Deus Uno e Trino
Deus Uno e Trino
Deus Uno e Trino
Introdução
«Toda religião tem em seu centro a fé, a crença em Deus. Com a nossa fé cristã não
é diferente. Somos cristãos, e no centro dessa identidade está a nossa crença em
Deus. Os contornos do perfil desse Deus em quem cremos são fundamentais para
entendermos em que consiste a proposta de nossa fé e situar o que ela tem de
diferente em relação a outras religiões».1
Todavia, como cristãos – cujas raízes religiosas estão enficadas em solo judaico –,
fazemos uma experiência de fé segundo a qual só conhecemos Deus porque ele se
revela na história. Assim, a nossa reflexão sobre as experiências de Deus feitas pela
humanidade tem por horizonte, justamente, o processo histórico da “aventura” humana,
pois, como diz a Carta Hebreus:
«Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos Profetas;
agora, nesses dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho» (Hb 1, 1-2).
1
M. C. L. BINGEMER – V. G. FELLER. Deus Trindade: a vida no coração do mundo. São Paulo-Valencia:
Paulinas-Siquem, 2009, p. 11.
2
Para um ulterior aprofundamento sobre a revelação de Deus na história, cf. R. HEIGHT. Dinâmica da
teologia. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 71-85. Como essa dinâmica se dá na história da Igreja, cf. J.
RATZINGER. San Bonaventura. La teologia della storia. Assisi: Porziuncola, 2008.
religiões de redenção; religiões das tribos primitivas – religiões nacionais – religiões da
humanidade, dentre as quais se encontra o Judaísmo de onde nasce o Cristianismo3.
Muitos, dentre os quais o filosofo alemão Hegel, pensaram esse desenvolvimento
das religiões como um processo linear, que ia das primeiras intuições que a humanidade
teve do Ente supremo até o Cristianismo que, para Hegel, era a religião moderna.
Segundo essa visão, tal processo ia se dando de forma que cada nova etapa superava
aquela precedente. Nessa direção:
2) «Tudo aquilo que prepara diretamente a vinda de Jesus Cristo: de fato, o Deus
de Jesus Cristo já tinha sido revelado aos Patriarcas, por isso a promessa e
experiência de revelação feita a Israel não é uma coisa estranha à revelação de
Cristo, mas é-lhe interna como um pressuposto constitutivo e permanente».7
3
Cf. L. VEUTHEY. Introduzione Allá storia delle religioni. Roma: Editrice Miscellanea Francescana,
2008.
4
P. CODA. Dio Uno e Trino. Rivelazione, esperienza e teología del Dio dei cristiani. Milano: San Paolo,
2003, p. 10 (Tradução efetuada pelo autor do presente texto, assim como todas as citações posteriores).
5
Cf. Ibidem, p. 11.
6
Ibidem, p. 11-12.
7
Ibidem, p. 12.
3) «Enfim, a compreensão que a Igreja teve e tem de Jesus Cristo. A revelação de
Deus exige um alguém que a acolha, faça-a sua e a compreenda:
diferentemente, não seria revelação de Alguém a alguém. Tudo isso já se
verifica em Israel onde a revelação de Deus é mediada por aqueles grandes
interlocutores do diálogo da salvação (Abraão, Moisés, os profetas...) e de
toda a experiência de um povo. O mesmo acontece em referência à Igreja,
começando pelos Apóstolos que nos transmitiram a experiência que fizeram
de Jesus e, depois, através do longo caminho da história da experiência e da
reflexão da Igreja».8
«Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro
de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas
belas que tu fizeste. Tu estavas comigo e eu não estava contigo. Retinham-me
longe de ti aquelas coisas que não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e
clamaste, e rompeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha
cegueira; exalaste o teu perfume, e eu respirei e suspiro por ti; saboreei-te, e tenho
fome e sede; tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz». 10
11
Quanto será dito nesse ponto é extraído de CODA, Dio Uno e Trino, p. 25-30 (Tradução nossa para uso
exclusivo em sala de aula).
2.3. A experiência de Abraão e dos Patriarcas
Todavia, além disso, qual foi a experiência feita por Abraão? Obviamente, os
textos base sobre os quais fixamos a nossa atenção são a história dos Patriarcas, narrada
do capítulo 12 ao capítulo 36 do Gênesis. É muito difícil examinar esta matéria literária
para compreender qual seja núcleo da experiência que aí está subentendida. Porém,
podemos dizer com segurança que o Deus de Abraão é um Deus encontrado nas vias no
nomadismo e do deserto, que mostra como ser nômade, e mesmo forasteiro, não seja um
fatalismo, mas uma vocação, como mostra o caso de Abraão, cuja vocação nos é
reportada pelo Gênesis. Trata-se de uma experiência de Deus que se encruza com a
experiência de vida de um clã que caminha e desvela esta experiência como vocação.
Por isso, o Deus de Abraão é, em primeiro lugar, um Deus que chama a sair, a
caminhar seja no espaço, seja no tempo: um Deus da história que rompe com a
ciclicidade presa no tempo e das estações, dos costumes e das culturas. É um Deus que
dialoga: a sua experiência pressupõe, portanto, dois companheiros que entram em
relação. É um Deus que, chamando e dialogando, se mostra como um amigo seguro do
homem, que o guia, o sustenta, e, por isso, pode ser definido com os símbolos da rocha
e do escudo. Enfim, é um Deus que promete, que se interessa pelo futuro desse homem
que escolheu. Desde o início da história de Israel se compreende que se trata de um
Deus da promessa e da aliança. Assim, o livro do Gênesis narra o evento dessa aliança
[...]:
«Quando Abrão completou noventa e nove anos, Jahweh lhe apareceu e lhe disse:
“Eu sou o El Shaddai, anda na minha presença e sê perfeito. Eu instituo minha
aliança entre mim e ti, e te multiplicarei extremamente”. E Abrão caiu com a face
por terra. Deus lhe falou assim: “Quanto a mim, eis a minha aliança contigo: serás
pai de uma multidão de nações. E não mais te chamarás Abrão, mas o teu nome
será Abraão, pois eu te faça pai de uma multidão de nações. Eu te tornarei
extremamente fecundo, de te farei nações, e reis sairão de ti. Estabelecerei minha
aliança entre mim e ti, e tua raça depois de ti, de geração em geração, uma aliança
perpétua, e serei o vosso Deus» (Gn 17,1-8).12
12
Para esta e as demais citações bíblicas utilizamos a edição brasileira da Bíblia de Jerusalém.
Todavia, ao mesmo tempo, o Deus de Abraão é um Deus que permanece
misterioso e transcendente. Ao contrário, não seria mais Deus, mas um ídolo, uma
projeção das expectativas e dos desejos do homem. Podemos ver isso através do
episódio da luta entre Deus e Jacó, que ilustra plasticamente a dinâmica de
aproximação-distanciamento de Deus e o velamento do seu nome, que – para os povos
semitas – contêm em si o seu próprio ser, a possibilidade, portanto, conhecê-Lo e tê-Lo
para si:
«Jacó ficou só. E alguém lutou com ele até surgir a aurora. Vendo que não o
dominava, tocou-lhe na articulação da coxa, e a coxa de Jacó se deslocou enquanto
lutava com ele. Ele disse: deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Mas Jacó respondeu:
“Eu não te deixarei se não me abençoares. Ele lhe perguntou: “Qual é o teu nome?”
– Jacó, respondeu ele. Ele retomou: Não te chamará mais Jacó, mas Israel, porque
foste forte contra Deus e contra os homens, e tu prevaleceste. Jacó fez uma
pergunta: “Revela-me teu nome, por favor”. Mas ele respondeu: “Por que
perguntas pelo meu nome?” E ali mesmo o abençoou» (Gn 32,25-31).
«Jhwh, que (...) existe desde a primeira fase como Deus agente, se torna o “Deus
principal” de Israel somente porque ele cria um povo para si, um povo que lhe
deve a terra e a liberdade que possui, e, por isso, o venera como Deus. A
“ascensão” de Jhwh a Deus principal de Israel é um acontecimento pré-histórico,
que não está ligado à monarquia, ao sacerdócio e ao templo, mas à origem de um
povo que se liberta da escravidão do Faraó. Do ponto de vista histórico-religioso,
Jhwh obtêm o seu perfil, ao interno do mundo dos deuses do Oriente antigo, não
com a sua delimitação diante dos outros deuses, mas como “motor” do complicado
processo através do qual Israel se torna um povo».
3.1.2.1. A origem
3.1.2.2. A pronúncia
3.1.2.3. O Significado
Então disse o SENHOR a Moisés: Farei também isto, que tens dito;
porquanto achaste graça aos meus olhos, e te conheço por nome. Então ele
disse: Rogo-te que me mostres a tua glória. Porém ele disse: Eu farei passar
toda a minha bondade por diante de ti, e proclamarei o nome do SENHOR
diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me
compadecerei de quem eu me compadecer. E disse mais: Não poderás ver a
minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá. Disse
mais o SENHOR: Eis aqui um lugar junto a mim; aqui te porás sobre a
penha. E acontecerá que, quando a minha glória passar, colocar-te-ei numa
fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E,
havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a minha face não
se verá (Ex 33, 17-23).
3.2. O “mono-javismo
Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: “Eu sou Jhwh teu Deus, que
te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante
de mim. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que
existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo
da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porque eu, Jhwh
teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos
até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor
para com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.
Não pronunciarás em vão o nome de Jhwh teu Deus, porque Jhwh não
deixará impune aquele que pronunciar em vão seu nome. Lembra-te do dia do
sábado para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra. O
sétimo dia, porém, é o sábado de Jhwh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem
tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal,
nem o estrangeiro que está em tuas portas. Porque em seis dias Jhwh fez o céu, a
terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas repousou no sétimo dia; por isso Jhwh
abençoou o dia do sábado e o santificou (Ex 20, 1-11).
Basta ressaltar o mandamento de não fazer imagens de Deus, para exprimir, por
um lado, a sua transcendência absoluta e, por outro, para evitar a confusão entre Deus e
os ídolos.
Dizer que Jhwh é misericordioso significa ressaltar que Ele é «Deus de ternura e
de graça, lento para a ira e rico de misericórdia» (Ex 34,6). Misericórdia que, mediante
a experiência do êxodo, se revelou em plenitude a Israel e que constituirá, ao longo da
história de Israel, a característica constante do agir de Deus em relação ao seu povo.
Até mesmo normas como aquela do ano sabático e jubilar (cf. Dt 15; Lv 25; Ex
23), têm o claro objetivo de estabelecer o principio segundo o qual a cada determinado
13
ALFANO, J. Dio protegge e libera i poveri, in Concilium, 22 (1986), n.5, p. 54.
espaço de tempo a história e a vida de Israel devam ser reiniciadas do êxodo, para
eliminar as discriminações que foram se introduzindo nesse espaço de tempo; tudo isto
para que a história fosse, desde o interno da vida social do povo eleito, continuamente
transformada, conforme o designo de Jhwh.
É sobretudo diante desses perigos que a reação dos profetas (desde Elias até
Amós e Isaias e assim por diante) dão origem a um verdadeiro e próprio «movimento» a
favor do retorno ao jahwismo puro. Ou melhor: a experiência e a pregação dos
profetas representam, sem sombra de dúvida, um aprofundamento da revelação e da
fé jahwista. Também eles se colocam em continuidade e coerência com a precedente
tradição abraâmica e mosaica, ou seja: fazem a experiência de Deus através da vocação
e do envio deles ao povo. Todavia, mesmo mantendo e, de alguma forma, acentuando
sua eficácia histórica, a revelação de Jhwh, nos profetas, se interioriza, perde sua
conotação cósmica como acontecia antes; mostrando-se, assim, como um dinamismo de
penetração e de transformação da existência humana, pessoal e social. Para confirmar
isto, basta confrontar a teofania de Jhwh ao profeta Elias, no monte Horeb, com a de
Moisés [...]:
Levantou-se, comeu e bebeu e, depois, sustentado por aquela comida,
caminhou quarenta dias e quarenta noites até à montanha de Deus, o Horeb. Lá ele
entrou numa gruta, onde passou a noite. E foi-lhe dirigida a palavra de Jhwh nestes
termos: “Que fazes aqui Elias?” Ele respondeu: “Eu me consumo de ardente zelo
por Jhwh dos Exércitos, porque os filhos de Israel abandonaram tua aliança,
derrubaram teus altares, e mataram teus profetas. Fiquei somente eu e procuraram
tirar-me a vida”. E Deus lhe disse: “Sai e fica na montanha diante de Jhwh”. E eis
que Jhwh passou. Um grande e impetuoso furacão fendia as montanhas e quebrava
os rochedos diante de Jhwh, mas Jhwh não estava no furacão; e depois do furacão
houve um terremoto; e depois do terremoto um fogo, mas Jhwh não estava no fogo;
e depois do fogo um murmúrio de uma brisa suave. Quando Elias o ouviu, cobriu o
rosto com um manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta. Então, veio-lhe uma voz, que
disse: “Que fazes aqui, Elias?” Ele respondeu: “Eu me consumo de ardente zelo
por Jhwh dos Exércitos, porque os filhos de Israel abandonaram tua aliança,
derrubaram teus altares e mataram teus profetas à espada. Fiquei somente eu e
procuram tirar-me a vida” (1Re 19,8-14).
Mas é necessário ver mais detalhadamente alguns temas que caracterizam este
importante período da história de Israel.
Trata-se certamente de uma linguagem figurada, mas que ilustra muito bem a
presença real de Deus que se manifesta e guia o seu povo.
No período dos Reis, como já acenado, é construído, por obra de Salomão (970-
931 a.C. cerca), o templo de Jerusalém, para dar uma morada a Jhwh e, de modo
particular, para oferecer um lugar digno para a arca da aliança, a qual, durante a
peregrinação no deserto, guardava as tábuas da lei dada por Deus a Moisés no monte
Sinai.
No ano em que faleceu o rei Ozias, vi o Senhor sentado sobre um trono alto e
elevado. A cauda da sua veste enchia o santuário. Acima dele, em pé, estavam serafins,
cada um com seis asas: com duas cobriam a face, com duas cobriam os pés e com duas
voavam. Eles cantavam uns para os outros e diziam: “Santo, santo, santo é Jhwh dos
Exércitos, a sua glória enche toda a terra. À voz dos seus clamores os gonzos das portas
oscilavam o Templo se enchia de fumaça. Então disse eu: “Ai de mim, estou perdido!
Com efeito, sou um homem de lábios impuros e vivo em meio a um povo de lábios
impuros, e os meus olhos viram o Rei, Jhwh dos Exércitos” (Is 6,1-5).
Eu olhei: havia um vento impetuoso que vinha do norte, uma grande nuvem
envolta em claridades e relâmpagos, no meio da qual brilhava algo como se fosse ouro
brilhante. No centro aparecia a forma de quatro seres vivos. Este era seu aspecto: tinha
forma humana [...] Acima do firmamento que estava sobre as cabeças havia algo
parecido com safiras, em forma de trono, e sobre esta forma de trono, bem no alto, uma
figura com aparência humana. E eu vi como que um brilho de ouro brilhante,
evolvendo-a como se fosse fogo, do lado de cima do que parecia ser a cintura. Do lado
de baixo do que parecia ser a cintura vi algo como fogo. Estava toda envolta de
resplendor. O resplendor que a envolvia tinha o mesmo aspecto do arco-íris que se
forma nas nuvens em dia de chuva. Tal era a aparência visível da glória do Senhor. Ao
ver isto, caí prostrado e ouvi a voz de alguém que falava (Ez 1,4-5.26-28).
Além de tudo isso, no livro do Eclesiático se diz: «Enche Sião do teu esplendor e
o teu povo da tua glória» (Eclo 36,16), enquanto o salmo canta a certeza de que a glória
do Senhor «habitará em nossa terra» (Sl 85,10), de tal modo que todas as nações a
poderão contemplar (cf. Sl 97,6; Is 62,2; 66,18).
Nessa direção, em modo particular, será justamente o sobre o seu Servo que Jhwh
«manifestará a sua glória» (cf. Is 49,3). Nessa mesma direção, o evangelho de João, no
Prólogo, dirá que o Filho de Deus armou sua tenda no meio de nós e que « nós
contemplamos a sua glória» (Jo 1,14). Jesus é, portanto, visto como a glória de Deus
que fez morada em meio aos seres humanos.
b) Um segundo momento importante dessa fase é aquele que nos é transmitido pela
tradição deuteronomista, a qual, partindo de uma origem arcaica e fiel ao
jahwismo, se intensifica, sobretudo, a partir do período das reformas religiosas
de Josias (621 a.C.) [...]. O livro do Deuteronomio é o testemunho literário deste
momento de afirmação do mono-jahwismo [...]. Como demonstrou G. Braulik:
«os textos do Deuteronômio, se ordenados cronologicamente, mostram um
desenvolvimento da doutrina sobre Deus, a qual se estende da afirmação: «Jhwh
é único» (Dt 6,4), dentro de um sistema ainda politeísta, até a formulação
monoteísta do exílio da Babilônia: “Jhwh é Deus, e não nenhum outro Deus
além d’Ele” (Dt 4,35) [...].
c) O terceiro momento significativo para a específica afirmação do mono-jahwismo
como monoteísmo explícito e teórico em Israel é o período do exílio e do pos-
exílio. Justo no momento em que Jhwh parece sucumbir diante dos deuses dos
outros povos, Israel, mediante os profetas, redescobre a sua onipotência e
fidelidade. Nesse contexto nascem os famosos textos, sobretudo no pós-exílio,
da «nulidade dos ídolos», textos polêmicos que mostram que somente Jhwh é o
Deus vivo e verdadeiro, e que as sua onipotência se estende a todos os povos. O
profeta mais eloqüente, nesse aspecto, é justamente o Deutero-Isaías, cuja
pregação se dá na Babilônia, antes do edito de libertação, promulgado por Ciro
(538 a.C.). O Deutero-Isaías compreende os capítulos 40-45 do atual livro de
Isaías:
A quem, pois, fareis semelhante a Deus, ou com que o comparareis? O
artífice funde a imagem, e o ourives a cobre de ouro, e forja para ela cadeias de
prata. O empobrecido, que não pode oferecer tanto, escolhe madeira que não se
apodrece; artífice sábio busca, para gravar uma imagem que não se pode mover.
Porventura não sabeis? Porventura não ouvis, ou desde o princípio não se vos
notificou, ou não atentastes para os damentos da terra? Ele é o que está assentado
sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos; é ele o que
estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda, para neles habitar; O que
reduz a nada os príncipes, e torna em coisa vã os juízes
da terra (Is 40, 18-23)
Assim diz o Senhor, Rei de Israel, e seu Redentor, o Senhor dos Exércitos:
Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e fora de mim não há Deus. E quem
proclamará como eu, e anunciará isto, e o porá em ordem perante mim, desde que
ordenei um povo eterno? E anuncie-lhes as coisas vindouras, e as que ainda hão de
vir. Não vos assombreis, nem temais; porventura desde então não vo-lo fiz ouvir, e
não vo-lo anunciei? Porque vós sois as minhas testemunhas. Porventura há outro
Deus fora de mim? Não, não há outra Rocha que eu conheça. Todos os artífices de
imagens de escultura são vaidade, e as suas coisas mais desejáveis são de nenhum
préstimo; e suas próprias testemunhas, nada vêem nem entendem para que sejam
envergonhados. Quem forma um deus, e funde uma imagem de escultura, que é de
nenhum préstimo? Eis que todos os seus companheiros ficarão confundidos, pois
os mesmos artífices não passam de homens; ajuntem-se todos, e levantem-se;
assombrar-se-ão, e serão juntamente confundidos. (Is 44,6-11).
Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da
terra, nem se cansa nem se fatiga? É inescrutável o seu entendimento (Is 40, 28).
Um terceiro elemento que vem à luz com os profetas é que Deus se manifesta e
comunica através do seu Espírito. Um primeiro grande testemunho disto já o temos com
Elias, em sua descrição da teofania do Horeb, à qual já nos referimos. Aí, a brisa na qual
Jhwh se manifesta é dita em hebraico com o o termo ruàh (vento, sopro), que indica um
modo de Deus se manifestar fora de si. De fato, o Espírito é como o “sair fora de si”
(estase) de Deus na criação e na história.
O encontro com Jhwh, na antiga aliança, é sempre mediado pelo «sopro» (ou
«vento», ou «respiro», e termos semelhantes) e pela «palavra». Já no Gênesis é descrito
um encontro entre Jhwh e o homem «à brisa do dia» (Gn 3,8), e isto, depois que foi
dirigida a Adão a palavra: «não comerás do fruto da árvore» (cf. Gn 2, 16-17).
Quando Jhwh se exprime e se comunica «fora de si», a alguém que não é Ele
mesmo, o faz sempre através da Palavra ou do Espírito. A criação é obra da sua palavra
(«E Ele disse...») e do seu Espírito («O Espírito pairava sobre as águas...», Gn 1,2). E se
a palavra de Jhwh exprime aquilo que Ele quer comunicar, o Espírito, por sua vez, dá
vida; tanto é verdade que, sem o Espírito, o ser humano é tão somente pó e «carne», e
do mesmo modo acontece com toda a realidade criada:
Se escondes o teu sopro, eles perecem; se lhes tira o respiro, morem e retornam ao
pó. Mandas o teu Espírito, são criados, e renovas a face da terra (Sl 104).
Em moda particular, o ser humano, que em certo sentido, é ele mesmo uma
palavra pronunciada por Deus, uma sua «imagem» (cf. Gn 1,26), e que está vivo porque
o Senhor lhe «inspirou nas narinas um hálito de vida» (Gn 3,7), é tudo aquilo que é
quando está de frente ao seu Criador, na capacidade que tem de encontrar-se com Ele.
É o espírito vital, o espírito do ser humano, que Jhwh lhe participou criando-
lhe. É tal espírito que permite ao ser humano ser um «tu» para Jhwh, o seu
interlocutor, o seu companheiro de aliança. Quando o ser humano não mais aceitará
viver uma vida de total comunicação (no mistério e na abertura a um futuro maior)
com Jhwh, este último terá que dizer: «o meu Espírito não estará mais para
sempre com o ser humano» (Gn 6,4).
Jhwh doa uma particular efusão do seu Espírito a homens tais como Moisés (cf.
Nm 16,17), os Juízes (cf. Jz), os Reis (cf. Sl 8,7; 9,16, etc.), os Profetas (cf. Ez
3,12.14.24; Is 59,21, etc.), afim que estes, de algum modo, participantes dos desígnios
de Deus e de sua força, guiem o povo unido pelas travessias da história, mantendo o
olhar fixo em direção à meta. Os desígnios de Deus são suas Palavras, o força para
realizá-las é a força do Espírito.
Todavia, será, sobretudo, o Messias prometido (o Ungido como o óleo da
consagração, símbolo do Espírito) aquele que vai receber sobre si uma excepcional
efusão do Espírito de Jhwh (cf. Is 61,1ss.). Melhor ainda: o Espírito repousará sobre ele,
e lhe trará a plenitude dos dons divinos:
Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará das suas raízes, sobre
ele repousará o espírito do Senhor, espírito de sabedoria e inteligência, espírito de
conselho e fortaleza, espírito de conhecimento e de temor do Senhor (Is 1,1-2).
Mas o fato é que sobre o Messias se dará uma efusão superabundante do Espírito
de Jhwh, e, assim, Ele poderá levar o povo eleito – justamente por em virtude desse
Espírito e dos seus dons – à comunhão plena com Jhwh. E não somente isto, mas
também tornar participantes dessa comunhão todos os outros povos:
Eis o meu servo que eu sustenho, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus
sobre ele o meu espírito, ele trará o julgamento das nações (Is 42,1).
Depois disso, derramarei o meu espírito sobre toda a carne. Vossos filhos e
vossas filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões
(Jl 3,1).
Vou pegar vocês do meio das nações, vou reuni-los de todos os países e levá-los
para a sua própria terra. Derramarei sobre vocês uma água pura, e vocês ficarão
purificados. Vou purificar vocês de todas as suas imundícies e de todos os seus ídolos.
Darei para vocês um coração novo, e colocarei um espírito novo dentro de vocês.
Tirarei de vocês o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne. Colocarei dentro
de vocês o meu espírito, para fazer com que vivam de acordo com os meus estatutos e
observem e coloquem em prática as minhas normas. Então vocês habitarão na terra que
dei os seus antepassados: vocês serão o meu povo, e eu serei o Deus de vocês (Ez 36,42-
28; cf. Jr 31,31ss.).
E justamente porque será princípio de uma nova e definitiva aliança, este Espírito
«novo», dado nos “últimos tempos” será capaz de purificar os seres humanos de todos
os pecados (cf. Sl 51), dar-lhes-á de novo a vida, mesmo depois da morte (cf. Ez 37,1-
14) e dará o dom da profecia a todo o povo eleito, sem mais distinção de classe (cf. Jl
3,1-2). O Espírito, em modo particular, interiorizará a “lei-palavra” de Jhwh no coração
do ser humano e tornará o ser humano capaz de observá-la. Graças ainda ao mesmo
Espírito «infuso do alto» «o deserto se tornará um jardim» (Is 32,15): toda a criação
será renovada.
Será exatamente este Espírito, interiorizado no ser humano, quem vai suscitar uma
nova e definitiva aliança e uma renovação da criação inteira. Ele será não mais somente
um lugar de lugar de comunicação, mas, o princípio interior de uma comunicação com
Deus cada vez mais plena, ainda que continue sendo um dom livre e gratuito do próprio
Deus [...]
Quando Israel era um menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho (Os 11,1).
[Assim, para Israel, Deus se apresenta, através da sua hesed e rahamim, como um
Pai-maternal].
Desprezado e rejeitado pelos homens, homem das dores que conhece bem o
sofrimento, como alguém que diante do qual escondemos o rosto, era desprezado e por
ele não tínhamos nenhuma estima. Mesmo assim ele carregou sobre si os nossos
sofrimentos, tomou sobre si as nossas dores e nós o julgávamos castigado, ferido por
Deus e humilhado. Ele foi transpassado por nossas faltas, oprimido pelas nossas
iniqüidades. O castigo que nós trouxe a salvação estava sobre ele. Por sua chagas nós
fomos curadosxxxxxxx
Quem é esse «servo»? Entre tantas respostas que procurou-se dar a esse respeito, a
mais plausível é aquele segundo a qual se trata de uma pessoa futura a quem é confiada
uma missão profética universal, ainda que seja evidente a referência que aí se faz a todo
o povo de Israel, e, de modo mais preciso, ao «resto de Israel», entendido como núcleo
ideal na Nova Aliança. Um «mediador profético» como o foi Moisés, como – em forma
diversa – o foram alguns dos mais grandes profetas, mas, sem dúvida superior a todos
esses. Justamente como o novo êxodo e a nova aliança serão superiores ao primeiro
êxodo e à primeira aliança.
Aquilo que caracteriza essa figura [do servo] – além da ressonância claramente
universal da sua missão – é que ela, livremente, uma missão «vicária», ou seja: toma
sobre si, com «dedicação e docilidade, com pleno conhecimento de causa, esse
ministério de mediação até à morte, obedecendo, em tal modo, a um plano de Jhwh».
Ele passa por uma espécie de sofrimento total e experimenta até mesmo a morte, mas,
exatamente assim estabelece uma relação plena e duradoura de todos com Jhewh.
É assim