BonecaBola 205x205 v6b Final
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bola e
do desenvolvimento 4. Psicologia educacional
I. Eckschmidt, Sandra . II. Título.
15-10067 CDD-370.15
Boneca
Índices para catálogo sistemático:
1. Psicologia educacional 370.15
CONCEPÇÃO E AUTORIA
Luiza Helena Tannuri Lameirão
COAUTORA
Sandra Eckschmidt
REVISÃO
Sandra Seabra Moreira
ILUSTRAÇÃO
Maria Cecilia Dell’Acqua Tilkian
PROJETO GRÁFICO
A menina estava de mãos dadas com a sua madrinha. Depois
Ricardo Tilkian de um longo passeio pela praça em que costumavam ir juntas, para-
TEXTOS © LUIZA HELENA TANNURI LAMEIRÃO ram diante da vitrine de uma confeitaria. Os olhos da criança, arrega-
TEXTOS ©SANDRA ECKSCHMIDT
lados, engoliam bolos e biscoitos de sua predileção. Antes mesmo que
JOÃO DE BARRO EDITORA LTDA ela lambesse os lábios entreabertos, a madrinha a conduziu a uma
R. BARÃO DO TRIUNFO 88 SL 1612
CEP 04602-000 SP mesinha e ali tomaram com alegria um saboroso lanche. Entardecia,
editorajoaodebarro@gmail.com
e a menina, satisfeita com o passeio, buscou aconchego no colo da
1ª EDIÇÃONOVEMBRO 2015 madrinha e quis voltar para casa. A madrinha, com carinho, atendeu
Todos os direitos reservados. sua afilhada.
É proibido a reprodução desta obra ou parte dela, por qualquer meio
ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópias, gravação ou
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Em nosso tempo, toda criança passa por muitas outras vitri- nessa contemplação; outras, porém, são logo dominadas pela von-
nes e prateleiras, e assim, a vida infantil é impregnada por essas per- tade de experimentar um dos doces, pegar um dos brinquedos ou
cepções. Tudo o que a criança percebe no ambiente é vivenciado in- manusear as embalagens, por isso, batem os pés, puxam o adulto,
tensamente em todo o seu corpo. O que ela pode apenas ver – e não pedem, insistem, gritam... como que exigindo uma interação maior
apalpar, cheirar, degustar ou, até mesmo, ouvir o som contido no ob- com o que podem apenas ver. Nem sempre os adultos conseguem
jeto – inibe a integração das impressões sensoriais. Nossa civilização conduzir esta situação de maneira satisfatória, de acordo com o que
exacerba as características visuais e o entendimento que se realiza a consideram necessário, importante e saudável para a vida infantil.
partir do nexo entre elas. Mas entender quem somos, onde estamos
Quando um dos sentidos tem sua atividade diminuída, os de-
e o que queremos advém de ações fundamentais para a existência
mais se apuram; por exemplo, o deficiente visual compensa a ausência
humana, que demandam os mais variados campos de percepção,
da visão por meio do aprimoramento do sentido do tato. Quanto e de
para que nossa compreensão do mundo e de nós mesmos não seja
que maneira o excesso de impressões visuais interfere na vida infantil?
unilateral.
Tudo que oferecemos às crianças e o apelo sensorial a que
Será que todas as vitrines, prateleiras de supermercados,
elas são submetidas, especialmente no espaço urbano, é excessivo
lojas de brinquedos e shoppings não são apelos intensos demais
se pensarmos naquilo que elas realmente precisam. Inclusive o que
para as crianças? E como as embalagens tão vistosas e chamati-
existe em salas escolares como acervo de brinquedos e livros, muitas
vas atuam? Ao observar crianças diante desses espetáculos, seus
vezes, é além do necessário. Oferecer oportunidades às crianças é
olhos tateiam à distância, e podemos constatar que elas nem mo-
educativo desde que elas não desenvolvam, com isso, a exigência de
vem as mãos e as pernas, quase não desviam o olhar daquilo que
consumir sempre mais. Tudo o que é excessivo impede a ordenação,
lhes prende a atenção. Algumas podem permanecer mais tempo
a classificação, o zelo no cuidado.
Mesmo que não haja brinquedos disponíveis, meninas e quanto mais hábeis elas se tornam na relação com o próprio cor-
meninos brincam, experimentam o próprio corpo ao correr, pular, po, mais felizes se sentem. As crianças ficam alegres com cada
saltar, virar cambalhota, dar a mão uns para os outros, se abraçar; conquista. Nota-se mesmo que, em pátios escolares ou em praças
tudo isso as crianças fazem, desde que não sejam impedidas. Al- públicas, pode acontecer de a criança mais quietinha, a menor
gumas vezes as inibimos, e o fazemos porque temos receio de que do grupo, começar a explorar, tentando subir no trepa-trepa; no
aconteça algum acidente com elas. Outras vezes, buscamos entre- começo, pode ser que ela só alcance o primeiro nível e depois,
tê-las para desviá-las dos desafios corporais inerentes às conquis- ganhando confiança, vá subindo cada vez mais e chegue até o
tas almejadas por elas. alto. Quando chegar ao topo, ela dirá: “Olha o que eu faço, olha o
que eu faço”!
Quando brinca, a criança exerce a atividade própria, não
precisamos prometer nenhuma recompensa para a criança brin- Que expressão é essa da criança? Significa:
car. Não é necessário dizer: “brinca um pouquinho e logo eu vou te “Veja o que eu consigo fazer, quais desafios
dar um pedaço de bolo”. Elas brincam porque isso faz parte da ne- consigo superar”. A alegria gerada por
cessidade espontânea que as crianças têm de se ativar. É também essa conquista corporal pode parecer
dessa forma que elas integram as percepções sensoriais. Quando singela ao olhar do adulto, mas for-
o educador oferece o ambiente adequado, elas se ativam e apren- mará a base para a confiança no per-
dem por meio dessa ativação. curso do desenvolvimento humano,
a confiança que a levará a enfrentar
Ao brincarem, as crianças também querem conhecer o
obstáculos e desafios, pela vida afo-
mundo e, principalmente – dentro do mundo –, elas querem co-
ra. A autoestima se eleva. É uma base
nhecer o ser humano que somos, sobretudo o ser humano que
muito importante para o desenvolvi-
elas mesmas são. Este anseio por conhecer o mundo e a si mes-
mento cognitivo mas, principalmen-
mas se inicia com o enorme esforço que as crianças empenham
te, para a autonomia de decisão.
em conquistar habilidades corporais. É interessante observar que,
Constatamos que as crianças se ativam espontaneamente, aprender quando adultos. Podemos aprender os cuidados de pue-
ainda assim, podemos ampliar oportunidades lúdicas ao oferecer ricultura, quais procedimentos são adequados, como alimentar a
brinquedos. Quais seriam os mais decisivos? criança, enfim, sempre aprendemos, durante toda a vida adulta.
Mas, a competência social básica, à qual me refiro, diz respeito à
A boneca é um deles! O que acontece quando a criança tem
maneira como um ser humano se vincula a outro que acabou de
uma boneca em seus braços? Qual é o ganho conquistado a partir da
chegar, à criancinha. Que vínculo é esse tão necessário na atualida-
interação de uma criança com sua boneca? É o cuidado! A boneca é
de? É isso que podemos denominar de competência social básica.
um apelo ao cuidado. O primeiro ganho é o cuidado com ela mesma.
A criança vai exercitando uma forma de cuidar de si mesma. Ao vestir É interessante observar que, além dessas duas conquistas –
a boneca, estará praticando vestir-se sozinha, um dia. A criança que que é cuidar de si mesmo e depois, um dia, poder cuidar de uma
alimenta sua boneca, conseguirá se alimentar melhor. criancinha –, existe na relação com a boneca a possibilidade de ela
tornar-se uma referência.
Outro ganho é a base – a base mais sólida – da futura
competência social. Como uma criança que brincou, que cui- No livro autobiográfico A Roda da Vida1, a médica Elisabeth
dou de sua boneca atuará quando for pai ou mãe? Nós não Kübler Ross relata que, sendo trigêmea, estava sempre acompanha-
as instruímos, elas imitam espontaneamente os cuidados da pelas duas irmãs. Certa vez, ela adoeceu e ficou sozinha no hospi-
que recebem e que vivenciam ao seu redor, enquanto brin- tal, quando, então, ganhou uma boneca. É impressionante este rela-
cam. Se vivenciamos o processo do cuidar enquanto somos to autobiográfico que expressa a importância que a boneca teve para
crianças, ganhamos a base para a competência social que ela. Ela não estava mais com as duas irmãs, com as quais esteve desde
levará a marca do indivíduo. Entretanto, toda a trajetória de sempre, e conta como a boneca ocupou esse lugar de referência:
vida pode modificar esta interação, pois também podemos 1 KÜBLER – ROSS, ELISABETH: A Roda da Vida, 2º ed., Rio de Janeiro, ed. Sextante, 1998, p. 32,33.
“... No entanto, depois de vários dias, minha febre baixou e a tos-
se diminuiu. E, numa manhã, papai apareceu outra vez. Mandou que
eu levantasse meu corpo esmirrado da cama e seguisse pelo corredor
até um pequeno vestiário.
– Há uma coisinha lá esperando por você – disse.
Embora eu não sentisse as pernas firmes, minha animação le-
vou-me pelo corredor, onde imaginava que encontraria minha mãe
e minhas irmãs prontas para me fazerem uma surpresa. Em vez
disso, entrei num quarto vazio. A única coisa lá dentro era uma pe-
quena mala de couro. Meu pai enfiou a cabeça pela porta e disse-
-me para abrir a maleta e vestir-me depressa. Eu estava fraca e com
medo de cair, além de mal ter forças para abrir a maleta. Mas não
queria desobedecer a meu pai e talvez perder a oportunidade de ir
para casa com ele.
Assim, usei toda a minha energia para abrir a mala. E encon-
trei a melhor surpresa de toda a minha vida. Dentro, estavam minhas
roupas bem dobradas, obviamente por minha mãe, e, por cima de
tudo, uma boneca negra. Era a boneca negra com que eu havia so-
nhado por muitos meses. Peguei-a e comecei a chorar. Nunca tivera
antes uma boneca só minha. Nenhuma. Nem um brinquedo ou peça
de roupa que não dividisse com minhas irmãs. Mas aquela boneca
negra era evidentemente minha, toda minha, claramente distinguível
das bonecas brancas de Eva e Erika. Estava tão feliz que tive vontade
de dançar – se minhas pernas fracas aguentassem. ”
É realmente importante constatar que toda criança tem um criança recém-nascida e no bebê, um quarto de seu tamanho cor-
objeto de referência. Pode ser um paninho, o travesseiro, um bicho responde à cabeça. Esta proporção se modifica no decurso da vida.
de pelúcia, a chupeta e, frequentemente, a criança os coloca em sua Como se modifica essa proporção? Conforme se dá o crescimento,
cama. Ainda há crianças que têm como referência objetos de varia- o tórax e os membros crescem mais do que a cabeça, ela se torna
das formas e materiais: carrinhos de metal, caixas, cestinhas, livros, proporcionalmente menor ao longo do processo de crescimento. Por
toquinhos de madeira, pedras etc. E a criança também os coloca em isso, o bebezinho pode ganhar uma boneca que seja quase só cabe-
sua cama e adormece junto a eles. Quais as consequências para a ça – mais adiante, exemplificaremos como é fácil confeccionar tal
criança quando ela estabelece vínculo com um objeto duro, frio e boneca. A criança maior precisa de uma boneca que seja mais pare-
com arestas, daquele que ela estabelece com sua boneca? Sempre cida com ela mesma. Muitas bonecas, mesmo as confeccionadas de
que a criança se vincula, se afeiçoa a algo, isso se torna referência tecido, têm a cabeça achatada, em forma de disco. Mas o disco não
para ela. Mas por que a boneca teria uma condição diferente dos é a forma de nossa cabeça. E ainda podem ter grande desproporção
outros objetos? entre cabeça e membros.
A boneca é a imagem do ser humano! Ela proporciona o vín-
E quanto aos meninos: quais são os “bonecos” que eles ga-
culo com tudo o que é humano. Nesse sentido, é preciso atentar para
nham? Monstros, “transformers”, super-heróis, enfim, uma infini-
as características da boneca que oferecemos.
dade de tipos de bonecos que até possuem garras! Que referência
O corpo humano tem características próprias: a cabeça bem é essa? Ao invés de ter mãos que podem acariciar, aprender tantas
redonda, a proporção entre cabeça e membros, e membros que se coisas, o boneco tem garras! E nos aparelhos de televisão, tablets e
movem. Quando todas essas características estão presentes numa celulares, o que a criança vivencia, uma vez que nem mesmo a tridi-
boneca, esta pode representar o humano com autenticidade. Na mensionalidade está presente?
Quando oferecemos à criança a imagem de ser humano que quando vivenciamos: “aqui é o meu lugar, esta é minha tarefa”, isto
pode ser ela mesma, precisamos atentar para as proporções e a for- nos entusiasma, nos faz seguir em frente!
ma humana, no sentido de que essa imagem seja a mais propícia
Assim, sobretudo com as bonecas, cuidamos para que te-
para o desenvolvimento do afeto.
nham o seu lugar. Qual é o local mais adequado? Depende do espa-
A partir destas reflexões sobre a importância da relação afe- ço disponível, da idade da criança e da autonomia que ela tem para
tiva que se estabelece entre a criança e a boneca, podemos nos lidar com os brinquedos. Para um bebê não é necessário guardar a
perguntar: qual seria o lugar adequado para guardá-la? É necessá- boneca, pois ela pode estar ao seu lado, no berço. Quanto menor a
rio privilegiar o acesso da criança à boneca. Existem algumas tão criança, tanto mais necessário é que ela tenha a sua boneca. Cons-
elaboradas e delicadas que acabam por ser colocadas em pratelei- tantemente, procuramos fazer com que a criança compartilhe o que
ras envidraçadas; elas ficam ali, bem bonitas, como se estivessem possui com os irmãos, os colegas; mas a possibilidade de dividir com
numa vitrine. As crianças apenas olham. E nesta situação, qual é o alguém é posterior à percepção de si mesma, fato que ocorre por
vínculo que elas podem estabelecer? Certamente, não há cuidado, volta dos três anos de idade, quando a criança percebe a si mesma
nem zelo, nem aconchego nessa relação. e se denomina “Eu”.
É muito importante que cada coisa tenha seu lugar; cada ser Presenciei uma relação maravilhosa entre os bebês e suas
humano busca seu lugar no mundo. Quando as crianças aprendem respectivas bonecas, em um berçário, onde as educadoras fizeram
que tudo tem seu devido lugar, elas também exercitam qual é o seu uma boneca de pano para cada um dos bebês. Elas confeccionaram,
espaço. É claro que elas ainda não o conhecem racionalmente, isso bordaram o nome de cada criança, e essas bonecas ficavam no berço
é um processo. Podemos levar a vida inteira buscando saber qual sempre junto aos bebês.
é nosso lugar no mundo. Este anseio nos acompanha sempre, e