jogos. O ato de narrar é o
expedições a cavernas subterrâneas cheias de monstros, que reconstrói os fatos e conta-os numa ordem
a procura de recursos raros como ouro ou diamantes8. específica para gerar emoções e/ou discursos de acordo
Na minha própria experiência com o jogo, uma das com a vontade do autor. O que não quer dizer que os
primeiras vezes em que achei uma caverna subterrânea, jogos não possuam suas próprias regras internas, ou
uma série de eventos de diferentes valores aconteceu: que não possam ser manipulados de forma a construir
primeiro achei pela primeira vez uma jazida de experiências específicas. Como Espen Aarseth defende
diamante, extremamente rara no mundo de Minecraft. (2001), é o tipo de alegoria que o jogo faz do espaço
Corri até ela para mineira-la, mas assim que me virei, que nos diz que tipo de experiência acharemos nele. As
um monstro apareceu ao meu lado, me obrigando a suas regras internas e a sua forma de se organizar
correr rapidamente na direção contrária. Como a área espacialmente definirão como a interação será: espaços
estava sem iluminação, acabei me encontrando num fechados, mundos abertos, labirintos, etc.
beco sem saída e, no desespero, despenquei em um
buraco que não havia visto. Usei uma tocha para
clarear o lugar, mas diversos monstros já corriam em 4. O espaço e a transmissão
minha direção, causando a morte imediata e brutal do informações
meu pequeno avatar.
O que descrevi do meu jogo e os vídeos que os Os momentos vividos pelo jogador durante sua
jogadores fazem de suas aventuras, são nada menos experiência podem ser preenchidos de sentido de
que narrativas. Ao transportar a interação que acontece diversas maneiras. O espaço a sua volta não é estático:
num espaço e num tempo definido, o jogador rearranja ele é dinâmico, podendo conter informações, transmitir
os eventos em um formato específico, que pode ser emoções e causar mudanças nas sensações do jogador.
encarado como um discurso narrativo. A As formas arquitetônicas das casas de uma vila virtual,
simultaneidade dos tempos da história é quebrada, pois um edifício que desaba, um animal que cruza o
é adicionado um novo tempo para o ato de contar, caminho pelo qual se está passando: o jogo transmite
através do vídeo, texto, etc. Ao discutir o conceito de informações o tempo todo, essas informações fazem
história em relação ao de narrativa, Monika Fludernik parte da experiência de se explorar um mundo virtual.
afirma que, dentro do discurso narrativo, a história O pesquisador Henry Jenkins, do MIT, lista
reporta, representa ou significa: em seu artigo uma série de maneiras pelas quais os
jogos serviriam como plataformas para
“Essas distinções nos permitem, por exemplo, desenvolvimento de narrativas espaciais (JENKINS,
levar em consideração que a mesma história
9
“These distinctions enable us, for example, to
8
Para um exemplo desse tipo de vídeo, o site de account for the fact that the same story can be
http://www.coisadenerd.com.br faz uma série chamada presented in various guises. The life story of
“Diários de Minecraft”, na qual o proprietário do site Charlemagne of Snow White in Grimm’s version is
mostra suas aventuras e construções em vários vídeos totally different from modern reworkings or parodies
semanais. of the story’s content.”
2004). Usarei dois dos exemplos citados por Jenkins: emoção, seja medo, curiosidade, tensão, apreensão,
histórias “evocativas”, quando um jogo se passa em um repulsa, etc. Não é preciso acreditar que os jogos
universo previamente estabelecido em outra obra de podem narrar como filmes ou livros para pensar que
ficção (um filme, livro, etc.), evocando suas eles podem transmitir sensações tão bem quanto eles. O
características; e as histórias “integradas”, ou que muda é a natureza da imersão: se o jogador se
“embutidas”, uma forma de espalhar elementos pelo sente dentro da experiência de habitar um mundo
espaço e fazer o jogador pensar sobre a história do jogo fictício, grande parte disso pode ser devido à
a partir do que esses elementos transmitem a ele. Aqui, caracterização e atmosfera criadas nos seus espaços.
abandonaremos a idéia de narrativa para nos focarmos Além do conceito visual, um jogo pode conter
na experiência de navegar e interagir com o espaço, informações “escondidas”, tesouros enterrados que se
que chamamos de história espacial. espalham pelos seus diversos mapas e que, quando
Os espaços evocativos (evocative spaces) já descobertos ou decifrados, podem vir a acrescentar
fazem parte do dia-a-dia da cultura pop, graças as uma informação a mais sobre aquele mundo, ou apenas
freqüentes adaptações de mídia para mídia, inclusive as despertar mais dúvidas, mas, ainda assim, tendem a
que envolvem jogos eletrônicos. Jesper Jull argumenta significar algo para a estrutura interna do seu universo.
que "você claramente não pode apreender a história de No jogo Myst (1993), o jogador é o único
Star Wars através do jogo” (JUUL, 1998). Juul alega habitante de uma ilha abandonada, repleta de
que as naves, personagens e ambientes dos filmes da construções estranhas e objetos com os quais se pode
saga Star Wars, são meros enfeites, escravos da interagir: livros com textos legíveis, passagens
mecânica de jogabilidade: se fossem mudadas as secretas, casas com salões subterrâneos, e em quase em
aparências das naves, o jogo seria o mesmo e não todo lugar um enigma que convida o jogador a resolve-
haveria traço algum da série Star Wars. Embora o lo. Para isso, não basta raciocínio lógico ou sorte: é
argumento de Juul seja válido, a réplica de Jenkins nos preciso entender o que se passou naquela ilha. Os
chama atenção para algo interessante: pedaços da história estão espalhados no espaço, e
precisam ser juntados. A exploração e a interação, mais
“Cada vez mais, nós vivemos em um uma vez, se mostram como as principais ferramentas
mundo de histórias transmidiáticas, que de reconstrução dessa história. Arlindo Machado, ao
depende menos da auto-suficiência de obras descrever experiências como as possíveis em Myst,
individuais do que de cada obra contribuir compara esse tipo de estrutura com a multiplicidade de
para uma economia narrativa maior. O jogo possibilidades de um labirinto:
de Star Wars pode não recontar a história do
filme, mas ele não precisa fazer isso para “... é difícil resistir à tentação de explorar todas
enriquecer ou expandir nossa experiência as suas veredas na tentativa de descobrir os
com a saga Star Wars.” (JENKINS, 2004, mistérios que se escondem nos seus detalhes
traduzido pelo autor10 ). mais discretos. Mais do que chegar a um fim ou
ganhar o jogo, o prazer destes trabalhos está na
Além de chamar atenção para o fato de que investigação infinita das suas possibilidades de
experiências em diferentes mídias podem se completar, desdobramento.” (MACHADO, 2008, p. 255).
o argumento de Jenkins serve a outro propósito: o de
demonstrar a importância da caracterização do Machado estabelece uma analogia esclarecedora ao
ambiente e dos elementos do jogo. Não é correto analisar a hipermídia como uma forma estética
afirmar que, despido da sua identidade visual, o jogo labiríntica. O autor chama atenção para o fato de que o
seria o mesmo. Dizer isso seria ignorar uma série de labirinto, em sua origem grega, não era uma prisão,
informações transmitidas pelo design do espaço do mas sim um espaço de experimentação e desafio, onde
jogo. o percurso e o que ele guarda são mais importantes que
A “evocação” defendida por Jenkins pode ser a saída.
pensada não só como uma ferramenta de criação de A possibilidade de se incluir pedaços de informações
histórias transmidiáticas, mas também como um ao longo da experiência enriquece o discurso do jogo e
indício de que a caracterização do espaço pode ser adiciona um nível a mais à exploração. O jogador não
extremamente importante para a experiência do apenas está andando por um espaço virtual, mas sim
jogador. Os jogos podem ornamentar cada centímetro conhecendo a história daquele lugar fictício. As
de seu espaço com elementos de determinada natureza possibilidades são infinitas. No jogo Bioshock (2007),
para transmitir um ou outro tipo de sensação ou o jogador, depois de um acidente de avião, se refugia
numa cidade subaquática. Inicialmente, o lugar parece
apenas um prédio antigo, escuro e dasabitado. Ao
10
“Increasingly, we inhabit a world of transmedia longo do jogo, porém, são apresentados diversos sinais
story-telling, one which depends less on each que vão adicionando dados à história da cidade. Os
individual work being self-sufficient than on each pilares e paredes destruídos, os habitantes
work contributing to a larger narrative economy. The descontrolados e agressivos, a aparência de um lugar
Star Wars game may not simply retell the story of Star outrora rico e agora destruído. Mais adiante no jogo, é
Wars, but it doesn't have to in order to enrich or possível reconstituir um passado de um pioneiro que
expand our experience of the Star Wars saga.” construiu a cidade com o intuito de criar um lugar
utópico. A comparação do estado anterior com o que o isso, o próprio fato de o jogador se sentir imerso num
jogador vê no momento produz uma sensação única: ambiente que, ele sabe, pode conter surpresas a cada
“Ao entrarmos nestes espaços, nós somos assolados metro quadrado, sejam boas ou ruins, só contribui para
com poderosos sentimentos de perda ou nostalgia, que o mundo pareça vivo. A idéia toda é de que as
especialmente nas situações em que o espaço foi história espaciais sejam parecidas com a vida em si,
transformado por eventos narrativos” (JENKINS, nesse aspecto: pode ser tanto encarada como uma
2004). O exemplo de Jenkins se refere à sensação de grande coleção de pequenos momentos auto-
encontrar um espaço alterado, e a nostalgia que isso suficientes, mas também podemos interpretar o
pode produzir. Mas o espectro de sensações e amontoado de momentos como uma obra completa
informações que podem ser transmitidas é (como um road movie não deixaria de ser, quando o
interminável. personagem passa por diversos lugares, conhecendo
pessoas diferentes e que não retornam após a partida do
herói). Principalmente se o jogo contém uma mitologia
5. Como a interação nasce no espaço própria, personalidades que só existem naquele mundo,
animais ou raças de seres inteligentes únicas, ou até
Para defender seu argumento de que narrativas podem religiões e deuses próprios. Quando os eventos são
se integrar à jogabilidade, Henry Jenkins usa mais dois integrados de forma verossímil a esses aspectos, a
exemplos de como isso pode acontecer: as histórias história espacial “vivida” pelo jogador enriquece, e o
emergentes, ou seja, uma série de eventos possíveis no mundo na qual ela acontece ganha força.
mundo do jogo, mas que não são pré-programados; e o Os micro-eventos se espalham pelos espaços
que ele chama de “micro-narrativas”, que seriam construídos nos jogos, usados como mecanismos de
eventos autosuficientes e que se encerram rapidamente, promover interação entre o jogador e o mundo
evitando que haja necessidade de estabelecerem uma construído. Ao encararmos todo o espectro de
relação causal com o restante dos eventos que possibilidades que eles guardam, além de todos os
acontecem no jogo. outros detalhes envolvidos no processo de se jogar e
Vamos chamar as micro-narrativas de Jenkins de explorar jogos eletrônicos, é mais fácil compreender a
micro-eventos, pois já concluímos anteriormente que o natureza emergente desse tipo de experiência. O caráter
termo “narrativa” não se adequa bem a situações de emergente dos jogos é a infinitude de possibilidades
jogabilidade. O termo “evento”, porém, descreve que pode ser abrigada num design de espaço e
exatamente o que pode ser encontrado com facilidade interação relativamente simples (SALEN e
nos jogos, se o entendermos como uma manifestação ZIMMERMAN, 2004). Henry Jenkins também faz uso
do espaço na qual o jogador participa e/ou observa. dessa mesma idéia, relacionando com as possibilidades
Além disso, “evento” pode ser entendido como uma de construção de diferentes histórias, se referindo ao
parte da estrutura da história: cada evento adiciona um jogo The Sims :
determinado valor, seja ele positivo, negativo, neutro:
tudo depende da natureza do evento. E por mais que “Wright (game designer responsável por The
este evento não possa ser narrado da maneira clássica, Sims) criou um mundo cheio de
a simulação do espaço pode produzir eventos em sua possibilidades narrativas, onde cada decisão
própria mecânica interna: explosões, um grupo grande do desenvolvimento foi feita com o intuito
de pessoas correndo, catástrofes naturais ou uma de aumentar as chances de romance
simples chuva. Todos estes acontecimentos podem ser interpessoal ou conflito. [...] Os personagens
simulados no “motor” do jogo (engine), e adicionarão possuem vontade própria, nem sempre se
diferentes valores à experiência do jogador. submetendo facilmente ao controle do
Quando analisamos Minecraft, vimos como a jogador, como quando um protagonista
sequência de eventos possíveis, depois de concretizada, deprimido se recusa a procurar emprego...”
pode se transformar numa história. E que, durante o ato (JENKINS, 2004, traduzido pelo autor11).
de jogar, o momento “pré-narrativa”, os eventos
acontecem ao mesmo tempo em que os estamos
jogando (ao contrário de um livro ou filme). Minecraft Novamente fazendo a ressalva em relação ao termo
também pode ser usado como Jenkins quer dizer com “narrativa”, o que Jenkins descreve são as infinitas
micro-narrativas. Mesmo que chamemos de “micro- possibilidades que podem fazer parte da experiência
eventos”, a idéia continua a mesma: ao navegar pelo com The Sims. O que pode não ter ficado claro, e para
espaço do jogo, situações inesperadas podem ocorrer, e
logo se encerrarem. A descrição do que aconteceu 11
comigo no jogo pode ser encarada como um “micro- Wright has created a world ripe with narrative
evento”. Talvez suas consequencias alcancem até mais possibilities, where each design decision has been
do que Jenkins imaginou: a perda de algum item made with an eye towards increasing the prospects of
precioso, a decisão de não voltar na caverna até o meu interpersonal romance or conflict. [...] The characters
personagem estar melhor preparado, são exemplos de
have a will of their own, not always submitting easily
que os micro-eventos podem sim ter efeitos a longo
prazo na jogabilidade da história espacial. Mais do que to the player's control, as when a depressed protagonist
refuses to seek employment...”