O Rei Pálido David Foster Wallace

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 770

Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Nota do editor
§1
§2
§3
§4
§5
§6
§7
§8
§9
§10
§11
§12
§13
§14
§15
§16
§17
§18
§19
§20
§21
§22
§23
§24
§25
§26
§27
§28
§29
§30
§31
§32
§33
§34
§35
§36
§37
§38
§39
§40
§41
§42
§43
§44
§45
§46
§47
§48
§49
§50

Notas e apartes
Quatro cenas previamente inéditas de O rei pálido
Sobre o autor
Créditos
Nota do editor

Em 2006, dez anos depois da publicação de Graça infinita, de David


Foster Wallace, a editora Little, Brown se preparava para lançar uma edição
de aniversário daquele romance incrível. Eles organizaram comemorações
em livrarias de Nova York e Los Angeles, mas, com os eventos já se
aproximando, David resistia à ideia de participar. Eu liguei para ele, para
tentar convencê-lo. “Você sabe que eu vou se você insistir”, ele disse. “Mas
por favor não insista. Eu estou enfiado numa coisa mais longa aqui, e é
difícil pra mim mergulhar de novo quando fazem eu me afastar.”
“Uma coisa mais longa” e “a coisa longa” eram os termos que David
usava para se referir ao romance que estava escrevendo nos anos que se
seguiram a Graça infinita. Ele publicou vários livros nesses anos —
coletâneas de contos em 1999 e 2004 e de ensaios em 1997 e 2005. Mas o
plano de um novo romance não saía do horizonte, e David não gostava de
falar disso. Uma vez, quando o pressionei, ele comparou o processo de
trabalhar no novo romance com uma pessoa tentando controlar lâminas de
madeira balsa sob um vento forte. De sua agente literária, Bonnie Nadell, eu
ouvia uma ou outra notícia: David estava assistindo a aulas de contabilidade
como parte da pesquisa para o romance. A história se passava num centro
de processamento de declarações de imposto de renda da Receita Federal
americana (Internal Revenue Service — IRS). Eu tivera a imensa honra de
trabalhar com David, como seu editor, em Graça infinita, e tinha visto os
mundos inteiros que ele fez nascer a partir de uma academia de tênis e de
uma casa de reabilitação. Se alguém podia deixar o imposto de renda
interessante, imaginei, seria ele.
Até a morte de David, em setembro de 2008, eu não tinha visto uma
única palavra desse romance; havia lido apenas alguns contos dele
publicados em revistas, contos sem nenhuma ligação aparente com
contabilidade ou com o fisco. Em novembro, Bonnie Nadell e Karen Green,
a viúva de David, foram dar uma olhada no escritório dele, uma garagem
com uma janelinha pequena na casa onde moravam, em Claremont, na
Califórnia. Sobre a mesa de David, Bonnie encontrou uma pilha bem
organizada de páginas inéditas, doze capítulos que chegavam a quase 250
páginas. Na etiqueta de um CD que continha esses capítulos, ele tinha escrito
“Para LB, adiantamento?”. Bonnie tinha conversado com David sobre a
possibilidade de ele reunir alguns capítulos do romance e enviar à Little,
Brown, para eles começarem as negociações de um novo contrato e de um
adiantamento de direitos autorais. Ali estava aquele manuscrito parcial,
jamais enviado.
Ao examinar o escritório de David, Bonnie e Karen encontraram
centenas e centenas de páginas desse romance em elaboração, ao qual ele
dera o título de “O rei pálido”. Pastas com folhas soltas, HDs, pastas de
arquivos, cadernos de espiral e disquetes continham capítulos impressos,
resmas de papel escritas à mão, notas e muito mais. Fui até a Califórnia a
convite delas e dois dias depois voltei para casa com uma mala verde de
viagem e duas sacolas de compras entupidas de manuscritos. Uma caixa
com os livros que David tinha usado em sua pesquisa seguiria pelo correio.
Lendo esse material nos meses seguintes, encontrei um romance
impressionantemente completo, criado com a originalidade transbordante e
o humor que eram a marca singular de David. Enquanto lia aqueles
capítulos, sentia uma alegria inesperada, porque estar naquele mundo que
David havia criado era como estar na presença dele, como se eu pudesse
esquecer por alguns momentos o fato horroroso de ele estar morto. Alguns
trechos estavam datilografados com capricho e tinham sido revisados
inúmeras vezes. Outros eram esboços escritos com a caligrafia minúscula
de David. Alguns — entre os quais os capítulos encontrados na mesa —
tinham sido aprimorados recentemente. Outros eram bem mais velhos e
continham linhas de enredo abandonadas ou substituídas. Havia notas e
tentativas que não vingaram, listas de nomes, ideias de enredos, instruções
para ele mesmo. Tudo com uma exuberância viva e repleto de observações;
ler essas coisas era o que de mais próximo havia de ver sua mente
atordoante brincando com o mundo. Um caderno de trabalho com capa de
couro ainda estava fechado em volta de uma hidrográfica verde com a qual
David tinha escrito não fazia muito tempo.
Em nenhum lugar de todas essas páginas havia um esquema ou qualquer
outra indicação da ordem que David vislumbrava para esses capítulos.
Havia umas poucas notas bastante gerais sobre a trajetória do romance, e as
versões dos capítulos muitas vezes vinham precedidas ou seguidas das
orientações que David escrevia para si próprio sobre de onde vinha ou para
onde poderia ir um personagem. Mas não havia uma lista de cenas, nenhum
desfecho estabelecido, nada que pudesse ser visto como um conjunto de
instruções ou orientações para O rei pálido. Enquanto eu lia e relia esse
monte de páginas, mesmo assim foi ficando claro que David tinha se
aprofundado muito no romance, criando um ambiente complexo e vivo — o
Centro Regional de Análise do IRS em Peoria, Illinois, em 1985 — e um
interessante grupo de personagens que combatiam ali os demônios
gigantescos e aterrorizadores da vida comum.
Karen Green e Bonnie Nadell pediram que a partir daquelas páginas eu
montasse a melhor versão de O rei pálido que eu pudesse. Fazer isso foi o
maior desafio que encarei na vida. Mas, depois de ler aquelas páginas de
versões prévias e notas, eu queria que as pessoas que apreciavam o trabalho
de David pudessem ver o que ele tinha criado — queria que tivessem a
chance de dar mais uma espiada naquela mente extraordinária. Apesar de
não ser de maneira alguma uma obra terminada, O rei pálido me pareceu
tão profundo e tão corajoso quanto toda a obra de David. Trabalhar neste
livro foi o melhor gesto de carinho que eu pude fazer à memória de David.
Para a montagem deste livro, segui pistas internas contidas nos próprios
capítulos e nas notas de David. Não foi um trabalho simples: mesmo um
capítulo que parecia ser o óbvio ponto de partida do romance revela, numa
nota de rodapé e, ainda mais indiretamente, numa versão anterior do próprio
capítulo, ter sido concebido como algo que aparece bem depois de
começado o livro. Outra nota no mesmo capítulo se refere ao romance
como algo cheio de “pontos de vista alternados, fragmentação estrutural,
incongruências internas propositais”. Mas muitos capítulos revelavam uma
narrativa central que segue uma cronologia razoavelmente clara. Nessa
trama, vários personagens chegam ao Centro Regional de Análise de Peoria
no mesmo dia de 1985. Eles recebem um treinamento básico e começam a
trabalhar e a aprender a respeito do vasto mundo do processamento de
declarações de imposto de renda. Esses capítulos e esses personagens
recorrentes têm uma sequência evidente que forma a espinha dorsal do
romance.
Outros capítulos são autossuficientes e não estão incluídos em nenhuma
cronologia. Organizar essas seções autônomas foi a parte mais difícil do
processo de edição de O rei pálido. Foi ficando claro, enquanto eu lia, que
David planejava para o romance uma estrutura parecida com a de Graça
infinita, com grandes porções de informação aparentemente não
relacionadas sendo apresentadas ao leitor antes que uma trama principal
comece a emergir. Em várias notas que escreveu para si próprio, David se
referia ao romance como algo “tornádico” ou que transmitia uma “sensação
de tornado” — sugerindo pedaços de histórias que vão desabando sobre o
leitor em giros de alta velocidade. Quase todos os capítulos não
cronológicos têm a ver com o cotidiano do Centro Regional de Análise,
com os trâmites e o folclore do IRS, e com ideias relacionadas a tédio,
repetição e familiaridade. Alguns deles são histórias nascidas de diversas
infâncias incomuns e difíceis, cuja relevância aos poucos vai ficando clara.
Meu objetivo ao colocar essas partes em ordem foi fazer isso de modo que a
informação nelas contida surgisse a tempo de dar apoio à trama
cronológica. Em alguns casos a localização de cada parte é essencial para
que a história se desenrole; em outros trata-se de uma questão de ritmo e de
atmosfera, por exemplo inserir breves capítulos cômicos entre longos
trechos sérios.
A história central do romance não tem um final claro, e a pergunta
inevitavelmente surge: quanto esse romance é inacabado? Quanto ainda
haveria? Não podemos saber, dada a inexistência de um esquema detalhado
que indicasse cenas e histórias ainda por escrever. Algumas notas entre os
manuscritos de David sugerem que ele não pretendia que o romance tivesse
uma trama substancialmente diferente da que aparece nestes capítulos. Uma
delas diz que o romance é “uma série de preparações para que as coisas
aconteçam sem que nada jamais aconteça”. Outra declara que há três
“figuras centrais… mas nunca os vemos, só seus auxiliares e aqueles que
preparam o caminho deles”. Outra ainda sugere que em todo o romance
“algo grande ameaça acontecer sem chegar de fato a acontecer”. Essas
linhas poderiam sustentar o argumento de que a aparente incompletude do
romance é de fato intencional. David terminou seu primeiro romance no
meio da fala de um personagem e o segundo com grandes questões da trama
abordadas apenas de maneira tangencial. Um personagem de O rei pálido
descreve uma peça que escreveu em que um homem fica sentado a uma
mesa, trabalhando em silêncio, até a plateia ir embora, quando então a ação
da peça se inicia. Mas, ele continua, “eu nunca consegui decidir isso da
ação, se era pra ter ação”. Na seção intitulada “Notas e apartes”, no fim do
livro, transcrevi algumas notas de David sobre os personagens e a história.
Essas notas e certos trechos do livro sugerem determinadas ideias sobre a
direção e o formato do romance, nenhuma das quais me parece definitiva.
Acho que David estava explorando o mundo que havia criado e ainda não
tinha lhe dado uma forma final.
As páginas do manuscrito sofreram apenas uma leve edição. Um dos
objetivos foi tornar os nomes dos personagens coerentes (David inventava
nomes novos o tempo todo) e fazer nomes de lugares, postos de trabalho e
outras questões concretas coincidirem ao longo do livro. Outra meta foi
corrigir erros gramaticais óbvios e repetições de palavras. Alguns capítulos
do manuscrito estavam designados como “Versão zero” ou “Escrita livre”,
termos que David usava para suas primeiras tentativas, nos quais havia
notas como “Cortar 50% na próxima revisão”. Fiz um ou outro corte para
privilegiar o sentido ou o ritmo, ou para encontrar o ponto onde se pudesse
encerrar um capítulo que se interrompia ainda em desenvolvimento. Minha
intenção ao pôr o manuscrito em ordem e editá-lo foi permitir que os
leitores se concentrassem nas enormes questões que David pretendia
apresentar e deixar a história e os personagens o mais compreensíveis
possível. As versões originais completas desses capítulos, bem como todo o
material de onde se extraiu este romance, vão ficar, futuramente, à
disposição do público no Harry Ransom Center da Universidade do Texas,
que abriga todos os documentos de David Foster Wallace.
David era um perfeccionista do mais alto grau, e não há dúvida de que O
rei pálido seria imensamente diferente se ele tivesse sobrevivido para
concluí-lo. Há nestes capítulos certas recorrências de palavras e imagens
que, tenho certeza, ele teria reconsiderado: as expressões “sacanagem” e
“pegar no pé”, por exemplo, provavelmente não seriam repetidas tantas
vezes. Pelo menos dois personagens têm fantoches de dobermanns. Essas e
inúmeras outras repetições e desleixos típicos de um original teriam sido
corrigidos e aperfeiçoados se David tivesse continuado a escrever O rei
pálido. Mas ele não continuou. Se minha escolha era entre me esforçar para
disponibilizar este texto menos-que-pronto na forma de livro ou colocá-lo
numa biblioteca onde apenas acadêmicos o leriam e comentariam, não
hesitei nem um único segundo. Mesmo inacabada, esta é uma obra
brilhante, a exploração de alguns dos desafios mais profundos da vida e
uma empreitada de uma extraordinária audácia artística. David decidiu
escrever um romance sobre alguns dos temas mais difíceis do mundo —
tristeza e tédio — e transformar essa exploração em nada menos que algo
dramático, engraçado e comovente ao extremo. Todos que trabalharam com
David sabem como ele resistia à ideia de permitir que o mundo visse um
trabalho que não estivesse burilado segundo seus exigentes padrões. Mas
um romance inacabado é o que temos, e como poderíamos não olhar para
ele? David infelizmente não está aqui para nos impedir de ler ou para nos
perdoar por querermos.
Michael Pietsch
Preenchemos formulários preexistentes e quando os
preenchemos nós os modificamos e somos modificados por
eles.

Frank Bidart, Borges and I


§ 1

Além das planícies de flanela e dos gráficos asfálticos e horizontes de


ferrugem enviesada, e além do rio marrom-tabaco toldado de plantas
chorosas e pontos de raios de sol que passavam por entre elas para a água
rio abaixo, até o ponto além do quebra-vento, onde campos não arados
fervilham estridentes no calor matutino: massambala, huauzontle,
andrequicé, salsaparrilha, junça, estramônio, alevante, amargosa, cauda-de-
raposa, muscadínea, repolho-de-espinha, lanceta, dinheiro-em-penca,
abútilo, beladona, ambrósia, semeia-vento, vícia, capim-de-açougueiro,
invaginadas vagens voluntárias, cabeças todas sob a brisa da manhã
acenando delicadas como a mão suave de uma mãe no seu rosto. Uma seta
de estorninhos disparada do teto de colmo do quebra-vento. O brilho de
orvalho que fica onde está e solta fumaça o dia todo. Um girassol, mais
quatro, um em reverência, e cavalos à distância parados rígidos e imóveis
como brinquedos. Todos acenando. Sons elétricos de insetos ocupados
cuidando da vida. Luz do sol cor de cerveja e céu clarinho e verticilos de
cirros tão altos que não projetam sombra. Insetos ocupadíssimos o tempo
todo. Crostas de quartzo e sílex e xisto e de ferro de condritos no granito.
Uma terra muito velha. Olhe em volta. O horizonte trepidante, sem forma.
Somos, todos nós, irmãos.
Uns poucos corvos vêm no alto então, três ou quatro, não um augúrio,
alados, calados e embalados, rumo à cerca da pastagem e do milho, além da
qual um cavalo cheira o traseiro do outro e o da frente aceita levantar a
cauda. A marca do teu sapato gravada no orvalho. Uma brisa de alfafa.
Cardos nas meias. Sons secos de arranhões sob um bueiro. Arame
enferrujado e postes adernados, mais um símbolo de limites que uma cerca
propriamente. PROIBIDO CAÇAR. A interestadual que zumbe te mandando ficar
quieto lá além do quebra-vento. Os corvos da pastagem pousados nos
cantos, revirando esterco para pegar as minhocas embaixo deles, as formas
das minhocas gravadas no esterco revirado e assadas pelo sol o dia todo até
endurecer, vieram para ficar, minúsculas linhas vagas em fileiras e espirais
entalhadas que não se fecham porque a cabeça nunca chega bem a tocar a
cauda. Leia isso tudo.
§ 2

De Midway Claude Sylvanshine foi depois até Peoria num voo de


alguma coisa chamada Consolidated Thrust Regional Lines, num
aviãozinho apavorante de trinta lugares cujo piloto tinha espinhas na nuca e
esticava o braço para puxar uma cortina de tecido e isolar a cabine e cujo
serviço de bordo consistia numa moça cambaleante que te passava sub-
repticiamente umas castanhas enquanto você virava uma Pepsi. A poltrona
junto à janela de Sylvanshine era 8-alguma-coisa, saída de emergência, ao
lado de uma senhora de mais idade com uma papada que parecia um alforje
e que apesar de aplicados esforços parecia não conseguir abrir as castanhas.
A equação contábil básica A 5 L 1 C pode ser dissolvida e reembaralhada
de tudo quanto é jeito, de C 5 A 2 L em diante. O avião percorria correntes
de ar ascendentes e descentes como um bote numa ventania. Os únicos voos
para Peoria eram regionais, saindo ou do aeroporto de St. Louis ou dos dois
de Chicago. Sylvanshine tinha um problema no ouvido interno e não
conseguia ler em avião, mas leu o cartão plastificado de emergência duas
vezes. Eram quase só figuras; por questões jurídicas, a companhia aérea era
obrigada a pressupor analfabetismo. Sem consciência de estar fazendo isto,
Sylvanshine repetiu mentalmente a palavra analfabeto várias vezes até ela
deixar de fazer sentido e se tornar apenas um som rítmico, não desprovido
de fascínio mas fora de sincronia com o pulsar do fluir das hélices. Era algo
que ele fazia quando estava sob tensão e não queria uma incursão. O ponto
de partida dele foi Dulles depois que um ônibus do Serviço o trouxe de
Shepherdstown/Martinsburg. Já que as três principais codificações da lei
tributária americana, é claro, são as de 16, 39 e 54, com as determinações
de indexação e de antiabuso fiscal de 81 e 82 sendo também relevantes. O
fato de que outra grande recodificação estava no horizonte não iria cair,
obviamente, no exame para Contador Oficialmente Credenciado. O objetivo
pessoal de Sylvanshine era passar no exame para COC, galgando assim de
imediato duas posições na escala salarial. A extensão da recodificação
dependeria, certamente, em parte do sucesso do Serviço em levar a cabo as
diretrizes da Iniciativa. O trabalho e a prova tinham que ocupar duas partes
separadas da cabeça dele; era crucial manter a separação dos poderes. A
separação das duas áreas. Calcular a recuperação da depreciação de artigos
§1231 é um processo de cinco etapas. O voo demorou cinquenta minutos e
pareceu bem mais longo. Não havia o que fazer e nada ficava quieto dentro
da cabeça dele com todo aquele barulho enclausurado, e depois que as
castanhas acabaram a única coisa que Sylvanshine podia fazer para ocupar a
mente era tentar olhar o chão que parecia tão próximo que ele podia
distinguir as cores das casas e os tipos diferentes de veículos na pálida
rodovia interestadual que o avião parecia cruzar e recruzar. As figuras que
no cartão abriam portas de emergência, puxavam cordões e se agarravam
aos assentos da poltrona com braços de morto cruzados sobre o peito
pareciam desenhadas por um amador e tinham traços que eram pouco mais
que calombos; você não via medo, alívio nem nada de real no rosto delas
enquanto escorregavam pelas saídas de emergência ali do desenho. As
maçanetas das portas de emergência abriam de um jeito e as escotilhas de
emergência acima das asas abriam de outro completamente diferente. Os
componentes do patrimônio líquido incluem ações comuns, lucros não
realizados e quantos tipos diferentes de transações SE. Diferencie inventário
perpétuo e periódico e explique a(s) relação(ões) entre um inventário físico
e o custo dos bens vendidos. A cabeça de um cinza-escuro à sua frente
soltava um aroma de Brylcreem que naquele exato momento haveria de
estar empapando e manchando a toalhinha de papel da parte de cima da
poltrona. Sylvanshine desejou de novo que Reynolds estivesse com ele no
voo. Sylvanshine e Reynolds eram auxiliares do ícone dos Sistemas Merrill
Errol (“Mel”) Lehrl embora Reynolds fosse um GS-11 e Sylvanshine apenas
um miserável e patético GS-9. Sylvanshine e Reynolds moravam juntos e
iam juntos a todo e qualquer lugar desde a debacle do CRA de Rome em 82.
Eles não eram homossexuais; só moravam juntos e trabalhavam os dois
muito próximos do dr. Lehrl nos Sistemas. Reynolds tinha tanto o COC
quanto um diploma em Gerenciamento de Sistemas de Informação apesar
de ser apenas dois anos e pouco mais velho que Claude Sylvanshine. Essa
assimetria era só mais uma das coisas que fragilizavam a autoestima de
Sylvanshine depois de Rome e o deixavam duplamente leal e grato ao
Diretor de Sistemas Lehrl por tê-lo resgatado dos destroços da catástrofe de
Rome e acreditado no seu potencial assim que ele encontrasse seu nicho
como engrenagem do sistema. O método de entradas duplas criado pelo
italiano Pacioli no mesmo período em que C. Colombo et alia. O cartão
indicava que se tratava do tipo de aeronave cujo suprimento de oxigênio de
emergência era uma coisinha meio com jeito de extintor de incêndio
embaixo dos assentos, em vez de cair do alto. A opacidade primitiva do
rosto das figuras era na verdade mais aterrorizante do que teria sido o medo
ou algum tipo de expressão visível. Não ficava claro se a função primária
do cartão era jurídica ou de RP ou as duas coisas. Por algum tempo tentou
lembrar a definição de arfagem. Bem de vez em quando ao estudar para a
prova durante o inverno, Sylvanshine arrotava e parecia que era mais que
um arroto; o gosto era quase como se ele tivesse vomitado um pouquinho.
Uma chuva leve criava um rendilhado móvel na janela e distendia a terra
hachurada que eles sobrevoavam. No fundo do peito, Sylvanshine se via
como um bocó amedrontado que tinha no máximo um único talento
marginal cuja conexão com ele era também marginal.
Eis o que aconteceu no Centro Regional de Análise Nordeste do Serviço
em Rome, NY, na ou em torno da data em questão: dois departamentos
estavam acumulando atrasos e reagiram de maneira lamentavelmente não
profissional, permitiu-se que uma atmosfera de tensão extrema nublasse os
raciocínios e passasse por cima dos protocolos estabelecidos, com o
departamento tentando ocultar a pilha cada vez maior de declarações e
recibos de auditoria e cópias W-2/1099 em vez de relatar devidamente o
atraso e solicitar que algo desse acúmulo fosse redistribuído para outros
centros. Deixou de haver total transparência e pronta ação paliativa. O
ponto exato da ocorrência do fracasso e do colapso era ainda questão
controversa apesar da gritaria generalizada nos mais altos níveis da
Adimplência, conquanto a responsabilidade final recaia sobre a Diretora do
CRA de Rome apesar do fato de nunca se ter estabelecido de maneira plena
se os chefes dos departamentos tinham informado integralmente a extensão
dos atrasos. A piadinha de humor negro no Serviço sobre essa Diretora
agora era que a mesa dela tinha uma trumanesca placa de madeira que dizia:
QUE GRANA? Levou três semanas para as seções de Auditoria Distrital
começarem a berrar por causa do déficit de declarações verificadas para as
auditorias e/ou os Sistemas de Coleta Automatizada e as queixas foram
chegando lentamente até Inspeções como qualquer um teria sido capaz de
imaginar que era só questão de tempo. A Diretora de Rome tomou uma
aposentadoria precoce e um Gerente de Grupo foi demitido de cara, o que
era extremamente raro para um GS-13. Sem dúvida era importante que as
ações corretivas fossem discretas e que nenhuma atenção indevida
comprometesse as plenas fé e confiança do público no Serviço. Ninguém
jogou fora as declarações. Esconder, tudo bem, mas destruir ou descartar,
não. Nem no meio de uma desastrosa psicose departamental alguém teria
chegado a ponto de queimar, picotar ou meter em sacos plásticos e
descartar. Isso teria sido um desastre de verdade — isso teria se tornado
público. A janela da escotilha de emergência era nada mais que várias
camadas de plástico, ao que parecia, cuja parte interna cedia ominosamente
sob pressão digital. Acima da janela havia uma severa injunção contra a
ideia de abrir a escotilha de emergência, acompanhada de um tríptico
icônico que explicava em detalhe como abrir aquela escotilha. Como
sistema, em outras palavras, era bem mal concebido. O que hoje se chama
estresse antes as pessoas chamavam de estafa ou pressão. Pressão agora era
mais tipo uma coisa que você põe nos outros, como na expressão
“vendedores que trabalham sob pressão”. Reynolds disse que um dos
contatos interescritórios do dr. Lehrl tinha descrito o CRA de Peoria como
“uma puta panela de pressão”, se bem que isso era em termos da Análise, e
não do RH, onde Sylvanshine acabou lotado para sondagens e preparações
de um possível redimensionamento dos Sistemas. A verdade, que Reynolds
praticamente disse com todas as letras, era que a tarefa não podia ser tão
central assim se eles a confiavam a Sylvanshine. Havia, segundo suas
pesquisas, vagas para se inscrever para a prova de COC do Peoria College of
Business nos dias 7 e 8 de novembro e no Joliet Community College em
14-15 de novembro. Duração desse trabalho: desconhecida. Um dos mais
efetivos exercícios isométricos para quem trabalha o dia todo numa mesa é
sentar em posição bem ereta e tensionar os grandes músculos das nádegas,
segurando assim enquanto se conta até oito, e aí soltar. Ele tonifica,
estimula a circulação sanguínea e mantém a pessoa alerta, e pode, ao
contrário de outros exercícios isométricos, ser realizado até em público,
sendo em grande medida obnubilado pela massa material da mesa. Evite
caretas ou exalações ruidosas ao soltar a tensão. Transferências
preferenciais, legislação de falência, credores sem garantias, solicitações
contra espólios em bancarrota cf. Cap. 7. Ele estava com o chapéu no colo,
sobre o cinto. Lehrl, o Diretor dos Sistemas, começou como auditor GS-9 em
Danville, VA, antes de sua fulgurante ascensão. Tinha a força de dez
homens. Quando Sylvanshine estudava para a prova a pior parte agora era
que estudar uma coisa detonava uma tempestade na cabeça dele a respeito
de todas as outras coisas que não tinha estudado e em que ainda se sentia
fraco, o que praticamente impossibilitava a concentração, fazendo com que
ele se atrasasse ainda mais. Ele estava estudando para a prova de COC havia
três anos e meio. Era como insistir em montar uma maquete sob um vento
forte. “O componente mais importante para a organização de uma estrutura
eficiente de estudo é”: alguma coisa. O que acabava com ele eram os
problemas narrativos. Reynolds tinha passado de primeira na prova.
Arfagem é a rotação em que o avião ergue e abaixa o nariz. A palavra para
oscilar lateralmente era outra. Tinha uma coisa de eixos. Existia alguma
coisa chamada cardan ou “cardã” que vinha à sua cabeça sempre que ele via
aquele rapaz, o Donagan, lá da escola Lombard que depois acabou no
Controle da Missão das duas últimas Apollos e cuja foto ficava numa
estante de vidro perto do escritório da Lombard. O pior era que aí ele sabia
quais dos seus professores eram as pessoas menos adequadas para aquele
trabalho, e aí eles farejavam alguma parte desse conhecimento nele e davam
o seu pior quando ele estava olhando. Era um círculo completo. O livro de
formatura de Sylvanshine, dentro do baú que ele guardava num depósito na
Filadélfia, praticamente não tinha assinaturas. A pessoa idosa ali ao lado
ainda estava tentando abrir o pacote de castanhas com os dentes, mas tinha
deixado bem claro que não queria nem precisava de ajuda. A obrigação de
benefícios projetados (OBP) é igual ao valor presente de todos os benefícios
atribuídos pela fórmula de benefícios de pensão aos serviços prestados por
funcionários anteriormente àquela data. Se você falar rapidinho com um tch
no lugar do x e como se tivesse trema, aí enxaqueca vira uma parlendinha
infantil, quase dá pra pular corda. Olhe pra dentro da sua camisa e soletre
ócio. Um dos adolescentes na frente do fliperama perto das instalações do
aeroporto de Midway estava com uma camiseta preta com o texto SYMPATHY
FOR NIXON TOUR e aí uma lista enorme de cidades numas letrinhas
minúsculas de aplique. O adolescente, que não estava no voo, depois tinha
ficado um tempo sentado na frente de Sylvanshine na área dos portões
cutucando o rosto com uma concentração que não era nada semelhante ao
gesto distraído de cutucar e tatear partes do rosto que acompanhava o
trabalho concentrado no Serviço. Sylvanshine ainda sonhava com gavetas
de mesas e dutos de ar entupidos de declarações, pontas e mais pontas de
declarações despontando das grades dos dutos, o armário de material de
limpeza cheio de holerites até o teto, a moça da Divisão de Inspeções
arrombando a porta, os cartões todos caindo em cima dela como o armário
de Fibber McGee quando a debacle toda desabou na cabeça deles depois
que eles acumularam atraso na reanálise de declarações no CRA de Rome.
Ele ainda sonhava com Grecula e Harris inutilizando o mainframe Fornix
com alguma coisa que derramaram de uma garrafa térmica na grade traseira
de ventilação enquanto zumbidos e jatos de uma fumaça azulada saíam dali.
O adolescente não tinha nenhuma aura vocacional; acontecia com algumas
pessoas. Padrões éticos compunham toda a primeira unidade da prova, e
sobre eles havia também muitas piadas internas no Serviço. Uma violação
dos padrões éticos da profissão muito provavelmente teria tido maior
chance de ocorrer quando: o som alienígena das hélices era tão alto que
Sylvanshine agora só conseguia ouvir sílabas soltas das conversas à sua
volta. As garras da mulher presas ao apoio de braços de aço ali entre os dois
era uma visão horrenda que ele declinava de contemplar. Mão de gente
velha lhe dava medo e repulsa. Ele havia tido avós de cujas mãos se
lembrava largadas no colo com aparência de garras e de coisa de outro
mundo. Depois de sua incorporação, a empresa Jones Inc. lança ações
ordinárias com um preço bem acima do valor real. Difícil não imaginar o
rosto das pessoas cujo emprego era criar essas perguntas. O que elas
pensavam, quais eram suas esperanças e seus sonhos profissionais. Muitas
perguntas eram como historinhas com toda a carne humana extirpada. No
dia 1º- de dezembro de 1982, a Clark Co. aluga escritórios por três anos a
um valor mensal de $20 000. Enquanto contava até cem, Sylvanshine tentou
contrair uma nádega e depois a outra em vez das duas ao mesmo tempo, o
que exigia concentração e um tipo curioso de não controle, como tentar
mexer as orelhas se olhando no espelho. Ele tentou aquela coisa de inclinar-
para-o-lado e alongar os músculos do pescoço um lado de cada vez bem aos
poucos e delicadamente, mesmo assim ganhou uma olhada da senhora de
mais idade, que com seu vestido preto e rosto encovado parecia cada vez
mais uma caveira e uma coisa de dar medo e algum tipo de presságio de
morte ou de fracasso retumbante na prova para COC, duas coisas que tinham
se fundido na psique de Sylvanshine, gerando uma única imagem em que
ele, calado e impassível, empurrava um largo esfregão industrial por um
corredor cheio de portas de vidro jateado com nomes de outros homens. A
mera visão de um esfregão, de um balde com rodinhas ou de um zelador
com seu nome bordado em cursivas vermelhas tipo Palmer no bolso do
peito do macacão cinzento (como em Midway, em frente ao banheiro
masculino cuja plaquinha amarela alertava bilingualmente sobre o piso
molhado, sendo o nome cursivo alguma coisa começando com M, Morris
ou Maurice, um homem sob medida para seu trabalho como um homem que
preenche exatamente o bolsão de espaço que ocupa) agora transtornava
Sylvanshine a tal ponto que um tempo precioso se perdia antes de ele
sequer conseguir pensar em como construir um cronograma exequível para
revisões de eficiência máxima para a prova, nem que fosse só mentalmente,
o que ele fazia todo dia. Seu grande ponto fraco era organização estratégica
e gerenciamento de tempo, como Reynolds fazia questão de ressaltar
sempre que tinha oportunidade, intimando Claude a pelo amor de Deus
simplesmente ir lá e pegar um livro da pilha e estudar em vez de ficar ali
sentado matutando impotente sobre quais as melhores maneiras de estudar.
Enfiar declarações atrás de armários e em dutos de ar. Trancar gavetas tão
entupidas de formulários de referências cruzadas que elas não iriam abrir
mesmo que não estivessem trancadas. Esconder coisas embaixo de outras
coisas nos nichos da mesa Tingle. Reynolds simplesmente apareceu no
escritório da Diretora antes da audiência e todo o desastre pessoal
aparentemente sumiu no meio de alguma cortina de fumaça burocrática
roxa e uma semana depois Sylvanshine estava organizando suas coisas nos
Sistemas em Martinsburg sob a chefia do dr. Lehrl. Aquilo tudo lembrava a
sensação de ter estado num quase acidente de trânsito evitado por
centímetros e depois não conseguir nem pensar naquilo tudo sem começar a
tremer e se ver incapaz de funcionar, de tão quase desastre que foi. A Célula
inteira das Gordas se desmanchou. O sonzinho de uma simulação de sino
acompanhou o glifo de cintos de segurança e cigarros se iluminando ou se
apagando lá no alto; Sylvanshine olhava para cima toda vez sem
conscientemente pensar em fazer isso. Ao buscar provas materiais que
sustentem asserções de declarações financeiras, o auditor desenvolve
objetivos auditoriais específicos à luz dessas asserções. Um bebê uivava em
algum ponto atrás dele; Sylvanshine imaginou a mãe simplesmente soltando
o cinto, se recolhendo em outro lugar e deixando o bebê ali. Em Philly,
depois da loucura que cercou a introdução de indexações de inflação para as
quais os novos modelos tiveram que ser reconfigurados em 81, ele recebeu
o diagnóstico de um nervo pinçado decorrente da tensão no pescoço e na
coluna dorsal que a postura não natural e forçada da minúscula e estreita 8-
B e as garras fatídicas no apoio de braços ao lado dele agravavam se desse
atenção a elas. Era verdade: o negócio todo, em termos tanto da prova
quanto da vida, era a que coisas você dava atenção versus a que coisas você
se determinava a não dar. Sylvanshine se considerava fraco ou defeituoso
nessa área da determinação. Quase tudo que os outros estimavam ou
valorizavam nele não era fruto de determinação, era simplesmente algo que
já tinha vindo com ele, como a estatura de alguém ou a simetria facial.
Reynolds dizia que ele era fraco de espírito, e era verdade. Tinha uma
lembrança recorrente do vizinho da família, o sr. Satterthwaite,
preenchendo raspões no sapato do seu uniforme postal com uma caneta
preta que aí antes de ele se dar conta se expandia para toda uma lembrança
narrativa do sr. e da sra. Satterthwaite, que não tinham filhos e não
pareciam, se você tinha acabado de conhecer os dois, as pessoas mais
simpáticas ou mais interessadas em criança, mas que mesmo assim
permitiram que o quintal deles se tornasse o QG efetivo de todas as crianças
do bairro e que até Sylvanshine e o menino Católico Romano com aquele
tique que parecia estar sempre apertando os olhos tentassem construir numa
das árvores a improvisada e insegura casa da árvore, e Sylvanshine não
conseguia lembrar se tinha sido por causa da mudança da família do menino
que a casa não foi terminada ou se a mudança tinha acontecido depois e a
casa da árvore foi sendo simplesmente improvisada e ficando tão empapada
de seiva de árvore que não deu para eles continuarem. A sra. Satterthwaite
tinha lúpus e vivia sofrendo de indisposições. Taxas de desvio, limites de
precisão, amostras estratificadas. Segundo a explicação do dr. Lehrl, a
entropia era uma medida de certo tipo de informação que não fazia sentido
conhecer. O axioma de Lehrl era que o teste definitivo da eficiência de
qualquer estrutura organizacional era a informação e a filtragem e
disseminação da informação. A entropia de verdade tinha lhufas a ver com
temperatura. Outro recurso eficaz de concentração era evocar mentalmente
uma cena externa, tranquilizadora e de baixa pressão, imaginada ou
recordada, e era ainda mais eficaz se a cena compreendesse ou incluísse um
tanque lago rio riacho, pois já se provou que a água tinha um efeito
calmante e estimulante sobre o sistema nervoso involuntário, mas por mais
que ele tentasse depois dos exercícios de nádega Sylvanshine só conseguia
evocar um quadro indefinido em cores primárias que parecia um pôster
psicodélico ou alguma coisa que lembrava o que você vê quando te dão
uma dedada no olho e você fecha o olho por causa da dor. A estranheza da
palavra indisposição. Prove que a relação entre as alíquotas fiscais de
preços de ação no longo prazo e os ganhos capitais de longo prazo não é
inversa. Ele sabia quem no avião estava apaixonado, quem diria que estava
apaixonado porque era o que se esperava dele e quem diria que não estava
apaixonado. A declarada opinião de Reynolds a respeito de
casamento/família era que desde a infância ele nunca gostou de pais e não
tinha desejo de se tornar um. Em três locais diferentes dos vários aeroportos
de hoje Sylvanshine tinha visto a si mesmo devolvendo olhares de homens
de trinta anos de idade com bebês nas costas presos em bolsas high-tech
com jeito de mochila, as mulheres deles com sacolas acolchoadas cheias de
artigos de puericultura, esposas no comando, os homens parecendo
essencialmente moles ou amolecidos de alguma maneira, desesperados de
uma maneira resignada, com um passo que não era exatamente arrastado,
olhos vazios e mansíssimos com o exausto estoicismo dos pais jovens.
Reynolds não chamaria isso de estoicismo mas de aquiescência diante de
alguma verdade imensa e terrível. O termo dependente inclui qualquer
pessoa classificável como isenção de dependência, ou que poderia ser
classificável como isenção de dependência não fosse o fato de que os testes
de renda bruta e declaração conjunta não deram o resultado devido. Elenque
dois instrumentos-padrão pelos quais os fiduciários podem legalmente
transferir um custo fiscal aos beneficiários. A expressão “perdas passivas”
nem estava na prova para COC. Era vital dividir as prioridades do Serviço e
da Prova em dois módulos ou redes excludentes. Um dos quatro projetos
anunciados era aumentar a capacidade de o Peoria 47 distinguir sociedades
de investimento legítimas de paraísos fiscais cujo único propósito era evitar
o fisco. A chave era identificar perdas passivas versus ativas. O projeto de
fato era criar tanto uma defesa da necessidade quanto uma estrutura de
controle para a automação de funções cruciais de análise no Centro de
Peoria. A meta era ter a automação funcionando no momento em que as
Determinações da Receita contra certas provisões acerca de perdas passivas
fossem registradas na lei fiscal do ano que vem. O ruge vermelhíssimo da
senhora de mais idade e um livro com a língua de um marcador de páginas
fechado no colo dela; as garras cheias de veias e todas pintadas. O número
da poltrona de Sylvanshine estava bem ali gravado no aço escovado do
apoio de braços, perto das garras. As unhas delas eram intensa e
perfeitamente rubras. O cheiro do removedor de esmalte da mãe dele, do pó
de maquiagem dela, o jeito com que fiozinhos de cabelo escapavam do
coque dela e desciam se enroscando pela nuca no vapor da cozinha quando
ele e o O’Dowd voltavam do quintal dos Satterthwaite com dedões
martelados e seiva nos cílios. Fiapos e penugens de nuvens descoloridas
passavam velozes pela janela. Acima e abaixo era outra coisa, mas havia
sempre algo de decepcionante nas nuvens quando você estava dentro delas;
elas simplesmente deixavam de ser nuvens. Ficava tudo só meio enevoado.
Arfagem vinha do mesmo verbo arfar, lhe ocorreu assim sem mais nem
menos. Sylvanshine então passou algum tempo tentando sentir o fato de que
seu próprio corpo estava viajando na mesma velocidade da aeronave dentro
da qual ele estava. Num jato grande a sensação era meramente a de estar
sentado numa sala estreita e barulhenta; aqui pelo menos as mudanças nas
pressões da poltrona e do cinto contra seu corpo lhe permitiam ter
consciência do movimento, e parecia haver certa segurança na candura
física desse fato, que parcialmente compensava a fragilidade e o potencial
destroçador do som das hélices, e Sylvanshine tentava pensar a que se
assemelhava o som das hélices mas não conseguia a não ser por um
zumbido rotatório torturantemente hipnótico tão total que podia ser o
próprio silêncio. Uma lobotomia envolvia algum tipo de espeto ou sonda
inserida através do globo ocular, o termo era sempre lobotomia “frontal”;
mas havia outro tipo? Saber que a tensão interna podia provocar o fracasso
na prova só servia para criar tensões internas sobre a possibilidade da
tensão interna. Devia haver outro jeito de lidar com a consciência das
consequências desastrosas que o medo e o estresse podiam provocar.
Alguma resposta ou algum truque voluntário: a capacidade de não pensar a
respeito. E se todo mundo conhecesse esse truque menos Claude
Sylvanshine? Ele tendia a conceitualizar certo Terror final de dimensão
platônica, como uma ave de rapina cuja simples sombra lá no alto bastava
para deixar a presa paralisada e em choque, tremendo enquanto a sombra
aumentava e se transformava em inevitabilidade. Ele com frequência tinha
essa sensação: e se houvesse algo de essencialmente errado com Claude
Sylvanshine que não estava errado nas outras pessoas? E se ele fosse
simplesmente inadequado, assim como certas pessoas nascem sem
membros ou alguns órgãos? A neurologia do fracasso. E se ele tivesse
simplesmente nascido destinado a viver à sombra do Medo e Desespero
Totais e todas as suas supostas atividades fossem tentativas patéticas de
distraí-lo do inevitável? Discuta diferenças relevantes entre contabilidade
de reservas e contabilidade de charge-offs no tratamento fiscal de dívidas
não pagas. Com certeza o medo é um tipo de estresse. O tédio é como o
estresse mas é sua própria Categoria de Dor. O pai de Sylvanshine, sempre
que acontecia alguma coisa ruim em termos profissionais — o que não era
raro —, tinha o costume de dizer “Ai do Sylvanshine”. Existe uma técnica
antiestresse chamada Parar o Pensamento.* O índice de valor presente em
excesso é a relação entre o valor presente das futuras entradas de capital e o
investimento inicial. Segmento, segmento significativo, receita do segmento
combinado, receita absoluta do segmento combinado, lucro operacional.
Variância de preço material. Variância direta de preço material. Ele pensou
na grade removível que cobria o duto de ar sobre a mesa dele e de Ray
Harris no CRA de Rome e no som da grade sendo removida e aí enfiada de
novo no lugar e socada com a base da mão de Harris para encaixar, e aí
fugiu dessa ideia de um jeito que fez ele sentir como se o avião estivesse
acelerando. A rodovia interestadual lá embaixo desaparecia e aí às vezes
reaparecia num ponto que Sylvanshine tinha que espremer a bochecha
direita inteira contra a janela de plástico interna para poder ver, aí quando a
chuva estava voltando e ele podia ver que eles estavam começando a descer
ela reapareceu no centro da janela, com um trânsito leve rastejando com um
páthos vão e sem sentido que você nunca ia conseguir sentir em terra. E se
dirigir parecesse uma coisa tão lenta quanto a que se via dessa perspectiva?
Ia ser que nem tentar correr embaixo d’água. O negócio todo era uma coisa
de perspectiva, filtragem, a escolha dos objetos de percepção. Sylvanshine
tentou visualizar o aviãozinho visto do solo, um objeto cruciforme contra a
cor de água suja da banheira das nuvens, luzes piscando em complexos
padrões contra a chuva. Ele imaginou a chuva no seu rosto. Era leve, uma
chuva da Virgínia Ocidental; ele não tinha ouvido um único trovão.
Sylvanshine uma vez teve um primeiro encontro com uma representante da
Xerox que tinha padrões complexos e um pouco repulsivos de calos nos
dedos por tocar banjo semiprofissionalmente como uma paixão das horas
vagas; e ele lembrou, enquanto o sino lá no alto soou mais uma vez e o sinal
acendeu, com o glifo de não fumar já legalmente redundante, os calos nas
almofadas dos dedos de um amarelo profundo sob a fraca luz do jantar
enquanto ele conversava com a musicista sobre intricadas questões de
contabilidade forense e a organização colmeiforme do CRA Nordeste, que
era apenas uma pequena parte do Serviço, e da história e dos quase sempre
incompreendidos ideais e senso de dever do Serviço e da velha (para ele)
piada de que os funcionários do Serviço em situações sociais fariam
absolutamente de tudo para evitar contar aos outros que trabalhavam para a
Receita porque isso muitas vezes gerava exclusão social por causa das
percepções populares sobre o Serviço e seus funcionários, observando o
tempo todo os calos enquanto a mulher mexia no garfo e na faca, e que ele
tinha ficado tão nervoso e tenso que foi tagarelando sem parar sobre ele e
nunca nem lhe perguntou o suficiente sobre ela, a história dela com o banjo
e o que aquilo representava para ela, que foi o motivo de ela não ter gostado
tanto dele e de eles não terem se acertado. Ele não deu a menor chance para
a mulher do banjo, hoje ele via. Que o que parece egoísmo muitas vezes
não é. Em certos sentidos Sylvanshine era uma pessoa completamente
diferente agora nos Sistemas. A descida era de fato um realçar da
especificidade do que estava ali embaixo — campos que se revelavam
arados e perpendicularmente sulcados e silos cercados de rampas adernadas
e esteiras e um parque industrial que se mostrava composto de prédios com
janelas refletoras e complicados aglomerados de carros nos
estacionamentos. Cada carro não só estacionado por um ser humano
diferente mas concebido, projetado, montado com peças que eram, cada
uma, concebida, projetada e feita, transportada, vendida, financiada,
adquirida e segurada por seres humanos, cada um com histórias de vida e
conceitos de eu que se encaixavam todos num padrão mais amplo de fatos.
O lema de Reynolds era que a realidade era um padrão de fatos
fundamentalmente entrópico e aleatório. O truque era sacar quais eram os
fatos importantes — Reynolds era um rifle diante da carabina de
Sylvanshine. A sensação de um leve fio de sangue saindo da narina direita
era uma alucinação e devia ser ignorada; a sensação simplesmente não
existia. Os problemas de sinusite percorriam a família de Sylvanshine com
uma intensidade horrenda. Aurélio da Roma antiga. Princípios básicos.
Isenções vs. deduções, para Renda bruta vs. da Renda bruta. Uma perda
gerada por uma dívida não paga e de origem não comercial será sempre
classificada como perda de capital de curto prazo e poderá portanto ser
deduzida no Formulário D nos termos do seguinte § das Diretrizes
Tributárias: o teto de um dos prédios tinha o que era ou heliponto marcado
ou um complicado sinal visual para os aviões que desciam lá do alto, e o
tom do zumbido duplo das hélices estava diferente e o seio nasal direito
dele estava naquele exato momento inflando rubro dentro do crânio e eles
estavam descendo mesmo, o termo era descida controlada, a interestadual
era agora um rococó de saídas e meios trevos e o trânsito, mais denso e com
algo de insistente, e as garras se ergueram do braço metálico da cadeira
quando surgiu embaixo um corpo d’água, lago ou delta, e Sylvanshine
sentiu um dos pés dormentes quando tentou relembrar a peculiar
configuração de braços cruzados com que os bonecos do cartão seguravam
os assentos das cadeiras contra o peito na improvável situação de uma
aterrissagem na água, e agora eles arfaram de fato e sua velocidade ia
ficando mais evidente no ritmo da passagem das coisas lá embaixo no que
tinha que ser um distrito mais antigo de Peoria enquanto cidade humana,
compactas quadras de tijolos fuliginosos e tetos angulados e uma antena de
televisão com uma bandeira presa, e um relance de um rio bordô que não
era o corpo hídrico anterior mas poderia estar ligado a ele, nada como o
imponente e escumoso trecho do Potomac que se infiltrava pelas janelas dos
Sistemas nas sacrossantas instalações de Antietam, percebendo que a
aeromoça lá no seu banquinho dobrável estava de cabeça baixa e os braços
em volta das pernas onde no fim do ano o valor total de mercado dos títulos
financeiros vendáveis da Brown excede o valor total restante no começo do
ano quando do meio do nada surgiu uma faixa de cimento claro que subia
ao encontro deles sem nenhuma campainha de aviso e sem anúncios e a lata
de refrigerante dele enfiada no bolsão da poltrona quando a cinzenta
cabeça-da-morte ao lado chicoteava para a direita e para a esquerda e o som
cintilante das hélices mudava ou de tom ou de timbre, e a senhora de mais
idade se enrijecendo na poltrona e erguendo o queixo pregueado de medo e
repetindo o que para Sylvanshine soava como a palavra tchau quando veias
saltavam azuis no pulso à frente dela, em que estava preso o amarfanhado e
bulboso mas ainda lacrado pacote prata de nozes sem marca de mercado.

“O quinto efeito tem mais a ver com você, com como você é percebido.
É poderoso apesar de um uso mais restrito. Preste atenção, guri. A próxima
pessoa adequada com quem você estiver numa conversa tranquila, pare de
repente no meio da conversa e olhe bem de perto para a pessoa e diga: ‘O
que foi?’. Você fala isso de um jeito preocupado. Ela vai dizer: ‘Como
assim?’. Você diz: ‘Alguma coisa está te incomodando. Dá pra ver. O que
é?’. E ela vai fazer uma cara impressionadíssima e dizer: ‘Como é que você
sabe?’. Ela não percebe que sempre tem alguma coisa errada com todo
mundo. Muitas vezes mais de uma coisa. Ela não sabe que todo mundo está
sempre andando por aí com alguma coisa errada na vida e acreditando que
está exercendo uma grande força de vontade e um controle incrível para
evitar que os outros, com quem elas acham que nada, nunca, está errado,
acabem vendo. As pessoas são assim. Pergunte de repente o que foi, e caso
elas se abram e vomitem tudo ou neguem e finjam que você está enganado,
de todo jeito elas vão achar que você é atencioso e compreensivo. Vão ficar
ou gratas ou assustadas e vão passar a te evitar daí em diante. As duas
reações têm suas utilidades, como vamos ver. Pode ser útil de um jeito ou
de outro. Funciona em mais de 90% das vezes.”

E levantou — tendo se espremido para passar pela senhora de mais idade


empoada, sendo ela do tipo que espera sentada até todos terem
desembarcado e aí sai sozinha, com uma falsa dignidade — segurando suas
coisinhas num corredor cuja porção dianteira engarrafada era toda composta
de viajantes de empresas locais, homens de negócios, sujeitos
voluntariamente simples do Meio-Oeste que vinham ao sul do estado como
vendedores ou voltavam de Chicago, dos QGs de empresas cujos nomes
terminam em “-co”, homens para quem aterrissagens como esse horror de
arfagens sacolejantes que acabou de se encerrar são coisa normal. Homens
pançudos com manchas no rosto e ternos marrons mesclados e ternos
castanhos com pastas 007 encomendadas em catálogos de bordo. Homens
cujos rostos suaves se encaixam naqueles empregos como uma salsicha
preenche sua capa de carne. Homens que ordenam que gravadores de bolso
recebam memorandos, homens que olham para o relógio por reflexo,
homens com testas vermelhas amontoados todos de pé numa rampa
metálica enquanto o zumbido das hélices desce a escala tonal e a ventilação
se interrompe, o tipo de avião de voos regionais cujas escadas com rodinhas
têm que encostar antes de as portas abrirem, por motivos legais. A
impaciência vítrea de homens de negócios parados mais perto de homens
estranhos do que jamais teriam escolhido estar, peito e costas que quase se
tocam, bolsas de viagem a tiracolo nos ombros, pastas chocando-se umas
com as outras, mais carecas que cabeludos, respirando os cheiros uns dos
outros. Homens que não suportam esperar ou ficar imóveis forçados a ficar
imóveis ali todos juntos e esperar, homens com agendas de pelica e
diplomas de Gerenciamento de Tempo de Franklin Quest e a clássica
aparência do confinamento apertado e indesejado, a aparência de um
comerciante local prestes a sonegar o recolhimento do seguro-saúde, sem
capital de giro, com falta de liquidez, tentando esticar o cobertor mensal,
peixes que se debatem na redes de suas próprias obrigações. Dois futuros
suicídios neste avião, um classificado para sempre como acidente. Em
Philly havia todo um subgrupo de GS-9s implacáveis com mentes metálicas
e a missão apenas e tão somente de ir atrás de pequenas empresas atrasadas
no recolhimento do seguro-saúde, apesar de que em Rome durante quase
um ano inteiro a única funcionária da Adimplência que recebia alertas de SS
de Martinsburg era Eloise Prout, vulgo dra. Sim, uma GS-9 quarentona com
boné de macramê que almoçava na mesa de trabalho com um complexo
sistema de recipientes Tupperware e era uma putinha de festa do tipo mais
patético, com os carinhas das Análises tendo batizado ela de dra. Sim
depois que ela aparentemente dormiu com Sherman Garnett só pela
promessa — não cumprida — de um passeio pelo parque da cidade com
neve no chão e tudo branco e lindo. A Eloise Prout que ficava tão abaixo
das cotas mensais de encaminhamento e recuperação que qualquer outro GS-
9 teria tomado um capacete marrom mas o bobo e bondoso sr. Orkney do
CRA tinha mantido o emprego dela, tendo a Prout aparentemente enviuvado
depois de um acidente de carro com um salário de GS-9 que mal pagava a
comida para gato, Sylvanshine tinha plena consciência, com o pé latejando
com o sangue recém-chegado e pedindo perdão toda vez que alguém
trombava com a sua mala, sua terceira lotação em quatro anos e ainda era
GS-9 com uma promessa de 11 se passasse na prova para COC na primavera e
desse conta direitinho do seu trabalho como o olho dos Sistemas na região
até a tempestade dos 1040s e ESTs das pessoas jurídicas em 15 de março e aí
a geral em 15 de abril que o 047 de Peoria tinha que analisar, depois de ter
feito a prova duas vezes até aqui e até aqui ter passado só até Gerencial com
Baixa Autonomia, com a fama de Sylvanshine em Philly tendo vindo com
ele até Rome para trancá-lo firmemente em Declarações Nível 1, nem
mesmo nas Gordas ou na Conferência, o que fazia dele pouco mais que um
abridor de cartas profissional, coisa que Soane, Madrid, et al. não tinham
hesitado em observar.
Sylvanshine tendia a dar conta da sua papelada de uma maneira meio
frenética contrária à disposição lenta, austera e metódica dos contadores
realmente grandes, tinha lhe dito o seu primeiro supervisor de grupo em
Rome, um ocupante vitalício do segundo escalão que usava um paletó
excêntrico e sempre saía do CRA com um romboide de papelão com comida
chinesa delivery para levar para a mulher dele, que diziam ser algum tipo de
reclusa. Esse GS-11 logo no começo da carreira tinha sido lotado no Centro
de Serviços de St. Louis, literalmente à sombra daquela coisa estranha tipo
um arco metálico gigante e amedrontador, onde todos os dias chegavam
cartas em grandes caminhões de dezoito rodas que vinham de ré até a longa
esteira da doca, e nos descansos na sala de descanso o líder de grupo
gostava de se reclinar segurando o guarda-chuva e soprar argênteas nuvens
de fumaça de charuto até as lâmpadas fluorescentes e evocar o verão no
Meio-Oeste, região que Sylvanshine e os outros jovens GS-9s da Costa Leste
ignoravam e onde o líder de grupo de alguma maneira semeava visões de
pescarias de pés descalços nas margens de rios de águas paradas e de um
luar que dava até para ler jornal e todo mundo sempre dizia Oi para todo
mundo toda vez que se via e se movia numa espécie de alegre câmera lenta.
Chamado Bussy, sr. Vince, ou Vincent Bussy, que usava uma parca do
Kmart com um capuz debruado de pele falsa e sabia rolar palitinhos de
comida chinesa nas costas dos dedos da mão como um mágico com uma
moedinha reluzente, e desapareceu logo depois da segunda festa de Natal
que Sylvanshine viu no CRA, quando a mulher dele (i.e., a sra. Bussy)
apareceu de repente no meio dos festejos com uma camisolinha bege e uma
parca do Kmart idêntica e com o zíper aberto e se aproximou do Comissário
Ultra-Zonal Assistente de Notificações e, com fala lenta e atonal e total
convicção, disse a ele que seu marido o sr. Bussy tinha dito que ele (o
CUZAN) tinha potencial para ser uma pessoa realmente má se arranjasse uns
colhões maiorzinhos, e o Bussy zarpando uma semana depois tão de repente
que seu guarda-chuva continuou pendurado no cabideiro comum por quase
um trimestre até alguém enfim tirá-lo de lá.
Eles desembarcaram, desceram, coletaram a bagagem de mão que não
tinha sido confiscada e etiquetada em Midway e agora formavam uma fila
heterogênea na pista molhada ao lado do avião, e ficaram aglomerados por
um tempo num chão de cimento coberto de complexas pinturas enquanto
alguém com protetor auditivo alaranjado e uma prancheta os contava e
depois conferia a contagem com a contagem prévia feita em Midway. Toda
a operação parecia algo ad hoc e mal-ajambrada. Na escada íngreme e
portátil, Sylvanshine obtivera a satisfação de sempre ao colocar o chapéu na
cabeça e ajustar seu ângulo com uma só mão. Seu ouvido direito estalava e
farfalhava um pouco cada vez que ele engolia. O vento estava quente e
pleno de vapor. Uma grande mangueira seguia de um caminhãozinho até a
barriga do avião regional e parecia estar reabastecendo a aeronoave para seu
retorno a Chicago. Sobe e desce e vai e volta o dia todo. Um cheiro forte de
combustível e cimento molhado. A senhora de mais idade, evidentemente
não contada, descia os assustadores degraus e seguia para algum tipo de
automóvel comprido que Sylvanshine não tinha percebido estacionado ali
mais a estibordo do avião. Uma asa intrometia-se, mas Sylvanshine
conseguiu ver que ela não abriu a própria porta. Os topos de uma distante
fileira de árvores dobraram-se à esquerda com o vento e de novo se
puseram eretos. Por causa de problemas anteriores com acidentes que
tinham suas raízes em decisões infelizes e apressadas em Philly,
Sylvanshine não dirigia mais. Ele tinha 75% de certeza de que o pacote de
nozes estava agora dentro da bolsinha da senhora de mais idade. Houve
algum tipo de consulta entre o funcionário da prancheta e outra pessoa com
protetor auditivo alaranjado. Diversos passageiros faziam gestos ostensivos
de olhar para o relógio. O ar estava quente e abafado e bem além de úmido
ou pesado. Todos eles estavam ficando empapados do lado do corpo que
dava para o vento. Sylvanshine percebeu que os sobretudos escuros que
muitos homens ali usavam eram bem parecidos, assim como as pontas dos
colarinhos virados. Ninguém usava nenhum tipo de chapéu. Ele estava
tentando prestar bastante atenção ao seu entorno como forma de evitar
pensamentos e angústia. O atraso administrativo ou logístico estava se
dando sob um céu baixo e uma chuva tão fina que parecia vir de lado com o
vento em vez de cair. Não havia sons de chuva no chapéu de Sylvanshine.
A pele do debrum do capuz do sr. Bussy era suja de um jeito meio
nauseabundo que foi piorando no decorrer dos dois anos em que ele foi o
supervisor do grupo de Sylvanshine no Processamento de Declarações.
Alguns passageiros mais assertivos estavam caminhando por conta própria
pela trilha contornada de vermelho que passava pelo portão da cerca e ia até
o terminal. Sylvanshine, que tinha embarcado malas, estava preocupado
com as sanções que pudesse sofrer por um abandono não autorizado de
pista. Por outro lado, tinha horários predefinidos para cumprir. Parte do que
o mantinha parado no grupo irrequieto de homens que esperavam a
autorização para entrar no aeroporto era uma espécie de paralisia resultante
das reflexões de Sylvanshine a respeito da logística de como chegar ao CRA
Peoria 047 — a questão de se o CRA mandava uma van para os traslados ou
se Sylvanshine ia ter que pegar um táxi naquele aeroportinho ainda não
tivera uma conclusão definitiva — e aí de como chegar e se registrar e de
onde guardar suas três malas enquanto se registrava e preenchia os
formulários de chegada e Endereço Fiscal e Recolhimento de Benefícios e
os materiais de orientação e de aí dar algum jeito de conseguir informações
e se dirigir ao apartamento que os Sistemas tinham alugado para ele a
preços governamentais e chegar lá a tempo de encontrar um lugar para
comer que ou fosse pertinho para ir a pé ou precisasse de outro táxi — só
que o telefone do suposto apartamento ainda não estava ligado e ele
ponderou que as possibilidades de conseguir pegar um táxi na frente de um
conjunto de apartamentos eram na melhor das hipóteses vagas, e se ele
pedisse ao táxi que o levaria ao apartamento que ficasse esperando haveria
dificuldades porque como ele ia poder tranquilizar o motorista de que de
fato ele ia voltar assim que deixasse as malas e desse uma rápida olhada
geral nas condições do apartamento e em sua adequação em vez de ser tudo
um truque concebido para não pagar ao motorista a corrida, com
Sylvanshine saindo abaixado pelos fundos do conjunto de apartamentos de
Angler’s Cove ou até possivelmente se entrincheirando no apartamento sem
responder às batidas do motorista na porta ou ao toque da campainha se o
apartamento tivesse campainha, o que o apartamento atual dele e de
Reynolds em Martinsburg com certeza não tinha, nem às perguntas/ameaças
do motorista do outro lado da porta do apartamento, golpe que habitava a
consciência de Claude Sylvanshine somente porque diversos operadores de
serviços comerciais de transporte da Filadélfia tinham proposto pesadas
perdas de Formulário C sob a rubrica “Perda Devida a Roubo de Serviço” e
detalhado esse tipo de golpe como algo prevalente nos anexos mal
datilografados ou até às vezes manuscritos que eram necessários para
explicar deduções-C incomuns ou específicas como essas, enquanto se
Sylvanshine fosse pagar a corrida e deixar a gorjeta e talvez até uma certa
quantia adiantada para ajudar a tranquilizar o motorista sobre suas
respeitáveis intenções no que se referia à segunda etapa do trajeto não havia
nenhuma garantia tangível de que o taxista prototípico — membro de uma
espécie cínica e eticamente marginalizada, de pés-rapados, como até a
baixíssima relação entre entrada-de-gorjetas e número-de-corridas de suas
declarações garatujadas em Philly demonstrava — não fosse simplesmente
se mandar com o dinheiro de Sylvanshine, criando um transtorno imenso
em termos de preenchimentos dos formulários internos para conseguir o
reembolso de uma porcentagem de sua ajuda de custo diária além de deixar
Sylvanshine sozinho, faminto (ele nunca conseguia comer antes de viajar),
desprovido de telefone, privado dos conselhos de Reynolds e de sua
esperteza logística ali no novo apartamento estéril e desmobiliado, com o
estômago se revirando sozinho de tal forma que a única coisa que
Sylvanshine conseguiria fazer seria desfazer as malas de qualquer jeito
semiorganizado e ir dormir no colchonete de viagem de náilon naquele chão
sem acabamento com a possível presença de exóticos insetos do Meio-
Oeste, isso sem falar daquela uma horinha de revisão para a prova de COC

que ele tinha se prometido fazer hoje de manhã quando dormiu um tantinho
além da conta e aí se deparou com problemas bagagísticos de última hora
que tinham cancelado a revisão matinal para a prova, firmemente agendada,
antes ainda de uma das vans não identificadas dos Sistemas chegar para
levar a ele e às malas por Harpers Ferry e Ball’s Bluff até o aeroporto, isso
sem falar ainda mais de qualquer tipo de organização sistemática dos
volumosos materiais de Lotação, Trabalho, Pessoal e Protocolos de
Sistemas que ele ia receber imediatamente depois do registro e de ter seus
formulários processados no novo posto de trabalho, o que qualquer Diretor
de RH razoável teria esperado que um novo analista tivesse internalizado
plenamente antes de se apresentar para o primeiro dia de efetiva interação
com analistas do CRA, e que nem a pau em qualquer mundo real Sylvanshine
poderia esperar tentar rever e internalizar depois de um jejum de dezesseis
horas e depois de uma noite num colchonete com a capa de chuva úmida
servindo de travesseiro — ele não tinha conseguido incluir na bagagem o
travesseiro ortopédico com contorno especial para o nervo cronicamente
pinçado ou inflamado que tinha no pescoço; ele precisaria de uma mala
exclusiva, portanto ultrapassaria o limite de bagagem e acarretaria uma
sobretaxa exorbitante que Reynolds se recusou a deixar Sylvanshine pagar
simplesmente por uma questão de princípios — com o problema adicional
de ele conseguir qualquer espécie de desjejum substancioso ou uma nova
ida até o CRA de manhã sem um telefone, ou como se esperava que alguém
sem telefone conseguisse inclusive analisar se e quando o telefone do
apartamento seria ativado, fora é claro a ominosa probabilidade de dormir
demais na manhã seguinte por consequência tanto da fadiga da viagem
quanto de não ter colocado na mala seu despertador de viagem — ou de
pelo menos não ter certeza de ter posto o despertador na mala em vez de
deixar que ficasse numa das três caixas de papelão grandes que ele tinha
enchido e etiquetado mas feito um trabalhinho apressado, meia-boca, na
hora de escrever as Listas de Conteúdos das caixas para poder consultar
quando fosse desembalar tudo em Peoria, e que Reynolds tinha jurado que
ia colocar nos mecanismos de malote do Departamento de Apoio do
Serviço mais ou menos no momento em que estava agendada a partida do
voo de Sylvanshine que saía de Dulles, o que significava dois ou talvez até
três dias antes de as caixas com todos os bens essenciais que Sylvanshine
não tinha conseguido acomodar na bagagem chegassem, e mesmo aí, elas
iriam chegar ao CRA e ainda não estava claro como Claude então as levaria
para casa, no apartamento — tendo sido a percepção da questão do
despertador de viagem o principal motivo de Sylvanshine ter precisado
destrancar e abrir todas as malas cuidadosamente feitas naquela manhã ao
levantar da cama já meia hora atrasado, para tentar achar ou analisar a
inclusão do despertador portátil, o que não conseguiu fazer — a coisa toda
apresentava um ciclone tão gigante de problemas e complexidades
logísticas que Sylvanshine foi forçado a fazer um pouco de Interrupção de
Pensamento bem ali na pista molhada, cercado de respiradores irrequietos,
girando 360o várias vezes e tentando fundir sua própria atenção com o
panorama circunstante, que a não ser pelos itens aeropórticos era
uniformemente indistinto e de um cinza de moeda velha e tão
impressionantemente plano que era como se a terra tivesse sido pisoteada
por alguma botina cósmica, com a visibilidade em todas as direções
limitada apenas pelo horizonte, que tinha as mesmas cor e textura gerais do
céu e criava a impressão especular de que se estava no centro de algum
imenso corpo de água estagnada, uma impressão oceânica tão literalmente
obliterante que Sylvanshine era jogado ou lançado para trás e como que de
volta para dentro de si e sentia de novo o gume da sombra da asa do Terror
Total e da Desqualificação passar por cima de si, a certeza de que ele era
certa e imprestavelmente inadequado para o que quer que o esperasse, e de
ser apenas uma questão de tempo antes de esse fato emergir e se fazer
manifesto para todos os que estivessem presentes no momento em que
Sylvanshine finalmente, e para sempre, perdesse a cabeça.
§ 3

“Por falar nisso, no que é que você pensa quando se masturba?”


“…”
“…”
“Como é que é?”
Nenhum deles abriu a boca na primeira meia hora. Estavam rodando de
novo pela rota estúpida e monocromática que levava ao QG Regional em
Joliet. Num dos Gremlins da frota, apreendidos como parte de uma
avaliação de risco numa concessionária AMC cinco trimestres antes.
“Olha, acho que dá pra gente deduzir que você se masturba. Algo como
98% dos homens se masturbam. Está documentado. Quase todos os outros
desses dois pontos percentuais são retardados ou coisa do tipo. A gente
pode pular a parte das negações. Eu me masturbo; tu te masturbas.
Acontece. Todo mundo faz e todo mundo sabe que todo mundo faz, no
entanto ninguém para pra discutir o assunto. É um trajeto incrivelmente
monótono, não tem nada pra gente fazer, a gente está preso neste carrinho
constrangedor — vamos correr riscos aqui. Vamos forçar a barra.”
“Que barra?”
“Só me diz no que você pensa. Pense um pouco. É um momento muito
interior. É uma das raras ocasiões de uma verdadeira autossuficiência na
vida. Nada que venha de fora de você é necessário. É se dar prazer sem
mais nada que não sejam seus próprios pensamentos na cabeça. Esses
pensamentos revelam um monte de coisa sobre você: sobre o que é que
você sonha quando é você quem escolhe e controla os seus sonhos.”
“…”
“…”
“Peitos.”
“Peitos?”
“Você perguntou. Eu estou te dizendo.”
“Só isso? Peitos?”
“O que você quer que eu diga?”
“Só peitos? Descolados de alguém? Só peitos abstratos?”
“Já deu. Vai se foder.”
“Assim, só flutuando ali, dois peitos no espaço? Ou aninhados na sua
mão, ou o quê? São sempre os mesmos peitos?”
“Isso é pra eu aprender. Você faz uma pergunta dessas, eu penso dane-se
e respondo e você passa uma DIF-3 na resposta.”
“Peitos.”
“…”
“…”
“E você? No que é que você pensa, sr. Forçabarra?”
§ 4

Do Peoria Journal Star,


Segunda-feira, 17 de novembro, 1980, p. C-2:

FUNCIONÁRIO DO I.R.S. MORTO HÁ QUATRO DIAS

Supervisores do complexo regional do IRS no distrito de Lake James estão


tentando descobrir por que ninguém percebeu que um de seus funcionários
estava sentado morto diante de sua mesa há quatro dias antes de alguém
perguntar se ele estava se sentindo bem.
Frederick Blumquist, 53, que trabalhava como analista de declarações de
renda naquela agência havia mais de trinta anos, sofreu um ataque cardíaco
no escritório coletivo que dividia com vinte e cinco colegas no Centro
Regional de Análise da agência na Self-Storage Parkway. Ele faleceu
silenciosamente na terça-feira passada em sua mesa de trabalho, fato que só
foi percebido no fim do expediente de sábado, quando um dos funcionários
da limpeza se perguntou como seria possível que o analista ainda estivesse
trabalhando num escritório com todas as luzes apagadas.
O supervisor do sr. Blumquist, Scott Thomas, disse: “Frederick era
sempre o primeiro a chegar de manhã e o último a sair à noite. Ele era
muito focado e diligente, então ninguém achou estranho ele estar na mesma
posição aquele tempo todo sem falar nada. Ele ficava sempre absorvido no
trabalho e não era de jogar conversa fora”.
Uma autópsia feita ontem pelo Instituto Médico Legal do Tazewell
County revelou que Blumquist estava morto havia quatro dias depois de
sofrer um infarto. Ironicamente, segundo Thomas, quando morreu
Blumquist fazia parte de um grupo especial de agentes do IRS que analisava
a situação fiscal de empresas médicas da região.
§ 5

É este o menino que enverga a bandoleira laranja-brilhante e pastoreia os


meninos menorzinhos que atravessam a rua na frente da escola. Isso depois
de terminar sua ronda de Refeições sobre Rodas no lar de caridade para
idosos no centro da cidade, cuja administradora salta para trancar a porta do
escritório quando ouve as rodas do carrinho que ele empurra pelo corredor.
Ele pagou do próprio bolso o apito de aço e as luvas brancas que estende
com as palmas erguidas para os carros enquanto crianças que nem se
vestiram sozinhas atravessam atrás dele, algumas tentando correr apesar do
ANDE, NÃO CORRA!!, a placa de homem-sanduíche com a carinha de um

smiley que ele mesmo fez. Para os automóveis cujos donos conhece ele
acena e dá um sorriso extragrande e lança palavras animadoras enquanto a
faixa de pedestre fica livre e os carros arrancam e passam voando, alguns só
de brincadeirinha fazendo uma manobra para cima dele e desviando por
centímetros enquanto ele ri e sai de lado num passo de dança e fazendo uma
careta de pânico fingido para as laterais e os para-choques traseiros. (Na vez
em que aquele SUV não desviou em cima da hora aconteceu mesmo um
acidente, e ele enviou vários bilhetes para deixar perfeitamente claro que
sabia disso e compreendia, e pediu que um montão de gente com quem
ainda não tinha tido a oportunidade de fazer amizade assinasse seu gesso, e
decorou as muletas com todo o cuidado com pedacinhos de fita colorida,
papel laminado e lantejoulas adesivas, e antes mesmo do mínimo de seis
semanas que o médico rigorosamente prescreveu ele doou as muletas para a
ala pediátrica do hospital Calvin Memorial para iluminar a convalescência
de alguma outra criança menos afortunada e menos feliz, e quando aquilo
tudo acabou ele se sentiu inspirado a escrever uma redação bem longa para
inscrever no Concurso Anual de Redações de Estudos Sociais sobre como
até mesmo um ferimento acidental doloroso e debilitante pode gerar novas
oportunidades para fazer amigos e ajudar aos outros, e por mais que a
redação não tenha vencido e nem mesmo conseguido uma menção honrosa
ele para dizer a verdade nem ligou porque sentia que escrever a redação já
tinha sido uma recompensa e que ele tinha ganhado muito com todo aquele
processo de revisar nove versões dela, e ficou feliz de verdade pelas
crianças cujas redações ganharam prêmios e lhes disse que tinha mais que
100% de certeza de que elas mereciam e que se elas quisessem conservar as
redações premiadas e talvez até quem sabe transformá-las em objetos de
exposição para seus pais seria um prazer para ele plastificar as redações e
até corrigir qualquer errinho de ortografia que encontrasse se elas
quisessem, e em casa seu pai põe as mãos no ombro do pequeno Leonard e
diz que fica orgulhoso por seu filho ser tão bom perdedor e se oferece para
levá-lo à sorveteria Dairy Queen como uma espécie de recompensa, e
Leonard diz ao pai que agradece muito e que o gesto significa bastante para
ele mas que com toda a sinceridade ele ia gostar ainda mais se eles
pegassem o dinheiro que o pai ia gastar em sorvetes e fossem doá-lo ou
para a Apae ou, melhor ainda, para o Unicef, para que ele atendesse às
necessidades de criancinhas biafrenses mortas de fome que ele sabe com
certeza que provavelmente nunca nem ouviram falar de sorvete, e diz que
aposta que isso ia acabar dando aos dois uma sensação ainda melhor do que
a que viria da DQ, e enquanto o pai larga as moedas na fenda para moedas
do cofrinho-abóbora especial de voluntário do Unicef, feito de papelão
laranja-brilhante, Leonard para um segundo para manifestar outra vez sua
preocupação com o tique facial do pai e lhe dar um delicado cutucão sobre
sua relutância em ir falar com o médico da família a respeito disso,
registrando mais uma vez que de acordo com a planilha atrás da porta do
seu quarto o pai está três meses atrasado para o checape anual e que já se
passaram quase oito meses da data recomendada para a dose de reforço da
antitetânica.)
Ele atua como monitor de corredor para os Períodos 1 e 2 (ele tem meio
semestre adiantado de créditos) mas dá muito mais advertências oficiais que
punições efetivas — sente que está ali para servir e não para humilhar as
pessoas. Normalmente com as advertências ele aplica um sorriso e diz aos
alunos que só se é jovem uma única vez, e que então é melhor aproveitar, e
que eles saiam logo dali e façam aquele dia valer a pena, então. Ele é
membro do Unicef e da Apae e inaugura um programa de reciclagem de
lixo em três séries consecutivas da escola. Ele é saudável e limpinho e está
sempre bem-vestido o suficiente para projetar uma noção básica de cortesia
e respeito pela comunidade de que faz parte, e educadamente levanta a mão
em sala de aula para todas as perguntas, mas só se tiver certeza de que sabe
não apenas a resposta correta mas a formulação daquela resposta que a
professora está querendo para adiantar a discussão do tema geral daquele
dia, muitas vezes ficando depois da aula para conferir com a professora se a
abordagem dele dos objetivos gerais dela está em ordem e para perguntar se
havia alguma maneira de tornar melhores ou mais úteis suas respostas em
sala de aula.
A mãe do menino sofre um acidente horrível enquanto está limpando o
forno e é levada às pressas para o hospital, e muito embora fique fora de si
de tão preocupado e reze constantemente pela estabilização e recuperação
dela, ele se prontifica a ficar em casa e fazer telefonemas, transmitir
informações para uma lista alfabética de parentes e amigos preocupados, e a
garantir que o correio e o jornal sejam entregues, e a manter as luzes da
casa acendendo e apagando num padrão aleatório à noite como recomenda
o Policial Chuck do programa Chega de Crime que a Polícia Estadual do
Michigan montou em colaboração com a educação pública por mera
questão de bom senso quando os adultos repentinamente têm que sair de
casa, e também para ligar para o número de emergência da empresa de gás
(que ele decorou) e pedir que eles venham dar uma olhada no que pode
muito bem ser uma válvula ou um circuito com defeito no fogão antes de
mais alguém da família se ver exposto aos riscos de ferimentos acidentais, e
também (em segredo) para trabalhar na elaboração de um imenso
espetáculo de faixas, bandeirolas e cartazes de BEM-VINDA DE VOLTA e A
MELHOR MÃE DO MUNDO que ele pretende usar a escada de armar da garagem
(com um adulto responsável da vizinhança segurando a escada e
supervisionando tudo) para prender com todo o cuidado na fachada da casa
com cola solúvel em água para que estejam lá para receber e animar a
mamãe quando ela receber alta dos Cuidados Intensivos com a saúde
totalmente em ordem, coisa por que Leonard liga repetidas vezes para o pai
no telefone pago da ala de Cuidados Intensivos para lhe garantir que não
tem a menor sombra de dúvida, dessa saúde totalmente em ordem, ligando
de hora em hora com pontualidade britânica até que acaba havendo algum
problema mecânico com o telefone e quando ele liga só ouve um apito
agudo, o que ele devidamente relata à linha especial 1-616-PROBLEMA da
companhia telefônica, lembrando de incluir os oito dígitos do Código de
Produto Externo do telefone pago (que tinha anotado só para garantir) como
recomenda o material técnico em letrinhas miúdas para a linha 1-616-
PROBLEMA nas ultimíssimas páginas da lista telefônica, para um serviço mais
rápido e eficiente.
Ele consegue produzir diversos tipos diferentes de caligrafia, frequentou
a oficina de origami (duas vezes), sabe fazer desenhos extraordinários à
mão livre da flora local, assobia todos os seis Nouveaux Quatuors de
Telemann além de imitar praticamente todo canto de pássaro e outros em
que nem Audubon jamais teria pensado. Ele às vezes escreve a editoras
acadêmicas a respeito de possíveis erros de categorização e/ou sintaxe nos
manuais. Não vamos nem falar dos concursos de soletração. Ele sabe fazer
vinte tipos diferentes de chapéus de almirante, caubói, clericais e
multiétnicos com uma folha comum de jornal e se propõe a visitar as turmas
de pré-2 da escola para ensinar às crianças como se faz, oferecimento que o
diretor da Escola Fundamental Carl P. Robinson diz que agradece e que
analisou mui cuidadosamente antes de recusar. O diretor odeia a mera ideia
de ver o menino mas não sabe bem por quê. Ele vê o menino em sonhos,
nos momentos mais excruciantes de seus pesadelos — a camisa xadrez bem
passadinha, a risca reta do cabelo, as sardas, o sorriso generoso e sempre
pronto: tudo ele sabe fazer. O diretor imagina um dia enfiar um gancho de
açougueiro na carinha iluminada de Leonard Stecyk e arrastar o menino de
cara no chão atrás do seu fusquinha pelas ruas irregulares da pequena
cidade de Grand Rapids. Essas ideias vêm do nada e aterrorizam o diretor,
que é um menonita fiel.
Todo mundo odeia o menino. Trata-se de um ódio complexo, que muitas
vezes faz com que quem o odeia se sinta mau e culpado e se odeie por
sentir algo assim a respeito de um menino tão talentoso e bem-
intencionado, o que então tende a fazer com que a pessoa sem querer odeie
ainda mais o menino por ele provocar essa espécie de auto-ódio. A coisa
toda é totalmente confusa e incômoda. Toma-se muita aspirina quando ele
está por perto. Os únicos amigos de verdade do menino entre as crianças
são os defeituosos, os aleijados, os gordos, os últimos escolhidos, as non
grata — ele vai atrás dessas pessoas. Todos os 316 convites para o FESTÃO
ARRASA-QUARTEIRÃO do seu aniversário de onze anos — 322 convites
se você contar os feitos em fita cassete para os cegos — são impressos em
ofsete em pergaminho de alta qualidade com envelopes de papel de fibra de
algodão endereçados numa elaborada caligrafia Filipe II em que ele gastou
três fins de semana, com cada convite detalhando em formato de esquema
numerado com algarismos romanos o período de meio dia a ser passado no
parque Six Flags, com passeio particular guiado por um ph.D. pelo
Blanford Nature Center, e a Área Privada para Banquetes c/ jogos grátis na
Pizzaria e Flíper Indoor Shakey’s na Remembrance Drive (tudo grátis e
pago com as coletas de papel e de alumínio que o menino levantou às 4h da
manhã durante todo o verão para organizar e liderar, indo o saldo restante
da receita para a Cruz Vermelha e os pais de um aluno de terceiro ano em
Kentwood com spina bifida terminal que sonha acima de tudo ver Dick
“Night Train” Lane dos Lions jogar ao vivo, de sua cadeira de rodas
motorizada), e os convites explicitamente chamam a festa disso — um
FESTÃO ARRASA-QUARTEIRÃO — numa fonte em formato de balão
como legenda para uma explosão ilustrada de bons-fluidos e -espíritos e de
uma ALEGRIA total-e-absoluta-sem-limite-e-sem-censura, com o aviso
negritado POR FAVOR — NÃO TRAGA PRESENTES nos quatro cantos do cartão; e
os 316 convites, enviados via Correio Registrado para cada aluno,
professor, professor substituto, auxiliar, administrador e zelador da
Fundamental C. P. Robinson, rendem um público total de nove celebrantes
(sem contar os pais e os cuidadores dos incapacitados), no entanto todos se
divertem definitivamente a valer, e é esse o consenso nos cartões de
Avaliação Franca e Sugestões (também em pergaminho) que circularam no
final da festa, sendo que as sobras gigantescas de bolo de chocolate, sorvete
napolitano, pizza, batatas fritas, pipoca doce, Hershey’s Kisses, panfletos da
Cruz Vermelha e do Policial Chuck a respeito de doações de órgãos e
tecidos e dos procedimentos corretos em caso de abordagem por estranhos,
respectivamente, pizza kosher para os ortodoxos, guardanapos de grife e
refrigerantes dietéticos em copos plásticos especiais Eu sobrevivi ao Festão
Arrasa-Quarteirão do Aniversário de 11 anos de Leonard Stecyk, 1964 c/
lemniscáticos canudinhos embutidos que os convidados guardariam como
suvenires foram doados para o Lar Infantil de Kent County através de
procedimentos e esquemas de transporte que o aniversariante começou a
organizar ainda enquanto se desenrolava o grande festerê de arromba,
movido pela preocupação com sorvetes derretidos e coisas rançosas e
azedas e com perda de uma oportunidade de ajudar os menos afortunados; e
o pai dele, guiando a perua com laterais de madeira e firmando a bochecha
com uma mão, reconhece mais uma vez que o menino ao seu lado tem um
coração grande e generoso, e que ele tem orgulho, e que se a mãe do
menino um dia recobrar a consciência como eles esperam muito que
aconteça, ele sabe que ela também vai ter o mesmo orgulho.
O menino tira As e uma quantidade razoável de Bs de vez em quando
para se impedir de ficar todo metido por causa das notas, e os professores
dele estremecem só de ouvir seu nome. No quinto ano ele organiza uma
arrecadação em todo o distrito para garantir um Fundo Especial de
moedinhas para qualquer pessoa que na hora do recreio já tenha gastado o
dinheiro do seu leite mas que ainda possa por qualquer razão querer ou
achar que precisa de mais leite. A marca de leite Jolly Holly fica sabendo e
põe uma notinha a respeito do Fundo e uma foto estilizada do menino na
lateral de algumas embalagens de 200 ml. Dois terços da escola param de
tomar leite, enquanto o Fundo Especial cresce tanto que o diretor precisa
requisitar um pequeno cofre para seu escritório. O diretor agora toma
Seconal para dormir, sofre de leves tremores e por duas vezes é multado por
não frear na faixa de pedestres.
Uma professora em cuja sala de aula o menino sugere uma planilha para
a reorganização dos cabides de casacos e das caixas de botas de uma das
paredes de modo que os casacos e galochas do aluno cuja mesa fica mais
perto da porta fiquem também mais perto da porta, e os do segundo fiquem
em segundo, e assim por diante, acelerando a saída dos pupilos e reduzindo
os atrasos e as possíveis briguinhas e aglomerações de crianças
semiagasalhadas na porta da sala (atrasos e aglomerações que o menino
tinha se dado ao trabalho naquele semestre de mapear por incidência
estatística, com gráficos e setas relevantes, mas com os nomes
desconsiderados), essa professora veterana, com anos de casa e muito
respeitada, acaba brandindo tesouras sem ponta e ameaçando matar o
menino primeiro e depois cometer suicídio, e é afastada em Licença
Médica, durante a qual recebe cartões de Melhoras três vezes por semana,
com resumos muito bem datilografados das atividades e do progresso da
classe em sua ausência, polvilhados de glitter e dobrados em perfeitas
formas de diamante que se abrem com um apertão nas duas longas facetas
internas (i.e. dentro dos cartões), até que os médicos da professora ordenam
que sua correspondência seja guardada até que a melhora ou pelo menos a
estabilização de seu estado permita.
Logo antes da grande arrecadação para o Unicef no Dia das Bruxas de
1965 três alunos do sexto ano abordam o menino na sala de recreação
sudeste depois da quarta aula e fazem coisas indizíveis com ele, deixando-o
pendurado em um gancho de roupa num dos cubículos do banheiro pelo
elástico da cueca; depois de ser tratado e liberado do hospital (um hospital
diferente daquele em que sua mãe é paciente na ala de convalescença de
longa permanência) o menino se recusa a identificar quem o atacou e depois
lhes entrega discretamente bilhetinhos individualizados explicando sua
renúncia a todo e qualquer rancor sobre o incidente, pedindo desculpas por
qualquer ofensa involuntária que possa ter cometido para provocar aquilo,
exortando os que o atacaram a por favor deixarem tudo aquilo para trás e de
maneira alguma ficarem se recriminando por causa do acontecido —
especialmente no futuro, porque até onde o menino soubesse era esse tipo
de coisa que às vezes podia virar uma espécie de assombração na vida
adulta no futuro, citando um ou dois artigos de periódicos acadêmicos em
que os que o atacaram bem podiam querer dar uma olhada se quisessem
uma documentação dos efeitos psicológicos de longo prazo sobre
autorrecriminação — e, nos bilhetes, afirmando sua esperança de que uma
verdadeira amizade pudesse de fato surgir de todo aquele lamentável
incidente, linhas que vinham acompanhadas de um convite para uma breve
Mesa-Redonda de Resolução de Conflitos sem-precisar-de-explicações que
o menino convenceu uma organização local de serviços de apoio à
comunidade a patrocinar depois das aulas na terça-feira seguinte “(Lanches
à Disposição!)”, o que ocasiona que o armário com as coisas de Educação
Física do menino, além dos quatro de cada lado dele, seja destruído num ato
de vandalismo pirotécnico que todos de ambos os lados no subsequente
julgamento concordam que saiu totalmente de controle e que não foi uma
tentativa premeditada de ferir o zelador noturno ou de causar o tipo de
danos estruturais que acabou causando à sala em que estava o armário do
menino, julgamento este no qual Leonard Stecyk recorre repetidamente aos
advogados das duas partes a fim de solicitar a oportunidade de se apresentar
como testemunha de defesa, no mínimo para atestar o bom caráter dos
acusados. Uma grande porcentagem dos colegas do menino se esconde —
eles efetivamente adotam procedimentos de retirada tática — quando o vê
chegando. Por fim até os marginais e os desvalidos param de retornar suas
ligações. A mãe dele precisa ser virada na cama e ter os membros
manipulados duas vezes por dia.
§ 6

Eles estavam numa mesa de piquenique naquele parque junto do lago, à


beira do lago com parte de uma árvore derrubada no raso meio escondida
pela margem. Lane A. Dean Jr. e sua namorada, ambos de calça jeans e
camisa. Estavam sentados na parte que era o tampo da mesa e com os
sapatos na parte do banco, em que as pessoas se sentavam e faziam
piqueniques em momentos felizes. Eles tinham estudado em colégios
diferentes, mas na mesma universidade, onde se conheceram em grupos de
oração. Era primavera, a grama do parque estava muito verde e o ar
banhado de madressilvas e de lilases também, o que era quase um excesso.
Havia abelhas, e o ângulo do sol fazia as águas do raso parecerem escuras.
Tinha havido mais tempestades naquela semana, com algumas árvores
derrubadas e o som das motosserras para cima e para baixo na rua dos pais
dele. A postura dos dois em cima da mesa de piquenique era inclinada para
a frente do mesmo jeito com ombros curvos e cotovelos nos joelhos. Nessa
posição a menina se balançava ligeiramente e uma vez pôs as mãos no
rosto, mas não estava chorando. Lane estava muito rígido e imóvel e olhava
para além da margem, para a árvore caída no raso e sua bola de raízes
expostas indo para todo lado, e a nuvem de galhos da árvore toda meio na
água. A única outra pessoa ali perto estava a doze mesas espaçadas de
distância, sozinho, ereto, em pé. Olhando para o buraco rasgado no chão lá
onde tinha caído a árvore. Ainda era cedo e as sombras iam girando para a
direita e encurtando. A menina usava uma camisa rala e velha de algodão
xadrez com botões de pressão cor de pérola de mangas compridas abaixadas
e sempre cheirava muito bem, limpa, como alguém em quem você podia
confiar e com quem podia se importar mesmo que não estivesse
apaixonado. Lane Dean tinha gostado logo de cara do cheiro dela. A mãe
dele dizia que ela tinha os pés no chão e gostava dela, achava que era uma
pessoa boa, dava para ver — ela deixava isso evidente de formas discretas.
As águas batiam na árvore vindas de direções diferentes quase como que
afiando os dentes nela. Às vezes quando estava sozinho e pensando ou
lutando para entregar uma questão a Jesus Cristo em oração ele se via
pondo o punho cerrado na palma da mão e girando-o de leve como se ainda
estivesse jogando e batendo a luva para se manter esperto e alerta no centro.
Ele não fez isso agora; seria cruel e indecente fazer isso agora. O sujeito
mais velho estava de pé ao lado de sua mesa de piquenique, à mesa mas não
sentado, e também parecia deslocado com um paletó ou um blazer e o tipo
de chapéu de velho que o avô de Lane usava nas fotos de quando era um
jovem vendedor de seguros. Parecia estar olhando para o outro lado do
lago. Se ele se mexeu, Lane não viu. Parecia mais uma pintura que um
homem. Não havia patos à vista.
Uma coisa que Lane Dean fez foi garantir mais uma vez que iria junto e
estaria lá com ela. Era de fato uma das poucas coisas seguras ou decentes
que podia dizer. Na segunda vez que disse isso de novo ela agora sacudiu a
cabeça e riu de uma maneira infeliz que mais pareceu ar saindo pelo nariz.
Sua risada verdadeira era diferente. Onde ele estaria era na sala de espera,
ela disse. Que estaria pensando nela e se sentindo mal por causa dela, isso
ela sabia, mas ele não ia poder estar lá dentro com ela. Isso era uma verdade
tão óbvia que ele se sentiu um otário por ter ficado insistindo naquilo e
agora soube o que ela tinha pensado todas as vezes em que ele foi lá e disse
isso; não tinha lhe dado conforto nem sequer aliviado o fardo dela. Quanto
pior ele se sentia, mais imóvel ficava. Aquilo tudo parecia estar equilibrado
numa faca ou num arame; se ele se mexesse para erguer o braço ou tocá-la
tudo podia despencar. Ele se odiava por ficar ali sentado tão travado. Quase
conseguia se ver passando na ponta dos pés no meio de um material
explosivo. Uma bela de uma passada imbecil, como num desenho animado.
Toda a sombria e pesada semana anterior tinha sido daquele jeito e isso não
estava certo. Ele sabia que não estava certo, sabia que algo se exigia dele e
sabia que não era esse cuidado e essa cautela terrível e paralisante, mas
fingia a si próprio que não sabia que coisa era essa que se exigia dele.
Fingia que ela não tinha nome. Fingia que não dizer em voz alta o que sabia
ser correto e verdadeiro era algo que fazia por ela, por respeito às
necessidades e aos sentimentos dela. Ele também trabalhava com carga e
encomendas na UPS, além da universidade, mas trocou de horário para ficar
com o dia livre depois que decidiram juntos. Dois dias antes ele tinha
acordado muito cedo e tentado rezar mas não conseguiu. Cada vez ficava
mais travado, parecia, mas não tinha pensado no pai, ou na gélida
imobilidade do pai, nem na igreja, que antes o enchia de uma pena tão
grande. Era essa a verdade. Lane Dean Jr. sentia o sol sobre um braço
enquanto via mentalmente uma imagem de si próprio num trem, acenando
para algo que ficava cada vez menor enquanto o trem se afastava. Seu pai e
o pai de sua mãe faziam aniversário no mesmo dia, Câncer. O cabelo de
Sheri era louro quase como palha de milho, muito limpo, a pele que se via
onde ele se dividia era rosa sob a luz. Estavam ali havia tempo suficiente
para que apenas o lado direito de cada um estivesse agora na sombra. Ele
podia olhar para a cabeça dela, mas não para ela. Partes diferentes dele
pareciam desligadas umas das outras. Ela era mais inteligente que ele e os
dois sabiam. Não era só a escola — Lane Dean estava cursando
contabilidade e administração e ia bem; estava se segurando. Ela era um
ano mais velha, tinha vinte, mas também era algo a mais — Lane sempre
achou que ela conduzia bem sua vida de uma forma que a idade não
explicava. A mãe dele tinha dito que ela sabia o que queria, que era
enfermagem, um curso que estava longe de ser dos mais fáceis no Peoria
Junior College, e além disso ela trabalhava como recepcionista no Embers e
tinha comprado um carro. Era séria de um jeito que agradava a Lane. Ela
teve um primo que morreu quando ela tinha treze, catorze anos, que ela
adorava e de quem era muito próxima. Ela só falou disso aquela única vez.
Ele gostava do cheiro dela, da penugem de seus braços e do seu jeito de
exclamar quando algo a fazia rir. Gostava de apenas estar com ela e de
conversar. Ela era séria em sua fé e em seus valores de uma forma que
havia agradado a Lane e da qual agora, sentado aqui com ela em cima da
mesa, ele via que tinha medo. Isso era uma coisa horrorosa. Ele estava
começando a acreditar que podia não ser sério em sua fé. Podia ser meio
hipócrita, como os assírios em Isaías, o que seria um pecado bem maior que
a consulta — ele tinha decidido que acreditava nisso. Estava desesperado
para ser uma pessoa boa, para ainda ser capaz de sentir que era bom. Antes
ele quase nunca tinha pensado na danação e no inferno, essa parte da coisa
não falava a seu espírito, e nos cultos ele meio que se desligava e aturava o
inferno quando ele aparecia, do mesmo jeito que você atura o emprego que
precisa ter para guardar dinheiro para aquilo que deseja ter. O tênis dela
tinha coisinhas e detalhes rabiscados de quando ela ficava assistindo às
aulas. Ela ficava olhando para baixo daquele jeito. Pequenos lembretes ou
referências bibliográficas escritas com Bic em sua bela caligrafia redonda
nas partes de borracha em torno da borda do tênis. Lane A. Dean olhando
para as presilhas do lado da cabeça inclinada dela em forma de joaninhas
azuis. A consulta era naquela tarde, mas quando a campainha tocou tão
cedo e a mãe chamou seu nome lá do andar de baixo ele soube, e um tipo
terrível de vazio principiou a cair através dele.
Ele lhe disse que não sabia o que fazer. Que sabia que se fosse o
vendedor daquilo e o forçasse a ela, seria horrível e errado. Mas estava
tentando entender, eles tinham orado e pensado no assunto de todos os
ângulos possíveis. Lane disse o quanto ela sabia que ele lamentava, e que se
ele estava errado em acreditar que tinham realmente decidido juntos quando
decidiram marcar a consulta, ela por favor devia lhe dizer, porque ele
achava que sabia como ela devia ter se sentido à medida que a data se
aproximava cada vez mais e como ela devia estar com medo, mas que o que
ele não sabia dizer era se era mais que isso. Ele estava totalmente imóvel a
não ser pela boca que se movia, parecia. Ela não respondeu. Que se eles
precisavam orar mais e conversar direito, então ele estava ali, estava
disposto, disse. Disse que a consulta podia ser adiada; era só ela dizer e eles
podiam ligar e adiar para ter mais tempo para terem certeza da decisão.
Ainda era muito cedo, os dois sabiam, ele disse. Isso era verdade, que ele se
sentia assim, no entanto ele também sabia que também estava tentando
dizer coisas que fizessem ela se abrir e responder o bastante para que ele
pudesse vê-la e ler seu coração e saber o que dizer para fazer com que ela
levasse aquilo a cabo. Ele sabia disso sem admitir a si próprio que era o que
queria, pois isso o tornaria um hipócrita e um mentiroso. Ele sabia, em
alguma partezinha trancafiada de si próprio, qual era o motivo de não ter
ido procurar pessoa alguma para se abrir e pedir conselhos, nem o pastor
Steve nem os colegas de oração no grupo de oração nem seus amigos da UPS
nem a orientação espiritual que a velha igreja de seus pais oferecia. Mas ele
não sabia por que a própria Sheri não tinha ido procurar o pastor Steve —
não conseguia ler seu coração. Ela estava vazia e escondida. Ele desejava
ardorosamente que aquilo nunca tivesse acontecido. Sentia que agora sabia
por que se tratava de um pecado de verdade e não de uma regra
remanescente de uma sociedade antiga. Sentia que tinha sido rebaixado por
aquilo, e humilhado, e agora acreditava que as regras tinham um motivo
para existir. Que as regras diziam respeito a ele pessoalmente, como
indivíduo. Jurou a Deus que tinha aprendido sua lição. Mas e se essa,
também, fosse uma promessa oca, de um hipócrita que se arrependia só
depois, que prometia submissão mas na verdade queria apenas a suspensão
de sua pena? Talvez ele nem pudesse conhecer seu próprio coração ou ser
capaz de ler e de conhecer a si próprio. Ficava pensando também em 1
Timóteo, 6 e no hipócrita ali citado, que discute as palavras. Sentia uma
terrível resistência interior mas não conseguia sentir a que tanto resistia. Era
essa a verdade. Todos os ângulos e modos possíveis pelos quais tinham
chegado juntos à decisão jamais a incluíram, a palavra — pois se ele a
tivesse dito uma só vez, reconhecido que de fato a amava, que amava Sheri
Fisher, então tudo teria se transformado, não seria um ângulo ou um ponto
de vista diferente, mas uma diferença na própria coisa pela qual estavam
rezando e que decidiam juntos. Algumas vezes eles rezaram juntos por
telefone, como que numa espécie de código caso alguém pegasse sem
querer a extensão. Ela continuava sentada como se estivesse pensando, na
posição de quem pensa, como quase aquela estátua lá. Estavam em cima
daquela mesa. Era ele quem olhava para além dela, para a árvore na água.
Mas não podia dizer, não era verdade.
Mas ele também nunca se abriu e lhe disse diretamente que não a amava.
Essa podia ser sua mentira por omissão. Podia ser essa a resistência travada
— caso ele olhasse bem para ela e dissesse que não a amava, ela iria à
consulta marcada. Isso ele sabia. Algo nele no entanto, alguma terrível
fraqueza ou falta de valores, não conseguia dizer. Parecia um músculo que
ele simplesmente não tinha. Ele não sabia por quê, ele não conseguia, e não
conseguia nem rezar para conseguir. Ela acreditava que ele era bom, de
valores sérios. Parte dele parecia disposta a simplesmente meio que mentir
para alguém com esse tipo de fé e de confiança, e o que isso fazia dele?
Como uma pessoa dessas conseguia até mesmo orar? O que aquilo
realmente parecia era uma amostra da realidade do que o Inferno poderia
querer dizer. Lane Dean jamais acreditara no inferno como um lago de fogo
ou num Deus de amor que mandava as pessoas para um lago de fogo em
chamas — ele sabia no fundo do coração que não era verdade. Acreditava
era num Deus vivo de amor e compaixão e na possibilidade de uma relação
pessoal com Jesus Cristo através de quem esse amor se encenava no tempo
humano. Mas sentado aqui ao lado dessa menina, tão desconhecida para ele
quanto o espaço sideral, esperando o que quer que ela pudesse dizer para
destravá-lo, agora ele se sentia capaz de enxergar a borda ou o contorno do
que talvez fosse uma verdadeira visão do Inferno. Eram dois exércitos
grandes e terríveis dentro de si, opostos e um diante do outro, calados.
Haveria batalha, mas não vencedor. Ou jamais uma batalha — os exércitos
ficariam assim, imóveis, olhando um para o outro e vendo ali algo tão
diferente e alheio a si próprios que não conseguiam entender, não
conseguiam nem ouvir a fala do outro como palavras nem ler qualquer
coisa da aparência de seu rosto, assim travados, opostos e incompreensíveis,
por todo o tempo humano. Com dois corações, um hipócrita para si próprio
de um jeito ou de outro.
Quando ele mexeu a cabeça, a parte do lago mais além brilhou ao sol; a
água bem próxima não estava negra agora e dava para ver dentro do raso e
ver que a água toda estava se movendo, mas suavemente, para lá e para cá,
e da mesma maneira ele se esforçou por voltar a si quando Sheri mexeu a
perna e começou a se virar para o lado dele. Lane Dean podia ver o homem
de terno e chapéu cinza parado imóvel agora à beira do lago, segurando
alguma coisa embaixo do braço e olhando para o outro lado, onde uma
fileira de pequenas sombras em cadeiras de armar estava sentada de uma
maneira que sugeria que tinham linhas na água para pescar peixe miúdo, o
que praticamente só os pretos do East Side faziam, e a pequena sombra
branca no fim da fila, um balde de isopor. Em seu momento ou em seu
tempo no lago que agora estava quase chegando, Lane Dean primeiro sentiu
que podia absorver tudo isso de uma vez; tudo parecia distintamente
iluminado, pois o círculo da sombra do carvalho havia girado inteiro para
longe e eles agora estavam sentados sob o sol, a sombra dos dois uma coisa
de duas cabeças na grama à frente deles. Ele estava de novo olhando ou
encarando o lugar em que os galhos da árvore pareciam todos se curvar tão
rispidamente logo abaixo da superfície do raso quando lhe foi dado saber
que durante todo esse silêncio travado que ele havia desprezado ele, na
verdade, tinha estado orando o tempo todo, ou alguma partezinha de seu
coração que ele não podia conhecer nem ouvir estivera, pois agora ele
recebeu uma resposta na forma de uma espécie de visão, o que mais tarde
chamaria em sua própria mente de visão ou momento de graça. Ele não era
um hipócrita, era só partido e cindido como todos os homens. Mais tarde,
pensou que o que aconteceu foi que por um momento ele quase os viu, os
dois, como Jesus os via — cegos, mas tateantes, querendo agradar a Deus
apesar da inata natureza decaída deles. Pois naquele mesmo preciso
momento ele viu, rápido como um relâmpago, o fundo do coração de Sheri,
e lhe foi dado saber o que ocorreria aqui enquanto ela terminava de se virar
na direção dele e o homem de chapéu olhava a pescaria e o olmo caído
largava células na água. Essa menina de pés no chão que cheirava bem e
queria ser enfermeira iria pegar e segurar uma das mãos dele dentro das
suas, para destravá-lo e fazê-lo olhar para ela, e ela ia dizer que não podia
fazer aquilo. Que lamentava não ter sabido disso antes, que sua intenção
não tinha sido mentir, que tinha concordado porque queria acreditar que
conseguia, mas ela não consegue. Que vai deixar ir até o fim; é o que ela
tem que fazer. Com um olhar límpido e firme. Que a noite inteira ontem à
noite ela orou e examinou sua consciência e decidiu que é isso que o amor
lhe ordena. Que Lane devia por favor por favor amorzinho deixar ela
acabar. Que escute — é uma decisão dela que não o obriga a nada. Que ela
sabe que ele não a ama, não daquele jeito, sempre soube, e que está tudo
bem. Que as coisas são como são e está tudo bem. Ela vai levar até o fim e
dar-lhe amor, sem exigir nada de Lane a não ser que ele lhe deseje
felicidades e respeite o que ela precisa fazer. Que ela o libera de todas as
obrigações, espera que ele termine o PJC, se dê muito bem na vida e só tenha
alegrias e coisas boas. A voz dela estará límpida e firme, e ela estará
mentindo, pois a Lane foi dado ler seu coração. Vê-la. Um dos pretos do
outro lado ergue o braço no que pode ser um cumprimento ou um gesto para
espantar uma abelha. Há uma máquina cortando grama em algum lugar
atrás deles, longe. Será uma aposta terrível, um último recurso nascido do
desespero da alma de Sheri Fisher, a percepção de que ela não pode nem
levar isso a cabo hoje nem ter uma criança sozinha e envergonhar sua
família. Os valores dela trancavam o caminho em ambos os caminhos, Lane
percebe, e ela não tem outra opção ou escolha, esta mentira não é um
pecado. Gálatas 4, 16, Fiz-me acaso vosso inimigo? Ela está apostando que
ele é bom. Ali sobre a mesa, nem travado nem ainda se mexendo, Lane
Dean Jr. vê tudo isso e se sente tocado pela piedade e também por algo
mais, algo sem um nome que ele conheça, que lhe é dado sentir na forma de
uma pergunta que nem por uma só vez em todos os longos raciocínio e
divisão da semana toda lhe ocorrera — por que ele tem tanta certeza de que
não a ama? Por que um único tipo de amor tem que ser diferente? E se ele
não tiver nem sombra de uma ideia do que seja o amor? O que o próprio
Jesus faria? Pois foi bem agora que ele sentiu as duas mãos pequenas e
fortes dela na sua, para fazer com que ele se virasse. E se ele só estiver com
medo, se a verdade não for mais que isso, e se o que devesse pedir em
orações não fosse nem amor, mas a simples coragem para encarar os dois
olhos dela enquanto ela diz aquilo, e confiar em seu coração?
§ 7

“Novo?” havia agentes à sua direita e à sua esquerda e Sylvanshine


achou meio esquisito ter sido o da carinha rosa e amedrontada de hamster
quem se virou como quem se dirigia a ele mas que o outro do outro lado
olhando para longe foi quem disse. “Novo?” eles estavam quatro fileiras
atrás do motorista, em cuja postura no banco havia algo esquisito.
“Em oposição a quê?” o pescoço de Sylvanshine até a altura da omoplata
estava em chamas, e ele podia sentir o princípio de um tremor muscular em
uma pálpebra. Explique o tratamento fiscal de alguém que está dando ações
legítimas para a caridade versus aquela mesma pessoa vendendo as ações e
dando os lucros para a caridade. Os flancos da estrada rural pareciam
mascados. A luz lá fora era o tipo de luz que faz você acender os faróis mas
que aí os impede de fazer qualquer diferença porque tecnicamente ainda
está claro lá fora. Era impossível determinar se aquilo era uma van ou
ônibus com cap. máx. de 24. O que perguntou tinha uma costeleta e o
sorriso invulnerável de alguém que tomou dois coquetéis de aeroporto e
comeu nada além de castanhas. O motorista da última van, na qual
Sylvanshine enquanto GS-9 tinha sido acomodado, montava no volante
como se seus ombros fossem pesados demais para as costas. Como que
agarrado ao volante para se apoiar. Que tipo de motorista usava um
chapeuzinho de papel? Uma tira era a única coisa que mantinha a
vertiginosa pilha de bagagem no lugar. “Eu sou o Assistente Especial do
novo Enviado dos Sistemas aos Recursos Humanos, cujo nome é Merrill
Lehrl, que está para chegar.”
“Novo aqui. Recém-chegado, era o que eu queria dizer.” A voz do
homem era limpa muito embora ele parecesse se dirigir à janela, que não
estava limpa. Sylvanshine se sentia preso; os assentos estavam mais para
um banco estofado e não havia apoios de braço para propiciar nem que
fosse a ilusão ou a impressão de um espaço pessoal. Fora que a van
balançava assustadoramente na estrada, que ou era uma estrada ou uma
espécie de autopista rural, e dava para ouvir as molas do chassi. O homem
murino, cuja aura era tímida mas bondosa, um sujeito triste e bondoso que
morava dentro de um cubo de medo, estava com o chapéu no colo.
Capacidade de 24 e lotada. Havia o cheiro levedado de homens úmidos. O
nível de energia estava baixo; estavam todos voltando de alguma coisa que
tinha consumido muita energia. Sylvanshine podia quase literalmente ver o
homenzinho rosa tomando Pepto-Bismol direto do pote e indo para casa
encontrar sua mulher que o tratava como um desconhecido desinteressante.
Os dois homens ou trabalhavam juntos ou se conheciam muito bem;
estavam falando alternadamente sem nem ter consciência disso. Um sistema
alternado alfa-beta, o que significava ou Auditorias ou DIC. Ocorreu a
Sylvanshine que a janela continha um vago reflexo oblíquo dele e que o alfa
dos dois estava se divertindo um pouco ao se dirigir ao reflexo de
Sylvanshine como se fosse ele, enquanto o hamster adotava a expressão
facial de quem vai se dirigir a alguém mas não abria a boca. Doações de
ações são maneiras dissimuladas de lidar com ganhos de capital — via
também um som, gasoso e gotejante como meio compasso de realejo,
quando o motorista reduzia as marchas ou a van quadradona balançava mais
forte num S invertido perto de um cartaz que dizia ISSO QUE É INFLAÇÃO e aí
uma imagem que Sylvanshine não conseguiu pegar, e enquanto o sujeito
cortês estava apresentando todos informalmente (Sylvanshine não pegou os
nomes, o que ele sabia que ia gerar problemas, sobretudo se você estava
subordinado a um suposto prodígio na área de Pessoal, e Pessoal era
também a sua área, e ele teria que passar por tudo quanto era ginástica
conversacional no futuro para evitar tocar nos nomes deles, e Deus que
ajudasse se eles fossem alpinistas sociais e esperassem um dia subir e pedir
que ele os apresentasse a Merrill, se bem que se eles eram da DIC isso ia ser
menos provável porque o pessoal de Investigações e Fraudes normalmente
tinha a sua própria estrutura e o seu próprio escritório, muitas vezes em um
prédio diferente, pelo menos em Rome e Philly, porque os contadores
forenses gostam de se ver mais como policiais do que como membros do
Serviço, e via de regra eles não se misturam muito, e na verdade o mais
alto, Bondurant, de fato identificou tanto a si próprio quanto a Britton como
GS-9s da DIC, o que Sylvanshine estava ocupado demais se mortificando por
ter lhe escapado os nomes deles para internalizar até bem mais no fim da
noite, quando recordaria o teor geral da conversa e viveria um momento de
alívio). O amedrontado raramente mentia; o agente mais cortês da DIC
mentia bastantinho, dava para Sylvanshine sentir. A janela estalava sob uma
chuva fina, o tipo de chuva que te pinica mas não molha. Gotinhas —
gotículas — martelavam o vidro, no que o menos estritamente confiável dos
dois segurava o queixo e soltava um suspiro que pelo menos tinha seu lado
cênico. Em algum ponto atrás deles havia o som de um videogame portátil,
e os barulhinhos de outros agentes que assistiam ao progresso do jogo por
cima do ombro do homem que estava jogando o jogo, que estava calado. Os
limpadores de para-brisa da van ou ônibus faziam um barulhinho gritado
passada sim, passada não — ocorreu a Sylvanshine que o motorista parecia
estar descansando o queixo em cima do volante porque estava bem
inclinado para a frente e tentando ficar mais perto do para-brisa como as
pessoas ansiosas ou de vista ruim fazem quando estão com dificuldades
para enxergar. O mais elegante dos dois da DIC na janela tinha um rosto
quase com forma de pipa, simultaneamente quadrado e pontudo nos
zigomas e no queixo; Bondurant podia sentir a pressão aguda do queixo na
palma da mão e o jeito como a borda do encaixe da janela cavava uma linha
reta entre os ossos do seu cotovelo. Todo mundo menos Sylvanshine sabia
de onde eles vinham e o que tinham feito em Joliet, mas nenhum deles
estava falando do assunto de uma maneira minimamente informativa
porque não é assim que as pessoas pensam no que acabaram de fazer. De
fora do veículo ficava claro o que ele era — tanto o formato quanto o
balanço, assim como o fato de que a camada superior de tinta castanha ter
sido aplicada às pressas e de em certos lugares os faróis dos carros que
vinham atrás realçarem relances das cores mais vivas que estavam por
baixo, as letras infladas e os ícones sobre anteninhas anguladas que
sugeriam delícias de alguma maneira misteriosa que só as crianças
entendem. Dentro havia o som do motor e o murmúrio flutuante de
pequenas conversas que se desfaziam na expectativa do fim de alguma
coisa — uma conferência ou um retiro, talvez, ou quem sabe um curso de
reciclagem no trabalho; o pessoal de Rome vivia indo para Buffalo ou
Manhattan para esses Cursos de Reciclagem — e o jogo portátil, e um leve
chiado ou um apito na respiração do sujeitinho rosa-claro, que Sylvanshine
podia sentir olhando para o lado direito do seu rosto, e o som de Bondurant
perguntando a Sylvanshine sobre a divisão DIC do Posto de Rome, e de um
assento à frente e um atrás, e à direita o sussurro minúsculo de alguém
ouvindo coisas em prováveis fones de ouvido — a marca segura de um
agente mais jovem, e ocorreu a Sylvanshine que a última vez em que ele
tinha visto qualquer espécie de negro ou latino tinha sido no aeroporto de
Chicago que não era O’Hare mas ele não conseguia laçar direitinho o nome
e achava esquisitão tirar o canhoto da passagem da mala — enquanto o
menorzinho parecia estar olhando para ele, esperando que ele fizesse
alguma coisa que traísse alguma espécie de inadequação ou déficit de
retenção. Descreva as vantagens da Linguagem de Máquina Octal em
relação à Linguagem de Máquina Binária ao se projetar um programa
Nível-2 para acompanhar padrões nas planilhas de fluxo de caixa de
empresas inter-relacionadas, elenque duas vantagens essenciais para uma
franquia declarar rendimentos da Tabela 20-50 como subsidiária de sua
empresa matriz ao invés de preenchê-las como entidade jurídica autônoma
— e lá estava de novo o trechinho de música de ar comprimido que
Sylvanshine não conseguia identificar mas que o deixava com vontade de
sair do assento e ir a pé em busca de alguma coisa na companhia de todas as
crianças da vizinhança, que surgem todas aos borbotões de suas respectivas
portas de casa e correndo rua abaixo com cédulas ao vento, e antes de poder
pensar Sylvanshine disse: “Por mais bizarro que isto possa parecer, será que
um de vocês de vez em quando está ouvindo…?”.
“Mister Squishee”, disse agora o agente à sua direita num barítono que
não combinava nem a pau com o seu corpo. “Confiscados catorze
caminhões Mister Squishee que cumpriam rotas cíclicas com confeitos
congelados para a dita empresa tipo S no leste de Peoria, além das
instalações comerciais, saldos em haver, cotas acionárias de quatro dos sete
membros da família que detinha o que o conselho regional convenceu o
Sétimo Distrital que era de facto uma empresa tipo S mas de propriedade
privada”, Bondurant disse. “Um empregado insatisfeito falsificou
formulários de depreciação para tudo quanto é coisa, de freezers a carros
como este aqui…”
“Avaliação de risco”, Sylvanshine disse, basicamente para mostrar que
conhecia o jargão. O assento bem à frente de Sylvanshine estava
desocupado, rendendo uma visão do pescoço carnudo e riscado de quem
quer que estivesse sentado à frente daquele lugar, com a cabeça coberta por
um chapéu Busch empurrado para trás para dar ideia de relaxamento e
informalidade.
“Isso aqui é um carro de sorvete?”
“Maravilhoso para o moral do pessoal, né? Como se a pintura enganasse
qualquer um, que a nata da Agência aqui está sendo transportada de volta
numa van que vendia picolé e era conduzida por um cara com um
uniformão acolchoado bem branquinho e cara de borracha pra ficar
parecendo manjar.”
“O motorista dirigia esse carro pro pessoal da Mister Squishee.”
“Por isso que a gente está indo tão devagar.
“O limite é oitenta; dá só uma sacada no montão de carro travado atrás da
gente dando luz alta, se estiver a fim.”
A cara do sujeito menor e mais rosa, Britton, era redonda e coberta de
penugem. Ele tinha seus trinta e poucos anos e não ficava claro se ele fazia
a barba. O estranho era que a vizinhança de Sylvanshine em King of Prussia
era uma comunidade planejada, com lombadas, cuja associação de
moradores tinha proibido qualquer atividade de venda, principalmente com
realejo — Sylvanshine nunca na vida tinha corrido atrás de um carro de
sorvete.
“O motorista ainda está preso à decisão — o confisco acabou de ser
aprovado no trimestre passado, a revisão final decidiu que a margem
referente a manter os carros e os motoristas servindo a gente durante o
período do contrato ultrapassa tanto o que se ganharia com o leilão desses
bens que agora todo mundo abaixo de GS-11 anda em carros da Mister
Squishee”, Bondurant disse. A mão dele andava pelo queixo quando ele
falava, o que Sylvanshine achou desajeitado e falso.
“Srta. Pensamento a Curto Prazo.”
“Terrível para o moral do pessoal. Sem falar da catástrofe de RP que são
as crianças e os pais delas vendo caminhões que eles associam a inocência e
deliciosos sorvetinhos de caramelo agora confiscados e por assim dizer
alistados no Serviço. Até na fiscalização.”
“A gente sai pra fazer fiscalização com esses caminhões, se é que dá pra
você acreditar.”
“Só falta jogarem pedra.”
“Mister Squishee.”
“Tem umas músicas piores; tem uns caminhões que tocam um pedacinho
toda vez que trocam de marcha.”
Eles passaram por outra placa, esta do lado direito, mas Sylvanshine pôde
ver: É PRIMAVERA, PENSE NA SEGURANÇA NAS FAZENDAS.
Bondurant, com a bunda cansada por ter passado dois dias numa cadeira
de armar, estava olhando para fora sem olhar de verdade para um trecho de
doze acres de milharal — eles revolviam a terra ainda com os talos do
milho enquanto preparavam os campos para a semeadura de abril em vez de
revolver no outono para eles terem o inverno inteiro para apodrecer e
fertilizar a terra, o que com fertilizantes de organofosfato e essas coisas
Bondurant achava que não valia a pena hoje em dia revolver no outono,
fora que por algum motivo que o pai do Higgs tinha contado para ele mas
que ele tinha esquecido eles gostavam de ficar com a terra toda socada no
inverno, protegia alguma coisa na terra — e sem se dar conta se viu
pensando no campo arrepiado que evocava a axila de uma mulher que não
depilava sempre as axilas, e sem estar consciente de nenhuma das conexões
entre o campo que agora passava e era substituído na janela por um bosque
de carvalhos e a axila e a mulher, ele se viu pensando de forma desorientada
em Cheryl Ann Higgs, hoje Cheryl Ann Standish e hoje datilógrafa da
American Twine e mãe divorciada de dois filhos num trailer extragrande
que seu ex aparentemente tinha sido preso por tentar incendiar logo depois
de Bondurant ter ido como GS-9 para a DIC, que foi sua acompanhante no
baile de formatura da Peoria Central Catholic em 71 quando os dois foram
escolhidos para a Corte do baile e Bondurant ficou empatado em segundo
lugar na votação para Rei e usou um smoking azul-bebê e sapato alugado
que apertava seu pé e ela não fodeu com ele naquela noite nem na festa pós-
Baile quando todos os carinhas se revezaram sendo fodidos pelas meninas
que foram com eles no Chrysler New Yorker preto e dourado que eles
tinham alugado para aquela noite com o pai do interbases lá na Hertz e que
eles deixaram manchado e aí o interbases teve que passar o verão lá na
Hertz do aeroporto trabalhando no balcão para pagar a limpeza do New
Yorker. Danny alguma coisa, o pai dele morreu não muito depois, mas ele
não pôde jogar na divisão Legion naquele verão por causa daquilo e não
conseguiu se manter na linha e quase que não entra no time de beisebol da
NIU e acabou perdendo a bolsa e sabe lá Deus o que foi que aconteceu com
ele no fim mas nenhuma das manchas era de Bondurant e Cheryl Ann
Higgs apesar do tanto que ele insistiu. Ele não usou a garrafa de schnapps
porque se levasse ela bêbada para casa o pai dela ou matava ele ou punha a
menina de castigo. O ponto alto da vida de Bondurant até aqui tinha sido
em 18/5/73 quando estava no segundo ano da faculdade com aquela tripla
como rebatedor substituto no último jogo em casa na Bradley, que trouxe
Oznowiez, o futuro catcher estrela da liga júnior, para ganhar da SIU-

Edwardsville e colocar a Bradley nos playoffs do vale do Missouri, que eles


acabaram perdendo mas ainda assim não passa um dia de trabalho na mesa
com os pés erguidos e as pranchetas empilhadas no colo sem que ele veja o
balão daquela bola com efeito da SIU parada no ar e sinta o baque seco da
carne do taco tocando a bola e ouça o estalido de dois sinos do taco de
alumínio caindo enquanto vê a bola como que ricochetear no poste da cerca
da linha de falta e balançar a outra cerca da linha de falta e vê e ele até
jurava que ouviu as duas cercas vibrando com a força da bola, que ele tinha
acertado tão forte que ia sentir para sempre mas não consegue evocar
nenhuma lembrança assim tão nítida da sensação de entrar em Cheryl Ann
Higgs deitada num cobertor ao lado do lago lá depois da banca depois do
limite do pasto da pequena leiteria que o sr. Higgs e um dos seus
inumeráveis irmãos tocavam, apesar de lembrar bem o que cada um deles
estava usando e o cheiro das algas novas do lago perto da manilha de esgoto
cujo gorgorejo era quase o de um riacho, e a expressão no rosto de Cheryl
Ann Higgs quando a postura e a posição supina dela iam se tornando
aquiescentes e Bondurant soube que estava tudo certo como se diz por aí
mas evitou os olhos dela por causa daquela expressão, que sem jamais ter
voltado a pensar nela Tom Bondurant nunca esqueceu, uma expressão
vazia, de uma tristeza terminal, que lembrava não tanto a de um faisão na
boca de um cachorro quanto a de uma pessoa que está prestes a transferir
alguma coisa cujo retorno ela sabe de cara que nunca vai conseguir obter
adequadamente. O ano seguinte tinha visto os dois caírem na espiral louca e
obsessiva de amor em que eles terminavam e aí não conseguiam ficar longe
um do outro até que um dia ela conseguiu ficar longe, e pt saudações.
O agentezinho rosa-claro da DIC, Britton, sem nenhum tipo de limpar de
garganta ou de deixa perguntou a Sylvanshine o que ele estava pensando, o
que Sylvanshine achou grotesca e quase obscenamente inadequado e
invasivo, mais ou menos como perguntar como era a sua mulher nua ou
como cheiravam as suas funções fisiológicas, mas claro que seria
impossível dizer isso em voz alta, especialmente para alguém cujo trabalho
aqui envolvia cultivar boas relações e linhas de comunicação bem abertas
para Merrill Lehrl explorar quando chegasse — ser um mediador para
Merrill Lehrl e ao mesmo tempo obter informações sobre tantos aspectos e
questões envolvidos no processo de análise quanto fosse possível, já que
havia certas decisões difíceis, delicadas a tomar, decisões cujo impacto se
estendia muito além desse posto local e fosse como fosse aquilo ia ser
doloroso. Sylvanshine, virando-se um pouco mas não totalmente para ele
(um raio laranja na omoplata direita) para enfim olhar no olho esquerdo de
Gary Britton, percebeu que tinha quase nada de “leitura” emocional ou ética
a respeito de Britton ou de qualquer pessoa naquele ônibus que não fosse
Bondurant, que estava perdido em algum tipo de memória afetiva e
cultivando esse lado afetivo, recostando-se um pouco nele como alguém se
recostaria numa banheira. Quando algo volumoso e em direção contrária
passou por eles, o grande retângulo do para-brisa foi por um momento
incandescido e opacificado por água, que os limpadores arfavam
poderosamente para deslocar. O olhar de Britton — Sylvanshine achava que
ele estava mais olhando para o seu olho direito do que no seu olho. (Nesse
momento passou pela mente de Thomas Bondurant, que tendia a ser
tornádica, enquanto ele olhava pela janela mas cada vez mais fundo na sua
própria memória, que era possível olhar por uma janela, olhar numa janela
como quando há o rabo de cavalo dourado e um relance de ombro cremoso
na janela, através de uma janela [parecido com por], e até para uma janela,
como quem examina a claridade do vidro e se ele está limpo.) O olhar
mesmo assim parecia conter expectativa, e Sylvanshine sentiu de novo atrás
do vazio de seu estômago e do nervo pinçado da clavícula como era turvo o
humor geral dentro do ônibus e como era diferente da tensão aterrorizada
dos cento e setenta agentes do 0104 de Filadélfia ou do torpor alucinado da
dúzia do minúsculo 408 de Rome. O seu próprio humor, o complexo
híbrido de fadiga relacionada à chegada e de medo por antecipação que o
viajante sente ao fim não de uma jornada mas de uma mudança, de maneira
nenhuma complementava o humor do antigo caminhão da Squishee nem do
cortês e nostálgico agente à sua esquerda nem da lacuna humana que tinha
feito uma pergunta invasiva cuja resposta franca acarretaria reconhecer a
invasão, colocar Sylvanshine num beco sem saída de relações pessoais
ainda antes de chegar ao Posto, o que pareceu por um momento
terrivelmente injusto e deixou Sylvanshine corado de autopiedade, uma
sensação não tão sombria quanto a asa do desespero mas tingida de
carmesim com um ressentimento que era tanto melhor quanto pior que a
raiva comum por não ter objeto específico. Não parecia ser culpa de alguém
específico; algo na aparência de Gary ou Gerry Britton deixava óbvio que a
pergunta dele era alguma extensão inevitável de seu caráter e que ele não
tinha mais culpa nisso do que uma formiga tinha culpa de subir na sua
maionese num piquenique — as criaturas só faziam o que faziam.
§ 8

Sob a placa erguida todo mês de maio à beira da estrada mais externa e
que dizia É PRIMAVERA, PENSE NA SEGURANÇA NAS FAZENDAS e passando pela
entrada norte com o seu próprio nome adulterado e placas dedicadas a
vendas e velocidades e ao glifo universal de crianças brincando e descendo
o corredor polonês asfaltado de casas móveis mais bonitas passando pelo
rottweiler que encoxa o nada em espasmos alucinados no extremo da
corrente e pelo som de fritura que vem da janela da cozinha do trailer
depois de uma curva aguda à direita e aí de outra à esquerda seguindo o
comprimento de uma lombada para entrar num bosque denso ainda não
derrubado para novos trailers e pelo som de coisas secas quebrando e do
estridular dos insetos nas folhas decompostas do chão do bosque e por duas
garrafas e uma colorida embalagem plástica empalada no ramo da amoreira
enxergando através da móvel paralaxe dos cortes dos ramos dos brotos e aí
dos trailers ao longo das anfractuosas estradas e ruelas que desviam do
trailer de metal ondulado onde dizem que o sujeito deixou a família e voltou
um tempo depois com uma arma e matou todo mundo enquanto eles
assistiam Dragnet e pelo trailerzinho sucateado semicoberto de mato à beira
do bosque onde meninos e suas meninas faziam estranhas formas agnadas
sobre esteiras e deixavam coloridas embalagens rasgadas até um incidente
com um fogão que explodiu a entrada de gás e rasgou a parede sul do trailer
numa grande fenda labial que expõe as entranhas abertas do trailer aos
olhares provindos da beira do bosque e à pluralidade de olhos enquanto as
agulhas e os caules de um longo inverno estalam ruidosos sob uma
pluralidade de sapatos onde o bosque se interrompe numa tangente para lá
do fim de um beco sem saída inabitado onde eles vêm agora ao pôr do sol
para ficar vendo o carro estacionado arfar sobre as molas. Os vidros
embaçados quase opacos e tão vivos no chassi que ele parece andar mesmo
desligado, o carro do tamanho de um barco, rangido de barras e
amortecedores e um sacudir que por pouco não se conforma de fato em
ritmo. Os pássaros do crepúsculo e o cheiro de pinho partido e do chiclete
de canela de uma mais nova. Os movimentos oscilantes lembram os de um
carro em alta velocidade por uma estrada ruim, tornando onírica a aparência
estática do Buick, e carregada de alguma coisa como romance ou morte sob
o olhar das meninas agachadas à beira arrepiada do bosque, lembrando
dríades e com olhos quase tão abertos e solenes quanto, esperando a
eventual passagem da sombra clara de um membro por uma janela (uma
vez foi só um pé descalço contra o vidro, e que tremia), aproximando-se
progressivamente e aos poucos e mais abaixadas a cada noite da semana
antes da vera primavera, desafiando-se caladas umas às outras para ver
quem chegaria perto do carro arfante e olharia lá dentro, e quando a única
que finalmente vai e aí enxerga nada além que o reflexo de seus próprios
olhos estalados enquanto do outro lado do vidro vem um grito que conhece
bem demais, que a desperta de novo toda vez do outro lado da parede de
papelão do trailer.

Havia incêndios nos morros de gipsita mais ao norte, cuja fumaça pairava
e fedia a sal; aí os brincos de estanho desapareceram sem queixas e nem
mesmo menção. Aí uma noite toda ausente, e duas. A criança como mãe da
mulher. Eram augúrios e sinais: Toni Ware e a mãe de novo no estrangeiro
em noites sem fim. Rotas em mapas que não geram nenhuma forma
razoável quando retraçadas.
À noite do parque dos trailers os morros dotados de encardido brilho
laranja e os sons de árvores vivas que explodiam no calor do fogo iam
longe, e o ruído de aviões que aravam o ar ondulante no alto e largavam
grossas línguas de talco. Em algumas noites chovia uma cinza fina que ao
tocar as coisas virava fuligem e mantinha as almas todas do lado de dentro
de modo que por todo o parque a janela de cada trailer se via dotada da
subaquática luminosidade dos televisores e quando havia muitas
sintonizadas identicamente os sons dos programas chegavam nítidos à
menina por entre a cinza como se a televisão das duas ainda estivesse com
elas. Tinha desaparecido sem comentários antes da última mudança. O sinal
daquela última vez.
Os meninos do parque usavam grandes chapéus amassados e gravatas
fininhas e alguns exibiam turquesa no corpo, e um desses a ajudou a
esvaziar o tanque sanitário do trailer e aí a pressionou a um compensatório
ato de felação, quando ela então lhe garantiu que qualquer coisa que saísse
da calça dele não voltaria mais. Nenhum menino do tamanho dela tinha
sucesso nessas pressões desde Houston e dos dois que colocaram alguma
coisa no refrigerante dela que fez com que eles girassem de lado no ar e ela
aí não pôde lutar e ficou deitada olhando o céu enquanto eles atingiam seus
distantes objetivos.
No pôr do sol então oeste e norte eram da mesma cor. Em noites limpas
ela podia ler à luz ambarina do céu noturno sentada na caixa de plástico que
servia de degrau de entrada. A porta de tela não tinha tela mas era ainda
assim uma porta de tela, fato em que ela pensava. Sabia pintar com os
dedos na fuligem em cima do fogão da cozinha do trailer. Em laranja
incendiário até o crepúsculo cada vez mais denso no cheiro de creosoto
queimando nos ríspidos morros vento abaixo.
Sua vida interior, rica e multivalente. Em fantasias romantizadas era ela
que lutava e por conseguinte resgatava algum objeto ou figura que nunca na
imaginação se resolvia ou adotava forma ou nome quaisquer.
Depois de Houston sua boneca favorita era a mera cabeça de uma
boneca, cabelo prolixamente arrumado e o buraco da cabeça preso a um fio
para encontrar o fio também de um pescoço; tinha oito anos quando corpo
se perdeu que ora jazia para sempre supino e perdido no capim enquanto
sua cabeça seguia vivendo.
As habilidades relacionais da mãe eram insignificantes e não incluíam a
fala confiável ou consistente. A filha foi aprendendo a confiar em ações e
detalhadamente ler sinais dos quais o grosso das crianças se mantém
inocente. O surrado atlas rodoviário tinha então aparecido e estendido jazia
sobre a fresta mediana do balcão aberto no estado natal da mãe sobre cuja
representação de seu ponto de origem restava um esporo de muco seco
rajado de rubro fio de sangue. O atlas ficou aberto daquele jeito por quase
uma semana inconsulto; elas comiam em volta dele. Acumulava cinzas que
o vento trazia pela tela rasgada. Formigas assolavam todos os trailers do
parque, havendo algo na cinza do fogo de que elas precisavam. O ponto de
formicação daquelas duas era o trecho no alto em que os painéis
amadeirados da cozinha tinham desgrudado no calor anterior e se curvado
para fora e de onde desciam duas colunas vasculares de formigas negras. De
pé comendo direto da lata diante da pia anodizada. Duas lanternas e uma
gaveta com pedaços diferentes de velas que a mãe desconsiderava porque
os cigarros eram sua luz de entrada no mundo. Uma caixinha de bórax em
cada canto da cozinha. A água em baldes da torneira do lave e pague, o
trailer isolado com os cabos laterais pendurados e o paradeiro do dono
desconhecido dos anciãos do parque, cujas cadeiras de jardim restavam
imolestadas pela cinza na sombra central da árvore que esfumava o parque.
Uma entre eles, Dona Tia, lia a sorte, couraçada e trêmula no rosto como
uma pecã descascada enrodilhada inteira em xales pretos e com dois dentes
solitários como pinos que sobraram num boliche, e tinha seu próprio
baralho e uma bandeja em que a cinza coletada restava branca, chamando-a
de chulla e sem cobrar tarifa por causa do Mau Olhado que dizia temer
quando a menina olhava para ela pelo buraco da tela com o telescópio de
uma revista enrolada. Dois cães ossudos e de olhos amarelos deitados
pulsando à sombra da árvore que esfumava o parque levantavam só de vez
em quando e latiam para os aviões que assolavam os incêndios.
O sol lá no alto como um olho mágico que se mostrava o coração do
inferno consumindo-se sozinho.
Mas outro sinal foi quando Dona Tia então se negou a prever e o fez
suplicando clemência em vez de recusar pura e simplesmente ante o riso
rachado dos outros anciãos e viúvas da sombra; ninguém entendia por que
ela temia a menina e ela não dizia, lábio inferior preso atrás de um dente
enquanto retraçava repetidamente a carta especial apenas no ar à sua frente.
Cuja falta sentiria e cuja memória em confiança dali por diante a cabeça da
boneca portaria também.
Sendo indiferentes a isso as habilidades relacionais da mãe desde o
período de confinamento clínico em University City MO onde foram
negadas visitas à mãe por dezoito dias úteis e a menina escapou ao Serviço
Social durante esse período e dormiu num Dodge abandonado cujas portas
podiam ser trancadas com cabides bem enroscados.
A menina olhava sempre o atlas aberto e a cidade lá marcada com um
espirro. Nasceu ali, logo na periferia, na cidade que tinha seu nome. Sua
segunda experiência do tipo que graças a uma linguagem indiferente seus
livros faziam parecer delicada ocorreu no carro abandonado em University
City MO nas mãos de um homem que sabia como deslocar um cabide com o
gancho endireitado de um outro e que disse ao rosto dela sob a luva sem
dedos dele que aquilo ali podia acabar de duas maneiras.
O maior período em que ela sobreviveu apenas de comida roubada de
lojas foi de oito dias. Ladra não mais que competente. Quando estiveram
em Moab UT um parceiro uma vez lhe disse que os bolsos dela não tinham
imaginação e logo depois foi preso e obrigado a catar lixo na beira da
estrada enquanto ela e a mãe passavam no trailer reformado dirigido pelo
“Chute”, o vendedor de pirita e pontas de flecha feitas em casa a quem a
mãe jamais dirigia uma única palavra ali sentada diante do rádio pintando
cada unha de uma cor diferente e que uma vez lhe deu um soco tão forte no
estômago que ela viu cores e cheirou bem de perto a base grudada do
carpete e pôde ouvir o que a mãe então fez para distrair o “Chute” de novas
atenções àquela menina desbocada. Tendo sido assim também que ela
aprendeu a cortar um cabo de freio de maneira a retardar seu rompimento
até onde a profundidade do corte deixou ela aguentar.
À noite na esteira sob o brilho ocreado sonhava também com um banco à
beira de um lago e o sonolento resmungo dos patos enquanto a menina
segurava a cordinha de algo que flutuava no alto com um rosto pintado,
uma pipa ou um balão. De outra menina que jamais veria ou reconheceria.
Uma vez no sistema interestadual de rodovias da nação a mãe falou de
uma boneca sem cabeça que também tivera e que guardou durante o inferno
na terra que foram os anos de sua infância em Peoria e da doença nervosa
de sua mãe (perfil todo enfarruscado enquanto pronunciava as palavras)
durante os quais a mãe da mãe se recusava a deixar que ela saísse da casa
na qual contratara andarilhos de passagem para pregar calotas achadas e
abandonadas em todo centímetro do interior de modo a defletir as
transmissões de um certo Jack Benny, um homem rico que a mãe tinha
passado a acreditar que era insano e buscava o controle global dos
pensamentos através de ondas de rádio de um tom e matiz especial. (“‘Um
sujeito malvado desses nunca ia deixar o mundo escapar’” era uma citação
indireta ou um boato quando ela dirigia, o que a mãe podia fazer enquanto
ao mesmo tempo fumava e lixava as unhas.) A menina decidiu se ocupar de
ler placas e saber os fatos da sua própria história passada e presente. Moer
vidro quebrado até virar pó requer uma hora com uma lasca de tijolo numa
superfície sólida. Roubou acém moído e uns pãezinhos, enfiou o vidro em
pó na carne que preparou num braseiro coberto por uma tela de janela no
porta-malas do Dodge abandonado e deixou essas refeições tão esmeradas
de sanduíches no banco da frente por dias a fio até o homem que a forçara a
usar sua ferramenta de cabide para arrombar o veículo e roubá-las não
voltar mais; a mãe então logo liberada sob responsabilidade da filha. A
imbricação é impossível com discos, mas as especificações da avó eram que
cada calota tocasse as outras em todos os cantos possíveis. Assim a
eletrificação de uma tornava-se a carga de todas, para deter o bombardeio
de ondas. A criação de um campo letal que bloqueava aparelhos de rádio na
quadra toda. Depois de receber duas notificações por desvio de amperagem
doméstica, a velha descobriu um gerador em algum lugar que funcionava
ainda que ruidosamente a querosene e batia e sacudia ao lado do tanque de
propano em forma de bomba na frente da cozinha. A jovem mãe às vezes
tinha autorização de sair para enterrar as andorinhas que pousavam na casa
e cujas almas partiam num único raio de uma bola de fumaça em forma de
ave.
A menina lia estórias sobre cavalos, biologia, ciência, psiquiatria e a
revista Popular Mechanics quando estava à disposição. Ela lia história de
maneira determinada. Leu Minha luta e não conseguiu entender por que
tanto carnaval por causa do livro. Leu Wells, Steinbeck, Keene, Laura
Wilder (duas vezes) e Lovecraft. Leu metades de muitas coisas rasgadas e
descartadas. Leu um Emblema vermelho sem capa e soube só por instinto
que o autor nunca tinha visto a guerra nem sabia que depois de um certo
grau de extremidade você apenas flutua logo além do medo e pode olhar
para ele sem piscar enquanto faz o que deve ser feito ou permitido para se
manter viva.
O menino do parque de trailers que a forçara ali no cheiro denso do
próprio esgoto deles reunia agora os amigos diante dos trailers à noite para
espreitar e fazer sons animalescos sob a queda das cinzas enquanto a filha
da filha desenhava círculos dentro de círculos sobre seu nome de batismo
no mapa e nas artérias que levavam a ele. As chamas de gipsita e a placa
iluminada do parque eram os polos da noite do deserto. Os meninos
arrotavam e uivavam para a lua e os uivos não pareciam em nada os de
verdade e a risada deles era forçada e as palavras, indiferentes ao amor que
diziam que os fazia inchar e que cairia sobre ela vezes sem fim.
Nessas ausências da mãe com os homens a menina encomendava
catálogos e Ofertas Gratuitas que chegavam diariamente pelo correio com
amostras de produtos que as pessoas com casas compravam para usar
quando lhes bem aprouvesse como a menina, que se considerava autodidata
e não andava de ônibus com as crianças do parque. Elas todas possuíam a
aparência atordoada e apagada daqueles que se veem pobres num mesmo
lugar; os trailers, a placa e os caminhões que passavam eram a mobília do
mundo delas, que orbitava mas não girava. A menina muitas vezes as
imaginava num espelho retrovisor, afastando-se, com os dois braços
erguidos num gesto de adeus.
Tecido de amianto cortado cuidadosamente em tiras das quais uma foi
depositada na secadora paga quando a mãe do pretenso ameaçador deixou
sua carga e retornou ao Circle K para pegar mais cerveja fez com que nem o
menino nem a mãe fossem mais vistos fora de seu trailer duplo, que
repousava em blocos de cimento. As serenatas do rapaz também cessaram.
Uma latinha de sopa cheia de esgoto ou de uma carcaça encontrada na
estrada, quando posta sob os blocos ou a treliça plastificada de uma
extensão de varanda comprada em alguma loja assola um trailer com uma
praga de moscas moles. Uma árvore de sombra podia ser morta se você
inserisse um tubo curto de cobre em sua base, a um palmo do chão; as
folhas de pronto se punham marrons. O truque com um cabo de freio ou
com uma mangueira de combustível era usar um alicate de eletricista para
deixar só um risquinho em vez de cortar tudo de uma vez. Precisava de
certa sensibilidade. Quinze gramas de açúcar cristal de pacotinhos no
tanque de gasolina inutilizavam qualquer veículo sem demandar habilidade.
O mesmo vale para uma moedinha na caixa de fusíveis ou tinta vermelha na
caixa-d’água de um trailer, acessível pelo painel sanitário de todos os
modelos a não ser os bem atuais, inexistentes no parque Vista Verde.
Concebida num carro e nascida noutro. Esgueirando-se em sonhos para
ver sua própria concepção.
O deserto não era dotado de ecos e nisso era como o mar de onde
provinha. Por vezes à noite os sons do fogo iam longe, ou dos aviões que
circulavam, ou dos caminhões estradeiros na 54 rumo a Santa Fé cujos
pneus pranteavam lembrando a longínqua lalação das ondas; ficava deitada
ouvindo na esteira e imaginava não o mar ou caminhões em movimento
mas o que quer que naquele momento escolhesse. Ao contrário da mãe ou
da boneca sem corpo, era livre dentro da cabeça. Um gênio ilimitado, maior
que qualquer sol.
A menina leu uma biografia de Hetty Green, a matricida acusada de
falsária que dominou o Mercado de Ações enquanto guardava restos de
sabão numa caixinha amassada de metal que levava consigo o tempo todo, e
que não temia vivalma. Leu Macbeth como gibi colorido com diálogos em
quadros.
O artista de palco Jack Benny largava o rosto numa mão de um jeito que
a mãe, quando lúcida, dissera que via como terno e que lhe provocava
desejos, sonhos, dentro daquela casa e de sua carapaça de escudos
eletrificados enquanto sua própria mãe escrevia cartas em código para o FBI.
Perto do nascer do sol as planícies vermelhas do leste perdiam seu tom
escuro e o terrível calor dominante do dia se remexia em seu covil
subterrâneo; a menina colocava a cabeça da boneca no peitoril da janela
para ela ver o olho rubro se abrir e pedrinhas e pedaços de lixo projetarem
sombras do tamanhão de um homem.
Nem uma única vez, em cinco estados diferentes, usou um vestido ou
sapato de couro.
Na aurora do oitavo dia do incêndio sua mãe surgiu num veículo de
tamanho aumentado pela caçamba corrugada a cujo volante estava um
macho desconhecido. A lateral da caçamba dizia LEER.

Bloqueio de ideias, hiperinclusão. Vagueza, hiperespeculação,


pensamento difuso, confabulação, salada de palavras, obstrução, afasia.
Mania de perseguição. Imobilidade catatônica, obediência automática,
achatamento afetivo, diluição Eu/Tu, desorganização cognitiva, associações
frouxas ou obscuras. Despersonalização. Mania de centralidade ou de
grandeza. Compulsividade, ritualismo. Cegueira histérica. Promiscuidade.
Solipsismo ou estados de êxtase (raros).
D./L de N. da menina: 4/11/60, Anthony IL.
D./L de N. da mãe: 8/4/43, Peoria IL.
Endereço mais atual: 17 Dosewallips, Unidade E, Parque para
Habitações Móveis Vista Verde, Organ NUM., 88 052.
A.P.O./C. da menina: 1,60 m, 43 kg, Castanhos/Castanhos.
Ocupações declaradas da mãe, 1966-1972 (do Formulário 669-D do
IRS [Certificado de Subordinação de Penhor de Imposto Federal,

Distrito 063(a)], 1972): Assistente de Limpeza e Lavadora de Pratos


de Cantina, Agronomia Rayburn-Thrapp, Anthony IL; Operadora
Qualificada de Prensa de Serigrafia Até Ferimento no Pulso,
Uniformes All City, Alton IL; Caixa, Corporação de Mercados
Convenient, Norman OK e Jacinto City TX; Atendente, Corp. de
Restaurantes Stuckey’s, Limon CO; Funcionária Assistente para
Agendamento de Mistura de Produtos Adesivos, Companhia Nacional
de Gomas e Produtos Químicos, University City MO; Hostess e
Administradora de Bebidas, Clube Noturno com Atrações ao Vivo
Double Deuce, Lordsburg NM; Vendedora de Contratos, Serviços
Temporários Cavalry, Moab UT; Organização e Limpeza de Áreas de
Confinamento Canino, Canil e Tosa Best Friends, Green Valley AZ;

Vendedora de Entradas e Gerente Noturna Substituta, Entretenimento


Adulto Riské’s Live XX, Las Cruces NM.

Então voltaram a viajar à noite. Sob uma lua que se erguia redonda à
frente delas. O que se chamava de banco traseiro da caminhonete era uma
prateleira estreita em que a menina conseguia dormir se acomodasse as
pernas no vão entre os assentos de verdade cujos apoios de cabeça tinham o
brilho fosco do cabelo não lavado. A bagunça e o cheiro de levedo
delatavam uma caminhonete que tinha sido ou era uma casa. A
caminhonete e o homem da caminhonete tinham o mesmo cheiro. A menina
com o colante de algodão e a calça jeans que se consumia nos joelhos. A
concepção que a mãe tinha dos homens era que ela os usava como uma
feiticeira faria com animais irracionais, como símbolo e objeto de seus
poderes extraordinários. Seu nome em voz alta para eles, que a menina não
reprovava, era daemons. Homens de costeletas, queimados do sol, que
chupavam fósforos de madeira e amassavam latinhas com as mãos. Cujos
bonés tinham abas com linhas de suor como anéis de árvores. Cujos olhos
percorriam o seu corpo no retrovisor. Homens que era impossível conceber
que um dia tivessem sido crianças ou tivessem olhado nus para alguém em
quem confiavam, com um brinquedo na mão. Com quem a mãe conversava
como se fossem bebês e que deixava que a tratassem como uma boneca sem
cabeça, sevícias.
Num hotelzinho Amarillo de beira de estrada a menina ficou com um
quarto só para si, onde não pudesse ouvir. Os cabides ficavam presos à
barra do armário. A cabeça da boneca usava um batom de giz de cera rosa e
olhava para a TV. A menina muitas vezes desejava ter um gato ou algum
bichinho pequeno para alimentar e confortar afagando-lhe a cabeça. A mãe
tinha medo de insetos com asas e andava com latas de veneno. Spray de
pimenta, cosméticos derretidos, o estojinho imitação de couro dos cigarros
e o isqueiro tudo ao mesmo tempo numa bolsa de lantejoulas vermelhas
imbricadas que a menina tinha arranjado para o Natal em Green Valley só
com um rasgo bem pequeno perto do fundo onde a etiqueta eletrônica tinha
sido arrancada com uma lixa e então usado para carregar o mesmo colante
que a menina agora usava, no qual corações cor-de-rosa bordados
formavam uma linha como de uma cerca na altura dos seios.
A caminhonete também tinha cheiro de mantimentos estragados e uma
janela com a alavanca desaparecida que ele erguia e baixava com um
alicate. Um cartão grudado com durex num dos vidros proclamava que as
cabeleireiras ficam alisando até ficar duro. Os dentes dele não sobreviveram
num lado da boca; o porta-luvas ficava trancado. A mãe aos trinta com o
rosto começando a exibir as vagas emendas do mapa do segundo rosto que
a vida tinha guardado para ela e que ela temia viesse a ser o de sua própria
mãe que na época do confinamento em University City ficava sentada
abraçada aos joelhos se balançando e se arranhando, tentando destruir o
mapa do rosto. A fotografia sépia da mãe da mãe com a idade da menina
usando um aventalzinho num banco de pelo de cavalo enrolada e enfiada na
cabeça da boneca e levada por aí com restos de sabonete e três carteiras de
biblioteca no seu nome de batismo. Seu diário no forro duplo da mala
redonda. E aquela única foto da mãe dela criança, a céu aberto, atordoada
pelo inverno com tantos casacos e gorros que ela e o tanque de propano
pareciam aparentados. A casa eletrificada fora do campo de visão, o círculo
de neve derretida a sua volta e a mãe atrás da mãezinha segurando-a de pé;
a criança tivera crupe e uma febre tão forte que temeram que viesse a
morrer e a mãe tinha se dado conta de que não tinha fotos dela pequena para
guardar se ela morresse e empacotou a filha e a mandou para fora, na neve,
para esperar enquanto ela implorava uma chapa com a Polaroid do vizinho
para sua filhinha não ser esquecida quando morresse. A foto distorcida por
tanto tempo dobrada e sem pegadas à vista em qualquer parte da neve no
quadro que a menina pudesse ver, a boca da criança escancarada e os olhos
erguidos para o homem com a câmera como quem confia que aquilo fazia
sentido, que era assim que a vida correta se dava. Os planos da menina para
a avó, muito refinados com a idade e a habilidade adquirida, ocupavam boa
parte do primeiro terço do diário mais recente.
Sua mãe, e não o homem, estava ao volante quando ela acordou com o
estardalhaço dos pedregulhos no Kansas. Uma parada de caminhões se
afastava enquanto algo vertical corria pela estrada atrás deles e acenava
com o boné. Ela perguntou onde estavam mas não perguntou do homem
que por três estados dirigira tendo na coxa da mãe a mesma mão criminosa
que tinha sido posta nela, uma mão estudada pela fresta entre os assentos
pela cabeça da boneca assim de canto e sua desconexão e seu voo pelo ar
vistos no mesmo sonho de que o solavanco e os sons pareciam fazer parte.
A filha agora com treze e começando a aparentá-los. Os olhos de sua mãe
eram distantes e de pálpebras baixas em companhia de homens; agora no
Kansas ela fazia caretas para o retrovisor e mascava chocolate. “Vem pra cá
pra aqui na frente aqui, vamos.” O chiclete tinha cheiro de canela e seu
papel-alumínio dobrado podia dar uma ferramenta de abrir porta-luvas
enrolado para suavizar o grão de uma lixa na ponta.
Diante de um posto de beira de estrada em Portales, sob um sol de ouro
malhado, a menina em decúbito dorsal e semiadormecida num cochilo
poroso sobre a prateleirinha dos fundos suportou o homem que se içou de
trás do volante da caminhonete e formou com a mão uma garra nada
sensual que enviou por sobre o encosto do assento para apertar o seu
próprio peitinho, esganar o peitinho, olhos claros e ilascivos, ela se fingindo
de morta e encarando sem piscar um ponto atrás dele, audível a respiração
do homem e recendente seu boné cáqui, espremendo o peitinho com o que
parecia uma descolada assentimentalidade, abandonando aquilo ao som dos
saltos altos lá no estacionamento. Ainda assim uma nítida evolução em
relação ao Cesar do ano anterior, que trabalhava pintando placas de estrada
e sempre trazia grãos verdes nos poros do rosto e das mãos e exigia que
tanto a mãe quanto a menina deixassem a porta do banheiro aberta não
importava o que tivessem de fazer lá dentro, ele próprio por sua vez um
avanço em relação ao distrito de armazéns e apartamentos abandonados de
Houston em que com elas se vira por dois meses “Murray Facada”, o
soldador semiprofissional cuja faca no suporte com mola do antebraço
cobria uma tatuagem da mesmíssima faca entre dois seios azuis sem dona
que o apertão de um punho fazia incharem nos lados o que ele achava
divertido. Homens com coletes de couro e gênios ruins que quando bêbados
eram delicados de maneiras que faziam a pele das suas costas se eriçar em
pedrisco.
A rodovia 54 leste não era federal e o vento dos caminhões em sentido
contrário batia na caminhonete e em sua caçamba e causava uma arfagem
que a mãe controlava com o volante. Todos os vidros abertos para combater
o cheiro acumulado do homem. Uma coisa inconcebível no porta-luvas que
a mãe disse para fechar porque ela não queria nem ver. O cartão com seu
calembur desenhou espirais rococós na esteira de ar da caminhonete,
sumindo atrás dela contra a cintilação da estrada.
A oeste de Pratt KS elas adquiriram e consumiram burritos do Convenient
Mart aquecidos no aparelho fornecido para tal propósito. Uma imensa
raspadinha gigante inacabável.
Por trás da carapaça dela de discos e papel-alumínio a mãe da mãe
sustentava que quando o ensandecido Jack Benny ou seus escravos com
olhos vorticosos viessem buscá-las, a melhor defesa possível era se
fingirem de mortas, ficar deitadas com olhos vazios e abertos e sem piscar
nem respirar enquanto os homens guardavam as armas de raios e andavam
pela casa olhando para elas, dando de ombros e dizendo uns aos outros que
tinham chegado tarde porque olha ali a mulher e sua filha núbil estavam já
falecidas e era melhor deixá-las em paz. Forçada a praticar com ela nas
camas geminadas com frascos abertos de comprimidos sobre a mesa a meio
caminho e as mãos compostas sobre o peito e os olhos bem abertos e
respirando de forma tão leve que o peito nunca subia. A mulher mais velha
conseguia manter os olhos abertos por um tempo muito longo; a mãe
quando criança não, e eles logo se fechavam sozinhos, pois uma criança
viva não é boneca e precisa de fato piscar e respirar. A mulher mais velha
disse que era possível se autolubrificar com a devida aplicação e disciplina
e tempo. Ela rezava sua década num colar que ganhou numa brincadeira de
parque de diversões e tinha um cadeadinho de níquel na caixa de correio.
Janelas cobertas de papel-alumínio nos crescentes entre os círculos negros
das calotas. A mãe andava com um colírio e sempre dizia que estava com os
olhos secos.
Ir na frente era bom. Ela não perguntou sobre o homem da caminhonete.
Era na caminhonete dele que estavam mas ele não estava nela; era difícil
achar que isso merecesse algum tipo de lamentação. Os relatos da mãe eram
menos indiferentes quando as duas encaravam a mesma coisa; fazia
piadinhas, cantava e dava olhadelas para a filha. O mundo para além do
alcance dos raios dos faróis ficava muito obscuro. O nome dela era o de
solteira da mãe, Ware. Podia encostar a sola dos pés no painel negro da
caminhonete e ficar olhando por entre os joelhos, no meio deles toda a
língua de estrada sob os faróis. A interrupta linha central disparava Morse
na direção delas, a lua branca como osso era redonda, as nuvens ganhavam
forma ao passar por ela. Primeiro dedos depois mãos inteiras e árvores de
relâmpagos vibravam no horizonte oeste; nada vinha atrás delas. Ficava
procurando faróis ou sinais de perseguição. O batom da mãe era intenso
demais para o formato da sua boca. A menina não perguntou. As chances
eram grandes. O homem era ou da espécie de homem que registraria uma
queixa ou da que tentaria seguir como um segundo “Chute” e encontrá-las
por ter sido deixado na beira da estrada abanando o boné. Se ela
perguntasse, o rosto da mãe murcharia como se ela pensasse no que dizer
quando a verdade era que nem tinha pensado. Sendo a bênção e o fardo da
menina conhecer a mente das duas como se uma fossem, segurar o volante
enquanto de novo ela pingava Murine.
Tomaram café da manhã sentadas em Plepler MO sob uma chuva que
escumava as calhas e batia contra o vidro do café. A garçonete que trajava
branco-enfermeira tinha um rosto escarpado, chamava as duas de querida,
usava um bóton que dizia só me sobrou um nervo e você está dando bem
nele e flertava com os trabalhadores cujos nomes conhecia enquanto saía
vapor da cozinha sobre o balcão acima do qual ela pregava folhas de seu
bloco, e a menina usou a escova de dentes das duas num banheiro com
tranca sem ferrolho. O sino pendente da porta da frente soava quando
acionado para indicar a presença de clientes. A mãe queria biscoitos, batata
palha e mingau com xarope, elas pediram e a mãe foi atrás de um palito de
fósforo seco e logo a menina ouviu ela rindo de alguma coisa que os
homens do balcão disseram. A chuva rolava pela rua, os carros passavam
lentos, a caminhonete delas com sua caçamba encarava a mesa e ainda
estava com o farol baixo aceso, o que ela viu, e mentalmente viu também o
legítimo proprietário da caminhonete ainda lá na estrada perto de Kismet
com as mãos estendidas em garras para o espaço onde a caminhonete tinha
sumido de vista enquanto a mãe dava socos no volante e soprava o cabelo
dos olhos. A menina arrastava a torrada na gema. Dos dois homens que
entraram e ocuparam a mesa ao lado um tinha costeletas e olhos parecidos
com os dele sob um boné vermelho enegrecido pela chuva. A garçonete
com seu toquinho de lápis e seu bloco disse para eles:
“Por que é que cês me foram escolher uma mesa suja?”
“Pra eu poder ficar mais pertinho de você, querida.”
“Mas cês podia ter sentado ali e ficado mais perto ainda.”
“Manda ver.”
§ 9

PREFÁCIO DO AUTOR

Autor aqui. Ou seja, o autor de verdade, o ser humano vivo que segura o
lápis, não alguma persona narrativa abstrata. Tudo bem que às vezes tem
uma persona dessas em O rei pálido, mas trata-se basicamente de um
construto compulsório formal, uma entidade que existe apenas por motivos
comerciais e legais, mais ou menos que nem uma empresa; ela não tem
nenhuma conexão direta, verificável, comigo como pessoa. Mas este aqui
sou eu enquanto pessoa real, David Wallace, quarenta anos, rg 975-04-
2012,1 que me dirijo a você da minha casa dedutível em Formulário 8829
no número 725 do Indian Hill Blvd., Claremont 91 711 CA, neste quinto dia
da primavera de 2005, para lhe informar o seguinte:
Tudo aqui é verdade. Este livro é real de verdade.
Obviamente eu tenho que explicar. Primeiro, por favor volte as páginas e
dê uma olhada no termo de responsabilidade legal, que está na página com
as informações de copyright, anverso, quatro folhas depois da capa algo
infeliz e enganosa. O termo é o texto sem defesa de parágrafo que começa
com: “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no
universo da ficção”. Tenho consciência de que os cidadãos comuns quase
nunca leem esse tipo de termo de responsabilidade, exatamente como não
nos damos ao trabalho de olhar os dados do copyright ou as especificações
da ficha catalográfica ou todo aquele material tedioso e protocolarmente
obrigatório em contratos de venda e anúncios que todo mundo sabe que só
está ali por motivos legais. Mas agora eu preciso que você leia, o termo, e
entenda que aquela abertura “Os personagens e as situações desta obra…”
inclui até este Prefácio do Autor. Em outras palavras, este Prefácio é
descrito naquele termo como algo também ficcional, o que quer dizer que
ele fica dentro da jurisdição de proteção legal definida por aquele termo. Eu
preciso dessa proteção legal para te informar que o que se segue,2 na
verdade, não tem nada de ficção, mas é substancialmente verdadeiro e
preciso. Que O rei pálido é, a bem da verdade, mais uma memória que um
tipo qualquer de estória inventada.
Isso pode aparentemente gerar um paradoxo espinhudo. O termo de
responsabilidade do livro descreve tudo que se segue a ele como sendo
ficção, inclusive este Prefácio, mas agora, aqui neste Prefácio, eu estou
dizendo que a coisa toda na verdade é não ficção; então se você acreditar
em uma coisa não pode acreditar na outra &c. &c. Por favor saiba que eu
também acho irritante esse tipo de paradoxo espertinho e autorreferencial
— pelo menos agora que já passei dos trinta — e que a última coisa neste
mundo que este livro seria é alguma espécie de sacanagenzinha
metaficcional de nariz empinado. É por isso que eu estou fazendo questão
de quebrar o protocolo e me dirigir aqui diretamente a você como eu
mesmo; é por isso que todos os dados específicos que me identificam
enquanto pessoa real foram expostos no começo deste Prefácio. Para eu
poder te informar a verdade: que a única “ficção” de boa-fé aqui é o termo
de responsabilidade lá na página do copyright — que, repetindo, é um
instrumento legal: o único e total objetivo daquele termo é proteger a mim,
ao tradutor, ao editor do livro e aos distribuidores escolhidos pelo editor de
qualquer imputabilidade legal. O motivo de essas proteções serem
especialmente necessárias aqui — o motivo, na verdade, que levou o editor3
a insistir na sua presença como precondição para a aceitação do manuscrito
e o pagamento do adiantamento — é a mesma razão pela qual, se formos
ser estritamente rigorosos, o termo de responsabilidade é uma mentira.4
Eis a verdade verdadeira: o que se segue é substancialmente verdadeiro e
preciso. No mínimo é um registro basicamente verdadeiro e preciso do que
eu vi e ouvi e fiz, de quem eu conheci e de com quem trabalhei, e sob
ordens de quem, e da coisarada toda que aconteceu no Posto 047 do IRS, o
Centro Regional de Análise Meio-Oeste, de Peoria IL, em 1985-6. Boa parte
do livro na verdade se baseia em diversos cadernos e diários que mantive
durante os meus treze meses como analista de rotina no IRS do Meio-Oeste.
(“Baseado” quer dizer mais ou menos copiado direto, por motivos que sem
dúvida ficarão claros.) O rei pálido, portanto, em outras palavras, é uma
espécie de memória vocacional. Ele também deveria funcionar como o
retrato de uma burocracia — possivelmente a burocracia federal mais
importante da vida dos americanos — num tempo de imensas disputas
internas e angústias, as dores do parto do que veio a ser conhecido entre os
profissionais do ramo como o Novo IRS.
Em nome da sinceridade total, no entanto, preciso ser claro e dizer que o
modificador em “substancialmente verdadeiro e preciso” se refere não
apenas à inevitável subjetividade e ao viés típico das memórias. A verdade
é que há, nesse relato não ficcional, certas leves alterações e reorganizações
estratégicas, quase todas surgidas de várias revisões textuais em reação às
opiniões do editor do livro, que por vezes ficou em posição muito delicada
no que se refere ao equilíbrio de prioridades literárias e jornalísticas, de um
lado, e preocupações jurídicas e empresariais, de outro. Provavelmente eu
não devo dizer mais nada quanto a isso. É claro que há toda uma tortuosa
história de bastidores aqui, no que se refere ao veto jurídico das três versões
finais do manuscrito. Mas você vai ser poupado de ter que ouvir muita coisa
a respeito disso tudo, quando menos porque relatar essa história interna iria
contra a própria finalidade do processo repetitivo e microscopicamente
cauteloso dos vetos e da miríade de pequenas alterações e reorganizações
para acomodar tais mudanças que passaram a ser necessárias quando, p. ex.,
certas pessoas se recusaram a assinar autorizações legais ou quando uma
empresa de porte mediano ameaçou entrar na Justiça se seu nome real ou
detalhes que permitissem a identificação de sua situação atual sobre
impostos atrasados fossem usados, com ou sem termo de responsabilidade.5
Em última análise, no entanto, há muito menos dessas mudanças e
reorganizações temporais destinadas a obscurecer identidades do que se
poderia esperar. Pois há vantagens nisso de você limitar o escopo de um
livro de memórias a um determinado intervalo de tempo (mais os
flashbacks relevantes) no que agora para todo mundo parece um passado
distante. Com o que me refiro às pessoas presentes neste livro. Os
parajurídicos da editora tiveram muito menos trabalho para conseguir as
assinaturas nas liberações do que o departamento tinha previsto. Os motivos
são variados mas (como o meu advogado e eu tínhamos levantado
antecipadamente) óbvios. Das pessoas mencionadas, descritas e até às vezes
cuja consciência foi sondada sob a forma de supostos “personagens” em O
rei pálido, a maioria já saiu do Serviço. Das que ficaram, muitas atingiram
níveis de hierarquia GS em que são basicamente invulneráveis.6 Além disso,
por causa do período do ano em que os manuscritos do livro foram
apresentados para que elas os avaliassem, tenho certeza de que outras
pessoas ligadas ao Serviço estavam tão ocupadas e distraídas que nem
chegaram a ler de fato o manuscrito e, depois de esperarem um intervalo
decente para darem a impressão de uma análise detalhada e da devida
deliberação, assinaram a autorização legal para poderem sentir que tinham
uma coisa a menos por fazer. Alguns também pareceram lisonjeados com a
possibilidade de que alguém tivesse prestado tanta atenção neles a ponto de
ser capaz, anos depois, de lembrar as contribuições que eles deram. Uns
poucos assinaram porque continuaram sendo, por todos esses anos, meus
amigos pessoais; um deles é provavelmente a mais valiosa e mais profunda
amizade que já tive. Alguns morreram. Dois nós descobrimos que estavam
encarcerados, sendo que um deles era uma pessoa que você nunca ia ter
imaginado ou suspeitado.
Nem todo mundo assinou as autorizações legais; eu não quero insinuar
isso. Só que a maioria assinou. Vários também consentiram em ser
entrevistados e até citados. Onde isso cabia, partes de suas respostas
gravadas foram transcritas diretamente no texto. Outros assinaram com boa
vontade autorizações adicionais que liberavam o uso de certas gravações
audiovisuais feitas em 1984 como parte de uma abortada iniciativa
motivacional e de recrutamento da Divisão de RH do IRS.7 Como bônus, eles
ainda ofereceram reminiscências e detalhes concretos que, quando
combinados com as técnicas da reconstrução jornalística,8 geraram cenas de
intenso realismo e de grande autoridade, independentemente do fato de este
autor ter ou não estado de corpo presente na cena quando de sua ocorrência.
O que estou querendo deixar claro aqui é que ainda é tudo
substancialmente verdade — i.e., o livro de que este Prefácio faz parte —
independentemente das várias maneiras em que alguns dos §§ vindouros
tiveram que ser distorcidos, despersonalizados, polifonicizados ou
sacudidos em geral para se adequarem aos contornos do termo de
responsabilidade legal. Isso não quer dizer que essa sacudida toda é só uma
sacanagenzinha gratuita; dadas as supramencionadas preocupações legais-
barra-comerciais, ela acabou sendo fundamental para todo o projeto do
livro. A ideia, conforme decisão dos representantes legais das duas partes, é
que você venha a considerar características como pontos de vista
alternados, fragmentação estrutural, incongruências internas propositais &c.
simplesmente como os análogos literários modernos de um “Era uma
vez…” ou “Num reino muito distante, morava um…” ou quaisquer outros
recursos tradicionais que assinalavam para o leitor que o que estava se
passando era ficção e devia ser processado consoantemente. Pois como
todos sabemos, seja consciente, seja inconscientemente, há sempre uma
espécie de acordo tácito entre o autor de um livro e seu leitor; e os termos
desse acordo sempre dependem de certos códigos e gestos que o autor
emprega para sinalizar ao leitor o tipo de livro que ele está lendo, i.e., se é
invenção ou verdade. E esses códigos são importantes, porque o acordo
subliminar para não ficção é bem diferente do da ficção.9 O que estou
tentando fazer neste exato momento, dentro dos limites da proteção do
termo de responsabilidade da página de copyright, é passar por cima dos
códigos tácitos e ser 100% franco e direto sobre os termos do contrato em
questão aqui. O rei pálido é basicamente um livro não ficcional de
memórias, com elementos adicionais de jornalismo reconstrutivo,
psicologia organizacional, educação moral e cívica básica e teoria fiscal &c.
Nosso acordo mútuo aqui se baseia na pressuposição de (a) minha
veracidade e (b) a sua compreensão de que quaisquer dados ou sêmions que
possam parecer minar essa veracidade são na verdade artefatos jurídicos de
proteção, não muito diferentes das letras miúdas que acompanham bilhetes
de loteria ou contratos cíveis, e assim não estão aqui para serem
decodificados ou “lidos” mas sim meramente tolerados como parte do custo
dessa nossa transação, por assim dizer, no ambiente comercial dos dias de
hoje.10
Fora isso, tem o fato autobiográfico de que, como tantos outros jovens
meio nerds e descontentes daquela época, eu sonhava em me tornar
“artista”, i.e., alguém cujo emprego na vida adulta fosse original e criativo
em vez de tedioso e mecânico. Meu sonho específico era me tornar um
grande autor de ficção à la Gaddis ou Anderson, Balzac ou Perec &c.; e
muitas das entradas dos cadernos em que trechos dessas memórias são
baseados eram por si sós textos literariamente sacudidos e fraturados; era
apenas a ideia que eu fazia de mim mesmo na época. De certa maneira,
pode-se dizer que as minhas ambições literárias eram o motivo principal de
eu ter tirado uma pausa da universidade e de estar trabalhando naquele CRA
do Meio-Oeste pra começo de conversa, apesar de a maior parte dessa
história prévia ser tangencial e vir a ser abordada somente aqui no Prefácio,
e de forma muito breve, a saber:
Em resumo, a verdade é que os primeiros textos de ficção pelos quais
cheguei até mesmo a receber um pagamento envolviam certos outros alunos
da primeira universidade que frequentei, que era extremamente cara e de
nível altíssimo e recebia acima de tudo egressos de escolas particulares de
elite de Nova York e Nova Inglaterra. Sem entrar em muitos detalhes,
digamos apenas que houve lá certos textos que produzi pra certos alunos a
respeito de certos temas acadêmicos, e que esses textos eram ficcionais na
medida em que tinham estilos, teses, personas acadêmicas e nomes autorais
que não eram os meus. Acho que deu pra sacar. A principal motivação por
trás desse modesto empreendimento era, como tantas vezes no mundo real,
financeira. Não é que eu fosse desesperadamente pobre quando cursava a
universidade, mas a minha família estava longe de ser rica, e parte do meu
pacote de auxílio financeiro envolvia pedir pesados empréstimos tipo
crédito estudantil; e eu tinha consciência de que esses empréstimos tendiam
a ser uma coisa ruim para alguém que queria seguir qualquer espécie de
carreira artística depois da universidade, já que é fato mais que sabido que a
maioria dos artistas trabalha em ascética obscuridade por anos a fio antes de
ganhar dinheiro de verdade com a profissão.
Por outro lado, havia muitos alunos naquela universidade cujas famílias
estavam em posição não apenas de pagar totalmente a faculdade mas,
parece, de dar dinheiro também pra quaisquer despesas pessoais em que
seus filhos viessem a incorrer, sem mas nem meio mas. “Despesas pessoais”
aqui se refere a coisas como viagens para esquiar no fim de semana,
sistemas de som ridiculamente caros, festas de fraternidades com bares
cheinhos &c. Sem falar que o campus inteiro tinha menos de dois acres e
mesmo assim a maioria dos estudantes tinha carro, o que custava a eles U$
400 por semestre para deixar o carro num dos estacionamentos da
universidade. Era tudo bem inacreditável. Em muitos quesitos, aquela
universidade foi minha introdução à dura realidade das questões de classe,
de estratificação econômica e das realidades financeiras diferentíssimas que
diferentes tipos de americanos habitavam.
Alguns desses alunos de classe alta eram profundamente mimados,
imbecis e/ou nem um pouco incomodados por questões éticas. Outros
estavam sob grande pressão familiar e se viam incapazes de alcançar, por
quaisquer motivos, o que seus pais consideravam ser o verdadeiro potencial
de desempenho deles. Alguns simplesmente não gerenciavam direito tempo
e responsabilidades, e se viam contra a parede na hora de entregar um
trabalho. Tenho certeza que dá pra sacar. Digamos apenas que, como forma
de me pôr em posição de pagar alguns dos meus empréstimos em ritmo
acelerado, eu oferecia determinados serviços. Não eram serviços baratos,
mas eu era bem competente, e cuidadoso. P. ex., eu sempre exigia um
grande corpus de amostras de textos do cliente antes de redigir o texto final
para determinar como ele tendia a pensar e soar, e nunca cometia o
equívoco de entregar alguma coisa que fosse irrealmente superior aos
trabalhos anteriores da pessoa. Você talvez consiga ver o quanto esses
exercícios eram um bom aprendizado para alguém interessado na suposta
“escrita-criativa”.11 Os lucros do empreendimento foram investidos em uma
carteira de fundos de alta rentabilidade; e as taxas de juros da época
estavam altas, enquanto os empréstimos do crédito estudantil só
começavam a acumular juros depois que você saísse da universidade. Era
uma estratégia conservadora, tanto financeira quanto academicamente. Não
que eu estivesse fazendo por encomenda vários textos ficcionais por
semana, ou coisa assim. Afinal eu também tinha bastante trabalho meu para
fazer.
Antecipando-me a uma provável pergunta, deixa eu já admitir que na
melhor das hipóteses a ética aqui era cinzenta. Por isso decidi já ser sincero
lá em cima sobre não ser um pobretão nem precisar de uma renda extra pra
poder comer ou coisa assim. Eu não estava desesperado. Estava, no entanto,
tentando fazer uma poupança para me preparar para o que eu já imaginava12
que seriam dívidas terríveis pós-universidade. Tenho consciência de que
isso não é desculpa no sentido mais estrito do termo, mas realmente
acredito que me serve pelo menos de explicação; e também havia outros
fatores, mais gerais, e outros contextos que poderiam ser considerados
atenuantes. Pra começo de conversa, no final das contas a própria
universidade tinha lá uma hipocrisia moral que não era pouca, p. ex., ao se
autocongratular por sua diversidade e pelo bom-mocismo esquerdista da sua
política enquanto na verdade se dedicava à tarefa de preparar os filhos da
elite para entrar em profissões de elite e ganhar um monte de dinheiro,
aumentando assim o universo de doações vindas de ex-alunos prósperos.
Sem que ninguém discutisse nem se permitisse tomar consciência disto, a
universidade era um verdadeiro templo de Mamon. Não estou brincando.
Por exemplo, o curso mais popular era economia, e os melhores e os mais
inteligentes alunos da minha turma pareciam obcecados com uma carreira
em Wall Street, cujo éthos público na época era “Ganância é bacana”. Sem
falar que havia traficantes varejistas de cocaína no campus que ganhavam
muito mais do que eu podia sonhar. Esses eram apenas alguns fatores
atenuantes que eu poderia, se quisesse, apresentar. A minha atitude a
respeito disso era descolada e profissional, não muito diferente da de um
advogado. O meu ponto de vista básico era que, por mais que no meu
empreendimento houvesse elementos que pudessem tecnicamente ser
definidos como um ato de cumplicidade criminosa com a decisão do cliente
de violar o Código de Conduta Acadêmica da universidade, essa decisão,
assim como a responsabilidade prática e moral por ela, assentava-se no
cliente. Eu estava realizando tarefas literárias como um autônomo
remunerado; por que determinados alunos queriam determinadas
monografias de determinada extensão sobre determinados temas, e o que
eles iriam fazer com elas depois da entrega, isso não era problema meu.
Digamos apenas que esse não era um ponto de vista compartilhado pelo
Conselho Jurídico da universidade em fins de 1984. Aqui a história se
complica e fica meio pesada, e um livro de memórias tipo-padrão
provavelmente iria se demorar nos detalhes, nas injustiças e hipocrisias
gritantes envolvidas na história toda. Eu não vou fazer isso. Só estou
mencionando tudo isso para situar o contexto dos elementos de aparência
ostensivamente “ficcionais” das memórias não-tipo-padrão que você
(espero) comprou e que agora está se divertindo ao ler. Além, claro, da ideia
também de explicar o que eu estaria fazendo num dos trabalhos de
escritório mais tediosos e mecânicos dos Estados Unidos durante o que teria
sido o meu terceiro ano numa universidade de elite,13 para que essa
pergunta óbvia não fique solta gerando desconcentração ao longo do livro
(um tipo de desconcentração que eu, como leitor, detesto). Dados esses
limitados objetivos, então a debacle toda relacionada ao Código-de-CA
provavelmente fica mais bem esboçada com pinceladas esquemáticas, a
saber:
(1a) Pessoas ingênuas são, mais ou menos por definição, inconscientes da
sua ingenuidade. (1b) Eu era, quando olho para trás, ingênuo. (2) Por vários
motivos pessoais, não era membro de nenhuma das fraternidades do
campus, e assim ignorava muitos dos costumes bizarros e práticas tribais da
assim chamada comunidade “grega” da universidade. (3a) Uma das
fraternidades da universidade tinha instituído a prática fenomenalmente
estúpida e arriscada de colocar atrás do bar da sala de bilhar um armário
com duas gavetas cheias de cópias de determinadas provas recentes,
problemas, relatórios de laboratório e monografias que tivessem recebido
notas altas, que ficavam à disposição para plágio. (3b) Por falar em
estupidez fenomenal, no fim não apenas um mas três membros dessa
fraternidade tinham, sem se dar ao trabalho de consultar o prestador de
serviço de quem as tinham encomendado e recebido, jogado monografias
que não eram tecnicamente suas nesse arquivo comunitário. (4) O paradoxo
do plágio é que na verdade é necessário muito cuidado e um trabalho muito
aplicado pra que o ato dê certo, já que o estilo, a substância e as sequências
lógicas do texto original têm que ser suficientemente modificados pro
plágio não ser total e ofensivamente óbvio pro professor que vai corrigir o
trabalho. (5a) O tipo de aluninho mimado e imbecil dessas fraternidades
que recorre a um arquivo comunitário em busca de uma monografia sobre o
uso de deflatores implícitos de Produto Interno Bruto na teoria
macroeconômica também é o tipo que não vai nem saber fazer nem se
importar com o paradoxal trabalho extra que um bom plágio requer. Ele,
por mais que pareça inacreditável, vai simplesmente sentar a bunda e
redatilografar aquilo tudo, palavra por palavra. (5b) E, coisa ainda mais
inacreditável, ele nem vai se dar ao trabalho de analisar se outro irmão da
fraternidade não pretende plagiar a mesma monografia pra mesma
disciplina. (6) O sistema moral de uma fraternidade universitária no final de
contas é classicamente tribal, i.e., caracterizado por uma profunda noção de
honra, discrição e lealdade pra com os supostos “irmãos”, além de uma falta
de consideração total, sociopata, pelos interesses e até pela humanidade de
qualquer indivíduo que não pertença ao conjunto fraterno.
Vamos parar este esboço por aqui. Duvido que você precise de um
diagrama inteiro pra prever o que aconteceu, ou de uma grande cartilha de
dinâmica de classe nos EUA, com os cinco alunos que acabaram
academicamente suspensos ou forçados a cursar de novo certas disciplinas
versus o único aluno suspenso de modo formal durante a análise do pedido
de expulsão e possível14 entrega do caso ao Promotor Público do condado
de Hampshire, que não por acaso é este que vos fala, o autor vivo, sr. David
Foster Wallace de Philo IL, cidadezinha minúscula, morta-viva e
insignificante à qual nem eu nem minha família estávamos morrendo de
vontade de me ver voltar pra ficar à toa vendo TV por pelo menos um e
possivelmente os dois semestres que a administração da universidade ia
usar com a maior calma do mundo pra determinar meu destino.15 Enquanto
isso, pelos termos do §106(c-d) do Ato de Cobrança de Pendências Federais
de 1966, o relógio do pagamento dos meus Empréstimos de Crédito
Estudantil começou a correr, a partir de 1º- de janeiro de 1985, a uma taxa
de juros de 6,25%.
E, de novo, se alguma coisa aqui parece vaga ou truncada, é porque estou
te passando só uma versão bem nua, monotarefa, de quem eu era e onde
estava, em termos de situação, nos treze meses em que passei como analista
do IRS. E tem mais: infelizemente, a forma específica como fui parar nesse
emprego governamental, pra começo de conversa, é um assunto pregresso
que eu só posso explicar de maneira meio torta, i.e., ostensivamente
explicando os motivos de eu não poder discutir esse assunto.16 Primeiro, eu
te pediria pra não esquecer a supracitada indisposição de me ver cumprir
em Philo o meu período de limbo, relutância mútua esta que por sua vez
tem a ver com uma cacetada de problemas e de histórias anteriores entre
mim e a minha família que eu não poderia abordar nem se quisesse (vide
infra). Segundo, eu te informaria que a cidade de Peoria IL fica a mais ou
menos cento e trinta quilômetros de Philo, o que é uma distância que
permite um monitoramento familiar básico sem nenhum tipo de
conhecimento detalhado, íntimo mesmo, que poderia conferir sensações de
preocupação ou responsabilidade. Terceiro, eu poderia chamar a sua
atenção pro Ato de Práticas de Cobrança de Dívidas de 1977 do Congresso
Americano, que no final de contas anula o §106(c-d) do Ato de Cobranças
Federais e autoriza a postergação de pagamentos de Crédito Estudantil para
funcionários documentados de certas agências governamentais, inclusive
adivinha qual. Quarto, eu tenho o direito, depois de exaustivas negociações
com o jurídico da editora, de dizer que o meu contrato de treze meses, com
lotação e salário de funcionário GS-9, foi resultado de ações de bastidores de
certo parente17 cujo nome não será mencionado, com ligações não
especificadas com o Escritório da Comissão Regional Meio-Oeste de certa
agência governamental cujo nome não será mencionado. Por fim, e
importantissimamente, também me permito dizer, embora em linguagem
que não me é de todo própria, que membros da minha família foram quase
unânimes em declinar de assinar as necessárias autorizações legais para
qualquer uso mais específico, qualquer menção ou representação dos
supracitados parentes ou qualquer imagem deles em qualquer âmbito,
ambiente, forma ou guisa, o que inclui referências sine damno, no escopo
da obra escrita doravante intitulada O rei pálido, e que é por isso que eu não
posso entrar em maiores detalhes acerca dos comos e dos porquês mais
amplos. Fim da explicação da ausência de explicação real, que, por mais
que possa soar irritante ou obscura, é (de novo) melhor do que deixar a
questão de por que/como eu estava trabalhando num Centro Regional de
Análise do Meio-Oeste só ali parada, imensa e não comentada durante todo
o texto que virá,18 como o proverbial elefante na sala.
Aqui eu provavelmente também deveria abordar outra questão tipo
motivação central que tem a ver com as questões de veracidade e confiança
levantadas vários §s acima, v.g., por que um livro não ficional de memórias,
pra começar, já que eu sou primariamente um autor de ficção? Sem falar na
questão de por que um livro de memórias restrito a um único ano bem lá
atrás no passado, em que fiquei exilado de tudo que ao menos remotamente
me interessasse ou a que eu desse bola, cumprindo minha sentença como
pouco mais que uma minúscula engrenagenzinha mecânica e efêmera da
imensa burocracia federal?19 Há dois tipos de respostas válidas, uma
pessoal e a outra mais literária/humanística. A coisa pessoal é de início
tentar dizer que não é da sua conta… só que uma das desvantagens de me
dirigir aqui diretamente a você e em pessoa no presente cultural de 2005 é o
fato de que, como tanto eu quanto você sabemos, não há mais nenhuma
linha nítida entre o público e o pessoal, ou na verdade entre o privado
versus o performativo. Entre os óbvios exemplos estão os web logs, os
reality shows, as câmeras do telefone celular, as salas de chat… sem falar
da popularidade extremamente aumentada das memórias como gênero
literário. Claro que popularidade, nesse contexto, é sinônimo de
lucratividade; e na verdade esse mero fato já deveria bastar, em termos de
motivação pessoal. Considere que em 2003 o adiantamento20 típico que um
autor recebia por um livro de memórias era quase 2,5 vezes o que era pago
por uma obra de ficção. A verdade pura e simples é que eu, como muitos
outros americanos, sofri alguns revezes com a volatilidade econômica dos
últimos anos, e esses reveses ocorreram ao mesmo tempo em que minhas
obrigações financeiras aumentaram junto com a idade e as
responsabilidades;21 enquanto isso, tudo que é escritor americano — alguns
dos quais conheço pessoalmente, incluindo um a quem cheguei a emprestar
dinheiro pras despesas básicas de sobrevivência ainda no começo de 2001
— andou fazendo um enorme sucesso com livros de memórias,22 e eu seria
um hipócrita imundo se fingisse que estava menos sintonizado do que os
outros com as forças do mercado.
Como todas as pessoas maduras sabem, no entanto, é possível que tipos
muito diferentes de motivos e emoções coexistam na alma humana. Não há
possibilidade de que um livro de memórias como O rei pálido pudesse ser
escrito apenas pra obter lucro. Um dos paradoxos da literatura como
atividade profissional é que livros escritos apenas por dinheiro e/ou sucesso
quase nunca vão ser bons o suficiente pra garantir uma das duas coisas. A
verdade é que a narrativa mais ampla que abrange este Prefácio tem
significativo valor social e artístico. Isso pode soar metido, mas fique
tranquilo, eu não poderia investir e não teria investido três anos de trabalho
puxado (fora os quinze meses de futricação jurídica e editorial) nesse O rei
pálido se não estivesse convicto dessa verdade. Dê, p. ex., uma olhada no
que se segue, que foi transcrito verbatim dos comentários feitos pelo sr.
DeWitt Glendenning Jr., Diretor do Centro Regional de Análise Meio-Oeste
durante a maior parte da minha estada por lá.

Se você sabe a posição de uma pessoa em relação aos impostos, você pode determinar toda a
filosofia [dela]. O código tributário, depois que você conhece ele bem, incorpora toda a essência
da vida [humana]: ganância, política, poder, bondade, caridade.
A essas qualidades que o sr. Glendenning atribuía ao código eu
respeitosamente acrescentaria mais uma: tédio. Opacidade. Hostilidade ao
usuário.
Isso tudo pode ser dito de outra maneira. Pode soar meio seco e até
obsessivo, mas é porque estou reduzindo tudo ao esqueleto abstrato:
1985 foi um ano crítico para a tributação americana e para a aplicação do
código tributário dos EUA pelo seu Internal Revenue Service. Em poucas
palavras, aquele ano viu não apenas mudanças fundamentais no escopo
operacional do Serviço, mas também o clímax de uma complexa batalha
intra-Serviço entre defensores e oponentes de um sistema tributário cada
vez mais automatizado, computadorizado. Por intricadas razões
administrativas, o Centro Regional de Análise Meio-Oeste tornou-se um
dos locais em que a fase crucial dessa batalha se desenrolou.
Mas isso é só parte da história. Conforme alusão em Nota lá bem supra,
subjacente a essa batalha operacional entre aplicação humana versus digital
do código tributário estava um conflito mais profundo a respeito das
próprias missão e raison d’être do Serviço, um conflito cujas consequências
se estenderam dos corredores do poder lá no Tesouro e na Besta até o
escritório distrital mais fuleiro e afastado. Nos níveis mais altos, a luta aqui
era entre servidores tradicionais ou “conservadores”,23 que viam os
impostos e sua administração como uma arena de justiça social e virtude
cívica, de um lado, e os administradores mais progressivos, “pragmáticos”,
que valorizavam o modelo de mercado, a eficiência e um retorno máximo
do investimento feito no orçamento anual do Serviço. Reduzida à sua
essência, a questão era se, e em que medida, o IRS deveria ser concebido
como uma entidade com fins lucrativos.
Talvez isso é tudo o que eu devia dizer aqui em termos de síntese. Se
você souber pesquisar e decodificar os arquivos governamentais, vai
encontrar pilhas de documentos históricos e teóricos sobre praticamente
cada faceta do debate. Está tudo nos registros públicos.
Mas eis o problema. Tanto naquela época como agora, muito poucos
americanos comuns sabem alguma coisa a respeito disso tudo. Também não
sabem muita coisa das profundas mudanças que o Serviço sofreu na metade
dos anos 80, mudanças que hoje afetam diretamente a forma de determinar
e fiscalizar as obrigações fiscais dos cidadãos. E o motivo dessa ignorância
pública não é o sigilo. Apesar da bem documentada paranoia e da aversão
do IRS por publicidade,24 o sigilo, no caso, não teve nada a ver com isso. O
verdadeiro motivo de os cidadãos americanos não estarem conscientes
desses conflitos, dessas mudanças e do que elas acarretam é que o tema
política tributária e sua administração é muito chato. Gigantesca e
espetacularmente chato.
É impossível exagerar a importância dessa característica. Considere, do
ponto de vista do Serviço, as vantagens do chato, do arcano, do
estupefacientemente complexo. O IRS foi uma das primeiras agências
governamentais a aprender que tais qualidades ajudam a isolá-las dos
protestos públicos e da oposição política, e que a aridez mais abstrusa é na
verdade um escudo muito mais eficiente que o sigilo. A grande
desvantagem do sigilo é que se trata de algo interessante. As pessoas se
sentem atraídas por segredos; elas não conseguem evitar. Não esqueça que
o período de que estamos falando foi só uma década depois de Watergate.
Tivesse o Serviço tentado esconder ou camuflar seus conflitos e convulsões,
algum ou alguns jornalistas dedicados teriam feito revelações que
provocariam muita atenção e interesse e uma balbúrdia escandalosa. Mas
isso nem de longe foi o que aconteceu. O que aconteceu foi que boa parte
do debate político de alto nível se desenrolou por dois anos diante dos olhos
do público, p. ex., em audiências abertas do Comitê Conjunto de
Tributação, do Subcomitê de Procedimentos e Estatutos do Tesouro no
Senado, e do Conselho de Comissários Assistentes e Auxiliares do IRS.

Essas audiências eram uns amontoados de sujeitos anaeróbicos com ternos


foscos que falavam um burocratês desprovido de verbos — termos como
“modelo de utilização estratégica” e “vetor de redistribuição” em vez de
“plano” e “imposto” — e levavam dias só pra chegar a algum consenso
sobre a ordem dos itens em pauta. Até na área econômica da imprensa mal
houve cobertura; você imagina por quê? Se não, considere que praticamente
todas as transcrições, registros, estudos, documentos oficiais, emendas ao
código, regras tributárias e memorandos internos estão disponíveis ao
público desde a data de sua emissão. Nem é necessário recorrer à Lei de
Acesso à Informação. Mas nem um único jornalista parece ter jamais
verificado tudo isso, e por um bom motivo: aquilo ali é rocha sólida. Os
olhos giram e ficam branquinhos lá pelo terceiro ou quarto §. Você
simplesmente não faz ideia.25
Fato: as agonias do parto do Novo IRS levaram a uma das mais grandiosas
e terríveis descobertas no território das RP da democracia moderna, que diz
que se questões delicadas da condução do governo puderem ser
transformadas em coisas suficientemente chatas e arcanas, não há
necessidade de que os funcionários públicos as ocultem ou disfarcem,
porque ninguém que não esteja diretamente envolvido vai prestar atenção a
ponto de causar problemas. Ninguém vai prestar atenção porque ninguém
vai se interessar, em razão, mais ou menos a priori, da monumental chatice
dessas questões. Se devemos lamentar essa descoberta de RP por seus efeitos
corrosivos para o ideal democrático ou celebrá-la pela melhoria que causou
na eficiência geral do governo depende, ao que parece, do lado em que
estamos no debate mais profundo sobre ideais versus eficácia mencionado
na p. 97 , o que resulta em mais uma espiral convoluta que eu não vou testar
a sua paciência tentando retraçar ou esmiuçar.
Para mim, pelo menos quando faço uma retrospectiva,26 a questão
realmente interessante é por que a chatice se mostra um obstáculo tão
grande à atenção. Por que fugimos do que é chato? Talvez porque a chatice
é intrinsecamente dolorosa; talvez venham daí expressões como “chato de
doer” ou “chato de morrer”. Mas pode haver mais por trás disso. Talvez a
chatice esteja associada à dor psíquica porque algo que é árido ou obscuro
não proporciona estímulo suficiente para distrair as pessoas de outro tipo
mais profundo de dor que está sempre ali, ainda que de maneira ambiente,
de fundo, e na qual a maioria de nós27 investe quase a vida toda e quase
toda a nossa energia tentando não sentir, ou pelo menos não sentir
diretamente ou com a nossa atenção plena. A verdade é que a coisa é bem
tortuosa e difícil de abordar de forma abstrata… mas com certeza algo há de
estar por trás não apenas do Muzak em lugares chatos e tediosos de tempos
passados mas agora por trás também da presença efetiva de televisores em
salas de espera, caixas de supermercado, portões de embarque de
aeroportos, bancos traseiros de SUVs. Walkmen, iPods, Blackberries,
celulares que ficam presos na nossa cabeça. Esse pavor do silêncio sem
nada de divertido pra gente fazer. Eu não consigo imaginar que alguém
acredite mesmo que a dita “sociedade da informação” dos dias de hoje seja
somente uma questão de informação. Bem lá no fundo todo mundo sabe28
que se trata de outra coisa.
O que é relevante aqui em termos de livros de memórias é que eu
aprendi, no meu tempo de Serviço, alguma coisa sobre chatice, informação
e complexidade irrelevante. Sobre lidar com o tédio como quem vence um
terreno cheio de obstáculos, planícies, florestas e desertos sem fim. Aprendi
a respeito disso tudo de maneira intensiva, afetiva, no meu ano
interrompido. E agora, daquele tempo em diante, percebi no trabalho e nas
horas de recreação com os amigos, e até na intimidade da vida em família,
que as pessoas reais não falam muito do que é chato. Das partes da vida que
são e devem ser chatas. Por que esse silêncio? Talvez porque o tema é, em
si e por si próprio, chato… só que aí estamos de novo bem lá onde
começamos, o que é tedioso e irritante. Mas pode, é minha opinião, haver
mais por trás disso… tipo assim muito mais, bem aqui na nossa cara,
escondido por seu próprio tamanho.
§ 10

Malgrado a famosa caracterização feita pelo Meritíssimo H. Harold


Mealer e incluída no parecer majoritário do Quarto Tribunal Distrital de
Apelação sobre o caso Atkinson et al. vs. a União, de uma burocracia
governamental como “o único parasita conhecido que é maior que o
organismo de que subsiste”, a verdade é que uma burocracia como essa é
muito mais um mundo paralelo, tanto conectado ao nosso quanto
independente dele, um mundo que funciona com uma física própria e seus
próprios imperativos causais. Pode-se conceber um grande e intricadamente
ramificado sistema de braços, roldanas, engrenagens e alavancas que irradia
de um operador central de maneira que minúsculos movimentos do dedo do
operador sejam transmitidos por esse sistema para se transformarem nas
grandes mudanças cinéticas dos braços da periferia. É nessa periferia que o
mundo da burocracia age sobre o nosso.
A parte crucial da analogia é que o operador do complexo sistema não é
ele próprio isento de uma causa original. A burocracia não é um sistema
fechado; é isso que faz dela um mundo e não uma coisa.
§ 11

Do Memorando Interno 4123-78(b) do Escritório de Assistência aos


Funcionários e Supervisão de Pessoal do Comissário Assistente da Renda
Interna para Recursos Humanos, Gerenciamento e Apoio

Conclusão da Pesquisa/Estudo 1-76—11-77 do IRSEAFSPCARIRHGA:


síndromes/sintomas autorizados pela AMA/DSM(II) e associados a postos de
Análise que excedam o teto de 36 meses (prazo médio de lotação nos
dados: 41,4 meses), em ordem inversa de incidência (segundo requisições
médicas/AFSP segundo o IRSM §743/12.2(f-r)):

Paraplegia crônica
Paraplegia temporária
Paralisia agitans temporária
Estados de fuga paracatatônica
Prurido
Edema intracraniano
Discinesia espasmódica
Paramnésia
Parese
Ansiedade fóbica (numérica)
Lordose
Neuralgia renal
Tinnitus
Alucinações periféricas
Torcicolo
Sinal de Cantor (destro)
Lumbago
Lordose diedral
Estados de fuga dissociativa
Síndrome de Kern-Børglundt (radial)
Hipomania
Ciática
Torcicolo espasmódico
Baixo limiar de susto
Síndrome de Krendler
Hemorroidas
Estados de fuga ruminativa
Colite ulcerativa
Hipertensão
Hipotensão
Sinal de Cantor (sinistro)
Diplopia
Hemeralopia
Cefaleia vascular
Ciclotimia
Visão borrada
Tremores finos
Tiques faciais/digitais
Ansiedade localizada
Ansiedade generalizada
Déficits cinéticos
Sangramento inexplicado
§ 12

Stecyk começou pelo fim do quarteirão, subiu a primeira calçadinha de


pedra com a pasta na mão e tocou a campainha. “Bom dia”, disse à senhora
de idade que atendeu a porta com o que era ou um roupão ou um vestido
muito informal de ficar em casa (eram 7h20, então um roupão de banho era
não só provável como totalmente adequado) cuja gola ela segurava firme
com uma mão para manter fechada, e que olhava pela fresta aberta na porta
para diferentes pontos acima dos ombros de Stecyk como se tivesse certeza
de que havia mais alguém atrás dele. Stecyk disse: “O meu nome é Leonard
Stecyk, as pessoas me chamam de Leonard mas Len também está mais do
que bom se for o caso, e recentemente tive a oportunidade de me mudar e
me estabelecer no 6F do conjunto Angler’s Cove logo ali na outra rua,
tenho certeza de que a senhora já viu o prédio seja saindo ou voltando pra
casa, fica ali bem na outra rua, no 121, e eu queria dizer Oi e me apresentar
e dizer que estou satisfeito de fazer parte da vizinhança aqui e oferecer à
senhora como demonstração de saudação e agradecimento essa cópia
gratuita da Lista Nacional de Códigos Postais de 1979 dos Correios dos
Estados Unidos da América, que traz os CEPs de cada comunidade e zona
postal de cada estado dos Estados Unidos em ordem alfabética” —
ajeitando a pasta embaixo do braço para abrir a Lista e segurá-la aberta de
modo que a mulher pudesse ver — algo parecia errado com um dos olhos
da mulher, como se ela estivesse tendo dificuldade com uma lente de
contato ou talvez houvesse algum objeto estranho sob a pálpebra superior,
coisa que podia ser bem incômoda — “e que ainda traz aqui no verso da
última página e na terceira capa, a quarta é a continuação, os endereços e
números com discagem gratuita de mais de quarenta e cinco agências e
serviços governamentais dos quais a senhora pode receber material
informativo gratuito, com algumas coisas que são quase ridiculamente
importantes, veja só que coloquei uns asteriscozinhos do lado destes, que
sei por experiência que são úteis e uma pechincha incrível, e que para dizer
a verdade afinal de contas se a gente for falar às claras são pagos com o
dinheiro dos seus impostos, então por que não tirar alguma vantagem desses
tributos se é que a senhora me entende, se bem que sem dúvida que a
escolha é toda sua” — a senhora também estava virando de leve a cabeça
como fazem as pessoas cuja audição não é mais exatamente o que um dia
foi, e ao perceber isso Stecyk largou a pasta para marcar com a caneta dois
asteriscos extras perto de números que naquele caso podiam ser
especialmente úteis. Depois fez um gesto largo para estender a lista e deixá-
la ali pairando no ar bem na frente da porta enquanto a senhora já de cara
amarrada parecia decidir se soltava a corrente da porta para aceitar aquilo.
“De repente eu só largo ela aqui encostadinha na caixa de leite” —
apontando para a caixa de leite — “e a senhora pode examinar à vontade
quando bem lhe aprouver em outro momento do dia ou na verdade quando a
senhora preferir mesmo”, Stecyk disse. Ele gostava de fazer um movimento
ou uma firula como quem toca a aba do chapéu mesmo que sua mão nunca
tocasse o chapéu; ele achava aquilo tanto cortês quanto divertido.
“Tchauzinho então”, disse. Voltou pela calçadinha, pulando todas as
emendas das pedras e ouvindo a porta atrás de si fechar apenas quando
chegou à rua e dobrou direto à direita e deu dezoito passos até a próxima
calçadinha e direto à direita rumo à porta, que tinha uma porta de segurança
de ferro forjado instalada à sua frente e na qual não houve resposta depois
de três toques de campainha e de uma batidinha tá-tarará-tá… Ele deixou o
cartão com o seu novo endereço, o teor geral de sua saudação e de seu
oferecimento e outra lista de códigos postais de 1979 (a lista de 1980 só
sairia em agosto; ele já tinha feito o pedido) e seguiu calçadinha abaixo,
num passo animado, um sorriso tão grande que até parecia doer.
§ 13

Foi no colegial da escola pública que esse menino aprendeu o terrível


poder da atenção e daquilo em que você presta atenção. Aprendeu de um
jeito cujo ridículo era parte do que o tornava tão terrível. E como era
terrível.
Aos dezesseis anos e meio, ele começou a ter humilhantes crises públicas
de sudorese.
Quando criança, ele sempre foi de suar muito. Suava bastante quando
praticava esportes ou quando estava com calor, mas isso não lhe causava
grande incômodo. Ele só se enxugava com maior frequência. Não lembrava
de alguém jamais ter falado disso. Além do mais, aparentemente não
cheirava mal; não é que fosse fedido. O suor era só uma coisa diferente
nele. Alguns meninos eram gordos, alguns baixos demais, ou altos ou com
dentes tortos, ou gagos, ou tinham cheiro de mofo por mais que trocassem
de roupa — ele apenas calhava de ser alguém que suava pesado,
especialmente com a umidade do verão, quando só de andar de bicicleta por
Beloit com seu macacão de brim ele suava feito louco. Isso quase nunca
chamou sua atenção, até onde ele se lembrava.
No seu décimo sétimo ano, no entanto, ele começou a se incomodar e a
prestar atenção nessa coisa da sudorese. Certamente tinha relação com a
puberdade, com a fase em que você de repente fica mais preocupado com
como as outras pessoas te veem. Com a possibilidade de haver alguma coisa
visivelmente medonha ou nojenta em você. Poucas semanas depois do
começo das aulas, ele foi percebendo cada vez mais e de um jeito cada vez
mais diferente que parecia suar mais que os outros meninos. Os primeiros
dois meses de aula eram sempre quentes, e muitas salas de aula do velho
prédio da escola nem tinham ventiladores. Sem se esforçar e sem nem
querer, ele começou a imaginar a impressão que o seu suor causava na sala:
o rosto brilhando com uma mistura de sebo e suor, a camiseta empapada na
gola e nas axilas, o cabelo separado em bananinhas medonhas e molhadas
por causa do suor que escorria da cabeça. O pior era quando ele estava em
alguma situação em que achava que as meninas iam ter chance de ver. As
carteiras das salas de aula eram todas grudadas umas nas outras. Até uma
menina bonita ou popular que entrasse na sua linha de visão fazia a
temperatura interna dele subir — ele sentia aquilo acontecer
espontaneamente, contra a sua vontade — e a sudorese pesada começar.1
Só que de início, à medida que se instalava o outono daquele seu décimo
sétimo ano de vida e o tempo ia se tornando mais fresco e seco e as folhas
iam ficando amarelas e caíam e podiam ser recolhidas em troca de uns
trocados, ele teve razões para sentir que o problema do suor estava
diminuindo, que o problema na verdade era o verão, que sem o calor
abafado do verão não haveria muitas ocasiões para o problema. (Ele
pensava nessa dificuldade da forma mais geral e abstrata possível. Tentava
nunca pensar na palavra de fato, suor. A ideia, afinal, era tentar atingir o
mínimo possível de autoconsciência daquilo.) As manhãs agora eram frias,
e as salas da escola não ficavam mais quentes, a não ser perto dos
aquecedores barulhentos lá no fundo. Sem se permitir ter plena consciência
disso, ele tinha começado a se apressar um pouco nos intervalos para chegar
cedo à aula seguinte e não ficar limitado a uma mesa perto do aquecedor,
que era quente o bastante para disparar o suor. Mas isso envolvia um
controle delicado, porque se corresse demais pelos corredores entre as aulas
esse esforço também poderia gerar um leve suor, o que aumentava sua
preocupação e ajudava a sudorese a ficar mais severa caso ele achasse que
as pessoas podiam estar percebendo. Alguns outros exemplos de controle e
preocupações como esses existiam, e ele tentava evitar ter consciência da
maioria deles tanto quanto possível sem ter total noção do porquê dessa
atitude.2
A essa altura, havia graus e gradações de sudorese pública, de um leve
verniz aos extremos de um suor humilhante, incontrolável e totalmente
visível e medonho. E o pior era que um grau podia levar a outro se ele se
preocupasse demais, se ficasse com medo demais que um suorzinho leve
piorasse e se fizesse força demais para evitá-lo ou controlá-lo. O medo do
suor podia fazer suar. Ele não começou a sofrer de verdade até entender
esse fato, uma compreensão à qual de início chegou lentamente e depois
súbita e terrivelmente.
O dia que ele classificava como o pior de sua vida, fácil, até ali, veio
depois de uma semana atipicamente fria de começo de novembro em que o
problema tinha começado a parecer tão contornável e controlado que ele
achou que até podia estar começando a quase esquecer aquilo. Com o
macacão e uma camisa de veludo cor de ferrugem, ele sentou numa carteira
longe do aquecedor no meio de uma das fileiras do meio na aula de culturas
do mundo e estava ouvindo e anotando coisas sobre sabe lá que módulo do
livro fosse o tema da aula, quando um pensamento horrível surgiu de dentro
dele como do nada: E se de repente eu começar a suar? E naquele dia esse
pensamento, que se apresentou acima de tudo como um medo súbito e
apavorante que passou por ele como uma maré fervente, fez com que ele
começasse na mesma hora a suar pesada e incontrolavelmente, e o
pensamento secundário de que devia parecer ainda mais aterrorizante ele
estar suando se não estava nem quente ali para os outros foi piorando tudo
enquanto ele ficava bem quieto ali de cabeça baixa e com o rosto logo se
cobrindo de palpáveis riachos de suor, sem nem se mover, dividido entre o
desejo de enxugar o rosto antes que começasse a pingar e que alguém visse
pingando e o medo de que qualquer movimento de enxugar fosse chamar a
atenção dos outros e fazer com que os que estavam nas carteiras ao lado
vissem o que estava acontecendo, que ele estava suando feito louco sem
motivo. Foi de longe a pior sensação que ele teve na vida, e o ataque durou
quase quarenta minutos, e ele passou o resto do dia meio que num transe
causado pelo choque e pela descarga de adrenalina, e aquele dia foi o
começo de verdade da síndrome em que ele compreendia que quanto pior
ficava o seu medo de começar a suar terrivelmente em público, maiores as
chances de ele passar de novo por algo como o que tinha acontecido na aula
de culturas do mundo, quem sabe todo dia, quem sabe mais de uma vez por
dia — e essa percepção lhe causava um pânico, uma frustração e um
sofrimento interno maiores do que ele já tinha sonhado ser possível alguém
viver, e a estupidez e a esquisitice do problema só tornavam tudo pior.
A partir daquele dia na aula de culturas do mundo, o horror que ele tinha
de aquilo acontecer de novo, e suas tentativas de evitar, contornar ou
controlar o medo passaram a dar o tom a praticamente todos os momentos
de sua vida. O medo e a obsessão só ocorriam em sala de aula ou no almoço
na cantina — não na aula de educação física no último horário, já que suar
na educação física não ia ser considerado assim tão estranho e dessa forma
não inspirava o tipo especial de medo que o deixava predisposto a sofrer um
ataque daqueles. Ou acontecia também em qualquer lugar lotado de gente
como reuniões de escoteiros ou a ceia de Natal na sala de jantar abafada e
superaquecida da casa dos avós dele em Rockton, onde ele literalmente
sentia os pontinhos extras de calor das velas da mesa e o calor corporal de
todos os parentes amontoados em volta da mesa, ele de cabeça baixa
tentando dar a impressão de que estava observando o desenho dos pratos de
porcelana enquanto o calor do medo do calor se espalhava pelo seu corpo
como adrenalina ou uísque, aquela onda física de calor interno que ele fazia
força para não temer. Não acontecia quando ele estava sozinho, no quarto
em casa, lendo — no quarto dele de porta fechada aquilo normalmente nem
lhe passava pela cabeça —, ou na biblioteca numa daquelas mesinhas
fechadas do lado que parecem um cubo aberto, onde ninguém podia vê-lo
ou onde seria fácil ele simplesmente levantar quando quisesse e ir embora.3
Só acontecia em público com gente em volta dele e em salas abarrotadas de
pessoas ou em volta de uma mesa bem iluminada onde você tinha que usar
a blusa vermelha nova de Natal e ficar com os ombros e os cotovelos quase
encostando mesmo nos primos amontoados dos dois lados e com todo
mundo tentando falar ao mesmo tempo por cima da comida fumegante e
todo mundo se olhando o que posibilitava tudo que era chance de que as
pessoas vissem até as primeiras bolhinhas brilhantes de suor na testa dele e
na parte de cima do rosto que aí, se o medo de perder o controle crescesse
demais, iam se transformar em gotas gordas e reluzentes que logo
começariam a escorrer visivelmente, e era impossível enxugar o rosto com
um guardanapo porque ele tinha medo que a imagem esquisita dele
enxugando o rosto no inverno chamasse a atenção de todos os parentes para
o que estava ocorrendo, que era o que ele teria vendido a própria alma para
não acontecer. Basicamente podia acontecer em qualquer lugar de onde
fosse difícil sair sem chamar a atenção. Levantar a mão na aula e pedir para
ir ao banheiro enquanto cabeças se viravam para olhar — só de pensar nisso
um pânico absoluto o invadia.
Ele não entendia por que tinha tanto medo que as pessoas o vissem
suando ou que pensassem que aquilo era esquisito ou nojento. E daí? Ele se
dizia isso sem parar; sabia que era verdade. Também repetia — muitas
vezes num dos cubículos do banheiro dos meninos na escola entre as aulas
depois de um ataque mediano ou severo, sentado na privada com a calça
erguida e tentando usar o papel higiênico do cubículo para se secar sem que
o papel higiênico se desintegrasse em bilotos e pelotas na sua testa,
espremendo porções grossas de papel higiênico na frente do cabelo para ver
se secava — o discurso de Franklin Roosevelt na aula de história americana
II do segundo ano: A única coisa que devemos temer é o próprio medo.

Ficava se repetindo isso mentalmente sem parar. Franklin Roosevelt tinha


razão, mas não adiantava nada — saber que o medo era o problema não
passava de um fato; não fazia o medo desaparecer. Na verdade, ele
começou a pensar que pensar tanto assim naquele trecho do discurso só o
deixava com mais medo ainda do próprio medo. Que o que ele realmente
devia temer era o medo do medo, como um infinito salão de espelhos de
parque de diversões, todos ridículos e estranhos. Começou às vezes a se
flagrar falando sozinho sobre aquilo do suor e do medo num tipo acelerado
de sussurro tênue que ia soltando sem ter consciência, e agora começou a
considerar seriamente a possibilidade de estar ficando louco. Quase toda a
loucura que ele tinha visto na TV envolvia gente rindo de um jeito aloprado,
o que agora lhe parecia totalmente bizarro, tipo uma piada que não só não
era engraçada como não fazia sentido. Imaginar a possibilidade de rir dos
ataques ou do medo era como se imaginar indo até alguém tentando
explicar o que estava acontecendo, tipo ao seu escoteiro-chefe ou ao
psicólogo da escola — era inimaginável; não tinha como.
O colegial virou uma tortura diária, apesar de as notas dele melhorarem
ainda mais graças à quantidade adicional de horas de estudo e de leitura que
se impôs porque era só quando estava sozinho e totalmente desligado e
concentrado em outra coisa que ele ficava legal. Também começou a fazer
caça-palavras e jogos com números, que propiciavam essa concentração. Na
sala de aula ou na cantina, era uma preocupação constante não pensar
naquilo e não deixar o medo atingir o ponto em que sua temperatura subia e
sua atenção se condensava até ele só sentir aquele calor descontrolado e o
suor começando a pipocar nas mãos e nas costas, já que, assim que sentia o
suor pipocando e gotejando, o medo explodia e ele só conseguia pensar em
jeitos de sair dali e ir para o banheiro sem chamar a atenção. Só acontecia
de vez em quando, mas ele estava sempre em pânico, apesar até de saber
muito bem que o pânico constante e a preocupação o deixavam predisposto
a um ataque. Ele pensava naquilo em termos de ataques, apesar de não
provirem de nada exterior e sim de alguma parte interna dele que sofria ou
que o traía, como num ataque cardíaco. Da mesma forma, predisposto
tornou-se seu código particular para o estado de medo e pânico iminente
que podia levá-lo a sofrer um ataque em público praticamente a qualquer
hora.
O melhor jeito que ele encontrou de lidar com o fato de estar sempre
predisposto e obcecado com o medo de tudo aquilo na escola foi
desenvolver vários truques e táticas sobre o que fazer se um ataque de suor
em público começasse e ameaçasse ficar totalmente sem controle. Saber
onde eram todas as saídas de determinada sala assim que ele entrava não era
um truque, passou a ser algo que ele agora fazia de modo automático, e
também saber direitinho a que distância ficava a saída mais próxima e se ela
podia ser alcançada sem chamar muita atenção. A cantina da escola era um
exemplo de lugar de onde era fácil fugir sem ninguém perceber de verdade.
Sair da sala de aula durante um ataque no meio da aula, no entanto, nem
pensar. Se ele simplesmente se levantasse e saísse correndo da sala, como
sempre morria de vontade de fazer durante um ataque, ia ser problema
disciplinar que não acabava mais, e todo mundo ia querer uma explicação,
inclusive seus pais — fora que quando ele voltasse para a sala no dia
seguinte todo mundo ia saber que ele tinha saído correndo e ia querer saber
o que foi que tinha dado nele, e o resultado final seria um monte de atenção
voltada para ele na sala, o medo de que todo mundo o estivesse observando
e olhando para ele, o que ia deixá-lo predisposto de novo. Ou se um dia ele
chegasse a levantar a mão e pedisse autorização para sair da sala, aquilo ia
chamar a atenção de todos os estudantes entediados da fileira dele que iam
querer ver quem tinha falado, a cabeça de todo mundo ia virar para olhar e
lá estaria ele suado, pingando e com uma cara bizarra. Sua única esperança
então seria estar com cara de doente, o pessoal ia achar que ele estava mal
ou a ponto de vomitar. Esse era um dos truques — tossir ou fungar ou
apalpar com ar dolorido os gânglios se ficasse com medo de um ataque,
para, caso aquilo ficasse sem controle, ele ter a esperança de que as pessoas
só fossem pensar que ele estava doente e que não devia ter ido à escola
naquele dia. Que ele não era esquisito, que só estava doente. Era a mesma
coisa quando fingia que não estava passando bem na hora do almoço na
cantina — às vezes ele não comia e jogava fora a bandeja toda e aí saía e ia
comer num cubículo do banheiro um sanduíche que tinha trazido de casa
num saquinho. Assim o pessoal tinha mais chance de achar que ele estava
doente.
Uma das outras táticas era sentar numa fileira bem lá no fundo da sala,
assim a maioria dos alunos ficava na sua frente e ele não precisava se
preocupar que eles o vissem se tivesse um ataque, o que só funcionava em
aulas sem lugares marcados,4 mas que também podia sair pela culatra
naquela pior situação possível que ele fazia força para não imaginar. E
também evitar os aquecedores, claro, e carteiras entre as meninas, ou tentar
conseguir uma carteira bem na ponta de uma fileira para em caso de
emergência poder desviar a cara do resto da fileira, mas de uma maneira
sutil que não parecesse esquisita — ele simplesmente passaria as pernas
para o corredor entre as carteiras e cruzaria os tornozelos para se inclinar
para o outro lado. Ele parou de ir de bicicleta à escola porque o exercício de
pedalar podia deixá-lo quente e predisposto à ansiedade antes até de
começar a primeira aula. Outro truque, no início do terceiro bimestre, era ir
a pé à escola e sem casaco para passar frio e meio que dar uma congelada
no sistema nervoso, o que ele só conseguia fazer quando era o último a sair
de casa, porque sua mãe teria um treco se ele tentasse sair sem casaco.
Também dava para usar várias camadas de roupa que ele podia ir tirando se
sentisse aquilo chegando na aula, se bem que tirar as camadas ia parecer
meio esquisito se ele também estivesse tossindo e palpando os gânglios —
pelo que ele já tinha visto, pessoas doentes normalmente não ficavam
tirando blusas. Ele tinha noção de que estava emagrecendo mas não sabia
quanto. Também começou a cultivar o gesto de afastar o cabelo da testa,
que treinou no espelho do banheiro para deixar bem com cara de um hábito
inconsciente mas que na verdade tinha sido pensado para remover o suor da
testa e fazê-lo sumir no cabelo em caso de ataque — mas aqui também se
tratava de um controle delicado, porque depois de certo ponto o gesto não
ajudava mais, já que se a parte da frente do cabelo ficasse úmida a ponto de
formar aqueles gomos e aquelas mechinhas molhadas, aí o fato de ele estar
suando ficava ainda mais evidente se as pessoas acabassem olhando para
ele. E a pior situação possível que ele temia mais do que tudo era estar no
fundo da sala e começar a ter um ataque tão terrível que o professor, lá na
frente da sala, percebesse que ele estava empapado e pingando de um suor
visível e interrompesse a aula para perguntar se ele estava legal, fazendo
todo mundo se virar para trás e olhar para ele. Nesses pesadelos havia
literalmente um holofote apontado para ele quando todos se viravam para
ver quem estava causando tanta preocupação e/ou nojo no professor.5
Em fevereiro sua mãe fez um comentário ligeiro e semijocoso sobre a
vida amorosa dele e se estava gostando de alguma menina em especial
naquele ano, e ele quase teve que sair da sala, quase caiu no choro. Agora a
ideia de um dia vir a convidar uma menina para sair, de levar uma menina a
algum lugar e ficar com ela ali olhando para ele bem de pertinho, esperando
que ele estivesse pensando nela em vez de no quanto estava se sentindo
predisposto a suar — isso o enchia de pavor e ao mesmo tempo o deixava
triste. Tinha inteligência suficiente para saber que havia algo de triste
naquilo. Mesmo ao abandonar o escotismo sem reclamar quando estava a
quatro insígnias de ganhar o lis de ouro e ao recusar o convite de uma
menina tímida e meio socialmente anônima da turma de álgebra e
trigonometria avançada para a festa da Sadie Hawkins, e ao fingir estar
doente na Páscoa para poder ficar em casa sozinho adiantando a leitura de
Dorian Gray e tentando provocar um ataque na frente do espelho do
banheiro dos pais em vez de ir com eles para o jantar de Páscoa na casa dos
avós, ele se sentia meio triste, além de aliviado, fora o sentimento de culpa
por causa das diversas mentiras que havia nas desculpas que dava, e
também sozinho e meio trágico, como alguém parado lá fora na chuva e
olhando para dentro de casa, e também medonho e repulsivo, como se o seu
eu secreto interior fosse medonho e os ataques não passassem de um
sintoma, do seu eu verdadeiro literalmente tentando vazar — se bem que
nada disso era visível para ele no espelho do banheiro, cujo reflexo parecia
ignorar completamente6 tudo o que ele sentia enquanto o examinava.
§ 14

É um analista do IRS numa cadeira numa sala. Não há muito mais para
ver. Encarando o tripé da câmera, falando com a câmera, um analista depois
do outro. É uma antiga sala de armazenamento de cartões que dá para o
corredor radial do núcleo de processamento de dados do Centro Regional de
Análise, então o ar-condicionado funciona e nada se vê do brilho do verão
no rosto das pessoas. De dois em dois, eles são trazidos das salas de espera;
o analista da vez fica atrás de uma divisória de vinil, para receber
instruções. As instruções consistem basicamente em apenas assistir à
abertura. Dizem a eles que a abertura do documentário veio da Besta
através do QG do Comissário Regional lá em Joliet; a caixa da fita tem o
brasão do Serviço e uma advertência legal. O putativo título provisório é O
seu IRS hoje. Possivelmente para a televisão pública. Para alguns eles
dizem que é para as escolas, para as aulas de educação moral e cívica. Isso
na introdução. As entrevistas são descritas como coisa de RP, com um
objetivo sério. Para humanizar, desmistificar o Serviço, ajudar os cidadãos a
entender como o trabalho deles é difícil e importante. Quanto está em jogo
ali. Que eles não são hostis nem máquinas. O sujeito que faz a apresentação
lê uma série de cartões impressos; há um espelho perto do canto da sala
para o sujeito da vez ajeitar a gravata ou alisar a saia. Eles devem assinar
uma autorização, especialmente elaborada — cada analista lê aquilo com
todo o cuidado, por reflexo; eles ainda estão no escritório. Alguns estão
animadões. Empolgados. É alguma coisa sobre a perspectiva de receberem
atenção, o objetivo real do projeto. Conceitualmente, ele é cria do PD Tate,
apesar de Stecyk ter feito o trabalho todo.
Há também o monitorzinho de vídeo para eles poderem ver a abertura
improvisada, cujo mal-ajambramento é reconhecido já de cara na
introdução, a necessidade de ajustes. São só cenas isoladas e tomadas que
vieram dos arquivos fotográficos e cujo tom estilizadamente carinhoso não
combina com a voz que narra. É desorientador, e ninguém sabe direito qual
é a daquela abertura; os responsáveis pela introdução sublinham que se trata
apenas de uma orientação.
“O Internal Revenue Service, o IRS, é o setor do Departamento de
Tesouro dos Estados Unidos que tem a responsabilidade de recolher no
momento adequado todos os impostos federais devidos na vigência dos
estatutos atuais. Com mais de cem mil funcionários em mais de mil
escritórios nacionais, regionais, distritais e locais, o seu IRS é a maior
agência de policiamento da nação. Mas é mais que isso. No organismo
político dos Estados Unidos da América, muitos já compararam o seu IRS ao
coração pulsante da nação, recebendo e distribuindo os recursos que
permitem que o seu governo federal opere de maneira eficaz a serviço e em
defesa de todos os americanos.” Cenas de frentes de trabalho, o Congresso
visto da galeria do Capitólio, um carteiro na varanda rindo de alguma coisa
junto com o dono da casa, um descontextualizado helicóptero com o código
de arquivamento ainda no canto direito inferior, uma funcionária da
Previdência sorrindo enquanto entrega um cheque a uma negra em cadeira
de rodas, uma frente de trabalho em que os operários erguem o capacete
numa saudação, um centro de reabilitação de veteranos de guerra &c. “O
coração, também, desses Estados Unidos enquanto equipe, com cada
tributado contribuindo para a grandeza da nossa nação.” Um dos cartões da
responsável pela introdução a instrui a se aproximar do entrevistado nesse
ponto e comentar que o texto da narração ainda não está fechado e que a
narração do produto finalizado vai ter inflexões humanas reais — é para
usar a imaginação. “O sangue vital desse coração: os homens e as mulheres
do IRS de hoje.” Agora várias tomadas do que podem até ser funcionários
reais mas estranhamente atraentes do Serviço, quase todos GS-9s e -11s de
gravata e em mangas de camisa, apertando a mão dos contribuintes,
curvados sorridentes sobre a papelada de alguém que caiu na malha fina,
com um sorriso enorme diante de um Honeywell 4C3000 que na verdade é
um chassi vazio. “Longe de serem burocratas anônimos, esses [inaudível]
homens e mulheres do IRS de hoje são cidadãos, contribuintes, pais, vizinhos
e membros de sua comunidade, todos eles responsáveis por uma tarefa
sagrada: manter o sangue vital do governo saudável e circulante.” Uma foto
de um grupo que seria uma equipe ou de Análise ou de Auditoria
organizada não por hierarquia mas por altura, todos acenando. Uma tomada
do mesmo brasão com lema que orna a fachada norte do CRA. “Como o lema
fundador da nação, E pluribus unum, o do nosso Serviço, Alicui tamen
faciendum est, diz tudo — essa tarefa difícil, complexa, tem de ser
realizada, e é o seu IRS que arregaça as mangas e cumpre esse trabalho.” É
ridiculamente ruim, daí sua intrínseca plausibilidade para os fraldinhas,
inclusive claro o lapso de não traduzir o lema para um público de
contribuintes que muitas vezes chegava até a errar a grafia do próprio nome
nas declarações, que o pessoal dos Sistemas do Centro de Serviço pega e
manda para as Análises, desperdiçando o tempo de todo mundo. Mas que
aparentemente deveriam saber latim clássico. Talvez testando na verdade
para ver se os analistas que passam pela introdução percebem esse erro —
às vezes é difícil saber o que o Tate está armando.
A cadeira não é estofada. É tudo muito espartano. A iluminação é a luz
fria do CRA; não há refletores nem rebatedores. Nada de maquiagem,
embora durante a introdução o cabelo dos analistas seja cuidadosamente
penteado, mangas dobradas em exatas três vezes sem vincos, blusas abertas
no botão superior, crachás de identificação removidos do bolso da camisa.
Nenhum diretor propriamente dito na sala; ninguém para dizer que ajam
com naturalidade ou que falem dos remendos na edição. Um técnico
cuidando da câmera no tripé, um sujeito cuidando do boom com fones de
ouvido para analisar os níveis de áudio, e o entrevistador. O teto rebaixado
de espuma de poli-isocianurato foi removido por causa da acústica.
Encanamentos expostos e chicotes de fiação de quatro cores passando sobre
os vigotes do antigo teto, fora do enquadramento. O quadro é só o analista
na cadeira de armar diante de uma tela cor de creme que tapa uma parede de
cartões holerite em caixas de papelão. A sala podia estar em qualquer lugar,
em lugar nenhum. Isso é parcialmente explicado, teorizado antes; a
introdução é orquestrada com precisão. Uma tomada fechada, eles
explicam, do torso para cima, com movimentos aleatórios sendo
desencorajados. Os analistas estão acostumados a ficar imóveis. Há uma
sala do monitor, um ex-closet, ligado a ela, com Toni Ware e um técnico
fazendo hora extra ali dentro, assistindo. É um monitor de vídeo. Eles têm
um microfone ligado ao fone intra-auricular que o
documentarista/interlocutor para de usar quando ele acaba emitindo um
feedback rascante toda vez que o leitor de cartões Fornix do outro lado da
parede roda determinada sub-rotina. O monitor é de vídeo, como a câmera,
sem nenhuma iluminação nem maquiagem. Pálidos e atordoados, com a
superfície dos rostos numa sombra esquisita — isso não é problema, se bem
que no vídeo alguns rostos ficam de um branco-acinzentado meio exangue.
Os olhos são um problema. Se o analista olha para o documentarista e não
para a câmera, pode ficar parecendo evasivo ou coagido. Não é o melhor, e
o conselho que eles recebem na introdução é olhar para a câmera como
quem olha para os olhos de um amigo de confiança ou um espelho,
depende.
Os responsáveis pela introdução, ambos GS-13s emprestados de algum
Posto em que o Tate tem uma influência não especificada, receberam
também suas introduções no escritório de Stecyk. Os dois são verossímeis,
com roupas combinadas marrons e azul-marinho, a mulher com algo ríspido
por baixo dos seus encantos que sugere uma carreira que começou lá nas
Coletas. Mas o homem é um vazio para Ware; podia ser de qualquer lugar.
Como seria de se esperar, alguns analistas são melhores que outros.
Naquilo ali. Alguns conseguem atuar, esquecem o ambiente, a
artificialidade rígida, e falam como que de coração. De modo que com esses
os técnicos de gravação podem esquecer por algum tempo o tédio terrível
daquele trabalho, o fingimento, o cansaço de ficar parados diante de
máquinas que podiam funcionar sozinhas. Os técnicos, em outras palavras,
ficam encantados com os melhores; a atenção não demanda esforço. Mas só
uns poucos são melhores… e a questão no monitor é por que, e o que isso
quer dizer, e se o que aquilo quer dizer vai ter importância, em termos de
resultados, quando aquilo tudo for dado ao Stecyk, para ele avaliar lá na
frente.

Arquivo em Fita VHS 047 804(r)


© 1984, Internal Revenue Service
Uso Autorizado
945 645 233

“É um trabalho difícil. As pessoas pensam que deve ser mole, escritório,


papelada. Coisa do governo, estabilidade, só papelada. Eles não entendem
por que é que é difícil. Eu estou aqui já faz três anos. Dá doze trimestres. As
minhas avaliações foram todas boas. Eu não vou ficar nas molezas pra
sempre, pode crer. Tem gente ali no nosso grupo com cinquenta, sessenta
anos. Eles estão fazendo as molezas tem mais de trinta anos. Trinta anos
olhando declaração, conferindo declaração, preenchendo os mesmos
memorandos sobre as mesmas declarações. Tem alguma coisa no olho
deles, de alguns. Eu não sei explicar. No prédio onde os meus avós
moravam tinha um cara que cuidava da fornalha, um zelador. Isso era lá
perto de Milwaukee. Aquecimento a carvão, e o velhote ali alimentando a
fornalha de duas em duas horas. Ele estava ali fazia séculos; era quase cego
por ter ficado olhando na boca da fornalha. Os olhos dele eram… Os caras
mais velhos são assim; os olhos deles são quase daquele jeito.”

968 223 861


“Três ou quatro anos atrás, o presidente novo, esse de agora, foi eleito com
a promessa de gastar muito com a defesa e fazer grandes cortes nos
impostos. Isso todo mundo sabe. A ideia era que o corte fiscal ia estimular o
crescimento econômico. Eu não sei direito como era que isso ia funcionar
— a maioria dessas, assim, dessas ideias maiores sobre política fiscal não
chegava direto aqui pra gente, elas meio que só ecoavam por aqui por causa
das mudanças administrativas no Serviço. Que nem você sabe que o sol
andou por causa do jeito diferente das sombras dentro de casa. Você sabe
como é.”
P.
“Assim de repente veio essa montoeira de reorganizações, às vezes uma
em cima da outra, e de trocas de lotação. Teve gente aqui que até parou de
desfazer as malas. Aqui é a lotação em que eu fiquei mais tempo agora. Eu
não tinha formação em análise. Eu vim do Centro de Serviços. A minha
lotação era a 029, o Centro de Serviço Nordeste, Utica. Nova York, mas no
norte, no terceiro trimestre de 82. O norte do estado de Nova York é lindo,
mas o Centro de Utica tinha muitos problemas. Em Utica eu estava no
processamento geral de dados; eu era mais assim um cara que via o que
estava dando errado. Antes disso eu trabalhei na subestação 0127 do Centro
de Serviços, Hanover NH — fiquei no processamento de pagamentos e
depois no processamento de restituições. Os distritos do Nordeste eram
todos em sistema octal e os formulários eram aqueles contínuos com
buraquinhos na margem que eles contratavam umas vietnamitas pra sentar
ali e ficar arrancando. Hanover tinha muito refugiado. Isso foi oito, nove
anos atrás, mas eram outros tempos. Isto aqui é uma organização bem mais
complexa.”
P.
“Eu sou solteiro, e os homens solteiros são os que o Serviço mais troca
de lotação. Toda troca de lotação é uma chateação pro departamento de RH,
mas com família é pior. Fora que você tem que oferecer incentivos pras
pessoas que têm família se mudarem, é RT. Regra do Tesouro. Mas se você é
solteiro você para de desafazer as malas.
“É difícil conhecer mulher no Serviço. Não é a coisa mais popular do
mundo. Tem uma piada; posso contar?”
P.
“Você conhece uma mulher que você acha legal, assim, numa festa. E
ela: o que é que você faz da vida? E você: eu trabalho com finanças. E ela:
que tipo? E você: meio que tipo contabilidade, é meio complicado. Ela diz:
ah, onde? E você: é pro governo. E ela: cidade, estado? E você: federal. E
ela: ah, que área? E você: Tesouro Federal. E vai assim, chegando perto.
Num dado momento ela saca o que você está tentando evitar e se manda.”

928 874 551


“O açúcar num bolo tem diversas funções. Uma, por exemplo, é absorver a
umidade da manteiga, ou margarina de repente, e liberar a umidade devagar
com o tempo, pro bolo ficar úmido. Usar menos açúcar do que a receita diz
produz o que a gente chama de bolo seco. Não faça uma coisa dessa.”

973 876 118


“Vamos dizer que você esteja pensando em termos de poder, de autoridade.
Inevitabilidade. Aí você vai ter dois tipos de pessoa no fim das contas. De
um lado tem aquela mentalidade rebelde que só acha massa, que só curte
isto de ir contra o poder e coisa e tal, de se rebelar. Aquele tipo que nada
contra a corrente que se acha poderoso porque enfrenta o sistema, o
governo e coisa e tal. Aí, o outro tipo, tem aquele outro tipo que é a
personalidade de soldado, o cara que acredita em ordem e poder, que
respeita a autoridade e fica do lado do poder e da autoridade, do lado da
ordem e de como a coisa toda tem que ser se for pro sistema funcionar
direito. Então faz de conta que você é um camarada do tipo dois. Isso é
mais do que eles imaginam, meu. O tempo dos rebeldes acabou. A gente
está nos anos oitenta. Se você é Tipo Dois, A Gente Quer Você — esse
devia ser o slogan deles. No Serviço. Olha só a corrente, cara. Entre pro
time dos que sempre recebem um salário. Não é sacanagem, não. O lado da
lei e da força da lei, o lado da maré e da gravidade e daquela lei lá que tudo
sempre fica um pouquinho mais quente até o sol resolver explodir. Porque
tem essas duas coisas inevitáveis na vida, que eles dizem por aí.
Inevitabilidade — isso é que é poder, meu. Seja agente funerário ou entre
pro Serviço, se você quer ficar do lado do poder de verdade. Use a corrente
a seu favor. Diga pra eles ouvirem bem: nade com a corrente, você vai bem
mais longe. Pode botar fé em mim nisso aí, cara.”

917 229 047


“Eu estava com essa ideia de tentar escrever uma peça. A nossa madrasta ia
sempre ao teatro; ela arrastava a gente até o centro cívico toda hora no fim
de semana pra ver as matinês. Aí eu aprendi tudo de teatro e de peças. Daí
essa peça, porque eles me pediam — a família, os caras lá do golfe — pra
eu dar uma ideia do que ia ser. Ia ser uma peça totalmente real, realista
mesmo. Ia ser impossível de encenar, isso fazia parte. Isso é pra te dar uma
ideia. A ideia é que um fraldinha, um analista moleza, está sentado ali
olhando as 1040s, os anexos, os W-2s dos apêndices, as 1099s e tal. O
cenário é muito nu e minimalista — não tem nada pra ver a não ser o tal
fraldinha, que não se mexe a não ser de vez em quando pra virar uma
página ou anotar alguma coisa no bloco. Não é uma Tingle — só uma mesa
normal, então dá pra ver o cara. Mas é só isso. Primeiro tinha um relógio
atrás dele, mas eu cortei o relógio. Ele fica ali sentando cada vez mais
tempo até a plateia ir ficando cada vez mais de saco cheio e incomodada,
até que finalmente eles começam a ir embora, primeiro um ou outro, depois
a plateia toda, cochichando como aquela peça é chata e horrorosa. Aí,
depois que a plateia toda saiu, a ação de verdade pode começar na peça. A
ideia era essa — eu disse tudinho pra minha madrasta, que ia ser uma coisa
realista. Só que eu nunca consegui decidir isso da ação, se era pra ter ação,
já que era uma peça realista. É o que eu digo pra eles. É o único jeito de
explicar.”

965 882 433


“Já fizeram vários estudos. Dois terços dos contribuintes acham que isenção
e dedução são a mesma coisa. E não sabem o que é ganho de capital. Quatro
por cento todo ano não assinam a declaração. Porra, dois terços das pessoas
não sabem quantos senadores um estado tem. Coisa de três quartos não sabe
as áreas do governo. Não é física quântica isto aqui. A verdade é que em
geral o nosso tempo é jogado fora. O sistema manda quase só merda. Você
gasta dez minutos preenchendo um 20-C de uma declaração não assinada,
aquilo volta pro CS, uma auditoria fajuta via correio solicitando assinatura,
lhufas na reta. E aí agora nas Molezas a gente é avaliado com base no
aumento de receita que venha das auditorias lá na frente. É uma piada.
Quase tudo que a gente olha aqui não é nem auditável, é só estupidez
mesmo. Desleixo. Você tinha que ver a letra das pessoas — gente comum,
gente educada. A verdade é que eles jogam o nosso tempo fora. Eles
precisam de um sistema melhor.”

981 472 509


“O Tate é uma mariposa rodando em volta das lâmpadas do poder. Passe
adiante.”

951 458 221


“É uma pergunta fascinante. As questões de fundo são interessantes, se
você sondar mesmo. Meio que assim. Um dos sustentáculos do programa da
administração que estava entrando era a crença de que as alíquotas máximas
podiam ser mais baixas, especialmente nas faixas de renda superior, sem
causar uma perda catastrófica de receita. Isso tinha sido parte explícita da
campanha. Meio que assim de plataforma mesmo. Eu não sou economista.
Conheço a teoria que diz que diminuir alíquotas daria impulso aos
investimentos e aumentaria a produção, meio que assim, e que viria uma
onda que causaria um aumento da base tributável que mais do que
compensaria o reajuste das alíquotas. Há toda uma teoria técnica por trás
disso, se bem que teve gente que disse que era só blá-blá-blá. Meio que
assim. No fim do primeiro ano, beleza, eles mudam as RTs e baixam as
alíquotas superiores. E vai desse jeito. Com coisa, digamos, de dois anos,
por outro lado, já dá pra dizer que os resultados contrariaram a teoria. A
receita caiu, e eram números sólidos que não dava pra minimizar ou
maquiar. E também, eu acho, teve um aumento bem grande de gastos com a
defesa, e o déficit do governo federal era o maior da história. Assim
corrigido em termos de inflação. Meio que assim. Você precisa entender
que tudo isso estava rolando num nível de governo muito, mas muito mais
alto que o nível com o qual a gente está lidando aqui. Mas qualquer um
podia entender que os problemas orçamentários eram uma verdadeira
situação de entre-a-cruz-e-a-caldeirinha, meio que assim, já que voltar atrás
e aumentar as alíquotas de novo era politicamente inaceitável,
ideologicamente, dava pra dizer, igual a comprometer o Exército, e cortar
ainda mais os gastos sociais ia tornar inviável a relação com o Congresso.
Meio que assim. Isso tudo dava para saber só lendo jornal, se você soubesse
o que estava procurando.”
P.
“É, mas em termos do que a gente sabia aqui, no nosso nível aqui no
Serviço. Algumas coisas não estavam no jornal. Eu sei que o executivo
tinha planos e propostas diferentes que eles estavam considerando pra lidar
com o problema. Os déficits, a caldeirinha. A minha impressão é que a
maioria deles não era convidativa. Meio que assim. Veja bem, isso tudo
ecoando lá do alto, em termos de administração. A versão que chegou aqui
pra gente no nível regional é que alguém bem lá no alto da estrutura do
Serviço, alguém próximo do que a gente aqui chama de Divina Trindade,
ressuscitou um documento originalmente escrito ou em 1969 ou em 1970
por um macroeconomista ou consultor de sistemas da equipe do antigo
Comissário Assistente de Planejamento e Pesquisa lá no Três-Meias. O
sujeito que ressuscitou esse negócio era, nessa versão, um Comissário
Delegado Assistente nos Sistemas, que naquela época tinha absorvido a
Área de Planejamento e Pesquisa como nova divisão de Sistemas numa
reorganização, os Sistemas, meio que assim, se bem que o antigo CA de
Planejamento e Pesquisa agora era CDA.”
P.
“Agora em termos de quando ressuscitaram o Memorando Spackman,
que foi no quarto trimestre de 1981, ou perto disso.”
P.
“O CDA faz parte do que a gente chama de Divina Trindade, o termo
[inaudível] pra tríade mais alta de Comissário, Comissário Auxiliar dos
Sistemas e Conselheiro Superior. Os três postos mais altos na organização
do Serviço. O escritório nacional do Serviço é conhecido como Três-Meias
por causa do endereço. Meio que assim.”
P.
“Esses tipos de propostas e documentos de alto nível pipocam o tempo
todo. O Planejamento e Pesquisa tem lá o que seriam meio que assim uns
laboratórios. Isso todo mundo sabe. Umas equipes dedicadas
exclusivamente a produzir estudos e propostas de longo prazo. Existe um
documento famoso de um grupo de P&P lá dos anos 60, meio que assim,
sobre a implementação de protocolos de tributação depois de um evento
nuclear. Chamado ‘Planejamento fiscal em tempos de caos’, o que virou
meio que uma expressão conhecida por aqui, um tipo de piada quando as
coisas ficavam loucas, um caos, meio que assim. No geral, poucos vêm a
público. Lá do meio dos anos 60. Meio que assim o seu dinheiro dos
impostos bem empregado. Esse aí foi ressuscitado nesse contexto, por outro
lado era bem menos grandioso ou explosivo. Eu não sei o nome exato. Às
vezes o pessoal diz Memorando Spackman ou Iniciativa Spackman, mas o
que eu sei é que ninguém sabe quem era o tal Spackman, meio que assim,
se ele foi o autor do documento ou um executivo do P&P que encomendou
aquilo. A coisa foi gerada, afinal, em 1969, o que é história antiga na vida
profissional do Serviço. Quase todos eles acabam arquivados, meio que
assim. Veja lá, isso aqui é uma agência compartimentalizada. A maioria dos
procedimentos e das prioridades do Três-Meias fica simplesmente fora da
nossa área. Meio que assim. As reorganizações da Iniciativa, por outro lado,
afetavam a gente diretamente, como eu tenho certeza que alguém já andou
explicando. Dizem que o documento original tinha centenas de páginas e
era muito técnico, como tendem a ser as coisas de economia. Meio que
assim. Mas num nível geral o princípio efetivo da parte ou das partes que
depois vieram à luz parece que era bem simples, e ele — [inaudível] — por
caminhos não conhecidos o documento chegou aos ouvidos de membros
dos níveis mais altos ou do Serviço ou do Departamento do Tesouro e criou
certo interesse porque, com o impasse orçamentário do executivo atual, ele
parecia descrever uma forma politicamente mais atraente de melhorar a
coisa cruz-e-caldeirinha da receita inesperadamente baixa dos impostos, dos
altos investimentos em defesa e de um piso incortável de gastos sociais. No
fundo, meio que assim, a proposta do documento dizem que eram bem
simples, e claro que o executivo atual aprova isto da simplicidade, a
princípio porque essa administração é meio que assim uma reação, uma
negação da complexa engenharia social da Grande Sociedade, que era um
tempo completamente diferente pras políticas fiscais e pra administração.
Mas essa preferência pelos argumentos simples e instintivos é coisa que
todo mundo sabe. Meio que assim. Aliás, eu não pude deixar de notar que
você fez uma cara estranha.”
P.
“Mas claro.”
P.
“Pelo que a gente entendeu, a observação de base do documento
Spackman era que aumentar a eficiência com que o Serviço aplicava a
legislação fiscal já existente podia provavelmente aumentar a receita líquida
do Tesouro Americano sem nenhuma mudança correspondente nas leis e
sem mexer nas alíquotas. Meio que assim. Ou seja, que ele chamava a
atenção pra Adimplência e a lacuna fiscal. Quer que eu defina a lacuna,
meio que assim? Alguém já definiu? Vocês estão perguntando meio que
assim as mesmas coisas pra todo mundo aqui? Será que o Serviço prefere
que eu não entre nisso?”
P.
“Acho que a coisa se explica sozinha, meio que assim. É a diferença
entre o total de imposto de renda legalmente devido ao Tesouro Americano
num determinado ano e o total de impostos recolhido de fato pelo Serviço
naquele ano. Raramente se fala disso, é em grande medida [inaudível]. Isso
agora é meio que assim a bête noire dos objetivos do Serviço. Mas na época
não. Tinha uma estimativa, no documento Spackman, de que entre seis e
sete bilhões de dólares legalmente devidos ao Tesouro em 1968 não tinham
sido pagos. As projeções econométricas do Spackman colocavam a cifra da
lacuna pra 1980 perto de vinte e sete bilhões, o que parecia, na época da
ressurreição do documento, uma coisa imensamente otimista. Sem contar
recursos e processos em andamento, a lacuna fiscal medida pra 1980 na
verdade estava acima de trinta e um bilhões e meio de dólares. O que era
impressionante é que o tamanho da lacuna fiscal não tinha sido muito
comentado nem tinha sido objeto de grande atenção. Acho que é por isso
que se fala tão pouco do assunto, da estupidez institucional da coisa toda,
meio que assim. Ou que foi por isso que o documento Spackman nunca
mereceu grandes atenções, apesar de que como eu disse os Sistemas geram
esses documentos sem parar. As organizações podem ser bem menos
inteligentes que os indivíduos que as compõem. Meio que assim. Também
tem o fato de que o Serviço só quer é ser visto pelos contribuintes como um
instrumento completamente eficiente e onisciente de recolhimento de
impostos — tem toda uma psicodinâmica complicada nisso do regime fiscal
e na disposição do cidadão de acatar a lei fiscal. Pra começo de conversa,
eficiência demais pode ser mal interpretada e parecer hostilidade, meio que
assim um excesso de agressividade, o que aumenta a hostilidade dos
contribuintes e pode até afetar negativamente a adimplência pública e a
liberdade de ação e o orçamento do Serviço, meio que assim. Ou seja, a
coisa toda é complexa, meio que assim, e a psicodinâmica é areia demais
pro meu caminhãozinho, e a minha compreensão da coisa toda é meio que
assim bem vaga e geral, apesar da gente saber que é motivo de considerável
interesse e estudo lá no Três-Meias. O relatório Spackman, a subseção
relevante, foi ressuscitado por alguma pessoa ou pessoas próximas da
Divina Trindade. Existem versões conflitantes de quem seria. Meio que
assim. Eu estou falando de um período de basicamente dois anos e meio
atrás.”
P.
“Na base, segundo o documento, a lacuna era uma questão de
adimplência. Meio que assim. Óbvio — já que a lacuna representava uma
dada porcentagem de inadimplência. Mas a subseção do memorando em
questão se referia a partes da lacuna fiscal que podiam ser lucrativamente
abordadas pelo Serviço. Reduzidas, colmatadas. Meio que assim. Ou seja,
mais receita. Uma certa porção da lacuna fiscal anual se devia a uma
economia informal em dinheiro, a mecanismos de escambo e trocas em
espécie, rendas ilícitas e certos mecanismos sofisticadíssimos de desvio
fiscal pros ricos que não podiam ser resolvidos a curto prazo. Mas a análise
do documento Spackman defendia que uma significativa parcela da lacuna
era resultado de informações erradas e retificáveis, inclusive Declarações
Individuais 1040, que ele defendia que podiam ser abordadas e corrigidas
em curto prazo. Curto prazo que, por motivos compreensíveis, parecia
especialmente interessante pra administração atual. Daí a intercessão de
procedimentos técnicos e políticos, que é como as coisas mudam em nível
nacional, e aí acabam ecoando aqui nas trincheiras, meio que assim, por
reorganizações e mudanças nos critérios de Análise de Desempenho, já que
as 1040 são prerrogativa das Análises Moleza. Explico as diferentes áreas e
tipos de análises que a gente faz aqui?”
P.
“De maneira nenhuma. Na base, o memorando Spackman dividia as
parcelas da lacuna fiscal que eram remediáveis e relativas às 1040 em três
grandes áreas, categorias, meio que assim — não preenchimento, renda
informada a menor e imposto pago a menor. Não preenchimento, na maioria
dos casos, é prerrogativa da DIC. Investigações Criminais. Pagamento a
menor passa pela Divisão de Coleta, um grupo meio que assim totalmente
diferente, tanto filosófica quanto operacionalmente, do que a gente faz aqui
nas Análises, apesar das nossas duas divisões, Análises e Recolhimento,
junto, claro, com as Auditorias, formarem o grosso da Iniciativa. O que é
também, organizacionalmente, o Setor de Adimplência. Na base, enquanto
analistas, a gente aqui lida com informação a menor. Meio que assim.
Renda declarada abaixo do real, deduções inválidas, gastos inflacionados,
créditos requisitados de maneira indadequada. Discrepâncias, meio…”
P.
“Assim na base, o argumento da Iniciativa Spackman, como ela acabou
sendo conhecida aqui, tanto filosófica quanto organizacionalmente, era que
esses três elementos da lacuna fiscal podiam ser melhorados com um
aumento da eficiência do IRS no que se refere à adimplência. Não é difícil
ver por que essa ideia chamou a atenção da administração política como
uma terceira via em potencial, uma forma de ajudar a lidar com a queda
cada vez mais insustentável da receita sem sobrecarga tributária nem cortes
de gastos. Meio que assim. Nem precisa dizer que isso tudo está
supersimplificado. Eu estou tentando explicar os acontecimentos
extraordinários que se deram na estrutura e nas operações do Serviço como
nós aqui no nível regional vimos acontecer. Pra dizer o mínimo, foi um ano
incomumente empolgante. E o motivo de base da empolgação, e também de
certa controvérsia, era a Iniciativa Spackman. É assim que ela passou a ser
conhecida. Uma reorientação total e profunda da autoconcepção
institucional do Serviço e também do seu papel na política. Meio que assim.
Escuta — tudo bem com você?”
P. [Pausa, intervalo de estática.]
“… assim, o que o Três-Meias também achou vantajoso, defendia que,
sob certas condições técnicas, cada dólar acrescentado ao orçamento anual
do Serviço podia gerar mais de dezesseis dólares em renda adicional pro
Tesouro. Boa parte do corpo central da tese se dedicava a considerar o
estatuto singular e a função do IRS enquanto agência federal. Uma agência
federal é, por definição, uma instituição. Uma burocracia. Mas o Serviço
também era a única agência no aparato federal cuja função era gerar renda.
Verba. O que significa que a sua tarefa era maximizar o retorno legal de
cada dólar investido no seu orçamento anual. Meio que assim. Mais do que
qualquer outra, então, segundo o ressuscitado Spackman, existiam
excelentes motivos pra conceber, constituir e gerir o IRS como uma empresa
— uma atitude direta e capitalista, meio que assim — em vez de uma
burocracia institucional. Na base, o relatório Spackman era enormemente
antiburocrático. O modelo ali era mais classicamente de economia de
mercado. Se entende o quanto isso era atraente pros conservadores pró-
mercado da administração atual. A gente, afinal, está numa era de
desregulamentação empresarial. Qual seria o melhor jeito de por assim
dizer desregulamentar, e até que ponto desregulamentar, o IRS — que, claro,
como agência federal, é organizado e opera como um conjunto de
regulamentações legais e mecanismos de policiamento, era meio que uma
questão espinhuda e não plenamente desenvolvida, meio que assim. Tinha
gente que via o Spackman como um ideólogo. Nem todas as propostas do
documento original foram ressuscitadas — nem tudo passou a ser parte da
Iniciativa. Mas era a hora, politicamente falando, meio que assim, pelo
menos pra essência de base da proposta do Spackman. Ia ser difícil exagerar
demais as consequências dessa mudança de filosofia e de objetivos pra nós
aqui na linha de frente desse trabalho. Da Iniciativa. Por exemplo, um
intenso projeto novo de recrutamento e contratação e um aumento de quase
20% do pessoal do Serviço, o primeiro aumento desse tipo desde a RF de 78.
Estou me referindo também a uma reestruturação geral e aparentemente
infinita do Setor de Adimplência do Serviço, sendo que o [inaudível] mais
relevante deles aqui foi o fato de que os sete Comissários Regionais
ganharam mais autonomia e autoridade sob a filosofia mais descentralizada
da Iniciativa Spackman.”
P.
“Aí já é outra questão complicada, que envolve profundos conhecimentos
da lei fiscal americana e da história do Serviço enquanto parte do executivo
e ao mesmo tempo também fiscalizado pelo Congresso. Uma parte central
do que veio a ser conhecido como a Iniciativa Spackman envolvia encontrar
um meio-termo eficiente entre as duas tendências opostas que vinham
travando as ações do Serviço fazia décadas, sendo uma a descentralização
preconizada pela Comissão King de 1952 no Congresso e a outra o
centrismo político e burocrático exacerbado da administração nacional no
Três-Meias. Dava pra dizer que os anos 60 foram um período, pensando na
história institucional do Serviço, em que os escritórios distritais tiveram
predominância. Os anos 80 estão no caminho de virar a era da Região. Meio
que assim. Como meio-termo organizacional entre muitos Distritos e uma
administração unitária no Três-Meias. As decisões administrativas,
estruturais, logísticas e processuais agora estão muito mais nas mãos do
Comissário Regional e dos seus auxiliares, que, por sua vez, delegam
responsabilidades segundo preceitos operacionais flexíveis mas coerentes,
meio que assim, gerando uma maior autonomia de base pros centros.”
P.
“Cada Região inclui um Centro de Serviços e, com uma exceção
atualmente, um Centro de Análise. Explico a exceção?”
P.
“Na base, com a Iniciativa, os Centros Regionais de Serviços e Análise
recebem uma latitude bem maior em termos de estrutura, pessoal, sistemas
e protocolos operacionais, resultando numa autoridade maior e numa maior
responsabilidade dos Diretores dessas unidades. A ideia geral é liberar essas
grandes unidades de processamento central de regulamentações opressivas
ou tacanhas que atravancam as ações efetivas. Meio que assim. Ao mesmo
tempo, eles aplicam uma pressão extrema no que se refere a um e apenas
um objetivo maior e primário: resultados. Aumento de receita. Redução de
inadimplência. Redução da lacuna. Não chega bem a cotas, claro — isso
nunca, claro, por motivos que envolvem a sensação de justiça e a imagem
pública —, mas quase. Todo mundo aqui leu jornal, você e eu, e, sim,
processos de auditoria mais agressivos são parte da coisa toda. Meio que
assim. Mas as mudanças e as ênfases nas Divisões de Auditoria são em
grande medida mudanças de grau, meio que assim uma coisa quantitativa
— inclusive o advento de auditorias postais automáticas, o que de novo está
fora da nossa área de conhecimento operacional aqui. Mas pra nós, nas
Análises, teve uma mudança dramática, qualitativa, na filosofia e nos
protocolos operacionais. Até um mero GS-9 lá no seu console de trabalho
pode sentir. Se as auditorias são as armas da Iniciativa, meio que assim, nós
das Análises somos os telemetristas, com a tarefa de determinar o melhor
alvo pra arma. Com a desregulamentação, agora só tem uma grande questão
operacional: que declarações rendem auditorias mais lucrativas e qual é a
forma mais eficiente de encontrar essas declarações?”

947 676 541


“A minha tolerância à dor é bem maior que o normal.”

928 514 387


“Bom, o meu pai gostava de cortar a grama em quadradinhos e listras. Ele
fazia o canto leste do jardim, entrava um pouco em casa, aí fazia a faixa
sudoeste do quintal e um quadradinho perto da cerca sul, voltava pra dentro,
e ia assim. Ele tinha um monte de rituaizinhos como esse, era a cara dele.
Sabe como? Demorou um tempo pra eu sacar que ele fazia isso com a
grama porque gostava da sensação de ter terminado. De ter uma tarefa,
sentir que tinha feito e que estava pronto. É uma sensaçãozinha bem sólida,
é como se você fosse uma máquina que sabe que está funcionando bem e
fazendo o que foi projetada pra fazer. Sabe como? Dividindo a grama assim
em coisa de dezessete pedacinhos, o que a nossa mãe achava sempre uma
doidice, ele ficava com a sensação de terminar uma tarefa dezessete vezes
em vez de uma só. Assim: ‘Terminei. Terminei outra vez. Outra vez, olha
só, terminei’.
“Bom, aqui tem um pouco dessa mesma coisa. Nas Molezas. Eu curto.
Uma 1040 típica leva uns vinte e dois minutos pra analisar e analisar e
preencher o memorando. Talvez um pouco mais dependendo dos teus
critérios, algumas equipes dão uma mexida nos critérios. Sabe como. Mas
nunca leva mais de meia hora. Cada uma que você completa dá aquela
sensaçãozinha sólida.
“O negócio aqui é que as declarações não acabam nunca. Sempre tem
mais uma pra fazer. Você nunca acaba de verdade. Mas por outro lado era a
mesma coisa com a grama, sabe como? Pelo menos quando chovia bastante.
Quando ele chegava lá no último pedacinho que tinha delimitado, já
precisava cortar de novo o primeiro. Ele gostava de um gramado baixinho,
com cara de bem cuidado. Ele passava muito tempo ali, se você para pra
pensar. Tempo pacas.”

951 876 833


“Ou foi em Além da imaginação ou na Quinta dimensão — um dos dois.
Um cara claustrofóbico vai se sentindo cada vez pior até que começa a
gritar e tem um chilique, e eles arrastam o cara pra um sanatório mental, e
no sanatório eles colocam o cara no isolamento, de camisa de força num
quartinho minúsculo com um ralo no chão, um quarto do tamanho de um
armário, que claro que seria a pior coisa do mundo pra um claustrofóbico,
mas eles explicam pra ele por uma fenda na porta que são as regras e os
procedimentos, que se alguém está gritando eles têm que pôr o cara no
isolamento. Daí o sujeito está ferrado, ele fica lá pra sempre, porque
enquanto ele estiver gritando e tentando se jogar na parede do quartinho até
perder a consciência vão manter ele ali no quarto, e enquanto estiver
naquele quartinho ele vai estar gritando, porque o problema todo é ele ser
claustrofóbico. Ele é um exemplo vivo de como tem que ter uma
flexibilidade ou certa margem de manobra nas regras e nos procedimentos
em alguns casos, senão às vezes vai dar numa cagada monstruosa e a vida
de alguém vai virar um inferno. O nome do episódio inclusive era ‘Regras e
procedimentos’, e nenhum de nós nunca esqueceu aquilo.”
987 613 397
“Eu não acho que eu tenha alguma coisa a dizer que não esteja no código
tributário ou no Manual.”

943 756 788


“A mãe chamava isto de travar. Ela se referia ao meu pai assim, um hábito
que ele tinha no meio de quase qualquer coisa. Ele era um sujeito bacana,
contador do distrito escolar. Travar tinha a ver com a pessoa ficar encarando
alguma coisa fixamente e sem nenhuma expressão no rosto por um longo
período de tempo. Pode acontecer quando você dormiu pouco ou dormiu
demais, ou comeu demais, ou está distraído, ou apenas pensando em outra
coisa. Só que não é pensar em outra coisa, porque envolve ficar encarando
alguma coisa. De um jeito fixo. Quase sempre alguma coisa bem ali na sua
frente — a prateleira de uma estante, o centro da mesa de jantar, a sua filha,
o seu filho. Mas travado você não está olhando de verdade pra essa coisa
que você parece estar encarando, você não está nem percebendo de verdade
que ela existe — mas isso também não significa que você está pensando em
outra coisa. Você na verdade não está fazendo nada mentalmente, está só
fazendo fixamente, com o que parece ser uma grande concentração. É como
se a concentração da pessoa girasse em falso que nem as rodas de um carro
giram em falso na neve, bem rápido, sem ir pra frente, apesar de parecerem
em grande concentração. E agora eu também faço isso. Eu me vejo fazendo.
Não é desagradável, mas é estranho. Alguma coisa te abandona — dá pra
sentir o rosto largado ali, sem músculos, sem expressão. Os meus filhos se
assustam, eu sei. É como se o seu rosto e a sua atenção fossem de outra
pessoa. Às vezes no espelho, no banheiro, eu volto a mim e dou comigo
travada, sem noção do que aconteceu. O sujeito morreu já tem doze anos.
“Esse é que é o desafio novo aqui. De fora do analista, não existia
nenhuma garantia de que alguém distinguisse a diferença entre fazer o
trabalho direito e estar como ela dizia travado, encarando as declarações
mas sem reagir a elas, sem prestar atenção de verdade. Desde que você
processasse o seu número devido de declarações todo dia, eles não tinham
como saber. Não que eu fizesse isso, as minhas travadas acontecem depois
do expediente aqui, ou antes, quando estou me preparando. Mas eu sei que
eles iam se preocupar: quem são os bons analistas e quem está passando a
perna neles, passando o dia travado ou pensando em outras coisas. Isso
pode acontecer. Mas agora, neste ano, eles conseguem saber, eles sabem
quem está fazendo o trabalho. Fica real, depois, a diferença. Porque agora
eles registram a receita que você gerou em vez do número de declarações
processadas. Isso é uma mudança pra gente. Agora é mais fácil, a gente está
procurando alguma coisa, o que vai gerar AR, e não só quantas declarações
você consegue processar. Isso ajuda a prestar atenção.”

984 057 863


“A casa da gente ficava na periferia da cidade, saindo de uma das estradas
asfaltadas. A gente tinha um cachorrão que o papai deixava na corrente no
gramado da frente. Uma cruza de pastor-alemão, bem grande. Eu odiava a
corrente mas a gente não tinha cerca, a gente ficava bem encostado na
estrada ali. O cachorro odiava a corrente. Mas ele tinha dignidade. O que
ele fazia era que ele nunca ia até o comprimento todo da corrente. Ele nunca
ia nem até onde a corrente ficava tensa. Nem se o carteiro encostava o carro
ou um vendedor. Por dignidade, aquele cachorro fingia que tinha escolhido
uma área pra ficar que só por acaso ficava nos limites da corrente. Nada
fora daquela área bem ali lhe interessava. O interesse dele era simplesmente
zero. Aí ele nunca percebia a corrente. Ele não odiava. A corrente. Ele só
foi lá e decidiu que ela não era relevante. De repente ele nem estava
fingindo — de repente ele foi lá mesmo e escolheu aquele circulozinho
como o mundo dele. Ele tinha lá o seu poder. A vida inteira naquela
corrente. Eu gostava pra caralho daquele cachorro.”
§ 15

Um item obscuro mas verdadeiro de trívia paranormal: existe um tipo de


médium de fatos. Às vezes também conhecido na literatura especializada
como místico de dados e a síndrome como IFA (5 Intuição de Fatos
Aleatórios). Os súbitos momentos de percepção ou de tomada de
consciência que essas pessoas experimentam são estruturalmente similares
mas em geral bem mais tediosos e comezinhos que o conhecimento
antecipado e dramaticamente relevante que costumamos conceber como PES
ou precognição. Esse, por sua vez, é o motivo de o fenômeno ser tão pouco
estudado ou divulgado e de as pessoas dotadas de IFA se referirem a ela de
forma quase unânime como um transtorno ou uma limitação. Nos poucos
estudos e monografias sérios que existem, abundam no entanto os
exemplos; a bem da verdade, a abundância, junto com a irrelevância e a
interrupção da atenção e do pensamento normais, compõem a essência do
fenômeno da IFA. O nome do meio do amigo de infância de um
desconhecido que passa por elas num corredor. O fato de que alguém
sentado ao lado delas no cinema uma vez esteve dezesseis carros atrás delas
na I-5 perto de McKittrick CA num dia quente e chuvoso de outubro de
1971. Essas coisas vêm do nada, são inconvenientes e desconcertantes
como toda irrupção mediúnica. Só que são efêmeras, inúteis, nada
dramáticas, incômodas. O sabor do Cointreau para alguém com um
resfriado leve na esplanada da ópera estatal de Viena no dia 2 de outubro de
1874. Quantas pessoas se viraram para o sudeste para testemunhar o
enforcamento de Guy Fawkes em 1606. O número de fotogramas de
Acossado. Que alguém chamado Fangi ou Fangio ganhou o Grand Prix de
1959. A porcentagem de divindades egípcias com cabeças de animais e não
humanas. O comprimento e a circunferência média do intestino delgado do
secretário de Defesa Caspar Weinberger. A altitude exata (não estimada) do
Monte Érebo, mas não o que ele seja ou onde esteja.
No caso do médium de fatos Claude Sylvanshine, GS-9, digamos, no dia
12 de julho de 1981, o peso preciso e a velocidade, ambos no sistema
métrico, de um trem que seguia rumo sudoeste passando por Prešov,
Tchecoslováquia, no exato momento em que ele deveria estar conferindo o
preenchimento de recibos 1099-INT da declaração de Edmund e Willa
Kosice, cujas persianas foram trocadas em 1978 por alguém cuja esposa
ganhou três rodadas de bingo seguidas na igreja de Santa Brígida em Troy
MI, muito embora o endereço residencial dos Kosice seja em Urbandale IA

— motivo de incongruência de IFR desconhecido para Sylvanshine, para


quem os factoides são apenas uma distração a mais de que ele precisa se
livrar na barulheira e no moral insanamente baixo do CRA da Filadélfia. Daí
o deus tolteca do milho, só que em glifos toltecas, o que faz que para
Sylvanshine ele pareça um desenho abstrato de origem incerta. O vencedor
do prêmio Nobel de fisiologia-barra-medicina em 1950.
Dado: pelo menos um terço dos videntes e feiticeiros dos governantes
dos povos antigos era na verdade demitido ou morto logo depois de serem
empregados porque se revelava que grande parte do que eles previam ou
intuíam era irrelevante. Não incorreta, apenas irrelevante, sem sentido. O
motivo real do apêndice humano. O nome que Norbert Wiener deu à
bolinha de couro que ele tinha como único amigo quando era uma criança
doente. O número de folhas de grama no jardim da casa de certo carteiro.
Esses fatos se intrometem, entram de penetras, fazem barulho. Um dos
motivos de o olhar de Sylvanshine estar sempre tão concentrado e
desconcertado é que ele está tentando filtrar todo tipo de fatos intrusivos e
mediunicamente intuídos. A quantidade de parênquima em determinada
samambaia da sala de espera de um ortodontista em Athens GA, apesar de
não e de nunca aparecer o que um parênquima seria. Que o campeão dos
pesos-pluma da WBA de 1938 tinha uma leve escoliose na região T10-12.
Ele nem vai conferir — você não vai atrás desses fatos; eles são como uma
isca que te leva a lugar nenhum. Ele aprendeu isso a duras penas. A taxa em
unidades astronômicas a que o Sistema ML435 está se afastando da Via
Láctea. Ele não fala para ninguém dessas intrusões. Algumas são
interligadas, mas raramente de modo que gere o que alguém com uma PES
verdadeira chamaria de sentido. O peso no sistema métrico de todos os
fiapos de tecido em todos os bolsos de todas as pessoas presentes no
observatório de Fort Davis TX no dia de 1974 em que um eclipse previsto
foi obscurecido pelas nuvens. Talvez um de cada quatro mil desses fatos
seja relevante ou sirva para alguma coisa. A maioria deles é o equivalente a
alguém cantando o Hino Americano na sua orelha enquanto você tenta
recitar um poema para ganhar um prêmio. Claude Sylvanshine não
consegue evitar. Que a tataravó de alguém que passa por ele na rua tinha
uma irmã caçula que morreu de coqueluche e se chamava Hesper. O custo,
em valor ajustado pela inflação no período, daquele eclipse obnubilado; o
número da concessão pública da rádio cristã que o diretor do observatório
ouvia enquanto ia de carro para casa, onde encontraria a esposa
descomposta e o boné do leiteiro no balcão da cozinha. A forma das nuvens
na tarde em que duas pessoas que ele nunca conheceu conceberam seu
filho, vítima de um aborto espontâneo seis semanas depois. Que o pioneiro
da mala com rodinhas vendida no varejo era o ex-marido de uma comissária
da People Express que tinha passado um ano e meio quase enlouquecendo
na tentativa de pesquisar especificações de fabrico de malas e pedidos de
patentes na região porque não conseguia acreditar que ninguém tivesse
pensado em vender isso em grande escala antes dele. O número do registro
no Escritório de Marcas e Patentes da máquina que prendia a copa de papel
do boné do leiteiro. O peso molecular médio da turfa. O problema foi
mantido em segredo de todos desde a quarta série, quando Sylvanshine
soube o nome do gatinho que o primeiro amor do marido da sua professora
teve na infância e que tinha perdido os bigodes de um lado num
acidentezinho perto do fogão a lenha em Ashtabula OH, informação
verificada apenas quando ele desenhou um livretinho ilustrado e o marido
viu o nome e o desenho de giz de cera do Arranho já de bigodes, ficou
branco como marfim e sonhou intensamente por três noites sem ninguém
saber.
O médium de fatos vive parte do tempo no mundo das minúcias
intratáveis e irrequietas que ninguém conhece nem ia se dar ao trabalho de
conhecer mesmo que tivesse a chance. A população do Brunei. A diferença
entre muco e esputo. Há quanto tempo um pedaço de chiclete reside sob o
assento da quarta cadeira a contar da esquerda na terceira fileira do Virginia
Theater, Cranston RI, mas não quem pôs o chiclete ali ou por quê.
Impossível prever quais fatos vão se intrometer. Dores de cabeça
constantes. Os dados às vezes visuais e estranhamente iluminados por trás,
como que por uma luz infinitamente forte e a uma distância infinita. A
quantidade de carne vermelha não digerida no intestino grosso do habitante
típico do sexo masculino e de quarenta e três anos na cidade de Ghent, na
Bélgica, em gramas. A relação entre a lira turca e o dinar iugoslavo. O ano
da morte do explorador submarino William Beebe.
Prova um cupcake. Sabe onde ele foi feito; sabe quem operava a máquina
que espalhou uma fina cobertura de chocolate sobre o bolo; sabe o peso
dessa pessoa, quanto ele calça, sua média de pontos no boliche, sua média
de rebatidas na liga de beisebol para veteranos; sabe as dimensões do
cômodo em que aquela pessoa está neste exato momento. Esmagador.
§ 16

Lane Dean Jr. e dois analistas mais velhos de uma Célula diferente estão
em frente a uma das portas sem alarme entre as Células, num hexagrama de
cimento cercado de uma grama bem cuidada, olhando o sol sobre os
campos incultos logo ao sul do CRA. Ninguém está fumando; estão só um
tempinho lá fora. Lane Dean não saiu com os dois; ele foi tomar um ar no
intervalo ao mesmo tempo que os analistas, e por acaso se encontrou com
eles. Ainda está procurando um lugar desejável de verdade, divertido, para
frequentar nos intervalos; isso é muito importante. Os dois caras se
conhecem ou trabalham na mesma equipe; foram lá para fora juntos; dá
para ver que se trata de uma velha rotina.
Um dos homens abre as pernas de um jeito meio artificial e se alonga.
“Nossa”, diz. “Bom, eu e a Midge, a gente foi lá na casa dos Bodnar no
sábado. Sabe o Hank Bodnar, lá da equipe K das Análises de Capital, com
aqueles oclões com as lentes que escurecem sozinhas no sol, como é que
chama?” O homem está com as mãos atrás das costas e sobe e desce
rapidinho na ponta dos pés, como alguém esperando o ônibus.
“Ãh-rãh.” O outro homem, que talvez seja uns cinco anos mais novo que
o homem que foi na casa dos Bodnar, está contemplando uma espécie de
cisto ou verruga benigna na parte interna do pulso. O calor está se
concentrando no meio da manhã, e o som elétrico dos gafanhotos no capim
selvagem cresce e cai nas partes dos campos onde o sol ataca. Nenhum dos
homens se apresentou a Lane Dean, que está parado mais longe deles do
que eles estão um do outro, ainda que não tão longe que pudesse ser
considerado totalmente desligado da conversa. Talvez estejam lhe dando
privacidade porque veem que ele é novo e que ainda está se acostumando
com o inacreditável tédio do trabalho de analista. Talvez sejam tímidos e
desajeitados e não saibam direito como se apresentar. Lane Dean, cuja calça
tinha subido tanto que ele precisou ir ao banheiro para tirá-la de dentro da
bunda, sente vontade de sair correndo pelo campo naquele calor, correr em
círculos batendo os braços como asas.
“Era pra gente ter ido lá no fim de semana passado, que dia, acho que no
dia sete”, diz o primeiro homem, olhando para uma paisagem que na
verdade não tem grandes atrativos para os olhos, “mas a nossa mais nova
estava com febre e com a garganta meio inflamada, e a Midge não quis
deixar a menina com a babá se ela estava com febre. Aí ela ligou pra
cancelar, e a Midge e a Alice Bodnar deram um jeito, e a gente mudou a
coisa pra semana seguinte, sete dias depois do dia sete, que assim ficava
fácil de lembrar. Você sabe como é que as mamães urso ficam quando seus
filhotinhos estão com febre.”
“Nem me fale”, Lane Dean arrisca de vários metros de distância, rindo
meio forte demais. Um sapato está na sombra da marquise da célula e outro
no sol da manhã. Lane Dean agora está começando a se sentir desesperado
com o fim inexorável dos quinze minutos de intervalo e com o fato de que
ele vai ter que voltar e analisar declarações por mais duas horas antes do
próximo intervalo. Uma xicrinha vazia de isopor está tombada de lado no
cinzeiro preso a uma latinha de lixo num nicho da parede. Estar numa
conversa faz o tempo passar de um jeito diferente; não fica claro se é
melhor ou pior. O outro homem ainda está examinando a coisa em seu
pulso, com o antebraço levantado como o de um cirurgião que acabou de
lavar as mãos. Se você para e pensa que os gafanhotos estão é gritando, a
coisa toda fica muito mais perturbadora. O protocolo normal é não ouvir;
depois de um tempo você não percebe mais que eles existem.
“Mas enfim”, diz o primeiro analista. “A gente chega lá, toma uma
coisinha. A Midge e a Alice Bodnar ficam lá falando sem parar de umas
cortinas que eles estão escolhendo pra sala de estar. Troço bem chato, coisa
de esposa. Aí eu e o Hank acabamos na sala de televisão, porque o Hank
coleciona moedas — sério, ele leva a coisa bem a sério, pelo que eu vi, não
é só aqueles álbuns de papelão com buraquinho redondo, ele entende
mesmo do riscado. E ele quis me mostrar a foto de uma moeda que ele
estava pensando em adquirir, pra coleção.” O outro homem tinha olhado de
verdade pela primeira vez quando o cara que estava contando a história
mencionou numismática, que é um hobby que para Lane Dean, como
cristão, sempre pareceu decadente e desvirtuado de diversas maneiras.
“Um níquel, eu acho”, o primeiro camarada está dizendo. Ele fica nisto
de quase parecer que está falando sozinho, enquanto o segundo homem
começa e para de analisar a coisa da verruga. Você saca que esse é o tipo de
conversa que os dois têm nos intervalos há muitos, muitos anos — tão
natural que nem é mais consciente. “Não daqueles com um búfalo atrás,
mas uma moedinha lá de cinco centavos com uma parte de trás diferente
que é bem conhecida; eu não sei grandes coisas de moeda mas até eu já
tinha ouvido falar, então deve ser bem conhecido mesmo. Mas não consigo
lembrar o termo certo.” Ele ri de um jeito que parece dolorido. “Sumiu
totalmente da cabeça. Agora eu não lembro.”
“A Alice Bodnar cozinha superbem”, o outro sujeito diz. As presilhas
plásticas de uma gravata marrom-clara de prender aparecem um pouco em
volta do colarinho da camisa dele. O nó da gravata propriamente dito está
apertado como uma figa; não haveria como soltar. De onde está, Lane dá
uma olhada melhor e mais discreta nesse segundo analista. A coisa no lado
interno do pulso dele é do tamanho do nariz de uma criança e composta do
que parece matéria córnea, ou alguma secreção endurecida, e tem uma
aparência avermelhada e meio inflamada, se bem que isso pode ser porque
o segundo sujeito fica cutucando tanto. E quem não cutucaria? Lane Dean
sabe que corria o risco de ficar obsessivamente fixado na coisa do pulso do
homem se eles trabalhassem em mesas vizinhas na mesma Célula —
tentando olhar aquilo sem ser percebido, tomando decisões de não olhar etc.
Ele fica meio chocado por quase sentir inveja de quem esteja nessa mesa
vizinha, imagina o cisto avermelhado e a carreira do cisto como objeto de
distração e atenção, algo a se guardar como um corvo guarda coisinhas
inúteis e brilhantes que encontra por acaso, até tirinhas de papel-alumínio
ou pedacinhos da corrente rompida de um medalhão. Sente um desejo
estranho de perguntar ao homem sobre a coisa, qual é a daquele negócio, há
quanto tempo etc. Aconteceu bem como o sujeito tinha dito: Lane Dean não
precisa mais olhar para o relógio nos intervalos. Agora restam seis minutos.
“Nossa, então, a ideia lá era cozinhar uns filés de salmão e comer na
varanda e o salmão lá pincelado com um vinagrete de sálvia que a Midge e
a Alice queriam inventar e batatinha escalopada — acho que é escalopada;
de repente você diz au gratin. E uma saladona, tão grande que não dava
nem pra gente passar a saladeira de um pro outro na mesa; ela teve que ficar
numa mesinha separada.”
Agora o segundo homem está desenrolando cuidadosamente a manga da
camisa e a abotoando de novo no pulso sobre a coisa, se bem que quando
ele senta com as declarações e a manga sobe um pouquinho, Dean aposta
que a borda da penumbra rubra do cisto ainda vai aparecer no punho, e que
o movimento do punho para a frente e para trás por cima da coisa num dia
inteiro de análises pode ser parte do que a deixa vermelha e machucada —
pode ocorrer uma dorzinha minúscula e enjoada toda vez que o punho da
camisa do homem passa para cá ou para lá em cima da coisinha córnea.
“Mas foi um dia bem bacana. Eu e o Hank lá na sala de televisão, que
tem aquelas janelonas grandes que dão pra uma parte do jardim e da rua;
tinha umas crianças da vizinhança andando de bicicleta pela rua, gritando e
se divertindo pacas. A gente decidiu, o Hank decidiu, mas, cacete, está um
dia bonito pra cacete, vamos ver se as meninas não querem um churrasco.
Aí a gente pegou a grelha do Hank, uma grandona modelo Weber com
rodinha que dava pra empurrar de um lado pro outro se você inclinasse ela
assim pra trás; eram três pernas mas só duas tinham rodinha — você sabe
como é.”
O segundo homem se inclina para a frente e cospe direitinho por entre os
dentes na grama que cerca o hexagrama. Ele talvez tenha seus quarenta
anos, fios prateados entre o cabelo do lado da cabeça, assim sob o sol dá
para Lane Dean ver. Lane Dean se imagina correndo pelo campo num
círculo enorme, batendo os braços como Roddy McDowall.
“Aí a gente levou, com as rodinhas”, o primeiro homem diz. “E a gente
assou o salmão em vez de cozinhar, apesar do resto ser igual, e a Midge e a
Alice ficaram falando de onde eles compraram a saladeira, que tinha assim
um monte de entalhes mais perto da borda, que aquilo devia pesar mais de
dois quilos. O Hank assou ali no quintal e a gente comeu lá na varanda por
causa dos mosquitos.”
“Como assim?”, Lane Dean pergunta, ciente do leve tom histérico em sua
voz.
“Ora”, diz o primeiro cara, o mais gordo, “o sol estava se pondo. As
muriçocas descem lá do campo de golfe em Fairhaven. Nem a pau que a
gente ia ficar sentado ali no quintal pra ser comido vivo. Ninguém nem
precisou falar.” O homem vê Lane Dean ainda olhando para ele, a cabeça
exageradamente inclinada numa curiosidade que nem de longe ele sentia.
“Bom, é uma varanda com tela.” O segundo homem está olhando para
Lane Dean com cara de quem que é esse fulano?
O homem que tinha jantado na casa dos outros ri. “O melhor de dois
mundos. Uma varanda com tela.”
“A não ser que chova”, o segundo homem diz. Os dois riem
pesarosamente.
§ 17

“Eu sempre assim desde criança acho que meio que imaginei os caras da
Receita como aquele tipo assim de herói institucional, burocrático, herói
com h minúsculo — que nem policial, bombeiro, assistente social, gente da
Cruz Vermelha e do Exército da Salvação, o pessoal encarregado de ajudar
os mais pobres no governo, até um certo tipo de gente do clero e de
voluntários religiosos — quem tenta suturar ou pôr um curativo nos buracos
que o pessoal mais egoísta, mais exibido, mais desligado, mais ‘eu-eu-eu’
fica sempre abrindo na comunidade. Eu estou falando mais assim da polícia
e dos bombeiros e do pessoal da Igreja do que dos que todo mundo conhece
e que acabam no jornal por causa do que eles fazem. Eu não estou falando
do tipo de herói que ‘arrisca a vida’. Acho que o que estou dizendo é que
tem outros tipos. Eu queria ser. Do tipo que parecia até mais heroico porque
ninguém aplaudia nem pensava neles, ou se pensava normalmente era como
se fosse inimigo. O tipo de gente que entra pro comitê que vai organizar a
limpeza depois da festa em vez de tocar na banda do baile ou ficar ali com a
rainha, se é que você me entende. O tipo quietinho que limpa a bagunça e
faz o trabalhinho sujo. Você sabe.”
§ 18

“E os Nomes de Mesa voltaram. Taí outra vantagem com o Glendenning.


Nada contra o Rei Pálido, mas o consenso é que o sr. Glendenning está mais
a fim disso do moral dos agentes, e os Nomes de Mesa são um exemplo.”
[Comentário fora do quadro.]
“Bom, é bem o que diz mesmo. Em vez do seu nome. Tem uma
plaquinha na sua mesa com o seu Nome de Mesa. O seu Nome de Guelra,
que nem eles dizem. Agora não precisa mais se preocupar que algum
cidadão que você meio que teve que apertar um tiquinho saiba o seu nome,
de repente eles descobrem onde você mora com a sua família — não pense
que isso não passa pela cabeça dos agentes.”
[Comentário fora do quadro.]
“Se bem que não é mais exatamente como era antes do Rei Pálido. A
coisa se descontrolou, não dá pra negar. Agora não tem mais Nomes de
Mesa que sejam obviamente de sacanagem. Coisa que pra te falar a verdade
perdia a graça rapidinho e ninguém está sentindo falta; ninguém quer que o
contribuinte ache que ele é bobo. A gente está longe de ser bobo aqui. Não
tem mais essa de Lu Tarmada ou Dave Yaddo ou John D. Stowe. Se bem
que ninguém e muito menos o sr. Glendenning diz que não dá pra usar o
Nome de Mesa como ferramenta. Na grande batalha por corações e mentes.
Se você for esperto, você usa como ferramenta. A gente faz um rodízio; os
mais antigos escolhem primeiro. Neste trimestre, o meu Nome de Mesa é
Eugene Fusz — dá pra ver bem ali na plaquinha. Elas agora são bem
bonitinhas. Um tipo de ferramenta é você usar um Nome de Mesa que o
cara não sabe direito como é que pronuncia. É fiús, é fâs, é fuz? Claro que o
cidadão não quer te ofender. Outros bons são Fuchs, Traut, Carallo, Ojerkis,
Meleck, Tünivich, Schoewder, Wënkopf. Ainda tem quarenta e três
plaquinhas sobrando. La Bialle, Bouhel. Trema é sempre legal; trema
parece que deixa o pessoal especialmente maluco. É só mais uma tática pra
desorientar. Fora um sorrisinho num dia cinzento e coisa e tal e tal e coisa.
O Hanratty pediu uma plaquinha Pehnys pro terceiro trimestre — está sob
análise, segundo o sr. Rosebury. Tem limite, afinal, com o Glendenning. O
que vale é a receita. Não é exatamente um cirquinho este negócio aqui.”
§ 19

“Tem alguma coisa bem interessante nisso de civismo e de egoísmo, e a


gente fica na crista dessa onda por aqui. Nos Estados Unidos, a gente espera
que o governo e a lei sejam a nossa consciência. O nosso superego, por
assim dizer. Tem alguma coisa a ver com o individualismo liberal e alguma
coisa a ver com capitalismo, mas eu não entendo muito desse aspecto
teórico — o que eu vejo é o que eu vivo. Dá pra dizer que os americanos
são loucos. A gente se infantiliza. A gente não se pensa enquanto cidadãos
— como parte de alguma coisa maior em que a gente tem responsabilidades
profundas. A gente se pensa enquanto cidadãos no que se refere aos nossos
direitos e aos nossos privilégios, mas não às nossas responsabilidades. A
gente abdica das nossas responsabilidades cívicas com o governo e espera
que o governo, de fato, legisle a moral. Eu estou falando basicamente de
economia e de negócios, porque é a minha área.”
“O que é que a gente faz pra deter o declínio?”
“Eu não tenho nenhuma ideia do que a gente deve fazer. Enquanto
cidadãos a gente cede cada vez mais a nossa autonomia, mas se nós do
governo tiramos dos cidadãos a liberdade deles cederem essa autonomia,
agora a gente tirou a autonomia. É um paradoxo. Os cidadãos têm
constitucionalmente o poder de preferir abrir mão e deixar as decisões com
empresas e com um governo que a gente espera que os controle. As
empresas estão ficando cada vez melhores nisso de seduzir a gente e fazer a
gente pensar como elas — pensar no lucro como telos e na responsabilidade
como uma coisa que é pra ser idolatrada enquanto símbolo e evitada na vida
real. Esperteza em oposição a sabedoria. Querer e ter em vez de pensar e
fazer. A gente não consegue impedir isso. Suponho que o que vai acontecer
é algum tipo de desastre — depressão, hiperinflação —, e aí é que são elas:
ou a gente acorda e retoma a nossa liberdade, ou a gente desmonta de vez.
Que nem Roma — que conquistou seu próprio povo.”
“Eu entendo os contribuintes não quererem dar o dinheiro deles. É uma
coisa humana, normal. Eu também não gostei de cair na malha fina. Mas,
pô, tem uns fatos básicos pra equilibrar isso aí — a gente votou nesses
caras, a gente escolhe viver aqui, a gente quer estradas legais e um Exército
bom pra proteger o país. Então paga aí.”
“Isso é meio simplista.”
“Parece uma coisa assim: imagine que você está num bote salva-vidas
com outras pessoas, a comida é limitada e vocês têm que dividir. É bem
limitada, tem que ir pra todos e todo mundo está com fome. Claro que você
quer toda a comida; você está morrendo de fome. Mas todo mundo também
está. Se você comesse toda a comida não ia conseguir viver com essa culpa
depois.”
“Sem contar que os outros iam te matar.”
“Mas a questão é psicológica. Claro que você quer tudo, claro que você
quer ficar com cada centavinho que ganha. Mas você não fica, você paga,
porque é assim que precisa ser pro bote todo. Você meio que tem um dever
com os outros ali no bote. Um dever com você mesmo, de não ser o tipo de
pessoa que espera todo mundo ir dormir pra ir lá comer a comida toda.”
“Você está falando que nem na aula de moral e cívica.”
“Que você nunca cursou, aposto. Você tem o quê, 28? A sua escola tinha
moral e cívica quando você era garoto? Você pelo menos sabe o que é
educação cívica?”
“Era uma coisa da guerra fria que eles começaram nas escolas. A
Declaração de Direitos, a Constituição, o Juramento à Bandeira, a
importância de votar.”
“A educação cívica é o ramo das ciências políticas que entre aspas se
preocupa com a cidadania e os direitos e deveres dos cidadãos dos Estados
Unidos da América.”
“Dever é uma palavra meio pesada. Eu não estou dizendo que é dever
deles pagar imposto. Só estou dizendo que não faz sentido não pagar. Fora
que a gente ainda te pega.”
“Eu não acho que é uma conversa o que você quer ter de verdade, mas se
quiser a minha opinião eu te falo.”
“Desembucha.”
“Eu acho que não é por acaso que não dão mais aula de educação moral e
cívica ou que um rapaz como você se arrepia com a palavra dever.”
“A gente ficou mole, você quer dizer.”
“Eu estou dizendo que os anos sessenta, que Deus os tenha, fizeram
muita coisa pra aumentar a consciência das pessoas em diversas áreas,
como nas questões de raça, no feminismo…”
“Sem falar do Vietnã.”
“Não, pode falar do Vietnã, porque aquela foi uma geração que na sua
quase totalidade pela primeira vez questionou as autoridades e disse que as
crenças morais de cada um deles eram mais sérias que o dever deles irem
pra guerra se os seus representantes legitimamente eleitos mandassem.”
“Em outras palavras, que o dever mais sério deles era com eles mesmos.”
“Tudo bem, mas com eles enquanto o quê?”
“Isso tudo parece bem simplista, pessoal. Também não é que todo mundo
estivesse lá protestando por uma noção de dever. Estava na moda se
manifestar contra a guerra.”
“Nem o fator dever-final-para-comigo nem o fator moda são
irrelevantes.”
“Você está dizendo que se manifestar contra o Vietnã levou às chicanas
fiscais?”
“Não, ele está dizendo que levou ao tipo de egoísmo que deixa todo
mundo aqui querendo comer toda a comida do bote.”
“Não, mas eu acho que seja lá o que for que levou as manifestações
contra uma guerra a virarem moda, abriu a porta pro que vai acabar com
este país. O fim da experiência democrática.”
“Eu não te falei que ele era conservador?”
“Mas isso é só um rótulo. Tem tudo que é tipo de conservador
dependendo do que eles querem conservar.”
“Os anos sessenta foram o começo do declínio dos Estados Unidos rumo
à decadência e ao individualismo egoísta — a geração Eu.”
“Mas rolava mais decadência nos anos vinte do que nos sessenta.”
“Sabe o que eu acho? Que a Constituição e O Federalista aqui deste país
foram um feito moral e criativo incrível. Pela primeira vez mesmo numa
nação moderna as pessoas que estavam no poder montaram um sistema em
que o poder dos cidadãos sobre o seu próprio governo ia ser uma questão
fundamental e não mero simbolismo. Teve um valor inestimável, e vai ficar
na história junto com Atenas e a Carta Magna. O fato de que era uma utopia
e que por incrível que pareça funcionou por duzentos anos deixa tudo mais
inestimável ainda — é literalmente um milagre. E já que eu estou falando
de Jefferson, Madison, Adams, Franklin, os verdadeiros pais da Igreja, o
que levou o experimento americano pra além de uma grande ideia e fez com
que ele funcionasse foi não só a inteligência desses caras mas o profundo
esclarecimento moral que eles tinham — a noção de civismo deles. O
negócio é que eles se importavam mais com a nação e com os cidadãos que
com eles mesmos. Eles podiam simplesmente ter montado os Estados
Unidos como uma oligarquia onde os industriais poderosos do Leste e os
proprietários de terras do Sul controlassem todo o poder e governassem
com mãos de ferro dentro de luvinhas de retórica liberal. Preciso mencionar
Robespierre ou os bolcheviques, ou o aiatolá? Esses Pais Fundadores eram
gênios de virtude cívica. Eles eram heróis. Quase todo o trabalho deles foi
conter o poder do governo.”
“Separação dos poderes.”
“Todo o poder emana do povo.”
“Eles sabiam que o poder tende a corromper…”
“O Jefferson ao que tudo indica mandando ver nas suas escravas e com
ninhadas e ninhadas de filhinhos mulatos.”
“Eles acreditavam que o poder centralizante ao se ver disperso entre um
eleitorado consciente, educado e dotado de preocupações cívicas garantiria
que os Estados Unidos não iam virar mais um caso de nobres e campônios,
senhores e servos.”
“Um eleitorado educado, dono de terras, macho e branco, é bom
lembrar.”
“E esse é um dos paradoxos do século XX, que tem o seu ápice lá nos
sessenta. Será que é bom tornar tudo mais justo e deixar todos os cidadãos
votarem? É, na teoria está na cara. No entanto é bem fácil avaliar os nossos
ancestrais olhando pela lente do presente em vez de tentar ver o mundo
como eles devem ter visto. Os Pais Fundadores concederam esse poder só
aos homens brancos ricos e proprietários de terras com o objetivo de
colocar o poder nas mãos de pessoas mais parecidas com eles…”
“Para mim, tudo isso não parece assim tão novo ou tão experimental, sr.
Glendenning.”
“Eles acreditavam na racionalidade — acreditavam que as pessoas
privilegiadas, alfabetizadas, educadas e dotadas de sofisticação moral
seriam capazes de emular o comportamento deles, de tomar decisões
judiciosas e autodisciplinadas pelo bem da nação e não só para favorecer
seus próprios interesses.”
“Sou obrigado a reconhecer que isso aí é uma racionalização bem
engenhosa e imaginativa do racismo e do chauvinismo machista.”
“Eles eram heróis, e como todo herói de verdade eram modestos e não se
consideravam assim tão excepcionais. Eles supuseram que seus
descendentes seriam como eles — racionais, honrados, dotados de
consciência cívica. Homens no mínimo tão preocupados com o bem comum
quanto com vantagens pessoais.”
“Como foi que a gente saiu dos anos sessenta e chegou nisso?”
“E em vez disso a gente deu nesses líderes corruptos ou então bananas
que tem por aí.”
“A gente elege o que merece.”
“Mas é uma coisa bem estranha. Que eles tenham sido tão previdentes e
tão astuciosos nisso de erguer barreiras contra a acumulação do poder, nesse
medo saudável que eles tinham do governo, e ao mesmo tempo acreditarem
ingenuamente na virtude cívica das pessoas comuns.”
“Os nossos líderes, o nosso governo somos nós, todos nós, então se eles
são venais e fracos é porque nós somos.”
“Odeio quando você sumariza o que eu estou tentando dizer e erra tudo,
mas eu não sei bem como dizer. É mais forte que isso. Eu não acho que o
problema sejam os nossos líderes. Eu votei no Ford e provavelmente vou
votar no Bush ou quem sabe no Reagan e tenho segurança nesse voto. Mas
a gente vê aqui, com os contribuintes. Nós somos o governo, a pior face do
governo — o credor voraz, o pai severo.”
“Eles odeiam a gente.”
“Eles odeiam o governo — a gente só é a encarnação mais conveniente
do que eles odeiam. Mas tem uma coisa bem curiosa nisso aí do ódio. O
governo é o povo, deixando várias complicações de lado, mas a gente cria
uma divisão e finge que não é; a gente finge que um Outro ameaçador é que
quer tirar as nossas liberdades, tirar o nosso dinheiro pra redistribuir,
legislar a nossa moral sobre drogas, carteira de motorista, aborto, meio
ambiente — o Grande Irmão, o Sistema…”
“Eles.”
“E o curioso é que a gente odeia o governo por ele usurpar as
mesmíssimas funções cívicas que a gente cedeu ao governo.”
“O que inverte o mecanismo dos Pais Fundadores de ceder o poder
político ao povo e não ao governo.”
“Consentimento dos governados.”
“Mas foi mais longe que isso, e a ideia dos anos sessenta de liberdade e
apetites pessoais e licenciosidade moral tem alguma coisa a ver com isso, se
bem que nem a pau eu consigo ver o que seria. Só que tem alguma coisa
estranha rolando em termos de civismo e de egoísmo neste país, e a gente
aqui no Serviço pode ver isso nas suas manifestações mais radicais. Nós
hoje, como cidadãos, homens de negócios, consumidores e tudo mais, nós
esperamos que o governo e a lei funcionem como a nossa consciência.”
“Mas não é pra isso que as leis servem?”
“Você quer dizer o nosso superego? In loco parentis?”
“Tem alguma coisa a ver com o individualismo liberal, alguma coisa a
ver com o fato da Constituição ter superestimado o caráter do indivíduo e
tem alguma coisa a ver com o capitalismo de consumo…”
“Isso é bem vago.”
“É vago mesmo. Eu não sou cientista político. Mas as consequências que
gera não são vagas; a realidade concreta dessas consequências é o que
define o nosso trabalho aqui.”
“Mas o Serviço já andava por aí antes dos decadentes anos sessenta.”
“Deixa o cara terminar.”
“Eu acho que os americanos de 1980 são loucos. Piraram. Regrediram de
algum jeito.”
“A falta de disciplina e de respeito pela autoridade entre aspas dos
decadentes anos setenta.”
“Se você não calar a boca eu vou te colocar no teto do elevador e você
pode ficar por lá mesmo.”
“Pode soar reacionário, eu sei. Mas todo mundo se sente assim. A gente
mudou a nossa forma de nos pensar como cidadãos. A gente não se vê mais
como cidadãos no sentido antigo de sermos uma pequena parte de uma
coisa bem maior e infinitamente mais importante com a qual a gente tem
sérias responsabilidades. A gente ainda se vê como cidadãos no sentido de
sermos beneficiários — nós realmente temos consciência dos nossos
direitos como cidadãos americanos e das responsabilidades que a nação tem
conosco e de garantir a nossa fatia do bolo. A gente se vê hoje como quem
vai comer o bolo e não como quem faz o bolo. Aí quem é que faz o bolo?”
“Não pergunte o que o seu país pode fazer por você…”
“As empresas fazem o bolo. Elas fazem e a gente come.”
“Provavelmente por causa da minha ingenuidade é que eu não quero
colocar isso em termos políticos, quando é provável e irredutivelmente uma
questão política. Alguma coisa aconteceu e a gente decidiu num nível
pessoal que tudo bem abdicar da nossa responsabilidade individual pelo
bem comum e deixar o governo se preocupar com o bem comum enquanto
a gente fica por aí cuidando dos nossos problemas individuais
autocentrados e lutando pra satisfazer os nossos vários apetites.”
“Alguma culpa certamente é das empresas e da publicidade.”
“É que eu não penso nas empresas como cidadãos. As empresas são
máquinas de produzir lucro; é isso que elas foram engenhosamente
projetadas pra fazer. É ridículo atribuir obrigações morais ou
responsabilidades morais às empresas.”
“Mas a grande genialidade tenebrosa das empresas é que elas permitem
recompensas individuais sem obrigações individuais. As obrigações dos
trabalhadores são com os executivos, as dos executivos são com o
presidente, a do presidente é com o quadro de diretores e as obrigações do
quadro são com os acionistas, que são os mesmos clientes que a empresa
vai foder na primeiríssima oportunidade em nome do lucro, lucro esse
distribuído como bônus para os mesmíssimos acionistas-barra-clientes que
eles estão fodendo em nome deles mesmos. Parece meio que um
contraponto de responsabilidade evitada a muitíssimas vozes.”
“Você está deixando de fora os sindicatos advogando pelos seus fundos
de pensão e os efeitos percentuais da SEC sobre o valor das ações.”
“Você é o próprio gênio da irrelevância, X. Isto não é um curso
universitário. O DeWitt está tentando ir fundo na coisa aqui.”
“As empresas não são cidadãos nem vizinhos nem parentes. Empresa não
vota nem serve o Exército. Empresa não aprende o juramento à bandeira.
Empresa não tem alma. Uma empresa é uma máquina de gerar lucro. Por
mim tudo bem. Acho absurdo colocar obrigações morais ou cívicas nas
empresas. A única obrigação de uma empresa é estratégica, e por mais que
ela possa acabar sendo muito complexa, na base uma empresa não é uma
entidade cívica. Com as empresas, eu não vejo problema no fato da política
regulatória e as atividades de policiamento do governo cumprirem a função
de uma consciência. O que é sim um problema pra mim aqui é isto de
parecer que nós enquanto cidadãos individuais adotamos uma atitude
empresarial. Que a nossa obrigação mais definitiva é com a gente mesmo.
Que a menos que seja ilegal ou traga consequências práticas diretas pra nós
mesmos, qualquer atividade está o.k.”
“Eu estou cada vez mais arrependido de ter entrado nessa conversa. Isso
aqui… você gosta de filmes?”
“E como.”
“Você está de brincadeira?”
“Nada melhor que ficar no sofazinho numa noite de chuva com um
betamax e um bom filme.”
“Imagine que alguém demonstre que o aumento da violência nos filmes
americanos tem correlação com o aumento nas estatísticas de crimes
violentos. Ou seja, imagine que as estatísticas não fossem meramente
sugestivas mas que elas de fato estabelecessem de forma conclusiva que o
aumento do número de filmes explicitamente violentos como Laranja
mecânica, O poderoso chefão ou O exorcista teve uma correlação causal
com as taxas de deterioração do mundo real.”
“E não vamos esquecer Meu ódio será sua herança. Fora que Laranja
mecânica é da Inglaterra.”
“Cala a boca.”
“Mas defina violência. Será que ela não significa coisas muitíssimo
diferentes pra pessoas diferentes?”
“Eu vou te jogar pra fora deste elevador, X, juro por Deus.”
“O que a gente devia esperar que as empresas de Hollywood que criam
os filmes fizessem? Será que a gente devia mesmo esperar que elas se
importassem com o efeito dos filmes delas na violência no mundo? A gente
podia fazer uma cena e mandar umas cartas enfurecidas. Mas as empresas,
apoiadas num monte de bobajada de RP, iam responder que estão no ramo
pra ganhar dinheiro pros acionistas, e que só iam dar a mínima bola pro que
essas estatísticas dizem do produto que elas comercializam se o governo as
forçasse a maneirar com a violência.”
“O que com certeza ia dar num problemão de violação da Primeira
Emenda.”
“Eu não acho que os estúdios de Hollywood pertençam aos acionistas;
acho que a grande maioria pertence a outras empresas.”
“Ou, se sei lá, se os frequentadores normais de cinema parassem de ir em
bando ver filmes ultraviolentos. O pessoal do cinema pode dizer que eles
estão fazendo o que uma empresa é feita pra fazer — atender uma demanda
e ganhar o máximo de dinheiro que for legalmente possível ganhar.”
“Esta conversa toda está um tédio.”
“Às vezes o importante é o tédio. Às vezes dá trabalho. Às vezes as
coisas importantes não são obras de arte pra sua diversão, X.”
“O que eu quero dizer é o seguinte. E desculpa, X, porque se eu soubesse
mais disso que estou falando, eu podia deixar as coisas claras mais rápido,
mas eu não estou acostumado a falar disso e nunca consegui dizer assim
com todas as palavras de um jeito organizado — isso tudo é mais um
tornadão na minha cabeça enquanto eu venho de carro de manhã pensando
no que tenho pra fazer no dia. A única coisa que eu quero dizer sobre
cinema é: será que essas estatísticas iam causar uma queda muito grande
nas plateias que vão lá ver esses filmes ultraviolentos em bando? Não iam.
E o doido é isso; é isso que eu quero dizer. O que é que a gente ia fazer? Na
hora do cafezinho a gente ia ficar reclamando das desgraçadas dessas
empresas sem alma que estão se fodendo pro estado geral da nação e que só
querem é saber de ganhar uma grana. Alguns iam escrever pra página de
opinião do Journal Star ou até pro seu deputado da região. Que eles deviam
fazer uma lei. Uma regulamentação, a gente ia dizer. Mas quando chegasse
o sábado à noite eles ainda iam ver qualquer um desses filmes violentos e
desgraçados que eles e as patroas quisessem ver.”
“É como se eles vissem o governo como o pai que vai lá tirar os
brinquedinhos perigosos deles, e enquanto não vai, eles vão continuar
brincando sem parar. Um brinquedo perigoso pra outras pessoas.”
“Eles não se veem como responsáveis.”
“Eu acho que o que mudou de alguma maneira é que eles não se veem
como pessoalmente responsáveis. Eles não veem a coisa como se o ato
pessoal, individual deles de ir comprar um ingresso pra O exorcista fosse o
que aumenta a demanda que mantém as máquinas empresariais criando
cada vez mais filmes violentos pra satisfazer a demanda.”
“Eles ficam esperando que o governo tome alguma providência.”
“Ou que as empresas criem alma.”
“Com esse exemplo fica bem mais fácil ver o que o senhor quer dizer, sr.
Glendenning”, eu disse.
“Eu não tenho certeza se O exorcista é o melhor exemplo. O exorcista é
mais doentio que violento. Agora O poderoso chefão — aquilo é que é
violência.”
“Eu nunca fui ver O exorcista porque a sra. G. disse que preferia que
cortassem todos os dedos das mãos e dos pés dela com uma tesoura cega do
que ter que aguentar uma porcaria dessas. Mas pelo que ouvi dizer e pelo
que eu li, era violento pacas.”
“Acho que a síndrome é mais aquela de não votar, de eu-sou-tão-
insignificante-e-os-outros-todos-são-tantos-que-o-que-eu-faço-não-vai-
fazer-diferença, e aí eles ficam em casa vendo As panteras em vez de ir
votar.”
“E resmungando e reclamando dos líderes eleitos.”
“Então de repente não é tanto a ideia de que o cidadão como indivíduo
não é responsável e sim que eles são tão insignificantes e o governo e o
resto do país são tão grandes que eles não têm como causar algum impacto
de verdade, então eles só precisam mesmo é cuidar da própria vida o
melhor que der.”
“Isso sem falar no tamanho dessas grandes empresas; é meio uma
questão de como é que o fato de um cara não comprar um ingresso pro
Poderoso chefão pode afetar a Paramount Pictures de alguma forma? O que
ainda é uma bobagem; é um jeito de racionalizar a nossa falta de
responsabilidade pela nossa partezinha minúscula de escolher os rumos do
país.”
“Isso tudo faz parte, eu acho. É duro sacar direitinho qual é a diferença.
Eu tenho medo de dar uma de velhusco e ficar dizendo que as pessoas não
têm consciência cívica como tinham nos bons e velhos tempos e que o país
está indo pras picas. Mas parece que antes os cidadãos — seja na questão
dos impostos ou de jogar lixo na rua, tanto faz —sentiam que faziam parte
de Tudo, que o imenso Todo Mundo que determinava as políticas, os gostos
e o bem comum era na verdade composto de um montão de indivíduos
iguais a eles, que eles na verdade faziam parte de Tudo e que precisavam
dar conta do que lhes cabia, participar com o que podiam e entender que o
que eles faziam tinha um peso igualzinho ao do que os outros faziam, se
fosse pro país continuar sendo um lugar bom.”
“Os cidadãos agora se sentem alienados. É meio eu-contra-todo-mundo.”
“Alienado é uma daquelas palavras dos anos sessenta.”
“Mas como foi que essa coisa toda alienada, pequena, de não-fazer-
diferença emergiu lá dos anos sessenta, já que se os anos sessenta
mostraram alguma coisa boa foi que cidadãos que pensam igual podem
pensar por eles mesmos e não ficar só engolindo o que o Sistema diz, que
eles podem se juntar e sair em passeata, agitar pedindo mudança e que as
coisas podem mudar; a gente sai do Vietnã, a gente ganha Saúde Pública e o
Ato de Direitos Civis e a liberação feminina.”
“Porque as empresas entraram no jogo e transformaram todos os
princípios, aspirações e ideologias legítimas numa série de modinhas e de
poses — eles transformaram a Rebelião numa atitude chique em vez de
num ímpeto real.”
“É fácil demais culpar as corporações, X.”
“E a palavra corporação justamente não vem de corpo, como
‘corporificado’? Pessoas artificiais foram sendo criadas. Que emenda, acho
que foi a Décima Quarta, que deu direitos e deveres de cidadãos pras
empresas?”
“Não, a Décima Quarta Emenda foi parte da Reconstrução e teve como
objetivo dar cidadania plena aos escravos libertos, e foi algum advogado
espertinho de alguma empresa que convenceu o Supremo de que as
empresas se encaixavam nos critérios da Emenda.”
“A gente aqui está falando de Empresas C, não é?”
“Porque é verdade — hoje em dia nem fica claro quando a gente diz
empresa se a gente está falando de Cs ou Ss, LLCs, associações corporativas,
fora que tem as fechadas e as públicas, fora as de fachada que na verdade
são só companhias limitadas entupidas de dações em pagamento pra gerar
perdas no papel, que são basicamente só parasitas do sistema tributário.”
“Fora que as Cs contribuem por taxação dupla, então é duro dizer que
elas não são só um negativo na esfera da receita.”
“Veja o meu olhar de total desprezo e menoscabo pra você, X; o que é
mesmo que você acha que a gente faz aqui?”
“Sem falar nos instrumentos fiduciários que funcionam quase da
mesmíssima maneira que as empresas. Fora as franqueadoras, entidades
fiscalmente transparentes, fundações sem fins lucrativos estruturadas como
instrumentos empresariais.”
“Nada disso tem importância. E não estou nem falando do que a gente
faz aqui a não ser na medida em que isso nos coloca na posição de ver
atitudes cívicas se extinguindo, já que não tem nada mais concreto que um
pagamento de impostos, que afinal de contas é o nosso dinheiro, enquanto
as obrigações e os lucros projetados dos pagamentos são abstratos, no nível
abstrato da nação inteira, do seu governo e dos concidadãos, então as
atitudes das pessoas em relação aos impostos parecem ser um dos lugares
em que a noção de civismo do indivíduo se revela nos termos mais diretos.”
“Não foi a Décima Terceira Emenda que os negros e as empresas
exploraram?”
“Deixa eu jogar ele daqui, sr. G., eu estou pedindo por favor.”
“Olha só uma coisa que vale mencionar. Foi nas décadas de 1830 e 40
que os estados começaram a conceder foros corporativos pra companhias
maiores e mais estruturadas. E foi em 1840 ou 41 que Tocqueville publicou
o livro dele sobre os americanos, e em algum lugar do livro ele fala que
uma coisa das democracias com o seu individualismo é que pela sua própria
natureza elas corroem a verdadeira noção de comunidade do cidadão, a
noção de que ele tem concidadãos reais cujos interesses e preocupações são
os mesmos dele. O que é uma ironia bem dolorosa, quando você para pra
pensar, se uma forma de governo criada pra produzir igualdade deixa os
seus cidadãos tão individualistas e autocentrados que eles acabam virando
uns solipsistas vidrados no próprio umbigo.”
“O Tocqueville também está falando de capitalismo e de mercados, que
basicamente andam de mão dada com a democracia.”
“Só que eu não acho que era isso que eu estava tentando dizer. É fácil pôr
a culpa nas empresas. O DeWitt está dizendo que se você acha que as
empresas são malvadas e que cabe ao governo moralizá-las, você está se
esquivando da sua própria responsabilidade cívica. Você está transformando
o governo no seu irmão mais velho e a empresa no valentão que o seu irmão
mais velho vai manter longe de você na hora do recreio.”
“O argumento do Tocqueville é que é da natureza do cidadão
democrático ser como uma folha que não acredita na árvore da qual ela faz
parte.”
“O que é interessante de um jeito meio deprimente é essa hipocrisia tácita
— eu, o cidadão, vou continuar comprando carrões que bebem um monte e
acabam com as árvores e ingressos pra ver O exorcista até o governo
proibir, mas aí quando o governo proibir mesmo eu vou ficar resmungando
contra o Grande Irmão e dizendo pro governo sair do nosso pé.”
“É só ver a taxa de fraude fiscal e a porcentagem de recursos depois da
malha fina.”
“É mais que eu quero evitar que você torre gasolina e veja Meu ódio será
sua herança, mas não eu.”
“Não aqui em casa é só o que se ouve por aí.”
“Uma mulher é esfaqueada perto do rio, todas as casas do quarteirão
ouvem os gritos, ninguém põe nem um pé pra fora de casa.”
“Pra não se envolver.”
“Alguma coisa aconteceu com as pessoas.”
“As pessoas dizendo malditas empresas de tabaco enquanto fumam.”
“Não é justo vir com uma análise do papel das empresas bem na hora
dessa espécie de declínio cívico que faça só uma demonização automática
das empresas. O programa empresarial de maximizar os lucros criando
demandas e tentando tornar a demanda inelástica pode ter um papel
catalisador nessa síndrome que o sr. Glendenning está tentando delimitar
sem ser o diabo ou estar determinado, sei lá, a dominar o mundo.”
“Pra mim o Nichols tem uma contribuição aí, viu?”
“Acho que ele está tentando dizer alguma coisa.”
“Porque eu acho que vai além da política, isso do civismo.”
“Eu pelo menos estou ouvindo aqui, Stuart.”
“Nem na árvore, agora é mais como folhas no chão e ao vento, sopradas
pra lá e pra cá pelo vento, e cada vez que sopra uma rajada o cidadão diz:
‘Agora eu escolho voar pra cá; é a minha decisão’.”
“Sendo que o vento é a ameaça empresarial do Nichols.”
“É quase mais uma questão metafísica.”
“Uôpa.”
“Ave-maria, cruz-credo.”
“E se isso que a gente está vendo agora for alguma transição da economia
e da sociedade entre a era da democracia industrial e o estágio que vem
depois, em que o objetivo da democracia industrial fosse a produtividade e
a economia dependesse de uma produção sempre crescente e a grande
tensão da democracia fosse entre as necessidades que a indústria tem de
políticas que favorecessem a produtividade e as necessidades dos cidadãos
de ao mesmo tempo se beneficiar dessa produtividade toda e ainda terem os
seus direitos e interesses básicos protegidos da ênfase simplória da indústria
em produção e lucro.”
“Eu não sei bem onde é que entra a metafísica aí, Nichols.”
“De repente nem é metafísica. De repente é existencial. Eu estou falando
do medo profundo e muito individual do cidadão americano, o mesmo
medo básico que eu e você temos e que todo mundo tem só que ninguém
fala a não ser os existencialistas naquela prosa enrolada em francês. Ou o
Pascal. A nossa pequenez, a nossa insignificância, a nossa mortalidade, a
minha e a de vocês, a coisa em que nós todos passamos o tempo inteiro não
pensando diretamente, que nós somos minúsculos e estamos à mercê de
forças poderosas, que o tempo não para de ir embora e que todo dia nós
perdemos mais um dia que não volta nunca mais, que a nossa infância
acabou, a nossa adolescência, o vigor da juventude, e logo, logo a nossa
vida adulta, que tudo que a gente vê em volta o tempo todo está decaindo e
indo embora, tudo está indo embora, que nem a gente, que nem eu, e uma
vez que esses primeiros quarenta e dois anos passaram tão rápido não vai
demorar muito pra eu também ir embora, e sabe lá quem foi inventar esse
modo tão apropriado de dizer ‘morrer’, ‘ir embora’… até o som me deixa
do jeito que eu fico num fim de domingo de inverno…”
“Alguém sabe as horas? Faz quanto tempo que a gente está aqui, três
horas?”
“E não é só isso, mas todo mundo que me conhece ou sabe que eu existo
vai morrer, e aí todo mundo que conhece essas pessoas e tem até uma
chance remota de ter ouvido falar de mim vai morrer, e assim por diante, e
as lápides e os monumentos onde a gente gasta o nosso dinheiro pra garantir
que as pessoas vão se lembrar de nós vão durar o quê… cem anos?
Duzentos? E vão desmoronar, a grama e os insetos que a minha
decomposição vai alimentar vão morrer, os frutos deles, ou se eu for
cremado as árvores que forem nutridas pelas minhas cinzas sopradas pelo
vento ou vão morrer ou vão ser cortadas ou apodrecer, e a minha urna vai
apodrecer, e antes talvez de três ou quatro gerações vai ser como se eu
nunca tivesse existido, eu não só vou ter ido embora mas vai ser como se eu
nunca tivesse estado aqui, e as pessoas em 2014 ou sei lá quando não vão
pensar mais em Stuart A. Nichols Jr. do que eu ou vocês pensamos em John
T. Smith, 1790 a 1864, de Livingston, Virginia, ou alguém assim. Tudo está
no fogo, num fogo lento, e nós todos estamos a menos de um milhão de
respirações de distância de um esquecimento mais total do que podemos, na
verdade, nos forçar a conceber, e provavelmente por isso essa obsessão
doentia dos Estados Unidos com produtividade, produção, produção,
impacto global, contribuição, dar forma à realidade, ajudar a nos distrair do
quanto nós somos pequenos e totalmente insignificantes e temporários.”
“Isso devia ser novidade pra nós. Extra! Extra! A gente vai morrer.”
“Por que você acha que as pessoas fazem seguro de vida?”
“Deixa o cara terminar.”
“Agora além de chato isto ficou depressivo.”
“O capitalista pós-produção tem alguma coisa a ver com a morte do
civismo. Mas também o medo da insignificância e da morte e de tudo estar
pegando fogo.”
“Eu estou sentindo cheiro de Rousseau na base aqui, bem que nem
quando você estava falando do Tocqueville antes.”
“Como sempre o DeWitt está bem na minha frente. Provavelmente
começa mesmo com Rousseau, a Carta Magna e a Revolução Francesa.
Essa ênfase no homem enquanto indivíduo e nos direitos e possibilidades
do indivíduo em vez das responsabilidades do indivíduo. Mas as empresas,
o marketing, as relações públicas, a criação do desejo e da necessidade de
alimentar toda a produção doentia, o jeito da publicidade e do marketing
modernos seduzirem o indivíduo dando corda a todas as ilusõezinhas
psíquicas que a gente usa pra se esquivar do horror da insignificância e da
impermanência, possibilitando a ilusão de que o indivíduo é o centro do
universo, a coisa mais importante — e eu estou falando do indivíduo
individual, o carinha pequenininho vendo televisão ou ouvindo rádio ou
folheando uma revista colorida ou olhando pra uma placa ou em qualquer
um dos milhões de jeitos diferentes em que esse cara entra em contato com
a mentira com M maiúsculo da Burson-Marsteller ou da Saachi & Saachi,
de que ele é a árvore, de que a primeira responsabilidade dele é com a sua
própria felicidade, de que todos os outros são uma grande massa cinza e
abstrata e que a vida dele depende de não se misturar a essa massa, de ser
um indivíduo, de ser feliz.”
“Fazer o que você está a fim de fazer.”
“Essa é a sua praia.”
“Rebentar os grilhões da autoridade e do conformismo, do conformismo
autoritário.”
“Vou precisar usar o banheiro daqui a pouquinho, desculpa.”
“Isso é mais os anos sessenta que Revolução Francesa, cara.”
“Mas se eu estou entendendo o que o DeWitt está querendo dizer, o
fulcro foi aquele momento nos anos sessenta em que a rebelião contra a
conformidade virou moda, virou pose, um jeito de parecer bacanão pros
outros da sua geração que você queria impressionar e que você queria que
te aceitassem.”
“Ou que fossem pra cama com você.”
“Porque no instante em que eu me torno não só uma atitude mas uma
atitude chique, é aí que as empresas e os seus publicitários podem entrar em
cena e começar a reforçar essa posição e seduzir as pessoas com ela, pra
elas comprarem as coisas que as empresas estão produzindo.”
“A primeira vez foi a 7 Up com aquele psicodelismo à la Sgt. Pepper’s e
aquela rapaziada de costeleta dizendo ‘a Anti-Cola’.”
“Mas espera aí. A rebelião dos sessenta de um monte de jeitos foi contra
as empresas e o complexo militar industrial.”
“Os ‘homens dos ternos cinzentos’.”
“Aliás, por que isso de terno cinzento? Alguém aí sabe por que não azul-
marinho ou preto?”
“Pra mim cinzento é só pra roupa de ficar em casa, cara.”
“O sr. Glendenning está acordado mesmo?”
“Ele está superpálido.”
“Todo mundo fica com cara de pálido no escuro, cara.”
“Mas será que existe símbolo mais total de conformidade e de seguir a
banda do que as empresas? Linha de montagem, relógio de ponto e subir na
carreira até ganhar um escritório com janela? Você foi lá auditar na
Rayburn-Thrapp, Gaines. Aqueles caras não conseguem limpar a bunda
sem um memorando de diretrizes.”
“Mas a gente não está falando da realidade interna da empresa. A gente
está falando do rosto e da voz que os publicitários das empresas começaram
a usar no fim dos anos sessenta pra convencer o consumidor a achar que
precisa daquilo tudo. Começam falando que a psique do consumidor está
escrava do conformismo e de como o jeito de acabar com o conformismo
não é fazer certas coisas mas comprar certas coisas. Você transforma
comprar certa marca de roupas ou de refrigerante ou de carro ou de gravata
num gesto do mesmo nível de representatividade ideológica que usar barba
ou protestar contra a guerra.”
“O Virginia Slims e as feministas.”
“Alka-Seltzer.”
“Acho que a ligação com a coisa do eu-vou-morrer me escapou aqui em
algum momento.”
“Eu acho que o Stuart está delineando a passagem do modelo de
produtividade da democracia americana pra uma coisa mais parecida com
um modelo de consumo, em que a produção empresarial depende de um
enfoque de equipe enquanto ser consumidor é uma empreitada solo. Que
nós estamos virando cidadãos consumidores em vez de cidadãos
produtores.”
“Só espere dezesseis trimestres até 1984. Só espere o tsunâmi de
anúncios e de RP pra promover esse ou aquele produto de uma empresa
como a melhor maneira de fugir dos cinzentos totalitarismos 1984-enses do
presente orwelliano.”
“Como é que comprar um ou outro tipo de máquina de escrever ajuda a
subverter o controle estatal?”
“Não vai ser o governo daqui a uns anos, sacou?”
“E também não vai ter mais máquina de escrever. Todo mundo vai ter uns
teclados plugados direto num tipo de VAX central, e as coisas nem vão mais
ser no papel.”
“Escritórios livres de papel.”
“O que vai significar a obsolescência do nosso amigo Stu aqui.”
“Não, vocês estão deixando escapar a genialidade da coisa toda. Vai ser
tudo no mundo das imagens. Vai haver esse incrível consenso político de
que a gente precisa escapar do confinamento e da rigidez do conformismo,
do cadavérico mundo fluorescente dos escritórios e das planilhas
orçamentárias, de ter que usar gravata e ouvir música de elevador, mas as
empresas vão poder representar padrões de consumo como formas de você
se libertar — use esse tipo de calculadora, escute esse tipo de música, use
esse tipo de sapato porque todo mundo está usando sapatos conformistas.
Vai ser uma era de uma prosperidade e de um conformismo incríveis e de
demografia de massa em que todos os símbolos e a retórica vão apelar para
revolução, crise e audaciosos indivíduos antenados que ousam nadar contra
qualquer corrente se alinhando com marcas que investem pesado numa
imagem de rebelião. Essa campanha gigante de RP pra enaltecer o indivíduo
vai solidificar mercados enormes formados por pessoas cuja convicção
inata de serem solitárias, sem-par, não grupais vai ser afagada a todo
instante.”
“Mas que papel o governo vai ter nesse cenário meio 1984?”
“Bem como o DeWitt falou — o governo vai ser o pai, com todo o peso
das ambivalências amor-ódio-necessidade-desafio que cercam a figura
paterna na mente adolescente, e nesse caso aqui eu discordo
respeitosamente do DeWitt na medida em que não acho que a nação
americana hoje em dia seja infantil mas sim adolescente — quer dizer,
ambivalente no seu desejo tanto de estruturação autoritária quanto do fim da
hegemonia paterna.”
“Nós vamos ser a polícia que eles chamam quando a festa destrambelha.”
“Dá pra ver onde isso vai parar. A extraordinária apatia política que se
seguiu a Watergate e ao Vietnã e a institucionalização da rebelião
comunitária entre as minorias só vão se aprofundar. Política depende de
consenso, e o legado publicitário dos anos sessenta diz que consenso é
repressão. Votar vai ser coisa de otário: os americanos hoje votam pensando
no bolso. O único papel cultural do governo vai ser o de pai tirânico que é
foco simultaneamente do nosso ódio e das nossas necessidades. Pode
esperar a gente eleger alguém que consiga se colocar na imagem do
Rebelde, quem sabe até um caubói, mas que lá no fundo a gente vai saber
que é uma criatura burocrática que vai funcionar dentro do mecanismo
governamental em vez de ficar ingenuamente dando murro em ponta de
faca que nem a gente viu o coitadinho do Jimmy fazer por quatro anos.”
“O Carter representa o último suspiro do idealismo Novas Fronteiras dos
anos sessenta, então. A obviedade da decência e da impotência política dele
ficou fundida na psique dos eleitores.”
“Pode esperar um candidato que consiga fazer pelo eleitorado o que as
empresas estão aprendendo a fazer, pra que aí o governo — ou, melhor, o
Grande Governo, o Grande Irmão, o Governo Intrusivo — possa virar a
imagem contra a qual esse candidato se define. Ainda que paradoxalmente,
pra essa persona ganhar peso o candidato também vai ter que ser cria do
governo, um cara de dentro, com um séquito de burocratas e
implementadores tarados que vão ser capazes de ler e de tocar de verdade a
máquina. Fora, claro, um orçamento gigantesco de campanha, cortesia de
vocês sabem quem.”
“Nós já estamos muito, mas muito longe do que eu comecei tentando
descrever como as minhas ideias a respeito da relação dos contribuintes
com o governo.”
“Isso descreve o Reagan ainda melhor que o Bush.”
“É que o simbolismo do Reagan é na cara demais. É só a minha opinião.
Claro que a coisa maravilhosa pro Serviço no que se refere à possível
presidência Reagan é que ele já é oficialmente um anti-imposto. Direto, sem
meias-palavras. Nada de aumentar a taxação — pra dizer a verdade, em
New Hampshire ele chegou a dizer oficialmente que quer baixar as
alíquotas.”
“Isso é bom pro Serviço? Mais um político tentando marcar pontos
sentando o pau no sistema tributário?”
“Minha opinião: estou prevendo uma chapa Bush-Reagan. Reagan pelo
simbolismo, o caubói; Bush como a cria do sistema, quietinho, fazendo o
trabalho nada atraente do gerenciamento propriamente dito.”
“Pra não falar daquele discurso dele de aumentar os gastos com a defesa.
Como é que dá pra baixar as alíquotas e aumentar o orçamento da defesa?”
“Até uma criancinha enxerga a contradição nisso.”
“O Stuart está dizendo que é bom pro Serviço porque baixar as alíquotas
mas aumentar os gastos só pode acontecer se o recolhimento de impostos
for mais eficiente.”
“O que significa que acabou a rédea curta. O que significa que as cotas
do Serviço disparam.”
“Mas também significa uma redução silenciosa dos limites sobre as
nossas auditorias e os nossos mecanismos de coleta. O Reagan vai deixar a
gente na posição de ser o Grande Irmão voraz e fascinoroso que ele
secretamente precisa ter. Nós — os contadores de boquinha fechada, com
ternos sem graça e óculos fundo de garrafa —, nós viramos Governo: a
autoridade que todo mundo tem o direito de odiar. Enquanto isso o Reagan
triplica o orçamento do Serviço e transforma a tecnologia e a eficiência em
objetivos sérios. Vai ser a melhor era do Serviço desde 45.”
“Mas ao mesmo tempo aumentando o ódio que os contribuintes têm do
Serviço.”
“Coisa que, paradoxalmente, um Reagan ia precisar fazer. Um tratamento
mais agressivo dos contribuintes pelo Serviço, sobretudo se for uma coisa
bem pública, ia aparentemente deixar gravada na cabeça do eleitorado uma
imagem fresca e eminentemente descartável do Grande Governo contra a
qual o Presidente Rebelde Outsider podia continuar a se definir e que ele
podia denunciar como o tipo de intrusão do governo na vida e nos bolsos
dos americanos trabalhadores que ele entrou na eleição pra contestar.”
“Você está dizendo que o próximo presidente vai conseguir continuar se
definindo como Rebelde e Renegado quando estiver de fato na Casa
Branca?”
“Você ainda está subestimando a necessidade que os contribuintes têm de
uma mentira, de uma retórica de superfície que eles possam continuar
repetindo enquanto no fundo ficam tranquilos sabendo que o Papai está
cuidando de tudo e todo mundo ainda está em segurança. Exatamente como
os adolescentes fazem uma puta cena pra se rebelar contra a autoridade
paterna enquanto ainda pegam as chaves do carro do Papai e usam o cartão
de crédito do Papai pra encher o tanque. O novo líder não vai mentir pro
povo; ele vai fazer o que os pioneiros do mundo empresarial descobriram
que funciona bem melhor: vai adotar a persona e a retórica que permitam
que as pessoas mintam para si próprias.”
“Vamos só dar uma voltadinha aqui pra ver como é que um Bush ou um
Reagan triplicaria o orçamento do Serviço? Isso ia ser bom pra nós em nível
Distrital? Quais seriam as implicações para uma Peoria ou uma Creve
Coeur?”
“Claro que a maravilhosa dupla ironia do candidato que quer Reduzir o
Governo é ele ser financiado pelas empresas que são as cacundas em que o
governo tende a cair mais pesado. As empresas, como o DeWitt lembrou,
cujos cerebrozinhos mirrados só se acendem ao pensar em lucro e
expansão, e que bem no fundo a gente espera que o governo mantenha sob
controle porque nós não temos capacidade de resistir às seduções
consumistas que elas aprontam graças ao nosso próprio caráter, e cujo apelo
ao pretenso rebelde é a retórica moderna que vai eleger Bush e Reagan pra
começo de conversa, e que vão se beneficiar imensamente com a
desregulamentação tipo laissez-faire que Bush-Reagan vão fazer o
eleitorado acreditar que vai ser empreendida em seu próprio interesse
populista — em outras palavras, nós vamos ter como presidente um
Rebelde simbólico contra o seu próprio poder e cuja eleição foi apoiada por
máquinas de lucro desumanas e desprovidas de alma cuja conquista da vida
espiritual e cívica dos Estados Unidos vai convencer os americanos que a
rebelião contra a desumanidade desprovida de alma da vida empresarial vai
consistir em comprar produtos das empresas que representem melhor a vida
empresarial como algo vazio e desprovido de alma. A gente vai ter uma
ditadura do não conformismo conformista presidida por um outsider
simbólico cuja própria eleição dependeu da nossa profunda convicção de
que essa persona é totalmente fajuta. Um poder exercido através de uma
imagem, que por ser tão vazia deixa todo mundo apavorado — eles são
pequenos e vão morrer, afinal…”
“Jesus, a coisa da morte de novo.”
“… e cujo terror de nem mesmo existir deixa todo mundo ainda mais
suscetível ao canto ontológico da sereia que é a gestalt empresarial do
compre-pra-se-destacar-e-então-existir.”
§ 20

A família tranquila e boa-praça que morava a duas casas de Lotwis (que


se aposentou depois de trinta anos a serviço do Tabelionato do Condado) e
da mulher de Lotwis foi então substituída por uma mulher solteira de
origem e ocupação desconhecidas que tinha dois cachorrões que faziam
muito barulho. Até aí tudo bem. Lotwis tinha lá o seu cachorro que latia
bastante, e não só ele na vizinhança. A vizinhança era dessas em que os
cachorros das pessoas ficavam latindo atrás da cerca e as pessoas às vezes
queimavam lixo ou guardavam carros destruídos no quintal. A vizinhança
agora era classificada como semirrural no tabelionato, mas nos anos de
Eisenhower, de Kennedy e de Johnson tinha sido classificada como Subd.
Classe 2, uma classe de desenvolvimento, na verdade a primeira subdivisão
registrada na cidade. Não tinha pego o embalo, se tornado chique e se
espalhado como Hawthorne 1 e 2 ou Yankee Ridge, construídas lá nos anos
70 em terras confiscadas de fazendeiros com dívidas a leste da cidade. Eram
vinte e oito casas em duas ruas asfaltadas e perpendiculares, e assim tinha
ficado, e a parte da cidade que se espalhou para o sul para se aproximar dela
não era chique, era só indústria leve e uns depósitos e fornecedores de
sementes, e os únicos desenvolvimentos em termos assim de habitação
básica mais ou menos perto era um parque grandão de trailers e um menor
que limitavam os dois com a antiga subdivisão a norte e a oeste; no sul
ficava a interestadual e uns fazendões que iam até lá naquela cidadezinha
simpática de plantadores que era Funk’s Grove uns vinte quilômetros ao sul
indo pela 51. Mas então. Lotwis podia ver, se estivesse no telhado cuidando
das calhas ou da tela da chaminé, um ferro-velho e as carnes de atacado e
cortes especiais Southtown, que era, quando você esquecia esse palavrório
chique, um açougue. Mas então, o pessoal que morava ali que os Lotwis
tinham visto se mudar bem devagar e povoar a vizinhança era tudo gente
com tendência de independente que estava disposta a morar perto de
parques de trailers, de um matadouro e ter um carteiro rural que trazia as
cartas com o seu próprio carro e se inclinava todo para fora para colocar nas
caixas da rua, tudo em troca dos benefícios de morar numa zona Classe 2
sem casas amontoadas nem regras cheias de detalhes sobre queimar lixo ou
deixar o cano de saída da máquina de lavar dando direto na sarjeta ali da rua
ou sobre cachorros com sangue nas veias que eram verdadeiros cães de
guarda e latiam que nem loucos no meio da noite.
“Que bom que você disse isso”, ela falou. Seu nome era Toni; ela tinha se
apresentado quando ele foi até a porta dela. “Agora eu vou saber. Se alguma
coisa acontecer com esses cachorros. Se eles fugirem ou aparecerem
mancando, ou qualquer coisa, eu mato você, mato a sua família, queimo a
sua casa e espalho sal no terreno. Eu não tenho nada na vida a não ser esses
cachorros. Se eles quiserem correr eles vão correr. Se você não gostar pode
vir se entender comigo. Mas se fizerem alguma coisa com esses cachorros
eu vou concluir que foi você e vou sacrificar a minha vida e a minha
liberdade pra destruir você e todo mundo que você ama.”
Daí Lotwis achou melhor deixar ela em paz.
§ 21

Esfregando os olhos exausto. “Então deixa ver se eu entendi direito.


Sobre $218 000 de entrada bruta no seu Formulário C o senhor lucra $37
000 líquidos.”
“Está tudo documentado. Eu forneci todos os recibos e as W-2.”
“Sei, as W-2. A gente tem $175 471 em W-2s de dezesseis funcionários
— investigadores, gente de logística, auxiliares de pesquisa.”
“Está tudo aí. O senhor tem as cópias dos recibos deles.”
“Só que o que eu acho curioso aqui é que eles estão todos numas
alíquotas incrivelmente baixas. Supermal pagos. Por que não quatro ou
cinco funcionários bem pagos?”
“O funcionamento desse meu ramo é bem complexo. A maior parte do
trabalho é mal paga mas toma muito tempo.”
“Só que eu bati um papo com uma das auxiliares de pesquisa — uma
certa Thelma Purler.”
“Ulp.”
“No Centro de Assistência Permanente Oakhaven, onde ela mora.”
“Ulp.”
“Numa cadeira de rodas, com uma daquelas cornetas acústicas
antiquadas até pra poder ouvir as perguntas, e ela respondeu… deixa eu
ver” — verificando as anotações — “Fprfifta, fprifta fprifta fprita.”
“Eu ãh é.”
Desligando o gravador, que não tem fita dentro.
“Portanto se trata de uma potencial fraude fiscal, que é problema da DIC e
não do meu departamento. A gente podia conversar com outros desses
funcionários ou ir catar alguns. O senhor vai acabar na cadeia. Então olha
só o que a gente pode fazer. O senhor tem uma janela de uma hora para
preencher uma 1040 retificadora referente ao exercício passado. Na qual o
senhor vai omitir as deduções referentes a contribuições trabalhistas. O
senhor paga o imposto que deve de verdade mais as multas de mora e de
declaração a menor. O senhor segue com um funcionário deste
departamento até o seu banco, onde o senhor preenche um cheque
administrativo com o valor total. Neste momento eu destruo a sua
declaração original, e a DIC não recebe um comunicado.”
§ 22

Eu nem sei direito o que dizer aqui. Pra te falar a verdade, um pedação eu
nem lembro. Acho que a minha memória não está mais funcionando que
nem antes. Pode ser que esse tipo de trabalho mude a gente. Até só isso das
análises. Pode mudar mesmo o cérebro do cara. No geral, é quase como se
eu estivesse preso no presente. Se eu tomasse, por exemplo, um Tang, eu
não ia me lembrar de nada — só ia sentir gosto de Tang.
Até onde entendi, é pra eu explicar como foi que cheguei a essa carreira.
De onde eu vim, por assim dizer, e o que o Serviço representa pra mim.
Acho que a verdade é que eu era o pior tipo de niilista — o tipo que nem
percebe que é niilista. Eu era que nem uma folha de papel na rua, voando no
vento e pensando: “Agora acho que eu vou pra cá, agora acho que eu vou
pra lá”. A minha resposta essencial pra tudo era “Tanto faz”.
Isso principalmente depois do colegial, quando fiquei à deriva por vários
anos, entrando e saindo de três universidades diferentes, uma delas duas
vezes, e de quatro ou cinco cursos diferentes. Um deles era só uma
habilitação. Eu era basicamente um lesado. No fundo eu não tinha
motivação, o que o meu pai chamava de “iniciativa”. Além disso, lembro
que tudo naquela época era bem vago e abstrato. Eu me inscrevi num monte
de disciplinas de psicologia e ciência política, literatura. Umas aulas em que
tudo era vago, abstrato, aberto a interpretações, e aí as interpretações eram
abertas a mais interpretações. Eu escrevia os meus trabalhos à máquina no
dia de entregar e normalmente tirava um B com um “Interessante em certos
trechos” ou “Nada mal!” escrito embaixo da nota como comentário
didático. A coisa toda era meio automática; não significava nada — até o
sentido geral das próprias aulas era que nada significava nada, que tudo era
abstrato e infinitamente interpretável. Só que, claro, não estava em
discussão o fato de você ter que entregar os trabalhos, ter que fazer toda a
sua parte automática, apesar de ninguém explicar por quê, qual era
supostamente a sua motivação final. Eu tenho 99% de certeza que só cursei
uma turma de introdução à contabilidade nesse tempo todo, e fui bem até a
gente chegar nos cronogramas de depreciação, a coisa do método direto em
comparação com a depreciação acelerada, e a combinação de dificuldade
com tédio extremo dos cronogramas de depreciação detonou a minha
iniciativa, principalmente depois que perdi umas aulas e me atrasei com o
conteúdo, o que com depreciação é fatal — acabei largando essa disciplina
e fui reprovado. Isso na Lindenhurst College — a turma de introdução que
eu peguei depois no DePaul tinha o mesmo nome mas uma ênfase meio
diferente. Lembro também que esses abandonos irritavam o meu pai bem
mais que uma nota baixa, dá pra entender.
Em três ocasiões diferentes desse período desmotivado eu larguei a
universidade e tentei o que as pessoas chamam de empregos de verdade. Fui
segurança num estacionamento em North Michigan, recolhi ingressos na
entrada da Liberty Arena, fiquei um tempinho na fábrica da Cheese Nabs
operando o injetor de produtos de queijo, trabalhei numa empresa que fazia
e instalava pisos de ginásios esportivos. Aí, depois de um tempo, eu não
aguentava mais o tédio dos empregos, todos incrivelmente chatos e sem
sentido, pedia demissão e ia me matricular em algum lugar e
essencialmente tentava começar a universidade de novo. O meu histórico
escolar parecia um trabalho de colagem. Dá pra entender que essa rotina foi
dando nos nervos do meu pai, que era supervisor contábil de custos da
cidade de Chicago — apesar de nessa época ele estar morando em
Libertyville, que a gente pode descrever como um subúrbio burguês chique
do Norte. Ele dizia, seco e com uma expressão neutra, que eu estava a
caminho de virar um excelente fogo de palha profissional. Era o jeito dele
de pegar no meu pé. Ele lia muito e curtia umas expressões secas,
sardônicas. Se bem que noutra situação, depois de eu ter sido reprovado ou
de ter abandonado alguma universidade e voltado pra casa, lembro que
estava na cozinha pegando alguma coisa pra comer e ouvi ele discutir com a
minha mãe e a Joyce, dizendo que eu não conseguia achar minha bunda
nem usando as duas mãos. Foi a vez que acho que vi ele mais puto nessa
minha época de dispersão. Não lembro exatamente o contexto, mas por
saber como o meu pai era um sujeito digno e todo reservado, tenho certeza
de que devo ter feito alguma coisa especialmente irresponsável ou patética
pra deixar ele daquele jeito. Não lembro da reação da minha mãe nem como
acabei ouvindo o comentário, já que bisbilhotar as conversas dos pais
parece coisa que só uma criança bem pequena ia fazer.
A minha mãe era mais tolerante, e toda vez que o meu pai começava a
pegar no meu pé por causa dessa coisa da falta de rumo, a minha mãe me
defendia um tempo e dizia que eu estava tentando achar meu caminho na
vida, que nem todo caminho vem indicado com luz de neon que nem pista
de pouso e que eu tinha o direito de procurar esse caminho e deixar as
coisas irem acontecendo. Pelo que eu entendo de psicologia básica, é uma
dinâmica bem típica — filho descarado e sem direcionamento, mãe
tolerante que acredita no potencial dele e defende o filho, pai emputecido
que critica sem parar e pega no pé do filho mas ainda assim, na hora do
vamos ver, sempre assina o chequinho pra próxima universidade. Lembro
do meu pai se referindo a dinheiro como “o solvente universal da
ambivalência” em relação a esses cheques pra universidade. É preciso
mencionar que a minha mãe e o meu pai estavam amigavelmente
divorciados nessa época, o que também era bem típico daqueles tempos,
então também tinha toda aquela dinâmica típica do divórcio, em termos
psicológicos. O mesmo tipo de dinâmica que provavelmente estava rolando
em casas do país inteiro — o filho tentando se rebelar meio que de forma
passiva enquanto ainda estava financeiramente amarrado aos pais, e toda
essa coisa psicológica bem típica que vem no pacote.
Enfim, tudo isso na região de Chicago nos anos 70, período que agora
parece tão abstrato e disperso quanto eu era. De repente o Serviço e eu
temos isto em comum — que a década passada parece bem mais distante do
que foi de verdade, por causa do que aconteceu nesse meio-tempo. Quanto
a mim, eu tinha dificuldade até pra prestar atenção, e as coisas que eu
lembro agora em geral parecem sem sentido. Quer dizer: lembrar de
verdade, não só ter uma impressão geral das coisas. Lembro que eu tinha
um cabelo bem compridinho, assim comprido dos quatro lados, e eu
também dividia do lado esquerdo e mantinha o cabelo no lugar com um
spray que vinha numa lata bordô. Lembro da cor dessa lata. Eu não consigo
pensar no meu cabelo dessa época sem meio que tremer. Lembro das coisas
que eu usava — muito laranja-queimado e marrom, muita estampa de
cashmere com bastante vermelho, calça boca de sino de veludo, helanca e
náilon, colarinhos largos, coletes de brim. Eu tinha um pingente com o
símbolo da paz que pesava quase meio quilo. Docksiders, botas Timberland
amarelas e uma bota bacana e brilhante de couro marrom com zíper do lado
e só os biquinhos aparecendo por baixo da boca de sino. Cordãozinho de
couro no pescoço pra mostrar sensibilidade. A psicodelia de mercado. A
obrigatória jaqueta de camurça. Os jeans com a barra arrastando no chão e
se desfazendo num mar de fios brancos. Cintos largos, meias brancas, tênis
japoneses. O guarda-roupa-padrão. Lembro das japonas redondas e infladas
de inverno, de náilon e plumas, que deixavam todo mundo parecendo uma
bexiga de parque de diversões. Das calças brancas de pintor que pinicavam,
com alças do lado da coxa pras supostas ferramentas. Lembro de todo
mundo desprezar o Gerald Ford não tanto por ter perdoado o Nixon mas por
viver caindo. Todo mundo detestava o cara. Das calças jeans de grife bem
azuis. Lembro daquela tenista feminista, a Billie Jean King, ganhando do
que parecia ser um jogador velho e frágil na televisão e a minha mãe e todas
as amigas dela muito empolgadas com aquilo. “Porco chauvinista”,
“liberação feminina” e “estagflação”, tudo isso me parecia obscuro e
indistinto naquela época, era como ouvir ruídos de fundo sem prestar muita
atenção. Não lembro o que eu fazia com toda a minha atenção de verdade,
pra onde ela estava indo. Eu nunca fazia nada, mas ao mesmo tempo não
conseguia ficar parado e prestar atenção no que estava acontecendo de
verdade. É difícil explicar. Eu meio que me lembro de um Cronkite mais
jovem, de Barbara Walters e Harry Reasoner — acho que eu não via muito
noticiário na televisão. De novo, tenho a impressão de que isso fosse mais
típico do que eu pensava na época. Se tem uma coisa que você aprende nas
Análises Moleza é como a maioria das pessoas é desorganizada e desatenta
e como elas não prestam muita atenção no que está acontecendo fora da
esfera pessoal delas. Alguém chamado Howard K. Smith também estava
direto no jornal, eu lembro. A gente quase não escuta mais a palavra gueto
hoje em dia. Lembro da briga entre Acapulco Gold e Colombia Gold, da
Ritalina contra o Ritadex, Cylert e Obetrol, Laverne e Shirley, Café da
Manhã Instantâneo Carnation, John Travolta, discoteca e camisetas infantis
com o “Fonz”. E das camisetas do Robert Crumb que a minha mãe adorava,
com os sapatos e as solas de todo mundo parecendo anormalmente grandes.
De realmente preferir, como quase todas as crianças da minha idade, Tang e
não suco de laranja de verdade. De Mark Spitz e Johnny Carson, da
celebração de 1976 com frotas de navios antigos entrando no porto na
televisão. De ir fumar maconha depois da aula no colegial e aí assistir TV e
comer Tang direto do saquinho com o dedo, molhando o dedo e enfiando lá
dentro sem parar, até eu espiar e não acreditar quanto eu já tinha comido.
De ficar ali sentado com os meus amigos lesados e assim por diante — e
nada disso tinha nenhum sentido. É como se eu estivesse morto ou
dormindo sem nem ter consciência disso, como naquela frase de Wisconsin:
“Nem se deu ao trabalho de deitar”.
Lembro de conseguir Dexedrina no colegial com um garoto que tinha
uma mãe com úlcera péptica, e o gosto esquisito daquilo, e de como era
impressionante o jeito que ela tinha de fazer sumir aquela coisa de contar
enquanto eu lia ou falava — o apelido dos comprimidinhos era beleza negra
— mas como depois de um tempo eles te deixavam com dor nas costas e
um hálito horrível, horrível mesmo. Você ficava com um gosto na boca
igual ao cheiro de um sapo morto há um tempão dentro de um pote de vidro
embaçado na aula de biologia quando você abria o pote. Ainda me dá nojo
só de pensar. Teve também aquele período que a minha mãe ficou tão
transtornada pelo fato do Nixon ter sido reeleito tão fácil, coisa que lembro
porque foi mais ou menos quando tentei usar Ritalina, que eu comprei de
um cara na aula de culturas do mundo que tinha um irmãozinho no primário
que supostamente tomava Ritalina por indicação de um médico que não
cuidava muito bem do seu bloquinho de receitas, e que tinha gente que não
achava que ela era grandes coisas comparada com a beleza negra, a
Ritalina, mas eu gostava pacas, primeiro porque com aquilo era possível
ficar sentado estudando bastante tempo, e era até interessante, coisa que eu
achava muito, mas muito legal, mas foi duro parar de usar — a Ritalina —
principalmente depois que, claro, o tal irmãozinho surtou um dia no
primário por não ter tomado a Ritalina e os pais e o médico descobriram as
irregularidades com as receitas e de repente não tinha mais o camaradinha
espinhento com óculos escuros cor-de-rosa vendendo comprimidos de
Ritalina a quatro doletas no corredor dos armários da escola.
Parece que eu lembro que em 1976 o meu pai previu abertamente a
presidência Reagan e até mandou uma doação pra campanha deles — se
bem que pensando agora eu nem acho que o Reagan disputou a presidência
em 76. Isso era a minha vida antes da repentina mudança de direção e de eu
acabar entrando pro Serviço. As meninas usavam bonés ou chapéus de
brim, mas os caras em geral eram uns bocós se usassem chapéu. Chapéu era
motivo de piada. Boné era pros capiaus do interior. Se bem que os caras
mais velhos e mais sérios ainda usavam às vezes aqueles chapéus tipo
profissional na rua. Eu me lembro do chapéu do meu pai melhor que do
rosto dele por baixo. Eu ficava imaginando como seria a cara do meu pai
quando ele estava sozinho — quer dizer, a expressão do rosto, os olhos —
quando ele ficava sozinho no escritório dele no trabalho lá no anexo da
prefeitura no centro e não tinha ninguém que o levasse a adotar uma certa
expressão. Lembro que o meu pai usava bermuda xadrez no fim de semana,
e meia preta, e ia cortar a grama com esse figurino, lembro de às vezes
olhar pela janela, ver ele daquele jeito e sentir uma dor de verdade por ser
parente dele. Lembro de todo mundo fingindo ser samurai ou dizendo:
“Pega leve!” em tudo que era contexto — era bacana. Pra demonstrar
aprovação ou empolgação, a gente dizia: “Massa”. Na universidade, dava
pra ouvir “massa” trocentas vezes por dia. Lembro de algumas tentativas
minhas de deixar as costeletas crescerem no DePaul e de sempre acabar
tendo que raspar, porque depois de certo ponto elas ficavam só com cara de
pentelho. Do cheiro de brilhantina dentro do chapéu do meu pai, Garganta
Profunda, Howard Cosell, a garganta da minha mãe exibindo ligamentos
dos dois lados quando ela ria com a Joyce. Abanando as mãos ou se
dobrando toda. A mãe tinha uma risada muito física — o corpo todo dela
entrava na dança.
Também tinha a palavra “maneiro” que era usada o tempo todo, mas já de
cara quando apareceu essa palavra me incomodava; eu simplesmente não
gostava dela. Se bem que às vezes eu talvez ainda a use sem saber que uso.
A minha mãe é aquele tipo de mulher mais velha e magra que parece que
vai ficando seca e dura com a idade em vez de inflar, ela vai ficando fina e
ossuda e com os zigomas ainda mais pronunciados. Lembro de às vezes
pensar em charque assim que vejo ela, e aí me sentir supermal por ter feito
essa associação. Mas ela era bem gata quando nova, e um pouco dessa
perda de peso mais tarde também teve a ver com os nervos, porque depois
da coisa com o meu pai os nervos dela só pioraram. Devo admitir também
que outra razão pra isso dela me defender com o meu pai no negócio de eu
ficar saindo da universidade foi a dificuldade que eu tive com leitura no
primário quando a gente morava em Rockford e o meu pai trabalhava na
prefeitura de Rockford. Isso foi no meio dos anos 60, na escolinha
Machesney. Eu passei por um período em que de repente eu não sabia mais
ler. Quer dizer, eu não conseguia ler mesmo — a minha mãe sabia que eu
lia porque a gente tinha lido livrinhos infantis juntos. Mas durante quase
dois anos na Machesney, em vez de eu ler alguma coisa, eu contava as
palavras do texto, como se ler fosse a mesma coisa que contar palavras. Por
exemplo, “Lá vinha o meu Melhor Companheiro me salvar dos porcos”
seria igual a dez palavras que eu contava de um a dez em vez de ser uma
frase que fazia você adorar ainda mais o cachorro no livro. Era um
problema esquisito lá na minha fiação interna na época que gerou um monte
de problema e de vergonha e foi um dos motivos da gente acabar se
mudando pra região de Chicago, porque por um tempo parecia que eu ia
precisar ir pra uma escola especial em Lake Forest. Lembro pouca coisa
desse período fora a sensação de não ter grandes desejos de contar palavras
nem de fazer de propósito, mas de simplesmente ser incapaz de evitar —
era frustrante e esquisito. Piorava sob pressão ou se eu ficava nervoso, o
que é bem normal com esse tipo de coisa. Enfim, parte da atitude furiosa da
minha mãe ao defender a ideia que eu precisava viver e aprender as coisas
do meu jeito vem dessa época, quando o Distrito Escolar de Rockford
reagiu ao problema com a leitura de tudo quanto foi jeito que ela não achou
nem útil nem justo. Parte da consciência crítica dela e do fato dela ter
entrado pro movimento feminista dos anos 70 provavelmente vem também
dessa época em que ela brigou com a burocracia do distrito escolar. Eu às
vezes ainda tenho uma recaída nisso de contar palavras, ou na verdade o
normal é que a contagem fica acontecendo enquanto eu leio ou falo, meio
que assim que nem um ruído de fundo ou um processo inconsciente, mais
ou menos que nem respirar.
Por exemplo, até agora eu já disse 2918 palavras desde que comecei. Ou
seja, 2918 antes de eu dizer “eu já disse” ou 2921 se você contar “eu já
disse” — e eu ainda conto. Os números eu conto como uma palavra só
independente do tamanho do número. Não que tenha algum sentido — é
mais assim um cacoete mental. Eu não lembro exatamente quando
começou. Sei que não tive dificuldade pra aprender a ler ou pra ler os
livrinhos do Sam e da Ann que eles usam pra te ensinar a ler, então deve ter
sido depois do segundo ano. Eu sei que a minha mãe, quando criança lá em
Beloit WI, onde ela cresceu, tinha uma tia que tinha uma coisa de lavar as
mãos sem parar e sem conseguir parar, o que acabou ficando tão sério que
ela teve que ir pra um asilo. Parece que lembro de pensar que a minha mãe
de algum jeito associava isso de eu contar mais com a tia e a pia e que ela
não via como uma forma de retardo ou de incapacidade de só ficar ali
sentadinho e ler como eles mandavam, que era como as autoridades da
escola de Rockford parece que viam. Daí o ódio que ela sentia das
instituições tradicionais e das autoridades, que foi outra coisa que ajudou
aos poucos a afastar ela do meu pai e a pôr o casamento deles em perigo, e
assim por diante.
Lembro que uma vez, acho que em 75 ou 76, eu raspei só uma costeleta e
fiquei um tempo daquele jeito, achando que só uma costeleta me
transformava num não conformista — sério, meu — e entrando em longas
conversas sérias com as meninas nas festas que me perguntavam o que
aquela costeleta solitária “queria dizer”. Um monte de coisas que eu lembro
de dizer e de acreditar nessa época literalmente faz eu me encolher de
vergonha na cadeira hoje só de pensar. Lembro do Kiss, do REO

Speedwagon, Cheap Trick, Styx, Jethro Tull, Rush, Deep Purple e, claro, do
bom e velho Pink Floyd. Lembro de Basic e Cobol. Cobol era o que rodava
no equipamento de contabilidade de custos do meu pai no escritório. Ele
entendia pacas de computadores naquela época. Lembro dos rádios
transistorizados de bolso da Sony e daquela manha da maioria dos negros
da cidade de segurar o rádio no ouvido enquanto os garotos brancos dos
subúrbios usavam o foninho de ouvido opcional, que nem um tampão da
DIC, que a gente tinha que limpar quase todo dia senão ficava supernojento.
Teve a crise de energia, a recessão, a estagflação, apesar de eu não lembrar
em que ordem essas coisas aconteceram — se bem que eu sei que a
principal crise de energia deve ter acontecido quando eu estava morando de
novo em casa depois do negócio da Lindenhurst College, porque esvaziei o
tanque do carro da minha mãe num dia que eu fiquei festando até de noitão
com uns velhos amigos de escola, o que não deixou o meu pai superfeliz, dá
pra entender. Acho que a cidade de Nova York foi de fato à falência por um
tempo nessa época. Teve também a calamidade de 1977 que foi a tentativa
de o estado de Illinois transformar o imposto estadual sobre vendas num
imposto progressivo, o que eu sei que transtornou o meu pai um monte mas
que eu nem entendi nem achei importante na época. Depois, claro, eu ia
entender por que transformar um imposto sobre vendas num imposto
progressivo é uma ideia horrorosa, e por que o caos que ela provocou quase
custou o mandato do governador na época. Mas eu não lembro de ter
percebido nada na época além de uma multidão maior que o normal nos
shoppings e do inferno que foi comprar os presentes de fim de ano em 77.
Não sei se isso é relevante. Duvido que alguém que não trabalhe no
governo dê muita bola pra isso, apesar de ainda ter umas piadas velhas
sobre tudo isso aqui, coisa dos fraldinhas mais antigos no CRA.
Lembro de sentir de verdade uma sensação física de ódio por quase tudo
que era rock comercial — que nem discoteca, que se você era legal você
basicamente tinha que odiar, e todas as bandas com nomes de lugar de uma
palavra só. Boston, Kansas, Chicago, America — ainda sinto um ódio quase
corpóreo. E de achar que eu e de repente um ou dois amigos estávamos
entre as pouquíssimas pessoas que realmente entendiam o que o Pink Floyd
estava tentando dizer. É constrangedor. A maior parte disso tudo quase
parece ser lembrança de outra pessoa. Eu não lembro quase nada dos meus
primeiros anos de infância, quase só uns estrobos isolados e esquisitões.
Mas quanto mais fragmentada é a lembrança, mais ela me parece
autenticamente minha, o que é estranho. Fico pensando se alguém por aí
sente ser a mesma pessoa que ela se lembra ter sido. Isso acho que ia fazer
as pessoas terem um ataque. Acho que nem ia fazer sentido.
Não sei se isso já dá. Não sei o que os outros te disseram.
A palavra que a gente usava com esse tipo de niilista na época era lesado.
Lembro que eu morava num dormitório da UIC num prédio bem alto com
um aluno superdescolado, supermoderninho de Naperville que também
usava costeleta, cordão de couro e tocava violão. Ele se via como um não
conformista, todo desconcentrado e niilista também, e mergulhadão na cena
lesada e drogada da universidade, e tinha o que preciso admitir era um
Firebird 72 hiperbacana que um dia a gente descobriu que eram os pais dele
que pagavam o seguro. Não lembro o nome dele por mais que eu tente. UIC
era a Universidade de Illinois, Campus de Chicago, uma universidade
urbana gigantesca. O dormitório onde a gente morava ficava bem na
Roosevelt, e as janelas principais davam pra uma clínica de podologia bem
grandona — também não lembro o nome — que tinha um neon imenso
vertical que girava num eixo todos os dias úteis das 8h às 8h com o nome e
o número mnemônico de telefone que terminava em 2256 de um lado e do
outro um contorno imenso de um pé humano colorido — a gente achava
que era um pé de mulher, pelo tamanho — e eu lembro que esse meu colega
de quarto e eu inventamos um tipo de ritual em que a gente fazia de tudo
pra tentar estar a postos na janela às 8h toda noite pra ver a placa do pé
apagar e parar de girar quando a clínica fechava. Ela sempre escurecia ao
mesmo tempo que as janelas da clínica e a gente criou a teoria de que tudo
ficava ligado num disjuntor central. A rotação da placa não parava na hora.
Ela ia mais é ficando lenta, com um jeitão quase de roda da fortuna até
finalmente parar. O ritual era que se a placa parasse com o pé virado pra
longe, a gente ia estudar na biblioteca da UIC, mas se ela parasse com o pé
ou com qualquer parte importante do pé virada pra nossa janela, a gente
considerava isso um “anúncio” (com o duplo sentido incrivelmente óbvio) e
largava no ato toda e qualquer tarefa ou suposta responsabilidade que a
gente tivesse e ia pro Hat, que na época era o bar mais bacana e o palco da
moda pras bandas da UIC, e ficava tomando cerveja e tentando quicar uma
moeda pra ela cair num copo e contando pra todos os carinhas cujos pais
pagavam a universidade deles o nosso ritual do pé giratório de um jeito que
fazia a gente, todo mundo ali, parecer niilisticamente lesado e bacana. Fico
superenvergonhado de lembrar essas coisas. Eu lembro da placa do
podólogo, do Hat, da cara e até do cheiro do Hat, mas não consigo lembrar
o nome desse colega de quarto, isso apesar da gente passar três ou quatro
noites por semana juntos naquele ano. O Hat não tinha nenhuma ligação
com o Meibeyer’s, que é meio que o bar principal dos analistas moleza aqui
no CRA, e também tem uma decoração com chapéus e um porta-chapéus de
exposição, mas esses aqui supostamente seriam chapéus históricos do IRS e
do COC, chapéus de adultos sérios. O que quer dizer que a similaridade é
mera coincidência. Na verdade eram dois Hats, que nem uma franquia —
tinha o da UIC na esquina da Cermak com a Western, e outro lá no Hyde
Park pros carinhas mais motivados e mais centrados da U de Chicago. Todo
mundo do nosso Hat chamava o Hat do Hyde Park de “Quipá”. Esse meu
colega de quarto não era nem um mau sujeito nem um sujeito mau, apesar
de eu ter descoberto que ele só sabia tocar três ou quatro músicas no violão,
e ele tocava violão o tempo todo sem parar, e apesar de ele racionalizar de
forma descarada a venda de drogas como parte da rebelião social em vez de
puro e simples capitalismo, mesmo naquela época eu já sabia que ele era
um total conformista em relação aos padrões do suposto não conformismo
de fins dos anos setenta, e às vezes eu sentia um certo desprezo por ele. Eu
posso ter achado ele um pouco inferior. Como se eu não estivesse na
mesma, claro — mas esse tipo de projeção e de deslocamento descarado
fazia parte da hipocrisia niilista daquele período todo.
Eu lembro da “Anti-Cola” e de como nos comerciais de Noxzema sempre
tocava um tema pesadão de striptease. Parece que eu lembro de muitos
padrões que imitavam madeira em coisas que não eram de madeira, e
peruas com painéis laterais feitos pra parecer de madeira. Lembro do
Jimmy Carter na televisão com um cardigã, e alguma coisa sobre um irmão
do Carter que descobriram que era um lesado e um bocó total que só de ser
parente já deixava o presidente com vergonha.
Acho que eu não votei. A verdade é que eu não lembro se votei ou não.
Provavelmente eu quis ir e disse que ia e aí meio que me distraí e acabei
não indo. Isso ia ter toda a cara dessa época.
Claro que provavelmente nem precisa dizer que eu festei pacas nesse
período todo. Eu não sei quanto é pra eu falar disso tudo. Mas eu não festei
nem mais nem menos do que todo mundo que eu conhecia — pra falar a
verdade, muito exatamente nem mais nem menos. Todo mundo que eu
conhecia e que saía comigo era lesado, e a gente sabia. Era bacana ter
vergonha de ser lesado, de um jeito meio torto. Um tipo doido de um
desespero narcisista. Ou só se sentir sem rumo e perdido — a gente
romantizava essa coisa toda. Eu gostava mesmo é de Ritalina e de uns tipos
de bolinha que nem Cylert, o que era meio incomum, mas todo mundo tinha
lá suas preferências idiossincráticas nisso de festar. Eu não tomei
quantidades gigantes de bolinhas, já que os tipos que eu curtia eram difíceis
de achar — você meio que topava com elas por acaso. O colega de quarto, o
do Firebird azul, era obcecado por haxixe, que ele sempre dizia que era
massa.
Pensando agora, duvido que um dia tenha me ocorrido que o que eu
achava desse meu colega de quarto era provavelmente o que o meu pai
achava de mim — que eu era tão conformista quanto ele, além de hipócrita,
um “rebelde” que na verdade só parasitava a sociedade sob a forma dos
seus pais. Eu queria poder dizer que eu tinha um grau de consciência capaz
de fazer essa contradição aparecer na época, apesar que eu provavelmente
ia ter feito ela virar uma piadinha descolada e niilista. Ao mesmo tempo, às
vezes sei que eu me preocupava com essa minha falta de rumo e de
iniciativa, com o quanto tudo parecia abstrato e aberto a diferentes
interpretações na época, até com o quanto a minha memória estava
começando a parecer vaga e sem sentido. O meu pai, em compensação, eu
sei bem, lembrava de tudo — particularidades, detalhes, o dia e a hora
exatos das coisas marcadas e afirmações anteriores que agora eram
inconsistentes com afirmações atuais. Mas aí acabei descobrindo que esse
tipo de atenção aos detalhes e de memória perfeita fazia parte do trabalho
dele.
O que eu era mesmo era um ingênuo. Por exemplo, eu sabia que mentia,
mas eu quase nunca pensava que as pessoas em volta de mim podiam estar
mentindo. Agora eu me dou conta do quanto isso era bobo e do quanto
deixa a realidade nebulosa de verdade. Eu era uma criança, na verdade. O
fato é que quase tudo que sei de verdade sobre mim eu aprendi no Serviço.
Isso pode parecer meio puxação de saco, mas é verdade. Eu estou aqui há
cinco anos e aprendi pacas.
Enfim, eu também lembro de fumar maconha com a minha mãe e a
companheira dela, a Joyce. Elas mesmas plantavam, e não era exatamente
forte, mas a questão não era bem essa, porque com elas era meio que mais
uma posição política liberada do que se chapar mesmo, e a minha mãe
quase parecia fazer questão de fumar maconha toda vez que eu ia lá visitar
elas, e por mais que isso me deixasse meio desconfortável, não lembro de
ter me recusado nunca a “queimar unzinho” com elas, por mais que eu
ficasse meio sem graça quando elas usavam esses termos de universidade.
Naquela época, a minha mãe e a Joyce eram sócias de uma livrariazinha
feminista que eu sabia que o meu pai não gostava de ter ajudado a financiar
com o acordo do divórcio. E eu lembro de estar sentado uma vez com elas
nos pufes do apartamento de Wrigleyville, passando um daqueles beques
grandões e amadoristicamente enrolados lá delas — e beque era a palavra
descolada dos lesados pra baseado na época, pelo menos lá pros meus lados
— e ouvindo a minha mãe e a Joyce contarem lembranças bem vívidas e
detalhadas da infância delas, as duas rindo, chorando e passando a mão no
cabelo uma da outra pra dar apoio emocional, o que não me incomodava
mesmo — elas se tocarem e se beijarem na minha frente — ou pelo menos
àquela altura eu já tinha tido mais do que tempo de me acostumar, mas
lembro de ir ficando cada vez mais paranoico e nervoso na época, porque,
quando eu fazia bastante força pra pensar em algumas das minhas próprias
recordações de infância, a única lembrança vívida que eu conseguia evocar
era de eu socando Glovolium na luva de beisebol Rawlings que o meu pai
tinha me dado, e daquele dia que eu peguei a luva autografada do Johnny
Bench eu lembrava direitinho, se bem que a casa da minha mãe e da Joyce
não era lugar de ficar sentimentalizando a lembrança de ganhar alguma
coisa do meu pai, claro. Aí a pior parte era começar a ouvir a minha mãe
narrar todas essas lembranças e histórias engraçadas da minha infância e
perceber que na verdade ela se lembrava muito mais da minha infância do
que eu, como se ela tivesse dado um jeito de arrancar ou confiscar
lembranças e experiências que eram tecnicamente minhas. Óbvio que não
pensei na palavra confiscar na época. Ela é uma palavra mais do Serviço.
Mas fumar maconha com a minha mãe e a Joyce não costumava ser uma
experiência assim tão agradável, e normalmente me deixava todo esquisito,
agora que eu parei pra pensar — e mesmo assim eu ia lá queimar um com
elas quase toda vez. Duvido que a minha mãe também curtisse muito
aquilo. A coisa toda tinha um ar fajuto de diversão e liberação. Quando
penso nisso agora, tenho a sensação de que a minha mãe estava tentando me
fazer ver ela mudar e crescer bem ali na minha frente, nós dois do meu lado
do abismo de gerações, como se a gente ainda estivesse tão próximo como
quando eu era criança. Que nem dois não conformistas, e mostrando o dedo
pro meu pai, simbolicamente. Enfim, fumar maconha com ela e com a
Joyce sempre parecia meio hipócrita. Os meus pais se separaram em
fevereiro de 1972, na semana em que Edmund Muskie chorou em público
durante a campanha e a TV ficou o tempo todo passando imagens dele
chorando. Eu não lembro por que ele estava chorando, mas aquilo
definitivamente acabou com as chances dele na campanha. Foi na sexta
semana da aula de teatro do colegial que aprendi a palavra niilista. O que
sei é que eu não sentia nenhuma hostilidade pela Joyce, apesar de que eu
lembro de sempre ficar meio tenso quando estava sozinho com ela e do
alívio que era a minha mãe chegar em casa e eu poder meio que lidar com
elas como um casal em vez de tentar manter uma conversa com a Joyce, o
que era sempre complicado porque sempre parecia que tinha muito mais
temas e coisas que eu precisava me lembrar de não mencionar do que de
incluir na conversa, e aí tentar bater papo com ela era que nem tentar descer
a montanha Devil’s Head de slalom com as bandeiras a centímetros umas
das outras.
Vendo daqui, só depois fui perceber que o meu pai era um cara esperto e
sofisticado. Na época acho que eu pensava nele como um sujeito que mal
estava vivo, assim meio que nem um robô ou um escravo do conformismo.
É verdade que ele era certinho, pentelho e rápido nas respostinhas cínicas
dele. Ele era 100% convencional e estava totalmente do outro lado do
abismo de gerações — ele tinha quarenta e nove anos quando morreu, foi
em dezembro de 77, o que obviamente significa que ele cresceu durante a
Depressão. Mas acho que eu nunca valorizei o senso de humor dele sobre
tudo isso — ele tinha lá o jeito dele de expor as suas opiniões pró-sistema
num estilo seco e inteligente que não lembro de ter entendido ou sacado as
piadas dele na época. Parece que o meu senso de humor não era lá muito
grande ou então embarquei naquela coisa-padrão de criança de considerar
tudo que ele dizia como comentário ou crítica pessoal. Tinha umas coisas
que eu sabia dele, que eu fui pegando nos anos da minha infância, em geral
com a minha mãe. Que, assim, ele era supertímido quando eles se
conheceram. Que ele tinha querido fazer mais que um curso
profissionalizante mas tinha contas pra pagar — ele serviu na logística e em
suprimentos na Coreia, mas como já tinha casado com a minha mãe quando
foi mandado pra lá teve que arrumar emprego assim que voltou. Era isso
que as pessoas da idade dela faziam na época, ela explicou — se você
conhecia a pessoa certa e tinha pelo menos terminado o colegial, você
casava sem nem pensar duas vezes e sem nem se questionar. O negócio é
que ele era bem inteligente e meio frustrado na vida, como muitos da
geração dele. Ele trabalhava duro porque não tinha escolha, e os sonhos
pessoais iam ficando pra trás. Isso é tudo indireto, veio pela minha mãe,
mas encaixava com certos pedaços e fiapos de histórias que nem eu
conseguia deixar de perceber. Por exemplo, o meu pai lia direto. Ele estava
o tempo todo lendo. Era a grande diversão dele, principalmente depois do
divórcio — ele vivia chegando da biblioteca com uma pilha de livros com
aquele plástico transparente por cima das capas. Eu nunca prestei a menor
atenção naqueles livros ou por que ele lia tanto — ele nunca falava sobre o
que andava lendo. Nem sei que tipo ele preferia, se era história, livros
policiais, sei lá. Pensando bem, acho que ele era muito sozinho,
principalmente depois do divórcio, já que as únicas pessoas que dava pra
dizer que eram amigas dele eram os colegas de trabalho, e na minha opinião
ele achava o emprego dele basicamente uma chatice — não acho que ele se
sentisse muito envolvido com o orçamento e os protocolos de gastos da
cidade de Chicago, até porque não tinha sido ideia dele se mudar pra cá —
e acho que os livros e as questões intelectuais funcionavam como válvula
de escape pra esse tédio. Na verdade ele era um sujeito bem inteligente. Eu
gostaria de conseguir lembrar de mais exemplos do tipo de coisa que ele
dizia — na época acho que essas coisas me pareciam mais hostis ou críticas
do que piadas que ele fazia de nós dois ao mesmo tempo. Mas lembro que
ele às vezes se referia à suposta geração jovem (ou seja, a minha) como
“Essa coisa que saiu das entranhas da América”. Não é o melhor dos
exemplos. É quase como se ele pensasse que a culpa era dos dois lados, que
tinha alguma coisa errada com os adultos de todo o país se eles podiam
gerar crianças que nem as que estavam por aí nos anos 70. Lembro que uma
vez em outubro ou novembro de 76, com vinte e um anos, durante outro
período meu de folga, depois de eu ter entrado na DePaul — o que na
verdade não foi uma ideia assim tão boa, essa primeira vez que eu entrei na
DePaul. Foi basicamente um desastre. Eles meio que me pediram pra sair,
pra falar a verdade, e foi a única vez que isso me aconteceu. Nas outras
vezes, na Lindenhurst College e depois na UIC, eu mesmo é que saía. Enfim,
durante essa folga eu estava trabalhando no turno da noite na fábrica da
Cheese Nabs em Buffalo Grove e morando lá na casa do meu pai em
Libertyville. Nem a pau que eu ia dormir no apartamento da minha mãe e
da Joyce na região de Wrigleyville, em Chicago, onde os quartos tinham
cortinas de contas em vez de portas. Mas eu só entrava nesse trabalho bocó
às seis, então eu basicamente ficava de bobeira pela casa a tarde toda até a
hora de sair. E às vezes durante esse período o meu pai saía da cidade por
uns dias — como o Serviço, o financeiro da cidade de Chicago vivia
mandando o pessoal mais técnico pra umas conferências e uns eventos de
trabalho, que depois eu ia acabar sabendo aqui no Serviço que não são que
nem as convenções enormes e beberronas da indústria privada e que são
normalmente umas coisas bem intensivas e centradas no trabalho. O meu
pai dizia que as conferências da prefeitura eram em geral bem tediosas, que
era uma palavra que ele usava consideravelmente, tedioso. E nessas viagens
era só eu em casa, e você pode imaginar o que acontecia quando eu ficava
lá sozinho, ainda mais nos fins de semana, apesar de eu supostamente ser o
responsável pela casa enquanto ele estava fora. Mas a lembrança dele
chegando em casa mais cedo numa tarde de 76, voltando de uma dessas
viagens de trabalho, coisa de um ou dois dias antes do que ele tinha me dito
que ia chegar, e entrando e me vendo com dois dos meus velhos supostos
amigos lá da escola de Libertyville na sala — que, por causa do projeto
levemente elevado da varanda e da porta da frente, era de fato uma sala de
estar afundada que mais ou menos começava logo depois da porta de
entrada, com uma escadinha que ia pra sala de estar e outra que ia pro andar
de cima. Arquitetonicamente, o estilo da casa é chamado de rancho elevado,
como a maioria das outras casas mais velhas da rua, e ainda tinha mais uma
escada que ia do corredor do andar de cima pra garagem, que na verdade
sustenta uma parte do andar de cima — ou seja, a garagem, estruturalmente,
é uma parte necessária da casa, e isso é o que diferencia uma planta tipo
rancho elevado. No momento que ele entrou, dois estavam escarrapachados
no sofá Davenport com os pezões sujos em cima da mesinha de centro
especial, e o carpete todo forrado de latinhas de cerveja e embalagens da
Taco Bell — as latinhas eram da cerveja que o meu pai comprava no
atacado duas vezes por ano e guardava na despensa pra normalmente beber
um total de duas por semana — com a gente lá lesado total e assistindo
Rastros de ódio na WGN, e um dos caras ouvindo Deep Purple nos fones de
ouvido do meu pai, especiais pra ouvir música clássica, e o tampo especial
de carvalho ou de bordo da mesinha de centro ali com umas rodelonas de
condensação das latas de cerveja por tudo que é canto porque a gente tinha
aumentado geral o aquecimento da casa pra muito além de onde ele
normalmente deixava colocar, pensando na economia de energia e de
gastos, e o outro cara do meu lado no Davenport dobrado bem no ato de dar
uma bola bem comprida no bong — esse cara era famoso por conseguir dar
umas bolas enormes. Fora que a sala toda estava fedendo. Quando aí, de
repente, na memória, eu ouvi o som inconfundível dos passos dele na
varanda larga de madeira e o som da chave na porta da frente, e um mero
segundo depois o meu pai de repente entra junto com uma onda de um ar
muito frio e muito limpo, de chapéu e com a malinha de viagem — eu
estava no estado paralisado de choque de uma criança flagrada de calça na
mão, fiquei ali paralisado, incapaz de fazer alguma coisa e ao mesmo tempo
vendo cada quadro da cena da entrada dele com um foco e uma nitidez
horríveis — e ele ali parado à beira dos poucos degraus que desciam até a
sala, tirando o chapéu com aquele gesto característico que envolvia tanto a
cabeça quanto a mão enquanto ele ficava ali parado absorvendo a cena e
nós três — ele não fazia segredo do fato de não gostar muito desses velhos
amigos de escola, que eram os mesmos caras com quem eu estava na rua
quando roubaram a tampinha do tanque de gasolina da minha mãe e
chuparam todo o tanque, e nenhum de nós tinha mais dinheiro quando a
gente achou o carro, e eu tive que ligar pro meu pai e ele teve que ir lá de
trem depois do trabalho pra pagar a gasolina pra eu poder levar o Le Car de
volta pra minha mãe e pra Joyce, que era coproprietária e usava o carro pras
coisas da livraria — os três largados ali totalmente doidos e paralisados, um
dos caras com uma camiseta velha toda ferrada que eu juro que dizia FODA-
SE no peito, o outro tossindo aquela bola imensa por causa do susto, uma
pluma de fumaça de maconha subia deslizando pela sala na direção do meu
pai — pra te encurtar a história, a minha lembrança é dessa cena ser a pior
confirmação do pior tipo de estereótipo de abismo de gerações e de repulsa
paterna por aqueles filhos decadentes e lesados, e do meu pai largando
devagar a malinha e a pasta e só ali parado, sem expressão e sem dizer nada
pelo que me pareceu uma enormidade, e aí ele bem devagar fez um gesto
com um braço um pouco erguido no ar e olhando pra cima disse: “Eis
minha obra, ó grandes, desesperem!”, e aí ele pegou de novo a malinha de
viagem e sem dizer uma palavra subiu os degraus da entrada, foi pro antigo
quarto deles e fechou a porta. Ele não bateu a porta, mas deu pra ouvir ela
fechando bem firme. Estranho, a lembrança, que é horrivelmente nítida e
detalhada até aí, nessa hora para total, que nem uma fita que chegou no fim,
e eu não sei o que aconteceu depois, de eu tirar os caras dali e tentar limpar
tudo na pressa e baixar de novo o termostato pra vinte graus, apesar de eu
lembrar sim de me sentir uma bosta total, não tanto a sensação de ter sido
apanhado de calça na mão ou de estar ferrado, mas simplesmente de ser
infantil, uma criancinha egoísta e mimada, sentado no meio do lixo em
casa, doido, com o pé sujo em cima da mesinha de centro toda marcada que
ele e a minha mãe tinham poupado tanto pra comprar numa loja de
antiguidades em Rockford quando ainda eram jovens e não tinham muita
grana, e que ele valorizava e esfregava com óleo de limão o tempo todo, e
dizia que ele só pedia pra eu por favor não colocar o pé em cima e usar uma
bolachinha pros copos — de assim por um ou dois segundos ver o que é que
ele devia ter visto em mim enquanto ficou lá parado vendo a gente tratar a
sala dele daquele jeito. Não era uma cena bonita, e parecia ainda pior já que
ele não gritou nem pegou no meu pé — ele só ficou com uma cara exausta e
meio que envergonhada por nós dois — e lembro que por um ou dois
segundos consegui até sentir o que ele devia estar sentindo, e por um
instante me vi pelos olhos dele, o que deixou a coisa toda muito, mas muito
pior do que se ele tivesse ficado furioso ou gritado comigo, coisa que ele
nunca fez, nem depois quando eu e ele ficamos sozinhos na mesma sala —
coisa que nem lembro quando foi, se eu saí cabisbaixo da casa depois de
limpar tudo ou se fiquei lá pra encarar. Não sei qual das duas coisas eu fiz.
Nem entendi o que ele falou, apesar de obviamente entender que ele estava
sendo sarcástico e de certa forma se culpando ou rindo de si próprio por ter
produzido a “obra” que tinha acabado de jogar as embalagens da Taco Bell
e os saquinhos no chão em vez de se dar ao trabalho de levantar e dar assim
uns oito passos pra ir jogar no lixo. Se bem que depois eu simplesmente
topei com o poema que no fim era o que ele tinha citado, em algum
contexto esquisitão no CAT de Indianápolis, e o meu olho quase me pula da
cabeça, porque eu nem sabia que era um poema — e um poema famoso, do
mesmo poeta inglês que evidentemente escreveu o Frankenstein original. E
eu nem sabia que o meu pai lia poesia inglesa, muito menos que ele citava
poesia inglesa quando estava puto. Resumo, ele devia ser muito mais do
que eu imaginava, e não lembro nem de sacar como eu sabia pouco dele, de
verdade, até depois de ele ter morrido e ser tarde demais. Acho que esse
tipo de arrependimento é típico também.
Enfim, essa única lembrança terrível de erguer os olhos lá no sofá e me
ver pelos olhos dele, e daquele jeito triste e sofisticado dele de exprimir
toda a sua tristeza e repulsa — isso meio que define todo aquele período pra
mim agora, quando penso nisso. Também me lembro do nome daqueles
dois ex-amigos daquele dia fodido, mas óbvio que não é relevante.
As coisas começam a ficar bem mais nítidas, claras e concretas em 1978,
e olhando daqui agora acho que concordo com a minha mãe e a Joyce que
foi naquele ano que “me achei” ou “larguei de criancice” e comecei o
processo de desenvolver alguma iniciativa e alguma orientação na vida, o
que obviamente me levou a entrar pro Serviço.
Apesar de não estar diretamente ligado à minha escolha do IRS como
carreira, é verdade que o meu pai morrer num acidente de trânsito no fim de
77 foi um acontecimento horrível e de mudar a minha vida mesmo, que eu
obviamente espero nunca ter que passar de novo, de jeito nenhum. A minha
mãe sofreu demais e teve que tomar tranquilizantes, e ela acabou
psicologicamente sem condições de vender a casa do meu pai, deixou a
Joyce e a livraria e voltou pra casa de Libertyville, onde ela mora até hoje,
com algumas fotos do meu pai e deles quando eram um jovem casal e
moravam naquela casa. É uma situaçãozinha bem triste, e um psicólogo de
boteco provavelmente ia dizer que de alguma maneira ela se culpava pelo
acidente, apesar de que eu, mais que ninguém, estava em condição de saber
que não era verdade e que, em última análise, o acidente não foi culpa de
ninguém. Eu estava lá quando aconteceu — o acidente — e não tem como
negar que foi 100% terrível. Até hoje lembro da coisa toda com detalhes tão
nítidos, tão concretos que parece mais uma gravação que uma lembrança, o
que já me disseram que é comum nos traumas — e mesmo assim não tinha
como contar pra minha mãe exatamente o que aconteceu do começo ao fim
sem acabar com ela, já que ela já estava muito abalada, se bem que
qualquer um podia ter visto que boa parte da dor dela vinha de conflitos não
resolvidos e de coisas que ainda ficaram do casamento e da crise de
identidade que ela teve em 72 com quarenta ou quarenta e um anos e com o
divórcio, sendo que ela não lidou com nada disso na época porque se jogou
tão de cabeça no movimento feminista e naquilo de desenvolver a
consciência crítica naquele círculo novo de mulheres esquisitas, a maioria
acima do peso e todas com seus quarenta anos, fora a nova identidade
sexual com a Joyce quase assim de cara, o que eu sou obrigado a dizer que
praticamente acabou com o meu pai, visto que ele era todo quadradinho e
convencional, apesar de que eu e ele nunca falamos disso diretamente e de
ele e a minha mãe terem dado um jeito de continuarem até que bem amigos
e de eu nunca ter ouvido ele abrir a boca pra falar do assunto a não ser por
um ou outro resmungo sobre o quanto dos pagamentos de pensão que eles
tinham combinado acabava indo pra livraria, que ele às vezes chamava de
“aquele vórtex financeiro” ou apenas de “o vórtex” — o que por si só já é
uma história comprida. Então a gente nunca falou disso de verdade, o que
eu duvido que seja lá muito incomum em casos assim.
Se eu tivesse que descrever o meu pai, ia começar dizendo que o
casamento dele com a minha mãe foi um dos únicos que eu vi em que a
mulher era visivelmente mais alta que o marido. O meu pai tinha um e
sessenta e oito ou um e sessenta e nove, não era gordo mas era troncudo,
como esses caras mais baixos de quarenta e tantos anos são troncudos. Ele
devia pesar uns oitenta quilos. Ficava bem de terno — como muitos homens
da geração dele, o corpo parecia projetado pra rechear e sustentar um terno.
E ele tinha uns ternos bacanas, quase todos com um botão e uma fenda
atrás, discretos e conservadores, basicamente meia-estação e um ou dois de
anarruga pra quando fazia calor, quando ele também deixava de lado o
chapéu de sempre. Ele tinha o bom senso — pelo menos pensando agora —
de rejeitar o estilo supostamente moderno de gravata larga, cores mais
fortes e lapelas enormes, e achava asqueroso o fenômeno dos terninhos tipo
safári e dos blazers de veludo cotelê. Os ternos dele não eram feitos por
alfaiate, mas quase todos eram da Jack Fagman, uma loja bem antiga e
respeitada de roupas masculinas em Winnetka que ele frequentava desde
que a nossa família se transferiu pra região de Chicago em 1964, e alguns
eram bem bacanas mesmo. Em casa, no que ele chamava de estar “à
paisana”, ele usava umas calças mais informais e umas camisas tipo polo,
às vezes por baixo de um suéter — o preferido era xadrez tipo argyle. Às
vezes ele usava um cardigã, se bem que eu acho que ele sabia que os
cardigãs deixavam a cintura dele muito larga. No verão, às vezes tinha
aquela coisa horrenda da bermuda com meia social preta, que no fim eram
as únicas meias que o meu pai teve na vida. Um blazer esportivo, um 48
curto azul-marinho de seda estriada, vinha da juventude dele e dos
primeiros dias da conquista da minha mãe, ela explicou — depois do
acidente ela sofria até de ouvir falar desse casaco, que dirá me ajudar a
pensar o que fazer com ele. No armário de roupas tinha o melhor e o
terceiro melhor sobretudo dele, também da Jack Fagman, com o cabide de
madeira vazio no meio dos dois. Ele punha os calçados sociais e de trabalho
dele em fôrmas; ele herdou do pai. (Ele “herdou” obviamente as fôrmas,
não os sapatos.) Lá tinha também uma sandália de couro que ele ganhou de
Natal e que não só nunca tinha usado como nem tinha chegado a tirar a
etiqueta da loja quando coube a mim vasculhar o armário de roupas dele e
esvaziar tudo. A ideia de usar sapato com salto embutido nunca teria nem
ocorrido ao meu pai. Naquela época até onde eu soubesse nunca tinha visto
uma fôrma pra sapato e nem sabia pra que elas serviam, já que eu nunca
cuidei dos meus sapatos ou dei valor a eles.
O cabelo do meu pai, que nitidamente tinha sido quase castanho-claro ou
louro quando ele era mais novo, primeiro foi escurecendo e aí ficou
misturado com branco, e de uma textura mais dura que a do meu e uma
tendência a enrolar na parte de trás nos dias úmidos. A nuca dele estava
sempre vermelha; a aparência dele era viva do jeito que o rosto de certos
caras mais velhos e troncudos tem de ser meio vivo, aceso. Um pouco desse
vermelho era congênito, provavelmente, e um pouco era psicológico —
como a maioria dos homens da geração dele, ele era ao mesmo tempo tenso
pacas e supercontrolado, uma personalidade tipo A mas com um superego
dominante e umas inibições tão radicais que elas apareciam principalmente
como uma dignidade e uma precisão exageradas nos movimentos dele. Ele
quase nunca se permitia nenhum tipo de expressão facial aberta ou
proeminente. Mas não era uma pessoa calma. Ele não falava nem agia de
um jeito nervoso, mas havia meio que uma aura de tensão extrema nele —
lembro meio que de um zumbido leve emanando dele quando ele estava
parado. Olhando daqui, acho que quando o acidente aconteceu ele devia
estar a um ou dois anos de precisar tomar remédio pra pressão.
Lembro de ter consciência de que a postura ou o porte geral do meu pai
parecia incomum pra um cara mais baixo — a maioria dos baixinhos tende
a se pôr reto que nem um pau, por motivos compreensíveis — nem tanto
porque ele parecesse corcunda mas meio que dobrado perto da cintura, bem
pouquinho, o que aumentava a sensação de tensão dele ou de ele estar
sempre andando contra algum vento. Eu só fui entender isso quando entrei
pro Serviço e vi a postura de alguns analistas mais velhos que tinham
passado dias e dias anos a fio numa mesa de trabalho, inclinados pra frente
verificando declarações, em primeiro lugar pra identificar as que mereciam
uma auditoria. Em outras palavras, é a postura de alguém cujo trabalho
diário significa ficar sentado imóvel na frente de uma mesa e trabalhando
concentrado por anos a fio.
Na verdade, sei muito pouco da realidade do trabalho do meu pai e de sei
lá o que ele acarretava, apesar de agora eu certamente saber o que é a
contabilidade de custos.
Com tudo isso, eu entrar pra fazer carreira no IRS podia parecer uma coisa
ligada ao acidente do meu pai — num sentido mais humanístico, ligada à
minha “perda” de um pai que tinha sido contador. A área técnica do meu pai
era sistemas e processos contábeis, que na verdade está mais pra
processamento de dados que pra contabilidade de verdade, como eu depois
ia entender. Da minha parte, por outro lado, tenho a convicção de que de um
jeito ou de outro eu agora ia estar no Serviço, por causa do evento chocante
que lembro que mudou completamente os meus objetivos e a minha atitude
e que ocorreu no outono seguinte, no terceiro semestre da minha volta à
DePaul e quando eu estava cursando introdução à contabilidade de novo,
junto com teoria política americana, que era outra disciplina que eu tinha
abandonado na Lindenhurst basicamente depois de eu não encarar a coisa e
não me esforçar. Mas é bem verdade que eu posso ter feito isso — cursar
introdução de novo — pelo menos em parte pra agradar ou tentar
compensar o meu pai, ou pelo menos pra diminuir a repulsa que senti de
mim depois que ele entrou e viu aquela cena niilista na sala que eu acabei
de mencionar. Foi provavelmente poucos dias depois da cena e da reação do
meu pai que eu peguei o trem da CTA até o Lincoln Park e comecei a tentar
me rematricular pros dois anos que me faltavam — em termos de créditos,
quatro semestres — na DePaul, se bem que por causa de umas
questõezinhas técnicas eu só fui conseguir entrar de novo no outono de 77
— outra história comprida — e, graças a eu decidir me esforçar e também
engolir o orgulho e pedir ajuda externa pra lidar com as tabelas de
depreciação e amortização, acabei passando, junto com a versão DePaul de
teoria política americana — que eles chamavam de pensamento político,
apesar de que a versão deles e da Lindenhurst desse curso eram quase
idênticas — no semestre de outono de 78, apesar de eu não ter exatamente
tirado notas excepcionais, porque eu basicamente deixei de estudar a sério
pras provas finais dessas duas disciplinas por causa (um negócio meio
irônico) do fato chocante que ocorreu por acaso numa aula totalmente
diferente na DePaul, de uma disciplina que eu nem estava fazendo mas em
que meio que entrei de bobeira por causa de um vacilo na hora da semana
de ajustes logo antes dos feriados de Natal, e eu fiquei tão chocantemente
tocado e comovido com aquilo que mal estudei pras provas finais das
disciplinas normais, apesar de que dessa vez não foi por descuido nem por
preguiça mas porque decidi que tinha muito em que pensar, e muito longa e
concentradamente, depois do encontro chocante com o jesuíta substituto em
tributarismo avançado, que foi a aula que falei que assisti por engano.
O negócio é que provavelmente tem umas pessoas que acabam atraídas
por uma carreira no IRS. Pessoas que são, como o padre substituto disse
naquele último dia de tributarismo avançado, chamadas a “prestar contas”.
Quer dizer, a gente está falando aqui quase de um tipo especial de perfil
psicológi>co, provavelmente. Não é um tipo lá muito comum — de repente
um em cada 10 mil — mas aí esse tipo de pessoa que decide que quer entrar
pro Serviço quer mesmo, mas mesmo, entrar pro Serviço, e o sujeito fica
todo determinado e vai ser duro desviar o cara do caminho depois que ele se
centrou nessa vocação real dele e começou a ficar ativamente atraído por
ela. E até um em cada 10 mil, num país do tamanho dos Estados Unidos,
vai chegar a um número razoável de pessoas — cerca de 20 mil — pra
quem o IRS preenche todos os critérios profissionais e psicológicos pra ser
uma vocação real. Esses mais ou menos 20 mil formam o cerne do Serviço,
ou o coração, e nem todos são dos níveis mais altos da administração do IRS,
apesar de alguns serem. Eles são 20 mil de um total de mais de 105 mil
funcionários do Serviço. E não se pode nem duvidar que essas pessoas
tenham em comum características centrais, fatores preditivos que num dado
momento entram em cena e geram uma legítima vocação pra seguir
contabilidade fiscal, administração de sistemas e comportamento
organizacional e pra elas se devotarem a ajudar a administrar e aplicar as
leis fiscais do nosso país conforme estabelecido no Caput 26 do Código de
Regulamentação Federal e no Código de Receita Interna Revisado de 1954,
além de todos os estatutos e regulamentações vinculados ao Ato de
Reforma Fiscal de 1969, ao Ato de Reforma Fiscal de 1976, ao Ato de
Receita de 1978, e assim por diante. Que razões e que fatores são esses, e
em que medida eles coexistem com os talentos e as disposições particulares
de que o Serviço precisa — são perguntas interessantes que o IRS de hoje se
interessa ativamente por entender e quantificar. No que diz respeito à minha
história pessoal e de como acabei aqui, o importante é que descobri que
tinha — os tais fatores e as tais características — e descobri isso de repente,
pelo que na época pareceu ser nada mais que um equívoco bem
irresponsável.
Eu deixei de fora a questão do abuso de drogas recreativas durante esse
período e a relação de algumas drogas com o modo como eu acabei aqui, o
que de maneira nenhuma significa um apoio ao uso de drogas, mas é só
uma parte da história dos fatores que acabaram me levando pro Serviço.
Mas é complicado e meio tortuoso. É óbvio que as drogas eram uma parte
bem relevante do cenário daquela época — isso todo mundo sabe. Lembro
que no fim dos anos 70 a droga supostamente mais descolada nos campi da
região de Chicago era a cocaína, e como eu era superangustiado pra me
encaixar tenho certeza que teria usado mais cocaína, ou “coca”, se tivesse
curtido os efeitos. Mas não — quer dizer, não curti. Pra mim ela não causou
excitação e euforia, aquilo mais me deixou como se eu tivesse tomado uma
dúzia de cafés de estômago vazio. Foi uma sensação horrorosa, apesar de
todo mundo perto de mim que nem o Steve Edwards ficar falando da
cocaína como a melhor sensação de todos os tempos. Pra mim não foi. Eu
também não gostava de como ela fazia os olhos de quem tinha acabado de
cheirar saltarem e a boca das pessoas ficar se mexendo no rosto de uns
jeitos esquisitos e incontroláveis, e de como qualquer ideia rasa ou óbvia
parecia incrivelmente profunda pras pessoas. A minha lembrança geral da
cocaína nesse período era de estar em algum tipo de festa com alguém
cheirado que ficava falando comigo de um jeito veloz e intenso e eu
tentando delicadamente me afastar, e cada vez que eu dava um passo pra
trás eles davam um passo pra frente, e assim por diante, até me acuarem
num canto da festa e eu ficar literalmente contra a parede, e eles lá falando
bem rápido a centímetros da minha cara, que era um negócio que eu não
achava nada legal. Isso aconteceu de verdade numas festas dessa época.
Acho que tenho um pouco da inibição do meu pai. Proximidade corpórea
radical com alguém muito empolgado ou transtornado é uma coisa que
sempre foi difícil pra mim, o que é um dos motivos por que a Divisão de
Auditoria ficou fora de questão pra mim na fase de seleção e lotação no CAT
— que eu devia explicar que significa “Centro de Avaliação e
Treinamento”, que coisa de um quarto do pessoal regular do Serviço acima
do nível de GS-9 começou frequentando, especialmente quem — como eu
— entrou via programa de recrutamento. Hoje em dia são dois centros
desses, um em Indianápolis e outro um pouquinho maior em Columbus OH.
Os dois CATs são divisões do que o pessoal costuma chamar de Escola do
Tesouro, já que o Serviço é tecnicamente um ramo do Departamento do
Tesouro dos Estados Unidos. Mas o Tesouro também inclui tudo que vai do
Bureau de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo ao Serviço Secreto dos EUA,

então “Escola do Tesouro” agora cobre uma dúzia de programas e


instalações diferentes de treinamento, inclusive a Academia Federal de
Polícia em Athens GA, pra onde vão os que forem lotados nas Investigações
Criminais pelo CAT, pra treinamento especializado que eles fazem com os
agentes do Bureau, do DEA, policiais federais e assim por diante.
Enfim, calmantes que nem Seconal e Valium simplesmente me faziam
dormir direto, e com qualquer tipo de barulho, inclusive de despertador, por
catorze horas direto, então eles também não ficavam muito lá no alto da
minha lista. Você tem que entender que a maioria dessas drogas era não só
comum como fácil de comprar naquela época. Isso era ainda mais verdade
na UIC, onde o colega com quem eu ficava vendo o pé e saindo o tempo todo
pra ir no Hat era meio que uma máquina automática de vender drogas
recreativas, por ter estabelecido conexões com traficantes de nível médio
nos subúrbios da zona oeste, o que sempre deixava ele superparanoico e
desconfiado se você perguntava alguma coisa sobre esses caras, como se
eles fossem da máfia e não só casais jovens que moravam nuns conjuntos
habitacionais. Eu sei que uma coisa que ele achava legal em mim, por outro
lado, como colega de quarto, era que tinha tanto tipo de droga que eu não
curtia ou que não me descia bem que ele não precisava viver preocupado se
eu ia descobrir onde ele mocozava as drogas — que ele normalmente
guardava em dois estojos de violão no fundo da metade dele do armário, o
que qualquer imbecil ia ter sacado só por causa do jeito dele com aquele
armário ou da quantidade de estojos que ele tinha lá comparada com o
único violão que ele pegava pra ficar tocando sem parar aquelas duas
músicas — ou roubar tudo dele. Como quase todo trafica estudante, ele não
vendia cocaína, já que rolava dinheiro demais nisso, pra não falar dos
cheiradões que vinham bater na tua porta às três da matina, daí quem se
envolvia com cocaína eram uns caras um pouco mais velhos com chapéu de
couro e uns bigodinhos de rato que trabalhavam em bares que nem o Hat e
o King Philip, que era outro pub da moda na época, perto da Bolsa na
Monroe, onde eles também vendiam pra corretores mais jovens.
Esse meu colega de quarto da UIC costumava ter um estoque generoso de
alucinógenos, que naquela época tinham saído com tudo do submundo, mas
alucinógeno me dava medo, principalmente por causa do que eu lembrava
de ter acontecido com a filha do Art Linkletter — os meus pais gostavam
muito de ver o Art Linkletter quando eu era pequeno.
Como qualquer estudante universitário normal, eu gostava de álcool,
especialmente de cerveja em bares, apesar de não gostar de beber até ficar
mal — ficar de estômago revirado é uma coisa que eu basicamente não
encaro. Prefiro mil vezes sentir dor do que náusea. Mas também, como
quase todo mundo que não era cristão evangélico nem estava na Cruzada
Universitária, eu gostava de maconha, que na região de Chicago naquela
época era chamada de erva ou “marofa”. (Ninguém que eu conhecia
chamava cocaína de pó, e só quem dava uma de hippie chamava maconha
de “fumo”, que tinha sido o termo bacana dos anos sessenta, mas agora
estava fora de moda.) Esse uso de erva tinha chegado ao auge no colegial,
mas eu ainda fumava maconha às vezes na universidade, apesar de eu
suspeitar que era basicamente pra fazer o que quase todo mundo fazia — na
Lindenhurst, por exemplo, quase todo o pessoal fumava maconha direto e
até abertamente às quartas-feiras no gramado, que todo mundo chamava de
“Quarta-Farra”. Devo acrescentar que agora que estou no IRS, claro, os meus
dias de maconheiro já vão longe. Pra começo de conversa, o Serviço é
tecnicamente uma agência da lei, e ia ser muito hipócrita e muito errado.
Relativamente a isso, a cultura toda da Divisão de Análises é contrária à
maconha, já que até as Análises Moleza exigem um estado mental claro,
organizado e metódico, a pessoa com capacidade de se concentrar por
longos períodos e, mais ainda, com capacidade de escolher em que se
concentrar ou o que ignorar, uma capacidade que fumar maconha ia
praticamente aniquilar.
Mas, por outro lado, durante esse período todo eu tive de vez em quando
os meus problemas com o tal Obetrol, que é quimicamente similar à
Dexedrina mas que não tinha aquela coisa horrorosa do hálito e do gosto
ruim na boca que a Dexedrina tinha. Também era similar à Ritalina, mas
bem mais fácil de conseguir, já que o Obetrol foi o moderador de apetite
preferido das gordinhas por vários anos lá pela metade dos setenta, e que eu
gostava tanto mais ou menos pelas mesmas razões de eu ter gostado da
Ritalina tanto assim naquela única vez, ainda que também em parte —
nesse período mais recente, eu já cinco anos mais velho do que na época da
escola — por outras razões mais difíceis de explicar. A minha afinidade
com o Obetrol tinha a ver com autoconsciência, o que comigo mesmo eu
chamava de “redobro”. É difícil de explicar. Veja a maconha, por exemplo
— tem gente que diz que fumar maconha deixa a pessoa paranoica. Mas pra
mim, apesar de eu gostar de maconha em algumas situações, o problema era
mais específico — fumar maconha me deixava autoconsciente, às vezes
tanto que ficava difícil eu não fugir de todo mundo. Esse foi outro motivo
pra ser tão tenso e tão constrangedor fumar maconha com a minha mãe e a
Joyce — a verdade é que eu preferia mesmo era fumar maconha sozinho, e
eu ficava bem mais à vontade com a maconha se pudesse ficar doidão
sozinho e só meio que viajar mesmo. Estou mencionando isso pra comparar
com o Obetrol, que dava pra eu tomar ou como cápsula normal ou soltar as
duas metadinhas e esmagar as bolinhas lá de dentro pra fazer um pó e
cheirar com um canudo ou com uma cédula enrolada, que nem cocaína. Só
que cheirar Obetrol queima o nariz por dentro que é uma loucura, então
quando eu usava eu costumava preferir à moda antiga, o que eu chamava de
obetrolar. Não que eu obetrolasse o tempo todo — era mais uma coisa
recreativa, e não era fácil de achar, dependia das gordinhas que você
conhecia em determinada universidade levarem ou não a sério a dieta, o que
algumas faziam e outras não, como acontece com qualquer coisa. Uma
colega que me passou as cápsulas quase um ano inteiro na DePaul nem era
tão gorda — a mãe dela é que mandava pra ela, junto com os cookies que
ela fazia, estranhamente — estava na cara que a mãe tinha lá seus conflitos
psicológicos com a questão da comida e do peso e ela tentava projetar na
filha, que não era bem uma gata mas definitivamente descolada e blasé
nisso da neurose da mãe com o peso dela, e mais ou menos dizia “Tanto
faz”, e ficava bem felizinha de desovar os Obetrols dela por dois dólares
cada e dividir os cookies com a colega de quarto. Também tinha um cara no
dormitório do prédio da Roosevelt que tomava por receita, pra narcolepsia
— às vezes ele simplesmente apagava no meio do que estivesse fazendo e
tomava Obetrol por necessidade médica, já que aquilo era nitidamente
superbom pra narcolepsia — e muitíssimo de vez em quando ele dava um
ou outro se estivesse de bom humor, mas nunca vendia nem traficava — ele
achava que azedava o carma. Mas no geral não era difícil de achar, apesar
de que o colega de quarto da UIC nunca andava com Obetrol pra vender e
pegava no meu pé por causa do Obetrol, que ele chamava de “Queridinho
da mamãe” dizendo que se alguém quisesse aquilo era só tocar a campainha
de qualquer dona de casa gordinha da região de Chicago, o que era
obviamente um exagero. O Obetrol não era tão popular assim. Não havia
nem um nome de rua ou um eufemismo pra ele — se você estava
procurando Obetrol, tinha mesmo é que dizer o nome comercial dele, que
por alguma razão parecia incrivelmente careta, e não existia tanta gente
assim que eu conhecia que gostasse das capsulazinhas pra “obetrolar” virar
uma candidata a palavra bacana.
O motivo de eu mencionar a maconha é a comparação. Obetrolar não me
deixava autoconsciente. Mas me deixava muito mais ligado em mim. Se eu
estivesse num quarto e tivesse tomado uma ou duas cápsulas com um copo
d’água, quando o efeito vinha eu estava não só no quarto mas ciente de
estar no quarto. Pra dizer a verdade, lembro que eu vivia pensando, ou me
dizendo, baixinho mas bem claramente: “Eu estou nesta sala aqui”. É uma
coisa difícil de explicar. Na época eu chamava de “redobro”, mas ainda não
sei direito o que eu queria dizer com isso nem por que me parecia tão
profundo e tão descolado não apenas estar numa sala mas estar totalmente
ciente de estar na sala, sentado em determinada poltrona e em determinada
posição ouvindo determinada faixa específica de um disco cuja capa tinha
determinada combinação de cores e formas — estar num estado de alerta
tão grande que eu podia me dizer conscientemente: “Eu estou nesta sala
aqui neste exato momento. A sombra do pé está girando pra leste naquela
parede. A sombra não é reconhecível como um pé por causa da deformação
do ângulo da luz da posição do sol por trás da placa. Eu estou sentado bem
reto numa poltrona verde-escura com uma queimadura de cigarro no braço
direito dela. A queimadura é preta e imperfeitamente redonda. A faixa que
eu estou escutando é ‘The Big Ship’ do Another Green World do Brian Eno,
cuja capa tem umas figuras coloridas de recorte dentro de um quadro
branco”. Dito assim tão claramente, esse nível de detalhe pode parecer
tedioso, mas não era. A sensação que dava era meio que de emergir, por
mais que fosse por pouco tempo, da vagueza e da deriva da minha vida
naquele período. Como se eu fosse uma máquina que de repente percebia
que era um ser humano e que não precisava só reproduzir mecanicamente o
que eu tinha sido programada pra fazer sem parar. Também tinha a ver com
prestar atenção. Não era aquela coisa normal das drogas que deixa as cores
mais fortes ou a música mais alta. O que ficava mais forte era a minha
percepção da minha própria parte em tudo, que eu podia prestar atenção de
verdade naquilo. Que eu podia, por exemplo, ficar olhando a parede do
dormitório, de um bege ou castanho bem comerciais, e não só ver a parede
mas ter consciência de estar vendo — isso era no dormitório da UIC — e de
que eu normalmente vivia dentro daquelas paredes e era talvez afetado de
tudo quanto era jeito sutil por aquela cor comercial delas mas costumava
não ter consciência do que elas me faziam sentir, não prestava atenção na
sensação que ficar olhando pras paredes me causava, nem mesmo na cor e
na textura delas, porque eu nunca olhava as coisas de um jeito preciso,
atento. Era até impressionante. A textura basicamente era lisa, mas se você
prestasse muita atenção também tinha um monte de fios e de grumos
encravados que os pintores tendem a deixar quando recebem por
empreitada e não por hora e com isso ficam motivados a correr. Se você
olhar pra alguma coisa de verdade, quase sempre vai dar pra saber que tipo
de acordo salarial a pessoa que fez aquilo tinha. Ou da sombra da placa e de
como a posição e a altura do sol naquela hora afetavam a forma da sombra,
que basicamente parecia que se contraía e se expandia enquanto a placa de
verdade girava do outro lado da rua, ou de como acender e apagar a
lampadinha do lado da poltrona mudava o jogo de luz e sombra na sala e
alterava as sombras dos objetos e até o tom específico das paredes e do teto
e afetava tudo, e — graças ao “redobro” — também perceber que eu estava
ligando e desligando a lâmpada e notando as mudanças e sendo afetado por
elas, e pelo fato de eu saber que estava notando tudo isso. Que eu percebia
que percebia. De repente isso pode soar abstrato ou doidão, mas não é. Pra
mim parecia uma coisa viva. Tinha alguma coisa nisso que eu preferia. Eu
podia ficar ouvindo Floyd, por exemplo, ou até um dos discos constantes do
meu colega lá no quarto dele sei lá Sgt. Pepper’s, e não só ouvir a música,
cada nota, cada compasso, cada modulação e resolução de cada faixa, mas
agora, com o mesmo tipo de percepção e de discriminação, saber que eu
estava fazendo isso — “Neste exato momento estou ouvindo o segundo
refrão de ‘Fixing a Hole’ dos Beatles” — mas ao mesmo tempo consciente
das sensações e dos sentimentos exatos que a música produzia em mim.
Isso pode parecer ripongão, sentimentos e coisa e tal. Mas baseado nessa
minha experiência da época quase todo mundo vive sentindo uma coisa ou
adotando uma atitude ou decidindo prestar atenção em alguma coisa ou em
alguma parte de uma coisa sem nem saber que está fazendo isso. A gente
faz no automático, que nem um coração batendo. Às vezes eu estava lá
sentado numa sala e percebia quanto esforço custava prestar atenção só no
teu coração batendo por mais de coisa de um minuto — é quase como se o
teu coração quisesse ficar fora do limite da atenção, que nem um astro de
rock fugindo dos holofotes. Mas está lá se você conseguir se redobrar e se
forçar a prestar atenção. A mesma coisa com música também, o redobro era
conseguir ao mesmo tempo ouvir com muita atenção e ainda sentir todas as
emoções que a música evocava — porque obviamente é por isso que a
gente curte música, porque ela faz a gente sentir certas coisas, senão era só
ruído — e não só ter essas sensações, ouvindo, mas ter consciência delas,
conseguir dizer pra você mesmo: “Esta música está fazendo eu me sentir ao
mesmo tempo quentinho e seguro, como se eu estivesse aninhado igual a
um menininho que acabou de ser tirado do banho e enrolado em toalhas
que foram lavadas tantas vezes que são incrivelmente macias, e também ao
mesmo tempo triste; tem um vazio no centro do calor igual à tristeza de
uma igreja vazia ou de uma sala de aula com um monte de janelas que
deixam ver a chuva na rua, como se bem no meio dessa sensação de
segurança e de abrigo ficasse a semente do vazio”. Não que você fosse
necessariamente dizer com essas palavras, só que era nítido e palpável a
ponto de poder ser dito de um jeito muito específico, se você quisesse. E de
você perceber essa nitidez também. Enfim, por isso é que eu curtia o
Obetrol. O negócio não era só apagar com uma trilha sonora bonitinha ou
encurralar alguém contra a parede numa festa.
E também não era só de coisa boa e feliz que você ganhava essa
consciência, tomando Obetrol ou Cylert. Tinha coisa que você percebia que
não era legal, era simplesmente a realidade. Assim que nem estar lá sentado
na sala do dormitório da UIC ouvindo o colega-de-quarto-barra-rebelde-
social de Naperville no quarto dele falando no telefone — esse suposto não
conformista tinha uma linha telefônica própria, que adivinha só quem
pagava… — falando com alguma aluna, que se não tivesse música ou a TV

ligada, não dava pra deixar de ouvir pela parede, que era famosa por ser
fácil de atravessar com um soco se você era do tipo que socava parede, e
ouvindo esse palavrório sedutor com a aluna, e não só meio que detestando
o cara e sentindo vergonha dele por causa daquele jeito afetado de falar com
as meninas — até parece que alguém que prestasse a menor atenção ia
deixar de ver a força que ele estava fazendo pra tentar projetar essa ideia de
si próprio como um cara descolado e radical sem ter a menor noção de
como aquilo soava mesmo, que era mimado, inseguro e fútil — e ouvindo e
sentindo isso tudo, mas também desconfortavelmente ciente de estar, ou
seja, tendo que sentir e perceber conscientemente essas reações internas em
vez de só deixar elas agirem em mim sem admitir direito essas coisas pra
mim mesmo. Acho que eu não estou me explicando direito. Era assim uma
coisa de ter que conseguir se dizer “Eu estou fingindo que estou aqui
sentado lendo A queda do Camus pra primeira prova de literatura e
alienação, mas na verdade estou me concentrando pacas em ouvir o Steve
tentando impressionar uma menina pelo telefone, e estou sentindo vergonha
e desprezo por ele, e pensando que ele é um falso, e ao mesmo tempo eu
fico incomodamente desconfortável às vezes porque eu também já tentei
projetar uma ideia de mim como um cara descolado e cínico pra
impressionar alguém, ou seja, eu não só meio que detesto o Steve, o que
com toda sinceridade é verdade mesmo, mas parte da razão de eu detestar
o Steve é que quando fico escutando ele falar no telefone eu sou forçado a
ver as semelhanças e a perceber coisas a meu respeito que me deixam
envergonhado, mas não sei exatamente como parar de fazer essas coisas —
assim, se eu parar de tentar ser niilista, até só pra mim mesmo, aí o que é
que ia acontecer, como é que eu ia ser? E será que vou conseguir lembrar
disso tudo quando eu não estiver obetrolado, ou será que vou voltar a ficar
irritado com o Steve Edwards sem me deixar tomar consciência disso
direito ou do porquê?” Será que isso faz sentido? Às vezes dava medo,
porque eu via isso tudo com uma nitidez desagradável, se bem que eu não ia
ter usado uma palavra que nem niilismo durante aquele período sem tentar
fazer ela soar descolada ou como se fosse uma alusão a alguma coisa, o que
internamente, na clareza do redobro, eu não ia me ver tentado a fazer, já que
eu só fazia esse tipo de coisa quando não estava bem ligado no que estava
fazendo ou nos meus objetivos reais, mas sim em algum tipo esquisito de
piloto automático robô. O que, quando eu tomava Obetrol — ou uma vez
só, na DePaul, uma variante chamada Cylert, que só vinha em comprimidos
de 10 mg, e só esteve à mão uma vez numa situação bem especial que
nunca se repetiu —, eu tendia a perceber de novo que eu nem estava
sacando o que estava rolando, quase nunca. Que nem andar de trem em vez
de ir dirigindo você mesmo e ter que saber onde é que você está e ter que
tomar decisões sobre onde fazer uma curva. No trem, você pode
simplesmente desligar e deixar rolar, que era o que parecia que eu estava
fazendo o tempo todo. E eu tinha consciência disso, também, com esses
estimulantes, e consciência do fato de estar consciente. Só que as
consciências eram passageiras, e depois que passava o efeito do Obetrol —
o que normalmente incluía uma puta dor de cabeça — depois parecia que eu
mal lembrava de tudo que tinha ganhado consciência. A memória da
sensação de acordar de repente e ter consciência das coisas parecia vaga e
difusa, que nem assim uma coisa que você acha que está vendo bem com o
canto do olho, mas aí não consegue ver quando tenta olhar direto. Ou meio
que nem um fragmento de memória que você não sabe direito se era de
verdade ou fazia parte de um sonho. Bem como eu tinha previsto e tinha
temido quando estava redobrado, claro. Então não era só moleza, o que era
uma das razões da obetrolagem parecer uma coisa verdadeira e importante e
não uma palhaçada e um negócio gostoso que nem maconha. Tinha coisa ali
que era desagradavelmente vívida. Uma coisa assim não só de acordar
consciente de não gostar do colega de quarto e das camisas jeans de
operário dele e de ter que fingir que gostava dele e achava ele bacana pra
conseguir aquele grama de haxixe com o cara ou sei lá mais o quê, e não só
de não gostar da situação toda de dividir o quarto e até o ritualzinho niilista
do pé e do Hat, que a gente fingia que era bem mais descolado e mais
engraçado do que era — já que não era uma coisa que a gente tinha feito só
uma ou duas vezes, mas que a gente basicamente fazia o tempo todo, que
no fundo era só uma desculpa pra não estudar nem fazer a tarefa e ficar
sendo uns lesados enquanto os nossos pais pagavam a universidade, a
moradia estudantil, a comida — mas também de ter consciência, quando eu
olhava de verdade aquilo tudo, de que uma parte de mim tinha escolhido
dividir o quarto com o Steve Edwards porque uma parte de mim na verdade
gostava de meio que não gostar dele e de catalogar as coisas que eram
hipócritas nele e me deixavam meio com uma repulsa constrangida, e de
que devia ter umas razões psicológicas lá pra eu morar, comer, festar e jogar
conversa fora com uma pessoa de quem eu nem gostava e que eu nem
respeitava muito… o que provavelmente queria dizer que eu não me
respeitava tanto assim, também, e que era por isso que eu era tão
conformista. E o negócio é que, sentado ali entreouvindo o Steve dizer pra
menina no telefone que ele sempre achou que as mulheres de hoje tinham
que ser vistas como algo além de meros objetos sexuais se ainda houvesse
esperança pra raça humana, eu ficava articulando tudo isso sozinho, com
muita clareza, muito conscientemente, em vez de só ficar largado ali com
esse monte de sensações e de reações sobre aquele cara e sem chegar a ter
consciência mesmo disso tudo. Então aquilo no fundo era acordar e
perceber o quanto eu normalmente não tinha consciência das coisas e saber
que eu ia voltar a dormir daquele jeito quando passasse o efeito artificial
das bolinhas. Ou seja, não era só moleza. Mas dava uma sensação de vida, e
era provavelmente por isso que eu gostava. Parecia que eu era dono de
verdade de mim mesmo. Em vez de estar, sei lá, só me alugando. Mas essa
analogia aí parece muito vagabunda, que nem uma tiradinha vagabunda. É
ruim de explicar, e isso aqui já está provavelmente levando mais tempo do
que eu devia usar pra explicar. E também é óbvio que eu não estou tentando
passar alguma mensagem pró-dependência de drogas aqui. Mas era
importante. Hoje em dia eu gosto de pensar no Obetrol e nos outros
subtipos de bolinhas como mais assim meio que uma placa ou uma seta no
caminho, alguma coisa que apontava o que podia ser possível se eu pudesse
ter mais consciência de tudo e pudesse ser mais vivo assim no cotidiano.
Nesse sentido, acho que abusar dessas drogas foi uma experiência valiosa
pra mim, já que eu era tão totalmente moloide e largado naquela época que
eu precisava meio que de uma pista bem clara, bem direta, de que isso de
ser um adulto vivo, responsável e autônomo era bem mais complicado do
que eu imaginava.
Por outro lado, nem precisa dizer que o barato é a moderação. Não dava
pra você ficar o tempo todo tomando Obetrol e ali sentado redobrado e
consciente e ainda ter alguma esperança de cuidar direito da vida. Eu
lembro de não ter conseguido ler A queda do Camus a tempo, por exemplo,
e de ter que enrolar totalmente na prova de literatura da alienação — em
outras palavras, eu era uma fraude, pelo menos por tabela — mas não
estava me incomodando muito com aquilo tudo, que eu consiga me lembrar,
só meio que sentindo um alívio cínico e enojado quando o monitor do
professor escrevia alguma coisa tipo “Algumas ideias são interessantes!”
embaixo do B. O que significava uma resposta de merda que não
significava nada pra uma merda que não significava nada. Mas não dava pra
negar que era forte — aquela sensação de que tudo que era importante
estava bem ali e que eu podia de vez em quando acordar quase com um pé
no ar enquanto andava, e de repente ganhar essa consciência. É difícil de
explicar. A verdade é que eu acho que o Obetrol e isso de redobrar foi a
minha primeira ideia do tipo de ímpeto que eu acho que acabou me levando
pro Serviço e pros problemas e as prioridades especiais aqui do Centro
Regional de Análise. Tinha alguma coisa a ver com prestar atenção e com a
capacidade de escolher em que prestar atenção, e de ter consciência dessa
escolha, do fato de ser uma escolha. Eu não sou o cara mais inteligente do
mundo, mas até durante aquele período todo, patético e desorientado, acho
que bem no fundo eu sabia que a vida era mais e que eu era mais do que os
impulsos psicológicos normais de prazer e de vaidade que eu deixava me
conduzirem. Que eu tinha umas coisas que não eram merda e que não eram
criancice, mas que eram profundas, e não eram abstratas, mas que eram na
verdade bem mais reais que as minhas roupas ou a minha autoimagem, e
que brilhavam assim de um jeito quase sagrado — eu estou falando sério;
não estou querendo fazer isso tudo soar mais dramático do que foi — e que
essas partes mais reais, mais profundas de mim não tinham a ver com
impulsos nem com apetites, mas simplesmente com atenção, consciência,
era só eu conseguir ficar acordado sem as bolinhas.
Mas não dava. Conforme mencionado, normalmente depois eu nem
conseguia lembrar o que era que tinha parecido tão nítido e tão profundo
naquilo de que eu ganhei consciência lá naquela poltrona verde e barata do
inquilino anterior, que alguém tinha simplesmente deixado lá no quarto
quando foi embora do dormitório e que tinha alguma parte quebrada ou
empenada na estrutura por baixo das almofadas e meio que adernava de um
lado quando você tentava se reclinar, e aí você tinha que sentar nela bem
retinho e bem ereto, o que era uma coisa esquisita. O incidente todo do
redobro ficava coberto meio que de uma névoa mental na manhã seguinte, e
mais ainda se eu acordava tarde — o que era normal acontecer, já que pegar
no sono era basicamente um tipo de efeito das anfetaminas — e tinha meio
que sair correndinho pra aula sem nem perceber ninguém nem nada que
passava na minha frente. Em essência eu era um desses caras que têm
horror de atraso mas que vivem chegando atrasados. Se eu chegava atrasado
em alguma coisa normalmente ficava tenso e nervoso demais assim de cara
até pra poder seguir o que estava acontecendo. Sei que herdei do meu pai
esse medo de atraso. Sem contar que é bem verdade que às vezes essa
consciência despertada e a autoarticulação do redobro por causa do Obetrol
podiam passar do limite — “Agora eu estou consciente de que estou
consciente de que estou sentado reto desse jeito meio esquisito, agora eu
estou consciente de que sinto uma coceira no lado esquerdo do pescoço,
agora estou consciente de que estou deliberando se coço ou não coço,
agora estou consciente de prestar atenção naquela deliberação e da
sensação provocada pela ambivalência em relação à coceira e do que essas
sensações e a minha consciência delas fazem com a minha consciência da
intensidade da coceira”. O que significa que depois de um certo ponto o
elemento de escolha de atenção no redobro meio que se perdia e a
consciência meio que explodia em um salão de espelhos de sensações
conscientemente percebidas e de ideias e de consciências de consciências
de consciências disso tudo. Isso era atenção sem escolha, o que significa a
perda da capacidade de se concentrar e se centrar numa coisa só, e era outro
grande incentivo à moderação no uso do Obetrol, especialmente tarde da
noite — tenho que admitir que eu sei que uma ou duas vezes me perdi tão
feio nos salões ou nas camadas empilhadas de consciência da consciência
que fui ao banheiro bem ali na poltrona — isso foi na Lindenhurst College,
onde eram três moradores por unidade e tinha uma “sala social”
semimobiliada no meio da unidade, onde ficava o sofá — o que, mesmo
naquela época, parecia um nítido sinal da perda de prioridades básicas e do
fracasso em lidar com a realidade. Por algum motivo hoje eu às vezes me
visualizo tentando explicar pro meu pai como acabei tão totalmente
concentrado e consciente que fiquei ali sentado e mijei na calça, mas a
imagem se interrompe bem na hora que ele abre a boca pra responder, e eu
tenho 99% de certeza de que isso não é uma lembrança de verdade — como
é que ele podia saber alguma coisa de uma poltrona lá na Lindenhurst?
Que fique bem claro, é verdade que eu tenho saudade do meu pai e que
fiquei bem transtornado com aquilo tudo, e às vezes eu fico bem triste
quando penso que ele não está aqui pra ver a carreira que escolhi e as
mudanças em mim, enquanto pessoa, por conta disso, e pra ver algumas das
minhas avaliações de desempenho PP-47, e pra eu conversar com ele sobre
sistemas de custos e contabilidade forense de uma perspectiva
incrivelmente mais adulta.
E mesmo assim esses momentinhos de uma consciência mais profunda,
gerados ou não pelas drogas — porque dá pra discutir que relevância isso
tem no final das contas — provavelmente tiveram um efeito mais direto na
minha vida e na minha mudança de rumo e na minha entrada no Serviço em
1979 do que o acidente do meu pai, ou quem sabe até mais que a
experiência traumática que eu tive na aula de contabilidade avançada que
assisti por engano na minha segunda, que acabou sendo bem mais atenta e
bem-sucedida, passagem pela DePaul. Eu já mencionei esse curso. Pra
encurtar a história, o lance dessa experiência é que o campus da DePaul no
Lincoln Park tinha dois prédios novos bem parecidos, eles eram
literalmente quase imagens especulares um do outro, de propósito,
arquitetonicamente, e eram interligados tanto no térreo quanto — por um
gio elevado não muito diferente desse nosso aqui no CRA Meio-Oeste — no
terceiro andar, e os departamentos de ciências contábeis e políticas da
DePaul ficavam nos dois prédios diferentes desse conjuntinho idêntico, eu
não lembro o nome deles neste momento. O nome dos dois prédios. Era o
último horário de aula pras turmas de terça e quinta no semestre de outono
de 78, e a gente ia ter aula de revisão pra prova final de pensamento político
americano, que ia ser inteira discursiva, e no caminho pra essa aula de
revisão eu sei que estava tentando rever mentalmente as áreas que eu queria
garantir que pelo menos uma pessoa da turma fizesse alguma pergunta —
não tinha que ser eu — em termos de que grau de profundidade essas áreas
iam ter na final. Fora introdução à contabilidade, eu ainda estava fazendo
basicamente disciplinas de psicologia e ciência política — nesse caso
especialmente por causa das exigências pra você poder declarar que
diploma ia tirar, senão não dava pra se formar — mas agora que eu não
estava tentando escapar com qualquer merda de última hora, essas aulas
eram obviamente bem mais difíceis e mais pesadas. Lembro que quase toda
a versão DePaul de pensamento político americano tinha a ver com O
federalista, de Madison et al., que eu já tinha visto na Lindenhurst mas não
lembrava quase nada. Em essência, eu estava tão concentrado pensando na
revisão e na prova final que o que aconteceu foi que entrei pela porta errada
do prédio sem perceber, e acabei na sala certa do terceiro andar, mas no
prédio errado, e essa sala era uma imagem especular tão idêntica da sala
certa do prédio ao lado, do outro lado do gio, que nem notei o erro assim de
cara. E acabou que nessa sala estava rolando a última aula de revisão de
contabilidade avançada, uma disciplina famosa por ser difícil lá na DePaul
que era conhecida como o equivalente no departamento de ciências
contábeis do que a química orgânica era pros alunos de ciências — a
barreira final, a aula que derrubava os fracos, que precisava de vários pré-
requisitos e só era aberta pra veteranos prestes a se formar em contabilidade
e pós-graduandos, e que diziam que era ministrada por um dos poucos
professores jesuítas que ainda restavam na DePaul, o que significava um
cara com o conjunto oficial de roupas pretas e brancas e absolutamente
lhufas de senso de humor ou de desejo de ser amado ou de criar uma
“ligação” com os alunos. Na DePaul, os jesuítas eram notoriamente jogo
duro. O meu pai, aliás, foi criado católico, mas tinha nada ou quase nada a
ver com a igreja quando adulto. A família da minha mãe originalmente era
luterana. Como muita gente da minha geração, não tive uma formação
religosa. Mas esse dia na sala idêntica também acabou sendo um dos
acontecimentos mais inesperadamente poderosos, determinantes da minha
vida na época, e me causou uma impressão tão grande que até hoje me
lembro do que eu estava usando ali sentado — blusa listrada vermelha e
branca de orlon, calça branca de pintor e uma bota Timberland de uma cor
que o meu colega de quarto — que era um veterano sério de química,
àquela altura nada de Steve Edwardses e pés giratórios — chamava de
“amarelo bosta de cachorro”, com os cadarços desamarrados e arrastando
no chão, que era o jeito que todo mundo que eu conhecia ou que andava
comigo usava aquela bota naquele ano.
Por falar nisso, acho mesmo que consciência é uma coisa diferente de
pensamento. Eu sou igual a quase todo mundo, acho, nisto de que não
penso nas coisas mais importantes assim em grandes blocos intencionais de
ficar sentado direto numa cadeira e saber de antemão no que é que eu vou
pensar — assim, por exemplo: “Vou pensar na minha vida, no meu lugar
nela e no que é realmente importante para mim, para daí poder começar a
estabelecer objetivos concretos e determinados, e projetos para a minha
carreira de adulto” — e aí eu sento ali e fico pensando até chegar a uma
conclusão. Não funciona assim. No meu caso, tendo a pensar nas coisas
mais importantes de uns jeitos incidentais, acidentais, quase distraídos.
Fazendo sanduíche, tomando banho, sentado numa cadeira de ferro na praça
de alimentação do shopping de Lakehurst e esperando alguém que está
atrasado, andando no trem da CTA e olhando ao mesmo tempo a paisagem
que passa e o meu reflexo transparente sobreposto a ela na janela — e de
repente você se liga que está pensando umas coisas que acaba que eram
importantes. É quase o contrário de consciência, se você parar pra pensar.
Acho que essa experiência de pensamento acidental é uma coisa comum,
por mais que não seja universal, apesar de não ser uma coisa que dê pra
falar com os outros porque acaba sendo muito abstrato e difícil de explicar.
Enquanto num estirão intencional de pensamento sério de verdade, em que
você fica sentado com a intenção consciente de confrontar questões pesadas
que nem “Será que eu sou feliz?” ou “Pra que coisas, no final de contas, eu
dou importância de verdade, e em que coisas eu acredito?” ou — ainda
mais se alguma figura de autoridade da vida acabou de pegar no teu pé —
“Será que eu sou essencialmente uma pessoa do tipo que contribui, que
vale a pena, ou uma pessoa indiferente, perdida, niilista?”, aí você
normalmente acaba não respondendo as perguntas, mas meio que cobrindo
elas de porrada, atacando as coitadas por tantos ângulos e com as diferentes
objeções e complicações de cada ângulo que elas acabam ainda mais
abstratas e radicalmente sem sentido do que quando você começou. Assim
você não chega a nada, pelo menos foi o que me disseram. Pode ter certeza:
por tudo que se sabe, nem são Paulo, nem Martinho Lutero, nem os autores
de O federalista, nem o presidente Reagan, eles nunca mudaram a direção
da vida deles desse jeito — foi mais por acidente.
Quanto ao meu pai, sou obrigado a admitir que não sei como ele pensava
pesado sobre as coisas que levaram aos rumos que ele seguiu a vida inteira.
Não sei nem se ele tinha uma reflexão séria, consciente nesse caso. Como
um monte de homens da geração dele, ele pode muito bem ter sido um
desses caras que simplesmente foram seguindo no piloto automático. Essa
postura dele na vida era que existem coisas que precisam ser feitas e você
vai lá e simplesmente faz — assim, por exemplo, ir trabalhar todo dia. De
novo, pode ser que isso seja mais um elemento da diferença de gerações. Eu
não acho que o meu pai adorava o emprego dele na prefeitura, mas por
outro lado não sei bem se ele algum dia se perguntou coisas sérias que nem
“Será que eu gosto do meu trabalho? Será que é isso que eu quero passar a
vida fazendo? Isso está me completando tanto quanto alguns daqueles
sonhos que eu tive para mim quando era jovem e servia o Exército na
Coreia e lia poesia britânica na minha cama de campanha de noite?”. Ele
tinha família pra sustentar, o trabalho dele era aquele, ele levantava todo dia
e fazia o seu trabalho, e ponto final, o resto é só bobajada complacente. Isso
pode até ter sido a soma total de uma vida pra ele, no que se referia a pensar
sobre o assunto. Ele essencialmente disse “Tanto faz” pro que lhe coube na
vida, mas claro que de um jeito bem diferente do “Tanto faz” que os lesados
sem rumo da minha geração dizem.
Já a minha mãe mudou o rumo da vida dela de uma forma impressionante
— mas, de novo, não sei se foi resultado de alguma reflexão concentrada.
Pra dizer a verdade, duvido. Não é assim que essas coisas funcionam. A
verdade é que quase todas as escolhas da minha mãe tiveram motivos
emocionais. O que era outra dinâmica comum da geração dela. Acho que
ela gostava de achar que a coisa feminista da conscientização e a Joyce e
aquilo tudo dela com a Joyce e o divórcio foram resultado de reflexão,
assim, uma mudança consciente de filosofia de vida. Mas no fundo foi
emocional. Ela teve meio que um colapso nervoso em 1971, apesar de
ninguém nunca ter usado essa palavra. E de repente ela ia fugir de “colapso
nervoso” e acabar dizendo que foi uma súbita mudança consciente de
crenças e de rumos. E quem é que pode discutir com uma coisa dessas?
Quem dera eu tivesse entendido isso na época, porque eu tive lá os meus
jeitos de ser malvadinho e superior com a minha mãe por causa da coisa
toda da Joyce e do divórcio. Quase como se eu inconscientemente ficasse
do lado do meu pai e assumisse a responsabilidade de dizer tudo de
malvadinho e de superior que ele era autodisciplinado e composto demais
pra se permitir dizer. Até especular sobre isso tudo provavelmente não faz
sentido — como o meu pai dizia, as pessoas são como são, e a única coisa
que te cabe de verdade é fazer o melhor jogo possível com as cartas que a
vida te deu. Eu nunca soube com nenhum grau de certeza se ele pelo menos
sentia saudade dela ou estava triste. Quando penso nele hoje, percebo que
ele estava sozinho, que foi bem duro pra ele, divorciado e sozinho naquela
casa em Libertyville. Depois do divórcio, de certa forma ele deve ter se
sentido livre, o que é claro que tem o seu lado bom — ele podia ir e vir
quando quisesse, e quando pegava no meu pé por algum motivo não tinha
que ficar preocupado em escolher as palavras com cuidado ou em discutir
com alguém que ia me defender de qualquer coisa. Mas esse tipo de
liberdade também fica bem perto, no contínuo psicológico, da solidão. As
únicas pessoas com quem a gente acaba sendo “livre” de verdade, desse
jeito, são os desconhecidos, e nesse sentido o meu pai tinha razão sobre
aquilo do dinheiro e do capitalismo serem o equivalente da liberdade, na
medida em que vender ou comprar alguma coisa não te obriga a nada mais
do que está escrito no contrato — se bem que tem o contrato social, que é
onde aparece a obrigação de pagar a sua cota justa de impostos, e eu acho
que o meu pai teria concordado com a afirmação do sr. Glendenning de que
“A liberdade real é a liberdade de obedecer à lei”. Isso tudo provavelmente
nem faz muito sentido. Enfim, a esta altura é tudo só especulação abstrata,
porque eu nunca conversei de verdade com nenhum dos meus pais sobre
como eles se sentiam sobre a vida adulta deles. Não é o tipo de coisa que os
pais sentam pra discutir abertamente com os filhos, pelo menos naquela
época não era.
Enfim, acho que ia ser útil eu dar umas informações de contexto aqui. A
maneira mais simples de definir um imposto é dizer que o valor do imposto,
simbolizado por I, é igual ao produto da base tributável e da alíquota
tributária. Isso normalmente é simbolizado por I5B3R, de modo que se
pode obter R5I/B, que é a fórmula pra determinar se uma tarifa é
progressiva, regressiva ou proporcional. Isso é contabilidade tributária
superbásica. É tão familiar pra maioria do pessoal do IRS que a gente nem
tem que pensar nisso. Mas, enfim, a variável crítica é a relação entre I e B.
Se a relação entre I e B se mantiver a mesma apesar de B, a base tributável,
poder subir ou descer, então o imposto é proporcional. Isso também é
conhecido como imposto de alíquota fixa. Um imposto progressivo é
quando a razão I/B aumenta quando B aumenta e diminui quando B diminui
— que é essencialmente como o imposto de renda marginal de hoje em dia
funciona, quando você paga 0% nos primeiros 2300 dólares, 14% nos
próximos 1100 dólares, 16% nos próximos 1000, e assim por diante, até
70% de tudo que ultrapassar $108 $300, o que é tudo parte da atual política
tributária do Tesouro americano, em teoria, que quanto mais renda anual
você tem, maior a proporção da sua renda que a sua obrigação fiscal deve
representar — se bem que é claro que na prática nem sempre funciona
assim, por causa de todas as deduções e dos créditos legais que fazem parte
do código tributário moderno. Enfim, programas de taxações progressivas
podem ser representados por um simples gráfico de barras ascendentes, com
cada barra representando uma alíquota fiscal. Às vezes as pessoas também
chamam um imposto progressivo de imposto gradual, mas não é a palavra
usada pelo Serviço. Um imposto regressivo, por outro lado, é quando a
razão I/B aumenta na medida em que B diminui, o que significa que você
paga mais impostos sobre as menores quantias, o que a princípio não faz
muito sentido em termos de justiça e do contrato social. Só que esses
impostos regressivos podem frequentemente aparecer disfarçados — por
exemplo, os que se opõem às loterias estaduais e aos impostos sobre o
tabaco vivem dizendo que essas coisas na verdade equivalem a taxação
regressiva disfarçada. O Serviço não tem nenhuma opinião formada sobre o
assunto. Enfim, a tributação de renda é quase sempre progressiva, por causa
dos ideais democráticos do nosso país. Aqui, por outro lado, estão alguns
tipos de impostos que costumam ser proporcionais ou fixos: bens imóveis,
bens móveis, aduana, consumo e, principalmente, a tributação de vendas.
Como muita gente aqui lembra, em 1977, com alta da inflação, alta dos
déficits, e durante a minha segunda passagem pela DePaul, houve um
experimento fiscal em Illinois em que o imposto sobre vendas passou de
proporcional a progressivo. Foi provavelmente a minha primeira
oportunidade de ver como a implementação de uma política fiscal pode
afetar de verdade a vida das pessoas. Como já mencionei, os impostos sobre
vendas costumam ser proporcionais, e isso de um jeito quase universal.
Como eu hoje entendo a questão, a ideia por trás da tentativa de
implementar uma tributação progressiva era aumentar a receita do Estado
sem que isso pesasse pros pobres do Estado ou desencorajasse os
investidores, sem contar que ia ajudar a combater a inflação ao taxar o
consumo. A ideia era que quanto mais você comprasse, mais imposto você
pagava, o que ajudaria a desencorajar a demanda e aliviar a inflação. O
imposto progressivo de vendas foi fruto das ideias de alguém lá no alto da
hierarquia do Escritório do Tesouro Estadual em 77. Quem exatamente era
essa pessoa, ou se ele envergou o capacete marrom de alguma maneira
depois do desastre que se seguiu, eu não sei, mas tanto o tesoureiro estadual
quanto o governador de Illinois definitivamente perderam o emprego por
causa do fiasco. Fosse de quem fosse a culpa, no fim, o fato é que a coisa
foi um hiperescorregão fiscal que pra dizer a verdade podia ter sido evitado
facilmente se alguém no Escritório do Tesouro Estadual tivesse se dado ao
trabalho de consultar o Serviço sobre a adequação do esquema. Apesar da
existência tanto do Escritório do Comissário Regional Meio-Oeste quanto
de um Centro Regional de Análise dentro das fronteiras de Illinois, está
confirmado que isso nunca aconteceu. Apesar das agências estaduais da
Receita dependerem de declarações tributárias federais e dos arquivos
máster do sistema informatizado do Serviço pra poderem fazer cumprir a lei
fiscal estadual, tem uma tradição de autonomia e de desconfiança entre os
escritórios estaduais da Receita em relação às agências federais como o IRS,
o que às vezes detona graves lapsos de comunicação, e o desastre fiscal de
Illinois em 77, dentro do Serviço, é um caso clássico e tema de várias
piadas e histórias profissionais. Como quase todo mundo aqui no Posto 047
teria dito pra eles, uma regra fundamental da boa execução fiscal é lembrar
que o contribuinte típico sempre vai agir movido pelo seu próprio interesse
monetário. Isso é lei econômica básica. Na tributação, o resultado é que o
contribuinte sempre vai fazer tudo que a lei permite que ele faça pra
minimizar os impostos devidos. Isso é simplesmente natureza humana,
coisa que os políticos de Illinois ou não conseguiram entender ou deixaram
de ver que implicações tinha pras transações que envolviam impostos sobre
a venda. Pode ser um caso em que o Escritório do Tesouro Estadual
permitiu que a coisa toda chegasse a um tal grau de complexidade e de
abstração que eles acabaram deixando de ver o que estava ali bem na cara
— a base, B, de um imposto progressivo não pode ser alguma coisa que dê
pra subdividir com facilidade. Se der pra subdividir fácil, aí o contribuinte
típico, movido pelo seu próprio interesse econômico, vai fazer tudo que ele
puder fazer dentro da legalidade pra subdividir o B em dois ou mais Bs
menores e evitar a progressão efetiva. E isso, no fim de 77, foi exatamente o
que aconteceu. O resultado foi o caos no varejo. Digamos, por exemplo, no
supermercado, aí os clientes não compravam mais três sacos grandes de
mercadorias num total de $78 pra se submeter ao pagamento de 6%, 6,8% e
8,5% das partes daquela compra que ultrapassassem $5,00, $20,00 e
$42,01, respectivamente — eles agora tinham uma motivação pra estruturar
aquela compra de mercadorias em diversas pequenas compras separadas de
$4,99 ou menos pra tirar vantagem do imposto muito mais atraente de
3,75% pras compras abaixo de $5,00. A diferença entre 8% e 3,75% é mais
do que suficiente pra estabelecer um incentivo e fazer o interesse próprio
econômico dos cidadãos vir à tona. Aí, na loja, você de repente via todo
mundo comprando menos de $5,00 em mercadorias, correndo pro carro,
colocando a sacolinha no carro, correndo de volta pra loja e comprando
outra quantidade que desse menos de $5,00, correndo pro carro, e assim por
diante. As filas das caixas nos supermercados começaram a ir até o fundo
da loja. Nas lojas de departamentos era a mesma coisa, e eu sei que os
postos de gasolina ficaram até piores — poucos meses depois do choque
dos fornecedores da Opep e das brigas na fila da gasolina por causa do
racionamento, agora, naquele outono em Illinois, começaram a surgir brigas
também nos postos por causa dos motoristas forçados a esperar enquanto as
pessoas que estavam na frente deles na fila da bomba tentavam colocar
$4,99 em dinheiro, ir pagar, voltar correndo, zerar a bomba, colocar mais
$4,99 e assim por diante. Era totalmente o oposto de descolado, pra dizer o
mínimo. E o custo administrativo de calcular o imposto sobre quatro
margens diferentes de valores praticamente faliu os varejistas. Os que
tinham caixas automáticos e sistemas de contabilidade viram os sistemas
caírem com a nova demanda. Pelo que entendi, os altos custos
administrativos do novo ônus contábil acabaram sendo transferidos pros
preços e causando uma bolha inflacionária em Illinois que irritou ainda
mais os consumidores que já andavam putos porque o imposto progressivo
estava forçando economicamente todo mundo a enfrentar a fila da caixa
umas seis vezes — ou mais em muitos casos. Teve quebra-quebra,
especialmente na região sul do estado, que faz fronteira com o Kentucky e
tende a ser, digamos, não lá muito compreensiva ou tolerante com a
necessidade que o governo tem de recolher tributos, pra começo de
conversa. A verdade é que o norte, o centro e o sul de Illinois são
praticamente países diferentes em termos culturais. Mas o caos foi no
estado inteiro. O tesoureiro do Estado quase foi crucificado. Os bancos
viram uma corrida desesperada por notas de um e moedinhas. Do ponto de
vista dos custos administrativos, a pior parte foi quando comerciantes mais
empreendedores viram naquilo uma nova oportunidade e começaram a usar
“Subdivisível!” como um apelo de vendas. Inclusive, por exemplo,
vendedores de carros usados, dispostos a te vender um carro como um
amontoado de transaçõezinhas separadas pro para-choque dianteiro, pro
para-lama traseiro direito, pra mola do alternador, pra vela de ignição e
assim por diante, com a compra estruturada como se fosse umas mil
transações diferentes de $4,99. Era tecnicamente legal, claro, e outros
varejistas de mais porte logo seguiram a corrente — mas acho que foi
quando os corretores de imóveis também começaram com isso de
subdividir que as coisas foram pras cucuias de uma vez por todas. Bancos,
corretores hipoteca, vendedores de commodities e de ações, o
Departamento de Receita de Illinois, todo mundo viu seus sistemas de
processamento de dados abrir o bico — o imposto progressivo sobre vendas
gerou um verdadeiro tsunâmi de informação de vendas subdivididas que
sufocou a tecnologia da época. A coisa toda foi derrubada menos de quatro
meses depois de começar. Pra dizer a verdade, o Legislativo estadual voltou
a Springfield no meio do recesso de Natal pra uma convocação especial só
pra derrubar a lei, já que aquele período tinha sido o mais desastroso pro
varejo — a temporada das compras de Festas de 77 foi um pesadelo que
ainda é motivo de conversas melancólicas com gente de fora daqui quando
o pessoal se vê parado em filas de caixa aqui no estado, ainda hoje, anos
depois. Mais ou menos como um calor ou um clima úmido ao extremo faz
as pessoas começarem a trocar lembranças sobre outros verões terríveis que
elas viveram. Springfield, aliás, é a capital do estado, além de ser o lugar
com uma quantidade insana de lembranças do presidente Lincoln.
Enfim, também foi nessa época que o meu pai morreu de repente num
acidente de metrô da CTA em Chicago, durante a correria quase
indescritivelmente horrenda e caótica das compras de fim de ano em
dezembro de 77, e o acidente, pra falar a verdade, aconteceu enquanto ele
estava fazendo essas compras no fim de semana, o que provavelmente
ajudou a deixar a coisa toda mais trágica ainda. O acidente não foi na
famosa parte “elevada” da CTA — ele e eu estávamos na estação da
Washington Square, vindo de Libertyville na linha alimentadora pra pegar
uma linha de metrô que ia mais pro centro da cidade. Acho que a gente
estava era indo pra loja de presentes do Art Institute. Eu estava passando o
fim de semana na casa do meu pai, lembro bem, pelo menos em parte,
porque eu tinha que estudar pesado pra minha primeira rodada de provas de
final de semestre desde que me rematriculei na DePaul, onde eu estava
morando no dormitório do campus da Loop. Pensando nisso agora, parte do
motivo de eu voltar pra casa em Libertyville pra estudar pode também ter
sido pra dar uma oportunidade pro meu pai ver eu me aplicando e
estudando sério num fim de semana, apesar de eu não lembrar de ter
consciência dessa motivação naquela época. Além disso, pra quem não
sabe, o sistema de trens da Chicago Transit Authority é uma barafunda de
linhas elevadas, convencionais e alimentadoras de alta velocidade. Como a
gente tinha combinado antes, fui com ele pra cidade naquele sábado pra
ajudar a achar algum presente de Natal pra minha mãe e pra Joyce — tarefa
que imagino que todo ano ele devia achar difícil — e também, acho, pra
irmã dele, que mora com o marido e os filhos em Fair Oaks, OK.
Basicamente, o que aconteceu na estação da Washington Square, quando
a gente estava fazendo a baldeação pro centro, foi que a gente desceu a
escada de cimento do metrô e foi dar no meio da multidão e do calor da
plataforma — até em dezembro os túneis do metrô de Chicago tendem a
ficar quentes, apesar de nem passarem perto do insuportável que é nos
meses de verão, mas, por outro lado, o calor de inverno nas plataformas é
uma coisa que você enfrenta mesmo de sobretudo e cachecol, e ali ainda
estava superlotado por causa das compras de última hora de Natal, com a
loucura e o caos adicionais também daquela tributação do imposto
progressivo naquele ano. Enfim, lembro que a gente chegou no pé da
escada e foi pra multidão da plataforma bem quando o trem veio
encostando — ele era de aço inoxidável e de plástico marrom, com adesivos
de ramos de azevinho total ou parcialmente descolados nas janelas dos
vagões — e as portas automáticas abriram com um som pneumático, e o
trem ficou parado em ponto morto por um momento enquanto a grande
massa de consumidores impacientes e cheios de um monte de sacolas de
pequenas compras ia entrando e saindo. Em termos de multidãozidade,
também era o horário de pico das compras de sábado à tarde. O meu pai
tinha querido fazer as compras de manhã, antes das multidões do centro da
cidade saírem totalmente de controle, mas eu dormi demais, e ele ficou lá
me esperando, nada satisfeito com isso e sem disfarçar. A gente finalmente
saiu depois do almoço — o que significava, no meu caso, o café da manhã
— e até da linha alimentadora pra cidade a multidão estava considerável.
Nós chegamos na plataforma mais entupida ainda de gente num momento
em que quase todo usuário de metrô reconhece que é constrangedor e meio
tenso, com o trem parado com as portas abertas, mas sem ninguém saber
quanto tempo elas ainda vão ficar assim, enquanto você atravessa a
multidão na plataforma, tentando alcançar o trem antes das portas fecharem.
Você não chega a pensar em correr ou empurrar as pessoas pra elas saírem
do caminho, já que a sua parte mais racional sabe que aquilo está longe de
ser uma questão de vida ou morte, que outro trem vai chegar dali a pouco e
que o pior que pode te acontecer é você quase conseguir entrar, as portas
fecharem bem na hora que você chegou perto delas, que quase você entrou,
mas vai ter que ficar esperando uns minutos mais na plataforma quente e
entupida de gente. Só que outra parte sua — ou pelo menos minha, e eu
tenho quase certeza, olhando agora daqui, que do meu pai também — quase
entra em pânico. A ideia das portas fechando e do trem com aquela
multidão de gente que conseguiu entrar, todo mundo lá dentro se afastando
de você bem na hora que você chegou na porta provoca uma sensação
estranha e involuntária de angústia ou desespero — acho que não tem nem
nome pra isso, psicologicamente falando, apesar de que pode estar ligado a
uns medos primais, pré-históricos, de você de alguma maneira acabar
perdendo a chance de comer o que te cabe da caça da tribo ou de se ver
sozinho no capim alto da savana no cair da noite — e, apesar de ele e eu
com certeza nunca termos falado disso, hoje suspeito que essa sensação
profunda e involuntária de angústia de conseguir chegar no trem parado a
tempo era ruim acima de tudo pro meu pai, que era um sujeito
superorganizado e disciplinadíssimo, com programações bem detalhadas e
que estava sempre exatamente na hora pra tudo, e pra quem a angústia
primal de quase conseguir chegar perto de alguma coisa era particularmente
pesada — apesar de que por outro lado ele também era um cara com uma
dignidade e uma compostura pessoal altas pacas que normalmente não ia
nunca querer ser visto dando tranco nos outros ou correndo numa
plataforma pública com o sobretudo voando atrás dele, a mão segurando o
chapéu cinza-escuro na cabeça, as chaves e as moedinhas soltas no bolso
chacoalhando pra todo mundo ouvir, a não ser que ele sentisse algum tipo
muito forte e irracional de pressão pra chegar no trem, porque no fim são as
pessoas mais disciplinadas, organizadas e compostas que você descobre que
estão sob as pressões internas mais radicais, por causa da repressão ou do
superego, e que podem de repente meio que surtar de trocentos jeitos
diferentes e, com pressão suficiente, agir de umas maneiras que assim de
cara podiam parecer totalmente nada a ver com o que você achava delas. Eu
não tinha como ver os olhos ou a expressão do rosto dele; eu estava atrás
dele na plataforma, primeiro porque ele costumava andar mais rápido que
eu — quando eu era criança, o termo que ele usava pra isso era “se arrastar”
— apesar de que, naquele dia, também foi porque a gente estava no meio de
mais uma batalhazinha psicológica infantil sobre eu ter dormido demais e
ter feito, pelo ponto de vista dele, ele “se atrasar”, por isso tinha alguma
coisa marcadamente impaciente no passo rápido e na pressa dele ali na
estação da CTA, ao que eu reagia de propósito não acelerando muito meu
passo normal nem fazendo muita força pra ficar junto dele, ficando atrás só
o suficiente pra ele se irritar, mas não o bastante pra fazer ele se virar e
pegar no meu pé por causa daquilo, além de eu adotar uma atitude meio
avoadona, apática — mais ou menos como uma criança sem noção, na
verdade, apesar, claro, de que eu nunca teria assumido isso na época. Em
outras palavras, a situação básica era ele puto e eu emburrado, mas nenhum
de nós dois consciente disso, nem de como era normal, pra nós, esse tipo de
lutazinha psicológica — olhando agora daqui, me parece que a gente fazia
esse tipo de coisa um com o outro o tempo todo, e provavelmente só por um
hábito inconsciente. Meio que uma dinâmica típica entre pais e filhos. Vai
ver era até parte da motivação inconsciente por trás da minha falta de rumo
generalizada e da minha preguiça monstro em todas as várias universidades
que ele tinha que acordar cedinho todo dia pra ir trabalhar pra pagar. Claro
que nada disso rolava num nível consciente pra mim naquela época, e nem
de longe era reconhecido ou discutido por qualquer um de nós dois. Num
certo sentido daria pra dizer que o meu pai morreu antes que a gente
pudesse se dar conta de até que ponto a gente estava envolvido nesses
rituaizinhos infantis de conflito, ou de quanto o casamento deles tinha sido
afetado pelo fato de a minha mãe viver sendo colocada no papel de
mediadora entre nós, com todo mundo ali representando papéis típicos de
que ninguém tinha plena consciência, como umas máquinas que estivessem
só fazendo o que tinham sido programadas pra fazer.
Eu lembro que, naquela pressa de passar pelas pessoas na plataforma, vi
ele se virar de lado pra abrir caminho com o ombro entre duas mulheres
hispânicas gordas e lentas que estavam indo na direção das portas abertas
do trem com umas sacolinhas de compras com alça de barbante, e uma
delas tomando uma joelhada da perna do meu pai e balançando pra frente e
pra trás. Não sei se essas mulheres estavam juntas mesmo ou só se viram
forçadas a andar assim tão do ladinho uma da outra pelo tamanho que
tinham e pela pressão das pessoas em volta. Elas não estavam entre as
pessoas entrevistadas depois do acidente, o que significa que já deviam
estar no trem quando tudo aconteceu. A essa altura eu só estava coisa de
dois metros, dois metros e meio atrás dele e claramente me apressando pra
chegar perto, já que o trem pro centro da cidade estava bem ali parado, e a
ideia do meu pai conseguir por pouco entrar no trem e eu ficar pra trás e
levar com as portas fechadas na cara, e de ver a expressão no rosto dele
emoldurada pelos adesivos de azevinho enquanto a gente se olhava pelas
partes envidraçadas das portas e ele ia se afastando no trem — acho que
qualquer um consegue imaginar como ele ia ficar puto e enojado, além de
cheio de razão e triunfante na nossa lutazinha psicológica a respeito de
pressa e “atrasos”, e aí eu senti a minha ansiedade crescendo diante da ideia
de ele conseguir entrar no trem e eu perder o trem por pouco, então àquela
altura eu estava tentando diminuir a distância entre nós. Até hoje não sei se
o meu pai teve consciência naquela hora de que eu estava quase grudado
atrás dele ou de que eu estava praticamente trombando com as pessoas no
caminho, e empurrando, de tão apressado pra chegar nele, porque, até onde
sei, ele não olhou pra trás por cima do ombro nem me fez nenhum sinal
enquanto ia indo pras portas do trem. No litígio todo que aconteceu depois,
nenhum dos interrogados e nenhum dos advogados deles contestaram uma
só vez o fato de que os trens da CTA a princípio só podem andar se todas as
portas estiverem completamente fechadas. E ninguém também tentou
contestar o meu relato sobre a ordem exata de tudo o que aconteceu, já que
naquele momento eu estava coisa de meio metro atrás dele, e testemunhei
tudo aquilo com uma clareza assustadora, como todo mundo reconheceu.
As duas metades da porta do vagão tinham começado a fechar com aquele
barulhinho pneumático quando o meu pai chegou e meteu um braço entre as
metades pra impedir que elas fechassem e assim ele poder se espremer lá
pra dentro, e a porta fechou no braço dele — com força excessiva,
evidentemente, tanto pra deixar o resto do meu pai se espremendo pela
abertura da porta quanto pra poder forçar de novo a abertura da porta pra
deixar ele tirar o braço, o que no final parece que foi causado por um
defeito no mecanismo que controlava a força do fechamento das portas — e
aí o trem do metrô já tinha começado a andar, o que foi outro problema
inexplicável — a princípio tem uns disjuntores especiais entre os sensores
das portas e o console do condutor do trem que soltam o acelerador se a
porta de um vagão estiver aberta (como dá pra imaginar, nós todos
aprendemos um monte sobre o projeto e as especificações de segurança dos
trens da CTA durante o processo do acidente) — e o meu pai estava sendo
forçado a trotar com velocidade cada vez maior ali ao lado, ao lado do trem,
tirando a mão que segurava o chapéu na cabeça e passando a socar as portas
enquanto dois ou possivelmente três caras dentro do vagão do metrô
ficavam na frestinha da porta tentando puxar ou forçar a abertura um pouco
mais pra pelo menos o meu pai poder tirar o braço dali. O chapéu do meu
pai, que ele adorava e que tinha um molde especial pra ficar guardado em
casa, saiu voando e se perdeu na densa multidão da plataforma, onde surgiu
um vazio, um rasgo visível que foi se alargando — ou seja, surgiu na
multidão mais lá na frente da plataforma, coisa que eu via lá de onde estava,
preso na multidão na beirada da plataforma num ponto que ia ficando cada
vez mais pra trás do vazio ou da fissura que se ampliava na multidão da
plataforma enquanto o meu pai era forçado a correr cada vez mais ao lado
do trem que acelerava, e as pessoas iam saindo ou pulando dali pra não
serem derrubadas nos trilhos. Como muitas dessas pessoas também estavam
carregando vários pacotinhos subdivididos e sacolas compradas
individualmente, muitos desses itens voaram pelo ar, rodopiando ou
arremessando seu conteúdo de várias maneiras sobre o vazio que se abria
enquanto os consumidores abandonavam suas compras na tentativa de
liberar o caminho do meu pai, de modo que parte da aparência daquele
vazio era a ilusão de que ele de alguma maneira estava cuspindo ou fazendo
chover bens de consumo. Além disso, as questões causais ligadas à
responsabilidade pelo incidente se revelaram incrivelmente complexas. As
especificações que o fabricante do sistema pneumático das portas forneceu
não explicavam de maneira adequada como as portas podiam fechar com
tanta força a ponto de um homem adulto saudável não conseguir tirar o
braço, o que significava que o argumento do fabricante de que o meu pai —
talvez por pânico ou por causa de algum ferimento no braço — não agiu de
maneira a desentalar o braço era difícil de refutar. Os passageiros homens
do metrô que pareceram estar fazendo tanta força pra abrir a porta por
dentro acabaram que sumiram trilho abaixo com o trem que partiu e não
foram identificados, isso porque em parte os investigadores policiais e de
trânsito que chegaram depois não se aplicaram muito decididamente a essa
identificação, talvez por estar claro, mesmo no local, que o incidente era
uma questão cível e não criminal. O primeiro advogado da minha mãe de
fato publicou alguns anúncios pessoais no Tribune e no Sunday Times
pedindo que esses dois ou três passageiros se apresentassem e prestassem
depoimento pra auxiliar no processo, mas por motivos de custo e de
viabilidade esses anúncios acabaram sendo bem pequenos e ficaram
enterrados na seção de Classificados bem no fim do jornal, e foram
veiculados pelo que a minha mãe depois disse que foi um período
irracionalmente curto e não agressivo durante o qual muitos dos habitantes
da região de Chicago saíram da cidade em férias, de qualquer maneira, de
modo que isso acabou virando ainda mais um elemento complexo e
enrolado da segunda fase do processo.
Na estação da Washington Square, a “cena do acidente” em termos
oficiais — o que, num caso fatal, é legalmente considerado como “[o] local
em que sobrevieram óbito ou ferimentos que levaram a óbito” —, foi
registrada a 59 metros da plataforma do metrô, dentro do túnel Sul
propriamente dito, um ponto em que se determinou que o trem da CTA

estaria a uma velocidade entre 82 e 86 quilômetros por hora e que partes


superiores do corpo do meu pai foram atingidas pelas barras de ferro de
uma escada fixa que despontava da parede oeste do túnel — essa escada
tinha sido instalada pra permitir que os funcionários da CTA acessassem uma
caixa de circuitos Multibus que ficava no teto do túnel — e o trauma, a
desorientação, o choque, o barulho, os gritos, a chuva de pequenas compras
individuais e a evacuação quase desesperada da plataforma à medida que o
meu pai rasgava de maneira cada vez mais violenta e acelerada a densa
multidão de consumidores, tudo isso desqualificou até as poucas pessoas
que continuaram na cena — quase todas feridas ou supostamente feridas —
como testemunhas “confiáveis” para as entrevistas das autoridades. O
estado de choque é, com certeza, uma reação comum em situações de morte
violenta. Menos de uma hora depois do acidente, a única coisa de que os
circunstantes pareciam se lembrar eram de gritos, perda de compras
natalinas, preocupações com sua segurança pessoal e detalhes vívidos mas
fragmentários do estado e das ações do meu pai, várias coisas desfraldadas
pelo fluxo de ar, o sobretudo e o cachecol dele, os sucessivos ferimentos
que ele pareceu sofrer enquanto ia sendo levado numa velocidade cada vez
maior em direção à ponta da plataforma e colidia parcialmente ou em cheio
com uma lixeira de metal trançado, diversos pacotes e sacolas de compras
em pleno voo, os rebites de aço de uma coluna e o carrinho de bagagem, de
alumínio ou de aço, de um passageiro mais velho — tendo sido este último
item, de alguma maneira, jogado pelo impacto do outro lado do túnel e indo
cair nos trilhos da linha norte, causando fagulhas no terceiro trilho daquela
linha e ampliando o caos da multidão em desespero. Lembro que um jovem
hispânico ou porto-riquenho com o que parecia ser um tipo de rede preta no
cabelo foi entrevistado enquanto segurava o pé direito do sapato do meu
pai, um mocassim Florsheim enfeitado com borlas, cujo bico e a giga
estavam tão gastos pelo cimento da plataforma que a parte da frente da sola
tinha descolado e estava pendurada, e que o homem não conseguia lembrar
como acabou com aquilo na mão. Ele também, determinaram depois, estava
em estado de choque, e eu lembro nitidamente de mais tarde ver o hispânico
outra vez na triagem do pronto-socorro — que era no Loyola Marymount
Hospital, a apenas uma ou duas quadras da estação da Washington Square
da CTA — sentado numa cadeira de plástico tentando preencher formulários
numa prancheta com uma esferográfica presa à prancheta por um fiozionho
branco, ainda segurando o sapato.
E o processo de homicídio doloso foi, como já mencionei, incrivelmente
complexo, mesmo que a coisa toda tecnicamente nunca tenha nem passado
dos estágios iniciais de se determinar se a Cidade de Chicago, a CTA, a
Divisão de Manutenção da CTA (o cordão do freio de emergência no vagão a
que o meu pai se viu anexado à força afinal tinha sido vandalizado e
cortado, apesar da opinião dos especialistas ter se dividido sobre o fato dos
indícios forenses apresentarem um corte bem recente ou com semanas de
idade. Claro que a análise microscópica de fibras de plástico rompidas pode
ser interpretada praticamente do jeito que os interesses da pessoa a levem a
interpretar), o fabricante oficial do trem, o condutor do trem, o supervisor
imediato dele, a AFSCME, e as outras duas dúzias de terceirizados e de
fornecedores de vários componentes dos diversos sistemas que na opinião
dos engenheiros forenses consultados pela nossa equipe jurídica tiveram
parcelas de responsabilidade no acidente, deviam, como réus, ser
classificados na ação como acusados diretos, acusados, negligentes ou NCD,
que era a abreviação de “negligentes no cumprimento do dever.” Segundo a
minha mãe, a responsável pelo contato com os clientes da nossa equipe
jurídica confidenciou a ela que a multiplicidade de acusados elencada era só
uma estratégia tática inicial e que a gente no fim ia processar só a prefeitura
de Chicago — que era, claro, quem empregava o meu pai, uma certa ironia
aí — com base na “lei ordinária de responsabilidade cível dos transportes” e
no precedente de um caso chamado Ybarra versus Coca-Cola para justificar
a acumulação das acusações nos ombros do réu que demonstravelmente
teria sido capaz de tomar providências baratas e eficientes para evitar o
acidente — supostamente exigindo um controle de qualidade mais estrito
dos mecanismos pneumáticos e dos sensores das portas no contrato da CTA

com o fabricante oficial do trem, uma responsabilidade que recaía, mais


uma ironia, ao menos em parte sobre a divisão de sistemas de custos do
escritório do tesoureiro da prefeitura de Chicago, onde uma das
responsabilidades do meu pai envolvia avaliações compensadas de custos
imediatos versus vulnerabilidade jurídica em certas categorias de contrato
entre a prefeitura e terceiros — ainda que felizmente tenha acabado por vir
à tona que os gastos da CTA com equipamentos eram verificados por uma
equipe ou um grupo diferente dos sistemas de custos. Enfim, pra pasmo da
minha mãe, da Joyce e de mim mesmo, foi ficando evidente pra nós que o
critério principal dos nossos advogados pra defender esse ou aquele tipo de
acusação contra as diferentes empresas, agências e entidades municipais
tinha a ver com os recursos financeiros desses diferentes réus e com o
histórico das suas respectivas seguradoras em ações parecidas — ou seja,
que todo o processo era uma questão de números e de grana em vez de
alguma coisa como justiça, responsabilidade e a prevenção de outras mortes
culposas, públicas e totalmente humilhantes e sem sentido. Pra falar a
verdade, não sei direito se estou explicando isso tudo muito bem. Como já
mencionei, todo o processo legal foi tão complicado que quase chegava a
ser indescritível, e o sócio júnior que a equipe jurídica tinha encarregado de
nos manter a par dos desdobramentos e das novas estratégias nos primeiros
dezesseis meses não era exatamente o advogado mais transparente e mais
simpático que alguém podia desejar. Fora que nem precisa dizer que a gente
também estava muito transtornado, dá pra entender, e a minha mãe — cuja
saúde emocional já andava bem delicadinha depois do colapso ou das
mudanças abruptas de 71-2 e do divórcio subsequente — ficava entrando e
saindo do que provavelmente podia ser classificado como uma reação
dissociativa de choque ou de conversão, e tinha até voltado a morar na casa
de Libertyville que ela dividia com o meu pai antes da separação,
supostamente “só por um tempo” e por motivos que mudavam toda vez que
eu ou a Joyce fazíamos pressão pra saber se essa mudança era uma boa
ideia pra ela, e ela de maneira geral não estava lá em grande forma em
termos psicológicos. Pra falar a verdade, depois já das primeiras rodadas de
depoimentos num processo ancilar entre um dos réus e a sua seguradora
sobre a porcentagem dos custos legais pra defesa do réu contra a nossa ação
em curso que ficava coberta pela apólice do réu com a seguradora — fora
que, pra complicar ainda mais as coisas, um antigo sócio do escritório de
advocacia que representava a minha mãe e a Joyce estava agora
representando a seguradora, cujo quartel general nacional no fim de contas
era em Glenview, e houve um segundo conjunto de acusações e
depoimentos naquele caso a respeito da possibilidade desse fato de alguma
maneira vir a constituir conflito de interesses — e protocolarmente essa
ação ancilar tinha que ser resolvida ou chegar a um acordo antes dos
depoimentos iniciais da nossa própria ação — que àquela altura já tinha se
transformado nas classificações gêmeas de acusação cível e homicídio
culposo, e portanto era tão complexa que levou quase um ano pros
advogados da equipe chegarem até mesmo a concordar sobre como abrir
direito a ação — de forma que, àquela altura, o estado emocional da minha
mãe tinha chegado a tal ponto que ela decidiu interromper todo o processo,
uma decisão que deixou a Joyce muito descontente por dentro mas que ela,
Joyce, não era juridicamente capaz de suster ou influenciar, e aí teve uma
disputa doméstica complicadíssima em que a Joyce ficava tentando, sem
que a minha mãe soubesse, me fazer reabrir o processo tendo o meu nome,
já que eu tinha mais de vinte e um e era o dependente e filho do falecido,
como o único querelante. Mas por motivos complicados — especialmente o
fato de eu constar como dependente na declaração de renda tanto da minha
mãe quanto do meu pai em 77, o que, no caso da minha mãe, teria sido
derrubado na hora até numa auditoria de rotina, mas que passou
despercebido no ambiente mais primitivo das Análises do Serviço daquela
época — acabou se revelando que pra fazer isso eu ia ter que pedir pra
declararem a minha mãe legalmente “non compos mentis”, o que ia exigir
uma hospitalização psiquiátrica compulsória de duas semanas pra
observação antes da gente poder conseguir uma declaração legal de um
psiquiatra autorizado por um juiz, o que era uma coisa que ninguém da
família estava nem perto de ter estômago pra fazer. Então, depois de
dezesseis meses o processo todo se encerrou, com exceção do processo
subsequente da nossa antiga equipe jurídica contra a minha mãe pra
recuperação de honorários e despesas que, por tudo que se pudesse saber, o
contrato que a Joyce e a minha mãe assinaram explicitamente revogava em
troca de uma participação eventual de 40% no ganho da causa. Os
recônditos argumentos pelos quais a nossa antiga equipe estava tentando
fazer aquele contrato ser declarado nulo por causa de alguma ambiguidade
no juridiquês de uma das subcláusulas de um contrato redigido por eles
mesmos nunca foram explicados ou elucidados o bastante pra eu poder
dizer se eles eram ou não alguma coisa além de frívolos, já que àquela
altura eu estava no meu semestre final na DePaul e também no processo de
recrutamento do Serviço, e a minha mãe e a Joyce tiveram que contratar
ainda outro advogado pra defender a minha mãe no processo dos antigos
advogados dela, que, se é que dá pra acreditar, ainda está se arrastando até
hoje, e é um dos principais motivos que a minha mãe vai apresentar como
justificativa racional pra ela ter se transformado praticamente numa reclusa
lá na casa de Libertyville, onde ela ainda está morando, e pra deixar
cortarem o telefone da casa, apesar de alguns indícios de um certo tipo de
deterioração psicológica séria terem aparecido bem antes, pra dizer a
verdade provavelmente já no meio do processo original e quando ela se
mudou de novo pra casa do meu pai depois do acidente, sendo que o
primeiro sintoma psicológico que consigo lembrar tinha a ver com a
preocupação cada vez maior dela com o bem-estar dos passarinhos de um
ninho de tentilhão ou de estorninho que tinha anos ficava em cima de uma
das vigas da varandona aberta de madeira, que foi uma das principais
atrações da casa de Libertyville quando os meus pais tomaram a decisão de
se mudar pra lá, com a obsessão então progredindo daquele ninho em
particular pros pássaros de toda a vizinhança, e ela começou a mandar
instalarem cada vez mais aquelas coisas que parecem uns tubos pra
alimentar passarinho lá na varanda e no jardim e a comprar e espalhar pra
eles cada vez mais alpiste, e aí no fim também tudo quanto era tipo de
comida de gente e vários “produtos pra aves” na escada da varanda,
inclusive, num momento particularmente baixo da trajetória, uns
moveizinhos minúsculos de uma casa de bonecas da infância dela em
Beloit, que eu sabia que ela guardava com carinho depois de ter ouvido ela
contar uma infinidade de histórias de infância pra Joyce sobre o quanto
tinha carinho por aquela coisa e como tinha colecionado mobília miniatura
pra pôr lá dentro, e que ela guardou por anos a fio no depósito da casa de
Libertyville, junto com um monte de lembranças da minha própria infância
em Rockford, e a Joyce, que continuou sendo uma amiga leal da minha mãe
e às vezes praticamente enfermeira dela — isso apesar de ela, em 79, ter
caído de paixão pelo advogado que ajudou as duas a fechar a Speculum
Books recorrendo às disposições da Lei de Falências, e de hoje estar casada
com ele e morando com ele e os dois filhos dele em Wilmette — a Joyce
concorda que aquela coisa enjoada, complicada, cínica e sem fim das
consequências legais do acidente teve um papel importante no processo que
impediu que a minha mãe lidasse direito com o trauma do falecimento do
meu pai e elaborasse direito algumas emoções e alguns conflitos não
resolvidos de antes, lá dos tempos de 71, que o acidente agora tinha trazido
com tudo de novo pra superfície. Se bem que chega uma hora em que você
simplesmente precisa encarar a barra e jogar com as cartas que a vida te
deu, na minha opinião.
Mas lembro de uma vez, numa tarde em que ele me pagou pra ajudar
com um trabalhinho tranquilo no jardim, eu ter perguntado pro meu pai por
que ele parecia que nunca dava conselhos diretos sobre a vida do jeito que
os pais dos meus amigos faziam. Na época, essa incapacidade dele de dar
conselhos me parecia ser uma prova de que ele era ou incomumente
taciturno ou reprimido, ou então que ele não estava nem aí mesmo. Olhando
daqui agora, percebo que o motivo não foi nenhum desses, mas que na
verdade o meu pai era, lá do jeitinho dele, meio sábio, pelo menos sobre
algumas coisas. No caso, ele tinha a sabedoria de desconfiar do seu próprio
desejo de parecer sábio e de se recusar a ceder a ele — isso podia fazer ele
parecer distante e desatencioso, mas o que ele era mesmo era disciplinado.
Era um adulto; em pleno controle de si próprio. Isso continua sendo
basicamente teórico, mas o meu melhor palpite pra ele nunca ter saído
fornecendo sabedoria como os outros pais é que o meu pai entendia que um
conselho — mesmo um conselho sábio — na verdade não faz nada pelo
aconselhado, não muda nada lá dentro, e pode na verdade gerar confusão
quando você força o aconselhado a sentir o abismo entre a aparente
simplicidade do conselho e a complicação totalmente embolada da situação
e do caminho dele. Eu não estou me explicando direito. Se você começa a
sacar que os outros conseguem de verdade viver pelos princípios claros e
simples dos bons conselhos, isso pode te fazer sentir até pior sobre as suas
próprias incapacidades. Pode te deixar com peninha de você mesmo, o que
acho que o meu pai reconhecia como o maior inimigo da vida e um gerador
de niilismo. Não que a gente tenha tido conversas profundas sobre isso —
já ia ficar parecido demais com conselho. Não lembro como ele respondeu
especificamente a pergunta daquele dia. Lembro de perguntar, e lembro até
de onde a gente estava e da sensação do ancinho na minha mão enquanto eu
perguntava, mas aí depois vem um branco. O meu melhor palpite, baseado
no conhecimento da nossa dinâmica, ia ser que ele ia dizer que tentar me
dar conselhos sobre o que fazer ou não fazer ia ser que nem o coelho da
historinha infantil “implorando” pra não ser jogado no espinheiro. Cujo
nome me escapa, no entanto. Mas obviamente querendo dizer que ele sentia
que ia ter o efeito contrário. Ele pode até ter rido de um jeito seco, como se
a pergunta fosse cômica pela falta de consciência da nossa dinâmica e da
resposta óbvia. Provavelmente ia ser a mesma coisa se eu perguntasse se ele
achava que eu não respeitava ele ou os conselhos dele. Ele podia agir como
se achasse graça nisso de eu ter tão pouca consciência de mim mesmo, de
eu ser incapaz de desrespeitar e nem saber disso. É bem possível, como já
mencionei, que ele simplesmente não fosse muito com a minha cara e que
usasse umas sacadas espirituosas sarcásticas e sofisticadas pra meio que
tentar lidar com esse fato. Imagino que deve ser duro isso de não conseguir
gostar do próprio filho. Obviamente ia aparecer alguma culpa. Sei que até o
meu jeito largado, invertebrado de ficar sentado vendo TV ou ouvindo
música irritava o meu pai — não diretamente, mas era outra coisa que eu
vivia entreouvindo ele dizer nas discussões com a minha mãe. Assim a
princípio até aceito a ideia básica de que os pais instintivamente “amam”
mesmo os seus rebentos de um jeito ou de outro — o raciocínio darwiniano
por trás dessa premissa é óbvio demais pra gente ignorar. Mas “gostar”
deles de verdade, ou curtir a companhia deles, parece, assim, uma coisa
totalmente diferente. Pode ser que os psicólogos estejam batendo na trave
nessa preocupação com a necessidade que as crianças teriam de se sentir
amadas pelo pai ou pelo outro genitor. Também parece válido considerar o
desejo da criança de sentir que os pais gostam mesmo dela, já que nos pais
o amor propriamente dito é tão automático e pré-programado que não é lá
um teste muito bom de sei lá qual seja o teste em que a criança se sente tão
ansiosa pra passar. Não é muito diferente do conforto religioso de você ser
“amado incondicionalmente” por Deus. Já que o Deus em questão é
definido como alguma coisa que ama assim automática e universalmente,
isso não parece ter muito a ver com você de verdade, então fica difícil ver
por que as pessoas religiosas dizem que sentem um conforto tão grande
nisso de serem amadas desse jeito por Deus. A questão não é que cada
sentimentozinho e cada emoçãozinha precisam ser considerados
individualmente, ter a ver com você, mas é que, por motivos psicológicos
básicos, é difícil a gente não se sentir assim no que se refere ao pai da gente
— é simplesmente a natureza humana.
Enfim, isso tudo faz parte da pergunta de como foi que acabei lotado aqui
nas Análises — as coincidências inesperadas, as mudanças de prioridades e
de orientação. Óbvio que esse tipo de coisa inesperada pode acontecer de
tudo quanto é jeito diferente, e é perigoso hiperinterpretar isso tudo.
Lembro de ter um colega de quarto — isso na Lindenhurst — que se
autodeclarava cristão. Pra dizer a verdade, eu tinha dois colegas de quarto
na residência estudantil da Lindenhurst, com uma “sala social”
compartilhada no meio e três quartinhos pequenos que davam pra ela, o que
era um arranjo excelente de coabitação. E um desses colegas de quarto era
cristão, assim como a namorada dele. A Lindenhurst, que foi a primeira
universidade onde eu entrei, era um lugar esquisito por ser principalmente
uma escola cheia de hippies e lesados da região de Chicago, mas de
também ter uma férvida minoria cristã que ficava totalmente à parte da vida
normal da faculdade. Cristã nesse caso querendo dizer evangélica,
igualzinho à irmã do Jimmy Carter, que, se bem me lembro, diziam que
andava por aí fazendo frila de exorcista. O fato dos membros desse ramo
evangélico do protestantismo se chamarem de “cristãos”, como se só
existisse um tipo deles, normalmente já basta pra caracterizar esse pessoal,
pelo menos no que me toca. Esse aí tinha chegado através do terceiro
morador da residência, um cara que eu conhecia e achava legal, e que
combinou a coisa toda dessa moradia a três sem eu nem precisar ver o
cristão, até ser tarde demais. O cristão definitivamente não era um cara com
quem eu ia querer sair ou que eu fosse pensar em recrutar pra morar com a
gente, se bem que pra ser justo ele também não era lá muito fã do meu
estilo de vida nem do que decorria de ter que morar comigo. No fim, de
qualquer maneira, a situação acabou sendo bem temporária. Lembro que ele
era do norte de Indiana, estava fervorosamente envolvido numa organização
universitária chamada Cruzada do Campus e tinha várias calças cáqui,
blazers azuis, mocassins de verão e um sorriso que parecia ligado na
tomada. E tinha uma namorada ou amiga platônica evangélica que nem ele
que vivia indo lá — ela praticamente morava lá, pelo que eu via — e tenho
uma lembrança clara, bem detalhada de um incidente quando nós três
estávamos na área comum, que na nomenclatura dessas residências era
chamada de “sala social” e onde eu gostava de ir pra ficar sentado no sofá
velho de vinil do terceiro colega de quarto em vez de ficar no meu
quartinho minúsculo, pra ler, redobrar no Obertrol ou às vezes ficar
fumando com a minha mariquinha de latão e vendo TV, provocando tudo
quanto era tipo de discussão com o cristão, que normalmente gostava de
tratar a sala social como um clubinho cristão e chamar a namorada e todos
os outros amiguinhos cristãos dele ligados no 220 pra ficar bebendo Fresca
e trocando ideias sobre assuntos da Cruzada do Campus ou da realização da
profecia do Apocalipse, e assim por diante e coisa e tal, e gostava de pegar
no meu pé e me lembrar que aquilo ali se chamava “sala social” quando eu
perguntava pra todo mundo lá se eles não precisavam ir distribuir uns
folhetinhos assustadores ou qualquer coisa assim. Olhando agora daqui,
parece óbvio que eu na verdade curtia desprezar os cristãos porque podia
fingir que o pernosticismo e o convencimento dos evangélicos eram a única
antítese ou alternativa real à atitude cínica e niilisticamente lesada que eu
estava começando a cultivar. Como se não houvesse nada entre esses dois
extremos — o que, por ironia, era exatamente o que os cristãos evangélicos
também achavam. O que significava que eu era muito mais parecido com o
cristão do que qualquer um de nós ali estava a fim de admitir. Claro que,
com pouco mais de dezoito anos, eu ignorava totalmente isso tudo. Na
época, a única coisa que eu sabia era que eu desprezava o cristão, gostava
de chamar ele de “Garoto Colgate” e de reclamar dele pro terceiro colega de
quarto, que se ocupava da sua banda de rock depois das aulas e
normalmente não ficava muito na residência, deixando eu e o cristão ali
tirando sarro um do outro, se provocando, se criticando, um usando o outro
pra confirmar os seus preconceitozinhos pernósticos.
Enfim, num dado momento, eu, o colega de quarto cristão e a namorada
do sujeito — que tecnicamente podia ser noiva dele — a gente estava ali
sentado na sala social da residência, e por algum motivo — possivelmente
do nada — a namorada viu uma oportunidade pra me contar a história de
como ela foi “salva” ou “nasceu de novo” e virou cristã. Não lembro de
quase nada dela a não ser que usava uma bota de caubói de bico pontudo
decorada com flores — não eram flores de cartoon ou padrões florais
isolados, mas uma cena rica, detalhada e fotorrealista de alguma campina
ou jardim cheio de flores, de um jeito que fazia a bota dela parecer mais um
calendário ou um cartão de aniversário. O testemunho dela, até onde me
lembro, tinha a ver com um certo dia de uma determinada época, um dia em
que ela disse que estava se sentindo totalmente desolada e perdida e quase
no fim da linha, meio que vagando à toa pelo deserto psicológico da
decadência e do materialismo da nossa geração mais jovem, e assim por
diante e coisa e tal. Os cristãos férvidos vivem lembrando da vida deles —
e, por tabela, achando que todo mundo que não esteja na seita deles vive
fazendo isso também — como uma coisa perdida e sem esperança na qual
eles estavam agarrados por um fio tentando achar algum sentido interior ou
alguma razão pra pelo menos continuar vivendo, antes de serem “salvos”. E
que por acaso, naquele dia específico, ela estava andando à toa de carro por
uma estradinha do interior nas cercanias da cidade dela, andando sem rumo
no AMC Pacer de um dos pais dela, até que, sem nenhum motivo especial
que ela tivesse percebido lá dentro dela, a moça entrou de repente no
estacionamento do que no fim ela descobriu ser uma igreja cristã
evangélica, por coincidência bem no meio de um culto evangélico, e — de
novo pelo que ela disse sem nenhum motivo que ela tivesse identificado —
ela foi entrando a toda, sentou no fundo da igreja numa daquelas poltronas
estofadas e aveludadas meio de cinema que as igrejas deles gostam de ter
em vez daqueles bancos de madeira, e bem na hora que ela sentou o
pregador ou padre ou sei lá como que eles chamam evidentemente disse:
“Tem alguém aqui conosco nesta congregação hoje que está se sentindo
perdido, desesperançado, no fim da linha e precisa saber que é muito, muito
amado por Jesus”, e aí — na sala social, recontando essa história — a
namorada testemunhou o quanto tinha ficado espantada e profundamente
comovida, e disse que sentiu na hora uma transformação espiritual imensa e
emocionante bem no fundo dela que ela contou que a deixou se sentindo
completamente tranquilizada e incondicionalmente abraçada e amada, como
se de repente a vida dela tivesse adquirido afinal de contas um sentido e um
rumo, e assim por diante e coisa e tal, e que além disso ela não tinha mais
passado por nenhum momento ruim ou vazio depois daquilo, não depois
que o pastor ou o padre ou sei lá o quê escolheu aquele exato momento pra
estender a mão por cima de todos os outros cristão evangélicos ali sentados
se abanando com uns leques de brinde que tinham uns anúncios elegantes e
coloridões da igreja impressos e meio que verbalmente dar um cutucão pra
eles saírem da frente e de alguma maneira se dirigir direto à namorada e
suas circunstâncias bem naquele momento de profunda carência espiritual.
Ela falava de si mesma como se fosse um carro cujos pistões foram
removidos e as válvulas, limpas. Olhando agora daqui, claro, no final das
contas tinha alguns paralelos com o meu próprio caso, mas a única reação
real que eu tive na época foi me irritar — os dois sempre me irritavam pra
caramba, e eu não consigo lembrar o que eu estava fazendo naquele dia ali
sentado conversando com eles, as circunstâncias da coisa — e lembro de
ostensivamente ficar empurrando a bochecha com a língua pra fazer um
calombo visível na bochecha e de dar uma longa olhada sardônica e cínica
pra bota da namorada dele e de perguntar pra ela o que foi exatamente que a
fez pensar que o pastor evangélico estava falando para ela, ou seja, com ela
em particular, já que era bem provável que todo mundo ali sentado na igreja
devia ter sentido a mesma coisa, já que basicamente todo americano com
sangue nas veias nos dias de hoje (de então), de fins da era Vietnã e
Watergate, estava se sentindo desolado, desiludido, desmotivado, sem rumo
e perdido, e que se o sacerdote ou padre ter dito “Alguém aqui está perdido
e desesperançado” fosse a mesmíssima coisa que aqueles horóscopos do
Sunday Times que são especialmente planejados pra serem tão
universalmente óbvios que sempre causam nos leitores de horóscopo (como
a Joyce toda manhã, com um suquinho vegetal que ela mesma fazia numa
máquina especial) aquela sensação arrepiante e especial de particularidade e
revelação, por explorar o fato psicológico de que a maioria das pessoas é
narcisista e dada à ilusão de que elas e os seus problemas são unicamente
especiais e que se elas estão se sentindo de determinada maneira então é
batata que elas são as únicas pessoas que estão se sentindo assim. Em outras
palavras, eu só estava fingindo fazer uma pergunta pra ela — pra dizer a
verdade eu estava soltando em cima da namorada um discursinho
condescendente sobre o narcisismo e a ilusão de unicidade das pessoas, que
nem o industrial gordo do Dickens ou do Ragged Dick que se recosta na
cadeira depois de um jantar gigantesco com os dedos cruzados em cima da
barrigona imensa e não consegue imaginar como é que alguém pode estar
passando fome em algum lugar do mundo. Eu também lembro que a
namorada do cristão era uma menina grande de cabelo cor de cobre com
alguma coisa levemente errada num dos dentes que ficavam de cada lado
dos dentes da frente, e que encavalava nos dentes da frente de um jeito que
chamava a atenção, porque durante a conversa daquele dia ela me deu um
supersorrisão pernóstico e disse que, ora, ela não achava que a minha
comparação cínica nem de longe era uma refutação ou uma nulificação da
vital experiência cristã que ela viveu naquele dia ou do efeito que aquilo
teve no renascimento interior lá dela, nem um pouquinho mesmo. A essa
altura ela pode ter dado uma olhadinha pro cristão em busca de confirmação
ou de um “Amém” ou de alguma coisa assim — não lembro o que cristão
estava fazendo durante esse falatório todo. Mas o que lembro mesmo é de
eu também ter dado um supersorrisão exagerado pra ela e dito: “Tanto faz”,
e pensado por dentro que ela não valia a pena daquela discussão, e que
diabos eu estava fazendo ali conversando com eles, e que ela e o Garoto
Colgate se mereciam — e eu sei que logo depois daquilo deixei os dois ali
na sala social e me mandei pensando naquela conversa toda e me sentindo
meio perdido e desolado por dentro, mas também consolado por pelo menos
ser superior a uns manés narcisistas que nem aqueles dois pretensos
cristãos. E aí eu tenho uma lembrança ligeiramente posterior de estar
parado numa festa com um copinho plástico de cerveja na mão e contando
pra alguém a história daquela conversa de um jeito que me fazia parecer
esperto e engraçado e deixava a namorada totalmente com jeito de otária.
Sei que eu era quase sempre o herói de qualquer história ou incidente que
eu contava pras pessoas nessa época — o que, que nem aquela história de
usar só uma costeleta, é uma lembrança que quase me dá arrepios hoje.
Enfim, parece tudo muito longe. Mas o motivo de eu até lembrar essa
conversa, acho, é que tinha um fato importante por trás da história da
“salvação” da cristãzinha que eu simplesmente não tinha entendido na
época — e, pra te ser sincero, acho que nem ela nem o cristão tinham
entendido também. Verdade que a história dela era estúpida e desonesta,
mas isso não significa que a experiência que ela teve na igreja aquele dia
não aconteceu ou que os efeitos da experiência nela não fossem reais. Eu
não estou explicando direito, mas eu estava tanto certo quanto errado sobre
a historinha dela. Acho que a verdade é provavelmente que experiências
monstro, súbitas, dramáticas, inesperadas e que te mudam a vida não são
traduzíveis ou explicáveis pra mais ninguém, e isso porque elas são mesmo
únicas e particulares — apesar de não serem únicas no sentido em que a
cristã acreditava. Isso porque essa força não é só resultado da experiência
propriamente dita, mas também das circunstâncias em que ela te encontra,
de tudo na sua experiência de vida anterior que te levou até ali e te fez
exatamente quem e o que você é no momento em que a experiência te
encontra. Faz sentido? É ruim de explicar. O que a menina com o prado na
bota deixou de fora da história foi por que ela estava se sentindo tão
especialmente desolada e perdida naquele exato momento e, portanto, por
que estava tão psicologicamente “predisposta” a ouvir o comentário
anônimo e geral do pastor daquele jeito pessoal. Pra ser justo, de repente ela
não se lembrava do motivo. Mas ainda assim ela só contou o clímax da
historinha, que foi o comentário do sacerdote e as súbitas mudanças
internas que ela sentiu por causa daquilo, o que é mais ou menos que nem
contar a tiradinha final de uma piada e esperar que a pessoa ria. Como diria
o Chris Acquistipace, a história dela era só dados; não tinha um padrão de
fatos. Por outro lado, sempre é possível que as 27 598 palavras até aqui da
minha experiência de vida não pareçam relevantes ou não façam sentido pra
mais ninguém — o que ia deixar isto aqui não tão diferente assim da
tentativa da cristã de explicar como ela chegou àquele ponto, isso admitindo
que ela pelo menos estivesse sendo sincera sobre as surpreendentes
mudanças interiores. É fácil enganar a si mesmo, obviamente.
Enfim, como eu já mencionei, um elemento crucial da minha entrada no
Serviço foi eu ter ido parar na sala de aula errada mas idêntica da DePaul
em dezembro de 1978, porque eu estava tão imerso na ideia de me manter
concentrado na revisão de O federalista que nem percebi o meu engano até
o professor entrar. Eu não tinha como dizer se ele era o jesuíta medonho de
verdade ou não. Só depois descobri que ele não era o responsável oficial
pelo curso de tributação avançada — evidentemente tinha acontecido
alguma emergência de caráter pessoal com o professor jesuíta normal e esse
aqui tinha assumido como substituto pras duas últimas semanas. Daí a
confusão inicial. Lembro de pensar que, pra um jesuíta, o professor estava
sem dúvida nenhuma “à paisana”. Ele vestia um terno cinza-escuro
arcaicamente conservador que pelo jeito quadradão podia até ser de flanela
de verdade, e o brilho do sapato social dele era atordoante quando a luz fria
da sala de aula batia nele no ângulo certo. O professor parecia esguio e
preciso; os movimentos dele tinham a economia ríspida de um sujeito que
sabe que o tempo é um bem valioso. Em termos de perceber o meu engano,
foi aí também que parei de revisar mentalmente O federalista e me dei
conta de uma vibe diferente entre os alunos daquela sala. Vários estavam de
gravata por baixo do colete de lã, sendo que alguns desses coletes eram até
daquele xadrez de meia social. Cada sapatinho à vista era um mocassim
social de couro preto ou marrom, com os cadarços bem amarradinhos. Até
hoje não sei exatamente como foi que entrei pela porta do prédio errado.
Não sou o tipo de pessoa que se perde fácil, e eu conhecia o Garnier Hall, já
que a aula de introdução à contabilidade era ali também. Enfim, reiterando,
naquele dia eu de algum jeito acabei na 311 do Garnier Hall, em vez da
idêntica 311 do Daniel Hall da minha aula de ciência política bem do outro
lado do gio e sentei perto da parede lateral quase no fundão da sala, um
lugar de onde, assim que eu saí do meu transe e percebi o engano, eu ia ter
que causar muito transtorno e muita mexeção de bolsas de livros e jaquetas
de plumas pra poder sair — a sala estava lotada quando o substituto entrou.
Depois fiquei sabendo que alguns alunos mais obviamente sérios e com
jeitão de adultos, que tinham pastas executivas de verdade e arquivos
sanfonados em vez de mochilas, eram alunos de pós-graduação no
programa de administração da DePaul — o curso de tributação avançada
era avançado. Na verdade, todo o departamento de ciências contábeis da
DePaul era supersério e forte — contabilidade e administração de empresas
eram pontos fortes famosos na DePaul, e eles passavam bastante tempo
louvando esses pontos fortes nas brochuras e no material promocional todo.
Obviamente não foi por isso que eu tinha voltado pra DePaul — o meu
interesse em contabilidade era quase nenhum a não ser, como já mencionei,
pra provar alguma coisa ou compensar alguma coisa em relação ao meu pai
passando finalmente na intro. Só que o programa de contabilidade deles no
final das contas era tão poderoso e respeitado que quase metade dos alunos
naquela sala de tributação avançada já estava inscrita pra fazer a prova pra
COC de fevereiro de 79, se bem que naquela época eu nem sabia direito o
que seria esse exame de licenciamento nem que as pessoas precisavam
estudar e treinar vários meses pra se preparar pra ele. Por exemplo, depois
eu soube que a prova final de tributação avançada na verdade era concebida
pra ser um microcosmo de certas seções tributárias da prova para COC. O
meu pai, aliás, também tinha uma licença de COC, apesar de quase nunca
usar no emprego dele na prefeitura. Olhando agora daqui, por outro lado, e
levando em consideração tudo que decorreu daquele dia, nem sei bem se eu
teria saído dali mesmo que a logística da saída fosse menos complicada —
não depois que o substituto entrou. Apesar de eu estar bem necessitado
daquela revisão pra prova final de pensamento político americano, ainda
assim eu bem podia ter ficado. Não sei se vou conseguir explicar direito.
Lembro que ele entrou de um jeito brusco e pendurou o sobretudo e o
chapéu num gancho do mastro da bandeira no canto da sala. Até hoje não
consegui saber com 100% de certeza se entrar perdido ali na 311 do prédio
errado logo antes das provas finais não pode ter sido mais uma
leviandadezinha inconsciente minha. Só que não dá pra analisar assim uma
experiência súbita e dramática dessas — principalmente olhando agora
daqui, coisa que todo mundo sabe que é complicada (apesar de eu, claro,
não ter entendido isso na conversa com a cristã de bota).
Na época, eu não sabia a idade do substituto — como já mencionei, só
fiquei sabendo depois que ele estava quebrando o galho do padre jesuíta de
verdade da turma, cuja ausência parecia não causar grandes lamentações —
nem o nome dele. A minha maior experiência com substitutos tinha sido no
ensino médio. Sobre a idade, a única coisa que eu sabia era que ele estava
naquela área amorfa (pra mim) entre quarenta e sessenta. Não sei como
descrever o cara, apesar dele ter causado uma impressão imediata. Era
magro, e com a luz forte da sala de aula parecia pálido de um jeito que era
quase luminoso em vez de doentio, e tinha um cabelinho raspado cor de aço
e uma estrutura facial meio pronunciada. No geral, parecia alguém numa
foto ou num daguerreótipo arcaico. A calça do terno tinha duas pregas, o
que aumentava a impressão de solidez quadradona. Além disso, a postura
dele era boa, o que o meu pai sempre chamava de o “porte” de uma pessoa
— ereto e com os ombros pra trás sem parecer durão — e quando ele entrou
daquele jeito brusco com a sua pastinha sanfonada cheia de material bem
organizadinho e todo etiquetado pra aula, todos os alunos de contabilidade
da sala pareceram mudar e sentar um pouquinho mais retos na cadeira. Ele
baixou a tela de projeção na frente do quadro como quem puxa uma
persiana, usando o lenço de bolso pra tocar na alça da tela. Até onde
consigo lembrar, quase todo mundo ali era homem. Um punhado de
orientais também. Ele estava tirando o material da pasta e dispondo na
mesa, que encarava com um sorrisinho formal. O que ele estava fazendo
mesmo era aquela coisa de professor, de reconhecer a presença dos
estudantes todos sem olhar pra eles. Eles por sua vez estavam totalmente
concentrados, até o último homem. A sala toda era diferente das aulas de
ciência política ou de psicologia, ou até da intro de contabilidade, onde
sempre tinha lixo no chão e as pessoas ficavam largadonas na cadeira,
olhando descaradamente pro relógio, bocejando, e sempre tinha meio que
um fundo constante de impaciência e de sussurros que o professor de
introdução fingia que não tinha — de repente os professores normais nem
ouviam mais o som, ou eram imunes às descaradas demonstrações de tédio
e de desatenção dos alunos. Mas quando o professor substituto de
contabilidade entrou, a voltagem da sala mudou. Não sei como descrever. E
eu nem consigo explicar de um jeito totalmente racional por que fiquei — o
que, como já mencionei, representava perder a revisão final de pensamento
político americano. Na época, continuar ali sentado na sala errada parecia
só mais um impulso irresponsável, indisciplinado. Talvez eu tivesse
vergonha de que o substituto me visse saindo. Ao contrário da namorada
cristã, eu parecia nunca perceber os momentos importantes quando eles
estavam acontecendo — eles sempre pareciam distrações do que eu
realmente devia estar fazendo. Um jeito de explicar é que simplesmente
tinha alguma coisa naquele cara — o substituto. A expressão dele tinha a
mesma concentração intensa, vazia, das fotos de veteranos militares que
vinham de algum tipo de guerra de verdade, de combate mesmo. Os olhos
dele prendiam todo mundo ali, como um grupo. Só sei que de repente
comecei a me sentir incomodado com a minha calça de pintor e a bota
desamarrada, mas se o substituto teve alguma reação a essas coisas,
qualquer reação que fosse, ele não demonstrou. Quando demarcou o início
oficial da aula olhando pro relógio, foi com um gesto seco de afastar e girar
depressa o punho, como o cruzado de esquerda de um boxeador, com a
força puxando de leve a manga do terno pra revelar um Piaget de aço
inoxidável que eu lembro que na época me pareceu um relógio
surpreendentemente chamativo pra um jesuíta.
Ele usava a tela branca de projeção pras transparências — ao contrário do
professor de intro, ele não escrevia com giz no quadro-negro — e quando
colocou a primeira transparência no projetor preso no teto da sala e a luz da
sala diminuiu, o rosto dele ficou iluminado de baixo pra cima que nem o de
um artista de cabaré, o que deixava aquela intensidade vazia e a estrutura
facial mais pronunciadas. Eu lembro que tinha meio que um frio
eletrificado na minha cabeça. O diagrama projetado atrás dele era uma
curva ascendente com gráficos de barra que se estendiam por baixo das
várias seções da curva, que subia forte desde a origem e se achatava um
pouco no ápice. Parecia meio que uma onda quase se quebrando. O
diagrama não tinha rótulo, e só depois fui reconhecer que ele representava
as alíquotas marginais progressivas pro imposto de renda federal de 76. Eu
estava me sentindo incomumente alerta e acordado, mas de um jeito
diferente de quando eu redobrava ou ficava chapado de Cylert. Também
tinha várias curvas, equações e citações explicadas do USTC §62, que tinha
muitas subseções que determinavam complexas regulamentações sobre a
distinção entre deduções “para” renda bruta ajustada versus deduções “da”
RBA, que o substituto disse que formavam a base de praticamente toda e

qualquer estratégia moderna e eficaz de planejamento tributário. Aqui —


apesar de eu só ter percebido isto mais tarde, depois do recrutamento — ele
estava se referindo à ideia de você estruturar as suas finanças de um jeito
que a maior parte possível das deduções fosse de deduções “para” a renda
bruta ajustada, já que tudo que vai da Dedução-Padrão às deduções com
despesas médicas é concebido com pisos baseados na RBA (piso
significando, por exemplo, que como só as despesas médicas que
ultrapassem 3% da RBA eram dedutíveis, era obviamente vantajoso pro
contribuinte médio deixar a sua RBA — conhecida às vezes como a sua
“31”, já que naquela época era na Linha 31 da 1040 Individual que a gente
registrava a RBA — o menor possível).
Mas sou obrigado a admitir que, por mais que eu estivesse me sentindo
alerta e acordado, eu provavelmente estava mais consciente ainda dos
efeitos que a aula parecia estar tendo sobre mim do que na aula em si, que
no geral estava bem além do que eu era capaz de entender —
compreensivelmente, já que eu ainda nem tinha terminado introdução à
contabilidade —, no entanto era quase impossível desviar os olhos da aula e
não me deixar abalar por ela. Isso se devia em parte à apresentação do
substituto, que era veloz, organizada, nada dramática e seca daquele jeito
das pessoas que sabem que o que estão dizendo é valioso demais por si
mesmo pra que possa ser diminuído por preocupações com pronúncia ou
como “se conectar” com os alunos. Em outras palavras, a apresentação
tinha uma espécie de integridade fervorosa que se manifestava não no
estilo, mas na falta de estilo. Senti que de repente, pela primeira vez, eu
estava entendendo o significado da expressão “sem frescura” do meu pai e
por que ela era uma avaliação favorável.
Lembro que percebi também que todos os alunos estavam tomando notas,
o que nas aulas de ciências contábeis significa que você tem que
internalizar e anotar um fato ou uma ideia do professor ao mesmo tempo
que se mantém ouvindo com atenção a ideia seguinte a ponto de conseguir
anotar depois, também, o que requer um tipo de concentração intensamente
dividida que só fui pegar direito bem depois de começar o treinamento em
Indianápolis no ano seguinte. Era um tipo completamente diferente de
tomação de notas do que tinha nas aulas de humanas, que envolvia acima de
tudo rabiscos, ideias amplas e temas abstratos. Além disso, os alunos de
tributação avançada tinham diversos lápis alinhados em cima das mesinhas,
todos sempre muitíssimo bem apontados. Percebi que eu quase nunca tinha
um lápis apontado à mão quando precisava de verdade; eu nunca tinha me
dado ao trabalho de manter os lápis organizados e apontados. O único toque
do que podia ser um senso de humor meio ácido na aula eram declarações e
citações ocasionais que o substituto encaixava entre um gráfico e outro, às
vezes escrevendo na transparência do momento, e projetando essas frases
na tela sem nenhum comentário e aí esperando enquanto todo mundo
copiava as coisas o mais rápido possível antes dele passar pra próxima
transparência. Ainda lembro de um desses exemplos — “O que agora nós
precisamos descobrir no campo social é o equivalente moral da guerra”,
sendo que a única identificação escrita no fim era “James”, o que, naquela
época, achei que se referia à Bíblia King James, por motivos óbvios, apesar
dele não ter dito nada pra explicar ou reforçar a citação, enquanto as seis
linhas retas de alunos — alguns com óculos que refletiam a luz da projeção
de um jeito que fazia eles ficarem com uma cara nitidamente robótica,
conformista mesmo, com quadrados gêmeos de uma luz branca onde os
olhos deviam estar, lembro que isso me espantou — transcreviam
devidamente. Ou um exemplo ou outro que estava numa transparência
própria e creditado a Karl Marx, o famosíssimo pai do marxismo…

“Na sociedade comunista vai ser possível que eu faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de
manhã, pescar à tarde, cuidar do gado à noite, praticar a crítica depois do jantar, como eu quiser”

com o único comentário do substituto sendo a ríspida declaração “Destaque


acrescentado”.
O que eu estou tentando dizer é que aquilo acabou sendo muito mais
parecido com a experiência lá da namorada evangelista de bota do que eu
jamais teria admitido na época. Óbvio que só com as 2375 palavras da
história de uma lembrança eu nunca ia conseguir convencer alguém de que
a qualidade inata, objetiva, da aula daquele substituto também teria deixado
qualquer um grudado na cadeira e feito qualquer um esquecer aquela
revisão final de pensamento político americano, ou de como boa parte do
que o padre católico (achava eu) dizia ou projetava parecia de alguma
maneira destinado diretamente a mim. Só que pelo menos posso ajudar a
explicar por que eu estava tão “predisposto” a enxergar aquilo tudo desse
jeito, visto que eu já tinha tido um tipo de prenúncio ou um sismo dessa
mesmíssima experiência um pouco antes de acontecer o engano das salas de
aula das revisões finais, apesar de ter sido só depois, revendo a coisa, que
fui entender aquilo — a experiência — desse jeito.
Lembro direitinho que uns dias antes — ou seja, na segunda-feira da
última semana das aulas normais do semestre de outono de 78 — eu estava
lá sentado todo largadão e desmotivado no velho sofá de veludo amarelo no
nosso dormitório da DePaul no meio da tarde. Eu estava sozinho, com uma
calça de agasalho de tecido sintético e uma camiseta preta do Pink Floyd,
tentando rodar uma bola de futebol na ponta do dedo e assistindo o novelão
Enquanto o mundo gira da CBS na Zenith preta e branca ali da sala — sem
obetrolar nem usar nada em especial mas basicamente ainda sendo pura e
simplesmente um merdinha desmotivado. Com certeza sempre tinha alguma
leitura ou alguma coisa que eu precisava estudar pras provas finais, mas eu
estava sendo um lesado. Estava reclinadão bem apoiado no cóccix ali no
sofá, de um jeito que deixava tudo na televisãozinha enquadrado pelos
meus joelhos, e vendo Enquanto o mundo gira e girando a bola de futebol
de um jeito desligado, sem sentido. Tecnicamente era a televisão do outro
residente, mas ele era um aluno supersério de medicina que vivia na
biblioteca da área de ciências, apesar de ter se dado ao trabalho de dobrar
um cabide de metal pra pôr no lugar da antiga antena da Zenith, que era a
única razão da gente pegar algum tipo de sinal. Enquanto o mundo gira
passava na CBS da uma às duas da tarde. Era uma coisa que eu ainda fazia
demais naquele último ano, ficar ali sentado perdendo tempo na frente da
Zenithzinha, e várias vezes fui sendo passivamente sugado pelos novelões
vespertinos da CBS, com aqueles personagens que falavam e se
emocionavam escandalosamente e falavam uns com os outros sem nenhum
soluço nem uma diminuiçãozinha de intensidade que fosse, ao que parecia,
de um jeito que dava um efeito quase hipnótico naquilo tudo,
principalmente porque eu não tinha aula na segunda e quinta-feira e era
supermole ficar ali sentado e me deixar ser sugado. Lembro que um monte
de alunos da DePaul naquele ano estava acompanhando Hospital geral da
ABC,reunidos nuns bandos supernumerosos, barulhentos e ansiosos pra ver
a novela — sendo que o álibi descoladinho desse pessoal era que na
verdade eles estavam sacanenando com a novela — mas, por motivos que
deviam ter mais a ver com a recepção pobrinha da Zenith, fui mais fã da CBS
naquele ano, principalmente de Enquanto o mundo gira e de Guiding Light,
que vinha depois de Enquanto o mundo gira às duas da tarde nos dias de
semana, e pra dizer a verdade era até de certa maneira um programa ainda
mais hipnótico.
Enfim, eu estava sentado ali tentando rodar a bola na ponta do dedo e
vendo a novela, que também era supersobrecarregada de comerciais —
especialmente na segunda metade, que as novelas tendem a entupir mais de
comerciais, já que eles imaginam que você já está grudado e mesmerizado e
vai ficar ali vendo mais propaganda — e no fim de cada intervalo comercial
a imagem registrada do programa, que era o planeta Terra visto do espaço,
rodando, aparecia na tela, e a voz do locutor vespertino da rede CBS dizia
“Você está assistindo Enquanto o mundo gira”, o que parecia, naquele dia
em particular, que ele estava dizendo cada vez mais enfaticamente — “Você
está assistindo Enquanto o mundo gira”, até o tom dele começar a parecer
quase incrédulo — “Você está assistindo Enquanto o mundo gira” — e aí de
repente eu me liguei na realidade total daquela frase. Não estou falando de
um tipo de metáfora irônica no estilo das ciências humanas, mas da coisa
literal que ele estava dizendo, no nível simples de superfície mesmo. Não
sei quantas vezes eu tinha ouvido aquilo naquele ano enquanto ficava lá
sentado assistindo Enquanto o mundo gira, mas de repente saquei que o
locutor estava na verdade repetindo sem parar o que eu estava fazendo. Não
só isso, mas também saquei que tinham me dito isso inúmeras vezes —
como eu disse, a declaração do locutor vinha depois de cada intervalo
comercial depois de cada bloco do programa — sem eu nunca ter tido nem
a mais remota consciência da realidade literal do que eu estava fazendo. Eu
não estava obetrolando nesse momento de consciência, é bom acrescentar.
Aquilo ali era diferente. Era como se o locutor da CBS estivesse falando
diretamente comigo, me sacudindo o ombro ou a perna como quem tenta
acordar alguém que está dormindo — “Você está assistindo Enquanto o
mundo gira”. É difícil explicar. Não foi nem o duplo sentido mais do que
óbvio que me bateu. Foi mais literal, o que de alguma maneira deixava mais
difícil ainda de ver. Tudo isso me bateu ali, sentado. Não podia ter sido
mais concreto do que se o locutor tivesse dito: “Você está sentado num sofá
velho de veludo amarelo do dormitório, girando uma bola de futebol preta
e branca e assistindo Enquanto o mundo gira, sem nem ter percebido que é
isso que você está fazendo”. Foi isso que me bateu. Isso era mais do que ser
irresponsável ou lesado — era como se eu nem estivesse ali. A verdade é
que só fui ter consciência do duplo sentido óbvio de “Você está assistindo
Enquanto o mundo gira” três dias depois — o trocadilho quase aterrador do
programa sobre a perda de tempo passiva de ficar ali sentado assistindo
uma coisa com um sinal que vinha por aquele cabide e que nem chegava
muito bem, enquanto todas as coisas reais do mundo estavam rolando e as
pessoas com rumos e iniciativa estavam cuidando da vida de um jeito direto
e sem frescura — ou seja, na quinta de manhã, quando esse sentido
secundário de repente me bateu no meio de um banho antes de eu me vestir
e sair correndo pro que eu pretendia — conscientemente, pelo menos —
que fosse a minha revisão pra prova final de pensamento político
americano. O que pode ter sido um dos motivos pra eu estar tão
concentrado e entrar no prédio errado, imagino. Só que na hora, na
segunda-feira de tarde, a única coisa que me pegou pesado foi a reiteração
do simples fato do que eu estava fazendo, que era, claro, nada, só largado
ali que nem uma coisa invertebrada, sem me envolver nem com a realidade
superficial da história do Victor negando a paternidade pra Jeanette (apesar
do filho da Jeanette ter a mesma doença genética extremamente rara do
sangue que vivia hospitalizando o Victor naquele semestre. O Victor pode
de alguma forma ter até “acreditado” nas próprias negativas, lembro que
pensei isso, já que ele essencialmente parecia esse tipo de gente) por entre
os meus joelhos.
Mas também não é que eu tenha refletido sobre tudo isso de modo
consciente na época. Na época, eu só tinha consciência do impacto concreto
da declaração do locutor e dos primeiros raios de sol de uma percepção de
que toda aquela falta de rumo sem sentido e aquela preguiça que me faziam
ser um “lesado” e que tanta gente naqueles tempos fingia que tinha
transformado numa forma de arte niilista, e achava que eram tão descoladas
e tão engraçadas (eu também achava aquilo descolado, ou pelo menos
achava que achava — parecia que tinha alguma coisa romântica na
desorientação e no desperdício totais, o que levou a ridicularizarem o
Jimmy Carter por ele ter chamado de “malaise” e mandado a nação parar de
uma vez com isso), não eram nada engraçadas na verdade, nadinha, mas era
coisa mais de dar medo, de fato, ou era triste, ou era alguma outra coisa —
alguma coisa pra qual eu não conseguia dar um nome porque ela não tinha
nome. Eu sabia, ali sentado, que eu podia ser um niilista de verdade, que
não era só uma pose bacaninha. Que eu ficava de bobeira e abandonava as
coisas porque nada tinha significado, nenhuma escolha era melhor, de
verdade. Que eu era, de certa maneira, livre demais, ou que esse tipo de
liberdade no fundo não era real — eu tinha a liberdade de escolher um
“tanto faz” qualquer porque no fundo não fazia diferença. Mas isso,
também, era por causa de alguma coisa que eu escolhia — eu tinha de
alguma maneira escolhido que nada fizesse diferença. A coisa toda parecia
bem menos abstrata do que agora aqui tentando explicar. Isso tudo estava
acontecendo enquanto eu só estava ali sentado, rodando a bola. A questão
era que, fazendo essa escolha, eu também não fazia diferença. Eu não
representava nada. Se eu queria fazer diferença — nem que fosse só pra
mim mesmo — eu ia ter que ser menos livre, decidindo escolher de alguma
maneira definida. Nem que não passasse de um mero ato volitivo. Essas
consciências todas foram muito rápidas e indistintas, e as percepções sobre
escolher e fazer diferença foram tudo que eu consegui pegar ali — eu
também ainda estava tentando assistir Enquanto o mundo gira, que tendia a
ir ficando cada vez mais dramática e viciante à medida que ia chegando ao
fim da hora, já que eles sempre queriam te fazer lembrar de ligar a televisão
de novo no dia seguinte. Mas a questão foi que percebi, em algum nível,
que fosse lá o que quisesse dizer “alma perdida”, eu era uma — e isso não
era bacana nem engraçado. E, como já mencionei, foi só uns dias depois
que eu por engano acabei do outro lado do gio na última aula de tributação
avançada do semestre, que era, tenho que reforçar isto, um tema que
naquela época não tinha o menor interesse pra mim, eu achava. Como quase
todo mundo fora dessa indústria, eu imaginava que a contabilidade fiscal
era o reino dos camaradinhas chatonildos com óculos fundo de garrafa e
coleções imensas de selos, mais ou menos o oposto de bacana ou descolado
— e a experiência de ouvir o locutor da CBS ficar descrevendo a realidade de
superfície sem parar, de ser capaz de repente de ouvir o cara e de ver a
telinha por entre os meus joelhos, por baixo da bola que girava na ponta do
meu dedo, foi parte do que me deixou em posição, acho, com ou sem razão,
de ouvir alguma coisa que mudou o meu rumo.
Lembro que a campainha do corredor do terceiro andar tocou no fim do
horário da aula de tributação avançada naquele dia sem que nenhum aluno
fizesse aquela coisa de fim de aula das turmas das humanas de ficar se
remexendo pra recolher as coisas ou de se inclinar por cima da mesinha pra
pegar as mochilas e as pastas no chão, nem quando o substituto desligou o
projetor e ergueu a tela de projeção com um gesto seco da mão esquerda,
colocando de novo o lenço no bolso do paletó. Todos continuaram quietos e
atentos. Quando a luz da sala acendeu de novo, lembro de ter dado uma
espiada e de ter visto que as anotações do aluno mais velho, de bigode, atrás
de mim eram incrivelmente claras e bem organizadas, com algarismos
romanos pras questões principais da aula e letras minúsculas, parágrafos
numerados e defesas duplas de parágrafo pros subtemas e corolários. A
própria caligrafia do sujeito parecia automatizada, de tão boa. Isso apesar
daquilo ter sido praticamente escrito no escuro. Vários relógios digitais
deram a hora em sincronia. Exatamente como o seu duplo do outro lado do
gio, o piso da sala 311 do Garnier era coberto de lajotas de um padrão bege-
e-marrom institucional que era ou axadrezado ou de diamantes
entrelaçados, dependendo do ângulo que a pessoa estivesse. Lembro disso
tudo com muita clareza.
Apesar de eu ainda ter precisado de um ano pra entender aquilo, aqui vão
algumas das áreas principais da aula de revisão do substituto, conforme
arroladas nas anotações do estudante mais velho da pós-graduação:

Renda imputada Fórmula de Haig-Simons


Recebimento Construtivo
Sociedades Limitadas, Perdas Passivas
Amortização e Capitalização 1976 TRA §266
Depreciação Sistema Vital de Classe
Método em Espécie vs. Método de Acréscimo Implicações para a
RBA

Doações Inter Vivos e TRA 76


Técnicas “Straddle”
4 Critérios para Câmbio Não Tributável
Estratégia de Planejamento Fiscal para o Cliente (“Customizar a
Transação”) vs. Estratégia de Análises do IRS (“Agregar a
Transação”)

Como já mencionei, era o último dia de aulas regulares daquele semestre.


O fim da última aula regular, nos cursos de humanas que eu estava
acostumado a acompanhar, era normalmente o momento em que o jovem
professor tentava fazer algum tipo de resumo descolado e autoirônico —
“Professor, será que dava então pra dar uma resumida geral no que a gente
aprendeu nas últimas dezesseis semanas?” — além das instruções sobre a
logística da prova ou do trabalho final, e das notas finais, e talvez desejos
de boas férias de fim de ano (faltavam duas semanas pro Natal de 78). Só
que na tributação avançada, quando o substituto se virou depois de erguer a
tela, ele não deu nenhum desses sinais de conclusão ou de transição pras
instruções finais ou de um resumo. Ele ficou lá bem imóvel — nitidamente
mais imóvel do que a maioria das pessoas fica quando está imóvel. Até ali
ele tinha dito 8 206 palavras, contando termos e operadores matemáticos.
Os carinhas mais velhos e os asiáticos estavam todos ainda sentadinhos, e
parecia que esse instrutor tinha a capacidade de manter contato visual com
todos os quarenta e oito de nós ao mesmo tempo. Eu tinha consciência de
que parte da vibe de uma autoridade ríspida, distante e automática desse
substituto se devia a como todos os veteranos ali na sala prestavam tanta
atenção a cada palavrinha e a cada gesto dele. Era óbvio que eles
respeitavam esse substituto e que era um respeito que ele não precisava
retribuir, ou fingir retribuir, pra poder aceitar. Ele não estava ansioso por “se
conectar” ou por ser amado. Mas também não era hostil nem arrogante. O
que ele parecia ser era “indiferente” — não de um jeito sem sentido, sem
rumo, niilista, mas na verdade de um jeito seguro, confiante. É ruim de
descrever, se bem que lembro muito claramente a consciência que eu tive
disso tudo. A palavra que ficava aparecendo na minha cabeça enquanto ele
olhava pra gente e a gente ficava olhando e esperando — se bem que tudo
isso ocorreu bem rápido — era credibilidade, que nem na expressão “crise
de credibilidade” do escândalo de Watergate, que estava essencialmente
acontecendo enquanto eu estava na Lindenhurst. O barulho das outras
classes de contabilidade, economia e administração de empresas se
esvaziando pra irem pro corredor foram ignorados. Em vez de recolher as
suas coisas, o substituto — que, como já mencionei, achei na época que era
um padre jesuíta “à paisana” — pôs as mãos atrás das costas e esperou,
olhando pra gente. O branco dos olhos dele era extremamente branco,
daquele jeito que normalmente só uma feição escura consegue deixar o
branco do olho. Esqueci a cor das íris. Só que a aparência dele era a de
alguém que quase nunca tinha tomado sol. Ele parecia estar em casa sob
aquela luz fluorescente econômica e empresarial. A gravata-borboleta dele
era perfeitamente reta e nivelada, apesar de ser do tipo de atar à mão, não de
prender.
Ele disse: “Vocês vão querer algum resumo, então. Uma adortação”. (É
possível que eu tenha ouvido errado e ele na verdade tenha dito
“exortação”.) Ele deu uma olhadinha rápida no relógio com o mesmo
movimento de ângulos retos. “Muito bem”, ele disse. Um sorrisinho
brincava na boca dele quando ele falou “Muito bem”, mas estava claro que
ele não estava brincando nem tentando diminuir de leve o que ia dizer,
como tantos professores de humanas naquele tempo faziam, tendendo a se
ridicularizar ou ridicularizar as adortações pra não parecerem manés. Só me
ocorreu mais tarde, depois de eu ter entrado no CAT do Serviço, que esse
substituto na verdade foi o primeiro instrutor que vi de todas as escolas de
que eu tinha ficado entrando e saindo que parecia 100% indiferente sobre
você gostar dele ou ele parecer bacana ou popular pros alunos, e eu percebi
— isto depois de entrar pro Serviço — como pode ser uma qualidade
poderosa esse tipo de indiferença numa figura de autoridade. Pra dizer a
verdade, olhando agora daqui, o substituto pode ter sido a primeira figura
legítima de autoridade que encontrei na vida, ou seja, uma figura com uma
“autoridade” legítima e não só com o poder de te criticar ou pegar no teu pé
lá da sua posição estável do outro lado do abismo geracional, e eu tomei
consciência pela primeira vez de que a “autoridade” na verdade era uma
coisa real e autêntica, que uma autoridade real não era a mesma coisa que
um amigo ou com alguém que se importava com você, mas que mesmo
assim podia ser uma coisa boa pra você, e que a relação de autoridade não
era “democrática” ou igualitária e mesmo assim podia ter valor pros dois
lados, pras duas pessoas envolvidas na relação. Acho que eu não estou
explicando isso muito bem — mas é verdade que me senti mesmo
escolhido, enroscado naqueles olhos de um jeito de que eu nem gostava
nem desgostava, mas de que eu com certeza estava consciente. Era um tipo
de poder que ele exercia e que eu estava concedendo a ele voluntariamente.
Que respeito não era a mesma coisa que coerção, apesar de ser um tipo de
poder. Era tudo muito estranho. Percebi também que agora ele estava com
as mãos atrás das costas, meio que numa posição militar de “descansar”.
Ele disse pros estudantes de ciências contábeis: “Muito bem, então.
Antes de vocês saírem daqui e retomarem aquele simulacro precário de vida
humana que até este momento vocês chamam de vida, vou me encarregar
da responsabilidade de lhes comunicar algumas verdades. Em seguida vou
lhes oferecer uma opinião a respeito da maneira mais proveitosa de vocês
considerarem e reagirem a essas verdades”. (Fiquei imediatamente
consciente de que ele não parecia estar falando da prova final de tributação
avançada.) Ele disse: “Vocês vão voltar para a casa e a família de vocês
durante as férias de fim de ano e, nesse intervalo festivo antes da última
temporada de estudos puxados para a prova de COC — podem acreditar em
mim —, vocês vão hesitar, vão sentir pavor e dúvida. Isso vai ser natural.
Vocês, pelo que vai lhes parecer a primeira vez, vão se sentir apavorados
com as brincadeirinhas dos amigos dos tempos de escola sobre a
contabilidade ser a carreira que vocês vão seguir, vão ler a aprovação nos
olhos dos seus pais como uma aprovação da rendição de vocês — ah, eu já
passei por isso, cavalheiros; já conheço os passos dessa estrada. Pois a hora
está chegando. De começar, naquele intervalo sem exagero pavoroso em
que vocês vão olhar para baixo antes de saltar para longe, a ouvir dolorosas
previsões relativas ao tédio sem fim da profissão que vocês estão
escolhendo, à falta de empolgação ou de uma chance de brilhar nos campos
esportivos ou nas pistas de dança doravante”. Verdade que uma parte disso
não entendi direito — não acho que muitos de nós ali naquela sala tivessem
passado muito tempo “brilhando nas pistas de dança”, mas isso podia ser só
uma coisa de geração — ele obviamente estava usando aquilo como
metáfora. Mas pode apostar que saquei o que ele quis dizer disso de a
contabilidade não parecer uma profissão muito empolgante.
O substituto continuou: “Sentir a decisão como perda de opções, como
um tipo de morte, a morte da possibilidade infinita da infância, da lisonja da
escolha sem pressão — isso vai acontecer, ouçam bem. O fim da infância.
A primeira de muitas mortes. A hesitação é natural. A dúvida é natural”.
Ele sorriu de leve. “Talvez então seja bom vocês lembrarem, daqui a três
semanas, caso estejam muito abalados, desta sala, deste momento e da
informação que eu agora vou lhes transmitir.” Ele obviamente não era uma
pessoa muito modesta ou insegura. Por outro lado, o jeito dele falar não
soou nem de longe tão formal ou certinho na época lá na tributação
avançada como está soando agora quando eu repito — ou melhor, a fala
dele era formal e meio poética, mas não de um jeito artificial, como se fosse
uma extensão natural de quem e do que ele era. Não era pose. Lembro de
pensar que de repente o substituto tinha dominado aquele truque dos
cartazes do Tio Sam e de algumas pinturas que parecem estar olhando bem
na sua cara por mais que você mude de ângulo. Que talvez todos os alunos
solenes e mais velhos (dava pra ouvir um alfinete caindo) estivessem se
sentindo escolhidos e abordados diretamente também — apesar que isso,
claro, não ia fazer a menor diferença quanto ao efeito especial que aquilo
teve em mim, que era a questão ali, de verdade, que nem a história da
namorada cristã podia ter me mostrado se eu estivesse atento e acordado a
ponto de ouvir qual era mesmo a coisa que ela estava tentando dizer. Como
já mencionei, a versão de mim que ouviu aquela história em 1973 ou 74 era
uma criança niilista.
Depois de mais um ou dois comentários, com as mãos ainda atrás das
costas, o substituto continuou: “Eu desejo lhes informar que a profissão
contábil a que os senhores aspiram é, de fato, heroica. Por favor, percebam
que eu disse ‘informar’ e não ‘opinar’ ou ‘alegar’ ou ‘supor’. A verdade é
que depois de irem para casa e depois da cantoria, do vinho quente, dos
livros e dos guias de preparação para a prova de COC vocês vão estar à beira
de uma só coisa: heroísmo”. Obviamente, isso foi impactante e todos se
mantiveram atentos. Lembro de ter pensado de novo, enquanto ele dizia
isso, na citação na tela de projeção que eu tinha achado que era da bíblia:
“O equivalente moral da guerra”. Parecia estranho, mas não ridículo. Eu
percebi que pensar naquela citação era a primeira vez na vida em que eu
tinha ao menos considerado a palavra moral num contexto que não fosse o
de um trabalho acadêmico — isso era parte das coisas de que eu tinha
começado a tomar consciência uns dias antes, na experiência que eu tive
assistindo Enquanto o mundo gira. O substituto era só de estatura mediana.
Os olhos dele não eram cortantes nem se perdiam. Os óculos de alguns
alunos ainda refletiam luz. Um ou dois ainda estavam tomando notas, mas
fora isso ninguém a não ser o substituto falava ou se mexia.
Continuando sem pausa, ele disse: “Rigorosa? Prosaica? Materialista até
não mais poder? Às vezes. Frequentemente tediosa? Pode ser. Mas brava?
Valorosa? Apropriada, doce? Romântica? Honrada? Heroica?”. Quando ele
parou, não foi só pelo efeito — pelo menos não totalmente. “Cavalheiros”,
ele disse, “— com o que eu quero dizer, claro, adolescentes tardios já com
aspirações à virilidade —, cavalheiros, eis uma verdade: suportar o tédio na
duração do tempo real dentro de um espaço delimitado é a verdadeira
coragem. Essa resistência, pra dizer a verdade, é a quintessência do que
hoje, neste mundo que nem eu nem vocês criamos, é o heroísmo.
Heroísmo.” Ele fez questão de olhar em volta, medindo a reação das
pessoas. Ninguém riu; uns poucos pareciam intrigados. Lembro que estava
começando a ter que ir ao banheiro. Sob a luz fria da sala, ele não projetava
sombras. “Com o quê”, ele disse, “eu quero dizer heroísmo verdadeiro, não
o heroísmo que os senhores podem conhecer dos filmes ou das historinhas
infantis. Os senhores agora estão quase no final da infância; estão prontos
para o peso da verdade, para aguentar esse peso. A verdade é que o
heroísmo do entretenimento infantil não era um valor de fato. Era teatro. O
gesto grandioso, o momento da escolha, o perigo mortal, o inimigo externo,
a batalha climática cujo resultado resolve tudo — tudo projetado para
parecer heroico, para empolgar e satisfazer uma plateia. Uma plateia.” Ele
fez um gesto que eu não consigo descrever: “Cavalheiros, bem-vindos ao
mundo da realidade — não há plateia. Ninguém para aplaudir, para admirar.
Ninguém para ver os senhores. Estão entendendo? Eis a verdade — o
verdadeiro heroísmo não recebe ovações, não diverte ninguém. Ninguém
faz fila para ver. Ninguém está interessado”.
Ele parou mais uma vez e sorriu de um jeito que não tinha nadinha de
autoironia. “O verdadeiro heroísmo são vocês, sozinhos, num espaço
laboral que lhes foi atribuído. O verdadeiro heroísmo são minutos, horas,
semanas, anos e anos do exercício calado, preciso e judicioso da probidade
e do cuidado — sem ninguém ali para ver ou torcer. Eis o mundo. Só vocês
e o trabalho, na mesa. Vocês e o retorno, vocês e os dados de planilha,
vocês e o protocolo do inventário, vocês e os programas de depreciação,
vocês e os números.” O tom de voz dele era absolutamente direto. De
repente me ocorreu que eu não tinha ideia de quantas palavras ele tinha dito
desde aquela 8 206ª- na conclusão da revisão. Eu estava consciente de como
cada detalhezinho da sala de aula parecia muito nítido e distinto, como se
tivesse sido laboriosamente desenhado e sombreado, mas ao mesmo tempo
de estar completamente concentrado no jesuíta substituto, que estava
dizendo esse monte de coisa dramática ou até romântica mas sem nada dos
efeitos ou das cenas do teatro, parado ali bem quietinho com as mãos nas
costas (eu sabia que ele não estava segurando uma mão com a outra — de
algum jeito eu podia dizer que ele estava mais meio que segurando o pulso
direito com a mão esquerda) e os planos do rosto sem nenhuma sombra sob
a luz branca. Parecia que ele e eu estávamos em pontas opostas de algum
tipo de tubo ou cano, e que ele na verdade estava se dirigindo a mim em
particular — apesar dele obviamente não estar fazendo isso. A realidade
literal era que eu era a quem ele menos se dirigia, já que obviamente eu não
estava matriculado em tributação avançada nem me preparando pra fazer a
prova final e aí ir pra casa ficar sentado na escrivaninha da minha infância
no meu quarto da casa dos meus pais gramando em cima dos livros da
temida prova para COC como parecia que muito dos outros ali na sala iam
fazer. Mesmo assim — como eu queria ter entendido antes, já que isso teria
me poupado muito tempo e muita errância cínica —, sensação é sensação, e
também não dá pra questionar resultados.
Enfim, enquanto isso, no que parecia ser essencialmente uma
recapitulação das suas ideias principais até ali, o substituto disse: “O
verdadeiro heroísmo é incompatível a priori com plateias ou aplausos ou até
com a mera percepção dos homens comuns. Na verdade”, ele disse, “quanto
menos convencionalmente heroico ou empolgante ou chamativo ou até
interessante ou absorvente um trabalho parece ser, tanto maior é o seu
potencial enquanto arena do verdadeiro heroísmo, e portanto enquanto
denominação de uma alegria inigualada por qualquer outra que vocês como
homens ainda podem imaginar”. Então pareceu que uma espécie de
repentino estremecimento percorreu a sala, ou quem sabe um espasmo
extático, que foi se comunicando de veterano de ciências contábeis ou pós-
graduando de administração para veterano de ciências contábeis ou pós-
graduando de administração tão velozmente que todo o coletivo pareceu por
um instante se inflar — se bem que, de novo, não tenho 100% de certeza
que isso aconteceu, que isso se deu fora de mim, na sala de aula mesmo, e o
(possível) momento do espasmo coletivo foi breve demais pra eu ter mais
que meio que uma leve consciência dele. Também lembro de sentir uma
enorme necessidade de me abaixar e amarrar o cadarço da minha bota, que
nunca se traduziu em uma ação real.
Ao mesmo tempo, pode ser justo dizer que eu lembrava do jesuíta
substituto fazer pausas e pequenos silêncios exatamente como esses
palestrantes motivacionais mais convencionais usam gestos e expressões
físicas. Ele disse: “Manter cuidado e escrupulosidade em cada detalhe
proveniente da barafunda emaranhada de dados e regras e exceções e
contingências que constitui a contabilidade no mundo real — isso é
heroísmo. Atender plenamente os interesses do cliente e equilibrar esses
interesses em sua relação com os elevados padrões éticos do CPCF e com a
legislação vigente — sim, servir a quem não se importa com o serviço, mas
apenas com resultados — isso é heroísmo. Pode ser a primeira vez em que
vocês ouviram a verdade assim às claras, diretamente. Apagar-se.
Sacrifício. Serviço. Entregar-se ao cuidado do dinheiro dos outros — isso é
se apagar, é persistir, é sacrifício e honra, vigor, valor. Ouçam ou façam
ouvidos moucos, como quiserem. Aprendam agora ou depois — o mundo
tem tempo. Rotina, repetição, tédio, monotonia, efemeridade, irrelevância,
abstração, desordem, fastio, angústia, enfado — esses os verdadeiros
inimigos do herói, e podem ter certeza de que eles são terríveis. Porque são
reais”.
Um dos alunos de contábeis levantou a mão e o substituto fez uma pausa
pra responder uma pergunta sobre a base de custo ajustado na classificação
tributária das doações. Foi em algum ponto da resposta dele que ouvi o
substituto usar a expressão “um fraldinha do IRS”. Desde aquele dia, eu
nunca, mesmo, ouvi esse termo em nenhum lugar que não fosse o Centro de
Análise em que estou lotado — é um exemplo de gíria interna do Serviço
pra um certo tipo de analista. Então, olhando agora daqui, isso
definitivamente devia ter levantado uma bandeirinha vermelha em termos
da experiência e do passado do substituto. (Aliás, “CPCF” era a sigla do
Conselho de Padrões da Contabilidade Financeira, só que, claro, só fui
aprender isso depois de entrar no Serviço no ano seguinte.) Além disso, eu
provavelmente devia admitir aqui um paradoxo óbvio nessa lembrança —
apesar de eu estar assim tão atento e tão afetado por esses comentários
sobre coragem e o mundo real, não estava ciente de que o drama e a
cintilância que eu estava atribuindo às palavras do substituto, pra dizer a
verdade, iam no sentido contrário daquelas mesmas palavras. Ou seja, fui
profundamente afetado e modificado pela adortação sem, como hoje me
parece, compreender de verdade do que ele estava falando. Olhando agora
daqui, isso parece mais uma prova de que eu estava ainda mais “perdido” e
desligado do que eu sabia.
“Demais, vocês acham?”, ele disse. “Caubói, paladino, herói?
Cavalheiros, leiam um pouco de história. O herói de ontem estendeu limites
e fronteiras — ele penetrou, domesticou, talhou, formou, criou, gerou coisas
novas. Os heróis da sociedade de ontem produziam fatos. Pois é isso que a
sociedade é — um aglomerado de fatos.” (Claro que, quanto mais alunos de
tributação avançada levantavam timidamente e iam embora, mais
aumentava a minha sensação de ele estar se dirigindo única e
exclusivamente para mim. O aluno mais velho de administração com duas
costeletas abundantes e muito bem aparadas e anotações incríveis do meu
lado foi capaz de abaixar os fechos de metal da sua pasta executiva sem
fazer nenhum barulhinho. Na prateleira de aramado embaixo da mesa dele
tinha um Wall Street Journal que ele ou não tinha lido, ou talvez tivesse
conseguido ler e dobrar de novo tão perfeitamente que parecia intocado.)
“Mas agora estamos nos tempos de hoje, nos tempos modernos”, o
substituto estava dizendo (o que obviamente era difícil de contestar). “No
mundo de hoje, as fronteiras são fixas, e fatos mais significativos foram
produzidos. Cavalheiros, a fronteira heroica agora está no ordenamento e no
emprego desses fatos. Classificação, organização, apresentação. Em outras
palavras, o bolo está pronto — a competição agora é para fatiar.
Cavalheiros, os senhores concorrem para segurar a faca. Para manejá-la.
Para aquinhoar. Para dar forma a cada fatia, ao ângulo da faca e à
profundidade do corte.” Por mais que eu ainda estivesse magnetizado,
também estava consciente, àquela altura, de que as metáforas do substituto
pareciam estar ficando meio bagunçadas — era difícil imaginar que os
orientais que tinham sobrado ali estavam entendendo muita coisa daquela
história de caubóis e de bolos, já que eram umas imagens bem americanas.
Ele foi até o mastro de bandeira no canto da sala e pegou seu chapéu, um
fedora social cinza-escuro, velho mas muito bem cuidado. Em vez de
colocar o chapéu, ele segurou no ar.
“Um padeiro usa um chapéu”, ele disse, “mas não é o nosso chapéu.
Cavalheiros, preparem-se para usar o chapéu. Vocês já pensaram por que
todos os contadores usam chapéu? Eles são os caubóis dos dias atuais.
Como vocês serão. Cavalgando pelas planícies americanas. Conduzindo
rebanhos através da infinita torrente de dados financeiros. Redemoinhos,
cataratas, variações combinadas, pétreas minúcias. Vocês organizam os
dados, os pastoreiam, dirigem seu fluxo, levam os dados para onde eles são
necessários, na forma codificada que se lhes deve apor. Os senhores lidam
com dados, cavalheiros, coisa que está no mercado desde que o primeiro
homem saiu rastejando da borra primordial. São vocês — acreditem em
mim — quem cavalga, quem vigia das muralhas, quem define o bolo, quem
serve.” Agora não tinha como não notar o quanto ele estava diferente da
imagem que tinha lá no começo. No fim das contas, não ficava claro se ele
tinha planejado ou preparado essa adortação final ou não, ou se estava só
falando de um jeito passional, de coração. O chapéu dele era
perceptivelmente mais estiloso e mais europeu que o do meu pai, com a aba
mais em ordem e a pena da fita presa — tinha que ter pelo menos vinte
anos. Quando ele ergueu os braços para concluir, uma das mãos ainda
segurava o chapéu.
“Cavalheiros, os senhores estão sendo chamados a prestar contas.”
Um ou dois alunos restantes bateram palmas, um som que de algum jeito
é terrível quando vem de umas poucas mãos dispersas — que nem uma
surra ou uma série de tabefes mal-humorados. Lembro de ter num flash a
visão de alguma coisa deitada no berço e sacudindo os braços e as pernas
inutilmente no ar, boca aberta e molhada. E aí de ter atravessado de novo o
gio e saído pelo Daniel pra ir até a biblioteca num tipo estranho de transe
hiperconsciente, tanto desorientado quanto muito claro, e aí a lembrança
desse incidente basicamente se encerra.
Depois disso, a primeira coisa que lembro de ter feito no recesso de fim
de ano em Libertyville foi cortar o cabelo. Eu também passei na Carson
Pirie Scott de Mundelein e comprei um terno cinza-escuro de lã com um
paletó sem aberturas atrás, de um tecido com uma trama cerrada e vertical,
e uma calça com pregas duplas, além de um blazer xadrez grandão com
umas lapelas largas e pontudas que acabei quase nunca usando, já que ele
tinha uma tendência de meio que enrolar no terceiro botão e produzir o que
quase parecia um peplo quando estava todo abotoado. Também comprei um
sapato social Nunn Bush de couro e três camisas — duas oxfords brancas e
uma azul-clarinha de algodão mais grosso. Os três colarinhos eram de
abotoar.
A não ser por eu ter praticamente arrastado a minha mãe até Wrigleyville
pra ceia de Natal na casa da Joyce, passei as férias quase inteiras em casa,
pesquisando opções e pré-requisitos. Lembro que também estava
deliberadamente tentando pensar de forma contínua e concentrada. As
minhas sensações a respeito da universidade e da formatura tinham mudado
por completo. Eu estava me sentindo súbita e totalmente atrasado. Era meio
parecido com a sensação de repentinamente olhar no relógio e perceber que
passou a hora que você tinha marcado, mas numa escala bem maior. Agora
eu só tinha mais um semestre antes de supostamente me formar, e estava
exatamente a nove matérias obrigatórias de um diploma de ciências
contábeis, pra não falar da tentativa de passar na prova para COC. Comprei
um guia Barron’s pra prova de COC na Waldenbooks do Galaxy Mall perto
da Milwaukee Road. A prova acontecia três vezes por ano, durava dois dias,
e eles recomendavam vigorosamente que você tivesse passado tanto pela
intro quanto pela contabilidade financeira intermediária, pela contabilidade
empresarial, dois semestres de auditoria, estatística empresarial — que, na
DePaul, era outra disciplina famosa por ser cruel — intro de processamento
de dados, um ou preferencialmente dois semestres de tributária, fora ou
contabilidade fiduciária ou contabilidade de empresas sem fins lucrativos e
um ou mais semestres de economia. Um adendo em letras minúsculas
também recomendava proficiência em pelo menos uma linguagem de
programação de “alto nível”, como Cobol. A única disciplina de
informática que eu tinha concluído na vida era introdução ao mundo dos
computadores na UI-Chicago, onde a gente basicamente jogava Pong caseiro
e ajudava o professor a tentar reorganizar 51 mil cartões perfurados holerite
em que ele tinha arquivado as informações de um projeto e que derrubou
por acidente numa escada escorregadia. E assim por diante e coisa e tal.
Fora que dei uma olhada num manual de estatística empresarial e descobri
que a pessoa precisava saber cálculo integral, e eu não tinha feito nem
trigonometria — no meu último ano do ensino médio eu tinha feito
perspectivas do teatro moderno em vez de trigonometria, e lembrava muito
bem do meu pai pegando no meu pé por causa disso. Pra dizer a verdade, o
meu ódio por álgebra II e a minha recusa em fazer qualquer outra disciplina
de matemática depois daquilo foi a ocasião de uma das discussões mais
pesadonas que ouvi os meus pais terem nos anos antes de eles se separarem,
o que já é uma história meio comprida, mas lembro de entreouvir o meu pai
dizendo que só existiam dois tipos de pessoas no mundo — as pessoas que
entendiam de verdade as realidades técnicas de como o mundo real
funcionava (através, obviamente era o que ele queria dizer, da matemática e
ciência), e as pessoas que não entendiam — e de entreouvir a minha mãe
ficando superchateada e deprimida com o que ela via como a rigidez e a
mesquinharia do meu pai, e responder que os dois tipos humanos básicos na
verdade eram as pessoas tão rígidas e intolerantes que acreditavam que só
existiam dois tipos humanos básicos, de um lado, contra, do outro lado, as
pessoas que acreditavam que existia toda uma variedade de tipos de pessoas
diferentes com dons, destinos e trilhas únicos na vida que elas precisavam
encontrar, e assim por diante. Qualquer um que estivesse ouvindo de longe
aquela discussão, que tinha começado como uma briguinha típica mas se
transformado numa coisa especialmente acalorada, logo diria que o conflito
real era entre o que a minha mãe via como duas formas extremamente
diferentes e incompatíveis de ver o mundo e de tratar as pessoas que você
pra todos os efeitos amava e apoiava. Por exemplo, foi durante essa
discussão que entreouvi o meu pai dizer aquilo de eu não conseguir achar a
minha própria bunda nem que tivessem pendurado um sino gigante nela, o
que a minha mãe entendeu basicamente como ele criticando de maneira fria
e rígida uma pessoa que ele pra todos os efeitos amava e apoiava, mas que,
olhando agora daqui, acho que pode ter sido o único jeito que o meu pai
conseguiu encontrar de dizer que estava preocupado comigo, que eu não
tinha iniciativa nem rumo e que ele não sabia o que fazer como pai. Como
se sabe muito bem, os pais podem ter maneiras imensamente diferentes de
expressar amor e preocupação. Claro que muito da minha interpretação é
especulativo — óbvio que não tem como saber o que ele queria realmente
dizer.
Enfim, o fruto de todo aquele meu pensamento concentrado e das
pesquisas nas férias de fim de ano era que parecia que eu basicamente ia ter
que começar a universidade do zero de novo, e eu já estava com quase vinte
e quatro anos. E a situação financeira lá em casa estava totalmente doida
por causa das complexas questões jurídicas do processo de homicídio
culposo que na época estava em andamento.
Como um comentário à parte, não tinha ajuste que fizesse os ternos do
meu pai servir em mim. Naquela época eu era tamanho 46 com calça de 85
cm do cós à barra, enquanto a maioria dos ternos do meu pai era 44/75 cm.
Os ternos e o blazer arcaico de seda acabaram sendo doados pro Exército da
Salvação depois que eu e a Joyce tiramos quase todas as coisas dele do
armário, do escritório e da salinha dele, o que foi uma experiência triste
pacas. A minha mãe, como já mencionei, estava passando cada vez mais
tempo vendo os pássaros da vizinhança nos alimentadores que ela tinha
pendurado pela varanda e nos que estavam instalados no jardim — a sala de
estar da casa do meu pai tinha uma janelona bem grande com uma vista
excelente da varanda, do jardim e da rua — e quase sempre com um robe de
chenille vermelho e umas pantufonas peludas o dia todo, e deixando de lado
tanto os interesses pessoais quanto os cuidados com a aparência, o que
estava fazendo todo mundo ficar cada vez mais preocupado.
Depois das férias, bem quando estava começando a nevar, marquei um
horário pra conversar com o pró-reitor de Questões Acadêmicas da DePaul
(que definitivamente era jesuíta de verdade, usava o uniforme preto e
branco oficial e também tinha uma fitinha amarela atada na maçaneta da
porta do escritório) sobre a experiência na tributação avançada e a
reviravolta nos meus rumos e na minha orientação, e sobre eu estar tão
atrasado em termos de escolher uma orientação, e pra mencionar a
possibilidade de quem sabe eu continuar matriculado por mais um ano
pagando as mensalidades depois de me formar pra poder dar uma mão nisso
de eu compensar algumas coisas que me faltavam em termos de conseguir
um diploma de contador. Mas era chato porque pra dizer a verdade eu já
tinha passado pela sala desse padre uns dois ou três anos antes, em
condições, pra dizer pouco, bem diferentes — ou seja, só pra ele pegar no
meu pé e me ameaçar com uma suspensão acadêmica, ao que posso ter
realmente respondido bem alto “Tanto faz”, que é o tipo de coisa que os
jesuítas não curtem muito. Assim, nessa reuniãozinha a atitude do pró-reitor
foi de alguém desdenhoso e cético, e que se divertia — parecia que ele
estava achando a mudança na minha aparência e na minha atitude declarada
mais cômica do que qualquer outra coisa, como se considerasse aquilo uma
pegadinha, uma piada ou algum tipo de tática pra eu tentar descolar mais
um ano antes de ter que ir me virar no que ele classificava como “o mundo
dos homens”, e eu não tinha como descrever direito pra ele as consciências
e as conclusões que eu tinha atingido enquanto assistia televisão de tarde e
depois dava de cara com a aula errada sem soar infantil ou insano, e
essencialmente ele me botou pra correr.
Isso foi no começo de janeiro de 1979, no dia em que estava só
começando a nevar — lembro de ficar olhando uns flocos soltos grandes,
inseguros, caindo e voando por ali sem rumo no vento causado pelo trem do
outro lado da janela da linha alimentadora da CTA que ia do Lincoln Park de
volta a Libertyville, e de pensar: “Isto aqui é o meu simulacro precário de
uma vida humana”. Até onde lembro, as fitas amarelas pela cidade toda
eram por causa do problema com os reféns no Oriente Médio e do ataque às
embaixadas dos Estados Unidos. Eu sabia muito pouco do que estava
rolando, em parte porque não tinha mais visto TV desde aquela experiência
em meados de dezembro com a bola de futebol e Enquanto o mundo gira.
Não que eu tivesse tomado qualquer decisão consciente de renunciar à
televisão depois daquilo. Só que não consigo lembrar de ter assistido mais
depois daquele dia. Além disso, depois das experiências pré-férias, eu agora
estava me sentindo atrasado demais pra poder me dar ao luxo de perder
tempo vendo TV. Uma parte de mim teve medo que na verdade eu tivesse
ficado motivadão e concentrado tarde demais e que de algum jeito bem no
último minuto eu ia acabar “perdendo” alguma chance decisiva de
renunciar ao niilismo e fazer uma escolha séria, do mundo real. Isso tudo
ainda estava acontecendo durante o que acabou sendo a pior nevasca da
história moderna de Chicago, e no começo do semestre da primavera de 79
estava tudo um caos porque a administração da DePaul ficava tendo que
cancelar as aulas porque só quem morava no campus podia garantir que ia
conseguir chegar, e metade das residências estudantis não pôde reabrir por
causa de canos congelados, e parte do teto da casa do meu pai rachou por
causa do peso da neve acumulada, e foi uma supercrise estrutural, e eu que
tive que lidar com aquilo porque a minha mãe estava obcecada demais com
os problemas logísticos de evitar que a neve cobrisse o alpiste que ela
punha lá fora. Além disso, quase todos os trens da CTA estavam parados, e
eles cancelavam abruptamente os ônibus se percebiam que os removedores
não iam conseguir manter algumas ruas limpas, e toda manhã daquela
primeira semana tive que levantar bem cedo e ficar ouvindo rádio pra ver se
a DePaul ia ter aula naquele dia pra começo de conversa, e, se fosse ter, eu
tinha que tentar chegar lá. Eu devia mencionar que o meu pai não sabia
dirigir — ele era devoto do transporte público — e a minha mãe tinha dado
o Le Car pra Joyce como parte do acordo que elas fizeram no que se referia
à dissolução da livraria, então não existia carro, se bem que de vez em
quando eu conseguia que a Joyce me desse carona, só que eu odiava criar
esse problema — ela estava lá basicamente pra cuidar da minha mãe, que
de um jeito óbvio estava indo ladeira abaixo e com quem todo mundo
andava se preocupando cada vez mais, e depois a gente ficou sabendo que a
Joyce tinha passado muito tempo pesquisando serviços e programas
psicológicos do North County e tentando descobrir que tipo de cuidado
profissional podia ser o caso da minha mãe e onde ela podia contratar esse
pessoal. Apesar da neve e da temperatura, por exemplo, a minha mãe tinha
abandonado a prática de ficar olhando os pássaros pela janela, lá de dentro,
e passou a ficar de pé na escadinha da varanda ou perto dela, segurando ela
mesma os alimentadores com as mãos erguidas, e parecia que ela estava
preparada pra ficar nessa posição tanto tempo que podia acabar congelando
se ninguém fosse lá interferir e brigasse com ela pra ela entrar. A
quantidade e o nível de ruído dos pássaros que tinha ali também eram
problemáticos a essa altura, como alguns vizinhos já tinham comentado
ainda antes de a nevasca cair.
Num certo nível eu quase tenho certeza de que foi na WBBM-AMORY —
uma emissora super nada a ver, conservadora, só de notícias que era uma
das favoritas do meu pai, mas que tinha as informações de cancelamentos
devidos às condições meteorológicas mais completas da região — que ouvi
falar pela primeira vez da nova ofensiva de incentivo ao recrutamento do
Serviço. Sendo “O Serviço” obviamente a abreviação do Serviço de Receita
Interna, que os contribuintes americanos conhecem melhor como IRS. Mas
eu também tenho uma lembrança parcial de primeiro ter visto um anúncio
de verdade do programa de recrutamento de uma maneira súbita, dramática,
que agora, olhando daqui, parece uma coisa tão pesadamente ominosa e
dramática que talvez seja mais a lembrança de um sonho ou de uma fantasia
que tive na época, que basicamente era eu esperando na praça de
alimentação do Galaxy Mall enquanto a Joyce ajudava a minha mãe a
negociar mais um pedido enorme na loja de animais Peixes & Penas.
Alguns elementos dessa lembrança são certamente críveis. Verdade que eu
tinha problemas em ver animais à venda em gaiolas — sempre tive
dificuldade com gaiolas e com a visão de coisas engaioladas — e quase
todas as vezes ficava esperando a minha mãe lá fora, na praça de
alimentação, enquanto elas estavam no aviário. Eu estava lá pra ajudar a
carregar sacos de alpiste caso os pedidos de entrega das duas fossem
recusados ou sofrer atrasos por causa do clima ruim, que, como muitos
habitantes de Chicago ainda lembram, continuou pesado por bastante
tempo, praticamente paralisando a região toda. Enfim, de acordo com essa
lembrança, eu estava sentado numa das muitas mesinhas de plástico
estilizadas da praça de alimentação do Galaxy Mall, olhando distraído pro
padrão de perfurações em forma de estrelas e luas da mesinha, quando vi,
através de uma dessas perfurações, um pedacinho do Sunday Times que
alguém tinha evidentemente largado no chão embaixo da mesa, que estava
aberto na seção de Classificados Empresariais, e a lembrança envolve ver
isso tudo lá de cima da mesa de um jeito que fazia um raio de luz das
lâmpadas no teto da praça de alimentação passar por uma das perfurações
com formato de estrela no tampo da mesa e iluminar — como que num
holofote ou feixe de luz simbolicamente estrelado — um anúncio em
particular entre todos os outros anúncios e avisos referentes a empresas e
oportunidades profissionais, sendo ele uma notícia de que havia um novo
programa de incentivo ao recrutamento do IRS em algumas partes do país,
sendo uma delas a região de Chicago. Estou apenas mencionando essa
lembrança, seja ela tão crível ou não quanto a versão mais prosaica da
WBBM, como mais uma ilustração do quanto eu estava motivacionalmente
“predisposto” pelo que parece, olhando agora daqui, a embarcar numa
carreira no Serviço.
A estação de recrutamento do IRS pra região de Chicago era numa espécie
de escritório temporário meio de fachada na West Taylor Street, bem
pertinho do campus da UIC em que eu tinha passado um desanimado e
hipócrita ano letivo de 1975-6, e também bem na frente da Academia dos
Bombeiros de Chicago, cujos aprendizes às vezes chegavam a aparecer com
todo o seu aparato de macacão e botas e tal ali no Hat, onde estavam
proibidos de pedir qualquer bebida com soda ou qualquer tipo de gás — o
que envolve uma longa explicação que nem vou começar aqui. Nem,
felizmente, a placa do podólogo com o pé giratório ficava visível daquele
lado da Kennedy Express-way. Aquele pezão giratório representava uma
das coisas infantiloides de que eu queria muito me livrar.
Lembro que o sol finalmente tinha emergido — se bem que no fim isso
acabou sendo mais uma pausa temporária ou um “olho” no sistema de
tempestades, e lá veio mais tempo fechado de inverno dois dias depois.
Agora já era mais de um metro de neve fresca no chão, e mais ainda nos
lugares em que as máquinas de alta velocidade tinham limpado as ruas e
formado umas paredonas gigantes nas laterais, e você tinha que passar
quase num túnel ou numa nave de igreja pra chegar na calçada
propriamente dita, onde aí você afundava toda vez que passava por um
terreno cujo dono não tinha espírito cívico suficiente pra limpar a neve da
calçada. Eu estava usando uma calça de veludo verde de boca larga cujas
bainhas logo, logo ficaram quase no meu joelho e a minha Timberland
pesada — que tinha uma aderência que não era nenhuma maravilha, eu
descobri — estava coberta de neve. Estava tudo tão claro que era ruim de
enxergar. Parecia quase uma expedição polar. Quando as calçadas ficavam
simplesmente entupidas demais, você tinha que tentar meio que escalar as
paredonas e andar pela rua. Como era de esperar, o trânsito estava leve. As
ruas pareciam mais uns cânions com uns flancos íngremes e brancos, e as
paredonas altas e os prédios do bairro comercial atrás delas projetavam
umas sombras complexas e truncadas no alto que às vezes formavam uns
gráficos de colunas que você ia atravessando. Eu tinha conseguido pegar
um ônibus até o Grant Park, e só. O rio estava congelado e coberto da neve
que as máquinas tinham tentado descarregar ali. Aliás, sei que é bem
provável que alguém de fora da região de Chicago não esteja lá muito
interessado na grande nevasca do inverno de 79, mas pra mim foi um
período vívido, crítico, cuja lembrança é incomumente clara e definida. Pra
mim, essa clareza da memória é mais um sinal da nítida demarcação na
minha própria consciência e na minha noção de rumo antes e depois do
substituto da tributação avançada. Não foi tanto a retórica sobre heroísmo e
caubóis, que no geral me pareceu meio forçada mesmo naquela época (tudo
tem limite). Acho que parte do que foi tão hipnótico era o diagnóstico que o
substituto fazia do mundo e da realidade como coisas essencialmente já
penetradas e formadas, a informação que constituía o mundo real já gerada,
e de que naquele momento uma escolha significativa era pastorear,
encurralar e organizar aquele fluxo torrencial de informações. Isso me
pareceu certo, se bem que num nível que eu nem sabia direito que existia
em mim.
Enfim, demorei um bocado até encontrar o lugar. Lembro que algumas
placas de Pare nas esquinas estavam só com a parte poligonal visível acima
das paredonas de neve e que várias portinhas de cartas das fachadas das
lojas tinham sido congeladas abertas e estavam com umas línguas
compridas de neve soprada pelo vento lá para cima do carpete dentro delas.
Muitos caminhões de manutenção e de lixo da prefeitura também tinham
prendido lâminas na grade do radiador e trabalhavam como removedores de
neve adicionais pro prefeito tentar responder aos protestos generalizados
sobre a dificuldade pra retirar a neve. Na Balbo, tinha uns restos mortais de
bonecos de neve nos jardins, cuja altura indicava a idade de quem tinha
feito. A tempestade tinha varrido uns olhos e cachimbos ou criado um novo
arranjo pra cara dos bonecos — de longe, eles pareciam sinistros ou
dementes. Estava muito quieto, e tão claro que quando você fechava os
olhos ficava um vermelho-sangue bem aceso ali na frente. Tinha uns ruídos
ríspidos de pás de neve e um som rosnado, agudo e distante, que só depois
lembrei que era um ou mais de um snowmobile na Roosevelt Road. Alguns
bonecos de neve dos jardins tinham um chapéu velho ou abandonado de
algum pai de família. Uma paredona de neve bem alta tinha um guarda-
chuva visível no topo, e eu lembro de uns minutos bem assustadores de
escavação e gritos buraco abaixo, porque chegou a parecer que uma pessoa
de guarda-chuva podia ter ficado enterrada de repente enquanto andava.
Mas acabou sendo só um guarda-chuva que alguém tinha abandonado ali
aberto com o cabo enterrado no banco de neve, vai ver que como uma
pegadinha pra sacanear com os outros.
Enfim, o que se soube foi que o Serviço tinha instituído fazia pouco
tempo um programa de recrutamento para a contratação de novos
funcionários, basicamente que nem a ideia de novas forças armadas
voluntárias — com propaganda pesada e montes de incentivos. Acabou que
eles tinham bons motivos institucionais pra esse recrutamento agressivo, e
só alguns deles tinham a ver com a concorrência do setor privado.
Aliás, só a mídia leiga e popular se refere a todos os funcionários
contratados do IRS como “agentes”. Dentro do Serviço, onde os funcionários
normalmente são identificados pelo setor ou pela divisão em que estão
lotados, “agente” costuma se referir só aos da Divisão de Investigação
Criminal, que é relativamente pequena e lida com casos de evasão fiscal tão
descarados que eles meio que têm que ir atrás de penalidades criminais pra
poder transformar aquele contribuinte num exemplo, o que essencialmente
serve pra motivar a adimplência generalizada. (Aliás, como o sistema
tributário federal ainda funciona praticamente na base da adimplência
voluntária, a psicologia da relação do Serviço com os contribuintes é
complicada. Ela precisa passar uma impressão generalizada de extrema
eficiência e perfeição, junto com um sistema agressivo de penalidades,
juros e, em casos extremos, processos cíveis. Só que na verdade as
investigações criminais são meio que um último recurso, já que as
penalidades criminais quase nunca tendem a gerar mais receita — um
contribuinte preso não tem renda e assim obviamente não está em condições
de pagar pela sua delinquência —, enquanto a ameaça real da ação cível
pode funcionar como um incentivo ao pagamento dos atrasados e à
adimplência futura, além de ter um efeito motivador em outros
contribuintes que estejam considerando a evasão fiscal. Pro Serviço, em
outras palavras, as “relações públicas” na verdade são uma parte complexa
e vital tanto da missão quanto da eficácia.) Da mesma maneira, enquanto
“analista” normalmente é o termo popular — mesmo entre alguns
profissionais tributaristas privados — pra se referir ao funcionário do IRS

que conduz uma auditoria, seja em campo ou no escritório distrital


adequado, o termo interno no próprio Serviço pra se referir a tal posto é
“auditor”; o termo “analista” se refere a um funcionário que tem a tarefa de
selecionar de fato certas declarações de renda pra auditoria, apesar dele
nunca lidar com o contribuinte diretamente. As análises, como já
mencionei, são responsabilidade dos Centros Regionais de Análise como o
CRA Meio-Oeste em Peoria. Organizacionalmente, Análises, Auditorias e
Investigação Criminal são todas elas divisões do Setor de Adimplência do
IRS. Só que ao mesmo tempo é verdade que certos auditores de nível médio
são conhecidos tecnicamente dentro da hierarquia de pessoal do Serviço
como “agentes da Receita”. Também é verdade que os membros da Divisão
de Inspeções Internas às vezes são classificados como “agentes”, com a
Divisão de Inspeções sendo mais ou menos a versão do Serviço pros
Assuntos Internos das agências da lei. Em essência, eles têm a tarefa de
investigar denúncias de delitos ou comportamentos criminais de
funcionários ou administradores do Serviço. Administrativamente, DII é
parte do Setor de Controle Interno do IRS, que também inclui tanto a Divisão
de Recursos Humanos quanto a de Sistemas. A questão, acho, é que, como
a maioria das grandes agências federais, a estrutura e a organização do
Serviço é supercomplicada — pra dizer a verdade, tem uns departamentos
dentro do Setor de Controle Interno com a única tarefa de estudar a própria
estrutura organizacional do Serviço e determinar maneiras de ajudar a
maximizar a eficiência da missão do Serviço.
Aninhadinho no meio da paralisia atordoante do centro de Chicago, a
estação de recrutamento do Serviço não era, assim de cara, um lugar muito
imponente, nem muito sedutor. Também tinha um escritório de
recrutamento da Força Área dos EUA na mesma entrada, separada do espaço
do IRS só por uma telona ou um escudo grande de polivinil, e o fato de que o
escritório da Aeronáutica estava tocando sem parar uma versão orquestral
do conhecido tema musical “Off We Go into the Wild Blue Yonder” num
mecanismo de repetição na sua área de recepção pode muito bem ter tido
alguma coisa a ver com o problema na cabeça e no rosto do recrutador do
IRS, que tendiam a sofrer pequenos espasmos e caretas em vários momentos,
o que, no início, tornou difícil não ficar encarando e agir com naturalidade
na presença dele. Esse recrutador do Serviço, que dava a impressão de não
ter feito a barba e que tinha um redemoinho no cabelo que parecia se
estender por toda a lateral direita da cabeça, também estava usando seus
óculos escuros dentro do escritório e tinha uma complexa mancha numa das
lapelas do paletó, e a gravata — a não ser que os meus olhos ainda não
tivessem se readaptado depois do brilho atordoante do caminho para me
afundar aqui no sudoeste no meio da neve derretendo, desde o ponto de
ônibus da Buckingham Fountain lá no Grant Park — podia ser de verdade
uma daquelas de prender. Por outro lado, eu estava com neve derretida até a
virilha e alpiste congelado pelo casaco, além de duas blusas diferentes de
gola olímpica e espessura invernal por baixo disso tudo, e também não
devia estar com uma aparência lá muito promissora. (Obviamente nem a
pau que eu ia ter usado uma das minhas roupas novas de executivo da
Carson’s pra meter o pezão na neve daquele jeito.) Além da distração que
vinha da música marcial do outro lado da telona, a própria estação de
recrutamento do IRS estava quente demais e cheirava a café azedo e a uma
marca de desodorante em bastão que eu não conseguia identificar. Várias
latas vazias de refrigerante Nesbitt’s estavam dispostas em cima de um
cesto de lixo transbordante, em torno do qual uma camada de bolotas de
papel sugeria horas ociosas de tentativas de arremesso de bolotas de papel
— um passatempo que eu conhecia bem quando ficava “estudando” na
biblioteca da UIC nas noites em que o pé da placa do podólogo assim
determinava. Também lembro de uma caixa aberta de doughnuts cuja
cobertura tinha ficado nem um pouco apetitosamente desbotada.
Mesmo assim, eu não estava lá pra me achar superior a nada nem pra me
comprometer com alguma coisa sem pensar direito. Eu estava lá pra tentar
analisar os incentivos aparentemente quase inacreditáveis do ingresso no
Serviço que tinham sido detalhados pela propaganda que eu ou tinha ouvido
ou quem sabe visto dois dias antes. Acabei descobrindo que o recrutador
estava de plantão e sem folga há vários dias por causa da tempestade, o que
provavelmente explicava sua condição atual — os padrões do Serviço em
questão de aparência pessoal no trabalho costumavam ser bem exigentes.
Quando um dos grandes limpadores improvisados de neve da prefeitura
passou por ali, o barulho sacudiu as janelas da fachada, que davam pro sul e
não eram escuras — constituindo outra explicação possível pros óculos de
sol do recrutador, que eu ainda estava achando inquietantes. A mesa do
recrutador estava ladeada por bandeiras e por um suporte grande com
planilhas oficiais e propagandas nuns pedações de cartolina, e pendurada
ligeiramente torta na parede em cima e atrás da mesa estava uma gravura
emoldurada do selo do Serviço de Receita Interna, que, o recrutador
explicou, representava o mítico herói Belerofonte matando a Quimera, além
do lema latino num grande estandarte que se desfraldava na parte de baixo:
“Alicui tamen faciendum est”, que essencialmente quer dizer: “Ele é que
está fazendo um trabalhinho difícil e impopular”. Acabou que, por motivos
que vinham lá da instituição permanente de um Imposto de Renda federal
em 1913, Belerofonte era o símbolo ou a imagem oficial do Serviço, mais
ou menos como a águia careca é dos Estados Unidos como um todo.
Em troca de um período de dois ou quatro anos de compromisso,
dependendo do esquema específico de incentivos, o Serviço de Receita
Interna estava oferecendo um total de $14 450 pra educação universitária ou
técnica. Isso, claro, eram $14 450 antes dos devidos impostos, lembro de o
recrutador do IRS ter estipulado com um sorriso que eu, naquela altura, não
soube como interpretar. Além disso, através de um complexo esquema que
o recrutador foi me apresentando num documento dobrável que esboçava
todos os vários programas de incentivo do Serviço em diagramas
intrincados com linhas pontilhadas e uma fonte extremamente pequena, se a
educação em questão levasse ou a uma licença de COC ou a um mestrado
nos campos das ciências contábeis ou da tributação, numa instituição
reconhecida, havia vários níveis de outros incentivos pra você estender o
seu contrato com o IRS, inclusive uma opção de frequentar aulas enquanto
estivesse lotado, fosse num Centro Regional de Serviços, fosse num Centro
Regional de Análise, onde o recrutador explicou que normalmente o pessoal
recém-ingressado no Serviço acabava sendo lotado nos primeiros trimestres
depois do que o recrutador chamou de “T e A”. Pra poder entrar no pacote
de incentivos, você tinha que terminar o curso de doze semanas num Centro
de Treinamento e Avaliação do IRS, ou CTA, que é o que o “T e A” meio
cínico do recrutador também queria dizer. Além disso, os funcionários
quase sempre se referem ao T e A como “o Serviço”, e ao local em que
você trabalha como a sua “Lotação” no IRS, e eles medem o tempo no
Serviço não em anos ou meses, mas em termos dos quatro trimestres fiscais
do calendário do Serviço, que correspondem aos prazos finais em termos
legais pra você mandar pelo correio os pagamentos trimestrais dos impostos
estimados, ou 1040-EST, sendo que a única coisa incomum aqui é que o
segundo trimestre vai de 15 de abril a 15 de junho, ou só dois meses, e o
quarto se estende de 15 de setembro a 15 de janeiro do ano seguinte — isso
é basicamente pro trimestre final poder englobar o exercício fiscal inteiro
até 31 de dezembro. O recrutador não explicou nada disso assim tim-tim
por tim-tim na época — quase tudo isso é só aquele tipo de informação
oficial especial que a gente acaba pegando com o tempo numa carreira
adulta.
Enfim, a essa altura já tinha mais dois outros recrutas potenciais no
escritório, sendo que um deles eu lembro que estava com um macacão de
neve de uma cor bem gritante e tinha uma testa meio baixa, projetada. O
outro, mais velho, por outro lado, estava com a sola do tênis presa com fita
crepe ou fita isolante, e tremia de um jeito que não parecia ter nada a ver
com a temperatura, e me deu a impressão de ser muito provavelmente um
indigente ou um morador de rua e não um candidato de verdade ao
recrutamento. Eu estava tentando me concentrar e estudar o folhetinho com
os programas de incentivo que tinha na mão durante toda a apresentação
mais formal do recrutador, e por causa disso acabei deixando de pegar uns
detalhezinhos essenciais. Além disso, por outro lado, esses detalhes às
vezes eram literalmente abafados pelos pratos e tímpanos da parte em
crescendo do tema da Força Aérea do outro lado da telona. Nós três, a
plateia da apresentaçãozinha de recrutamento, estávamos numas cadeiras
dobráveis de metal dispostas diante da mesa dele, com o recrutador a
princípio ali parado do lado da mesa, perto do cavalete — lembro que o
cara da testa baixa tinha virado a cadeira ao contrário e estava sentado
inclinado pra frente com as mãos em cima do encosto da cadeira e o queixo
em cima dos dedos, enquanto o terceiro membro da nossa plateia comia um
doughnut depois de colocar vários outros nos bolsos laterais do seu casaco
cáqui do Exército. Lembro que o recrutador do Serviço ficava se referindo
sem parar a uma planilha ou a um diagrama colorido todo complicado que
representava a estrutura administrativa e a organização do IRS. A
representação ocupava mais de uma planilha, na verdade, e o recrutador —
que espirrou várias vezes sem cobrir o nariz nem desviar a cabeça e que
também sofreu outros daqueles minieventos tipo tique ou espasmo em
certos pontos do inevitavelmente entreouvido hino aeronáutico — tinha que
ficar puxando vários pedaços diferentes de cartolina pra parte da frente do
cavalete, e a coisa toda era tão complicada e consistia de tantos ramos,
subsetores, divisões e escritórios e subescritórios coordenados, além de
subescritórios paralelos ou bilaterais e das divisões de logística tecnológica,
que parecia impossível compreender até o sentido geral da coisarada toda a
ponto de aquilo poder despertar algum interesse de verdade, se bem que
obviamente eu fiz questão de fazer a cara mais atenta e concentrada
possível, nem que fosse só pra mostrar que eu era alguém que podia ser
treinado pra pastorear e processar grandes quantidades de informações.
Àquela altura, eu obviamente não tinha ideia de que a triagem diagnóstica
inicial dos possíveis recrutas já tinha começado e que a complexidade
excessiva e as minúcias da apresentação do recrutador representavam uma
parte de um mecanismo de “avaliação disposicional” empregado pela
Divisão de Recursos Humanos do IRS desde 1967. E eu também não entendi
quando o outro recruta potencial (ou seja, o cara que não estava obviamente
só querendo um lugarzinho quente e coberto) começou a pescar ali apoiado
no encosto da cadeira por causa da abstrusidade da apresentação, que ele
tinha efetivamente se eliminado enquanto candidato a não ser pras lotações
mais baixas da carreira do IRS. Além disso, tinha mais de vinte formulários
diferentes pra preencher, muitos deles redundantes — não estava claro pra
mim por que a gente não podia simplesmente preencher uma cópia e aí
xerocar várias duplicatas, mas de novo preferir ficar na minha e
simplesmente preencher a mesma informação essencial várias vezes
seguidas.
No geral, apesar de conter pouco mais de 5 750 palavras, a apresentação
inicial de recrutamento e o processamento todo durou quase três horas,
durante as quais houve também vários intervalos em que o recrutador meio
que se desligou e ficou sentado num silêncio pesado e incongruente durante
o qual ele podia ou não estar dormindo — os óculos escuros dificultavam a
análise. (Depois me informaram que essas pausas inexplicáveis também
eram parte de uma triagem inicial de recrutamento e da “avaliação
disposicional” e que aquele escritório fuleiro de recrutamento, na verdade,
estava sob uma sofisticada vigilância em videotape — um dos formulários
exigidos continha uma “Autorização para Gravação” enterrada nas letras
miúdas de um dos subparágrafos, que eu obviamente não percebi na época
— e que as nossas taxas de movimentos inquietos e bocejos e certas
características de postura, posição e expressão facial em certos contextos
seriam verificadas e comparadas com vários gabaritos psicológicos e
fórmulas preditivas que a subdivisão de Recrutamento e Treinamento da
Divisão de Recursos Humanos do Setor de Controle Interno do Serviço
tinha desenvolvido muitos anos antes, o que é, por sua vez, uma história
supercomprida e complicada que envolve a ênfase que o Serviço dava, nos
anos 60 e 70, à maximização do “fluxo”, ou seja a maior eficiência possível
em termos do volume de declarações de renda e de documentos
processados, verificados, auditados e corrigidos num dado trimestre fiscal.
Apesar do conceito de eficiência do Serviço passar por mudanças nos anos
80, à medida que novas prioridades governamentais iam chegando aos
poucos do Tesouro e do Três-Meias, com uma ênfase institucional na
maximização da receita e não no fluxo de declarações, a ênfase naquela
época — ou seja, janeiro de 1979 — exigia que se triassem os recrutas em
busca de um conjunto de características que se resumiam numa capacidade
de manter a concentração sob condições extremas de tédio, complicação,
confusão e ausência de informações abrangentes. O Serviço estava, nas
palavras de um dos instrutores de Análises no CAT de Indianápolis,
procurando “engrenagens, não velas de ignição”.
No fim, começava a escurecer e a nevar de novo quando o recrutador
anunciou que o processo tinha chegado ao fim, e a gente — a essa altura já
tinha talvez umas cinco, seis pessoas na plateia, já que alguns foram
chegando durante a apresentação formal — recebeu cada um uma pilha de
pacotes de material grampeado da altura de uma resma de papel numa
pastona do IRS. As instruções finais do recrutador eram que quem ali se
sentisse potencialmente interessado fosse pra casa ler aquilo tudo com
atenção, e aí voltar no dia seguinte — que era, se não me falha a memória,
uma sexta-feira — pro outro estágio do processo de recrutamento.
Pra ser sincero, eu tinha esperado uma entrevista e tudo quanto era tipo
de pergunta sobre a minha formação, a minha experiência, os meus
direcionamentos de carreira e comprometimentos. Esperava que eles fossem
querer analisar que eu era coisa séria e que não estava ali só pra garfar um
financiamento estudantil de graça com o IRS. Como era previsível, eu tinha
esperado que o Serviço de Receita Interna — que o meu pai, cujo trabalho
na prefeitura compreensivelmente envolvia lidar com o IRS em vários níveis
diferentes, temia e respeitava — tivesse uma sensibilidade delicadíssima
quanto à possibilidade de ser passado pra trás ou enganado de alguma
maneira, e lembro, na longa caminhada do ponto de ônibus até ali, de ter
ficado apreensivo sobre o que dizer em resposta a perguntas duras a respeito
da origem do meu interesse e dos meus objetivos. Eu estava preocupado em
achar um jeito de dizer a verdade sem que os recrutadores do Serviço
reagissem como o pró-reitor de Assuntos Acadêmicos tinha reagido e sem
que eles pensassem de mim de alguma forma minimamente parecida como
a que pensei da cristã da bota multifloral da minha já mencionada
lembrança da Lindenhurst. Até onde posso lembrar, no entanto, não me
pediram pra dizer quase nada naquele primeiro dia de recrutamento depois
do oi inicial e de uma ou outra perguntinha inócua — além do meu nome,
claro. Quase tudo que forneci, como eu já disse, foi na forma de
formulários, muitos deles com códigos de barra no canto inferior esquerdo
— esse detalhe lembro porque foram os primeiros códigos de barra que
recordo de ter visto na vida.
Enfim, a pasta do recrutador estava tão cheia de tarefas de casa
inacreditavelmente áridas e obscuras que você essencialmente tinha que ler
cada linha várias vezes pra extrair algum sentido do que aquilo estava
tentando dizer. Eu quase não acreditei. Eu já tinha tido uma amostrinha da
linguagem real da contabilidade com os manuais que a gente teve que ler
pra contabilidade empresarial e auditoria 1, que estavam as duas em curso
— quando o tempo permitia — na DePaul, mas o material do Serviço fazia
aqueles manuais parecerem brincadeira de criança. O maior pacote na pasta
era uma coisa impressa numa copiadora quase sem toner que se chamava
Exposição de regras de conduta, que na verdade vem do artigo 26, §601 do
Código de regulamentações federais. Um trecho de 1102 palavras que
lembro de ter folheado e visto logo de cara e lido, só pra dar uma ideia do
que eu ia ter que ler durante aquilo era o ¶1910, §601 201ª-(1)(g), subparte
XI:

Para decidir sobre solicitações concernentes à classificação de uma organização como sociedade
limitada em que uma empresa é o único sócio geral, ver Proc. Rec. 72-13, 1972-1 CB 735. Ver
também Proc. Rec. 74-17, 1974-1 CB 438, e Rec. Proc. 75-16, 1975-1 CB 676. O Procedimento da
Receita 74-17 anuncia certas regras operacionais do Serviço relacionadas à emissão de cartas de
decisão avançada concernentes à classificação de organizações formadas como sociedades
limitadas. O Procedimento da Receita 75-16 estabelece uma lista de pontos que destaca
informações obrigatórias frequentemente omitidas em pedidos por decisões relacionadas à
classificação de organizações para fins de tributação federal.

Essencialmente, a coisa toda era desse jeito. E eu também não sabia,


naquela época, que a gente ia ter que praticamente decorar o manual de
Regras de procedimento inteirinho, 82 617 palavras, lá no Centro de
Avaliação e Treinamento, menos pra fins de informação — já que a mesa
Tingle de cada analista do IRS ia ter as Regras de procedimento incluídas no
Manual da receita interna bem ali na última gaveta da direita, preso com
uma correntinha pra ninguém pegar ou levar emprestado, já que todo
mundo tinha que estar com o seu na mesa o tempo todo — e mais como um
tipo de ferramenta de diagnóstico pra ver quem conseguia ficar ali sentado
horas a fio se aplicando àquilo versus quem não conseguia, o que
obviamente tinha a ver com quem daria conta da coisa em vários níveis de
complexidade e aridez (o que, por sua vez, é o motivo do componente de
Análises do curso de treinamento do CAT ser conhecido no CAT como
“Concentração de Campo”). O meu melhor palpite na época, ali sentado no
quarto do meu tempo de menino na casa do meu pai em Libertyville (o
dormitório da DePaul ainda não estava aberto, porque uns canos congelados
tinham estourado — a tempestade e as suas consequências ainda estavam
paralisando boa parte da cidade), era que eles pedirem pra gente ler aquilo
era algum tipo de teste ou de barreira pra ajudar a determinar quem estava
motivado e era sério de verdade e quem estava só de bobeira tentando
arrancar umas mensalidades escolares do governo. Eu ficava o tempo todo
imaginando o camarada indigente que comeu aquele monte de doughnuts
na apresentação daquele dia deitado numa caixa de papelão de algum
eletrodoméstico num beco, lendo uma página do pacote e aí tacando fogo
pra ter luz e ler a outra. De certa maneira, acho que aquilo era
essencialmente o que eu estava fazendo também — tive que deixar de lado
quase todas as minhas tarefas das aulas do dia seguinte pra poder passar boa
parte da noite em claro lidando com o material do Serviço. Eu não me senti
irresponsável, apesar de também não me sentir especialmente romântico ou
heroico. Era mais como se eu tivesse apenas que escolher o que era mais
importante.
Eu li mais ou menos aquilo tudo. Não vou nem dizer quantas palavras in
toto. Foi quase até as cinco da manhã. Bem no fim — não exatamente no
fim, mas enfiados entre duas páginas da transcrição de um caso de 1966 da
Justiça Tributária dos EUA chamado Corporação Pecuária Uinta v. EUA
perto do fim da pasta — tinha mais uns formulários pra preencher, o que
reforçava a minha ideia de que aquilo no fundo era um teste pra ver se a
gente era sério e estava interessado naquilo a ponto de mandar brasa e
gramar com a coisa toda. Eu não posso dizer que li tudinho com cuidado,
claro. Um dos poucos pacotes que não eram zumbificantes de tão chatos era
uma resumida dos Centros de Avaliação e Treinamento do IRS e dos vários
tipos de lotações de nível básico oferecidos aos recrutas que saíam do curso
do CAT com níveis variados de educação e de pacotes de incentivos.
Existiam dois Centros de Avaliação e Treinamento do IRS, em Indianápolis e
Columbus OH, cujas fotos e regulamentos estavam no pacote, mas nada de
específico sobre o treinamento propriamente dito. Como em geral acontece
com cópias de xerox, as imagens eram basicamente umas manchonas pretas
com umas manchinhas brancas indistintas; não dava pra ver de verdade o
que tinha ali. Diferente dos tempos de hoje, o protocolo naquela época era
que se você queria uma carreira séria no Serviço, com contrato e um nível
de carreira no funcionalismo acima de GS-9, você tinha que passar por um
curso no CAT, que durava doze semanas. Você também tinha que entrar pro
sindicato dos Funcionários do Tesouro, se bem que a informação a respeito
dessa norma não estava incluída no pacote. De resto você era, em essência,
um trabalhador temporário ou ocasional, e o Serviço usa montes desses
trabalhadores, principalmente nos níveis mais baixos do Processamento e
das Análises de Declarações. Eu lembro que a representação da estrutura do
Serviço na Lista de Lotações era bem mais simples e menos abrangente que
o diagrama da apresentação do recrutador, se bem que esse aqui também
tinha um monte de asteriscos e de linhas duplas e simples ligando várias
partes da grade na página, e a legenda dessas marcas estava meio cortada
porque alguém xerocou a coisa meio enviesada. Naquela época, os seis nós
principais dos setores do Serviço consistiam de Administração,
Processamento de Declarações, Adimplência, Cobranças, Controle Interno,
Serviços de Apoio, e uma coisa chamada Setor Técnico, que era o único
setor com a própria palavra Setor ali no nome no diagrama, o que na época
achei curioso. Cada setor então se ramificava em várias divisões
subordinadas — trinta e seis divisões ao todo, se bem que no Serviço dos
dias de hoje agora são quarenta e oito divisões separadas, algumas com
funções intracoordenadas e sobrepostas que têm que ser otimizadas e
controladas pela Divisão de Mediação Divisional, que é ela própria — de
um jeito meio confuso — uma divisão tanto do Setor de Administração
quanto do de Controle Interno. Cada Divisão então compreendia também
numerosas subdivisões, algumas com umas fontes que iam ficando
extremamente pequenas e ruins de ler. A Divisão de Análises do Setor de
Adimplência, por exemplo, compreendia posições — apesar de só as
lotações marcadas com fonte itálica (que era praticamente impossível de
entender no xerox) precisarem de um contrato federal ou de um curso no
CAT — de auxiliar, mensageiro, entrada de dados, processamento de dados,
classificação, correspondência, interface com escritório distrital, interface
com escritório regional, serviços de mecanografia, aquisições, interface
com auditoria e pesquisa, secretaria, RH, interface com o centro de serviços,
interface com o centro de computação, e assim por diante, assim como
lotações formais de “analista moleza” agrupadas (naquela época, apesar de
aqui no CRA Meio-Oeste agora as caracterizações de grupo serem bem
diferentinhas) segundo os tipos de declaração em que elas se
especializavam, codificadas no diagrama como 1040, 1040A, 1041 e
“Gordas”, o que se refere a uma 1040 complicada com mais de quatro
formulários ou anexos. Além disso, as declarações de pessoas jurídicas
1120 e 1120S são verificadas por analistas especiais conhecidos na Análise
como “imersivos”, o que não constava da página de recrutamento, já que as
análises imersivas são conduzidas por uma elite especial de analistas
treinadíssimos que têm a sua própria seção especial nas instalações do CRA.
Enfim, como eu ainda lembro, a ideia óbvia era que qualquer pessoa que
estivesse realmente a sério ali ia fazer o que pudesse pra tentar ler o
conteúdo todo da pasta, ia ver e preencher as partes relevantes dos
formulários lá no fim, e aí ia se esforçar pra dar um jeito de voltar lá, se o
tempo permitisse, pra estação de recrutamento na West Taylor no dia
seguinte às nove da manhã pra uma coisa que a folha final chamava de
“processamento avançado”. Também nevou naquela noite de novo, apesar
de não ter sido tão pesado, e às quatro da manhã dava pra ouvir o som
terrível dos removedores da prefeitura de Libertyville raspando o concreto
todinho das ruas na frente da janela do quarto do meu tempo de menino —
além disso, os barulhos dos pássaros quando o sol nasceu foram incríveis,
fazendo as luzes de algumas casas da nossa rua acenderem irritadas — e a
CTA ainda estava rodando com uns horários esquisitos. Ainda assim, mesmo
com a montoeira de gente naquela hora do dia e com as dificuldades da
caminhada saindo do Grant Park, cheguei de novo na estação de
recrutamento ali na fachada do prédio quando não eram mais que 9h20 da
manhã (apesar de estar coberto de neve de novo), pra ver que não estava
mais ninguém ali do dia anterior a não ser o mesmo recrutador do Serviço
com uma cara tão mais exausta e descomposta que, quando entrei e disse
que estava pronto pro processamento avançado e entreguei os formulários
da lição de casa que eu tinha encarado, ele olhou de mim pros formulários e
pra mim de novo, com o mesmíssimo tipo de sorriso de alguém que, na
manhã de Natal, acabou de desembrulhar um presente caro que já tinha.
§ 23

Sonho: eu via fileiras de rostos em perspectiva sobre os quais brincavam


vagas emoções, como a luz de uma chama distante. A plácida desesperança
da vida adulta. O complexo remorso. Um ou dois, os mais vivos, pareciam
mais bonitos de um modo sem sentido. Muitos outros pareciam vazios
como as caras nas moedas. Pelos cantos havia funcionários de escritório
correndo com as infindáveis mínimas tarefas envolvidas nos atos de postar,
arquivar, classificar, de rosto vaziamente ávido, pleno da energia desatenta
que você enxerga nos insetos, no mato, nas aves. O sonho parecia durar
horas, mas quando eu recobrava consciência os braços do Super-Homem (o
relógio foi um presente) estavam na mesma posição da última vez em que
eu tinha olhado.
O sonho era a minha psique me ensinando o que era tédio. Acho que eu
vivia entediado quando era criança, mas o tédio não era o que eu sabia que
era — o que eu sabia era que eu vivia preocupado. Eu era um menino aflito,
nervoso, ansioso, preocupado. Eram essas as palavras dos meus pais, e elas
se tornaram as minhas. Distendidas tardes úmidas de domingo, com a
minha mãe e o meu irmão em algum recital e o meu pai dormindo no sofá
diante de um jogo dos Bengals, com o libreto de Norma aberto no peito, eu
sentia o tipo de tédio alado, sem telhados, que transcende o tédio e vira
preocupação. Não lembro com o que me preocupava, mas lembro da
sensação, e era uma ansiedade cuja falta de um objeto determinado era o
que a tornava horrenda, flutuante. Olhava pela janela e via o vidro em vez
do que havia além dele. Ficava pensando nos tipos de joguinhos,
brinquedos e projetos para desenvolvimento infantil que a minha mãe
sempre sugeria e de dentro do tédio não só não os achava atraentes como
ainda me via incapaz de imaginar de que maneira alguém em algum lugar
poderia ter a estúpida energia de se entregar a algum tipo de diversão
infantil ou de ficar sentado o tempo que leva para ler um livro com figuras
— o mundo todo era torpe, enervado, mergulhado em preocupação. As
palavras e sensações dos meus pais viravam as minhas, à medida que eu
assumia as responsabilidades decorrentes do meu papel no drama da
família, o delicado filho nervoso, objeto das atenções da minha mãe, como
o meu irmão era o filho motivado e inteligente, cujo piano enchia a casa
quando chegávamos da escola e mantinha o crepúsculo do outro lado da
janela, que era o seu lugar. Na psicoterapia depois do incidente com o meu
filho, uma livre associação acabou me fazendo lembrar de uma
apresentação do tipo Grandes Obras a respeito de Aquiles e Heitor no fim
do ensino médio, e lembrei de ter visualizado nitidamente que a minha
família era Aquiles, meu irmão era o escudo de Aquiles e eu o calcanhar da
família, a parte da família que a minha mãe ficou segurando e tornou não
divina, e que a percepção veio no meio da minha fala e me abandou de
novo tão rápido que não tive tempo de agarrar, apesar de ter passado boa
parte da adolescência e dos meus primeiros anos de adulto me concebendo
como um calcanhar ou um pé — minhas repreensões internas por exemplo
muitas vezes constituíam de eu me chamar de “calcanhar”, e era verdade
que os pés, sapatos, meias e tornozelos das pessoas costumavam ser as
primeiras coisas que eu reparava nelas. Exatamente como o meu pai era o
guerreiro maltratado mas obstinado — massacrado dia a dia numa
campanha cuja falta de sentido era parte de sua força corrosiva. O papel da
minha mãe no corpus achillianus continua obscuro. Também não sei se na
infância o meu irmão tinha consciência do fato de que o momento em que
ele estudava à tarde sempre coincidia com a hora em que o meu pai voltava
para casa; em certo sentido acho que toda a carreira de pianista do meu
irmão se desenrolou em torno dessa necessidade de que houvesse luz e
música às 5h42 para a reentrada do meu pai, que de alguma maneira a vida
dele dependia disso — todo dia ele criava a transição oposta à do sol, da
morte à vida.
Não é surpreendente que eu tenha tido dificuldades na escola, com suas
fileiras de rostos vazios, lâmpadas, cúpulas e tela aramada nas janelas e
uma regulamentação da educação primária que ainda se mantinha no Meio-
Oeste — memorização e regurgitação, tabuada, gramática prescritiva e
diagramas de sentenças, tendo apenas por enfeite o alfabeto de cartolina
num guilhochê de cortiça que ficava em cima da lousa. Cada sala de aula
continha trinta mesinhas para os alunos em cinco fileiras de seis; cada uma
tinha piso de lajotas brancas com formas insubstanciais e nebulosas de um
castanho e cinza, que eram descontínuas porque quem quer que tenha
aplicado as lajotas não se deu ao trabalho de casar os padrões. Cada sala
tinha seu relógio na parede, fabricado pela Benrus, sem ponteiro dos
segundos e com um ponteiro dos minutos que se movimentava com
discretos estalos em vez de com silentes estalos contínuos; o sistema de
relógios se conectava à campainha da escola, que tocava 55 minutos depois
de cada hora, de novo na hora exata, e de maneira algo mais lúgubre aos
dois minutos, registrando atrasos e interrompendo os comentários iniciais
de cada instrutor. A escola cheirava a cola branca, botas de borracha,
comida azeda da cantina e a um morno odor biótico de muitos corpos e do
fixador das lajotas do piso enquanto trezentos mamíferos lentamente
aqueciam as salas durante o dia. Quase todo o corpo docente era composto
de mulheres assexuadas, velhas (ou seja, mais velhas que a minha mãe) e
severas ainda que não desprovidas de bondade, com uma pequena dose de
homens mais jovens — um, que dava aula de matemática para a quarta
série, de fato se chamava sr. Buonanima — levados à pedagogia pelo vago
idealismo político que mal começava a surgir (sem que eu soubesse) em
universidades bem distantes do meu mundo. Os rapazes eram os piores,
deploravelmente autoritários, deprimidos e amargos, porque o idealismo
que os tinha levado até nós não dava conta da burocracia petrificada do
Sistema Escolar de Columbus nem da passividade inerte de crianças às
quais eles sonhavam inspirar (entenda-se: doutrinar) um leve liberalismo
(paz era uma palavra importante para esses sujeitos) que serviria de réplica
e elogio a seu próprio liberalismo, crianças que em vez disso estavam
trancafiadas em si mesmas e num tédio institucional a que não conseguiam
dar nome, mas para o qual já tinham perdido o coração.
§ 24

Autor aqui.1 Eu cheguei para processamento e recepção no Posto 047 do


IRS de Lake James Illinois2 em algum momento de meados de maio de

1985. Foi muito provavelmente na quarta-feira, ou em torno da quarta-feira


15 de maio.3 De um jeito ou de outro, o negócio é que eu me transferi pra
Peoria em seja qual tenha sido o dia particular de maio vindo da casa da
minha família em Philo, pra onde meu breve retorno tinha sido digamos
nada triunfante, e onde certos membros da minha família passaram
basicamente todo o breve tempo que eu fiquei em casa olhando pro relógio.
Sem mencionar ou identificar ninguém em especial, digamos apenas que a
atitude geral na minha família tendia a ser “O que você fez por mim
recentemente?” ou, talvez melhor, “O que você conseguiu/ganhou/obteve
recentemente que pode de alguma maneira (imaginária ou não) reverter em
alguma coisa boa pra gente e deixar a gente se refestelando com algum tipo
de realização (real ou não) revertida?”. Era mais ou menos como uma
empresa com fins lucrativos, a minha família, na medida em que você
basicamente era avaliado pelas vendas que conseguiu fazer no último
trimestre. Se bem que, sabe como, enfim. Pode apostar que não me
ofereceram nenhuma caroninha familiar até Peoria, apesar de eu poder ter
ganhado uma ida até a rodoviária, que em Philo ocupava uma esquina do
estacionamento do supermercado IGA local, que não ficava assim tão longe,
mas teria sido uma caminhada horrenda com o meu terno de três peças de
veludo cotelê na umidade grudenta da pré-aurora (que, no sul do Meio-
Oeste, também é um dos dois horários nobres do dia pra atividade
mosquítica, sendo que o outro é o pôr do sol, e os mosquitos não são só um
incômodo mas uma coisa séria pacas) e carregando duas malas pesadas
(isso foi alguns anos antes do súbito impulso que alguém deu no ramo de
bagagens ao perceber que as malas podiam receber rodinhas e alças
telescópicas pra poderem ser puxadas, que foi exatamente o tipo de abrupto
avanço engenhoso que torna o capitalismo empreendedor um sistema tão
empolgante — ele incentiva as pessoas a deixar as coisas mais eficientes).
Fora que eu ainda estava com a minha adorada pasta de mensageiro, que
tinha sido herdada de um parente não próximo mais velho que tinha
cumprido serviço de escritório no Havaí nos últimos anos da Segunda
Guerra Mundial e que parecia um pouco uma valise (ou seja, a bolsa
parecia) a não ser por não ter alça e ser portanto carregada debaixo do braço
e que continha o tipo de bens íntimos ou insubstituíveis, coisas de banheiro,
estojo customizado pro tampão de ouvido, emplastros e unguentos
dermatológicos, e papéis importantes que qualquer pessoa em sã
consciência leva consigo em vez de entregar aos desmandos do transporte
de bagagens. Esses papéis incluíam minha correspondência recente tanto
com o pessoal dos Empréstimos Estudantis Garantidos quanto com o
Escritório do Comissário Regional Adjunto de Recursos Humanos da
Região Meio-Oeste do IRS, além da minha cópia do contrato assinado do IRS
e do formulário OL-141 que constituía a minha suposta “Ordem de Lotação”
para o CRA Meio-Oeste, ambos (ou seja, ambos documentos) evidentemente
necessários pra eu poder adquirir meu crachá de Identificação Profissional,
que tinham dito pra eu pegar assim que chegasse à “Estação de
Processamento GS-9” num determinado horário que estava preenchido à
mão numa linha borrada, carimbada de qualquer jeito, perto do pé da
Ordem de Lotação.4
(Um aparte rapidinho aqui. Malgrado sua autoindulgência generalizada e
sua quedinha por ficar retorcendo as mãos, o “Irrelevante” Chris Fogle do
§22 na verdade acertou uma coisa bem na mosca. Se você levar em
consideração como a mente humana funciona, são os detalhes pequenos e
sensualmente específicos que tendem a ser lembrados com o passar do
tempo — e, ao contrário de certos ditos memoristas, eu me nego a fingir
que a mente funciona de um jeito diferente do que ela faz. Ao mesmo
tempo, pode ficar tranquilo que não sou o Chris Fogle e não tenho intenção
de cuspir em cima de você cada sensação e cada ideia passageira que por
acaso eu recorde. Meu negócio aqui é arte, e não a simples reprodução. O
que colegas logorreicos como o Fogle não conseguem entender é que há
tipos de verdade imensamente diferentes, sendo que alguns são
incompatíveis com outros. Exemplo: uma lista detalhada e 100% precisa do
tamanho e do formato exatos de cada folha de grama no meu jardim é
“verdadeira”, mas não se trata de uma verdade que vá gerar interesse em
alguém. O que torna uma verdade significativa, válida &c. é sua relevância,
o que por sua vez requer um discernimento e uma sensibilidade
extraordinária pra contextos, questões de valor e pro sentido geral da coisa
toda — senão dava na mesma se a gente fosse um monte de computadores
baixando dados brutos de um pro outro.)
Havia também, num dos milhares de engenhosos bolsinhos internos e
externos da pasta de mensageiro, certa documentação corroboratória na
forma de correspondência intrafamiliar pessoal provinda de certo parente
inominado e não próximo que gozava do que se poderia chamar de
significativa “influência” no Escritório do Comissário Regional Meio-Oeste
do IRS em Joliet, no norte,5 que tecnicamente não era nem pra eu ter (e que
estava meio amarfanhada depois de ter sido retirada do cesto de lixo de um
parente inominado e mais próximo), mas que parecia prudente manter em
mãos pro caso de alguma emergência burocrática ou necessidade de último
caso.6 Em geral, a minha atitude com as burocracias era a mesma da
maioria dos americanos comuns: eu tinha ódio e medo delas (ou seja, das
burocracias) e basicamente as via como máquinas imensas, massacrantes e
impessoais — isto é, elas pareciam rigidamente literais e presas à
obediência de regras do mesmo jeito que as máquinas são e quase tão
estúpidas quanto elas.7 Datando pelo menos de um imbróglio em 1979 com
o Departamento de Trânsito estadual e com a nossa seguradora a respeito
dos termos e da cobertura da minha Carteira de Aprendiz depois de um
incidente tão risivelmente inconsiderável que mal podia ser chamado de
colisão, a minha associação primária com a palavra burocracia era a de uma
imagem de alguém sem expressão facial atrás de um balcão, sem ouvir
nenhuma das minhas perguntas ou explicações de circunstâncias, ou então
entendendo errado e meramente recorrendo a algum manual de
regulamentações impessoais enquanto carimbava meu formulário com um
número que significava que eu seria encaminhado a alguma outra espécie
de despesa ou de encheção frustrante e tediosa. Duvido que você precise de
muito convencimento pra entender por que a minha experiência recente
com a Diretoria Jurídica e o escritório do Gestor Acadêmico da
universidade (cf. §9 supra) não tinham exatamente mitigado essa opinião.
Por mais que fosse meio vergonhoso, achei que qualquer tipo de prova da
existência de alguma conexãozinha influente pudesse ser útil pra me
arrancar de alguma longa fila cinzenta de suplicantes sem rosto caso
houvesse problemas ou confusões8 no Centro Regional de Análise, que eu
tinha concebido antecipadamente como alguma espécie de versão
ultraburocrática do castelo de Kafka, um imenso Departamento de Trânsito
ou Diretoria Jurídica.
A título de antecipação e explicação adiantada, vou também admitir aqui
já de cara que há coisas daquele dia de chegada e recepção que eu não
recordo lá muito bem, devido pelo menos em parte ao tsunâmi de dados
sensórios e técnicos e de complicações burocráticas que me aguardava
quando cheguei e fui pessoalmente levado pela mão e guiado — com um
grau de solicitude que, conquanto inesperado e desorientador, teria sido
satisfatório pra praticamente qualquer um — até o escritório de Recursos
Humanos do CRA, pulando a Estação de Lotação GS-9 (localizada sabe Deus
onde) que as Ordens de Lotação borradas e cheias de erros tipográficos
dentro da minha pasta de mensageiro tinham me instruído a encontrar e
diante da qual eu deveria fazer fila. Como quase sempre acontece com
mentes humanas inundadas por um excesso de dados, guardei apenas
imagens isoladas e recortes incompletos daquele dia, e agora vou pegar e
escolher uns pedaços especialmente selecionados dos mesmos não apenas
como uma maneira de apresentar as condições atmosféricas do CRA e do
Serviço, mas também de ajudar a explicar o que pode inicialmente parecer
passividade minha (era mais uma pura e simples confusão9) diante do que
pode parecer, com a nitidez das coisas vistas quando se faz um retrospecto,
um caso óbvio de lotação equivocada ou de identidade trocada. Só que na
hora não foi óbvio; e esperar que alguém percebesse tudo imediatamente,
entendesse tudo aquilo como um erro e tomasse providências imediatas pra
corrigir a coisa toda é meio como esperar que alguém perceba e corrija
alguma incongruência à sua volta no mesmíssimo instante em que cem
flashes de repente disparam na sua cara. Há um limite pra quantidade de
dados complexos que o sistema nervoso humano dá conta de processar, em
outras palavras.
Mas eu lembro de estar ali parado num canto do estacionamento do
supermercado IGA de terno com as malas e a minha pasta quando a aurora
oficialmente surgiu. Pra quem nunca viveu um nascer do sol no Meio-Oeste
rural, o negócio é basicamente tão delicado e romântico quanto uma pessoa
de repente acendendo a luz num quarto escuro. Isso porque a paisagem é
tão plana que não há o que possa obstruir ou gradualizar o aparecimento do
sol. Ele simplesmente surge ali de repente. A temperatura sobe na hora
cinco graus; os mosquitos se escafedem pra sabe lá onde é que os mosquitos
se reúnem pra planejar uma nova invasão. Logo a oeste, a linha do telhado
da igreja de Santa Dimpna polvilhava complexas sombras sobre meia
cidade. Eu estava bebendo uma latinha de refri, Nesbitt’s, que é meio que a
minha versão do café matinal. O terreno do IGA dá pra via principal do
centro da cidade, que é a extensão intraurbana da SR 130 e que tem um
nome inventivo. Já do outro lado dessa Rua Principal ficam as bombas
bolhiformes e o sáurio logotipo do posto Sinclair do Clete, à frente do qual
a nata dos estudantes da Philo High se reunia nas noites de sexta-feira pra
beber cerveja Pabst Blue Ribbon e fuçar no mato do terreno adjacente em
busca de sapos e ratos pra jogar no eletrocutador de insetos do Clete, que
ele tinha modificado pra uma carga de 225 volts.
Essa, até onde sei, foi a única vez que eu andei num ônibus de uma linha
comercial, e não foi uma experiência que fiquei com muita vontade de
repetir. O ônibus era sujinho, e parecia que alguns passageiros estavam a
bordo fazia uns bons dias seguidos, com tudo que isso acarreta em termos
de higienes e inibições. Lembro que o encosto das poltronas parecia
anormalmente alto e que tinha lá um tipo de barra de uma liga de alumínio
pros pés e um botão no braço da poltrona pra fazer o encosto reclinar, que
no caso da minha poltrona não funcionava direito. O cinzeirinho de tampa
de mola no braço era um pesadelo de bolotas de chiclete e bitucas em tal
abundância que a tampinha não chegava a fechar direito. Lembro de ter
visto duas ou mais freiras de hábito completo mais lá na frente e de pensar
que exigir que as freiras andassem naqueles ônibus comerciais imundos
devia ter a ver com o voto de pobreza daquela seita; mesmo assim parecia
inadequado e errado. Uma das freiras estava fazendo palavras cruzadas. A
viagem levou mais de quatro horas in toto, já que o ônibus parou numa série
infindável de cidadezinhas rançosas bem iguais à minha. O sol logo
começou a tostar a traseira e o flanco de bombordo do ônibus. O ar-
condicionado parecia mais um aceno vago na direção da ideia abstrata de
um ar-condicionado. Tinha uma pichação horrenda feita de incisões à faca
ou à sovela no plástico da parte de trás da poltrona da minha frente, que eu
olhei duas vezes e aí fiz muita questão de nunca mais olhar de frente. O
ônibus tinha um banheiro bem lá no fundão que ninguém chegou a tentar
usar, e lembro de decidir conscientemente confiar que os passageiros
tinham bons motivos pra isso em vez de ir lá me arriscar e descobrir eu
mesmo o motivo. O empirismo tem limites. Há também, na memória, uma
imagem descontextualizada dos pés de uma mulher com sandália de dedo
de poliuretano transparente, com uma tatuagem ou de hera ou de arame
farpado em volta de um tornozelo. E de um menininho de cara redonda10 e
shorts na poltrona do outro lado do corredor, com borrifos rubros de
impetigo nos joelhos, e com uma suposta responsável por ele pregada no
sono na poltrona geminada à do menino (o encosto dela, esse sim,
reclinava), ele me olhando enquanto eu comia a caixinha de passas que
estava no saquinho que eu mesmo embalei pro meu almoço na cozinha
escura, o menino mexendo a cabeça inteira pra seguir o caminho de cada
passa que eu levava à boca, e eu perifericamente tentando decidir se
oferecia ou não algumas passas pra ele (acabou que não: eu estava lendo e
não queria conversar, isso sem nem falar que só Deus sabe qual seria a
história ou a situação daquela criança; fora que impetigo todo mundo sabe
que é contagioso).
Vou poupar a nós todos de um excesso de recordações sensórias da
rodoviária central de Peoria — que era pavorosa naquele estilo todo
especial das rodoviárias de cidadezinhas tristonhas de todo lugar — ou da
minha espera de mais de duas horas ali, a não ser pra registrar que o ar não
tinha nada de condicionado nem de circulação, que o local estava
extremamente lotado e que havia um certo número de homens solitários e
grupos de dois ou três, quase todos de casaco e chapéus, ou segurando o
chapéu na mão ou se abanando devagar com ele, ali sentados (nenhum
aparentemente pensou em tirar o casaco nem em afrouxar a gravata); e
lembro de perceber já ali que era estranho ver homens no auge da vida
adulta usando o tipo de chapéu formal que normalmente você só via em
homens bem mais velhos de certo tipo de origem e de certa posição social.
Alguns chapéus eram excêntricos ou incomuns.
Eu sei que vi, durante a minha inspeção da área de orelhões e máquinas
de venda de comida ao lado da entrada dos sanitários, o que pode muito
bem ter sido uma prostituta de verdade.
Bem me lembro do burburinho desses mesmos sujeitos enchapelados na
umidade e no vapor de diesel logo na frente da rodoviária; e me lembro
bem dos dois sedãs de transporte do IRS, de um tom castanho feijão cozido,
finalmente chegando e encostando na entrada da rodoviária, e do fato de
que no fim havia muito mais funcionários recém-chegados ou recém-
transferidos do IRS,11 todos com fartura de bagagem, do que poderia caber
nos sedãs, sendo a ordem de partida determinada não de acordo com os
horários compulsórios de apresentação carimbados nos respectivos
Formulários 141-OL de cada um (como teria parecido justo e racional), mas
por hierarquia GS, conforme estabelecida pelas Identidades Funcionais —
que eu não tinha, sendo que o meu argumento de que era precisamente pra
poder obter uma Identidade Funcional que eu tinha recebido ordens bem
específicas de estar na Estação de Processamento GS-9 às 13h40 não causou
o menor impacto, talvez pelo fato de que vários outros funcionários, algo
mais instantes, também estavam no mesmíssimo momento exclamando
coisas pro motorista enquanto mostravam suas identidades do IRS ainda
válidas; e, pouco mais tarde, vários de nós ficaram ali parados vendo os
sedãs hiperlotados se afastarem da portaria rumo ao trânsito do centro da
cidade, e muitos dos outros funcionários novos apenas deram de ombros e
voltaram passivamente pra rodoviária, sendo a minha sensação pessoal a de
que aquilo tudo não apenas era injusto e desorganizado mas servia como um
amargo exemplo do que seria a vida na burocracia.
Aqui, aliás, como breve interpolação, vai uma contextualização
preliminar que optei por não introduzir dissimuladamente nem apresentar
através do tipo deselegante de saída dramática12 a que tantas memórias
acabam recorrendo, a saber:
O Centro Regional de Análise Meio-Oeste do IRS é uma estrutura física
no formato aproximado da letra L, localizada na Self-Storage Parkway no
distrito Lake James de Peoria, IL. O que faz com que o formato em L das
instalações seja somente aproximado é que os dois edifícios perpendiculares
do CRA ficam bem aproximados, mas não contíguos; são no entanto
conectados no segundo e no terceiro pisos por gios elevados que ficam
encapsulados em carbonato de fibra de vidro de cor verde-oliva que lhes
serve de escudo contra as inclementes intempéries, já que importantes
documentos e cartões de armazenamento de dados são com frequência
transportados por ali. Nem aquecimento nem um sistema de ar
condicionado puderam ser implementados de maneira funcional nesses
túneis elevados, e nos meses de verão os funcionários do Posto se referem a
eles como bataans, em aparente referência à Marcha da Morte de Bataan, no
fronte Pacífico da Segunda Guerra Mundial.
O maior dos dois edifícios ali, construído em 1962, abriga basicamente
os escritórios do setor administrativo do Posto 047, suas unidades de
processamento de dados, armazenamento de documentos e seus serviços de
apoio. O outro, que é onde realmente ocorre a maioria das análises efetivas
das declarações federais de imposto de renda, não pertence ao IRS, tendo
sido na verdade vendido e depois alugado com o novo proprietário, uma
sociedade gestora de participações sociais de natureza limitada, fundada
pelos membros do quadro de sócios proprietários de uma certa Espelharia
(sic) Meio-Oeste, uma manufatura de vidros e amálgama de prata que foi
afogada pelas salvaguardas do UCC (cf. Cap. 7) lá na metade dos anos 70.
Alçada à categoria de município em 1845 e talvez mais conhecida como
cidade natal do arame farpado, em 1873, Peoria tem papel central na
estrutura regional Meio-Oeste do IRS. Situada a meio caminho entre East St.
Louis, Centro Regional de Serviços do IRS, e Joliet, Escritório do
Comissário Regional de Illinois, e servindo aos nove estados e catorze
distritos da região, a equipe de mais de três mil funcionários do CRA Meio-
Oeste analisa a álgebra e a veracidade de cerca de 4,5 milhões de
declarações de renda por ano.13 Embora a estrutura nacional do Serviço
abranja sete regiões, in toto, existem (após a espetacular debacle
administrativa do CRA Rome, Nova York, em 1982)14 somente seis Centros
Regionais de Análise ainda em funcionamento, sendo suas localizações
Filadélfia, PA, Peoria, IL, Rotting Flesh, LA, St. George, UT, La Junta, CA, e
Federal Way, WA, para as quais as declarações de renda são encaminhadas
seja pelo Centro de Serviço da região em questão, seja pelo centro de
computação eletrônica do IRS em Martinsburg, WV.
Entre as mais notáveis empresas e indústrias sediadas na região
metropolitana de Peoria no ano-base de 1985 incluem-se a Rayburn-Thrapp
Agronomics; a American Twine, segunda maior fabricante de barbantes,
arames e cordas de diâmetro baixo do país; a Consolidated Self Storage,
uma das primeiras empresas do centro do país a utilizar o modelo de
financiamento através de franquias; o Farm & Home Insurance Group; o
que restou, agora sob administração japonesa, da Nortex Heavy Equipment;
e o QG nacional da Fornix Industries, fornecedora privada de equipamentos
para cartões e relógios de ponto, que tinha como um de seus maiores
clientes ainda ativos na época o Tesouro americano. Entre os empregadores
de Peoria, no entanto, o Internal Revenue Service estava listado na primeira
posição desde que a American Twine perdeu seus direitos exclusivos de
exploração da patente do arame farpado Tipo 3 em 1971.
Fim da interpolação; retorno ao mnemotempo.
Depois de sabe lá quantas tentativas, novamente na fétida rodoviária, de
encontrar um telefone público que estivesse funcionando e de conseguir
convencer alguém no “número de assistência ao funcionário” do Formulário
141-OL (que se revelou errado, ou não ativo), acabou sendo no quarto ou no
quinto veículo oficial a aparecer na rodoviária que eu enfim consegui ser
transportado até o CRA, então já lamentavelmente atrasado para meu horário
preestabelecido de processamento, atraso que já podia imaginar sendo
motivo de repreensão por parte de alguma pessoa desprovida de expressão
facial e cujas opiniões fossem também o esteio/tribunal moral do sistema de
Processamento.
O próximo fato saliente daquele dia é que o trânsito ao logo da Self-
Storage Parkway, que involucrava a cidade, estava absolutamente
horroroso. O trecho da SSP que passava pela zona leste de Peoria era cheio
de restaurantes franqueados e de coisas como Kmarts e de concessionárias
com vistosos balões cativos de desfile de gala, além de pisquejantes placas
de neon. Havia todo um caminho de acesso de quatro pistas dedicado a algo
chamado Carousel Mall, coisa que dava arrepios só de se imaginar.15 Atrás
de todo esse mundo comercial (i.e.: atrás pra quem olhava da zona leste,
seguindo rumo sul pela perimetral da cidade, com o lento e pedregoso rio
Illinois entrando e saindo do enquadramento da janela esquerda do
Gremlin) ficava o horizonte urbano e decadente do centro de Peoria, um
gráfico de colunas, formado por tijolos sujos de fuligem e prédios com
janelas quebradas, e por uma sensação de poluição pesada apesar de fumaça
nenhuma sair de todas aquelas chaminés. (Isso foi muitos anos antes das
tentativas de gentrificação do centro velho da cidade.)
O veículo oficial em questão era um AMC Gremlin duas portas, laranja ou
amarelo, que contudo estava equipado com uma antena telescópica de alta
capacidade e um decalque com o brasão do Serviço na porta do motorista.
Avisos internos proibiam cigarros e/ou comida. O interior de plástico rígido
do veículo estava limpo, mas era também extremamente quente e abafado.
Eu sentia o suor começando a se formar, o que é claro que não é uma
sensação agradável dentro de um terno de três peças de veludo cotelê.
Ninguém falou comigo nem reconheceu minha existência — embora eu
tivesse, como já posso ou não ter mencionado, um problema dermatológico
grave durante todo esse período e estivesse mais ou menos acostumado a
não receber olhares nem reconhecimentos depois de um pequeno susto
involuntário inicial e de uma expressão de repulsa ou de simpatia (a
depender…), o que significa dizer que eu não levava mais essas coisas pro
lado pessoal. Não vieram sugestões para regular o ar-condicionado nem
mesmo as perguntas padronizadamente educadas pra saber se alguma coisa
do ventinho mirrado do ar-condicionado estava chegando até nós ali no
banco de trás lotado, onde entre mim e um GS-11 mais velho cujo chapéu
estilo homburg estava atochado quase até a altura dos olhos pela pressão da
capota do carro sobre a coroa havia um rapaz mais jovem de queixo
comprido que envergava um blazer cinza de poliéster, e gravata, talvez de
idade próxima da minha, com os pés no calombo central do piso e os
joelhos portanto quase contra o peito, que já suava prodigamente e que
ficava sub-repticiamente enxugando rias de suor na testa e depois secando
os dedinhos na camisa com um gesto que estranhamente parecia o de
alguém que estava fingindo se coçar sob o blazer em vez de estar secando
os dedos úmidos. Ele fazia isso repetidamente ali na minha visão periférica.
A coisa toda era bem estranha. Seu sorriso era um ricto ansioso e todo falso,
seu perfil uma massa emaranhada de gotículas que corriam, chegando
algumas até a cair no seu blazer, pontilhando as lapelas. Ele emanava uma
aura palpável de tensão ou de medo, ou talvez de claustrofobia — havia no
ar uma inexplicável sensação de que eu o magoaria terrivelmente se falasse
com ele ou perguntasse se ele estava legal. Outro funcionário mais velho do
IRS estava sentado na frente com o motorista, ambos sem chapéu (o
motorista com um corte de cabelo coupe de zéro, algo monástico) e
encarando reto em frente, ambos calados e imóveis, mesmo quando o
veículo parava por causa do trânsito. Vista lateralmente, a pele da parte
inferior do queixo e da parte superior da garganta do funcionário mais velho
tinha o tom escrotal ou lagártico da meia-idade avançada de certos homens
(não muito diferente da do então atual presidente dos Estados Unidos, cujo
rosto, na televisão, muitas vezes parecia à beira de escoar garganta adentro,
o que lembro que deixava seu topete negro como as asas da graúna e os
arlequínicos ovais de rouge nas suas bochechas ainda mais absurdos). Nós
nos alternávamos entre ficar parados no trânsito e andar numa velocidade
basicamente igual à de um cortejo fúnebre. O sol batia palpavelmente na
capota metálica do Gremlin; o totem digital de hora & temperatura de um
banco franqueado, que ficamos vendo em ponto morto por vários minutos,
ficava exibindo primeiro a hora, e aí VOCÊ NEM QUEIRA SABER, supostamente
no lugar da temperatura, o que me parecia uma ominosa prévia do humor e
da cultura dos nativos de Peoria. Você pode imaginar por conta própria a
qualidade do ar e o conjunto geral dos cheiros ali dentro.
Eu jamais tinha ficado tanto tempo num veículo lotado sem o rádio
ligado e sem que alguém abrisse a boca no carro, nem uma vezinha, nunca,
totalmente isolado em termos psicológicos, ao mesmo tempo que me via tão
grudado nas outras pessoas que o tempo todo estávamos respirando o ar que
os outros expiravam.16 De vez em quando o motorista do IRS massageava a
nuca, que estava obviamente travada por causa da estranha posição em que
ele era forçado a manter a cabeça pra conseguir enxergar por entre os avisos
que se projetavam do painel do carro. Principal evento da primeira parte do
trajeto: um período de coceira furiosa no flanco esquerdo do meu tronco
deu origem a temores (compreensíveis, mas afortunadamente infundados)
de que o impetigo do menino anterior no ônibus fosse de alguma maneira
pneumático ou contagioso sem contato direto, temores que tive que conter
porque obviamente não havia maneira de conseguir tirar a camisa de dentro
da calça e analisar a aparência da região. Enquanto isso, o camarada mais
velho do Serviço, o do chapéu antiquado, tinha aberto uma pasta sanfonada
e colocado duas ou três pastas de papel pardo no colo, e verificava diversos
formulários e cópias de documentos, que passava de uma pasta pra outra de
acordo com algum sistema ou esquema que eu não tinha como
compreender, já que observava tudo aquilo pela minha visão periférica
esquerda por sobre a constante cascata de gotículas de suor que se projetava
da ponta do nariz do sujeito montado no calombo, que agora suava de uma
maneira que eu só tinha visto em quadras de squash na universidade e no
caso de um pequeno infarto sofrido por um parente de mais idade,
inominado, no Dia de Ação de Graças de 1978. Passei quase o tempo todo
batucando impaciente com os dedos sobre a pasta de mensageiro — que
estava especialmente mole e molhada devido ao calor no interior do
Gremlin e que fazia uma série de barulhinhos chafurdantes bem agradáveis
quando eu batucava —, o que, embora batucar distraidamente em alguma
coisa num espaço de resto silente seja uma das formas mais rápidas de
deixar malucos os que estejam à sua volta e fazer com que falem com você,
nem que seja só pra te mandar parar com aquilo, ninguém ali no Gremlin
comentou nem pareceu perceber.
A Self-Storage Parkway mais ou menos circunda Peoria e compõe a
fronteira entre a cidade propriamente dita e seus subúrbios mais afastados.
Ela é o que hoje, em 2005, seria apenas uma típica estrada multipistas de
meio interurbano, com toda a combinação paradoxal de um limite de
velocidade elevado e semáforos a cada trezentos metros, semáforos estes
obviamente dispostos de maneira a propiciar o acesso de consumidores e
viajantes a todo o comércio varejista que se acotovelava pela extensão da
SSP pelo menos durante o trecho leste que tentávamos atravessar. Ali na
metade dos anos 80, a Self-Storage Parkway passava por cima de
entroncamentos interestaduais e atravessava a cor de tabaco do rio Illinois
em dois pontos via pontes de ferro dos tempos do New Deal cujos rebites
sangravam uma ferrugem amarelada e inspiravam, digamos assim, uma
confiança não exatamente plena.
Mais ainda: quanto mais nos aproximávamos da zona sul de Peoria e da
estrada especial de acesso ao Centro de Análise, pior se tornava o trânsito.
O motivo pra isso ficou claro desde aquele primeiro dia: era a estupidez
institucionalizada em todas as suas múltiplas formas e denominações.
Parágrafo primeiro. O pessoal da estrada estava construindo uma terceira
pista naquele trecho da Self-Storage Parkway, mas as obras estavam
reduzindo as atuais duas pistas a apenas uma; a pista da direita estava
fechada por cones laranja mesmo nos trechos em que não havia obras no
momento e em que a pista parecia livre e navegável. E, claro, um trânsito de
pista única sempre segue exatamente na velocidade do veículo mais lento
da fila. Parágrafo segundo. Havia, conforme mencionado, semáforos a cada
duzentos ou trezentos metros, e mesmo assim o engarrafamento da pista
única rumo sul era substancialmente maior que a distância entre quaisquer
desses dois semáforos, de modo que nosso progresso passava a depender
não apenas da cor do próximo semáforo à frente mas também das cores de
dois ou três semáforos depois daquele. Era o avesso de um cruzamento
travado. Parecia exatamente uma ideia muito ruim de planejamento urbano
ou de gerenciamento de tráfego ou de qual fosse a disciplina envolvida ali,
e eu já podia sentir o veludo cotelê do meu terno ir ficando empapado em
toda a região de contato com o assento de plástico texturizado do Gremlin,
assim como na bacia e na parte superior da coxa do lado que estava
espremido contra o hidrante humano junto de mim, que a essa altura
irradiava além de calor um cheiro acre de pânico que me fez virar a cabeça
e fingir que estava muito concentrado em alguma coisa que eu via do outro
lado do vidro (que só abria até a metade, devido a algum erro do projeto ou
obscuro item de segurança). Não há por que descrever a fileira de franquias
varejistas e de shopping centers e revendas de carros, de pneus e motos/jet
skis e postos de gasolina self-service com lojinhas de conveniência
embutidas e marcas nacionais de fast-food que nós fomos atravessando a
passo de tartaruga, já que hoje é basicamente a mesma fileira em torno de
qualquer cidade dos EUA — creio que o termo dos economistas é
“monocultura”. Parágrafo terceiro. Por fim se viu que a saída da estrada
para o Centro de Análise não tinha um semáforo, muito embora tenha
também ficado visualmente claro, quando conseguimos ver a saída, que
uma bela porcentagem dos carros que naquele momento estavam à nossa
frente na pista única da SSP também seguia para, e portanto viravam para, o
CRA e sua estradinha asfaltada de acesso. (Embora ainda fosse levar um
tempo insano pra que mesmo um fato simples como esse me fosse
explicado, os dois principais turnos de oito horas do CRA naquele período
iam das 7h10 da manhã às 15h e das 15h10 às 23h, o que significava que
havia uma quantidade gigantesca de tráfego de veículos do Serviço e de
seus funcionários entre as 14h e as 16h.) O que significava que na verdade
era o próprio Centro de Análise, somado à ausência de um semáforo e às
abortivas obras na SSP,17 que tinha ajudado a produzir aquele
engarrafamento do capeta, porque também havia uma grande quantidade de
veículos nas pistas que vinham, rumo nordeste, tentando entrar à esquerda,
i.e. cruzar a nossa pista única, para entrar também na estradinha de acesso
ao CRA, o que exigia que o veículo na frente da fila ali na nossa pista,
enquanto esperava pra dobrar à direita parasse e fizesse sinal pro carro do
outro lado realizar sua manobra, o que muito poucos veículos faziam, já que
engarrafamentos de trânsito com tanta frequência trazem à tona os
elementos mais agressivos e mais “eu-primeiro” da constituição dos seres
humanos e provocam comportamentos que por si sós, de maneira perversa,
exacerbam o engarrafamento — sendo que talvez este ponto aqui seja o
melhor lugar pra mencionar um comportamento que começamos a ver cada
vez mais à medida que íamos ficando centímetro a centímetro mais
próximos da entrada do CRA. Alguns veículos particulares18 da nossa pista
entravam direto na estreita “faixa de contenção” de pedrisco, onde
aceleravam e assim conseguiam ultrapassar dúzias de outros veículos,
ilegalmente, o que em si e por si próprio não seria coisa assim tão grave não
fosse a pista de contenção ir se estreitando até sumir à medida que o CRA se
aproximava, e eles então tentavam entrar de novo na única pista legal, o que
demandava que alguém naquela pista parasse pra dar a vez a eles, o que
travava ainda mais o trânsito na pista regular… o que significava que os
veículos do tipo egoísta, “eu-primeiro”, estavam piorando
significativamente o próprio engarrafamento de que tentavam escapar; eles
ganhavam uns minutos a mais e deixavam o engarrafamento e a demora um
pouco piores pra todos os outros ali na reluzente fileira de carros da nossa
pista. Depois de algumas semanas de trajetos diários pela SSP da residência
especial de baixo custo do Serviço19 até o CRA todo dia, esse
comportamento egoísta do “eu-primeiro” em relação à pista de contenção
começou a me encher de um desprezo e de uma irritação tão grandes que
até hoje me lembro de alguns veículos que cronicamente faziam aquilo, i.e.,
o mesmo tipo de comportamento idiota e solipsista que gera pânico nos
logradouros públicos em caso de incêndio e faz as autoridades acabarem
encontrando quantidades imensas de corpos enegrecidos e pisoteados na
porta da frente dos lugares depois que incêndios ou revoltas foram contidos,
com as pessoas tendo sido impedidas de sair exatamente por causa do
pânico e do egoísmo com que dispararam todas, travaram a saída e ficaram
umas no caminho das outras, fazendo todo mundo morrer de maneira
horrível, o que tenho que admitir que foi o que comecei a desejar para os
vários Vegas, Chevettes e para um AMC Pacer azul-claro em especial, um
que tinha aquele adesivo cristão no formato de peixe no vidro traseiro
arredondado20 e que fazia a tal manobra todo dia de manhã.
Mais um dado da idiotice burocrática: conforme mencionado, avisos
plásticos no interior do carro, cigarros, comida &c., como mostrou ser o
caso em todos os veículos do Serviço utilizados para transporte de pessoal,
em razão das regulamentações internas citadas na porção direita inferior dos
próprio avisos21 — só que o interior dos AMC Gremlins era tão apertado e o
plástico usado ali era tão barato e tão fino que não havia onde instalar os
avisos de vinte centímetros a não ser em cima do painel, onde eles
encobriam algumas partes de baixo do para-brisa e forçavam nosso
motorista a adotar uma posição contorcida, com a cabeça tonsurada quase
encostada no ombro direito a fim de enxergar a estrada à frente por entre as
bordas dos avisos compulsórios. Isso, até onde posso ver, era passar dos
limites tanto em termos de segurança quanto de qualquer coisa que se
quisesse chamar de juízo.
Localizado num gramado cortado muito rente e de extensão considerável
cercado de ambos os lados pelas árvores que constituíam os quebra-ventos
dos milharais, e por arbustos emaranhados, o Centro Regional de Análise
Meio-Oeste ficava a uns belos quinhentos metros da estrada, quinhentos
metros estes preenchidos apenas e tão somente por uma grama verdejante e
estranhamente desprovida de dentes-de-leão, cortada bem baixa a ponto de
parecer feltro. O contraste entre o esplendor baronial do gramado e a feiura
institucional atarracada do CRA propriamente dito era marcado e
incongruente, e não faltava tempo pra ponderar a respeito enquanto o
Gremlin seguia a passo lento e o sujeito ao meu lado pingava sem parar
tanto em si próprio quanto em mim. O homem mais velho da outra
extremidade do banco traseiro tinha o que pareceu de início um dedal verde
num dedo, o que acabou mostrando ser a borrachinha de atrito que a
maioria dos fraldinhas usava e que todos chamavam de TM, ou “trapaça de
mindinho”. Um grande outdoor da 4-H um pouco depois da entrada de mão
única do CRA dizia É PRIMAVERA, PENSE NA SEGURANÇA NAS FAZENDAS, e eu
sabia que era uma placa da 4-H porque em todo período março-maio havia
uma exatamente como aquela logo depois da fábrica de café solúvel na ST-

130 a oeste de Philo.22 A sede estadual da 4-H fazia churrascos e lavava


carros o ano todo pra bancar esses outdoors (c/ as orações separadas por
vírgula sic mesmo), que em 1985 já eram tão ubíquos que ninguém mais
prestava atenção.23
Eu também lembro que tinha que mover e torcer o pescoço de maneira
desconfortável pra distinguir as várias características do Centro de Análise.
Daquela distância e daquele conjunto de perspectivas, o CRA pareceu de
início uma imensa estrutura de ângulos retos, com a fachada24 de cimento
castanho ou bege monstruosamente grande e lisa, e só um pouquinho do
teto escorçado do prédio lateral visível do outro lado da estrada de acesso,
estrada esta que se estendia numa grande curva de mão única em torno da
parte traseira do prédio principal, traseira esta que acabou revelando ser na
verdade a frente do CRA, com sua imensa fachada autocontemplativa. Numa
distorção similar, o que de longe parecia ser uma legítima “estrada”
circundante que levava da pista da estrada para e também em torno do CRA

revelou ser mais um caminho ou uma grosseira picada rural, estreita e


elevada, cercada de fundas valetas de escoamento, e com lombadas
monstruosas instaladas tão perto umas das outras que se tornava impossível
trafegar a mais de 10 km/h na estradinha de acesso; dava pra ver os
ocupantes de qualquer veículo que trafegasse mais rápido do que isso sendo
arremessados de um lado para o outro no interior do carro como bonecos de
pano devido ao impacto com as lombadas, que tinham cada uma mais de
vinte centímetros de altura. A partir de algumas centenas de metros da SSP,

estacionamentos de diversas e modestas dimensões se estendiam a começar


da estrada de acesso, mais ou menos como joias de lapidação quadrada
incrustadas em um bracelete ou uma tiara.25
Não havia, do nosso ponto de vista, nenhum sinal que identificasse o
local como pertencente ao IRS, e nem mesmo ao governo (o que, de novo,
era semiexplicado pelo fato de que aquilo que da Self-Storage parecia ser a
frente do CRA era na verdade os fundos, e de apenas um dentre dois prédios
distintos). Só o que havia eram pequenas placas redondas de orientação —
APENAS ENTRADA; APENAS SAÍDA — nos dois entroncamentos entre a estrada
semicircular de acesso e a SSP. Esta última placa ainda incluía o que
mostrou ser o endereço físico (embora não o postal) do CRA. Dado o
formato circular da estrada de acesso, a saída ficava a mil metros, ou mais,
estrada abaixo, quase dentro da zona de sombra do outdoor de segurança
nas fazendas. Eu podia ouvir o sujeito ao meu lado começando a
hiperventilar; nenhum de nós tinha olhado diretamente pro outro. Percebi
que apenas o lado da ENTRADA da estrada de acesso tinha estacionamentos
como apêndices; o distante lado da SAÍDA, que se projetava em curva a partir
dos fundos (i.e., depois se soube, da frente dos dois prédios) do CRA era um
vetor de mão única que levava de volta à Self-Storage Parkway, com o
entroncamento da saída também desprovido de qualquer tipo de semáforo
ou placa de orientação, ausência esta que causava mais enroscos e atrasos
pros motoristas que tentavam chegar à entrada do CRA vindos do oeste.
Como até já posso ter mencionado, a essa altura passava bastante das
13h40 preestabelecidas como meu horário de apresentação e carimbadas no
meu 141-OL. Certas emoções óbvias e compreensíveis decorriam de tal fato,
especialmente visto que (a) 0,0% desse atraso era responsabilidade minha e
(b) quanto mais nos aproximávamos do CRA, mais lento se tornava nosso
progresso no engarrafamento. De maneira a me distrair desses fatos e
emoções, comecei a compilar uma lista dos absurdos lógicos que se
tornavam manifestos assim que o veículo do Serviço se aproximava o
suficiente da entrada pra que a via de acesso ao CRA ficasse visível na janela
não obstruída do meu lado. O que se segue é o resumo de uma anotação
anomalamente longa, intensa e desprovida de sinais de pontuação no meu
caderninho,26 redigida ao menos em parte dentro do próprio Gremlin. A
saber:
Além da passagem dos carros que vinham no outro sentido e dos odiosos
“eu-primeiro” que tentavam voltar pra pista principal, o motivo central da
torturante lentidão com que a nossa fila de carros na pista que seguia rumo
norte na Self-Storage, pelo sul da cidade, se arrastava pra chegar até a saída
que levava à estradinha de acesso do Centro de Análise era o que acabou
revelando ser o engarrafamento ainda pior, mais custoso e mais paralisado
dos veículos na própria estrada de acesso. Isso se devia principalmente ao
fato de que os estacionamentos apensos à estrada de acesso já estavam bem
cheios, e que quanto mais afastados da entrada da estrada de acesso
estivessem, mais cheios estariam os estacionamentos, e também cheios de
veículos de funcionários do IRS espreitando em busca de vagas. Dados os
extremos calor e umidade, as vagas mais desejáveis eram claramente as que
ficavam logo atrás27 do prédio principal, a menos de cem metros da entrada
central do CRA. Os funcionários que estivessem nas vagas mais periféricas
precisavam caminhar ao longo da estreita estrada de acesso ladeada de
valetas por todo o caminho que vinha pelos fundos28 até aquela entrada
central, o que resultava num certo equilibrismo pela borda não asfaltada da
estrada de acesso, além de certa instabilidade e de muito agitar de braços; e
vimos ao menos um funcionário escorregar e despencar valeta abaixo ali na
beira da estrada e ter que ser puxado manualmente de volta por outros dois
ou três, todos segurando o chapéu na cabeça com uma mão, de modo que o
funcionário resgatado ficou com uma enorme mancha borrada de grama em
todo um lado da calça e do blazer, e mancando de uma perna aparentemente
ferida enquanto ele e seus companheiros sumiam do nosso campo de visão
ao fazerem a curva da estradinha.29 O problema todo era tão óbvio quanto
estúpido. Dados o calor, o estorvo e de fato o perigo de um trajeto pedestre
ao longo da estrada de acesso, era totalmente compreensível que a maioria
dos veículos dos funcionários tentasse evitar os estacionamentos mais
próximos (ou seja, mais próximos de nós e, consequentemente, mais
distantes do próprio CRA) e seguissem rumo aos estacionamentos bem mais
desejáveis lá de trás, estacionamentos que no fim ficavam mais próximos da
entrada principal do CRA e separados dela apenas por um pátio largo,
calçado e de travessia simples. Mas se aqueles estacionamentos melhores e
mais próximos estivessem cheios (como, claro, dados a natureza humana e
os incentivos supracitados, decerto estariam; sendo os estacionamentos
mais desejáveis também obviamente os mais lotados), os veículos que
chegavam não poderiam dar a ré por onde vieram pra se contentar com uma
vaga nos estacionamentos progressivamente mais distantes e menos
desejáveis pelos quais tinham passado na entrada em busca das melhores
vagas — pois, claro, a estrada de acesso era de mão única30 em todo o arco
de sua curva, de modo que os veículos que não pudessem encontrar vaga
nos melhores estacionamentos tinham que seguir em frente até os fundos
rumo à plaquinha que dizia APENAS SAÍDA já longe do CRA, fazer a conversão
à esquerda desprovida de qualquer semáforo pra entrar na Self--Storage,
seguir por centenas de metros na direção leste de volta à entrada do CRA

com sua plaquinha de APENAS ENTRADA, e aí virar à esquerda (passando pelo


trânsito da outra pista, num processo que obviamente ralentava ainda mais
nosso progresso torturado pela pista que seguia na direção oeste) pra entrar
na estrada de acesso uma vez mais e conseguir estacionar num dos
estacionamentos menos desejáveis e mais próximos da estrada, de onde
tinham que sair pra se juntar à fila de pedestres em seu número de corda
bamba ao longo da beira da estradinha na direção da entrada principal lá
atrás.
Em resumo, a coisa toda parecia de um planejamento horrendo, que
resultava em tremenda ineficiência, desperdício, frustração pra todos os
envolvidos.31 Três soluções óbvias se apresentavam, e foram esboçadas
preliminarmente no meu caderninho, ainda que se registradas ali mesmo in
situ durante a estase enlouquecedoramente sisífica de estar-tão-perto-e-ao-
mesmo-tempo-tão-longe ou anotadas mais tarde, no correr do dia — um dia
durante o qual não faltaram momentos adicionais de tempo morto em que
não havia o que fazer a não ser ler o livro sem graça que eu já tinha
começado a anotar de forma sarcástica no trajeto de ônibus — não pretendo
fingir que recordo. Um melhoramento seria instituir alguma forma de
reserva de vagas, o que eliminaria boa parte do acúmulo de carros e das
travas que resultavam do fato de as pessoas ficarem à espreita das vagas
disponíveis nos estacionamentos, além do problema do “incentivo”
representado pela linha reta que os carros dos funcionários todos formavam
em busca dos dois ou três estacionamentos perto da entrada central do CRA

(que é claro que ainda não tínhamos visto ali da Self-Storage Parkway; a
localização da entrada era deduzida com base na aparente desejabilidade
dos estacionamentos sitos atrás [do nosso ponto de vista] do prédio, dado o
número de carros que seguia naquela direção, fato este claramente ligado a
certa forma tangível de incentivo. O funcionário ao meu lado agora parecia,
perifericamente, ter sido içado mecanicamente de um curso d’água, o que
tornava minha pretensa incapacidade de perceber sua incrível sudorese algo
ainda mais medonho e falso). Outro recurso seria, claro, alargar a estrada de
acesso e transformá-la em uma via de mão dupla. É de se reconhecer que
isso poderia expor o CRA a certa inconveniência e transtorno adicionais de
curto prazo de maneira não muito diferente do que decorria da ampliação da
Self-Storage Parkway, embora fosse difícil imaginar que o alargamento da
estrada de acesso não pudesse terminar bem antes, já que não estaria sujeito
aos atrasos e aos conflitos de interesses do processo democrático. O terceiro
melhoramento poderia ser sacrificar, para o bem e a conveniência maiores
de todos à exceção talvez do empreiteiro de paisagismo do CRA, a vicejante
área da parte vazia do gramado da frente (i.e., o que revelou ser a parte dos
fundos) do terreno, e colocar ali não apenas uma calçada de facto, mas
quiçá também um acesso transversal que permitisse que veículos no trecho
da SAÍDA da estrada retornassem para o trecho de ENTRADA sem ter que fazer
assemafóricas conversões tanto pra entrar quanto pra sair de uma estrada
congestionada. Isso, claro, sem nem falar da possibilidade de alguém
simplesmente meter a porra de um semáforo em cada um dos
entroncamentos, sendo quase impossível imaginar que o IRS não tivesse
força política junto às autoridades municipais e estaduais pra poder exigir
uma coisa dessa quando lhe desse na veneta.32 Isso sem nem mencionar o
quanto era esquisito, pura e simplesmente, fazerem com que (conforme veio
à tona) fossem os gigantescos fundos do CRA que ficassem de frente pra
principal artéria orbital de Peoria. Parecia, durante a lenta aproximação,
algo tanto pusilânime quanto arrogante, como sacerdotes pré-modernos que
ficassem de costas pros fiéis durante a missa católica. Tudo, da logística ao
civismo mais elementar, pareceria determinar que uma importante autarquia
governamental devesse encarar o público a que serve. (Lembre que eu ainda
não tinha visto a fachada estilizada do CRA, que era idêntica à dos outros
seis CRAs da nação e tinha sido instalada depois que um erro tipográfico não
percebido no vitaminado orçamento de construção e tecnologia depois que
as reformas instuídas pela Comissão King tiveram o direito de virar lei, erro
aquele que determinava que as fachadas dos Centros Regionais de Serviços
e de Análise “reproduzissem formalmente”, em vez de “produzissem
formalmente” o que se descrevia como “as condições de realização dos
serviços específicos que os centros oferecem”.33)
Quanto à nossa chegada em pessoa à entrada principal do centro naquele
primeiro dia, tudo o que eu posso dizer à guisa de resumo é que há uma
indescritível empolgação em você ver seu nome impresso numa placa que
alguém levanta no meio de um ponto de desembarque lotado. Suponho que
parte dessa empolgação se deva ao fato de você se sentir escolhido e — pra
usar o termo burocrático — validado. A placa especial com o meu nome
levantada por uma mulher atraente e com cara de figura oficial com um
blazer azul brilhante foi também, obviamente, depois de todas as
ignomínias e estorvos rebaixantes, e do subsequente atraso, uma surpresa,
ainda que não uma surpresa tão grande que pudesse obrigatoriamente fazer
supor que alguém tivesse o dever de perceber prova imediata de algum erro,
ou alguma confusão — havia, afinal, a supracitada questão de fatores
nepotísticos e da carta que eu trazia na valise.
Foi também então que se revelou que os aparentes fundos do CRA eram na
verdade sua frente, e que as duas partes ortogonais do centro não eram
contíguas, e que a fachada do prédio principal era estilizada da maneira
estranha e algo intimidadora que você até aceitaria que de repente fosse
prudente não deixar de cara pra estrada aberta logo ao sul, como uma
assombração. Mesmo sem a lotação e o caos, a imensa área da entrada
principal era complexa e desorientadora. Havia bandeiras, placas
codificadas, flechas direcionais e uma espécie de pátio amplo de concreto
com o que um dia parecia ter sido uma fonte, mas que não jorrava água.34 A
sombra quadrada do prédio principal se estendia por quase todo o pátio e
até os dois estacionamentos cobiçadíssimos que ficavam logo à sua frente,
nenhum deles tão grande assim. E havia a elaborada e obviamente
dispendiosa fachada do CRA, que se estendia desde logo acima da entrada
principal até o que parecia ser o quinto andar; era uma espécie de
reprodução, feita com pastilhas ou mosaico, de uma Declaração 1040 do
IRS, em branco, para o ano de 1978, as duas páginas, com todos os detalhes,

inclusive a lacuna da linha 31 do verso para o lançamento de “Renda Bruta


Ajustada” e a caixa final de “SALDO DEVIDO” da linha 66 do anverso, caixa
que servia, com a míriade de outras lacunas e caixas e quadradinhos
destacados, como o que pareciam ser janelas. O detalhismo era
impressionante, e o creme, o salmão e o céladon das cores do offset eram
realistas, ainda que algo datadas.35 E também, para deixar aquilo tudo ainda
mais assombroso/desorientador quando visto de uma só vez ali do desvio
circular da estrada de acesso onde os Veículos do Serviço podiam encostar
logo na frente do prédio e descarregar seus passageiros sem ter que
estacionar (o que teria exigido uma nova volta em todo o prédio, já que os
estacionamentos logo ao lado da entrada, do outro lado do pátio, estavam
lotados e tinham até veículos extras estacionados em cantos proibidos onde
impediriam outros veículos de sair de suas vagas e do estacionamento),
aquele 1040 gigante, que tinha proporções realistas e portanto um pouco
mais comprido do que largo, ficava cercado em cada distante flanco por um
grande entalhe em baixo-relevo ou um ícone de algum tipo de combate
quimérico e por uma expressão em latim, indecifrável ali na sombra escura
do lado direito, que acabou revelando ser o selo e o lema oficiais do Serviço
(nada disso me foi informado no material que veio com o contrato [e que,
como já mencionei, tendia a ser tanto críptico quanto tonalmente severo ou
urgente, no fundo pouco mais que uma série de motores de apreensão na
minha modesta opinião, ali sentado na deserta sala de estar da minha
família, tentando decodificar aquele material]). A título de detalhe extra,
todo aquele complexo conjunto da fachada se refletia — ainda que de forma
angulada e lateralmente escorçada que fazia com que o ícone e o lema da
borda parecessem estar mais próximos do que de fato estavam — pelo
exterior exuberantemente espelhado da lateral da outra estrutura do CRA,

vulgo o “Anexo” do CRA, que ficava em um ângulo quase perfeitamente reto


com a fachada principal e se ligava em dois andares à lateral oeste do
edifício principal pelo que naquele momento me pareceram grandes tubos
verdes apoiados em atordoantes (já que fora da sombra do edifício
principal) florestas de exíguas colunas de aço anodizado ou inoxidável,
suportes metálicos estes que pareciam estranhos e centopédicos vistos desse
ângulo e que se refletiam ainda outras vezes em atordoantes fatiazinhas
anguladas nas quinas do exterior espelhado do Anexo.
Se bem que um ou dois painéis espelhados estavam quebrados ou
rachados, eu lembro de ter percebido.36
(Além disso, por favor não esqueça que eu não conhecia nadinha da
história ou da logística do CRA de fato naquele dia inicial; estou tentando me
manter fiel à lembrança da própria experiência, embora não haja como
evitar uma descrição sucessiva de vários elementos que, na ocasião, foram
obviamente simultâneos — certas distorções são simplesmente parte e
resultado da linguagem linear.)
Quanto ao elemento humano: a ampla área de cimento em torno da
entrada principal, como nós a vimos de início, por sobre a pletora de outros
veículos do Serviço, marrons e laranja/amarelos que vomitavam
passageiros, era um imenso e complexo fervilhar de funcionários do
Serviço, todos ali como baratas tontas segurando 141-OLs dentro de seus
distintivos envelopes amarelo-escuros do Serviço, com bagagens, folders e
pastas sanfonadas, muitos enchapelados, e vários funcionários de apoio do
CRA ou talvez do QG regional com blazers azul-chama-de-gás, pranchetas e
resmas de impressos que enrolavam pra gerar megafones improvisados que
usavam pra falar enquanto erguiam as pranchetas no ar e assim chamar a
atenção das pessoas, nitidamente tentando coletar os recém-chegados com
designações de trabalho e/ou níveis GS similares em seus 141-OLs pra que
eles formassem grupos coesos pra seu “acolhimento orientado” nas diversas
“Estações de Processamento” instaladas em todo o saguão principal do CRA,
saguão este que, visto pelas portas de vidro da entrada, era
supreendentemente pequeno e de aparência brega, e tinha várias mesas
dobráveis de aparência surrada instaladas com placas toscas feitas de
envelopes de papel pardo transformados em barraquinhas — a coisa toda
parecia mal-ajambrada, feita nas coxas e caótica, e era impossível que uma
quantidade tão grande de recém-chegados ou -transferidos pro CRA fosse
uma coisa comum, de todo dia, senão o sistema todo de desembarque e
recepção teria uma cara muito mais permanente e azeitada e pareceria
menos uma reprodução em ponto menor da queda de Saigon. Mas, de novo,
tudo isso estava sendo percebido e processado internamente em pouco mais
que um átimo distraído — que ocorreu quando o Gremlin enfim saiu da
confusão da estrada de acesso e parou sob o ar quase gélido da sombra do
edifício, estacionando em fila dupla no desvio semicircular logo na frente
da entrada37 — porque, conforme já mencionado, a atenção da pessoa é
mais ou menos tragada por uma placa com seu nome, principalmente se ela
parece ser uma entre apenas duas placas com nomes ali em todo aquele
louco fervilhar burocrático na frente da entrada principal, então eu quase
imediatamente enxerguei a mulher de aparência não caucasiana com um
blazer gritante parada poucos passos à direita do grupo de recém-chegados
mais à direita, que se amontoava em volta de um homem com uma
prancheta erguida e um megafone de papel,38 a mulher ligeiramente à parte
e talvez três metros abaixo da lacuna da fachada que servia pra informar a
RBA na linha 31, contra a parede, segurando ou um pedaço de cartolina
branca ou um pequeno quadro branco apagável com o nome DAVID WALLACE
em nítidas maiúsculas de forma. Ela estava parada de uma maneira que
conseguia conotar cansaço e tédio sem nenhum sinal de má postura, pernas
bem afastadas e dorso apoiado na parede, do cóccix ao occipício, e
encarava diretamente em frente, segurando a placa na altura do peito e
olhando o vazio sem interesse nem resignação. É claro que eu agora estava,
conforme mencionado, e sem nenhuma culpa minha, horrivelmente
atrasado, o que gerava uma ansiedade que se misturava à inevitável emoção
de ver seu nome numa placa, pra não falar de uma placa empunhada por
uma mulher de aparência exótica, além de todo um outro conjunto de
ozymandianas reações de pasmo-e-loucura devido à conjunção do
monumental mosaico da 1014 com o caos automaticamente derivado da
multidão ali na área de entrada, pra formar uma espécie de aumento de
voltagem sensória e emocional que eu agora recordo com muito mais
nitidez do que qualquer um entre a miríade de detalhes e impressões (que
eram milhares ou até milhões, todos obviamente sendo percebidos no
mesmo momento) da chegada. Pois ela era visivelmente não caucasiana,
mesmo mergulhada na profunda sombra alongada na base da fachada entre
vários cacos de brilho atordoante projetados pelo exterior espelhado do
Anexo, que em certas partes pegava um pouco de sol no que este se movia
de leve a oeste do sul propriamente dito. Meu palpite inicial foi indiana ou
paquistanesa de casta aristocrática — um dos meus colegas de quarto no
meu primeiro ano na universidade era um paquistanês rico com um sotaque
maravilhosamente cantado e efervescente, ainda que com o passar do ano
tenha se revelado um narcisista inacreditável e, de maneira geral, um
calhorda.39 Ela era, da distância de onde o Gremlin estava nos vomitando,
mais impressionante que bonita, ou talvez se pudesse dizer que era bonita
de uma forma algo masculinizada, de rosto duro, com um cabelo muito
escuro e olhos bem afastados no que era, conforme já mencionado, o olhar
de alguém que estava “a trabalho” daquela maneira que envolve não ter
muito o que fazer, na verdade, além de ficar ali parada. Era a mesma
expressão que você encontra em seguranças, bibliotecários da seção de
referência da universidade numa sexta-feira à noite, atendentes de
estacionamento, operadores de silos de grãos &c. — ela ficava ali parada
olhando pra um ponto na distância como quem estivesse na extremidade de
um píer.
Foi só quando fora do Gremlin lotado, no que o ar fresco da área
dianteira à sombra da fachada me atingiu e refrescou aquela parte de mim
que percebi pela primeira vez que todo o lado esquerdo do meu terno estava
úmido por causa da perspiração ambiente do rapaz que veio atochado ao
meu lado durante todo o trajeto, ainda que quando eu olhei em volta em
busca dele pra gesticular na direção do veludo cotelê escurecido e lhe dar o
devido olhar de desprezo, ele não estivesse mais à vista.
A expressão de Ms. F. Chahla Neti-Neti (segundo seu crachá de
identificação) mudou, na verdade mudou várias vezes, enquanto eu me
aproximava dela com a bagagem e um grau de contato visual direto que
teria sido inadequado caso ela não estivesse segurando uma placa com o
meu nome. Aqui, se é que já não fiz isso, eu deveria explicar que neste
período do que era basicamente o fim da minha adolescência eu tinha uma
pele muito ruim — muito, mas muito ruim, assim da categoria
dermatológica de “severo/desfigurador”.40 Quando me conheciam ou me
viam pela primeira vez as pessoas em geral (a) apenas olhavam depressa
pro meu rosto e desviavam o olhar, ou (b) faziam uma cara
involuntariamente tocada ou apiedada, ou enojada, e aí ficavam
visivelmente lutando por dentro pra sobrepor àquela expressão uma outra
que significasse que ou não tinham visto a pele ruim ou não se
incomodavam com ela. A coisa toda da pele é uma longa história e de modo
geral nem vale a menção, a não ser pra enfatizar mais uma vez que naquela
época eu estava mais ou menos reconciliado com a coisa da pele e ela nem
me incomodava muito mais, embora dificultasse um barbear de alguma
precisão, e apesar de eu ainda tender a saber muito bem quando estava sob
luz direta e, se fosse esse o caso, ainda tender a saber muito bem de que
ângulo provinha aquela luz — porque em certos tipos de luz o problema era
muito, mas muito sério mesmo, eu sabia. Nesse primeiro encontro não
lembro se Ms. Neti-Neti foi um (a) ou um (b),41 talvez porque minha
atenção/memória estivesse ocupada registrando como o crachá de
identificação funcional preso ao bolso do peito do seu casaco do RH tinha
uma foto que parecia ter sido tirada com uma luz muito forte, quase com
aparência de luz de magnésio, e eu lembro de calcular instantaneamente o
que o tipo de iluminação hedionda dessas fotos ia fazer em termos dos
cistos e carepas globulentas do meu rosto, exatamente como tinha
transformado a aparência daquela persa de um moreno cremoso em algo
que parecia cinza-escuro, e tinha exagerado o quanto eram separados os
olhos dela de modo que na foto de identificação ela parecia quase um puma
ou outra espécie estranha de predador felino, junto com o fato de que o
crachá mostrava sua primeira inicial e seu sobrenome, seu nível GS, sua
afiliação ao RH, e uma série de nove dígitos que só depois eu iria entender
serem seu RG gerado internamente, que também funciona como número de
identidade no Serviço.
A razão pra eu sequer me dar ao trabalho de mencionar a coisa das
reações tipo (a) ou (b) é que se trata da única maneira de entender o fato da
saudação de Ms. Neti-Neti ter sido tão verbalmente efusiva e deferente —
“Sua reputação o precede”; “Em nome do sr. Glendenning e do sr. Tate,
digo que estamos todos satisfeitíssimos em tê-lo a bordo”; “Ficamos
satisfeitíssimos quando o senhor aceitou essa lotação” — sem que seu rosto
ou seus olhos demonstrassem qualquer entusiasmo e nem mesmo
ostentassem qualquer emoção ou interesse por mim ou pelos motivos de eu
ter chegado tão atrasado e ter forçado a moça a ficar ali parada segurando
uma placa sabe Deus há quanto tempo, o que eu pessoalmente teria feito
muita questão de ver explicado. Isso pra nem lembrar que todo o lado
esquerdo do meu terno estava molhado, o que eu teria pelo menos
perguntado de alguma maneira preocupada, p. ex. se por acaso a pessoa
tinha caído numa poça. Em suma, não apenas era surpreendente ser
recebido com palavras tão entusiásticas, mas duplamente surpreendente
quando a pessoa que recitava tais palavras mostrava o mesmo tipo de
descolamento da realidade que, digamos, a caixa da loja que pronuncia as
palavras “Tenha um bom dia” enquanto sua expressão facial indica que pra
ela no fundo não faz a menor diferença se você cair fulminado no
estacionamento dali a dez segundos. E todo esse monólogo duplamente
desorientador ocorria enquanto a mulher me conduzia por sob as lacunas de
“Dados do Preenchedor Pago” na base do anverso do grande 1040, até um
conjunto de portas menores e bem menos exuberantes a algumas centenas
de metros, ao longo da fachada de pastilhas do CRA.42 Assim de tão perto já
dava pra perceber que algumas pastilhas da fachada estavam lascadas e/ou
manchadas. Também dava pra ver várias partes distorcidas do nosso reflexo
na fachada do Anexo bem em frente (i.e., a leste), apesar de ele estar a
centenas de metros de distância e de os reflexos parciais serem minúsculos
e indistintos.
Ms. Neti-Neti tagarelou ao longo de quase toda a fachada. Nem precisa
dizer o quanto era difícil entender toda essa atenção pessoal e toda essa
deferência (verbal) dirigidas a um GS-9 que provavelmente receberia a
missão de abrir envelopes ou carregar pilhas de documentos obscuros de
um lugar pro outro ou coisa desse tipo. Minha teoria inicial era que o
parente inominado que tinha me ajudado a entrar ali como forma de
postergar mecanismos de cobrança de Crédito Estudantil tinha muito mais
influência administrativa do que eu supunha originalmente. Se bem que,
claro, enquanto eu tentava manquitolar atrás da moça não caucasiana à
sombra da frente/fundos do edifício, aquela história da minha “reputação
[me] precede[r]” fosse fonte de preocupação, devido a algumas ansiedades
irracionais a que já dei mais atenção do que elas mereciam logo acima.
Agora está ficando claro que eu podia passar uma quantidade de tempo
gigantesca só descrevendo essa primeira chegada e a pilha redobrada de
confusões, equívocos e merdaradas gerais (pelo menos uma delas devida a
mim — a saber: deixar uma das minhas malas na área externa de espera do
escritório de RH do CRA, coisa que só percebi quando estava no ônibus que
fazia o trajeto pro apartamento de Angler’s Cove onde ficava a residência
que o IRS tinha me destinado)43 que decorreu daquele primeiro dia de
lotação, sendo que alguns deles viriam a precisar de semanas pra serem
resolvidos. Mas bem poucos são relevantes de maneira mais geral. Uma das
peculiaridades da memória humana real é que suas recordações mais nítidas
e detalhadas normalmente não são tão relevantes. São, por assim dizer,
floresta. Não é só que a memória real seja fragmentária; acho que também a
relevância e o sentido geral de seus dados são conceituais, enquanto as
parcelas da experiência que ficam gravadas a fogo e são recordadas, anos
depois, com mais facilidade, tendem a ser sensórias. Afinal de contas, nós
vivemos dentro de um corpo. Exemplos aleatórios de recortes lembrados:
longos corredores sem janelas, meus braços queimando logo antes de eu ter
que largar as malas um momento. O som e a cadência particulares dos
saltos de Ms. Neti-Neti no piso dos corredores, que eram de um linóleo
marrom-clarinho cuja cera tinha um cheiro forte no ar imobilizado, e
refletia uma série infinita de arcos parentéticos onde um zelador tinha
passado em pêndulo de um lado a outro sua enceradeira no corredor vazio à
noite. Aquele lugar era um labirinto de corredores, escadas e portas de
incêndio com placas codificadas. Muitos corredores pareciam curvos e não
retos, coisa que lembro de ter pensado ser uma ilusão de perspectiva; o
exterior do CRA não tinha nada de arredondado ou casulístico. Ou seja, todo
aquele lugar era atordoantemente complexo e repetitivo demais pra que se
possa descrever a primeira impressão que causava com algum grau de
detalhe. Isso pra nem falar do quanto aquilo era confuso: por exemplo, sei
que o nosso destino inicial na chegada ficava um andar abaixo da entrada
principal e do saguão. Sei disso quando faço um retrospecto, porque é onde
ficava o escritório do RH do CRA, que eu sei que foi pra onde disseram que
Ms. Neti-Neti deveria me conduzir contornando os guichês do saguão,
imediatamente… mas eu também tenho o que parece ser uma clara
lembrança física de subir ao menos um curto lance de escadas num dado
momento, já que era subir escadas com a bagagem o que causava as piores
batidas daquela mala contra o flanco externo do meu joelho, cujos inchaço e
flamejante tom arroxeado eu quase podia visualizar. Por outro lado, não
acho impossível que eu esteja confundindo a ordem em que as diversas
partes do CRA foram percorridas.
O que eu sei é que num dado momento a própria Ms. Neti-Neti ficou
aparentemente confusa ou distraída e abriu a porta errada, e na risca de luz
que surgiu antes que ela fechasse de novo a pesada porta entrevi uma sala
comprida cheia de analistas do IRS em longas fileiras e colunas de mesas ou
escrivaninhas estranhas, cada uma delas (as escrivaninhas) com um aparato
destacado de bandejas ou nichos presos ao tampo,44 com luminárias
flexíveis presas em vários ângulos a esses aparatos que se abriam em leque,
de modo que cada analista do IRS trabalhava num pequeno círculo cerrado
de luz no que parecia ser o fundo de um buraco que só tinha um lado.
Fileiras e mais fileiras, que se estendiam pra uma espécie de ponto de fuga
próximo à parede dos fundos da sala, onde havia o recorte de outra porta.
Esse, embora eu não soubesse na época, foi meu primeiro relance de uma
Sala de Imersivas, das quais a estrutura principal do CRA continha um
punhado. A coisa mais impressionante ali era o silêncio. Havia pelo menos
150 homens e/ou mulheres naquela sala, todos ocupadíssimos e
concentrados, no entanto a sala estava tão silenciosa que deu pra ouvir uma
imperfeição na dobradiça da porta quando Ms. Neti-Neti forçou o
fechamento contra a resistência de sua mola pneumática. Esse silêncio é o
que eu lembro melhor, porque era ao mesmo tempo sensório e
incongruente: por motivos óbvios, tendemos a associar o silêncio completo
ao vazio, e não a grandes grupos de pessoas. A coisa toda, no entanto,
durou apenas um momento, depois do qual continuamos nosso complexo
caminho com Ms. Neti-Neti de vez em quando cumprimentando ou
acenando com a cabeça pra outros funcionários do RH com seus distintivos
paletós azuis brilhantes, que conduziam pequenos grupos na outra direção
— o que olhando daqui agora deveria ter sido mais um dado confuso,
apesar de eu não lembrar de ter pensado alguma coisa disso tudo; eu ainda
estava por assim dizer reverberando com a visão de todos aqueles analistas
aplicados e absolutamente silenciosos.
Aqui é talvez um lugar adequado pra certas explicações sobre o meu
passado no que tange a: silêncio e trabalho mental concentrado. Olhando
agora daqui, sei que havia algo na intensidade silenciosa e imóvel com que
todos naquele instante em que se abriu a porta analisavam os documentos
ligados ao imposto de renda que tinham à sua frente que me deixou com
medo e empolgado. A cena foi de um tal jeito que você simplesmente sabia
que se fosse abrir a porta por outro breve instante, dez, vinte ou quarenta
minutos depois, tudo estaria com a mesma aparência e o mesmo som. Eu
nunca tinha visto uma coisa como aquela. Ou na verdade tinha, de certa
forma, porque é claro que a televisão e os livros viviam retratando gente
concentrada estudando ou trabalhando daquela maneira, pelo menos de
modo indireto. Tipo: “Irving decidiu se empenhar e passou a manhã toda
lidando com a papelada que cobria sua mesa”; ou “Foi só quando tinha
terminado o relatório que a executiva deu uma olhada no relógio e percebeu
que era quase meia-noite. Ela tinha ficado completamente mergulhada no
trabalho, e só agora se dava conta de que não havia jantado e estava morta
de fome”. Ou até uma coisa simples como: “Ele passou o dia lendo”. Na
vida real, claro, o trabalho concentrado não acontece assim. Eu tinha
passado montes de horas em bibliotecas; sabia muito bem como era de
verdade o trabalho mental. Especialmente se a tarefa em questão fosse
repetitiva ou densa, ou se envolvesse a leitura de algo que não tivesse
relevância direta pra sua vida, ou pras suas prioridades, ou fosse algum
trabalho que você só estivesse fazendo porque era obrigado a fazer —
assim, pra ganhar nota, ou como parte de um trabalho ocasional pago por
algum canalha que estava esquiando por aí. O funcionamento real do
trabalho mental pesado se dá em entrecortados arranques e baques, breves
intervalos de concentração alternados com frequentes idas ao banheiro, ao
bebedouro, à máquina de vender comida, constantes visitas ao apontador de
lápis, chamadas telefônicas que você de repente sente ser imperativo fazer,
intervalos de contemplação extasiados das diversas formas que você
consegue criar dobrando um clipe de papel &c.45 Isso porque ficar sentado
concentrado em somente uma tarefa por um longo tempo é, na prática,
impossível. Se você dizia “Passei a noite toda na biblioteca, trabalhando no
artigo de sociologia que me encomendaram”, você na verdade queria dizer
que passou entre duas e três horas trabalhando naquilo e o resto do tempo
mexendo em coisas por ali, apontando e organizando lápis, verificando
coisas na sua pele no espelho do banheiro, andando entre as pilhas de livros
e pegando volumes a esmo e lendo, vamos dizer, sobre as teorias do
suicídio de Durkheim.
No entanto não havia sinal dessa difração naquela visão de fração de
segundo da sala. Você sentia que ali eram pessoas que não futucavam coisas
à toa, que não liam uma página, digamos, da tediosa explicação de um
contribuinte a respeito da dedução de certo item e aí percebiam que na
verdade estavam era pensando na maçã que tinham trazido pro almoço e se
deviam ou não comer a maçã ali mesmo, bem naquele momento, até
perceberem que seus olhos tinham passado por todas as palavras (ou, dado
o ambiente aqui, talvez por todas as colunas de cifras) da página sem na
verdade ter lido coisa alguma — com lido aqui significando internalizado,
compreendido, ou o que quer que queiramos dizer com ler de verdade
versus simplesmente deixar os olhos correrem por símbolos dispostos em
determinada ordem. Ver aquilo foi meio traumático. Eu sempre tinha me
sentido frustrado e constrangido com a quantidade de tempo de leitura e de
escrita que na verdade jogava fora, com quanto eu meio que ficava
apagando e recobrando a consciência enquanto tentava absorver grandes
quantidades de informação. Pra dizer de uma vez, eu tinha vergonha da
facilidade com que me entediava quando tentava me concentrar. Na infância
acho que eu entendia a palavra concentração de forma literal e via minhas
dificuldades pra manter a concentração como prova de que eu era uma
forma anormalmente diluída ou desorganizada de ser humano,46 e pus boa
parte da culpa disso na minha família, que tendia a precisar de muito
barulho intenso e de muita distração o tempo todo e cumpria quase todo
tipo de atividade com todos os rádios, aparelhos de som e televisão
disponíveis ligados, tanto que comecei a usar tampões de ouvido
customizados especiais de alta potência em casa desde os catorze anos. Eu
precisei chegar até a idade de finalmente sair de Philo e entrar numa
universidade muito seletiva pra compreender que o problema com a
imobilidade e a concentração era basicamente universal e não alguma
incapacidade singular que fosse me incapacitar de um dia ir além do meu
passado pretérito e conseguir realizar alguma coisa. Ver o tamanho dos
esforços que aqueles graduandos de elite bem-educada de toda a nação
faziam pra evitar, postergar ou mitigar a necessidade de trabalho
concentrado foi uma experiência reveladora pra mim. Pra dizer a verdade, a
estrutura social da escola estava calibrada pra valorizar e admirar alunos
que conseguissem ser aprovados nas disciplinas e montarem um bom
currículo sem jamais trabalhar duro. As pessoas que passavam tranquilas,
fazendo o mínimo do mínimo necessário pra obter a aprovação
institucional/parental, eram consideradas descoladas, enquanto as pessoas
que de fato se aplicavam às suas tarefas e ao trabalho envolvido em sua
educação e formação eram relegadas ao status de “cê-dê-efes” ou “manés”,
a casta inferior de toda a impiedosa hierarquia social da universidade.47
A vantagem, por outro lado, foi que até entrar na universidade, onde todo
mundo normalmente morava junto e estudava junto bem na frente de todo
mundo, eu não tive oportunidade de perceber que os gestos e os atos
distraídos, e as frequentes pausas inventadas eram mais ou menos marcas
universais. No ensino médio, por exemplo, a tarefa de casa é literalmente
isso — feita em casa, em particular, com tampões de ouvido, placas de
MANTENHA DISTÂNCIA e uma cadeira travando a maçaneta da porta. A mesma
coisa com a leitura, com escrever entradas de diário, tabular a contabilidade
da entrega dos jornais da vizinhança &c. Você fica com seus pares apenas
em ambientes sociais ou recreacionais, que incluem as aulas, que na minha
própria escola pública de ensino médio eram piadas acadêmicas. Em Philo,
você tinha que se educar apesar da escola, e não nela — que é basicamente
o motivo de tantos dos meus colegas do ensino médio continuarem ainda
hoje em Philo, vendendo seguros um pro outro, tomando bebidas de
supermercado, vendo televisão, aguardando a formalidade do primeiro
infarto.
Ms. Neti-Neti do RH, aliás, continuou falando durante a maior parte do
tortuoso trajeto até o RH. A verdade é que quase nada do que ela disse
continua disponível como lembrança. Seu tom era agradável, profissional;
mas ela tagarelava tão sem parar que você meio que involuntariamente
deixava de ouvir depois de um tempinho, mais ou menos como uma criança
de seis anos. No entanto, parte do que ela ia dizendo consistia
provavelmente de informações úteis e pertinentes, e é meio vergonhoso eu
não conseguir resumir aquilo tudo agora, já que provavelmente seria útil e
conciso, em termos de escrita biográfica, de formas em que as minhas
impressões e memórias não foram. Sei que eu ficava parando e trocando
malas de uma mão pra outra pra atenuar a sensação de ardência que provém
de carregar a mala mais pesada apenas, digamos, do lado direito por algum
tempo, e demorava alguns instantes pra que Ms. Neti-Neti entendesse o que
estava acontecendo e se detivesse em vez de seguir adiante e acabar uns
vinte metros à minha frente, quando então o fato dela continuar falando se
tornava absurdo, já que não havia literalmente ninguém lá pra ouvir. A total
ausência de oferecimento de ajuda com a minha bagagem era o.k.; era
atribuível a códigos de gênero que eu sabia serem especialmente rígidos no
Oriente Médio. Mas nada evidencia tanto a noção de que o entusiasmo de
uma pessoa e sua tagarelice são uma piração toda dela e não têm nada a ver
com você quanto você ficar pra trás e se ver literalmente ausente com a
tagarelice ainda em curso, chegando até você num fluxo indistinto de ecos
rebatidos pelas superfícies dos corredores. Seria maldade dizer muito mais a
respeito da Crise Iraniana no contexto do primeiro dia, já que o resto que
acabei sabendo sobre as excentricidades de Ms. Neti-Neti fora do trabalho e
das origens delas nos distúrbios iranianos de fins dos anos 70 veio só mais
tarde, quando ela pareceu emergir de uma unidade residencial diferente na
ala dos fraldinhas, quase toda manhã, durante o mês de agosto de 1985. Seu
sotaque era delicado e soava mais britânico que oriental ou estrangeiro, e
seu cabelo era de um negro muito escuro, com um aspecto quase líquido na
perfeita planura com que descia pelos ombros — visto por trás, seu
contraste com o azul brilhante horroroso do paletó do escritório de RH era a
única coisa interessante ou atraente sobre o paletó. E também, por eu ter
passado tanto tempo em várias partes do rastro deixado por ela, lembro que
ela cheirava vagamente — como se o cheiro fosse não dela, mas de seu
paletó do RH — a certo perfume comprado em shoppings com o qual algum
membro inominado da minha própria família praticamente se encharcava
toda manhã em quantidades capazes de te encher os olhos de lágrima.
Ao contrário dos andares superiores, o nível inferior do prédio do CRA é
seccionado em células praticamente hexagonais, com corredores que
emanam de um núcleo central como raios de uma roda torta. Como você
pode imaginar, essa planta radial, tão popular nos anos 70, não fazia
nenhum sentido imediato, dado o próprio prédio do CRA ser marcadamente
retangular, o que aumentava a desorientação geral da descida daquele
primeiro dia rumo ao mecanismo de Processamento.48 A árvore de placas
direcionais de cada entroncamento era tão detalhada e tão complexa que
parecia feita apenas pra ampliar a confusão de alguém que já não tivesse
certeza de pra onde ia e do porquê. Esse andar tinha piso branco e paredes
com detalhes de um cinza encouraçado, e fortíssimas luzes fluorescentes
embutidas — podia muito bem ser uma galáxia distante do andar logo
acima. A essa altura, é provavelmente melhor manter as explicações o mais
breves e comprimidas possível, em nome do realismo. A verdade de mais
longo prazo é que como acabei me vendo empregado aqui — ou, na
verdade, é melhor dizer que acabei caindo aqui, como uma bola de squash
ou um projétil que quica pra todo lado, depois da série de confusões
administrativas que quase resultaram em acusações disciplinares e/ou
Demissão por Justa Causa nas semanas seguintes ter sido resolvida — seria
fácil impor na planta do Nível 149 e no escritório do RH todo um universo de
detalhes, explicações e contextos que na verdade só fui conhecer depois e
que nem fez parte da minha chegada e daquela correria atrás da Crise
Iraniana. O que é uma esquisitice da memória cronológica — você tende a
colmatar lacunas com dados adquiridos apenas depois, mais ou menos
como o cérebro automaticamente trabalha pra preencher a lacuna visual
causada pela saída do nervo óptico pelo fundo da retina. Como, por
exemplo, no caso de que a loucurada toda na entrada principal do Centro de
Análise e no saguão do térreo, e a longuíssima fila de funcionários cansados
depois de um trajeto considerável, com chapéus, bagagens e pastas marrons
sanfonadas que o Serviço usava pra documentos e determinações de lotação
que agora se estendia (i.e., a fila) até passar por uma das pesadas portas
corta-fogo herméticas50 e chegar à encruzilhada fluorescente do que acabou
revelando ser o centro da célula central do Nível 1, fila esta que consistia de
funcionários recém-lotados e/ou -transferidos que esperavam pra fazer suas
fotos tamanho passaporte e imprimir sua nova identidade do Posto 047 e
plastificar, quando então ela ficaria quente demais pra segurar na mão por
vários minutos, de modo que você via funcionários segurando a identidade
pelo cantinho e sacudindo aqueles cartões no ar pra que esfriassem antes de
prendê-los no bolso com seus clipes-jacaré (como era obrigatório o tempo
todo, quando a serviço)… que todo esse fervilhar em pleno expediente e
toda essa multidão na verdade se deviam a uma grande reestruturação do
Departamento de Adimplência do IRS que estava em curso em todos os CRAs
em funcionamento e em mais da metade de todas as instalações de
Auditoria Distrital (cujos tamanhos variavam muito) em todo o país, e cujo
início estava marcado pra (i.e., o início da reestruturação) exatamente um
mês depois da data final de entrega da declaração de renda da pessoa física,
no dia 15 de abril, de modo a permitir que a gigantesca leva de declarações
tivesse passado pela fase inicial de triagem e processamento nos Centros
Regionais de Serviços51 e que os cheques que vinham com elas tivessem
sido processados e depositados no Tesouro dos EUA através dos mecanismos
dos seis Depósitos Regionais… tudo isso descoberto posterior e
informalmente, em confabulações em Angler’s Cove com Acquistipace,
Atkins, Redgate, Shackleford &c. De modo que teria sido errôneo entrar em
quaisquer detalhes ou explicações substantivas nesse momento, já que
nenhuma dessas verdades existia ainda, em termos realistas. Ou o fato de
que acabou sendo necessário ter uma identidade válida do IRS pra ter acesso
a qualquer ônibus que fizesse o trajeto entre o complexo e qualquer
residência especial de baixo custo nos dois antigos complexos de
apartamentos comerciais na mesma Self-Storage Parkway, o que era uma
determinação nacional dos Sistemas, e portanto era o motivo de não ser
estritamente por culpa do sr. Tate ou do sr. Stecyk que os recém-chegados
se viam forçados a puxar sua matula de um lado pro outro e ficar na fila
com ela enquanto esperavam a foto da identidade e a geração de um número
novinho de Seguro Social &c., ainda que continuasse sendo irritante e
imbecil não ter algum mecanismo em funcionamento pra lidar com a
bagagem dos novos funcionários que ainda não tinham a identidade —
esses fatos todos são pós-datados, por assim dizer.
O que pode ser validamente incluído entre as experiências do primeiro
dia é que eu fiquei naturalmente surpreso — e até um tanto empolgado —
quando fui dispensado da longa e excruciantemente lenta fila que ia do
entroncamento central do Nível 1 até a estação improvisada de
fornecimento de identidades, e acabei sendo levado direto pra frente da fila
da identidade, posei, fui fotografado e recebi meu cartão quente e
olorosamente laminado de identidade e meu clipe-jacaré ali mesmo. (Eu
ainda não sabia o que significava a sequência de nove dígitos abaixo do
código de barras nem que meu antigo número de Seguro Social, que como
cidadão americano com mais de dezoito anos de idade eu sabia basicamente
de cor, nunca mais seria usado por outra pessoa; ele simplesmente
desapareceu, de um ponto de vista identificatório.) Assim como ser
recebido por alguém de alguma autoridade com seu nome empunhado numa
placa, é quase inevitavelmente gratificante ser conduzido de forma especial
pra frente de uma fila, malgrado os olhares ressentidos ou (no meu caso52)
enojados que você recebe das pessoas preteridas na fila que te veem ser
conduzido lá pra frente e liberado de toda a encheção comum e de toda a
espera ali na multidão. Fora que alguns dos novos funcionários ali na fila
eram nitidamente um pessoal de alto nível que estava sendo transferido, e
eu fiquei mais uma vez não só agradecido como curioso, e até apreensivo,
com o tipo de poder político que o parente distante que tinha me ajudado a
conseguir a lotação no fundo teria, e com todo o tipo de informação pessoal
ou biográfica que poderia ter sido transmitida a meu respeito, antes de eu
chegar, e a quem exatamente. Esse dado do tratamento especial é
legitimamente parte da cadeia real de lembranças só se ficar claro que ela
(i.e., minha condução até a frente da fila) aconteceu algo mais tarde,
naquele dia da chegada, depois de Ms. Neti-Neti já ter me levado por um
caminho um pouco diferente que passava por esse entroncamento da célula
central, até o escritório do RH propriamente dito, que ficava num grande
conjunto de salas interligadas e áreas de recepção no canto ou vértice
sudoeste do Nível 1.53 Ela estava com a impressão de que eu deveria ter
algum tipo de audiência pessoal de apresentação com o DSRH,54 mas ou a
Crise Iraniana estava enganada sobre isso, ou os atrasos de trânsito e trajeto
tinham me feito perder o horário da entrevista, ou então algum tipo de crise
de Recursos Humanos tinha obstruído a atenção do DSRH. Pois quando
descemos até aquele andar passamos pelo entroncamento central,
desviamos de várias partes da fila da identidade, passamos por diversas
esquinas recurvadas e labirínticas e abrimos múltiplas portas corta-fogo,
com pausas cada vez mais frequentes pra eu poder redistribuir o peso da
minha bagagem, e quando finalmente chegamos ao escritório de Recursos
Humanos encontramos a sala de espera, os escritórios mais visíveis, o
corredor da copiadora e uma sala especial bissectada com um Univac 1100
e um terminal remoto (conectado, como depois fiquei sabendo, por uma
linha semidúplex de datafone ao Regional de Joliet) do outro lado do
corredor completamente tomado por funcionários do IRS sentados, de pé,
lendo, encarando o vazio, segurando e revirando seus vários chapéus, e (eu
supus — equivocadamente, como se veio a saber, embora também fosse
verdade que Ms. Neti-Neti nada fez pra me corrigir, preferindo desaparecer
num escritório lateral e entrar numa fila de pessoas de paletós azul
brilhantes que queriam falar com um superior do RH55 pra informar a minha
[i.e. do putativo funcionário de elite transferido] chegada e receber
instruções sobre o procedimento quando da ausência da entrevista especial.
Foi essa DRH assistente que assinou o Fomulário Interno 706-CI que
autorizava que eu fosse levado direto pra frente da fila do processamento de
identidades do IRS, ainda que Ms. Neti-Neti tenha precisado de mais de
vinte minutos56 pra chegar à frente da fila do escritório da sra. Van Hool e
lhe apresentar suas dúvidas) sem fazer nada além de ficar ali de bobeira
consumindo o dinheiro dos contribuintes numa clássica situação do tipo
“corra pra ficar esperando”.
Enquanto isso, eu estava compreensivelmente cansado e desorientado, e
também estafado (o que hoje em dia seria chamado de “estresse”), com
fome e mais do que um pouco irritado, e estava sentado numa cadeira de
vinil recém-disponibilizada57 na sala de espera principal, com as malas aos
meus pés e a valise apertada contra o corpo de forma a quem sabe ainda
poder obscurecer a umidade do lado esquerdo do terno, diretamente visível
da mesa da horrenda secretária/recepcionista do DRH, a sra. Sloper, que
nesse primeiro dia me deu o mesmíssimo olhar de desgosto desinteressado
que eu receberia dela pelos próximos treze meses, e estava usando (isso
aposto que não esqueci) um terninho meio lavanda contra o qual o ruge e o
kohl abundantes ficavam ainda mais pavorosos. Ela tinha talvez uns
cinquenta anos, era muito magra e tendinosa, usava o mesmo penteado
assimétrico de colmeia de duas diferentes parentes mais velhas da minha
família e estava maquiada como um palhaço embalsamado, coisa de
pesadelo mesmo. (O rosto dela parecia de alguma maneira sustentado por
alfinetes.) Várias vezes, nos momentos em que se abria uma lacuna na
massa de funcionários que possibilitasse a formação de uma linha de visão
de verdade, essa secretária e eu nos olhamos com ódio e repulsa recíprocos.
Ela talvez até tenha chegado a me arreganhar os dentes por um instante.58
Alguns funcionários sentados ou parados de pé na sala e nos corredores
conectados a ela liam documentos ou preenchiam formulários que podiam
ter algo a ver com o trabalho oficial deles, mas a maioria encarava de um
jeito desligado o vazio ou participava de conversas de escritório, errantes e
inconstantes, o tipo de conversa (como eu vim a saber) que nunca começa e
jamais acaba. Eu sentia o coração bater em dois ou três dos meus cistos
penfigoides na linha da mandíbula, o que significava que aqueles lá iam dar
trabalho. A secretária dos pesadelos de qualquer um tinha um cartão
corporativo bem pequeno na borda da mesa que mostrava uma caricatura
com traços malfeitos de um rosto irritado e, abaixo, a frase “Só me sobrou
um nervo… E VOCÊ ESTÁ DANDO BEM NELE!”, que alguns funcionários
administrativos do meu colégio em Philo também tinham, e cuja
inteligência esperavam que os outros aplaudissem.
O fato de eu estar sendo pago pra ficar aqui sentado lendo um insípido
livro de autoajuda — meu contrato de trabalho com o Serviço tinha
começado legalmente ao meio-dia — enquanto outra pessoa que estava
sendo paga ficava numa longa fila de pessoas igualmente pagas apenas pra
descobrir o que fazer comigo: tudo parecia um desperdício gigantesco, uma
coisa bocó, uma perfeita ilustração da opinião de alguns membros da minha
família de que o governo, a burocracia governamental e a regulamentação
governamental constituíam a forma mais cheia de desperdícios e de
estupidez, e a menos americana, de fazer qualquer coisa, desde a
regulamentação da indústria de café instantâneo até a fluoretação da água.59
Ao mesmo tempo, também havia lampejos de angústia de que o atraso e a
confusão pudessem significar que o Serviço estava considerando talvez me
desqualificar e me ejetar com base em alguma ficha distorcidamente suja
por um suposto comportamento inadequado numa universidade de elite
onde minha matrícula estava trancada, com ou sem sirenes. Como todo
americano sabe, é totalmente possível que o desprezo e a angústia
coexistam no coração humano. A ideia de que as pessoas sentem apenas
uma emoção fundamental a cada momento é mais uma invencionice dos
livros autobiográficos.
Pra resumir, fiquei ali na área principal de espera pelo que me pareceu
um tempo muito longo e tive todo tipo de impressões e reações rápidas e
fragmentárias, das quais incluirei aqui apenas poucos exemplos. Lembro de
ouvir um homem de meia-idade que estava sentado perto de mim dizer
“Sossega o facho, rapá” pra outro camarada de mais idade sentado na minha
diagonal já à porta de um dos corredores que saíam da sala de espera, só
que quando eu levantei os olhos do livro os dois homens estavam olhando
direto para a frente, sem expressão no rosto, sem nenhum sinal de que
alguém precisasse “sossegar o facho” de qualquer maneira concebível.
Emergindo de um dos corredores radiais pra atravessar a periferia da sala de
espera e seguir por outro corredor houve pelo menos uma moça bonita, cuja
palidez cremosa e cujo cabelo cor de cerejeira atado num nó com um laço
de fita comprado pronto que eu enxerguei perifericamente mas que aí
quando olhei diretamente só deu pra ver de costas (i.e., a mulher) enquanto
descia o corredor. Devo confessar que não sei ao certo a que grau de detalhe
me entregar aqui, ou como evitar impor àquela sala de espera e aos vários
membros da equipe de funcionários uma familiaridade conquistada apenas
depois. Dizer a verdade, claro, é bem mais complicado do que entender a
maioria das pessoas normais. Num dos cestos de lixo da sala de espera,
lembro, havia uma lata vazia de refrigerante Nesbitt’s, o que interpretei
como um indício de que as máquinas de vendas do CRA podiam muito bem
incluir uma de Nesbitt’s. Como toda sala lotada no verão, aquela estava
quente e abafada. O cheio de suor no meu terno não era todo meu; minha
lapela larga estava ligeiramente arrebitada nas pontas.
A essa altura, eu tinha retirado o livro barato da minha valise e lia com
uma atenção parcial — o que era só o que aquele livro merecia — enquanto
segurava uma esferográfica entre os dentes. Como já posso ter mencionado
de passagem, eu tinha ganho o livro de um parente próximo no dia anterior
(o mesmo cujo cesto de papéis continha a carta amassada a respeito da
minha lotação no IRS, enviada por aquele outro parente menos próximo) e
seu título era Como fazer as pessoas gostarem de você: uma receita
instantânea para o sucesso profissional, e em essência eu estava “lendo” o
livro apenas pra acrescentar certos comentários marginais acres e cáusticos
ao lado de cada lugar-comum, clichê ou trecho incômodo de bobageira
inventada, o que significava praticamente a cada §. A ideia era mandar o
livro de volta pelo correio pra esse parente próximo dali a uma ou duas
semanas, junto com uma expansiva nota de agradecimento cheia dos gestos
e das táticas recomendadas pelo livro — tais como empregar repetidamente
o primeiro nome da pessoa, enfatizar áreas onde vocês concordavam e
entusiasmos comuns &c. — sarcasmo absurdo que o parente60 só detectaria
quando abrisse o livro e visse a acerba marginália a cada página. Na
universidade uma vez eu fiz um trabalho como freelance pra uma pessoa
matriculada num curso interdisciplinar sobre os “livros de corte” do
Renascimento e a semiótica da etiqueta, e a ideia era aludir a textos como o
Peacham’s Compleat Gentleman e as Cartas a seu filho de Chesterfield na
marginalia de modo a deixar o desdém implícito ainda mais funesto. Mas
era apenas uma fantasia. A verdade é que eu jamais postaria o livro e a
nota; era total perda de tempo.61
As áreas de espera lotadas dos escritórios têm uma coreografia especial, e
eu sei que em dado momento a configuração dos funcionários sentados e
parados de pé se alterou o suficiente pra que eu conseguisse uma visão não
obstruída, por cima do livro, de um pedaço escolhido do interior do
escritório do Diretor Substituto de Recursos Humanos,62 escritório este que
era basicamente um grande cubículo emoldurado de madeira e embutido na
parede dos fundos da sala de espera, com sua entrada logo atrás e logo ao
lado da mesa da secretária/recepcionista dos pesadelos de qualquer um,
posição de onde ela podia facilmente estender (dava pra perceber) e muitas
vezes de fato estendia um braço ossudo cor de lavanda na direção da porta
do DSRH pra evitar que alguém entrasse ou até ficasse ali parado batendo à
porta sem o nihil obstat especial dela. (O que era uma verdadeira lei da
administração burocrática, como acabou se revelando: quanto mais
compassivo e eficiente o burocrata de nível alto, mais desagradável e
cerberósica a secretária que impedia seu acesso a ele.) O telefone
multilinhas da mesa da sra. Sloper tinha um apêndice que permitia que ela o
pousasse (i.e., o apêndice) no ombro e ainda conseguisse usar as mãos pra
tarefas secretariais, sem a violinística contorção do pescoço que é
necessária pra segurar um telefone normal com o ombro. O pequeno
aparato ou apêndice curvilíneo, de plástico castanho, eu acabei descobrindo
que era uma injunção geral da OSHA pra certas classes de funcionários
federais de escritório. Eu nunca tinha visto uma coisa daquelas. A porta do
escritório atrás dela, que estava parcialmente entreaberta, tinha um vidro
jateado no qual estava gravado o nome e o longuíssimo e complexo título
do DSRH (a quem quase todos os fraldinhas de Angler’s Cove se referiam
pela jocosa alcunha de “Sir John Feelgood”, cujos contexto e referência
hollywoodiana levei semanas pra entender [eu abomino filmes comerciais,
na sua imensa maioria]). O ângulo particular da minha linha de visão
passava pela porta parcialmente aberta e cobria uma seção em formato de
cunha da sala atrás dela. Dentro dessa seção havia a visão de uma mesa
vazia com uma placa de nome-e-título tão longa que, verdade seja dita, se
estendia além da largura da mesa nos dois lados (i.e., da mesa), e um
pequeno chapéu de trabalho do tipo coco, ou redondo, pendurado num
ângulo levemente inclinado de um desses lados protuberantes, com sua aba
obnubilando as últimas várias letras da placa de modo que o que o texto ali
na mesa de fato afirmava ficava sendo:
L. M. STECYK COMISSÁRIO REGIONAL ASSISTENTE SUBSTITUTO DE ANÁLISES —
PESSOA, o que num estado de espírito bem diferente podia ter sido
engraçado.
Pra explicar o contexto dessa linha de visão do escritório: mais perto de
mim em termos dos funcionários que ainda estavam ali sentados esperando
alguma coisa havia dois homens deschapelados que ocupavam duas de uma
série de cadeiras de vinil ligeiramente diferentes num ângulo obtuso à
minha esquerda, ambos segurando pilhas de pastas com etiquetas
multicoloridas. Os dois pareciam basicamente em idade universitária e
usavam camisas de mangas curtas, gravatas com nós malfeitos e tênis, o
que contrastava com as roupas muito mais convencionalmente adultas e
empresariais da maioria dos outros ocupantes da sala.63 Esses rapazes,
também, estavam entregues a uma espécie de longa conversa sem rumo.
Nenhum deles estava sentado com as pernas cruzadas; os bolsos da camisa
dos dois tinham fileiras idênticas de canetas. Do meu ângulo de visão, seus
crachás refletiam a luz do teto e era impossível ler o que havia ali. A minha
era a única bagagem por ali, bagagem que estava parcialmente invadindo a
parte do piso da sala que seria do rapaz mais próximo, perto do seu tênis de
marca genérica; mesmo assim nenhum dos dois parecia consciente ou
curioso sobre a bagagem ou sobre mim. Seria normal esperar uma espécie
de instantânea camaradagem tácita entre pessoas mais jovens num ambiente
de trabalho ocupado basicamente por adultos mais velhos — mais ou menos
do jeito que dois negros que não se conhecem muitas vezes fazem questão
de um aceno de cabeça um pro outro ou de dar um jeito de reconhecer de
maneira especial a presença do outro se todo mundo em volta deles for
branco — mas aqueles dois agiam como se não houvesse ali alguém meio
que da idade deles, mesmo depois de eu levantar a cabeça do Como…
profissional duas vezes e olhar claramente na direção deles. Não tinha nada
a ver com a coisa da pele; eu tinha uma boa antena pras diversas formas de
(e motivos pra) não ser objeto de olhares atentos. Aqueles dois pareciam ter
prática em barrar dados do mundo exterior em geral, mais ou menos como
os passageiros de metrô das grandes cidades da Costa Leste. O tom deles
era franco. P. ex.:
“Como é que você pode ser sempre tão obtuso?”
“Eu, obtuso?”
“Jesus amado.”
“Eu não tenho consciência de ser nem um pouquinho obtuso.”
“…”64
“Eu nem sei do que você está falando.”
“Santo Deus.”
… mas eu não conseguia determinar se era uma discussão séria ou só
sacanagem de universitários pra passar o tempo. De início parecia
impossível acreditar que o segundo rapaz não tivesse consciência de que
suas afirmações de não ter consciência de ser obtuso caíam como uma luva
no argumento do colega que o acusava de obtusidade, i.e., de não ter
consciência das coisas. Eu não sabia ao certo se podia rir, em outras
palavras. Eu tinha chegado a um § do livro que explicitamente
recomendava rir alto da piada de um membro de um grupo como forma
mais ou menos automática de demonstrar seu desejo de ser incluído ou de
solicitar inclusão no grupo, pelo menos no que se refere a conversas; a
ilustração tosca era um boneco de palito de alguém parado junto de um
grupo de pessoas num coquetel ou numa recepção (todos seguravam o que
eram ou balões de conhaque bem rasos ou taças de martíni mal
desenhadas). Só que os vira-bostas nem viraram pra mim nem deram
mostras de perceber minha risada, que foi definitivamente alta o suficiente
pra poder ser ouvida contra o ruído de fundo. Sendo a questão aqui que foi
numa extensão do ângulo por sobre o ombro do vira que negava ter sido
obtuso, mais ou menos fingindo que olhava alguma outra coisa atrás deles
como faz alguém cuja tentativa de estabelecer contato visual ou algum
momento de camaradagem acaba de ser recusada, que eu pude ter uma
visão momentânea do escritório de fato do DSRH, em cuja visão a mesa
estava vazia, mas o escritório não, pois diante da mesa um homem estava
agachado diante de uma cadeira onde outro homem65 estava dobrado66 pra
frente com as mãos no rosto. A postura, junto com o movimento dos
ombros do paletó, deixavam mais do que claro que o segundo homem
estava chorando. Ninguém mais na multidão de funcionários na sala de
espera ou de pé nas filas, que agora se estendiam para além dos três
estreitos corredores67 até a sala de espera, parecia consciente naquele
momento dessa pequena cena ou do fato de que a porta do escritório do
DSRH estivesse parcialmente aberta. O chorador estava com o rosto desviado
de mim na maior parte do tempo,68 mas o homem agachado diante dele com
uma mão no seu ombro estofado e dizendo alguma coisa no que dava pra
ver que não era um tom não gentil tinha um largo rosto enrubescido ou
arroseado com bastas e (eu achei) incongruentes costeletas, um rosto
ligeiramente anacrônico que, quando seus olhos viram os meus (tendo eu
esquecido, de interessado que estava, que as linhas de visão são por
definição vias de mão dupla) no mesmo momento em que a odienta
secretária, ainda falando ao telefone, agora me via fitando alguma coisa
atrás dela e estendia o braço sem nem ter que olhar para a porta ou a
posição da maçaneta para conseguir fechá-la com um som enfático, abriu-se
(o rosto do admistrador abriu-se, i.e., o rosto do sr. Stecyk) numa
involuntária expressão de compaixão e simpatia, uma expressão que parecia
quase comovente em sua espontaneidade e candura nada consciente de si
própria, que, conforme explicado acima, era algo a que eu não estava nem
remotamente acostumado e algo a que eu não tenho a menor ideia de como
meu rosto reagiu naquele momento do que pareceu um contato visual de
alta voltagem antes que seu rosto tocado fosse substituído pelo vidro
jateado da porta e de meus próprios olhos terem mais uma vez mergulhado
no livro. Eu não tinha passado por uma situação em que a minha pele facial
tivesse assumido uma expressão como aquela, nunca, e foi a expressão
suave e burocraticamente terna daquele rosto que ficou se projetando na
minha mente, na escuridão do armário de fusíveis enquanto a testa da Crise
Iraniana impactava meu abdome doze vezes em rápida sucessão e em
seguida recuava pra uma distância receptiva que pareceu, naquele instante
prenhe, muito mais afastada do que poderia ser, em termos de realismo.
§ 25

O “Irrelevante” Chris Fogle vira uma página. Howard Cardwell vira uma
página. Ken Wax vira uma página. Matt Redgate vira uma página. Bruce
“Brasa, mora” Channing apende um formulário a um processo. Ann
Williams vira uma página. Anand Singh vira por engano duas páginas de
uma vez e vira uma de volta, o que faz um som um pouco diferente. David
Cusk vira uma página. Sandra Pounder vira uma página. Robert Atkins vira
duas páginas diferentes de dois arquivos diferentes ao mesmo tempo. Ken
Wax vira uma página. Lane Dean Jr. vira uma página. Olive Borden vira
uma página. Chris Acquistipace vira uma página. David Cusk vira uma
página. Rosellen Brown vira uma página. Matt Redgate vira uma página. R.
Jarvis Brown vira uma página. Ann Williams funga de leve e vira uma
página. Meredith Rand faz alguma coisa com uma cutícula. O “Irrelevante”
Chris Fogle vira uma página. Ken Wax vira uma página. Howard Cardwell
vira uma página. Kenneth “Meio Que Assim” Hindle destaca um
Memorando 402--C(1) de uma ficha. Bob “Segunda junta” Mckenzie
levanta brevemente os olhos enquanto vira uma página. David Cusk vira
uma página. Um bocejo desce uma das colunas do Tento por influência
inconsciente. Ryne Hobratschk vira uma página. Latrice Theakston vira
uma página. A Sala 2 do grupo moleza em silêncio e sob uma luz forte,
meio campo de futebol americano de comprimento. Howard Cardwell muda
um pouco de posição na cadeira e vira um página. Lane Dean Jr. passa o
dedo da aliança pelo contorno da mandíbula. Ed Shackleford vira uma
página. Elpidia Carter vira uma página. Ken Wax anexa um Memorando 20
a um processo. Anand Singh vira uma página. Jay Landauer e Ann
Williams viram uma página quase precisamente em sincronia, embora
estejam em colunas diferentes e não possam ver um ao outro. Boris Kratz
balança com um movimento levemente chassídico enquanto cruza os dados
de uma página com uma coluna de cifras. Ken Wax vira uma página.
Harriet Candelaria vira uma página. Matt Redgate vira uma página.
Temperatura ambiente no cômodo em 27 graus. Sandra Pounder faz uma
minúscula correção numa ficha para que a página que está olhando fique
num ângulo ligeiramente diferente em relação a ela. O “Irrelevante” Chris
Fogle vira uma página. David Cusk vira uma página. O hemisfério dos dois
andares de nichos de cada mesa. Bruce “Brasa, mora” Channing vira uma
página. Ken Wax vira uma página. Seis fraldinhas por Tento, quatro Tentos
por Equipe, seis Equipes por Grupo. Latrice Theakston vira uma página.
Olive Borden vira uma página. Fora Administração e Apoio. Bob
McKenzie vira uma página. Anand Singh vira uma página. Chris “O
maestro” Acquistipace vira uma página. David Cusk vira uma página.
Harriet Candelaria vira uma página. Boris Kratz vira uma página. Robert
Atkins vira duas páginas diferentes. Anand Singh vira uma página. R. Jarvis
Brown descruza as pernas e vira uma página. Latrice Theakston vira uma
página. O lento ranger do carrinho do menino de carga no fundo da sala.
Ken Wax coloca uma ficha no topo da pilha da caixa “Para o Carrinho” à
sua direita, acima. Jay Landauer vira uma página. Ryne Hobratschk vira
uma página e em seguida dobra uma folha impressa no computador que está
alinhada ao lado do processo original de que ele acaba de virar uma página.
Ken Wax vira uma página. Bob McKenzie vira uma página. Ellis Ross vira
uma página. Joe “Fidaputa” Biron-Maint vira uma página. Ed Shackleford
abre uma gaveta e para um minutinho pra escolher o clipe de papel perfeito.
Olive Borden vira uma página. Sandra Pounder vira uma página. Matt
Redgate vira uma página e aí quase imediatamente vira outra. Latrice
Theakston vira uma página. Paul Howe vira uma página e aí cheira de
maneira circunspecta a meiazinha de borracha que tem na ponta do
mindinho. Olive Borden vira uma página. Roselle Brown vira uma página.
Ken Wax vira uma página. Demônios na verdade são anjos. Elpidia Carter e
Harriet Candelaria estendem a mão para suas caixas “Do Carrinho”
exatamente ao mesmo tempo. R. Jarvis Brown vira uma página. Ryne
Hobratschk vira uma página. Ken “Meio Que Assim” Hindle verifica um
código de encaminhamento. Alguns com a mão no queixo. Robert Atkins
vira uma página ainda enquanto analisa algo naquela mesma página. Ann
Williams vira uma página. Ed Shackleford procura um documento
comprobatório num dos processos. Joe Biron-Maint vira uma página. Ken
Wax vira uma página. David Cusk vira uma página. Lane Dean Jr.
arredonda os lábios e respira fundo, para dentro e para fora, assim, e se
debruça sobre um novo processo. Ken Wax vira uma página. Anand Singh
fecha e abre sua mão dominante diversas vezes enquanto analisa um
músculo do braço. Sandra Pounder se endireita um pouco e balança a
cabeça num arco de alongamento de pescoço e se inclina para a frente para
analisar uma página. Howard Cardwell vira uma página. Quase todos
sentam bem retos mas se inclinam da cintura para a frente, o que reduz a
fadiga no pescoço. Boris Kratz vira uma página. Olive Borden ergue a
tampinha articulada de sua caixa de 402-C, que está vazia. Ellis Ross
começa a virar uma página e então se detém para reanalisar alguma coisa
mais no alto da página. Bob McKenzie puxa catarro sem levantar os olhos.
Bruce “Brasa, mora” Channing cutuca o lábio inferior com o clipe de bolso
de uma caneta. Ann Williams funga e vira uma página. Matt Redgate vira
uma página. Paul Howe abre uma gaveta, olha lá dentro e fecha a gaveta
sem tirar nada dali. Howard Cardwell vira uma página. O revestimento de
duas paredes pintado de rosa Baker-Miller. R. Jarvis Brown vira uma
página. Um Tento por fileira, quatro fileiras por coluna, seis colunas.
Elpidia Carter vira uma página. Os lábios de Robert Atkins se movem sem
som. Bruce “Brasa, mora” Channing vira uma página. Latrice Theakston
vira uma página com uma longa unha roxa. Ken Wax vira uma página.
Chris Fogle vira uma página. Rosellen Brown vira uma página. Chris
Acquistipace assina um memorando 20. Harriet Candelaria vira uma
página. Anand Singh vira uma página. Ed Shackleford vira uma página.
Dois relógios, dois fantasmas, um acre quadrado de espelho oculto. Ken
Wax vira uma página. Jay Landauer passa distraído a mão no rosto. Toda
história de amor é uma história de fantasmas. Ryne Hobratschk vira uma
página. Matt Redgate vira uma página. Olive Borden fica de pé e levanta a
mão com três dedos estendidos para o menino de carga. David Cusk vira
uma página. Elpidia Carter vira uma página. Temperatura/umidade exterior
35o/74%. Howard Cardwell vira uma página. Bob McKenzie ainda não
cuspiu. Lane Dean Jr. vira uma página. Chris Acquistipace vira uma página.
Ryne Hobratschk vira uma página. O carrinho vem pela direita da sala do
grupo com sua rodinha rangente. Dois outros na fileira do terceiro Chalk
também ficam de pé. Harriet Candelaria vira uma página. R. Jarvis Brown
vira uma página. Paul Howe vira uma página. Ken Wax vira uma página.
Joe Biron-Maint vira uma página. Ann Williams vira uma página.
§ 26

Uma ou duas palavrinhas sobre o fenômeno dos “espectros” que é parte


tão central do folclore do pessoal da Análise. Os espectros dos analistas não
são iguais a fantasmas de verdade. O Espectro se refere a um tipo particular
de alucinação que pode afetar os analistas moleza depois de um certo limiar
de tédio concentrado. Ou, melhor, digamos que o desgaste de tentar
permanecer alerta e detalhista diante do tédio extremo pode atingir níveis
nos quais ocorrem rotineiramente alguns tipos de alucinação.
Uma dessas alucinações é o que se conhece nas Análises como uma
visita do espectro. Às vezes só uma visita, assim: “Você tem que perdoar o
Blackwelder. Ele recebeu uma visitinha hoje de tarde, por isso aquele
tique”. Embora quase todos os analistas moleza acabem sofrendo
alucinações num ou noutro momento, nem todo analista é visitado. Só
alguns tipos psicológicos. Um jeito de você saber que eles não são
fantasmas de verdade: o espectro de cada pessoa visitada é diferente, mas
seu traço comum é que os espectros são sempre profunda, diametralmente
diferentes das pessoas que visitam. Por isso são tão amedrontadores. Eles
tendem a se apresentar como irrupções do lado reprimido de uma
personalidade muito rígida e disciplinada, o que os analistas talvez
chamassem de sombra da pessoa. Fraldinhas hipermasculinos recebem
visitas de bichas afetadas de lingerie e cobertas por várias camadas de rouge
e rímel de teatro de revista, pura veadagem. Fraldinhas devotos enxergam
demônios; os pudicos veem meretrizes de pernas abertas ou priapísticos
peões. Os imaculadamente higiênicos recebem visitas de figuras imundas
cuja roupa fervilha de pulgas; os mais chatos e organizadinhos veem figuras
choraminguentas descabeladas com barbantes amarrados nos dedos e que
reviram freneticamente os nichos da Tingle em busca de algo de
importância crucial que não sabem onde puseram.
Não é que aconteça todo dia. Os espectros afligem principalmente certos
tipos. Não é assim com fantasmas de verdade.
Fantasmas são diferentes. A maioria dos analistas com alguma
experiência acredita no espectro; poucos conhecem ou acreditam em
fantasmas propriamente ditos. Isso é compreensível. Fantasmas, afinal,
podem ser confundidos com espectros. De certa maneira, os espectros
servem como um pano de fundo que distrai ou como uma camuflagem em
meio à qual pode ser difícil perceber o padrão de fatos que corresponde aos
fantasmas propriamente ditos. É como a velha piada cinematográfica de
alguém que no Dia das Bruxas recebe a visita de um fantasma de verdade e
cumprimenta o que acha ser uma criança com uma fantasia incrível.
A verdade é que existem dois fantasmas reais, não alucinatórios,
assombrando o fraldário do Posto 047. Ninguém sabe se eles também
existem nas Células Imersivas; essas células são mundos à parte.
Os nomes dos fantasmas são Garrity e Blumquist. Muito do que se segue
foi fornecido posteriormente por Claude Sylvanshine. Blumquist é um
analista muito água com açúcar, sem graça e eficiente que morreu em sua
mesa, sem ser notado, em 1980. Alguns analistas mais antigos chegaram até
a trabalhar com ele nas molezas lá pelos anos 70. O outro fantasma é mais
velho. O que significa que vem de um período histórico anterior. Garrity
obviamente foi inspetor de produção da Espelharia Meio-Oeste na metade
do século XX. Seu trabalho era analisar cada espelho de determinado modelo
decorativo que saía da linha de produção, à procura de defeitos. Um defeito
era normalmente uma bolha ou irregularidade no fundo de alumínio do
espelho que fazia a imagem se distender ou se distorcer de alguma maneira.
Garrity tinha vinte segundos para analisar cada espelho. A psicologia
industrial na época era uma disciplina primitiva, e havia pouca
compreensão de tipos não físicos de estresse. Basicamente, Garrity ficava
sentado num banquinho ao lado de uma esteira vagarosa e movia a parte
superior do corpo num complexo sistema de quadrados e formatos de
borboleta, verificando bem de perto o reflexo do próprio rosto. Fez isso três
vezes por minuto, 1440 vezes por dia, 356 dias por ano, durante dezoito
anos. Mais para o fim ele obviamente movia o corpo naquele complexo
sistema inspetorial de quadrados e formatos de borboleta até quando estava
de folga e não havia espelhos por perto. Em 1964 ou 1965 ele
aparentemente se enforcou num cano de aquecimento do que é hoje o
corredor norte que sai do fraldário do Anexo do CRA. Dos funcionários do
047, só Claude Sylvanshine sabe alguma coisa mais detalhada sobre
Garrity, que ele na verdade nunca viu — e também quase tudo que o
Sylvanshine diz são dados repetitivos sobre o peso, o tamanho do cinto de
Garrity, a topologia dos defeitos ópticos e o número de movimentos
necessários para você fazer a barba de olhos fechados. Entre os dois
fantasmas do fraldário, Garrity é o mais fácil de ser confundido com um
espectro porque ele não para de falar e distrair e com isso fraldinhas que
fazem força para manter a concentração vivem pensando que ele é o
renitente macaco interior do lado negro e autodestrutivo da própria
personalidade deles.
Blumquist é diferente. Quando Blumquist se manifesta no ar em torno de
um analista, ele basicamente fica ali sentado com você. Em silêncio, sem se
mexer. Só uma leve translucidez em Blumquist e na sua cadeira trai algo de
anormal. Ele não enche. Não fica te encarando de um jeito incômodo. Você
fica com a impressão de que ele simplesmente curte ficar ali. Com a
impressão de que ele é um tantinho triste. Tem uma testa alta e olhos doces
que seus óculos ampliam. Às vezes está de chapéu; às vezes segura o
chapéu pela aba enquanto fica sentado. Tirando os analistas que têm
espasmos com qualquer tipo de aparição — esses são tipos rígidos e frágeis
que de qualquer maneira estão prontinhos pra uma visita de um espectro,
então a coisa é meio que um círculo vicioso —, tirando esses, quase todos
os analistas aceitam ou até gostam de uma visita de Blumquist. Ele parece
favorecer alguns, mas é bem democrático. Os fraldinhas o acham sociável.
Mas ninguém jamais fala dele.
§ 27

A sala de orientação das Molezas ficava no último andar do prédio do


CRA. Dava pra ouvir o som das agulha das impressoras — logo ao lado

ficavam os Sistemas. David Cusk tinha escolhido uma cadeira quase no


fundo, embaixo de uma saída do ar-condicionado que não bagunçava as
páginas de seu material de treinamento e do Código Tributário. Era ou uma
sala grande ou um auditório pequeno. A sala tinha uma iluminação
fluorescente forte e era ominosamente quente. Uns blecautes industriais
estavam abaixados diante dos grandes conjuntos de janelas, mas dava pra
sentir o calor do sol irradiando dos blecautes e do teto de Celotex. Havia
catorze novos analistas numa sala que acomodaria 108, sem contar o palco
elevado com o parlatório e o projetor de slides de carrossel, que os pais de
Cusk tinham um quase igualzinho.
A responsável pelo treinamento de Adimplência era uma mulher de
cabelo liso, terninho marrom e sapato baixo, com dois crachás diferentes de
cada lado do paletó. Segurava uma prancheta contra o peito e tinha uma
varinha de apontar na mão. Na sala havia um quadro branco, em vez de
uma lousa de giz. Sob a luz da sala, o rosto dela ficava cor de sebo. Era
auxiliada por um dos funcionários do RH do Posto, cujo paletó azul brilhante
era curto demais e mostrava os ossos dos seus pulsos. Perto de Cusk não
havia ninguém num raio de seis carteiras parafusadas ao chão em qualquer
direção, e ele também tinha tirado o paletó como as outras três pessoas
sentadas ali. Os analistas que tinham acabado de chegar hoje estavam com a
bagagem bem empilhadinha no outro extremo da sala. Cusk tinha dois lápis
na bolsa, os dois sem borracha e tão violentamente mastigados que não
dava pra saber de que cor eles um dia tinham sido. Estava à beira de um
ataque como o que teve no carro com o sujeito com aquela cara horrorosa
que parecia gratinada olhando pra ele enquanto sua temperatura saltava e
ele teve que se controlar pra não passar por cima do cara e arranhar a janela
em busca de um pouco de ar. Quase como aquela outra coisa uma hora
depois na fila do crachá, onde após ter ficado na fila por alguns minutos ele
ficou preso e não conseguia sair da fila sem que o cara do paletó azul lhe
fizesse um monte de perguntas que as outras pessoas da fila iam ouvir e
acabar olhando, e quando chegou a vez de ele se pôr ali sob as duas
lâmpadas quentes, ele tinha feito aquilo de tirar o cabelo da testa tantas
vezes que o cabelo ficou quase em pé, o que ele não percebeu até que a
identidade saiu toda quente da plastificadora e ele viu a foto.
Como Cusk descobriu no ano em que suas notas subiram no ensino
médio, suas chances de um ataque seriam minimizadas se ele prestasse
muita atenção, muito concentradamente, no que estava acontecendo fora
dele. Ele tinha um profissionalizante em contabilidade do Elkhorn-
Brodhead Community College. O problema era que depois de um certo
nível de preocupação era difícil prestar atenção em qualquer coisa que não
fosse a ameaça de um ataque. Prestar atenção em qualquer coisa que não
fosse o medo era como içar alguma coisa pesada com uma corda e uma
roldana — dava pra fazer, mas exigia esforço, e você cansava, e assim que
relaxasse um segundo estava de novo prestando atenção na última coisa que
queria lembrar.
No quadro branco estava o acrônimo SHEAM, que ainda não tinha sido
definido. Alguns analistas estavam sendo transferidos de outras lotações ou
tinham passado pelos cursos de treinamento de doze semanas do IRS em
Indianápolis ou em Rotting Flesh, LA. A orientação deles era em outro lugar,
e mais curta.
As mesinhas ficavam parafusadas na lateral das cadeiras e forçavam as
pessoas a sentar de uma maneira muito singular. Pequenas luminárias
flexíveis ficavam parafusadas à lateral da mesinha no lugar em que uma
pessoa destra precisaria colocar o cotovelo pra tomar notas.
O quadro branco era bem pequeno, e os novos GS-9s tinham que consultar
um libretinho impresso pra ver alguns diagramas que ilustravam os
procedimentos que a Responsável pelo Treinamento estava explicando.
Muitos desses diagramas eram tão complicados que ocupavam mais de uma
página dupla e precisavam continuar em páginas posteriores.
Primeiro eles tinham que preencher formulários. Um sujeito oriental
recolheu os formulários. O pessoal da orientação nitidamente achava que as
sessões de treinamento funcionavam melhor e eram mais fáceis pros
envolvidos se a apresentação não fosse solo. Não era o que Cusk sentia. O
que ele sentia era que o cara dos pulsos e do pomo de adão proeminente
ficava interrompendo e fazendo comentários desnecessários que o
distraíam. Era muito mais fácil e muito mais seguro pro David Cusk prestar
atenção só numa coisa externa de cada vez.
“Uma das coisas que vocês vão ouvir falar muito são as cotas. Nas salas
de intervalo, no bebedouro.”
“O Centro não tem ilusões no que se refere a fofocas e diz que diz que.”
“Os analistas mais velhos gostam de contar umas histórias mirabolantes
de como eram as coisas no passado inglório.”
“Em nível público, o Serviço sempre negou as cotas como formas de
avaliação de desempenho no trabalho.”
“Porque uma das coisas que vocês devem estar pensando, porque é
natural, é: Como é que o meu trabalho vai ser avaliado? No que vão se
basear as minhas avaliações trimestrais e anuais de desempenho?”
O ossudo colocou um ponto de interrogação no quadro branco. Os pés de
Cusk estavam quentes dentro da botinha social, um dos pés com um raspão
que tinha sido cuidadosamente coberto com caneta preta.
A Responsável pelo Treinamento disse: “Digamos, como hipótese, que
num certo momento houve cotas”.
“Mas cotas de quê?”
“Em 1984 o Serviço processou um total de mais de sessenta milhões de
1040s de pessoas físicas. Existem seis Centros Regionais de Serviço e seis
Centros Regionais de Análise. Façam as contas.”
“Bom, em 1984, este Posto aqui teve um fluxo anual de 768 400
declarações.”
“Pode parecer que essa conta não fecha.”
“Isso é porque não são sessenta milhões divididos por doze.”
“Isso desconsidera o fator Martinsburg.”
O Manual do Funcionário que eles receberam continha uma foto colorida
do Centro Nacional de Computação do Serviço, em Martinsburg, WV, cujo
perímetro era delimitado por uma cerca tripla com uma das camadas
eletrificadas, cuja base tinha que ser varrida todas as manhãs durante as
migrações equinociais de aves.
O problema era que a tela do projetor de slides baixava na frente do
quadro branco, de modo que tudo que estivesse escrito no quadro ficava
oculto quando um diagrama ou um esquema tinha que ser projetado. Além
disso, a tela parecia ter algum problema na trava de rolagem e não ficava
esticada, então o assistente de RH tinha que se abaixar e ficar segurando a
argolinha pra deixar a tela em posição enquanto mantinha sua sombra fora
da tela, o que praticamente exigia que ele ficasse de joelhos. A imagem na
tela do projetor de slides era um mapa grosseiro dos Estados Unidos com
seis pontinhos em diferentes locais cujos nomes ficavam borrados demais
no raio difratado do projetor pra permanecerem legíveis. Cada ponto tinha
uma linha com uma seta que levava a um ponto quase na e um pouco
abaixo da metade do litoral da Costa Atlântica. Alguns dos novos analistas
ali na sala tomavam notas a respeito da imagem, embora Cusk não pudesse
imaginar o que haveria nas notas.
“Digamos que uma declaração 1040 com solicitação de restituição chega
ao Centro de Serviço da Região Oeste, em Ogden, Utah.” A moça apontou
pro bloco que ficava mais à esquerda. O homem ergueu um cartão holerite,
cuja sombra na tela era como se fosse o dominó mais complicado de todos
os tempos.
Um dos blecautes das janelas estava levemente torto no rolo, e pela fresta
resultante um plano da luz da face sul empalava a direita da tela. Uma série
de fotografias em preto e branco começou a circular pelo projetor
automático com tanta velocidade e tão baixa resolução por causa do sol que
não podiam ser precisamente decifradas. Parecia haver duas fotos
descabidas de uma cena de praia, ou de lago, mas elas passaram rápido
demais pra ver.
“É claro que o CRS de vocês fica em East St. Louis”, o homem disse dali
onde estava, abaixado na parte inferior da tela. Ele tinha um sotaque
regional que Cusk não identificava.
“Durante a temporada de processamento intensivo…”
“E nós estamos bem no finzinho dela…”
“O procedimento é basicamente este. Funcionários temporários retiram
os fardos pré-enfardados de envelopes dos caminhões especiais, retiram os
lacres dos feixes e passam os envelopes para um processador automático de
correspondência, conhecido como PAC, que é uma das mais recentes
contribuições da Divisão de Sistemas para velocidade e eficiência do
processamento de declarações, com um pico de quase trinta mil envelopes
por hora.” Uma foto publicitária da Fornix Industries, de uma máquina do
tamanho de uma sala, com numerosas esteiras, lâminas e lâmpadas já tinha
passado pelo ciclo da tela várias imagens antes. “Os processos
automatizados do PAC incluem a triagem, a abertura com lâminas fresadoras
de alta velocidade, leitura dos códigos na borda das diferentes declarações,
separação das declarações por esteiras em que outros funcionários
temporários as abrem manualmente…”
“Os envelopes vazios passam então por um fotoescaneamento para
garantir que estejam vazios, um elemento que solucionou diversos
problemas do passado.”
(Quase todas as imagens pareciam ser de um monte de gente à toa numa
sala enorme com montes de cestos e mesas. Os slides estavam tão fora de
sincronia com as informações que iam sendo apresentadas que era
impossível prestar atenção nas duas coisas — a maioria dos fraldinhas
desviava os olhos da tela.)
“Quando os envelopes são abertos, a primeira tarefa é retirar todos os
cheques e ordens de pagamentos que estejam ali. Eles são agrupados,
registrados e enviados por correio expresso até o depósito federal mais
próximo, que no caso da Região Oeste é Los Angeles. As declarações
propriamente ditas são agrupadas de acordo com cinco tipos e situações de
base.” O homem largou a tela, que ascendeu com um estalo que fez as
pessoas das primeiras fileiras darem um salto. O projetor ainda estava
ligado e uma foto de várias negras com óculos de armação de chifre
digitando dados se sobrepôs à Responsável pelo Treinamento enquanto ela
apontava os códigos pras declarações de pessoas jurídicas, 1120; de trustes
e espólios, 1041; sociedades, 1065; e as muito bem conhecidas pessoas
físicas, 1040 e 1040A; fora as empresas sujeitas à tributação S, que também
preenchiam as 1120s.
“Dessas todas, vocês só vão lidar com as declarações de pessoa física.”
“As corporativas e fiduciárias — que, como vocês sabem, são as que se
referem a espólios e trustes — são processadas em nível distrital.”
O sujeito do RH, que estava tentando desligar o projetor de slides, disse:
“E as 1040s se dividem em simples e Gordas — com as Gordas incluindo
os perfis acima de A, B e C, ou um excesso de documentos comprobatórios
ou anexos com um total de mais de três páginas conforme a impressão de
Martinsburg”.
“Só que a gente ainda nem falou da parte de Martinsburg no processo
todo”, a RT disse.
“A questão para vocês é que as análises das 1040 são divididas em
Molezas e Gordas, e vocês vão trabalhar com as simples, que são as 1040s e
1040As relativamente simples, daí serem Análises Moleza. As Gordas são
feitas nas Análises Imersivas, onde trabalham pessoas mais… seniores, que
em certos organogramas regionais também lidam com as 1065s e com as
1120Ss para certas classes de empresas de tributação S.”
A moça mostrou a mão de uma forma que representava aquiescência.
Cusk percebeu que basicamente toda informação que a equipe de
treinamento estava oferecendo também estava no pacote de orientação,
embora a equipe estivesse apresentando aquilo de maneira diferente. A
cadeira dele ficava na terceira fileira a contar do fundo, e bem à direita. Seu
medo de um ataque tinha se reduzido consideravelmente graças ao fato de
que ninguém estava em volta, em posição de olhar de perto pra ele. Um ou
dois dos novos analistas mais à frente estavam sentados na coluna planar de
sol que entrava pelo blecaute danificado. Cusk fazia muita força pra não
imaginar o quanto aqueles recém-contratados ou -promovidos deviam estar
sentindo mais calor, já que tinha consciência de que outras pessoas não
sofriam de ansiedade fóbica pelos ataques, que se combinava com termos
como obsessão ruminativa, hiperidrose e loop de estimulação do sistema
nervoso parassintético num autodiagnóstico a que ele tinha chegado depois
de montes de horas de pesquisa secreta — ele até chegou a se matricular em
disciplinas de psicologia pelas quais não tinha o menor interesse, pra criar
uma fachada plausível pra pesquisa — na biblioteca do Elkhorn-Brodhead
Community College, e a consciência de sua ansiedade particular era um dos
vinte e dois fatores identificados como capazes de aumentar a probabilidade
de um ataque, ainda que não fosse um fator superdeterminante. O som da
porta fechando atrás dele foi o que primeiro chamou a atenção de David
Cusk pro fato de que a mudança que tinha sentido na pressão não se devia
ao início do funcionamento do ar-condicionado da sala pressurizada, mas à
entrada de alguém, se bem que virar a cabeça pra ver quem tinha entrado
fosse uma forma garantida de chamar pra si a atenção daquela pessoa, o que
era imprudente porque havia uma chance razoável de que a pessoa
retardatária sentasse atrás dele, perto da porta por onde ele tinha entrado
quando chegou, e Cusk não apreciava a ideia de uma pessoa com quem
tinha feito contato visual sentada atrás dele e possivelmente olhando a parte
de trás de seu cabelo, que ainda estava úmida de um jeito suspeito. Só dele
pensar na possibilidade de ser visto já bastava pra fazer uma pequena onda
repercussiva de calor percorrer o corpo de Cusk, e ele podia sentir seletos
alfinetes de suor despontando pelo seu couro cabeludo e logo abaixo da
pálpebra inferior, que eram os lugares onde o suor normalmente aparecia
primeiro.
Cusk percebeu que também tinha perdido um minuto ou mais da
apresentação de treinamento, à qual agora devolveu sua atenção com uma
força quase palpável. A RT estava se referindo a cartões de controle e maços
de declarações que seriam enviados a algum lugar que Cusk deduziu que
podia muito bem ser ainda lá no Centro de Serviço.
“Elas são numeradas de acordo com o lote e então enviadas para o
processamento de cartões perfurados.” Ela acentuava as sílabas tônicas com
sua varetinha apontadora, que tinha aproximadamente o dobro do
comprimento de uma batuta de maestro.
“Tanto via perfuração manual quanto via códigos binários especializados,
os operadores GS-9 de cartões conseguem analisar cada declaração e gerar
um cartão de leitura com 512 pontos de dados a partir do número de
identidade do contribuinte…”
“Que vocês podem ouvir ser chamado de NIC, ou Número de Identidade
do Contribuinte…” O homem até se deu ao trabalho de escrever isso tudo
no quadro branco enquanto a RT da Adimplência mostrava dois cartões que
pareciam basicamente idênticos dali de onde Cusk estava olhando.
“Por favor, percebam que tanto os Centros de Serviço quanto
Martinsburg passaram pra cartões de noventa colunas”, a moça disse,
“aumentando assim o poder computacional do SID do Serviço, ou Sistema
de Integração de Dados.” O projetor passou pra uma imagem do que
pareciam ser mais ou menos os mesmíssimos cartões que a GS-11 estava
mostrando, embora os furos no cartão de retângulos fossem redondos. A
logomarca da Fornix Corporation ao lado era quase tão grande quanto a
imagem do cartão. “Isso, em alguns casos, pode afetar o leiaute do impresso
que vocês vão receber junto com cada declaração que vão analisar pra
possível auditoria.”
“Porque é isso que vocês fazem”, o assistente de RH disse. “Analisar
declarações pra estabelecer seu potencial de auditoria.”
“Coisa que nós vamos abordar daqui a exatamente oito minutos”, a RT

disse, olhando meio feio pro assistente de RH.


Cusk primeiro percebeu um cheiro anormalmente agradável que provinha
de algum ponto atrás de si, mais agradável que o ar processado da sala e
consideravelmente melhor que o aroma vago de queijo cheddar que ele
imaginava sair de sua camisa úmida.
“Se as especificações dos cartões afetarem a sua SID-360 de maneira
significativa, vocês vão receber um treinamento adicional sobre isso com o
Gerente do seu Grupo.”
“O Gerente de Grupo é o supervisor do Líder da Equipe de vocês”, disse
o assistente de RH.
“De maneira geral, os dados incluem NIC, código ocupacional,
dependentes, classificação de renda e deduções, quantias nos W-2s e 1099s
anexados e informações similares.”
“Isso é pura transcrição”, o homem disse. “Não há análise nessa fase.”
“Aí eles são transportados para Martinsburg, onde Leitoras de Cartão
transferem a informação para Computadores Centrais, que verificam erros
de aritmética, conferem os W-2s com os dados da declaração de renda…”
“E verificam discrepâncias bem básicas, que são registradas no impresso
interno que acompanha cada declaração.”
“Esses impressos são conhecidos como “Memorandos Internos de 1040-
M1s” ou simplesmente “M1s.”
“Ainda que acrescentados ao 1 venham os últimos dois dígitos do ano-
base da declaração; por exemplo, um 1040-M1-84 é um impresso referente
a uma Declaração 1040 de Pessoa Física do ano de 1984.”
“Ainda que esses números se refiram à classificação da declaração nos
Arquivos Máster, o próprio impresso não tem uma designação codificada
sua.”
“Nos Arquivos Máster, a localização de uma dada declaração seria 1040-
M1-79 mais o NIC do contribuinte, então seria na verdade um designador de
dezessete caracteres.”
“Eles não existem para a orientação dos Sistemas. A questão é que vocês
só veem um impresso com a declaração, porque o impresso M1 e a
declaração constituem o processo daquele caso, e o que os analistas moleza
fazem é analisar os processos individuais em busca de um potencial de
auditoria.”
Cusk estava começando a notar os ritmos da dupla apresentação e as
dicas inter-relacionais que vinham da RT quando a apresentação tinha
entrado numa digressão ou estava cobrindo algo de importância
comparativamente menor. A principal dessas dicas era quando ela olhava
pro relógio de pulso, o que fazia a sombra da vareta que tinha na mão se
estender sobre a lateral da tela iluminada e apontar direto pra sombra do
assistente de RH, ainda que os dois não estivessem à mesma distância do
projetor. Sem contar que os pontos relevantes estavam bem ali no pacote de
orientação. Na parte de sua mente que tinha consciência do seu próprio
nível de estimulação, da situação geral de sudorese, da temperatura da sala,
da localização de todas as saídas, das localizações e linhas de visão de todas
as pessoas na sala que pudessem ver um possível ataque — tudo isso,
quando ele estava em alguma situação pública e confinada, ocupava uma
parte de sua consciência, por mais que ele tentasse se concentrar bastante
nas atividades oficiais da sala que estavam acontecendo — Cusk estava
ciente da presença de alguém atrás de si e um pouco acima, talvez logo em
frente da porta da saída, possivelmente parado ou parada ali decidindo se ia
sentar. E a possibilidade de ser uma mulher — pois o cheiro agradável no ar
era perfume, era razoável supor, ou uma colônia masculina anormalmente
floral e afeminada — fez com que outra onda de calor passasse pela cabeça
e pelo escalpo de Cusk, ainda que não fosse uma onda de calor grave ou do
nível de um ataque.
“Em essência”, disse a Responsável pelo Treinamento de Adimplência,
“os Arquivos Máster permitem a análise da aritmética e a conferência das
discrepâncias, coisas que custariam inúmeras horas-homem se fossem feitas
manualmente.”
“Fato”, o assistente de RH disse. “De 6% a 11% das 1040s anuais em
média contêm algum erro básico aritmético.”
“Mas os Arquivos Máster também possibilitam análises interanos e
interdeclarações”, a RT disse. “Exemplos: 1040 Linha 11 e Linha 29 —
Pensão Alimentícia recebida e paga.”
“Isso está no Protocolo-Padrão que vocês recebem”, o assistente de RH

disse. “Mas está essencialmente feito quando vocês recebem a declaração.


Os Arquivos Máster de Martinsburg realizam as conferências cruzadas com
a declaração do cônjuge. Se houver uma discrepância, ela será registrada no
M1… A tarefa de vocês será determinar se as quantias envolvidas
constituem um item auditorável.
“E, caso constituam, determinar se cabe uma auditoria-por-carta, através
da Célula CA do CRA — Correspondência Automatizada — ou se é do
interesse do Serviço encaminhar toda a declaração para o seu Distrito-base
para uma auditoria interna.
“Em essência”, disse o assistente de RH, “esse é o trabalho de vocês.
Vocês estão na linha de frente do processo que decide quais declarações são
auditadas e quais não são. Isso é o esqueleto da coisa toda. Os critérios de
auditabilidade mudaram substancialmente nos últimos dois anos,
portanto…”
“Mais um exemplo de como Martinsburg se encaixa no processo”, a RT

disse. “Linha 10.”


O assistente de RH deu um teatral tapa na testa. “Essa deixava todo
mundo doido nos anos 70.”
“A linha 10 da Renda, na 1040, pede que você declare restituições
tributárias estaduais e locais se a restituição for de um ano para o qual você
listou deduções…”
“… ou seja, Linha 34A, ou seja, Anexo A.”
“Isso era um convite claro para que os contribuintes ‘se confundissem’ na
hora de lembrar se tinham listado o ano anterior. O incentivo era acreditar
que eles não tinham listado o ano anterior…”
“… porque nesse caso as restituições não seriam renda.”
“… e antes dos Arquivos Máster era razoável que um contribuinte
inteligente acreditasse que não se tratava de um item que seria verificado
nas Análises. Porque a declaração do ano anterior era algo que você tinha
que solicitar via Formulário 3IR mais 12(A).”
“Requisição de Retorno de Declaração”, inseriu o assistente de RH.
“E a declaração tinha que ser recuperada ou dos arquivos do Centro de
Serviço ou do Centro Nacional de Registros, e era um estresse, levava uma
semana, e era caro, principalmente em termos de horas-homem, transporte e
custos administrativos, custos que tendiam a exceder em muito as quantias
bem pequenas de uma restituição estadual ou local.”
“A Linha 10 era uma coisa que nunca compensaria verificar”, o
assistente de RH disse. “Para não falar da chatice de deixar uma declaração
na caixa da sua Tingle por uma semana enquanto você ficava esperando
processarem o 3R.”
“Com os Arquivos Máster, a opção da linha 34A da declaração anterior
do contribuinte podia ser automaticamente verificada — agora vocês
recebem alertas no impresso para saber se a linha 10 é ou não tributável,
com base nas declarações anteriores e nos relatórios estaduais de RI.”
“Ainda que o sistema computadorizado de certos estados não seja
compatível com o de Martinsburg.”
A temperatura da sala, segundo David Cusk, seria agora 29 graus. Ele
ouviu o som característico de um assento abaixado pra liberar a cadeira
logo atrás de si e de alguém sentando e colocando o que pelo som pareciam
ser duas ou mais caixas ou dois ou mais pertences pessoais na cadeira ao
seu lado e abrindo o zíper do que parecia ser a pasta de um portfólio, e sem
dúvida nenhuma era uma mulher, havia um cheiro não só de perfume floral
mas de maquiagem, que tem um conjunto característico e complexo de
aromas numa sala quente, além de algum tipo de xampu floral, e Cusk
podia até sentir a pressão dos discos gêmeos dos olhos dela na nuca, já que
podia calcular com facilidade que sua cabeça estava ao menos parcialmente
na linha de visão da moça até o parlatório. Ao assistir à apresentação, ela
também estaria olhando pelo menos pra uma parte de trás da cabeça de
Cusk, e também pro pescoço dele, que seu corte de cabelo deixava exposto,
significando que quaisquer gotículas que emergissem da parte de trás do
cabelo ficariam claramente visíveis.
“Mas a questão não é essa. A questão é a eficiência, a economia e o
motivo da gente repassar as especificações e o leiaute do M1 de
Martinsburg com tantos detalhes assim durante a próxima hora. Nós mal
teríamos como exagerar a importância disso. Vocês não são inspetores — o
trabalho de vocês não é pegar cada errinho e cada discrepância e
encaminhar a 1040 para uma auditoria.”
“Isso ia entupir os escritórios distritais, cujos recursos para as auditorias
são severamente limitados.”
“A verdade é que a Divisão de Auditorias tem capacidade para auditar
um sétimo de ponto percentual de todas as 1040s e 1120s entregues neste
ano.”
“… ainda que neste ano vocês se ocupem principalmente das declarações
de 1984, já que há em média uma demora de dez meses entre as entregas e
as análises, ainda que na Região Meio-Oeste eles tenham reduzido esse
período para alguma coisa perto de nove.”
“A questão”, disse a RT com uma voz algo cortante, “é que o trabalho de
vocês é determinar quais declarações fornecem indícios de máxima
auditabilidade em termos de (a) rentabilidade e (b) conveniência. Eles são
fatores interligados, já que quanto mais complexa e demorada a auditoria,
mais dispendiosa ela se torna para o Serviço, e menor o ganho líquido para
o Tesouro dos Estados Unidos no fim da auditoria. Ao mesmo tempo, é
verdade que a desfaçatez dos dados equivocados também se liga à
rentabilidade, já que depois de certos níveis preestabelecidos de equívoco
nos dados entram em cena as multas por negligência…”
“… assim como os juros sobre todas as somas devidas…”
“… o que aumenta, por vezes de modo significativo, o rendimento
líquido da auditoria.”
Quanto pior ia ficando, mais frio deveria parecer o ventinho da saída de
ar na parede, em comparação. Mas desafortunadamente não era isso que
estava acontecendo — quanto mais elevada ficava a temperatura interna de
Cusk, mais quente parecia a corrente de ar que descia, até que em dado
momento ela já parecia um Sirocco ou o bafo saído de um forno aberto —
definitivamente quente. Cusk não estava bem tendo um ataque, o que de
certa maneira era pior porque a coisa ainda estava indefinida. Ele tinha
começado a suar de leve, mas esse não era o problema — a mulher vizinha
estava atrás dele, e enquanto o suor e o calor não se transformassem de vez
num ataque propriamente dito, a parte de trás do seu corte de cabelo
disfarçaria quaisquer gotículas de suor. Só se a coisa se transformasse de
vez num ataque real, em que o suor do couro cabeludo por baixo dos fios
aumentava e se reunia numa densidade tal que o fazia formar gotículas e
seguir a gravidade cabeça abaixo rumo ao seu pescoço exposto, é que havia
alguma possibilidade real de que a mulher atrás dele percebesse aquilo e o
achasse alguém repulsivo ou esquisito. Havia, como profilaxia, a opção de
olhar pra trás e avaliar a idade e o grau de atratividade da analista cujos
perfume e vago aroma de couro do que era provavelmente uma bolsa
envolviam Cusk. Já que o relógio da sala ficava na parede de trás da sala,
havia uma desculpa óbvia pra ele virar rapidinho e olhar pra trás.
No parlatório, o assistente de RH narrava a massiva descentralização do
Serviço depois das descobertas da Comissão King, em 1952, o que colocou
uma autoridade e uma autonomia muito maiores nas mãos dos cinquenta e
oito escritórios distritais, além da atual recentralização parcial do
processamento e das funções de auditoria automatizada através de
Martinsburg e dos Centros Regionais, fazendo referência tanto à “era da
Região” quanto a algo chamado de “a Iniciativa” de que Cusk nunca tinha
ouvido falar. Cusk não tinha participado de nenhuma das sessões
introdutórias de doze semanas nos Centros Nacionais de Treinamento do IRS
em Indianápolis e Rotting Flesh, LA, que estavam ambos lotados pra todo o
ano de 1985. Em vez disso, tinha respondido a um anúncio de recrutamento
na revista O Contador Moderno, assinado pela biblioteca de Elkhorn-
Brodhead. Cusk tinha conseguido um emprego de tempo parcial na
biblioteca como parte do seu pacote de crédito estudantil.
“Existem dois conjuntos de Arquivos Máster, em essência um para
pessoa jurídica, outro para pessoa física, em conjuntos que são atualizados
para períodos de três anos…”
“Sendo que três anos correspondem à janela de auditoria para
determinada declaração, o que significa que temos até 15 de abril do ano
que vem para auditar e recuperar os impostos devidos por declarações
preenchidas em referência ao ano-base de 1982, algumas das quais podem
acabar passando pela mesa de vocês como parte de programas coordenados
de análise gerados ou pela Adimplência ou por Martinsburg.”
Cusk tentava desesperadamente ouvir cada sílaba pronunciada no
parlatório. Era sua única chance de não começar a pensar apenas na
temperatura de seu corpo e na perspiração, que agora já era grave, a ponto
dele sentir uma espécie de quipá de calor no topo da cabeça, um dos quatro
sintomas principais de um ataque de verdade. Ele sabia que seu rosto estava
começando a brilhar de suor, o que era o principal motivo dele ter optado
não se virar e avaliar o nível geral de atratividade da analista atrasadinha
atrás de si — o que possivelmente podia ter ou interrompido o ataque ou
acelerado tudo pra um ataque monstro em que ele conseguiria sentir e
prestar atenção em seu jorro prodigioso e em sensações de um calor
incontrolável e pânico total diante da ideia de ser visto suando daquele jeito.
O assistente de RH estava descrevendo os 3 312 funcionários do Posto
047 do IRS em termos tanto de turno — 58% trabalhavam no turno (I) das
7h10 às 15h, 40% das 15h10 às 23h, além de alguma atividade de zeladoria
1 física nas instalações durante a noite — quanto em percentuais específicos
de Análises, Balcão, Processamento de Dados e Administração, quase tudo
perdido por Cusk porque ele tinha entrado nos estágios incipientes de um
ataque real em que sua atenção se encolhia e o estado de seu corpo e de sua
emissão de perspiração ocupava quase 90% de seu processamento
consciente. Podia sentir a mulher atrás de si apertando o botão de uma
esferográfica de forma nervosa e arrítmica, e uma vez ouviu um som que só
podia ser do descruzar e recruzar das pernas dela cobertas pelo que soava
como meias transparentes, som que fez uma terrível onda de calor percorrer
Cusk e causou a sensação da queda das primeiras gotas das axilas pela
lateral do torso sob a camisa social. Ele automaticamente baixava a cabeça
durante um ataque, e se afundou na cadeira de plástico de um jeito
inconspícuo, procurando se tornar visualmente o menor possível em termos
da mulher atrás de si, que a essa altura ele imaginava uma moça
sincopecardiacalmente linda, da idade do próprio Cusk, com postura e
compostura irretocáveis e um rosto redondo de porcelana com olhos
intimidadores e de modo geral com uma altivez quase europeia. Em
resumo, era a mulher perfeita das fantasias de Cusk — o que era por assim
dizer o preço que ele pagava por ficar tão petrificado de medo e de
autoconsciência que não conseguia se virar e fingir que olhava pro relógio
(que dizia 15h10) a fim de avaliar a efetiva ameaça representada pela
mulher. A Responsável pelo Treinamento na Adimplência, ele podia ouvir,
estava aludindo a uma página do livreto de Orientação de Análise que o
slide atual na tela representava de uma maneira que se revelou perfeita, item
por item, quando Cusk baixou ainda mais a cabeça que escorria e fingiu
estudar a página relevante do livreto, circunspectamente enxugando cada
gota caída de perspiração antes que ela enrugasse seu trechinho de página
do tamanho de uma moeda, caso alguém um dia precisasse emprestar
aquele livreto e ficasse pensando que tipo de coisa grotesca e medonha
tinha acontecido com o diagrama da página B-3.
Cusk começou a estimar a distância exata até a saída em termos tanto de
segundos quanto de número de passos, com outra parte de seu cérebro
calculando ângulos, linhas de visão e intensidades de luz em vários pontos
ao longo da trilha da retirada — na, por assim dizer, periferia da sua
atenção. Instintivamente, ele entendia que nem todo item do checklist das
Análises Moleza teria a mesma importância.

“O que nós temos aqui são as fases ou os elementos da triagem”, a RT

disse, e então se deteve por um instante enquanto o assistente de RH definia


triagem pra aqueles não familiarizados com o termo de origem médica.
Claude Sylvanshine, três fileiras à frente e quatro cadeiras à esquerda de
Cusk, pelejava para evocar as diferenças entre deduções §162 e §212(2) em
relação a propriedades alugadas, de um lado, e lampejos de dados da
precipitação média anual na Zâmbia em anos pares desde 1974, de outro,
dados esses que apareciam como colunas destacadas na página do atlas da
OMS cujo editor-chefe tinha algum tipo de debilidade psicomotora.
“Se vocês pararem para pensar, não vale a pena abrir um Memorando 20
para uma declaração só porque, digamos, sua Linha 11 parece diminuir em
$200 a pensão alimentícia recebida.”
“Já que o imposto adicional devido sobre $200 é menos de 5% do valor
do custo adicional da condução de uma auditoria.”
“Mas vocês podem abrir um 20(a) e mandar a declaração para Cobranças
Automatizadas para uma auditoria por carta.”
“Isso vai depender dos protocolos do seu grupo conforme estabelecidos
pelo seu Gerente de Grupo e pelo pacote de protocolos de grupo na
orientação de grupo.”
“O que, por sua vez, vai depender da missão do seu grupo.”
Alguém cuja pilha de malas estava no assento ao lado do de Sylvanshine,
várias fileiras à frente, levantou a mão pra perguntar o que era um Grupo
em termos das missões das Análises Moleza. O que era estranho é que não
havia intromissões de dados pra Sylvanshine a respeito da criança
misteriosa com a qual o dr. Lehrl viajava e que mantinha o tempo todo por
perto aparentemente sem jamais lhe dirigir a palavra. Sylvanshine sabia que
não se tratava de um filho do dr. Lehrl, mas isso apenas porque Reynolds
lhe contou. Era como se a criança estivesse cercada por uma espécie de
membrana factual impermeável ou habitasse um vácuo factual. Os grandes
dados que Sylvanshine recebia sobre David Cusk, cujo nome não sabia,
eram as dimensões do espelho do armário de remédios do banheiro da casa
dele e algumas leituras de temperaturas em colunas duplas com os números
da coluna da esquerda mais altos e iluminados numa espécie de vermelho
emergência meio brega.
A página 16 tinha um diagrama da estrutura organizacional em Tento —
Equipe — Grupo — Célula das Análises Moleza da Divisão de
Adimplência.
“A triagem-padrão funciona assim. A cópia do M1 de Martinsburg já vai
listar certas incongruências, seja de aritmética seja de comparação
interdados entre, digamos, a Linha 29 da declaração de um ex-cônjuge e a
Linha 11 da sua…”
“Esse é um dos motivos por que as declarações podem ser encaminhadas
para as Análises — Martinsburg pegou alguma coisa.”
“Outras são encaminhadas segundo critérios que podem, até onde vocês
são capazes de entender, parecer quase aleatórios.”
“Outra vantagem dos Arquivos Máster: agora mais de 50% da análise
aritmética e interdados acontece de maneira automatizada em Martinsburg,
o que aumenta radicalmente a nossa eficiência e o número de declarações
que este Posto consegue processar e levar a determinações pós-auditoria.”
“Ainda que volume e fluxo não sejam mais os critérios pelos quais o
desempenho de um Posto é julgado e avaliado.”
Uma careta involuntária passou pelo rosto do assistente de RH enquanto
ele falava. Sylvanshine sabia o número do sapato e o volume total de
sangue desse assistente, mas não seu nome.
“Os critérios avaliativos agora se referem a lucro sobre o que for
auditado”, a RT disse.
Sem olhar pra ele, o assistente de RH mostrou um cartão de computador
Fornix de doze colunas e uma página impressa.
A RT disse: “Isso é uma representação do Memorando PARA-47 mais uma
subseção para a Célula, o Grupo, a Equipe, a Unidade de cada um e uma
margem para o RH”.
“A margem se refere à razão entre a tributação adicional arrecadada pela
auditoria e os custos.”
“… Inclusive o salário de vocês, os benefícios, o auxílio-moradia etc.”
“… É a nova Bíblia”, disse o assistente de RH.
Sylvanshine, olhos revirando já quase brancos, recebeu uma verdadeira
avalanche de fatos sobre a RT que ele não queria saber, inclusive
especificações do DNA mitocondrial dela e o fato de que ele era um nadinha
desviante porque sua mãe tinha tomado talidomida quatro dias antes dela
ser abruptamente retirada do mercado. A Responsável pelo Treinamento,
Pam Jensen, levava um revólver calibre 22 na bolsa — ela tinha se
prometido uma bala no céu da boca depois de sua 1 500a apresentação, que
no ritmo atual ocorreria em julho de 1986.
“No passado inglório, era o fluxo.”
“O analista de rotina médio encerrava entre vinte e sete e trinta processos
por dia.”
“Hoje seriam quatro, cinco processos por dia — se a sua proporção
Auditorias-e-Custos estiver bem, você pode contar com uma belíssima
avaliação semestral de desempenho.”
“Claro que quanto mais processos estiverem no seu fluxo diário, maior o
campo de possibilidades de processos de boa relação de custo que você vai
ter, e maiores as suas chances de abrir um 20 que leve a lucros
substanciais.”
“Mas é melhor vocês não se concentrarem demais em encerrar o maior
número possível de processos por dia, para que não se vejam impedidos de
identificar declarações especialmente rentáveis.”
“Nós preferimos não usar o termo ‘rentáveis’”, a RT disse. “Preferimos o
termo ‘inadimplente’.”
“Mas uma declaração grotescamente inadimplente pode estar baseada
numa Linha 23 tão baixa que na verdade acaba sendo mais eficiente deixar
passar aquela e abrir um 20 para a declaração seguinte, que, apesar de
conter poucos erros ou incongruências, na verdade atinge uma avaliação de
auditabilidade bem mais alta.”
“São questões que é melhor deixar para a orientação de cada grupo.”

Agora gotículas efetivas de suor caíam das pontas do cabelo de Cusk,


enquanto dentro dele ressoava um grito inaudível.
“Certo”, a RT disse. “Vamos fazer uma pausa, comer alguma coisa e
depois a gente continua com os critérios gerais para decisões de auditar ou
não auditar.”
Haveria um intervalo. David Cusk não tinha se permitido pensar nessa
possibilidade. As luzes seriam acesas. Todos levantariam e sairiam ao
mesmo tempo. Se ele ficasse, a moça linda atrás dele veria seu colarinho
encharcado e a mancha escura de suor em V na sua camisa social azul, que
tinha sido petulante e imbecil da parte dele resolver usar em vez do mais
prudente e inescurecível branco. Ele ia ficar ali todo encolhido, fingindo
examinar o esquema impresso do M1 no seu pacote de orientação, com sua
temperatura basal já roçando os 39 graus, gotas de perspiração visíveis
caindo das pontas do cabelo em todos os quatro lados pra pintalgar papéis,
braços da camisa, o lado quente da sua luminária — não tinha como as
pessoas não perceberem. Mas se ele levantasse e se juntasse aos grupos que
subiam os corredores inclinados rumo às portas da saída, não haveria como
as pessoas não verem o que estava acontecendo com ele, inclusive a linda e
altiva francesa ou quem sabe até italiana atrás dele. Era um pesadelo só.
Pensar desse jeito praticamente garantia a ocorrência de um ataque, o que
era a última última coisa do mundo que David Cusk queria. Ele conseguiu
se convencer a levantar a cabeça. O holofote quente que sentia sobre si não
existia. A mulher atrás dele era uma pessoa, tinha seus próprios problemas e
não estava prestando muita atenção nele — isso era uma ilusão. A única
coisa relevante sobre a cabeça dele era estar na frente da mulher, que tinha
que cruzar bem as coxas e sentar toda de lado pra enxergar o parlatório e a
tela, onde uma imagem dividida de duas mesas balançava enquanto a RT

tentava focalizar o projetor com um aparelho de mão conectado ao projetor


por um cabo que tinha se emaranhado em uma de suas pernas.

Sylvanshine, antes da manhã da viagem, tinha esquecido de enxaguar o


xampu no cabelo. Por isso seu penteado em forma de chama.

David Wallace, nesse meio-tempo, não estava curtindo uma


apresentaçãozinha com um belo show de slides. Em vez disso tinha sido
conduzido (por alguém que não era Ms. Neti-Neti) — sem a chance de
comer alguma coisa — até o Anexo do CRA e a uma salinha onde ele e
outros quatro homens, todos GS-13s, ouviram uma apresentação a respeito
do Imposto Mínimo sobre Preferências, que evidentemente tinha suas
origens na administração democrática de Lyndon Johnson nos anos 60. A
sala era pequena, abafada e não tinha quadro branco nem instalações de
áudio e vídeo. O que tinha, no entanto, era um cheiro forte de pincel
atômico. Todos os outros homens ali usavam roupas e chapéus
conservadores e eram muito sérios, com cadernos do Tesouro que vinham
em estojinhos de curvim com zíper e tinham o selo e o lema do IRS gravados
na capa, cadernos que David Wallace não tinha recebido, por isso tomava
notas em seu caderninho particular dobrado para que a etiqueta de preço no
canto superior direito não ficasse visível.
A apresentação era árida a dar com o pau, parecia ser de altíssimo nível e
era feita por alguém vestido com um terno preto e com colete preto sobre o
que parecia ser ou uma gola olímpica branca — o que teria sido bizarro
num clima tão quente — ou um daqueles colarinhos engomados destacáveis
dos tempos vitorianos que os homens colocavam e prendiam com
botõezinhos na última etapa do processo vitoriano de se vestir. Era
extremamente sucinto, impessoal e profissional. Parecia muito severo e
rígido, com grandes depressões negras nas bochechas e embaixo dos olhos.
Lembrava um pouco uma representação popular da morte.
“Cabe registrar, contudo, que a RA 78 corrigiu as tendências
expansionistas das determinações da 76 ao eliminar tanto a dedução de
ganhos de capital de longo prazo quanto o excesso de deduções listadas na
declaração do índice de preferências relevantes.” O termo preferências já
tinha sido usado várias vezes. Nem precisa dizer que David Wallace não
sabia o que significava preferências ou que elas eram a forma inteligente
que o Congresso encontrou de reduzir a carga tributária de determinado
grupo de renda sem reduzir sua alíquota tributária — você simplesmente
permitia deduções ou provisões especiais que isentavam certas partes da
renda de inclusão na base tributável, provisões coletivamente conhecidas no
Serviço como preferências. Depois, graças especialmente a Chris
Acquistipace, David Wallace descobriria que o grupo MPT/AMT tinha a tarefa
de garantir o cumprimento de certas determinações especiais que os atos de
76 e 80 tinham estabelecido para evitar que indivíduos extremamente ricos
e empresas do tipo S pagassem, através do emprego do que se chamava de
“manobras fiscais”, no fundo, imposto nenhum. O Grupo Imersivo onde
David Wallace foi lotado era parte da Célula Imersiva TA/M (de Tributação
Alternativa/Manobras). Seria constrangedor declarar de forma direta o
tempo que David Wallace levou pra perceber tudo isso, mesmo depois de
dias de pretensas análises de processos.
“Registre-se, contudo, que o ato de 78 também acrescentou à lista de
preferências possíveis o excesso de deduções de Custo Intangível de
Perfurações para toda e qualquer renda declarada provinda da produção de
petróleo e gás natural, atacando efetivamente as manobras do campo da
energia oriundas do choque petroleiro de meados dos anos 70, como no
§312(n) do código revisado.” A forma que David Wallace estava usando
para fingir que tomava notas era simplesmente copiar cada palavrinha e
cada expressão que o instrutor pronunciava, mais ou menos como fazia nas
aulas da universidade que tinha sido contratado para anotar em nome de
alguém forçado a perder a aula por causa de uma viagem para esquiar ou de
uma ressaca violenta. Era uma das razões para a mão esquerda de David
Wallace ser mais musculosa e parruda — especialmente o músculo entre o
polegar e o indicador, que saltava quando a caneta era pressionada contra o
papel — que a direita. Ele transcrevia como o vento.
“As determinações mais relevantes para os protocolos de Memorando 20
de vocês são a de 78 que aumentou a taxação básica do CP para 15% e
estabeleceu o padrão de isenção do CP para o maior entre (a) $30 000 ou (b)
50% da taxa devida para o ano calendário apenas, uma determinação que
os Arquivos Máster tornaram redundante, mas que as determinações do ato
de 80 não tinham abordado.”
Um dos GS-13s ergueu a caneta — não a mão, mas só a caneta com um
gestinho bacana de pulso — e fez uma espécie de pergunta absurdamente
arcana que David Wallace não anotou porque estava alongando e relaxando
a mão para aliviar alguma coisa que estava acontecendo se ele transcrevia
por mais de uns poucos minutos, que era sua mão esquerda se transformar
numa espécie de garra automática de escriba e ficar daquele jeito depois
que ele acabava de transcrever, às vezes por mais de uma hora, o que o
forçava a esconder a mão no bolso.
“Já a partir de março de 1981, e ainda sujeito a refinamentos no caso das
fiduciárias e de algumas indústrias especializadas, tais como, se não me
falha a memória, de madeira, açúcar e de certos legumes, as determinações
relevantes que se espera que esse grupo verifique para a computação do CP

são, com exceção das seções do código a não ser onde seja diretamente
relevante, seções essas que vocês vão encontrar referenciadas uma a uma
nas especificações 412 do M1, (1) Excesso de depreciação acelerada em
propriedades da seção 1250 sobre depreciação linear. (2) Em consequência
do TRA 69, excesso de amortização quinquenal de certos itens associados ao
controle da poluição, a instalações de puericultura, à segurança das minas e
energia e a sítios de interesse histórico nacional sobre depreciação linear.
(3) Excesso de depleção percentual sobre a base ajustada de uma
propriedade no final do ano-base. (4) Elementos de barganha em opções
financeiras qualificadas — TRA 76. (5) Excesso de IDC sobre a renda fóssil
conforme mencionado acima.” (David Wallace não tinha tempo de
consultar suas anotações mais acima. Estava tentando circular palavras e
expressões que não conhecia, imaginando que podia procurar uma
biblioteca. Essa lista não estava no seu manual — eles não receberam
manuais. Parecia que as pessoas esperavam que eles já soubessem aquilo
tudo. Para poder lidar com suas sensações de confusão e de medo, Wallace
tinha optado por se transformar basicamente numa máquina de transcrever.)
“(6) Sendo o excesso de depreciação acelerada sobre a depreciação linear
em propriedades 1245 arrendadas a terceiros.”
O homem se mantinha totalmente imóvel enquanto falava. David Wallace
achava que nunca tinha visto alguém não se mexer nem de maneira mínima
e inconsciente quando falava em público. A imobilidade corpórea teria sido
mais intrigante se David Wallace estivesse se sentindo menos em pânico e
menos assustado, e, além de se automatizar via transcrição, David Wallace
estava realizando a principal atividade compensatória que realizava quando
estava numa sala em que todos pareciam compreender exatamente do que
se estava falando, menos ele — o que tinha acontecido em algumas
situações sociais no ensino médio, em que David Wallace não participava
de nenhuma panelinha, mas transitava pelas beiradas de vários grupos
diferentes, de atletas de segundo escalão a estudantes de centro acadêmico e
nerds de áudio e vídeo, e com frequência tinha acesso a fofocas ou
referências a situações coletivas de que não tinha conhecimento direto, mas
precisava ficar ali com um sorriso amarelo no rosto e balançando a cabeça
como se soubesse exatamente a que eles estavam se referindo. Isso sem
falar de uma situação em que num ímpeto de absurda pretensão
semiembriagada de calouro ele aceitou a tarefa gigantesca de assistir como
ouvinte uma disciplina de literatura russa existencialista e absurdista e
escrever os ensaios para o rico e atormentado filho de um juiz da Suprema
Corte Estadual de Rhode Island que de fato estava matriculado naquela
disciplina e descobriu que não apenas todas as leituras e o contexto
bibliográfico, mas também as próprias aulas, eram na verdade em russo,
língua em que David Wallace não sabia falar nem uma sílaba resmungada
que fosse, tendo então que ficar ali sentado com um enorme sorriso amarelo
e rijo no rosto, transcrevendo as versões fonéticas de tudo quanto era
barulho descabido e incrivelmente acelerado que as pessoas naquela sala
faziam todas as terças e todas as quintas-feiras das 9h às 10h30 por três
semanas antes de conseguir pensar numa desculpa plausível e encerrar o
acordo estabelecido. O que deixava o cliente — que ainda estava
matriculado — com seu próprio tipo bem especial de dilema existencial. A
questão é que era isso que David Wallace fazia nessas situações, adotar e
sustentar na base mesmo da força bruta um enorme sorriso amarelo que ele
imaginava que comunicasse tranquilidade e uma familiaridade confiante
com o que quer que estivesse rolando, mas que no fundo, sem que ele
soubesse, em sua rígida distensão e em sua falta de envolvimento ocular,
além da situação dermatológica toda, na verdade lembrava o ricto agônico
de alguém cuja pele estivesse sendo lentamente removida do rosto, o que
para a sorte dele todos os Analistas Imersivos GS-13 transferidos e
especialistas CTO em manobras fiscais eram sérios e aplicados e
comprometidos demais com os protocolos antimanobras — pois era isso
que a equipe em que David Wallace acabou identificado e equivocadamente
lotado por culpa não sua (embora essa seção de orientação pudesse ter sido
o momento de erguer a mãozinha) se revelou, análise e avaliação de
manobras fiscais de pessoas físicas e jurídicas limitadas nos ramos
imobiliário, agrícola e de leasing facilitado, o que era um componente
pequeno mas sério da Iniciativa Spackman — para perceberem de uma
forma que não fosse apenas perifericamente incomodada, além da
juventude, do terno de veludo cotelê (que no IRS equivalia a uma sunga com
sapato comprido de palhaço) e da falta de chapéu de David Wallace.
A/NA, projetado num slide todo seu, foi explicado como sendo a
motivação integral e a razão de ser das Análises de Rotina.
“Vocês são policiais?”
O assistente de RH ergueu as mãos que sacudiu no ar gritando “Nããão”.
Era a mesma imitaçãozinha de evangelista que Sylvanshine tinha visto no
CRA Filadélfia quando tinha vinte e dois anos. A coleção de moedas do
assistente de RH ficava num cofre portátil no fundo do armário da sua mãe
ou avó, a julgar pelo estilo dos vestidos e casacos no suporte dos cabides
que estava sobre ele.
“Vocês são juízes da virtude cívica?”
“Nããão.”
“Vocês são burocratas sádicos que escolhem arbitrariamente a vida de
quais contribuintes vai virar um inferno quando eles tiverem que passar pela
angústia e pela inconvêniencia da malha fina, tentando espremer cada
gotinha de sangue do pescoço onde vocês já plantaram a sola da bota?”
“Não.”
“Em essência, no IRS de hoje em dia vocês são homens de negócios.”
“E mulheres de negócios. Pessoas de negócios. Ou na verdade pessoas
que trabalham para alguma coisa que deveriam considerar um negócio.”
“Quais declarações renderão auditorias lucrativas?”
“Como determinar isso?”
“Diferentes Grupos de Análise fazem isso de formas diferentes. A
orientação do seu grupo vai passar os detalhes para vocês.”
Assistente: “Ou a sua Equipe, já que alguns gerentes de Grupo aqui têm
equipes diferentes que trabalham com critérios diferentes”.
“Quase dá para pensar nisso como um filtro — o que passa, o que leva
Memo 20 e vai transferido para o Distrital.”
“Ou marcas, bandeirinhas — pelo menos de que uma dada declaração”
merece uma análise exaustiva.”
“Vocês não vão ficar passando um microscópio em tudo que é
declaração.”
“Vocês precisam trabalhar não só de um jeito rápido, mas também de um
jeito inteligente.”
“E a rapidez significa que vocês vão saber de cara — essa auditoria aqui
não vai gerar nada.”
“O critério é esse — a auditoria em questão vai render um acréscimo
máximo quando subtraídos os custos da auditoria?”
“Então eis uma coisa a se descartar — a ideia de que vocês são guardiães
da virtude cívica.”
“Há mais uma noção equivocada que vocês devem desconsiderar.
Alguém faz alguma ideia de qual seria?”
David Cusk teve o impulso terrível, totalmente pavoroso, de erguer a
mão. Parte de sua estratégia de sobreviver à socialização cerrada do
intervalo até conseguir chegar a um banheiro tinha sido pensar
concentradamente na última imagem projetada na tela da sala, que a
Responsável pelo Treinamento nunca tinha conseguido fazer entrar
exatamente em foco, mas que era uma visão em tela dupla de duas
escrivaninhas ou mesas, uma coberta de papéis e formulários, mais uns
itens cujas cores fortes indicavam que poderiam ser embalagens de comida,
e a outra limpa e organizada com os itens em pilhas e cestinhos etiquetados.
Cusk tinha quase certeza de que a RT queria frisar a necessidade de ordem e
organização e abolir a ideia de que uma mesa zoneada era sinal de um
funcionário produtivo. Enquanto isso, ninguém tinha levantado a mão. A
ideia de levantar a mão ressurgiu e de fazer a RT apontar pra ele por cima de
todas as cabeças viradas pra trás, apresentando-se como voluntário pra
atenção concentrada de todas aquelas pessoas, inclusive da exótica
transferida ou emigrada belga, que Cusk tinha conseguido evitar durante o
intervalo, do qual voltou mais cedo, e não sabia que os óculos da mulher
eram tão grossos que se a tivesse visto ele teria sido capaz de saber que ela
era praticamente cega, ao menos para o que estivesse a mais de um metro
de distância, olhos franzidos e com covinhas estranhas nas íris, cheios de
rachaduras e fissuras como o leito seco de um rio — ela era tão exótica
quanto um hidrante, e tinha mais ou menos o mesmo formato — e ele não
estaria se preocupando com a possibilidade de ser visto por ela molhado ou
suando. De qualquer maneira, ele estava certo, como acabou se sabendo:
“O equívoco comum é de que uma mesa bagunçada é sinal de alguém
que trabalha duro ali.”
“Esqueçam a ideia de que a função de vocês aqui é coletar e processar a
maior quantidade possível de informação.”
“A bagunça e a desorganização da mesa da esquerda, na verdade, devem-
se a um excesso de informação.”
“Bagunça é informação sem valor.”
“Limpar a bagunça de uma mesa é se livrar da informação que você não
quer mais e ficar com a que ainda quer.”
“Quem se importa em saber qual papel de bala está em cima de qual
documento? Quem se importa em saber qual memorando meio amassado
está preso entre duas páginas de um Acórdão da Receita que pertencia a um
processo de três dias atrás?”
“Esqueçam a ideia de que informação é uma coisa boa.”
“Só certa informação é boa.”
“Certa no sentido de ‘determinada’, não no sentido de precisa, acurada.”
“Cada processo que vocês analisarem nas Molezas vai constituir uma
plétora de informação”, o assistente de RH disse, pronunciando a palavra
como proparoxítona de um jeito que fez estremecerem as pálpebras de
Sylvanshine.
“O trabalho de vocês, num certo sentido, em cada processo é separar a
informação que tem valor e pertinência da informação inútil.”
“E isso requer critérios.”
“Um método.”
“É um método de processamento de informação.”
“Vocês são todos, se pararem para pensar, processadores de dados.”
O próximo slide na tela era ou uma palavra estrangeira ou uma sigla
muito complicada, cada letra com negrito e também sublinhada.
“Diferentes grupos e equipes dentro desses grupos recebem critérios
ligeiramente diferentes que ajudam a estabelecer o que se está procurando.”
O assistente de RH estava folheando suas fichas plastificadas.
“Pra dizer a verdade, tem outro exemplo sobre aquilo da informação.”
“Acho que eles entenderam.” A RT tinha um jeito de virar um pé na
perpendicular de sua direção normal e bater furiosamente com ele pra
demonstrar impaciência.
“Mas está bem aqui, na coisa da mesa.”
“Você está falando do baralho?”
“Da fila da caixa.”
Eles pareciam achar que seus microfones estavam desligados.
“Jesus.”
“Quem é que quer mais um exemplo para ilustrar a ideia de coletar
informação versus processar dados?”
Cusk estava se sentindo sólido e confiante, como acontecia muitas vezes
depois que uma série de ataques tinha passado, quando seu sistema nervoso
parecia esvaziado e difícil de despertar. Sentiu que se tivesse levantado a
mão e dado uma resposta que no fim não fosse correta isso não seria assim
tão importante. “Tanto faz”, ele pensou. Esse “tanto faz” era o que ele
muitas vezes pensava quando se sentia animado e imune aos ataques. Duas
vezes tinha convidado mulheres pra sair quando estava nesse humor
arrogante, extrovertido e hidroticamente seguro, e depois não compareceu
ou não ligou na hora marcada. Chegou até a considerar a possibilidade de
virar pra trás e dizer alguma coisa animada e limitrofemente sedutora pra
belga ruidosa, modelo moda praia — refeito da crise, ele agora queria a
atenção das pessoas.
Aos oito anos, Sylvanshine tinha dados a respeito das enzimas hepáticas
do pai e de sua taxa de atrofia cortical, mas não sabia o que esses dados
significavam.
“Você está lá no supermercado enquanto os itens que comprou vão sendo
computados. Cada produto tem um preço, óbvio. Normalmente ele está bem
ali no produto, numa etiqueta adesiva, às vezes com o preço de atacado
também codificado no canto — a gente pode falar disso outra hora. Na
saída, o caixa registra o preço de cada compra, soma tudo, acrescenta os
devidos impostos de venda — não progressivos, nós estamos falando de um
exemplo atual — e chega a um total, que aí você paga. A questão: o que
contém mais informação, a quantia total ou o cálculo dos dez itens
separados? Digamos que nesse exemplo você tivesse dez itens no carrinho.
A resposta óbvia é que o conjunto de todos os preços individuais contém
muito mais informações do que o número único que é o total. Só que quase
todas essas informações são irrelevantes. Se você pagasse cada item
individualmente, seria outra história. Mas você não paga assim. A
informação individual do preço individual só tem valor no contexto do
total; o que o caixa no fundo está fazendo é descartar informação. Você
chega no caixa com um monte de informações que o caixa processa através
de determinado procedimento a fim de chegar à única informação que tem
valor — o total mais impostos.”
“Abandonem a ideia leiga de que informação é uma coisa boa. De que
quanto mais informação melhor. A lista telefônica tem montes de
informação, mas, se você está procurando um número de telefone, 99,9%
daquela informação só atrapalha.”
“Informação per se na realidade é apenas uma medida de
desorganização.” A cabeça de Sylvanshine se ergueu de súbito ao ouvir
isso.
“O sentido de se ter um procedimento é processar e reduzir a informação
do processo somente à informação que tem valor.”
“Também tem a questão de usar o tempo de vocês do modo mais
eficiente. Vocês não vão gastar o mesmo tempo com cada processo. É
melhor gastar mais tempo com os processos que parecem mais promissores
para a geração de renda líquida.”
“Renda líquida é o nosso termo para a quantia adicional gerada por uma
auditoria, subtraídos os custos da auditoria.”
“No contexto da Iniciativa, os analistas são avaliados tanto segundo a
renda líquida total produzida quanto segundo a razão entre a renda adicional
total produzida e o custo total das auditorias adicionais solicitadas. O que
for menos favorável.”
“A razão é evitar que algum coió simplesmente preencha um Memorando
20 pra cada processo que cai na sua Tingle na esperança de dar um gás na
sua rentabilidade.” Cusk refletiu: um analista que jamais preenchesse um
Memorando 20 teria uma razão de 0/0, o que corresponde ao infinito. Mas o
total de renda também, ele refletiu, seria 0.
“A questão é desenvolver e implementar procedimentos que permitam
que você defina com a maior rapidez possível se determinado processo
merece uma análise mais detida…”
“… essa análise mais detida já envolve certo tipo ou certos tipos de
procedimentos que se misturam à criatividade de cada um de vocês e aos
seus instintos para sentir o cheiro de rato no paiol…”
“… ainda que no começo das atividades, enquanto vocês vão ganhando
experiência e aprimorando sua habilidade, seja natural confiar em certos
procedimentos já testados…”
“… muitos dos quais vão variar segundo cada grupo ou equipe.”
“Incongruências nos Arquivos Máster, pra começar. Isso é bem óbvio.
Disparidade entre W-2s mais 1099s e a renda declarada. Disparidade entre a
declaração estadual e a 1040…”
“Mas de quanto? Abaixo de que piso você simplesmente deixa passar
uma incongruência?”
“É o tipo de questão para orientação de grupo.”
Sylvanshine agora sabia que dois pares separados de novos fraldinhas na
verdade eram, sem saber, parentes, um dos pares através de uma ligação de
cinco gerações atrás, em Utrecht.
David Cusk agora se sentia tão relaxado e tão destemido que estava
quase ficando sonolento. Os dois treinadores às vezes estabeleciam um
ritmo e uma harmonia que era calmante, repousante. O cóccix de Cusk
estava um nadinha amortecido pela sua posição reclinada, ele meio largado
na cadeira, apoiando os cotovelos na mesinha dobrável, com o calor da
pequena luminária não sendo motivo de preocupação maior do que a notícia
da temperatura de qualquer outra cidade.
“Quem tem uma queda anormalmente pronunciada de renda ou um
aumento incomum de deduções em relação aos anos anteriores? Só para dar
um exemplo.”
“E dos grandes — quem foi bem-sucedidamente auditado nos últimos
cinco anos? Isso aparece em alguns, mas não em todos os impressos de
Martinsburg.”
“… às vezes você precisa pedir dados específicos adicionais dos
Arquivos Máster.”
“Mas sejam disciplinados com isso. Evitem a tentação de pensar que
sempre precisam de mais informação. Vocês podem se afundar nela.”
“Fora que custa caro.”
“Conheçam o seu menino de carga. O menino de carga é o GS-7 que faz o
meio de campo entre os analistas e a Célula Técnica, onde os processadores
de dados podem conseguir informações adicionais dos Arquivos Máster
para vocês, se vocês preencherem um formulário DR-104 de requisição de
dados.”
“Nem todos eles são meninos. ‘Menino de carga’ é só uma expressão
mais histórica.”
“Além do mais, são os meninos de carga que mantêm os processos
circulando, especialmente pegando só processos que vocês encerraram e
mantendo a caixa de entrada da Tingle de vocês sempre cheia.”
“Eles não vão buscar comida nem cumprem tarefas pessoais.”
Cusk estava considerando as possíveis vantagens de ser menino de carga
caso ser analista acabasse se revelando perigoso demais em termos de
sujeitá-lo a ataques e dificultar sua saída da área. Parecia que esses meninos
de carga estavam em movimento mais ou menos constante, e movimento
constante significava oportunidades constantes de dar uma passadinha no
banheiro, analisar a situação sudorípara e enxugar o suor da testa. Por outro
lado, significaria provavelmente uma grande diminuição salarial. O
pequeno ruído como que de um gargarejo que Cusk ouvia atrás de si a
intervalos de cinco minutos era o som do autolubrificante dos óculos de
Toni Ware caindo nos olhos dela.
“Vocês vão ser apresentados ao seu menino de carga nas sessões de
orientação de Grupo e de Equipe.”
“Outros exemplos gerais: quem está num ramo que lida basicamente com
dinheiro vivo?”
“Quem tem deduções de doações para caridade anormalmente altas em
comparação às médias do seu nível de renda?”
“Quem está se divorciando? Por motivos que serão abordados se forem
considerados relevantes para o Grupo de vocês, divórcios tendem a gerar
uma renda líquida anormalmente alta nas auditorias.”
“Em parte por causa da liquidação dos bens, em parte porque o processo
todo normalmente expõe muito da situação auditável sem que a gente
precise arcar com o tempo e os gastos para descobrir coisas como rendas
ocultas.”
“Quem tem deduções de depreciação incomumente altas que deviam ser
amortizadas em vários anos? Mais de 40% da depreciação acelerada nas
1040s é ilícita ou pelo menos questionável em auditoria.”
“São só exemplos pequenos e aleatórios de alguns critérios.”
“Vocês não podem usar todos — não vai dar para manter o fluxo dos
processos.”
“Algumas equipes verificam cada processo no contexto das duas
declarações anuais anteriores. É o que se chama de termos de intervalo. A
questão é procurar grandes quedas de renda ou grandes aumentos de
deduções.”
“A intuição tem seu papel. Dá para ver quando alguma coisa está errada.
E você pode justificar usar um tempinho a mais com um processo.”
“Essa é a grande vantagem dos analistas humanos. Intuição,
criatividade.”
“Tem gente com mais talento para sentir cheiro de rato.”
“Mera adivinhação não explica a rentabilidade de alguns grandes
analistas, alguns trabalhando aqui neste mesmo Posto…”
“Um rato que valha a pena.”
§ 28

10 Leis dos Funcionários do IRS

Todos os Analistas GS-9 querem ser Analistas GS-11. Todos os Analistas


GS-11 querem ser Auditores. Todos os Cobradores querem ser da DIC. Todos

os Auditores querem ser Oficiais de Recursos ou Supervisores. Todos os


Supervisores querem ser Gerentes de Grupo. Todos os da DIC querem ser
praticamente qualquer coisa que não envolva vigilância remota. Alguns
Oficiais de Recursos querem ser Gerentes de Grupo. Todos os Gerentes de
Grupo querem ser Diretores Distritais Substitutos ou sonham em ser
Analistas de novo, sozinhos numa mesa sem ninguém enchendo o saco.
Todos os Diretores Distritais Substitutos querem ser Diretores Distritais —
você tem que ficar de olho é nos que dizem que não querem. Alguns
Diretores Distritais querem ser ou DCRAs ou DCRSs ou Comissários
Regionais, mas são todos cargos de nomeação política e o máximo que o
Diretor Distrital pode fazer é gerar um rendimento bem bacana no seu
Distrito e torcer pra alguém perceber. O rendimento é a razão entre os
impostos recolhidos e os gastos do Distrito. É o lucro líquido do Distrito. O
código de honra do Serviço é muito simples como dizem os DDSs enquanto
circulam em torno do DD, maquinando: Rendimento, seu jumento; Lucro,
seu chucro; Receita ou Au Revoir. Au Revoir quase sempre significa uma
lotação no cu do mundo.
§ 29

“Eu só tenho uma história real sobre merda. Mas é duca.”


“Por que merda?”
“Qual que é a da merda? A gente fica com nojo mas fascinado.”
“Eu não estou fascinado, isso eu te garanto.”
“É que nem ver batida de carro, é impossível arrancar os olhos dali.”
“A minha professora da quarta série não tinha cílios. A sra. Fulana de
tal.”
“Assim, tudo bem, porque eu também estou de saco cheio e tal, mas por
que merda?”
“A minha primeira lembrança de merda é de merda de cachorro. Lembra
quando você era pequeno, a presença e a potência que tinha a ideia da
merda de cachorro? Parecia que o negócio estava por tudo que era canto.
Toda vez que você brincava na rua, alguém acabava pisando, e aí tudo
parava e ficava meio que: ‘Tá, quem que pisou?’. Todo mundo tinha que
olhar pro seu sapato, e claro que alguém estava com o sapato sujo.”
“Grudava na sola. Nos sulcos da sola.”
“Impossível raspar.”
“Quando era fresca era sempre úmida, amarela e horrível, era a mais
horrorosa. Mas a mais velha ficava grudada mais fundo na sola. Você tinha
que deixar o sapato de lado até aquilo secar e aí tentar raspar a sola com um
pauzinho ou uma faca velha da garagem.”
“Que horas são?”
“Isso aqui devia mostrar o quê mesmo? Neguinho pode acabar passando
direto por aqui.”
“Mas nunca saía direito. Por mais que você raspasse. Tinha que pôr a
sola na torneira, molhar e aí tentar raspar o resto.”
“Na garagem sempre tinha umas facas de manteiga velhas, umas latas de
café com pregos e parafusos e uns trequinhos de metal que ninguém sabia
pra que que serviam.”
“E quem estava com o sapato sujo, quando a gente descobria, aí a pessoa
tinha um tipo de poder terrível.”
“Ninguém nem mexia com ele até aquilo tudo sair.”
“Gelo imediato. Excluidão.”
“Como se fosse culpa dele que vocês estavam jogando futebol ou
brincando no recreio ou sei lá o quê e alguém teve o azar totalmente
aleatório de pisar. De repente não era tanto que ele tinha pisado na merda,
parecia era que tinha virado merda.”
“Como a crueldade num grupinho de crianças está sempre rodopiando e
mudando de lado, a qualquer momento você virava o alvo, todo mundo o
tempo todo mudando de posição — agora é você que está sendo cruel,
agora você é que é o alvo da crueldade do outro.”
“E nada como fazer xixi ou cocô na calça num grupinho que está jogando
basquete ou chutando lata ou sabe lá o quê por empolgação ou por
relutância em sair do jogo nem que seja um minutinho pra fazer você virar
o alvo do desprezo e do ridículo de todo mundo. Pra todo o sempre você ia
ser o menino que cagou na calça enquanto todo mundo chutava lata e levou
só uns dois, três encontrões pra todo mundo saber que era você e podia ser
anos depois, e podia ser um baile de formatura, que todo mundo ainda ia te
conhecer como o menino que cagou na calça em 1961.”
Ninguém abriu a boca. Os rolos girando eram o único som. A neblina
deixava fantasmagóricas as luzes dos postes. Era a quarta hora de um
terceiro turno de Vigilância da DIC na Hobby’n Coin de Peoria. Não havia
vento; a neblina só ia se deixando ficar.
“Mas também era um poder terrível, na infância, ter entrado em contato
com a merda — você tomava um gelo, mas podia afastar as pessoas só de
chegar perto delas com a parte que tinha ficado em contato com a merda;
dava pra fazer elas saírem correndo.”
Os dois agentes que eram mais jovens tinham óculos escuros fechados e
presos por uma haste na gola da camisa.
“Essa obsessão das crianças por merda e merda de cachorro e por entrar
em contato com merda tem que ter alguma ligação com a coisa de aprender
a usar o banheiro sozinho na infância, que nessa idade não é uma lembrança
tão antiga.”
“Deve ter sido na terceira série. A gente levou um tempão pra entender
por que ela tinha aqueles olhos tão de porquinha. Sem cílios. Cabelo ela
tinha, na cabeça, e tinha sobrancelha, mas os olhos eram de porquinha, sem
cílios e azuis.”
Às vezes podia transcorrer até dois minutos entre os comentários. Eram
2h10 e até os pequenos movimentos individuais dos agentes eram lânguidos
e submarinos.
“O que, no fundo, se você parar pra pensar, lembra quando os caras do
segundo grau sentavam pra conversar e o barato era sempre xingar a mãe do
outro e dizer que tinha transado com a mãe do cara e que ela não valia a
pena e não parava de pedir mais? Você acha que era por que isso? Isso da
sexualidade da mãe de todo mundo virar assunto bem quando o pessoal
estava entrando na puberdade.”
“A minha história de merda. Esconde-esconde, uma garotada ali do
bairro, pôr do sol. Eu correndo pro pique e tropeço nuns troncos que alguém
tinha posto pra enfeitar a borda do gramado, saio voando, estico as mãos
pra amortecer o impacto e o que é que vocês acham que acontece?”
“Não.”
“Sim. As mãos direto num fedorento amarelo fresquinho. Que eu até hoje
quase consigo sentir. O cheiro.”
“Jesus amado, e nem foi o sapato, mas a mão. A pele da pessoa.”
“Pois é. Devo ter uma dúzia de lembranças nítidas, gravadas a fogo, da
minha primeira infância, e essa é uma. A sensação, a cor, a dispersão, o
cheiro subindo. Eu berrava, gritava, e todo mundo claro que vem correndo,
e no que eles olham são eles que começam a gritar e dar um cavalinho de
pau e correr de mim, e eu lá chorando e urrando ao mesmo tempo que nem
um monstro horroroso de merda e correndo atrás deles, horrorizado e
enojado mas também por baixo disso tudo meio que glorioso nesse papel de
monstro, capaz de fazer todo mundo gritar de pavor e correr pra casa com a
luz da varanda da casa de todo mundo começandinho a acender naquela
hora e as luminárias fajutas da entrada da garagem de todo mundo com
timer automático; é nessa hora do dia.”
“E a mão fica especialmente perto da sua ideia de identidade pessoal, de
quem você é, o que aumenta o horror da coisa. Só o rosto é pior, em termos
de proximidade, de repente.”
“Não tinha merda de cachorro na minha cara. Eu ficava com os braços
bem esticados na frente pra deixar as mãos o mais humanamente possível
longe de mim.”
“O que só aumentava o lado monstro. Os monstros sempre vêm de braço
esticado na frente do corpo quando querem te pegar. Eu ia correr que nem
doido se estivesse lá.”
“Eles correram. Eu lembro que eu estava tanto gritando horrorizado que
nem eles quanto urrando que nem um monstro enquanto corria atrás de um
e aí meio que desistia e corria atrás de outro. Tinha cigarras nas árvores e
elas todas estavam gritando no ritmo e o rádio de alguém estava ligado
numa janela aberta. Lembro do cheiro que saía das minhas mãos e de como
eles nem olhavam mais pras minhas mãos e de ficar pensando como é que
eu ia abrir a porta sem encher ela de merda ou como eu ia tocar a
campainha. A campainha dos meus pais ia ficar cheia de merda.”
“O que você fez?”
“Jesus amado, o que a sua mãe fez? Ela gritou com você? Você ficou ali
na frente gemendo, chutando a porta e tentando tocar a campainha com o
cotovelo?”
“A nossa casa tinha aldrava. Eu ia me dar mal nessa.”
“Aposto que alguns já tinham ido pra casa e estavam vendo você pela
frestinha da cortina andando de casa em casa com os braços esticados que
nem o Frankenstein.”
“Não é que nem sapato que dá pra tirar pura e simplesmente.”
“Eu tenho uma história de merda, mas não é legal.”
“Eu não lembro. A lembrança termina com a merda e as mãos, eu
tentando correr atrás de todo mundo, o que é esquisito, porque até aí a
lembrança é superclara. De repente simplesmente acaba e eu não sei o que
aconteceu.”
“Acho que nunca falei que eu andava com um pessoalzinho estranho na
época da Bradley e que tinha essa coisa doida que a gente inventou no
segundo ano de entrar no quarto dos outros no dormitório e segurar os caras
na cama enquanto o Marcus Gordão, o Agiota, sentava na cara deles.”
“Acho que eu ia lembrar.”
“Isso foi na Bradley; vocês sabem as loucuras que a gente faz. Era um
grupinho de cinco ou seis e começou essa coisa imbecil de uma tradição de
ir pelos dormitórios dos calouros lá pelas quatro da manhã, achar uma porta
destrancada e entrar todo mundo de supetão pra segurar o cara na cama pro
Marcus Gordão, o Agiota, baixar a calça e sentar na cara dele.”
“…”
“Não tinha motivo. A gente só achava divertidão.”
“Marcus Gordão, o Agiota?”
“Um cara gigante de um subúrbio de Chicago. Morbidamente enorme.
Sempre tinha grana e emprestava, e registrava as transações num
caderninho superespecial. Contador dos mais cuidadosos, fazia juros
compostos diariamente sem calculadora. Nunca só Marcus Gordão; era
sempre ‘o Agiota’. Ele era judeu mas acho que isso não tinha a ver. Era
como ele pagava a universidade depois que os pais dele deixaram ele na
mão — não era a primeira universidade do cara, mas não lembro direito da
história.”
“Por que ele sentava na cara dos outros?”
“A esquisitice da coisa toda é que era a graça. Eu só posso dizer isso. Era
só uma coisa que a gente começou a fazer. Me baixa uma sensação esquisita
só de pensar num jeito de descrever aquilo.”
“E o cara na cama fazia o quê?”
“O cara na cama não dava pulinhos de felicidade, isso eu te garanto. Era
tudo bem rápido, a gente entrava de supetão e já estava em cima do cara
antes até dele acordar. Cada um segurava uma extremidade e rápido pra
caralho o Marcus Gordão, o Agiota, já estava de calça abaixada sentando na
cara do sujeito e ficava ali só o suficiente pro garoto na cama não morrer
sufocado. Aí a gente saía tão rapidinho quanto tinha entrado. Fazia parte da
coisa toda, assim o cara da cama provavelmente nem ia ficar sabendo se foi
de verdade, se foi pesadelo ou o que diabos tinha sido aquilo tudo.”
Eles não estavam muito longe do Sticky: a neblina era uma tempestade
que se aproximava, vinda do rio. O próprio ar estava em estado de alerta.
Duas mulheres mais velhas com peitos de prateleira estavam espiando pela
janela da loja de moedas.
Todos eles tinham hábitos inconscientes de que talvez apenas Hurd,
como novato, tinha plena consciência. O hábito do Agente Lumm durante
as vigilâncias era distraída e inconscientemente usar os dentes da frente pra
arrancar um fragmento minúsculo de pele morta do lábio, colocar na
pontinha da língua e soprar suavemente pra pele ir aterrissar em um lugar
invisível. Ele não tinha a menor ideia de que fazia isso, Hurd percebia.
Gaines piscava lentamente de um jeito chapado e desligado que fazia Hurd
se lembrar de um lagarto cuja pedra ainda não estivesse bem quentinha.
Todd Miller usava um casaco de veludo cotelê com gola de pele de carneiro
e ficava puxando e baixando a manga esquerda; Bondurant encarava um
ponto entre o seu sapato ali no tapetinho da van como se estivesse olhando
pra um abismo. Parecia assombroso para Hurd que ninguém fumasse. Ele
próprio era um catálogo infinito de tiques e gestos irrequietos.
O agente de condicional cujos óculos escuros estavam pendurados na
camisa usava bota Doc Martens de doze ilhoses cujos ilhoses Hurd tinha
contado diversas vezes.
“Como é que o Marcus Agiota veste a calça de novo enquanto vocês
todos correm dali?”
Um longo silêncio se seguiu enquanto Bondurant dava a Gaines um
olhada de pátio de presídio. Gaines disse: “Você já tentou se vestir enquanto
corre? Não dá”.
“O cara pensando que deve ter sido sonho até ele levantar pra ir fazer a
barba e ver que está com o nariz achatado e uma puta marca de bunda na
cara.”
“O cara gritava?”
“De um jeito abafado todo mundo gritava. Claro que eles gritavam. Mas
a coisa que fazia o pessoal gritar era a mesma coisa que abafava o grito.”
“A bunda de um gordão aparecendo do nada e tampando o rosto deles.”
“A velocidade e o silêncio eram essenciais pra operação, e isso era
importante porque se tratava de invasão e agressão, de certa forma, e o
Marcus Gordão já tinha sido expulso de pelo menos uma universidade, e
nenhum de nós era o que alguém podia considerar como o favorito do
reitor, e não se esqueçam que era 1971 e o pessoal do alistamento estava
praticamente parado no portão te esperando se te mandassem pastar.”
“Foi por isso que o Bondurant foi pra guerra. No Viet.”
“Eu fui contador G-2 em Saigon, idiota. Ninguém fala Viet.”
“Mas você está dizendo que foi por isso que te alistaram? Por atacar os
calouros com o bundão de um judeu?”
“Eu estou dizendo que foi só uma coisa que começou a acontecer e que a
gente realizou diversas incursões por todos os dormitórios de entrada com
100% de sucesso operacional até o dia em que a porta que a gente
encontrou aberta era a de um sujeitinho, o Diablo, que todo mundo
chamava de Diablo, o Surrealista Canhoto, um porto-riquenho que estudava
pra ser muralista, tinha uma bolsa de Indianápolis e era louco, um cara por
exemplo que perdeu o emprego no refeitório da faculdade que o auxílio
estudantil arrumou pra ele porque um dia chegou doido do que a gente
quase apostou que era ácido e pôs a mesa em todas as mesas só com facas,
via coisas, pintava uns murais católicos fluorescentes cheios de coisas
pontudas na parede de tudo quanto era armazém à margem do rio, e era
louco — Diablo, o Surrealista Canhoto.”
“Ninguém na sua universidade tinha uns nomes tipo Joe ou Bill?”
“E no geral ninguém mexia com ele porque o sujeito era doido de dar
com pau, um carinha de cinquenta quilos, cucaracho de um barrio latino de
Indianápolis, mas àquela altura a incursão já era um mecanismo de alta
precisão, velocíssimo, e além disso ninguém entendeu quem era até a gente
já ter entrado de supetão e assumido posições em volta da cama. Eu fiquei
com a perna esquerda, lembro, e o Marcus Gordão já tinha subido na cama
e estava abrindo o cinto e distribuindo os pés dos dois lados do que
normalmente era o travesseiro do cara, só que aquele sujeito não usava nem
travesseiro nem lençol; era só o colchão pelado do dormitório com aquelas
listras.”
A única pessoa gorda de verdade que Gestine Hurd já tinha conhecido
era um GS-9 das Análises Especiais do Posto de Oneida que tinha passado
os dois anos inteirinhos durante os quais Hurd o conheceu fazendo uma
auditoria retroativa numa empresa de Oneida que era tão minúscula e tão
especializada que só fabricava as divisórias corrugadas das caixas de
papelão usadas pra transportar um tipo bem específico de lâmpada
minúscula pras minúsculas luminárias de bronze que costumam ficar presas
na parte de cima das molduras das pinturas exibidas nas casas históricas e
nos restaurantes do interior.
“O que já devia ter dado o alerta de que a coisa ia azedar, fora o fato de
que o Diablo, o Surrealista Canhoto, parecia já estar acordado quando a
gente meteu o pé na porta, nem sentou nem deu gritinhos nem esfregou os
olhos ou se debateu ou resistiu quando todo mundo entrou de supetão e
cada um pegou uma extremidade e o Marcus Gordão, o Agiota, subiu na
cama e começou a baixar sua pantagruélica bunda branca até a cara dele; o
sujeito só ficou ali bem imóvel com os olhos brilhando de astúcia latina e
doideira generalizada. Vocês nem queiram saber do cenário ali, o que ele
tinha nas paredes; se a velocidade surreal de toda a operação tivesse
permitido, se a gente tivesse prestado o mínimo de atenção no quarto ou na
expressão do rosto do carinha ali no cobertor a gente podia ter parado, feito
um trabalho de reconhecimento do terreno, poupado muito enrosco pra todo
mundo e ficado na universidade sem ter que passar a porra de um ano
inteiro em Saigon aprendendo contabilidade de registro de requisições.
Coisa que eu não desejo pra um cachorro.”
Os rolos giravam lentos com uma leve sibilação tripla. A expressão dos
Agentes do IRS parecia a de um grupo de escoteiros em volta de uma
fogueira de contação de histórias. Uma breve oscilação da fita do microfone
de entrada nem foi percebida.
“Esperou até a bunda do Marcus Gordão, o Agiota, estar bem pertinho,
encostando no rosto mas sem o peso todo da bunda largado nele, se ergueu
um pouco e mordeu a bunda do Marcus Gordão. E eu não estou falando de
uma dentadinha de amor, não, eu estou falando de uma enterrada total tipo
dobermann de toda a dentição frontal do camarada no arco da nádega da
bunda do Marcus, tanto que mesmo lá do tornozelo eu consegui ver o
sangue descendo pelo queixo do surrealista e a bunda do Marcus Gordão, o
Agiota, se flexionando no que ele dava um salto e soltava um grito que fez
as janelas sacudirem e derrubava os dois carinhas que estavam segurando os
ombros do Diablo, o Surrealista Canhoto, em cima da fileira de máscaras
sem olhos que o cucaracho tinha na parede, que caíram todinhas e fizeram
um puta estrondo e enxergaram o horror que era aquele cara
inacreditavelmente obeso se empinando dali e tentando com todo o peso do
corpo tirar a bunda dos dentes do Diablo, o Surrealista Canhoto, que,
cavalheiros, permitam-me afirmar que não ia largar, não, o cara parecia um
Dragão de Komodo, mesmo com o Marcus Gordão com as mãos
enganchadas nas narinas do nariz do carinha pra tentar arrancar ele da
bunda e com o assecla principal do Marcus Gordão, Marvin ‘O Assecla’
Flotkoetter já abaixado ali mordendo a orelha e a bochecha do Diablo, o
Surrealista Canhoto, tentando fazer ele soltar, e tanto ele quanto o Diablo
estavam rosnando e o Diablo sacudia a cabeça tentando arrancar de vez o
naco da bunda do Marcus Gordão e ele com o nariz e a orelha sangrando e
o sangue simplesmente espirrando, tá, assim, espirrando de um jeito arterial
pra tudo quanto é lado da bunda do Marcus, no colchão e na calça dele e o
Marcus Gordão cagou de medo e de dor e os gritos dele fizeram todo
mundo aparecer de pijama e de cueca e com creme contra acne na cara e de
aparelho ali na porta ainda aberta, olhando pro que parecia obviamente se
bem que na hora nenhum de nós percebeu um estupro tipo gangue de prisão
que acabou dando errado.”
§ 30

“O DD Substituto é um tipo homem do povo. Mas supercria do


Glendenning. 907 313 433, COC total, o Sheehan, GS-13 nove anos depois.
Ele já auditava no Distrito 10 em Chicago antes de se formar. Veio pra cá
com o Glendenning. Meio que o cara que fazia os servicinhos sujos do
Glendenning, camarada beleza pura, tudo entre amigos, só sorrisos mas
com um olhar que te atravessa. Cuida das ligações com o pessoal dos
Assuntos Internos. Não muito estimado. Fora que ele parece uma ilustração
de moda. Parece um modelo original dos descoladinhos dos anos 70. Súper,
sabe como, assim meio mod.”
Sons de Reynols fazendo alguma coisa sem relação com isso.
“Ou seja com as costeletas, a calça boca de sino, a camisa social azul-
clarinha. Aquele trequinho de couro no pescoço. Tudo.”
“Pode poupar a gente dos comentários de estilista, Claude.”
“Totalmente cria do Glendenning. Mas um 3-D de peso por conta
própria. Relatórios de Desempenho todos acima de 8. Nenhunzinho abaixo.
Virou GS-11 em 77 com um recurso independente ao Núcleo de Promoções;
o Glendenning não teve nada a ver com isso. Mas cria do Glendenning.”
“Então ele vai enfrentar?”
“Ele é um implementador. Escolheu ficar na administração; ele se
inscreveu. Se as coisas passarem pelos canais normais ele não vai resistir.
Mas não vai ajudar. Ele implementa.”
“O Glendenning tem muita cria no 047, pelo que você está dizendo.” O
tom ligeiramente mais agudo e arredondado da voz de Reynolds indicava
que ele estava dando o nó na gravata.
“O Glendenning tem um alto nível de apoio entre os Gerentes de Grupo.
O Rosebury e o Danmeyer nas Análises e nos Trimestrais podem ter vindo
com ele, o período que eles passaram em Syracuse coincide, mas o resto
estava aqui antes do Glendenning tomar o pé na bunda. Ainda não está
claro quanto desse apoio é político e não sincero, o que indicaria quanto o
Glendenning andou mexendo os pauzinhos no 047. Eu não consegui
arrancar nem uma palavra contra ele, de ninguém. Claro que isso pode
significar muita coisa.”
“Você não precisa nos dizer o que as coisas significam”, sem calor. O
grande Motorola cinzento de Reynolds tinha um descanso de queixo de
violino soldado pra ele poder segurar o aparelho só com o pescoço e liberar
as mãos, coisa que sempre que Sylvanshine tentava com o seu ele acabava
ou esquecendo e mexendo a cabeça do jeito errado e o treco caía no chão,
quebrava e ele tinha que gastar tempo pensando em como fazer a requisição
do seu quarto telefone de campo no ano, ou aquilo lhe provocava umas
pontadas perto da omoplata. Ele segurava um telefone normal de teclas com
uma mão e mordia pele morta da beira da unha enquanto virava páginas na
prancheta.
“A Chaney tem uma foto dela com o Glendenning na parede do
escritório, acredite se quiser.”
“Chaney.”
“Julia Drutt Chaney, quarenta e quatro anos, GS-10, 952 678 315,
Supervisora Administrativa do 047B do outro lado do complexo. Mulher
grandona, bem grandona. Redonda. Tamanho família lá na Filadélfia se
você lembra dela. De usar bata. De você ver ela atravessando lá o pátio e
parecer que são várias mulheres coabitando uma mesma roupa. Bochechona
vermelha. Mas de não engolir sapo, Desempenho…”
“Nós só estamos interessados no 047B para as Auditorias, e isso é
secundário.” Sylvanshine estava tentando lembrar o nome da sua professora
da segunda série, que estava ali parada no ponto final de uma longa cadeia
de ideias perdidas cujos passos intermédios ele já tinha esquecido, mas que
tinha começado com as manobras que Reynolds havia empregado pra
permanecer em Washington e em Martinsburg por várias semanas e tentar
manter alguma influência sobre Mel Lehrl se oferecendo pra analisar os
relatórios de campo preliminares de Sylvanshine e reduzi-los a padrões de
fatos relevantes pro Lehrl antes de acabar se juntando ao Claude nesse lugar
horroroso depois que todas as suas estratégias usuais deram em nada.
“Vamos nos concentrar no bife e não nas ervilhas aqui Claudie meu chapa o
que você acha?” A jocosidade era um registro que Reynolds muitas vezes
empregava com subordinados ou funcionários de nível GS mais baixo, e
tanto ele quanto Claude sabiam que Sylvanshine ficaria procurando um
jeito de devolver a ofensa. “O bife é a Análise.”
“O DDA das Análises é Rosebury, Eugene E., quarenta anos, GS-13, 907
313 433, louro-claro, alto, meio corcunda, os óculos não servem direito ou
as orelhas não são muito simétricas, de alguma maneira parece erudito,
pode ser só o cachimbo, fuma cachimbo, cria do Glendenning até o miolo.
Eu não gosto daquele cabelo, alguma coisa naquele cabelo. Implementador.
Vaquinha de presépio. Nem fede nem cheira.”
“O segundo DA é o Yeagle? Yagle?”
“É Gary NMI Yeagle. Sujeito tipo pode-me-chamar-de-Gary. Espécime de
aparência estranha. Rostão pesado e quadradão, mas comprido, mas
delicado, no queixo, com umas banhas penduradas, o que com a queixada
faz você pensar que alguém está te sovando com um punho derretido cada
vez que você olha pra ele. Trinta e nove, não, desculpa, -e-oito, vaselina
mas de um jeito diferente do Sheehan porque o vaselinismo do Sheehan é
profissional e estratégico enquanto com o Yeagle você sente que ele só é
inseguro e precisa que todo mundo goste dele senão o mundo explode e
coisa e tal.”
“O que faria dele um elo potencialmente fraco.”
“O tipo de cara que é muito tímido e nervoso com você, mas tenta ser
super-ríspido, empolgado e atirado, mas não dá conta e aí a coisa vira uma
tortura pra todo mundo. Uma queixada que dá pra limpar trilho.”
“Então o Yeagle pode ser um dos nossos se a gente vai fazer a sintonia
fina dos esforços do Mel nos primeiros estágios.”
“Fora umas sobrancelhas desse tamanhão assim. Sério. Umas
sobrancelhas à la Tolkien num camarada de trinta e oito. Um sorriso
superintenso que ele disfarça tentando fazer parecer um riso sardônico ou
uma careta, puxando aquelas sobrancelhas inacreditáveis pra baixo. O tipo
de cara que te cumprimenta com as duas mãos. GS-13 mas Gerente de
Grupo desde o segundo trimestre de 78, então ele pode ter lá seus méritos,
mas eu ainda não encontrei. Não o tipo de mão pesada que você podia
esperar de um Gerente de Grupo num Posto de Análise.”
“O Glendenning que promoveu?”
“O currículo do Yeagle é meio truncado. Você podia pedir pra alguém lá
puxar a ficha toda dele; esse aqui é truncado foi o que deu pra eu achar.” O
polegar de Sylvanshine estava sangrando de leve e ele olhava em volta em
busca de alguma coisa desimportante com que enxugar o sangue. Tanto ele
quanto Reynolds sabiam em que grau a substância e a forma do relatório de
Sylvanshine seriam profundamente diferentes se ele estivesse falando com
Merrill Lehrl, e apesar de não haver dúvida de que isso de certa forma
incomodava Reynolds, não havia como pensar que justificasse a jocosidade
e suas implicações. Os dois sabiam que os relatos ainda não batiam. Às
vezes Sylvanshine imaginava a si próprio e Reynolds como parceiros numa
espécie de dança da antiga nobreza, muito solene e rigidamente prescrita, de
modo que as menores variações eram comunicadas pessoalmente. “Ele e o
Sheehan são contrapontos vagamente interessantes em termos de
vaselinismo. Eu não posso dizer que gosto de nenhum deles. O Yeagle usou
a mesma gravata três dias na semana passada. Anda com aquele cachimbo
mesmo quando não está aceso. Alguma coisa que podia ser uma mancha de
condimento na gravata. Não gosto dele, daquela queixada esquista e
pendulante. Outro dia vi ele esfregar uma narina com as costas da mão.”
Barulho de garganta do outro lado. Pedacinhos de alguma conversa nas
beiradas da frequência em que eles estavam se faziam ouvir nos silêncios;
faziam Sylvanshine pensar em fios de cabelo numa escova empoeirada. A
pia estava atulhada de pratos e embalagens semivazias de comida chinesa
que dois dias antes ele tinha jurado a si próprio que tiraria dali; ficava difícil
inalar só de olhar pra pia.
“Diga pro Mel que o melhor que eu posso fazer são umas indicações. O
Yeagle ainda é uma incógnita. Parece inofensivo, mas pode ser parte de
alguma apresentação estratégica mais ampla. Recomende um Informal logo
que o Mel voltar — soltar o cara, fazer ele falar. Possível. É tudo que eu
consigo arriscar com o Me Chame de Gary neste momento.”
“Alguma coisa sobre o próprio Glendenning por enquanto?”
“Não fui falar com ele. Sujeitinho ocupado. Nunca para. Parece ocupado
de um jeito determinado em vez de inútil ou desorientado, o que se for
verdade vale a pena mencionar pro Mel.”
“Valeu.”
Não o dedão exatamente, mas é verdade que Sylvanshine agora chupava
um cantinho do dedão. “Eu vi o cara no corredor ali daquele lugar, o prédio
lá onde ficam os escritórios do Sheehan. Lugarzinho confuso, as fotos não
fazem justiça ao tamanho da baderna celular que é aquilo tudo. Parece mais
uma universidade ou uma escola técnica pequena. Você sabe que o meu pai
dava aula numa escola técnica.”
“Então quando você viu o Glendenning nesses corredores esquecidos…”
“Até aqui não muita coisa. Sujeito alto e grisalhão. Cabelo grisalho
dividido bem certinho. O tipo de cara mais velho que você ia chamar de
‘distinto’ ou de ‘bem-apessoado’. Mais pra alto, eu diria. O nariz parecia
meio grande, mas isso em movimento, de perfil.”
“Ô, Claude, sério, tem algum processo que te faz concluir que eu quero
ficar ouvindo avaliações estéticas? Tem algum raciocínio interno que te diz
que essas coisas são dados úteis pra meter na cabeça do Mel quando ele
começar a trabalhar com esse pessoal? Não faça força agora, mas pense
nisso e uma hora dessas você me conta qual é o processo que te faz concluir
que eu tenho que ficar esperando acabarem os detalhes de roupa e de porte
físico pra então ouvir as coisas que vão me ajudar a fazer o meu trabalho
aqui.”
“O seu trabalho, eis a questão. Reduzir. Reduzir a padrões de fatos,
relevância. O meu trabalho é com dados crus. Ou eu estou lembrando
errado? Fui eu que pedi primeiro pra ir pro campo? Será que eu estou
confuso?”
Mas os sons incomodados eram apenas Reynolds tentando passar os
dedos por baixo do nó para chegar ao último botão, coisa que sempre lhe
dava trabalho. Sylvanshine aguardou o tempo normal olhando para o dedão
e tentando ver se conseguia sentir gosto de sangue mesmo — gosto que
sempre o fazia se lembrar de encostar uma bateria de nove volts na língua
quando era menino, mas cuja exata associação lhe escapava — e ficou
ouvindo para pelo menos tentar identificar o gênero da conversa
fantasmática na linha, e finalmente disse:
“Se bem que a secretária dele — uma delas, parece que ele tem duas, se
bem que uma pode ser da Administração ou contato com os Gerentes de
Grupo — enviou um memorando, está na caixa de entrada do Mel, Bem-
vindo e ouvi umas coisas interessantes do Henzke no que se refere à
capacidade de fluxo do 0104 — é o Posto de Recolhimento de Philly, o
Auto…”
“E você tem que me dizer isso, porque eu não estava lá…”
“… Henzke no que se refere à capacidade de fluxo na Filadélfia etc.,
favor ligar para a sra. Ooley — que é a secretária-chefe — para a sra. Ooley
assim que chegar e passar pelo processamento…”
“Como assim? Ele tem que passar pela orientação que nem um vira-bosta
qualquer?”
“Não está comigo, ainda está na caixa do Mel, que por falar nisso é uma
bela de uma caixa de entrada, do mesmo tamanho e na mesma fileira da do
DDA e acima da do GG apesar de ter o nome do Mel escrito numa fita por
cima do nome de outro camarada, mas isso não quer dizer necessariamente
alguma coisa a não ser que ainda esteja desse jeito quando ele chegar. E eu
mandei a SS colocar o nome dele na porta lá naquele prédio; eu mesmo dei o
estêncil pode dizer pra ele, e falei da coisa do elevador, então vai ser no
térreo. Diz pra ele que a porta fica trancada e que a janela de fora fica
trancada e não dá pra ver nada de fora, mas que pela distância entre as
portas de um lado e de outro parece espaçoso. Infelizmente o banheiro mais
próximo é no terceiro andar; pede pra ele orientar se a gente quer correr o
risco de encrencar com isso, mas é de esquina bem como foi solicitado. Não
tem boiler lá embaixo, você sabe que ele ia querer assim. Diz pra ele que as
portas de um lado e de outro estão a 4 e 5 e uns trocados, respectivamente,
o que é quase do tamanho das da Filadélfia.”
“Você deixou o pessoal te ver usando fita métrica nas portas próximas da
dele?”
“Não seja critilo. Eu já tenho a chave da porta da frente e as chaves de
duas das outras quatro portas. À noite antes de voltar pra base eu e você
temos que ter uma bela conversa sobre tudo antes de você ver e ter um
siricutico. Complexo de apartamentos de Angler’s Cove. Deu pra entender?
Aquele primeiro apartamento de Rome fica parecendo de luxo, pra te dar
uma…”
“O memorando era da secretária ou do próprio Glendenning você está
dizendo.”
“A má notícia é que não é no prédio principal, onde fica o escritório do
Glendenning e dos outros funcionários do DD, sei lá o nome do prédio. Eles
têm uma nomenclatura toda esquisita pras instalações aqui que nem
Chicago.”
“Ainda é do escritório do Mel que você está falando.”
“Eu só estou percorrendo as minhas anotações exatamente de acordo com
o protocolo de campo como você pode lembrar e como você mesmo fez em
Rome. Infelizmente deve ser no predinho separado onde eles fazem as
Corporativas; o Univac fica lá também. O prédio é meio um hospício, eu
acho. No primeiro andar onde ficam os escritórios de todo mundo que
perfura cartão. Você só tem que preparar o Mel pra isso pra ele não chegar e
ver onde que os caras colocaram ele e começar a cagar marcianos por causa
disso tudo.
“E você talvez lembre que as ligações iniciais de relatórios de campo
devem durar de dez a doze minutos, se você decorou o protocolo.”
Sylvanshine sabia exatamente o que Reynolds estava fazendo fisicamente
naquele minuto, mas não conseguia pensar na palavra certa nem pra si
mesmo. E também não ia falar que tinha perdido a carteira no drive-through
do banco ontem, o que no fundo pra dizer a verdade podia até ser problema
do Merrill Errol Lehrl, mas não era do Reynolds nem a pau, por mais que
soubesse o que ele ia dizer. Às vezes as unhas das mãos de Sylvanshine
tinham umas linhas calcioides esquisitas, às vezes não. Ele se preocupava
com isso em momentos atípicos, com o que significavam as linhas. Não
ajeitando, alisando, alisando a gravata, que se fosse sábado seria ou a
verde-clara ou a azul-clara com os losanguinhos vermelhos, as duas sendo
imitação de seda e lisinhas que nem bunda de nenê o tempo todo com ou
sem ele alisar. Era um gesto inconsciente do Reynolds e funcionava que
nem uma dica inconsciente no pôquer, e Sylvanshine tinha renunciado a
todo tipo de oportunidade de chamar a atenção do Reynolds pra isso porque
não queria o Reynolds consciente dos seus gestos inconscientes de maneira
nenhuma, já que percebê-los significava poder. Em Martinsburg
Sylvanshine ficou com o quarto maior porque o contrato estava no seu
nome. Dessa vez, desconsiderada a miséria de Angler’s Cove, os quartos
eram exatamente do mesmo tamanho, a distância entre as portas não era a
única coisa que Claude tinha medido, e ele sabia o que o rosto de Reynolds
faria quando visse. Merrill Errol Lehrl sempre reservava ele mesmo sua
moradia.
“Foi o próprio Glendenning que enviou o memorando ou a secretária?”
Sylvanshine estendeu o polegar e fez a luz do teto incidir sobre o dedo,
que revirou pra lá e pra cá. “Você não ia acreditar no calor que está fazendo
aqui. E na umidade. O ar parece alguém respirando na tua cara. A Filadélfia
no seu pior dia de verão não se compara. Os bebedouros do 047 não são
refrigerados; são umas coisinhas baixas de cerâmica branca de banheiro que
nem de pré-escola e a água é na temperatura ambiente, o que significa
quente.”
Reynolds exalou tão forte que o telefone transmitiu o som. “Eu peço
desculpas pelo meu tom, Claude.”
“Que tom?”
“Tudo bem? Está feliz agora?”
“Você está me superestimando, amigo.”
“E, sim, eu sou seu amigo. Isso aqui é uma equipe. Eu não devia ter
pegado no seu pé com o tom de subordinado que usei. A pressão está alta
esta semana. Eu estou com dor de cabeça a semana toda, de tanta pressão.
Eu não estou nada legal. E nada disso serve de justificativa, estou pedindo
desculpas de verdade.”
Se havia linhas elas não estavam visíveis. “A secretária ou secretária-
chefe enviou, eu acho. Ooley, Carolyn ou Caroline talvez. Ficha não
localizada, não está nos arquivos de encaminhamento do Apoio.
Mulherzinha dura, um rostinho seco. Blusa no ombro como se fosse uma
capa. O ar-condicionado do prédio principal ligado a toda; é onde ficam as
Análises, então diz pro Mel que a boa notícia é que o próprio ambiente de
trabalho já tem ar-condicionado ainda que não tenha halógenas, mas as
salas de VAX são com halógenas, então a gente pode supor que a SS tem
recursos se quiser; se você quiser eu posso telefonar e…”
“Então o memorando era da secretária, e não do próprio Glendenning.”
“Eu insistiria com o Mel pra ele não levar isso muito a sério. O
Glendenning anda fora do escritório mais da metade do tempo. Ele foi até o
Regional duas vezes de quarta passada pra cá.”
“Ele anda correndo direto no Regional? Você espera até agora pra incluir
isso e quando inclui é só um aparte do comentário sobre a blusa da
secretária?”
“Pelo jeito do pessoal que se aproxima da mesa dela, a mulher é de dar
medo, essa Ooley. Você sabe como é no interior. Ela pode dominar o
Glendenning; ela pode ser o elo de verdade. Fotinho de gato na mesa, mas
nada de pelos visíveis na blusa. Estranho. E óculos numa correntinha
pendurada no pescoço, daquelas antigas de prata, como é que chama.
Potencialmente uma parte assustadora da equação. Até aqui eu perguntei do
gato e lhe dei uma flor que alguém estava vendendo no canteiro da estrada
grandona ali da frente. Que leva a essa cidadezinha em coma permanente.
Diz pro Mel que eu já estou amaciando essa.” Ele não disse a Reynolds que
não havia sinal da flor na mesa no dia seguinte.
Deixando Sylvanshine ouvir de novo sua respiração — “E o memorando
dizia especificamente fiquei sabendo de coisas boas pelo Henzke, pelo Bill
ou pelo Bill Henzke?”.
“Só Henzke.”
“Merda.”
“A outra secretária ou contato ou sei lá o quê sumiu. Supostamente
jovem e a lindona do Distrito, dois camaradas diferentes das Cobranças me
disseram que vale a pena inventar assuntos falaciosos e aparecer na hora do
almoço da Ooley só pelo privilégio de ver a comissão de frente.”
“Eu já pedi desculpas, Claude.”
“A secretária do Rosebury é uma mulher grandona e pálida que nem
lençol chamada Bernays. Parece o fantasma de um cavalo de tração.”
Cada aparelho móvel Motorola custava $349 ao Serviço em comparação
com os $380 do varejo, parecia um walkie-talkie gigante, pesava mais de
um quilo e era uma coisa que alguém tão elegante e tão diminuto como o
Reynolds Jensen Jr. parecia meio bobo carregando.
“Então. Vamos fazer um esboço da semana.” Reynolds teria condições de
dizer ao dr. Lehrl que eles tinham conversando e que ele havia ao menos
tentado se o que aparecesse na semana seguinte não fosse o que ele queria.
Ver Reynolds tentar realizar manobras políticas era como ver um lenhador
dançando, disse Harold Adny. “Eu preciso de dados convincentes e
relevantes repetindo convincentes e relevantes de tipo biográfico, funcional,
além das avaliações e de impressões a respeito das Análises no dia 17. É
esse o protocolo que eu estou lendo. O grupo é como? Tem Rosebury na
Administração, tem esse Yeagle como GG — qual é o tamanho do grupo,
vinte? A dotação das Análises é 2,4 vezes a de Rome, certo, então o quê,
vinte e dois?”
“Vinte e quatro, talvez vinte e cinco. Tem umas distribuições meio
heterodoxas de turnos, eu ainda não deduzi o padrão, e o Glendenning
aparentemente aprovou. O Glendenning personalizou bastante as Análises,
o que a gente só pode imaginar que a coisa vá se intensificar. Digamos entre
vinte e quatro e vinte e seis, o que dobra depois com mais outros vinte
trabalhando com a perfuração e a catalogação dos cartões durante a
Tempestade, ainda que corra o boato de que o Glendenning lutou bastante
pra ter gente do Serviço em vez de estagiários na Tempestade, o que é
compreensível por causa da cidade em que ele está; não existe exatamente
um grande conjunto de gente talentosa por aqui.”
“Isso é um dado bom. Isso é convincente.”
“Digamos vinte e seis. Foi difícil conseguir o contato.”
“Eles são reservados?”
“Mais pra entorpecidos. Eles trabalham em tempo integral. Vidrados.
Como que é aquela outra palavra. O tempo médio de duração aqui é de três
anos. Embotados, essa é a palavra. Ah” — Sylvanshine se censurou por ter
esquecido isso — “e a maior notícia é que a primeira manobra importante
do Glendenning quando chegou foi a eliminação dos calouros das
Análises.”
“Você está de brincadeira.” Por hábito do Serviço, os recém-formados
nos três Centros Nacionais de Treinamento do IRS passavam os primeiros
anos da carreira nas Análises, que eram a lotação mais terrível e impopular
do Serviço. Uma certa porcentagem corria então para passar pelos exames
de certificação, já que um agente GS-11 precisa ter um COC, e as Auditorias
eram a promoção mais natural se você quisesse sair das Análises. O fato de
Glendenning ter que evitar os calouros no seu departamento de Análises
indicava algo importante, ainda que nenhum dos dois soubesse bem o quê.
Tão importante que Reynolds nem teve tempo de pegar no pé do
Sylvanshine por ter precisado esperar até agora para ele lhe contar aquilo.
“Você sabe que o Mel vai querer saber mais sobre isso. Passe isso
imediatamente pro primeiro lugar do protocolo da semana que vem.”
“Concordo provisoriamente.”
“Que bom que você concorda.”
“Que bom que você acha bom.”
“Incrível.”
“Só que fica dependendo do resto do relatório, quando eu chegar ao fluxo
e aos resultados.”
“Incrível. E como é que é o fluxo?”
“Primeiras Análises individuais numa sala, umas duas dúzias de mesas
mais o cubiculozinho jateado do Yeagle. Ou as simetrias da sala estão meio
erradas ou as divisões são aproximadas — podia ser uma seção pra 1040,
uma pra 1040A, uma menor pras Gordas como era em Keene. Tem um
departamento Corporativo que ocupa outra sala.”
“Se o Corporativo mudar vai ser só depois, eles fizeram aquela
experiência com as DIF, então…”
“Daí eu nem ter mencionado.”
“Se você ficou chegado da moça da pele seca lá do Glendenning, deve ter
conseguido ver as especificações.”
“As especificações estão uma zona. Não estão nem em cartões. Eles
usam uns formulários 904 antigos que eu não via desde que saí do Centro
de Treinamento.”
“Nossa, que surpresa.”
“Eles ficam todos nuns armários horrorosos, verdes bem escuros, num
complexo no porão que até uma aranha ia pensar duas vezes antes de
entrar.”
“Mas você corajosamente desceu até lá com uma lanterna, é o que você
quer que o Mel fique sabendo.”
“Hoje ou amanhã eu tenho que pedir pra alguém de Martinsburg rodar os
dados e tabular os valores medianos; os formulários de especificações estão
uma zona porque o trabalho é periódico demais. Sublinhe isso pro Mel, que
eles recebem declarações tanto do Regional quanto do CS de St. Louis sem
nenhum conjunto de procedimentos nem de ritmos que eu consiga
perceber.”
“Os caminhões só dão ré e descarregam as declarações é o que você está
dizendo.”
“Então o que ainda está em aberto aqui comigo — isto vai parecer bem
esquisito — é que nos últimos seis meses um total de 1 829 declarações
passou pelo Departamento de Análises do 047 todo mês, mas isso inclui
tudo, de EZs individuais a Gordas complicadíssimas, cada uma com vinte
documentos comprobatórios e Reconciliações de EST que o Rosebury deixa
Danmeyer mandar pra cima deles numas ondas horrendas que batem a cada
trimestre.”
“Isso não está descrito de um jeito que consiga me dizer alguma coisa,
Claudie.”
“É quando você chegar aqui que você vai entender o motivo. É
dickensiano. Tem só um terminal Univac na sala. As rebarbas de
Martinsburg chegam nuns carrinhos gigantes empurrados por um menino de
carga que nem antigamente, aí os resultados são jogados por umas calhas
dois andares pra baixo, onde as moças dos cartões preparam as rebarbas pro
Regional e pras Cobranças. E/ou Cobranças. E os analistas estão
trabalhando com lápis e calculadoras NCR, sendo que em algumas ainda têm
uns adesivos da campanha de 52 e coisas assim. Eles têm aquelas bandejas
ou umas coisas que parecem gavetas e saem da mesa deles de tudo quanto é
lado que nem naquelas fotos de Philly que o Mel tinha dos tempos dos
pesadelos. Aqui eles recebem rebarbas normais de Martinsburg, mais as
ESTs, mais solicitações de avaliação da DIC. Eles fazem umas Gordas que St.
Louis nem se dá ao trabalho de abrir de tão gordas. Eles fazem trabalho por
empreitada pra Auditorias Empresariais quando uma AE passa de um ano. A
coisa toda é quase no nível de Philly, pode dizer pra ele. Mas essa…”
“Mil oitocentos e vinte e nove por 22 dias úteis dá o quê, três por dia?”
“Três ponto 198 por turno de nove horas menos almoço menos a média
do Regional de 45,6 minutos de intervalos, o que me deu sete horas e 29,4
minutos então 3,2 por 7,5 dá .4266 com dízima periódica declarações por
hora-homem, o que pra aquele Regional é tão absolutamente na média
que…”
“Então não chama a menor atenção, em termos de produtividade, o que
fragiliza a nossa posição no que se refere ao Glendenning, mas também
transforma as Análises do 047 num belo modelo de teste.”
“Não, Reynolds. Eu estou dizendo que é absolutamente na média. A
média do Regional 4 pra 82, 83 e a parte de 84 pra que o Interno já carregou
os dados — saca só — é de .4266 com dízima periódica por hora-homem.”
“Eles estão exatamente na média?”
“E prevendo essa reação por favor diga ao Mel que eu refiz as contas
duas vezes. Tudo com os cartões, com o total do fluxo médio, com as
análises de desempenho, com as especificações de utilização. .4266 com
dízima periódica. Como se…”
“Como se o Glendenning e o Rosebury e/ou esse tal desse Yeagle
estivessem dando um jeito de manipular as estatísticas pra gerar um
resultado tão absolutamente mediano que ninguém jamais suspeitaria que
eles estivessem manipulando as estatísticas.”
“Eu verifico de novo se você quiser se você só me der um tempinho aqui
pra discutir a pressão de água do apartamento e um banheiro com a
descarga mais preguiçosa de todos os tempos nesse doze estados que eu…”
O tom agora era do Reynolds Jensen Jr. 100% concentrado, determinado,
o que significava que, sentado ou de pé, ele estava levemente curvado pra
frente e sem nem piscar. “Isso. Verifique. Ele vai querer isso, que você —
ou como se de algum jeito o Glendenning tivesse conseguido estruturar a
mão de obra, o fluxo e o moral do grupo de forma a conseguir precisamente
a média nas Análises.”
“O que significa que se e quando quiser ele simplesmente sacode a
varinha mágica e abracadabra.”
“Será que isso pode ser uma coisa boa?”
“Isso diria que ele e/ou a equipe composta dele e do Rosebury são uns
gênios, os Mozarts da produtividade, cujos métodos de gerenciamento, se
quantificados e repassados, ou se os outros Diretores Distritais
convencessem o CD de que aquilo podia ser repassado…”
“Podia acabar com o projeto.”
“Especialmente se você pudesse ver esses Analistas. Não é um grupo de
elite, Reynolds. Nenhunzinho acima de GS-11. Tiques, espasmos,
excentricidades. Mãos trêmulas. Eles vão todos pro banheiro masculino
escovar os dentes depois do almoço. Uma escovação que não acaba mais.
Um tem um violino na mesa. Sem motivo. Só um violino. Outro tem um
fantoche de doberman na mão sem a borrachinha e conversa com ele.”
“Isso tudo tem que ficar registrado, Claudie.”
“São uns homens ocos é o que eu estou dizendo. Se o Glendenning pode
conseguir algum resultado com esse pessoal… Tem uns que parecem
catatônicos. Um pode ser um desses autistas com síndrome de savant. Mas
ainda não falei com ele.”
“E nada disso tem a ver com produtividade.”
“Eu falei do vento lá fora? Do barulho que ele faz quando passa pelas
frestas das esquadrias? Ou do calor? Ou da massa enorme de cidadezinhas
rurais minúsculas e cruciformes com uma e somente uma intersecção e que
parece ser só um silo de cereais e um posto de gasolina com nomes como
Arrowsmith, Anthony, Shirley, Tolono, Stayne? Tem uma cidade aqui perto
chamada Big Thistle. Ou seja: Cardo Grande, Illinois. Opa, vamos dar uma
passada lá na lanchonete de Cardo Grande e dar um cardo na Fanny. E a
umidade. As toalhas não secam; o para-brisa do carro fica cheio de
condensação que nem um copo de chá gelado se você liga o ar-
condicionado na vinda. O céu tem cor de gelo de hotel de vagabundo —
sem cor, sem profundidade. Parece um pesadelo. E como é plano. Qual que
é o horizonte no nível do mar, trinta quilômetros?”
“Vamos nos ater à missão, Claudie.”
“Ele me enviou pra segunda dimensão, R.J.”
“Você estava indo tão bem, Claudie.”
“E se eu te disser que estou com saudade de você?”
“A gente não vai começar com isso, não…”
“Porque sabe a aparência dos olhos de alguém bem velho mesmo, com
catarata? Aquela coisa leitosa medonha que parece que não tem ninguém
em casa? Imagine um rosto inteiro assim. A Filadélfia era uma alucinação.
Isto aqui parece um véu de tédio. O tédio além do tédio. Esses Analistas, a
maioria…”
“Você percebe que isso de certa forma é uma boa notícia.”
“Bom, não é bonito de ver, isso eu posso…”
“Chegou alguma coisa do equipamento de demonstração?”
“O Glendenning está deixando o pessoal personalizar as mesas. Ouvir
música se eles — não fumarem à mesa, mas saca só: tem uns caras que
mascam tabaco à mesa.”
“O que a gente tem em termos do perfil real dos equipamentos, então?”
“Será que você por acaso já chegou a ver uma escarradeira efetivamente
em uso, Reynolds, porque eu com cer…”
“Eu também estou com saudade de você, Claude. Ficou feliz agora?”
Uma vez ele tinha mascado tanto que acabou infeccionando e ficou com
um gosto horrível. “Eu ainda não fiz uma lista propriamente dita.”
“O que eu digo pro Mel?”
“Que eu só estou há uma semana aqui e sofrendo terrivelmente com o
estado primitivo das instalações de campo, com a falta de vetores de contato
e com a pasmaceira gerada pelo calor. Diz isso pro Mel.”
“Quanta coragem in absentia.”
“Como você deve lembrar o equipamento mais importante está com o
pessoal do Corporativo na base de campo, e fora isso de analisar as
instalações do Mel eu andei me esgueirando pelas Análises. Conforme
especificado, acho eu.”
“Eu não estava pegando no seu pé, Claudie. Vamos só acabar com isso.
Eu vou encarar um trânsito horroroso saindo daqui.”
“Eu até aqui vi um mainframe Sperry Univac 3- ou 4000 com os
terminais todos aparentemente no Corporativo. Vi duas processadoras de
cartões IBM 5486 e deduzi a presença de equipamento de perfuração e
análise correlato, da série 5000.”
“E de cartões de 96 colunas pras máquinas IBM.”
“Só que os Univac ainda usam os de 80. Parece que eles deram uma
ajambrada aqui pra misturar os dois.”
“Então os analistas todos têm proficiência em hexadecimal, ou será que
são as perfuradoras? Mas as perfuradoras são daí mesmo, não são?”
“Eu ainda não tenho um protocolo de treinamento. A gente pode supor
que eles são traduzidos pra língua natural por causa dos estagiários entre
março e maio, certo?”
“Nem Rome misturava 96 com 80.”
“Isto aqui é província, como eu estava te dizendo. O escritório do Mel
fica bem do ladinho do Central, que eu imagino que seja polaco de outra
colônia. Eu vi uma calculadora-impressora Burroughs 1005.”
“E a Burroughs ainda usa cartão?”
“A Burroughs trabalha com fita magnética desde a série 900. Eu te falei.
A coisa toda é um desengonço. Um bazar de rua. Eu vi duas máquinas IBM

de RPG numa despensa com uma maçaroca inacreditável de cabos coaxiais


que ia pra um buraco esfiapado e fora das especificações do código no teto
da despensa, supostamente pra compatibilizar as RPGs com o Univac. É tudo
muito antiquado e muito fuleiro e eu não ia ficar muito surpreso de achar lá
dentro uns macaquinhos com uns ábacos e barbante.”
“É uma notícia muito boa. E o Cobol dos compiladores?”
“Nesse momento desconhecido.”
“A gente tem boas notícias no fronte do equipamento.”
“E se alguma coisa chegou do CD a SS ainda não sabe.”
“Então pode estar simplesmente largado numa doca de carga?”
“Então é pra eu estar nos Registros com uma lanterna presa nos dentes,
no telefone com Martinsburg pra conseguir as análises de fluxo, sondando a
implementação do veto aos calouros do Glendenning, inventoriando o
equipamento e surripiando chaves pra dar uma espiada no escritório do Mel
tudo ao mesmo tempo? Ah, e nas docas de carga interrogando os brucutus
pra saber se alguma caixa ali está vindo de Martinsburg.”
“Eu só estou delineando um protocolo pro trabalho da semana que vem,
Claudie.”
“E eu sou o quê? Uma máquina?”
§ 31

Shinn tinha o corpo esguio e um cabelo louro fino de bebê que lhe caía
numa franja que parecia a dos Beatles nos primeiros anos. O homem
sentado ao lado dele na perua do IRS tinha saído de Angler’s Cove com
vários outros enquanto estavam todos ali parados na aurora de tons pastel
esperando a perua. O doce ar úmido e pesado das auroras do verão. Os
homens com crachás do Serviço todos se conheciam e falavam entre si.
Alguns bebiam de suas canecas ou fumavam cigarros que esmagaram
contra o meio-fio quando a perua apareceu. Um tinha costeletas e um
chapéu de caubói, que agora na perua tinha tirado duas fileiras de bancos à
frente. Alguns liam jornal. Alguns homens na perua não deviam passar de
uns cinquenta anos de idade. As janelas abriam como uma tampa em vez de
descer; era um veículo estranho, parecia mais um caminhão pequeno e
quadradão com bancos soldados no chassi.
A perua parou em mais dois complexos de apartamentos ao longo da
Self-Storage Parkway; num deles ficou em ponto morto por vários minutos,
aparentemente matando tempo pra cumprir uma agenda. Shinn usava uma
camisa social azul-clara. Uma conversa atrás dele ressaltava alguém
dizendo a outro alguém que se você fizesse um cortezinho na borda da unha
do dedo pé ela não encravava mais. Alguém bocejou bem alto e estremeceu
um pouco. O homem ao lado de Shinn, eles com as coxas em contato de
pressão variada conforme a perua balançava de leve de um lado pro outro
numa suspensão macia, estava lendo um panfleto adicional do IRS cujo título
Shinn não conseguia ver porque o cara era uma dessas pessoas que dobram
os panfletos até ficarem um quadradinho pra ler. Ele tinha uma mochila
pequena no colo. Shinn considerou a possibilidade de se apresentar; não
sabia bem o que a etiqueta recomendava.
Shinn tinha ficado parado na calçada bebendo a primeira Coca-Cola do
seu primeiro dia no Posto e percebendo as roupas desamarrotarem e
afrouxarem um pouco com a umidade, sentindo os mesmos cheiros de
madressilva e de grama cortada lá dos subúrbios de Chicago, ouvindo o
canto de pássaros despertos pela aurora nas árvores que cercavam a Self-
Storage, e sua mente andava solta ali por tudo, e de repente lhe ocorreu que
os pássaros, cujos pios e cantos repetidos soavam tão lindos, como uma
afirmação tão vigorosa da natureza e do dia que se abria, podiam na
verdade, num código conhecido apenas por outros pássaros, ser pássaros
que estavam cada um deles dizendo “Vai embora” ou “Esse galho é meu!”
ou “Essa árvore é minha! Eu vou te matar! Morra, morra!”. Ou qualquer
outro tipo de coisa tenebrosa, brutal ou de autoproteção — eles podiam
estar ouvindo histórias de guerra. A ideia lhe veio do nada e fez seu estado
de espírito piorar por algum motivo.
§ 32

“Não me peça pra fazer isso.”


Eu passei a Julie, minha irmã-coabitante, pro alto-falante enquanto ela
ainda estava tentando se livrar de fazer aquilo. Estava todo mundo na minha
parte do cubículo. Eu estava sentado trabalhando e eles parados em volta.
“Eu falei pra eles e eles não acreditam. Na precisão assustadora da coisa
toda, que eu fico tentando descrever, mas não estou à altura, especialmente
esse sujeito aqui, esse Jon de quem eu tava te falando.” Eu estava olhando
pro Soane enquanto a persuadia. Julie é minha irmã. A voz dela parecia um
pouco menos a voz dela ali no falante — tinha aquela coisa apertadinha,
ressecada. Steve Mead sempre usava uma borrachinha de contador no
minguinho da mão direita. O constante som dentário e metálico de uma
impressora vinha da Sala de Auditoria mais próxima do cubículo, um som
que deixava todo mundo de dentes travados enquanto a impressora
funcionava. Steve Mead, Steve Dalhart, Jane Brown e Likourgos Vassiliou,
todos parados em volta do falante na minha parte do cubículo, enquanto o
Soane tinha afastado um pouco a cadeira de rodinhas da sua estação de
trabalho pra se incluir no círculo.
“Eu não posso fazer quando você quer. Eu fico me sentindo uma boba;
não me obrigue a fazer”, Julie declarou.
“Quem foi que hoje cedo te levou três fuxicos de prender o cabelo
quando você só tinha pedido um?”, eu disse, fazendo um círculo de
afirmação com o polegar e o dedo e mostrando pros outros.
Veio o silêncio da minha irmã na outra ponta da linha.
“Eu já disse pra eles que parte do efeito da coisa se perde no telefone.
Sem os olhos e o rosto. Não tem pressão, ninguém está esperando
perfeição.”
“Mas que dia excelente pra um exorcismo, padre.”
Mesmo no alto-falante. Steve Mead visivelmente tremeu. Eu tive um
impulso de rir e mordi a junta do dedo de tão feliz. Dalhart e Jane Brown
estavam se olhando e tinham deixado o corpo se largar e se alongar um
pouco pra indicar o quanto estavam impressionados.
“A sua mãe chupa caralho no inferno!”, Julie disse, imitando.
“Impressionante, Nugent.”
“Meu Deus” e “É assustador”, Steve Mead disse. Ele está sempre
extremamente pálido e com cara de doente. Um parafuso Phillips estava
meio que se projetando de um dos suportes da parte de trás da área de apoio
dorsal da cadeira do Soane. O som rasgado da impressora continuava a
deixar todo mundo de dentes travados.
Dale Gastine e Alice Pihl, que sempre faziam auditorias juntos,
colocaram a cabeça por cima do cubículo pra ver o que estava acontecendo.
“Vocês tinham que ver a cara se desse. Ela revira os olhos inteirinhos pra
trás, fica pálida, estufa a bochecha e a coisa — ela nem parece que é ela
mesma até acabar, aí é assustador.” Eu disse isso. Soane, que é sempre
extremamente tranquilão e acomodado, estava fazendo alguma coisa com a
cutícula usando um clipe de papel que tinha tirado de uma caixinha.
A voz normal de Julie veio pelo falante. Eu considero Jane Brown
atraente, mas dá pra ver que o Soane não considera. “Chega?”
“Você tinha que ver. Eles estão todos chocados aqui. Muito obrigado
mesmo”, eu disse. Jane Brown sempre usa o mesmo blazer laranja. “De
olho saltado. A minha credibilidade aqui disparou graças a você.”
“A gente vai ter uma conversinha sobre isso quando você chegar em
casa, rapaz, pode apostar.”
“Mas e ela consegue deixar o cômodo todo gelado e escrever Socorro na
pele que nem quando ela…”
“Mais uma”, sussurrou Mead, que faz auditorias de fazendas e vai para o
balcão atender quando um contribuinte toca a campainha (a gente passa dias
e dias sem ver um contribuinte vindo pedir ajuda) e tem um rosto quadrado
e delicado e cara de quem ou nunca precisa fazer a barba ou usa hidratante.
Eu disse pra Julie ao telefone: “Mais uma e aí você vai ter se
desincumbido da tarefa, como sempre, com brilhantismo”.
“Jura.”
Likourgos Vassiliou, que é de uma palidez anormal, especialmente pra
alguém de etnia mediterrânea, disse pro Dale Gastine e pra Alice Pihl:
“Esse novato, o Nugent, ele não exagera; pode anotar isso aí”.
“U sinhô tem um trocadinho prum coroinha das antiga, seu padre?
Dimmy. Por que cê faz isso comigo, Dimmy? Deixe Jesus te comer, te
comer o cu!”
“Eu estou praticamente tendo arrepios”, Mead declarou.
“Essa é sem dúvida nenhuma a última vez”, Julie enfatizou no alto-
falante.
§ 33

Lane Dean Jr. com seu mindinho verde emborrachado estava à sua mesa
Tingle na fileira do seu Tento no fraldário do seu grupo moleza e fez mais
duas declarações, depois mais uma, depois contraiu as nádegas, contou até
dez e depois imaginou uma praia linda e quente com ondas suaves
conforme tinha sido instruído a fazer na orientação no mês anterior. Em
seguida fez mais duas declarações, deu uma olhada bem rapidinha no
relógio, depois mais duas, aí mandou ver e fez três seguidas, aí contraiu e
visualizou, mandou ver e fez quatro sem levantar a cabeça uma só vez a não
ser pra colocar os processos e os memorandos encerrados nas duas bandejas
de Saída que ficavam lado a lado na camada superior de bandejas onde os
meninos de carga podiam pegar quando passassem por ali. Depois de
apenas uma hora a praia já era uma praia de inverno fria e cinza e com algas
mortas que pareciam o cabelo dos afogados, e se manteve assim apesar das
tentativas. Depois mais três, inclusive uma 1040A em que as deduções de
RBA tinham erro de soma e o impresso de Martinsburg não tinha pegado isso

e teve que ser corrigido num dos Formulários 020-C da bandeja esquerda
inferior e aí uma quantidade considerável de informação repetida teve que
ser preenchida no 20 de sempre que você ainda tinha que fazer mesmo que
fosse só uma auditoria por carta e que o processo fosse pra Joliet e não pro
Distrito, sendo que você tinha que olhar cada código de cada coisa na
prateleirinha retrátil que ele tinha que afastar a cadeira meio desajeitado pra
conseguir puxar inteira. Aí mais uma, aí um despenhadeiro dentro dele
enquanto o relógio da parede mostrava que o que ele achava que era outra
hora não tinha sido. Nem de longe. Dezessete de maio de 1985. Meu
Senhor Jesus Cristo tenha pena de mim, um pobre pecador. Conferindo as
W-2s da Linha 7 de uma declaração bem naquele ponto do impresso de
Martinsburg onde a perfuração pra se você quisesse separar as folhas do
negócio acabava passando bem em cima dos dados e você tinha que erguer
contra a luz e quase de vez em quando chutar, coisa que o seu Líder de
Tento dizia que era um problema crônico dos Sistemas, mas que mesmo
assim o fraldinha era responsável. A piada nessa semana era no que um
analista de rotina do IRS era igual a um cogumelo? Os dois viviam em
lugares escuros e se alimentavam de merda. Ele nem sabia como um
cogumelo funcionava, se era verdade que as pessoas davam excremento pra
eles comerem. A comida da Sheri não estava por assim dizer no nível de
acrescentar cogumelos. Aí outra declaração. A regra era que quanto mais
você olhasse pro relógio mais devagar o tempo passava. Nenhum fraldinha
usava relógio, só que ele viu que alguns deixavam o relógio no bolso pra
hora do intervalo. Você não podia ter um relógio de mesa na Tingle nem
café ou refri. Por mais que tentasse ele não tinha conseguido na última
semana deixar de imaginar a vida interior dos sujeitos mais velhos que
ficavam cada um de um lado da sua mesa fazendo aquilo dia após dia.
Levantando numa segunda-feira, mastigando sua torradinha e colocando o
chapéu e o casaco sabendo que iam sair pela porta pra encarar mais oito
horas. Isso era tédio além de qualquer tédio que ele já tivesse sentido. Isso
fazia a mesa de separação na UPS parecer um dia em Six Flags. Era 17 de
maio, de manhã cedo, ou quase já no meio da manhã talvez desse pra dizer
agora. Ele ouvia o rangido dos carrinhos dos meninos de carga em algum
lugar distante onde os painéis de vinil entre as Tingles do seu Tento e as do
Tento do camarada oriental louro uma fileira à frente tapavam a visão deles,
dos meninos com os carrinhos. Um dos carrinhos tinha uma roda solta que
fazia um estardalhaço quando o menino andava. Lane Dean sempre sabia
quando aquele carrinho vinha descendo pelas fileiras. Tento, Equipe,
Grupo, Célula, Posto, Divisão. Fez mais uma declaração, de novo a
matemática batia e não havia enumerações no 34A e os números de W-2 e
1099 e dos Formulários 2440 e 2441 do impresso pareciam corretos e ele
preencheu seus códigos pra bandeja 402 da linha do meio, assinou seu
nome e pôs seu número de identificação que alguma parte dele ainda se
recusava a decorar direito então tinha que abrir o clipe do crachá e verificar
toda vez e aí grampeou o 402 à declaração e colocou o processo na bandeja
mais à direita da camada de cima que era pra saída dos 402s e se recusou a
se permitir uma contagem do que ainda estava nas bandejas, e então sem
pedir licença veio a ideia de que chato também significava uma coisa
esmagada, compactada. Suas nádegas já estavam doendo de tanto se
contrair, e a mera ideia de visualizar a praia ensolarada o deixava prostrado.
Fechou os olhos mas em vez de rezar pedindo força interior agora descobriu
que estava apenas olhando pra estranha escuridão avermelhada, pros
lampejos e coisinhas que flutuavam por ali, que ficavam quase hipnóticos
se você olhasse de verdade. Aí quando abriu os olhos a pilha de processos
na bandeja de Entrada parecia estar basicamente da altura que tinha às 7h14
quando ele registrou sua entrada no caderno do Líder de Tento e começou a
trabalhar e não havia processos suficientes nas suas bandejas de Saída pra
Formulários 20 e 402 que ele pudesse ver por cima da lateral da bandeja e
ele se negou mais uma vez a levantar pra verificar quantos deles ainda
estavam ali porque sabia que só ia piorar. Teve a sensação de um grande
tipo de buraco ou de vazio caindo dentro de si, continuando a cair e jamais
chegando ao chão. Nunca antes em sua vida até ali tinha pensado em
suicídio nem por um momento. Estava fazendo uma declaração ao mesmo
tempo em que lutava com a mente, com o pecado e a afronta da mera
possibilidade daquela ideia. A sala estava em silêncio, a não ser pelas
calculadoras e pelo estardalhaço da roda do carrinho daquele menino que
tinha uma roda solta enquanto o menino de carga fazia o carrinho descer
certa fileira de mesas com mais processos, mas ele também ficava ouvindo
na sua cabeça o som que uma folha de papel faz quando você rasga a folha
ao meio várias vezes. Seu Tento de seis homens era um quarto de uma
fileira, separado pelas telas cinzentas de vinil. Uma Equipe são quatro
Tentos mais o Líder da Equipe e um menino de carga, sendo que alguns
vêm do Peoria College of Business. Os painéis podiam ser movidos pra
reconfigurar a distribuição da sala. Grupos semelhantes de Molezas
estavam nas salas dos dois lados daquela. Bem à esquerda depois das
fileiras de três outros Tentos ficava o escritório do Gerente de Grupo com o
cubiculozinho de telas do GAM logo ao lado. As borrachinhas de ponta de
dedo eram pra gerar atrito com os formulários todos pra uma velocidade
bem deliberada. Você tinha que guardar a borrachinha no fim do dia. As
lâmpadas do teto não projetavam sombras, nem da sua mão se você
estendesse o braço como quem ia mexer numa bandeja. Doug e Amber
Bellman de Elk Court, Edina MN, que enumeravam coisa pacas, decidiram
doar $1 pro Fundo da Campanha Eleitoral Presidencial. Foram vários
minutos pra analisar tudo que estava no Anexo A, mas nada ali qualificava
pros pré-requisitos de uma auditoria promissora, apesar do sr. Bellman ter a
caligrafia angulosa de um maluco. Lane Dean tinha processado bem menos
20s do que o protocolo exigia. Na sexta-feira ele foi a pessoa do Tento com
o menor número de 20s. Ninguém abriu a boca. Todos os cestos de papel
estavam cheios das tiras enroscadas de papel das calculadoras. Todo mundo
estava com o rosto cor de grafite molhado por causa da luz fria. Você podia
fazer um cubículo semiprivativo com aqueles painéis como o Líder da
Equipe tinha feito. Então ele levantou a cabeça apesar das melhores
intenções anteriores. Em quatro minutos outra hora teria passado, meia hora
depois disso vinha o intervalo de quinze minutos. Lane Dean se imaginou
correndo por ali no intervalo sacudindo os braços e gritando coisas sem
sentido com dez cigarros na boca ao mesmo tempo como uma flauta de pã.
Ano após ano, um rosto da mesma cor da sua mesa. Meu Senhor Jesus.
Café não era permitido pra não molhar os processos, mas no intervalo ele ia
pegar uma caneca grandona em cada mão enquanto se imaginava correndo
na frente do prédio e gritando. Ele sabia que o que ia fazer de verdade no
intervalo era ficar sentado olhando pro relógio da parede da salinha e apesar
das orações e do esforço ficar ali sentado contando os segundos que
passavam até ter que voltar pra fazer aquilo de novo. E de novo e de novo e
de novo. O som imaginado fez com que se lembrasse de ocasiões diferentes
em que tinha visto pessoas rasgarem folhas ao meio. Pensou num homem
forte de circo rasgando uma lista telefônica; era careca, tinha um bigodão e
usava um maiô comprido e listradinho como as pessoas usavam no passado
distante. Lane Dean juntou todas as suas forças, mandou ver e fez três
declarações em seguida e começou a imaginar diferentes lugares altos de
onde poderia pular. Sentia-se em condições de dizer que agora sabia que o
inferno não tinha a ver com fogueiras ou tropas congeladas. Tranque um
camarada numa sala sem janelas pra realizar tarefas repetitivas que tenham
apenas o grau de dificuldade necessário pra fazer ele ter que pensar, mas
ainda assim coisa de rotina, tarefas ligadas a números que não se ligavam a
nada que ele jamais fosse ver ou achar relevante, uma pilha de tarefas que
nunca diminuía, e pregue um relógio na parede bem onde ele pode ver, e só
deixe o cara ali entregue aos engenhos da sua própria mente. Diga pra ele
apertar a bundinha e pensar em praia quando começar a ficar irrequieto, e
essa seria exatamente a palavra empregada por eles, irrequieto, como a mãe
dele. Deixe que ele descubra na plenitude dos tempos a piada que era a
palavra, o quanto ela passava longe de descrever aquilo. Ele já tinha
espanado a mesa com o punho da camisa, trocado de lugar a foto do seu
filho bebê em seu pequeno porta-retrato chacoalhento com o vidro que
escorregava um pouco se você sacudisse. Já tinha tentado trocar a
borrachinha verde de mão e mexer na calculadora com a mão esquerda,
fingindo que tinha tido um derrame e prosseguia com bravura. A
borrachinha deixava a ponta do dedo toda úmida e pálida ali embaixo.
Incapaz de ficar sentado parado em casa, incapaz de ficar olhando a mesma
coisa por mais de um ou dois segundos. A praia agora tinha cimento sólido
em vez de areia e a água era cinza e quase não se mexia, só tremulava um
pouco, como gelatina quase pronta. Sem pedirem licença vieram-lhe formas
de se matar com gelatina. Lane Dean tentou controlar sua frequência
cardíaca. Ficou pensando se com prática e concentração suficientes você
podia parar o coração só com a força da mente, como fazia com a
respiração — como agora. Seus batimentos cardíacos ficaram
perigosamente lentos, ele se assustou e tentou manter a cabeça inclinada
revirando os olhos bem pra trás e comparou a velocidade com o ponteiro
dos segundos do relógio, mas o ponteiro dos segundos pareceu
impossivelmente lento. O som do papel rasgado de novo e de novo. Alguns
meninos de carga te traziam os processos com tudo que você precisava,
outros não. A campainha pra chamar um menino de carga ficava logo
abaixo da borda da mesa de ferro, com um cabo que descia por um dos
lados da mesa e por uma de suas perninhas soldadas, mas não funcionava.
Atkins disse que o fraldinha que ficava naquela mesa antes dele, que tinha
sido transferido pra algum lugar, tinha apertado tanto o botão que queimou
o circuito. Pequenas e estranhas reentrâncias na borda da frente do mata-
borrão eram, Lane percebeu, as marcas dos dentes que alguém tinha se
curvado pra pressionar com bastante cuidado na borda do mata-borrão pras
reentrâncias ficarem bem fundas e não se apagarem dali. Ele sentiu que
conseguia entender. Era difícil se impedir de ficar cheirando o dedo; em
casa ele se pegava fazendo isso, encarando o vazio quando estava à mesa. O
rosto do seu menininho funcionava melhor que a praia; ele o imaginava
fazendo tudo quanto era tipo de coisa de que ele e a sua mulher depois
poderiam falar, como pegar com a mãozinha o dedo de um deles ou sorrir
quando Sheri fazia aquela cara de espanto pra ele. Ele gostava de ficar
vendo ela com o bebê; durante meio processo foi útil ficar pensando nos
dois porque eles eram o motivo, eram eles o que fazia aquilo valer a pena e
ser a coisa certa e ele tinha que lembrar, mas isso vivia escorregando pelo
buraco que caía por dentro dele. Nenhum dos homens de um lado dele ou
do outro parecia sequer se mexer na cadeira a não ser pra estender o braço e
erguer coisas da mesa pras bandejas da Tingle, como máquinas, e eles
nunca estavam na salinha durante o intervalo. Atkins dizia que depois de
um ano conseguia analisar e conferir dois processos ao mesmo tempo, mas
ninguém via ele tentar fazer isso, embora ele soubesse assobiar uma música
e cantarolar outra. A irmã do Nugent fez o exorcista no telefone. Lane Dean
observou com o canto do olho enquanto um sujeito com cara de papagaio
logo ao lado do corredor central que dividia as Equipes puxou um processo
da bandeja, retirou a declaração, destacou o impresso e centrou os dois
documentos no seu mata-borrão. Com a sua almofadinha feita em casa e o
chapéu cinza no gancho aparafusado à bandeja dos 402. Lane Dean ficou
com os olhos fixos pra baixo sem ver seu processo aberto imaginando ser
aquele cara com a sua almofadinha deprimente e sua luminária de bancário
personalizada e ficou pensando o que podia ter ou fazer nas suas horas
vagas pra compensar essas oito horas diárias de assassinato da alma de que
ainda nem um quarto tinha passado até ele simplesmente não dar mais conta
e fazer três declarações seguidas numa espécie de frenesi em que podia ter
deixado coisas passarem e assim no processo seguinte ele foi bem devagar e
com todo o cuidado e encontrou uma discrepância entre o Formulário E da
1040 e a tabela de anuidades da RRA da pensão vagabundinha de ferroviário
do coitado do Clive R. Terry de Alton, mas uma discrepância tão pequena
que não dava pra saber se o impresso de Martinsburg tinha cometido
mesmo um erro ou simplesmente aceitado uma arredondada maior pra
economizar tempo dada a quantia envolvida, e ele teve que preencher tanto
um 020-C quanto um Memorando 402-C(1), passando a declaração pro
escritório do Gerente de Grupo pra ele decidir como classificar o erro. Os
dois tinham que ser preenchidos com dados em duplicata dos dois lados e
assinados. A questão toda era quase inacreditavelmente insignificante e
pequena. Ele pensou na palavra significado e tentou se lembrar do rosto do
filhinho sem olhar pra foto, mas só conseguiu evocar o peso de uma fralda
cheia e o móbile de plástico acima do berço girando na brisa gerada pelo
circulador de ar ali na porta. Ninguém de nenhuma congregação tinha visto
O exorcista; ia contra os dogmas católicos e era obsceno. Não era
entretenimento. Ele imaginou que o ponteiro dos segundos do relógio tinha
consciência e sabia que era um ponteiro dos segundos e que seu trabalho era
ficar ali dando voltas dentro de um círculo de números pra sempre na
mesma velocidade lenta e invariável de máquina, sem ir a qualquer lugar
onde já não tivesse estado um milhão de vezes, e imaginar o ponteiro dos
segundos era tão pavoroso que fez ele se engasgar com o ar e ele deu uma
rápida olhada em volta pra ver se algum analista em torno tinha ouvido ou
estava olhando pra ele. Quando começou a ver o rosto do bebê na foto
derretendo, se alongando e desenvolvendo um longo queixo fendido, o
rosto envelhecendo anos em poucos segundos e finalmente desmoronando
de velhice e despencando do sorridente crânio amarelado que restava por
baixo, ele soube que estava semiadormecido e sonhando, mas não soube
que estava com a cabeça nas mãos até ouvir uma voz humana e abrir os
olhos, mas não conseguir ver de quem ela era e então sentir o cheiro da
borracha do mindinho bem embaixo do nariz. Ele pode ter babado no
processo aberto.
Sentindo o gostinho da coisa, então.
Era um sujeito grande, mais velho, com um rosto vincado e dentes
espaçados. Não era de nenhuma Tingle que Lane Dean já tinha visto ali da
sua. O homem estava usando uma lâmpada presa à cabeça com uma tira
marrom de algodão como a de alguns dentistas e um tipo de marcador preto
no bolso do peito. Cheirava a óleo capilar e a algum tipo de comida. Tinha
parte da bunda na beirada da mesa de Lane, limpava a unha do polegar com
um clipe desentortado e falava baixinho. Dava pra ver uma camiseta por
baixo da camisa dele; não usava gravata. Ficava movendo o tronco no
formato de algum desenho, ou de um círculo, e os movimentos deixavam
um rastro visual. Nenhum fraldinha das fileiras adjacentes estava prestando
atenção nele. Dean verificou o rosto da foto pra ter certeza de que não
estava mais sonhando.
Mas eles nunca dizem. Já percebeu isso? Eles desconversam. É óbvio
demais. Que nem falar do ar que você respira, não é? Ia ser que nem dizer:
Estou vendo tal e tal coisa com o olho. Que sentido teria?
Tinha alguma coisa errada com um olho dele; a pupila do olho era maior
e ficava daquele jeito, fazendo o olho parecer travado. A lâmpada na cabeça
dele não estava acesa. Os movimentos lentos do tronco o traziam mais
perto, depois o levavam mais longe e o traziam de volta. Era muito de leve
e muito devagar.
É, mas agora você está sentindo o gosto, pense nisso, na palavra. Você
sabe qual. Dean teve a perturbadora sensação de que o camarada não estava
estritamente falando com ele, o que significaria que era mais um desvario
solitário do sujeito. Aquele olho olhava direto pra longe dele. Se bem que
não era verdade que ele estava agorinha mesmo pensando numa palavra?
Será que a palavra era dilatado? Será que ele tinha dito a palavra em voz
alta? Lane Dean olhou com cautela pros dois lados. A porta jateada do
Gerente de Grupo estava fechada.
A palavra aparece de repente em 1766. Sem uma etimologia conhecida.
O conde de March usa a palavra numa carta em que descreve um seu par da
corte de França. Ele não projetava sombra, mas isso não queria dizer nada.
Sem nenhum motivo, Lane Dean contraiu as nádegas. Na verdade, as três
primeiras aparições de bore com sentidos relacionados a tédio na língua
inglesa vêm ligadas ao adjetivo francês, that french bore, aquele francês
chato, não? Claro que os franceses tinham malaise, ennui. Veja a quarta
Pensée de Pascal, que Lane Dean ouviu pincê. Ele procurava alguma saliva
perdida no processo que tinha diante de si. Uma coxa dentro de uma calça
social azul-marinho estava a centímetros do seu cotovelo. O homem se
movia levemente pra frente e pra trás como se sua cintura tivesse uma
dobradiça. Parecia estar inspecionando o tronco e o rosto de Lane Dean de
modo sistemático, esquadrinhante. Suas sobrancelhas saíam pra tudo quanto
era lado. A faixa marrom estava ou empapada ou manchada. Veja as
conhecidas cartas de La Rochefoucauld ou da marquesa Du Deffand a
Horace Walpole, especificamente acredito eu a carta 96. Mas nada em
inglês antes de March, conde de. Isso significa uns bons quinhentos anos
sem uma palavra pra coisa, não? Ele rotacionou o corpo um pouco pra
longe. Nem a pau que aquilo era uma visão ou um momento. Lane Dean
tinha ouvido falar do espectro, mas nunca tinha visto. O espectro da
alucinação da concentração repetitiva sustentada por tempo excessivo,
como dizer uma palavra sem parar até ela meio que se dissolver e ficar
estranha. O cabelo alto, duro e cinza do sr. Wax mal estava visível a quatro
Tingles dali. Nenhuma palavra pro latim accidia de que tanto falavam os
monges da regra de Benedito. Pro grego ἀκηδία. E também os eremitas do
Egito do século III, o chamado daemon meridianus, quando as orações deles
eram estultificadas pela falta de sentido, pelo tédio e pelo desejo de uma
morte violenta. Agora Lane Dean estava olhando abertamente em volta de
um jeito meio quem é esse cara? Aquele olho estava fixo num ponto ainda
além da fileira de telas de vinil. O som de papel rasgado tinha desaparecido,
assim como a rodinha rangente do carrinho.
O sujeito limpou a garganta. Claro que Donne chamou o sentimento de
lethargie, e por um tempo ele parece meio fundido à melancolia, saturninia,
otiositas, tristitia — ou seja, estar desorientado pela preguiça, o torpor e a
lassidão e a eremia e a vexação e o destempero e atribuir tudo isso à bile
negra, por exemplo veja a icterícia negra de Winchilsea ou, claro, Burton.
O homem ainda estava na mesma unha do polegar. Quaker Green, acredito
que em 1750, usou o termo névoa negra. Óleo capilar fazia Lane Dean
pensar no barbeiro, no poste listradinho que parecia espiralar eternamente
pra cima, mas que você podia ver quando a barbearia fechava e ele parava
que no fundo não. O óleo capilar tinha um nome. Ninguém com menos de
sessenta usava aquilo. O sr. Wax usava um fixador masculino. O camarada
parecia inconsciente das rotações subaquáticas do seu torso. Dois fraldinhas
numa Equipe perto da porta tinham barba longa e chapéu-coco preto e
balançavam pra frente e pra trás nas Tingles enquanto verificavam as
declarações, mas a oscilação deles era rápida e unidirecional; isso aqui era
diferente. Os analistas dos dois lados não erguiam os olhos nem prestavam
atenção; seus dedos nas calculadoras nem diminuíram de velocidade. Lane
Dean não sabia dizer se isso era sinal de concentração profissional ou de
outra coisa. Alguns usavam a borrachinha na mão esquerda, quase todos na
direita. Robert Atkins era ambidestro; conseguia preencher formulários
diferentes com as duas mãos. O camarada à sua esquerda não tinha piscado
a manhã toda até onde Dean tinha podido ver. E aí de repente ela pipoca.
Bore. Como que saída da testa de Atena. Substantivo e verbo, particípio
como adjetivo, tudinho. Origem desconhecida, na verdade. A gente não
sabe. Nada no Johnson. A única entrada no Partridge é sobre bored como
predicativo do sujeito e qual preposição usar, já que bored of em oposição a
bored with é um marcador social que no fundo é a única coisa em que o
Partridge está sempre interessado. Classes classes classes. O único Partridge
que Lane Dean conhecia era o mesmo Partridge que todo mundo conhecia
da televisão. Ele não tinha a mais remota ideia do que aquele sujeito estava
falando, mas ao mesmo tempo ficava bem preocupado porque estava
pensando em bore como palavra também, a palavra, muitas declarações
atrás. Os filólogos dizem que foi um neologismo — e bem na época do
nascimento da indústria, também, não?, o homem da multidão, a turbina
automatizada e a broca e a perfuratriz, que também se chama bore, não?
Ocado? Esqueça o Friedkin, você já viu Metrópolis? Ah, tá, agora Lane
ficou arrepiado de verdade. Sua incapacidade de dizer qualquer coisa a esse
cara ou perguntar ao menos o que ele queria também parecia um pouco um
pesadelo. Na noite do seu primeiro dia ele tinha sonhado com uma vareta
que ficava se partindo sem parar, mas nunca diminuía de tamanho. O
francês empurrando aquela pedra morro acima por toda a eternidade. Veja
por exemplo o English Language de L. P. Smith, acredito que de 56, não?
Era o olho ruim, o olho parado, que parecia inspecionar o que estava diante
do seu corpo inclinado. Propõe que certos neologismos surgem de sua
própria necessidade cultural — nas palavras dele, acredito. Sim, ele disse.
Quando o tipo de experiência de que você está sentindo um belo de um
gostinho se torna possível, a palavra se inventa sozinha. O termo. Agora ele
trocou de unha. Era Vitalis que tinha encharcado a faixa da lâmpada, que
parecia cada vez mais uma bandagem. A porta do Gerente de Grupo tinha o
nome dele pintado na mesma janelinha de vidro martelado que as escolas de
segundo grau possuíam antigamente. As portas do RH eram iguais. As salas
de espera tinham portas de incêndio de metal, sem janelas, que corriam num
trilho no alto, modelo novo. Considere que os Oglok da península do
Labrador têm mais de cem termos diferentes e distintos para neve. Smith
declara que quando qualquer coisa assume relevância suficiente ela
encontra seu nome. O nome surge sob a pressão da cultura. É bem
interessante quando você reflete sobre isso. Agora pela primeira vez o
camarada na Tingle à direita se virou brevemente pra dar uma olhada pro
sujeito e se virou de volta com a mesma velocidade quando o homem fez
uma garra com as mãos e as mostrou pro outro fraldinha como um demônio
ou alguém possuído. A coisa toda foi rápida demais pra ser verdade pra
Lane Dean. O fraldinha virou uma página do processo à sua frente. Mais
alguém tinha chamado aquilo daquele jeito, assassinato da alma. Coisa que
agora você também quer fazer, não? No século XIX então de repente a
palavra está por toda parte; veja por exemplo Kierkegaard e seu Estranho
que o tédio, por si próprio tão imóvel e sólido, tenha poder de pôr em
movimento. Quando a grande coxa dele deslizou do tampo da mesa o
movimento deixou o cheiro mais forte; era Vitalis com comida chinesa, a
comida do baldinho branco com alça de arame, moo goo alguma coisa. A
luz da sala no vidro jateado era diferente porque a porta estava levemente
aberta, ainda que Lane Dean não tivesse visto a porta abrir. Ocorreu a Lane
Dean que ele podia rezar.
Era o mesmo movimento oscilatório e esquadrinhante agora de pé.
Aquele olho estava na porta do Gerente de Grupo, entreaberta. Perceba
também que interesting aparece pela primeira vez dois anos depois de bore.
1768. Note bem, dois anos depois. Como é possível? Ele já estava na
metade da fileira; agora o camarada com a almofada levantou os olhos e
baixou de novo imediatamente. Elas se inventam, não? Não tudo que
inventam. Em seguida algo que Lane Dean ouviu como bom na peti. O
sujeito tinha desaparecido quando chegou ao fim da fileira. O processo e
seus Anexos A/B e o impresso estavam bem no mesmo lugar, mas o retrato
do filho de Lane estava de cara pra baixo. Ele se permitiu levantar os olhos
e viu que tempo nenhum tinha passado, de novo.
§ 34

Fórmula IRM §781(d) TMA para Empresas: (1) Renda tributável antes de
dedução NOL, mais ou menos (2) Todas as correções de TMA à exceção da
correção ACE, mais (3) Preferências de tributação, gera (4) Mínima Renda
Tributável Alternativa antes das deduções NOL e/ou da correção de ACE, mais
ou menos (5) correção de ACE, se houver, gera (6) MRTA antes da dedução
NOL, se houver, menos (7) dedução NOL, se houver (teto de 90%), gera (8)

MRTA, menos (9) Isenções, gera (10) base de TMA, multiplicada por (11) 20%

da TMA atual gera (12) TMA antes do Crédito de Tributação Estrangeira da


TMA, menos (13) Crédito de Tributação Estrangeira da TMA, se houver (teto

de 90% exceto nos casos em que as exceções 781(d) (13-16) venham a se


aplicar, casos em que se deve anexar um Memorando 781-2432 e
encaminhar o processo ao Gerente de Grupo), gera (14) Mínima Tributação
Alternativa Provisória, menos (15) responsabilidade fiscal padrão antes de
crédito menos Crédito de Tributação Estrangeira padrão, gera (16) Mínima
Tributação Alternativa.
§ 35

O Gerente de Grupo do meu Grupo de Auditoria e sua esposa têm um


bebê que eu só posso descrever como — feroz. Sua expressão é feroz, seu
comportamento é feroz, seu olhar por sobre a mamadeira ou chupeta —
feroz, intimidador, agressivo. Nunca ouvi o bebê chorar. Quando se
alimenta ou dorme, seu rosto pálido avermelha, o que o deixa parecendo
ainda mais feroz. Nos dias de trabalho em que nosso Gerente de Grupo
trazia a criança para o escritório Distrital, pendurado que nem um curumim
num aparato de náilon que levava às costas, o bebê parecia cavalgar o pai
como um cornaca num elefante. Ficava lá, irradiando autoridade. Suas
costas se apoiavam direto nas do Gerente de Grupo, a cabeçorra repousando
na curva do pescoço do pai, forçando a cabeça do sr. Manshardt a se
projetar para a frente e para baixo numa clássica postura de opressão.
Compunham um bicho de duas caras, uma delas calma, doce e adulta, a
outra informe e contudo enfaticamente feroz. O bebê nunca se remexia nem
fazia escândalo no aparato. Seu olhar no corredor sobre o resto de nós ali
reunidos à espera do elevador matinal era reto, sem piscar, e parecia, de
alguma maneira, quase uma acusação.
O rosto do bebê, segundo a minha observação, era quase só olhos e lábio
inferior, um nariz que era um mero pingo, testa láctea e abobadada, rubra
espiral esfiapada de cabelo, sem sobrancelhas, cílios ou mesmo pálpebras
que eu pudesse ver. Eu jamais vi a criatura piscar. Seus traços pareciam
meras sugestões. Basicamente tinha tanto rosto quanto uma baleia. Eu não
gostava dele.
No elevador, meu lugar costumeiro normalmente é no meio, logo atrás do
sr. Manshardt, e nas manhãs em que a criança o cavalga e fica ali olhando
para trás e eu passo o tempo encarando os grandes olhos azuis ígneos e
severos desprovidos de cílios só posso dizer que essas viagens não são nada
agradáveis e muitas vezes afetam meu estado de espírito e minha
concentração durante boa parte do período de trabalho subsequente.
No terceiro andar, no escritório do sr. Manshardt, o bebê tinha um berço e
também um moderno e engenhoso aparato móvel de suporte em que
passava boa parte do tempo, uma coisa grandalhona em formato de anel, de
um pesado plástico azul e com um tipo de faixa ou de sela de tecido no
buraco central, em que se colocava o bebê numa posição de alguma maneira
entre sentada e vertical — ou seja, as pernas do bebê ficavam quase retas,
mas a tira de tecido sustentava seu peso. O aparato ou estação tinha quatro
pernas de apoio curtas e atarracadas, que terminavam em rodas de plástico,
e era projetado para ser movido pelo poder do bebê, conquanto lentamente,
mais ou menos como as cadeiras com rodinhas das nossas estações de
trabalho podiam ser manobradas para lá e para cá por desajeitados
movimentos das pernas do auditor. Contudo, o bebê declinava de mover o
aparato, até onde eu tenha podido ver, ou de brincar com qualquer dos
trequinhos pequenos, divertidos e educativos de cores vivas e primárias
instalados em cavidades da superfície azul do anel. E também não parecia
se ocupar com os livros de pano, com os caminhões de lixo e de bombeiros,
mordedores de plástico cheio de líquido, intricados móbiles ou brinquedos
que emitiam música-e-ruídos-de-animais ao puxar uma cordinha, de que era
repleta sua área de recreação. Ele só ficava lá, imóvel e mudo, dirigindo seu
olhar fixo e feroz a todo e qualquer auditor GS-9 que calhasse de entrar no
pequeno escritório de vidro jateado do nosso Gerente de Grupo nos dias em
que o sr. Manshardt — cuja esposa era liberada e tinha sua própria carreira
— o trazia junto, fato para o qual aparentemente recebera permissão
especial do Diretor Distrital. De início, não poucos GS-9s entravam no
escritório com pretextos vagos, tentando ganhar a estima do Gerente de
Grupo ao sorrir e emitir barulhinhos delicados e primais para o bebê, ou
colocar um dedo ou um lápis em seu campo de visão, talvez para estimular
seu instinto de agarrar. O bebê, no entanto, simplesmente dirigia seu olhar
fixo e feroz ao auditor, com uma combinação de intensidade e desdém, uma
expressão mais de fome que de qualquer coisa, como se o auditor fosse uma
comida, mas não exatamente a comida certa. Há algumas crianças pequenas
que você simplesmente vê que vão crescer e se tornar adultos
amedrontadores — esse bebê já era assustador agora. Era lúgubre e
desconcertante ver uma coisa que mal tinha um rosto humano de verdade
naquele momento adotar mesmo assim uma expressão feroz, intimidadora,
quase acusatória. Da minha própria parte, eu tinha abandonado qualquer
ideia de cair nas graças do sr. Manshardt através do seu bebê desde muito
cedo. Para ser sincero, eu temia que Gary Manshardt percebesse meu medo
e o quanto eu não gostava do bebê através de algum misterioso e oculto
radar parental.
A área de itens pessoais de sua mesa estava forrada de fotos do bebê do
sr. Manshardt — num tapetinho, recém-nascido na ala obstétrica, de bota e
com um casaquinho de capuz, acocorado e nu com um balde vermelho e
uma pá, na praia, e assim por diante — e em todas as fotos o bebê evocava
ferocidade. Sua presença parecia não interferir com os deveres burocráticos
de Manshardt, que eram na sua maioria administrativos e requeriam muito
menos concentração pura que o trabalho do próprio Grupo de Auditoria.
Mas depois de iniciado o dia de trabalho o Gerente de Grupo parecia
basicamente ignorar o bebê e ser ignorado por ele, em troca. Toda vez que
eu entrava, por mais que tentasse não conseguia interagir com o bebê. O
aparato indígena de náilon ficava pendurado num cabide perto do chapéu e
do paletó do sr. Manshardt — ele preferia trabalhar em mangas de camisa,
outro requinte permitido aos Gerentes de Grupo. Às vezes o escritório tinha
um leve odor de talco ou de xixi. Eu não sabia quando o Gerente de Grupo
trocava o bebê, ou onde, e evitava visualizar tudo que pudesse estar
envolvido no processo, ou a expressão do bebê quando aquilo ocorria. Eu
mesmo não conseguia me imaginar tocando o bebê ou sendo tocado por ele
de alguma maneira.
Devido à estrutura administrativa das Células de Auditoria do Distrito
040(c), os Gerentes de Grupo também se revezavam como Funcionários
Distritais de Recursos de 1ª- Instância, o que exigia que o sr. Manshardt às
vezes vestisse de novo o paletó do terno e descesse para um dos cubículos
de auditagem do segundo andar, onde aflitos contribuintes ou seus
representantes apresentavam suas objeções às conclusões de determinada
auditoria. E como, de acordo com as especificações para Recurso diante das
Conclusões do §601 da Declaração de Regras de Conduta do Serviço, o
próprio auditor GS-9 jamais estava presente durante um Recurso de 1ª-
Instância, aquele Auditor se tornava a escolha lógica para ser abordado ou
abordada em sua mesa pelo sr. Manshardt com um pedido para que levasse
seu material de trabalho temporariamente para o escritório do Gerente de
Grupo e ficasse de olho no bebê enquanto o sr. Manshardt lidava com o
Recurso de 1ª- Instância.
Com o passar do tempo, acabou chegando o dia em que houve um
recurso contra as conclusões de uma das minhas auditorias quando o sr.
Manshardt estava “na vez” de ser o Funcionário de Recursos do Posto. Por
acaso, o recurso se referia a uma auditoria de campo que eu tinha passado
quase oito dias úteis inteirinhos conduzindo na Flores Tudo Bem, uma
pequena empresa familiar de tipo S especializada na composição e na
entrega de buquês para festividades públicas e cujas deduções em Anexos
A, E e G do Formulário 1120, para tudo que fosse de depreciação a
deterioração de estoque e a compensações trabalhistas estavam tão
grotescamente exageradas que me vi forçado — apesar de uma alergia
terrível, que sempre tive — a auditar retroativamente os livros deles dos
dois anos anteriores e a corrigir tanto o Anexo J quanto a Linha 33 da 1120
deles, pesadamente, a favor do Tesouro. Como a auditoria de campo veio
diretamente de uma diretriz de Formulário 20 que saiu do Centro Regional
de Análise, e como o agregado de ajustes, multas e juros estabelecido
contra a Flores Tudo Bem podia muito bem exceder a capacidade de
pagamento do contribuinte a não ser que se fizesse um acordo, o recurso
mal chegou a causar surpresa ou susto, o sr. Manshardt me garantiu com o
tom doce e generoso que caracterizava seu estilo de gerenciamento. Mas
como a primeira instância seria no escritório do advogado da Flores Tudo
Bem na DeKalb Street, no centro da cidade — como é de direito de certas
categorias de auditados de campo conforme o §601 105 da SPR —, isso
exigiria que o sr. Manshardt ficasse fora de seu posto por várias horas, o
que por sua vez acarretaria que eu ia passar um extenso período no
escritório do Gerente de Grupo na companhia de seu bebê feroz e
amedrontador, que só poderia ir junto numa L-1 de campo se Manshardt e o
representante legal do impetrador do recurso tivessem um longo histórico
de relações cordiais, coisa que ele e o advogado1 da Flores Tudo bem
infelizmente, disse ele, não tinham.
Os escritórios dos Gerentes de Grupo eram os únicos postos de trabalho
totalmente fechados dos escritórios de terceiro andar da Célula de
Auditorias, e têm portas, o que concede o luxo da privacidade. Mas os
escritórios não são grandes, tendo o de Manshardt talvez no máximo uns
dois metros e meio por dois e meio, com grandes janelas de vidro jateado
em duas paredes — ficando estas dos lados que não davam para as paredes
estruturais, de arrimo, do prédio do Distrito —, um cabide duplo de bronze
para casacos, uma bandeira dos EUA e uma com o selo e o lema do Serviço
no complexo mastro que ficava a um canto, além de retratos emoldurados
tanto do Comissário de Receita do Três-Meias quanto do nosso Comissário
Regional na cidade. Em contraste com as mesas de metal impessoais e
entulhadas do Grupo de Auditoria, a mesa com textura de madeira de Gary
Manshardt, com seu conjunto Tingle de bandejas e caixinhas, ocupava
quase todo o espaço do escritório não cedido ao bebê, além do fato de que
havia ali um dos grandes cavaletes para múltiplas exposições em que os
Gerentes de Grupo mantinham o registro tanto da carga de trabalho atual de
seus auditores quanto, num código Charleston determinado pelo DD, e que
não enganava ninguém,2 o total de casos, ajustes e deficiências verificadas
de cada GS-9 até aquele momento do trimestre. O ar-condicionado era bom.
No entanto eu agora me dou conta de que nada disso tem relevância
direta para a questão, que em resumo é: imaginem minha surpresa e minha
frustração quando levei minha pasta, meu fantoche de dobermann, a
plaquinha de mesa com o meu nome, chapéu, itens pessoais, caderno do
Serviço, pasta sanfonada de papelão com os cartões holerite, impressos M1,
Memorandos 20, Formulários 520 e 1120, formulários em branco e pelo
menos duas pastas grossas de análises e formulários de solicitações de
recibos para o escritório do Gerente de Grupo, e — olhando o menos
possível para o ameçador bebê de Gary, que ainda estava com seu babador
do almoço e de pé/sentado em sua estação de recreação de plástico circular
gengivando uma argola cheia de líquido de um modo que só posso
descrever como determinado ou contemplativo — estava apenas
começando a conseguir recuperar a concentração para organizar uma lista
preliminar de solicitações de recibos e documentação abonatória de um
comerciante que fabricava e instalava alças temperadas numa linha de
baldes galvanizados para a Midstate Galvanics Co. de Danville quando ouvi
o som inequivocamente adulto de uma garganta sendo limpa, ainda que
num tom extremamente alto, como que provindo de um adulto que acabasse
de inalar o hélio de um balão decorativo. O bebê, como a esposa de Gary
Manshardt, era ruivo, embora no caso do bebê sua extrema palidez e o
amarelo-claro de seu pijama ou macacão — ou sabe lá como é que se
chama exatamente a roupinha felpuda de corpo inteiro que os bebês de hoje
em dia costumam usar — fizessem seus finos tufos e espirais de cabelo
parecerem, sob a intensa luz do escritório, da cor de sangue envelhecido, e
seus olhos azuis concentrados parecerem agora quase desprovidos de
pupilas; e, para completar o inusitado horror da situação, o bebê tinha posto
de lado seu mordedor — de maneira bem cuidadosa e deliberada, como um
homem punha de lado um processo sobre a mesa depois de encerrado seu
trabalho e de estar pronto para concentrar sua atenção em outro —, que
ficou ali úmido e brilhante perto de uma mamadeira cheia do que parecia
ser suco de maçã e ter colocado suas mãozinhas minúsculas adultamente
diante do corpo sobre o plástico azul berrante de sua estação de recreação,3
exatamente como o sr. Manshardt ou o sr. Fardelle ou qualquer outro
Gerente de Grupo ou membro da equipe sênior do Diretor Distrital faria,
pondo as mãos diante de si sobre a mesa para demonstrar que você e o
assunto que te levava ali agora iriam receber toda a atenção dele, e limpou a
garganta de novo — pois de fato foi ele, o bebê, que, como qualquer outro
GG, tinha limpado a garganta de maneira cheia de expectativa para chamar

minha atenção e ao mesmo tempo de alguma maneira sutil me repreender


por ele ser obrigado a fazer alguma coisa para chamar minha atenção, como
se eu estivesse sonhando acordado ou mergulhado em digressões mentais
que me afastassem do assunto em tela — e, olhando ferozmente para mim,
disse — sim, disse, com uma voz aguda e desprovida de consoantes, mas
ainda assim inconfundível…
“E então?”
Agora parece provável que no começo tenha sido meu choque, minha por
assim dizer sem nortidade por ter sido abordado de maneira tão adulta por
um bebê de fralda e pijaminha encharcado de baba, que me levou a
responder de forma tão automática quanto eu responderia a qualquer “E
então?” cheio de expectativa que me viesse de um superior no Serviço,
funcionando, por assim dizer, no piloto automático:
“O quê?”, eu disse, enquanto nos encarávamos por sobre nossas
superfícies respectivamente de textura de madeira e de um azul tétrico e por
sobre o metro e meio de luz fluorescente no ar que nos separava, os dois
com as mãos agora identicamente postas diante do corpo, o olhar do bebê
ferozmente cheio de expectativas, ele com uma gotícula cremosa de muco
que lhe surgia e voltava a se ocultar numa narina com sua respiração,
olhando direto pra mim, pega-rapaz na testa como uma etiqueta ou um
recibo do canhoto de uma registradora, olhos desprovidos de cílios, sem
circunferência e sem fundo, lábios apertados como quem considera o
procedimento a seguir, uma bolha em sua mamadeira de suco subindo lenta,
calmamente rumo ao topo, o bico saliente ainda escuro e brilhante pelo uso
recente. E o momento ficou ali no ar, entre nós, sem limites e expandido,
meu próprio impulso de limpar a garganta bloqueado apenas por medo de
parecer impertinente — e foi nesse intervalo aparentemente infinito e cheio
de expectativa que pude ver que me submetia ao bebê, que o respeitava e
lhe concedia plena autoridade, portanto esperei, paciente, nós dois naquele
reduzido escritório paterno desprovido de sombras, já com a certeza de ser,
doravante, um joguete daquela coisinha branca e amedrontadora, seu
instrumento ou ferramenta.
§ 36

Toda pessoa plena tem ambições, objetivos, metas, projetos. O objetivo


desse menino em particular era tocar com os lábios cada centímetro
quadrado de seu próprio corpo.
Os braços até os ombros e a maior parte das pernas, abaixo dos joelhos,
foram brincadeira de criança. Mas depois dessas áreas de seu corpo a
dificuldade aumentou com a abruptude de uma plataforma continental. O
menino veio a entender que esperavam por ele desafios inconcebíveis.
Tinha seis anos de idade.

Pouco há para dizer sobre o ímpeto ou causa motriz do desejo do menino


de tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Ele
um dia ficou preso em casa, com asma, uma manhã chuvosa e prolongada,
aparentemente folheando um pouco do material promocional do pai. Partes
desse material sobrevieram ao incêndio que acabou acontecendo. Achavam
que a asma do menino era congênita.
A área externa do pé, abaixo e em torno do maléolo lateral, foi a primeira
a requerer contorções mais sérias (o menininho na época pensava no
maléolo lateral como aquela bolinha esquisita no tornozelo). A estratégia,
como ele a entendia, era se dispor no piso acarpetado de seu quarto com a
parte interna do joelho no chão e a perna e o pé num ângulo o mais próximo
dos noventa graus em relação à coxa que ele podia, àquela altura, conseguir.
Depois tinha que se inclinar de lado tanto quanto pudesse, curvando-se
sobre o tornozelo torcido e a parte externa do pé, girando o pescoço para
fora e para baixo e se esforçando, com lábios plenamente estendidos (a
ideia que naquele momento o menino fazia de lábios plenamente estendidos
consistia no bico exagerado que representava um beijo nos desenhos
infantis) na direção de uma seção da parte externa do pé que tinha marcado
com um alvo de tinta solúvel, lutando para respirar contra a pressão
dextrógira das costelas, alongando-se cada vez mais para o lado, numa
manhã bem cedo, até sentir um estalo choco na parte de cima das costas e
então uma dor inominável em algum lugar entre a omoplata e a coluna. O
menino não gritou nem chorou, ficou apenas sentado nessa postura
torturada até que o fato de ele não aparecer para o café da manhã levou seu
pai ao andar de cima, à porta do quarto. A dor e a consequente dispneia
tiraram o menino da escola por mais de um mês. Pode-se apenas imaginar o
que um pai deve ter pensado de uma lesão como essa num menino de seis
anos.
A quiroprática do pai, a dra. Kathy, conseguiu aliviar os mais graves
sintomas imediatos. Mais importante, foi a dra. Kathy quem apresentou ao
menino os conceitos de espinha-como-microcosmo, de higiene espinal, de
eco postural, incrementalismo e flexão. A dra. Kathy cheirava vagamente a
funcho e parecia totalmente aberta, disponível e boa. O menino se deitava
de bruços numa mesa acolchoada alta e acomodava o queixo num copinho.
Ela manipulava a cabeça dele muito delicadamente, mas de uma maneira
que parecia fazer coisas acontecerem pela coluna do menino abaixo. Suas
mãos eram fortes e macias e quando ela apalpava as costas do menino ele
sentia como se ela estivesse fazendo perguntas às costas dele e ao mesmo
tempo respondendo todas. Ela tinha cartazes nas paredes com imagens
ampliadas da coluna humana, de músculos, fáscias e feixes nervosos que
cercavam a espinha e se ligavam a ela. Não havia nenhum pirulito à vista.
Os exercícios específicos de alongamento que a dra. Kathy passou ao
menino eram para o splenius capitis, o longissimus cervicis e as profundas
bainhas musculares e nervosas que cercavam as vértebras T2 e T3 do
menino, que eram o que ele tinha machucado. A dra. Kathy tinha óculos de
leitura pendurados num colar e uma blusa verde de abotoar que parecia feita
inteiramente de pólen. Dava para ver que ela falava com todo mundo da
mesma maneira. Instruiu o menino a fazer os exercícios de alongamento
todos os dias e a não deixar que o tédio ou uma redução da sintomatologia o
impedisse de realizar os exercícios reabilitativos de maneira disciplinada.
Disse que a meta a longo prazo não era o alívio do desconforto atual, mas a
saúde e a higiene neurológicas e uma integridade corporal que ele um dia
agradeceria muito, muito mesmo. Para o pai do menino, a dra. Kathy
receitou um relaxante fitoterápico.

Assim, foi a dra. Kathy quem apresentou formalmente ao menino tanto o


alongamento gradual quanto a ideia adulta da disciplina cotidiana silenciosa
e do progresso rumo a uma meta de longo prazo. Isso se provou um acaso
feliz. Durante suas cinco semanas de incapacidade devida a uma vértebra
T3 em subluxação — por vezes com tanto desconforto que nem seu
inalador conseguia minorar a asma que atacava sempre que ele sofria de
dores ou aflições — o entusiasmo alegre da infância tinha sido substituído
no menino pela percepção de que o objetivo de pressionar com os lábios
cada centímetro quadrado de si próprio demandaria o máximo esforço,
disciplina e um comprometimento a ser mantido por períodos de tempo que
ele, então (por causa de sua idade), nem conseguia imaginar.
Uma coisa que a dra. Kathy se deteve para mostrar ao menino foi um
modelo tridimensional completo de uma espinha humana que não tinha sido
alvo de quaisquer cuidados reais ou significativos. Ela parecia escura,
entortada, necrótica e triste. Seus tubérculos e tecidos moles estavam
inflamados, e o annulus fibrosus de seus discos tinha a cor de um dente
ruim. Na parede atrás desse modelo ficava uma placa ou um cartaz com
letras manuscritas que explicava o que a dra. Kathy gostava de dizer que
eram os dois tipos diferentes de pagamentos feitos à espinha e aos nervos
associados, que eram Agora e Depois.

Quase todos os contorcionistas profissionais são na verdade


simplesmente pessoas que nasceram com problemas congênitos de atrofia
ou distrofia dos grandes recti ou com uma aguda flexão lordótica da coluna
lombar, ou ambas as coisas. A maioria exibe o sinal de Chvostek ou outras
formas de espasticidade ipsilateral. Há muito pouco esforço ou aplicação
envolvidos na sua “arte”, portanto. Em 1932, estudiosos britânicos do
misticismo tâmil documentaram uma pré-adolescente taiwanesa que era
capaz de inserir pela boca e no esôfago os dois braços até o ombro, uma
perna até a virilha e a outra perna até logo acima da patela, e que assim era
capaz de rodopiar sem auxílio sobre o joelho oralmente protrusivo em
velocidades superiores a 300 rpm. O fenômeno da suifagia (i.e.,
“autoengolimento”) foi posteriormente identificado como uma forma rara
de alotrieugesia de inanição, quase sempre causada por deficiências de
cádmio e/ou zinco.

As regiões internas das coxas do menininho até o entroncamento medial


da virilha custaram meses só de preparação, horas diariamente consumidas
de pernas cruzadas e em postura curvada, lenta e progressivamente
alongando as compridas fáscias verticais das costas e do pescoço, o spinalis
thoracis e o levator scapulae, o iliocostalis lumborum até o sacro e aos
densos e intransigentes gracilis, pectineus e adductor longus da parte
interna da coxa, que se fundem abaixo do triângulo de Scarpa e transmitem
uma dor nauseante através do púbis sempre que se excede seu limite de
flexibilidade. Caso alguém tivesse visto o menino durante essas sessões de
duas, três horas, colocando as solas dos pés juntas e puxando-os para dentro
para treinar o pectineus, oscilando um pouco e depois sustentando uma
profunda inclinação com as pernas cruzadas para exercitar a grande e tensa
camada de fáscias toracolombares que ligavam a pélvis à região dorsal, ele
lhe teria parecido ou um devoto em oração ou um catatônico, ou ambas as
coisas.
Quando os alvos anteriores das coxas tinham sido atingidos e tocados
com um ou os dois lábios, as porções superiores da genitália foram simples
e foram protrusivamente beijadas e deixadas para trás enquanto já se
concebiam os planos para o ílio e a região externa das nádegas. Depois
dessas conquistas viriam as contorsões mais difíceis e que mais exigiriam
do pescoço, necessárias para atingir as regiões internas das nádegas, o
períneo e a parte mais interna da virilha.
O menino tinha completado sete anos.
O lugar especial em que ele perseguia esse objetivo estranho mas agora
recém-amadurecido era seu quarto, que tinha um papel de parede com
repetidos motivos de floresta. A janela do quarto no segundo andar se abria
para uma vista da árvore do quintal. A luz do sol atravessava a árvore em
ângulos e intensidades diferentes em diferentes momentos do dia e
iluminava partes diferentes do menino que se detinha de pé, sentado,
inclinado ou deitado no carpete do quarto se alongando e sustentando
posições. O carpete do quarto era de um branco felpudo, com uma
aparência polar e esfiapada que o pai não achava que combinasse bem com
o esquema repetido nas paredes, de tigre, zebra, leão, palmeira; mas o pai
guardava suas opiniões para si próprio.
O aumento radical do alcance protrusivo dos lábios requer o exercício
sistemático das fáscias maxilares, tais como o depressor septi, orbicularis
oris, depressor anguli oris, depressor labii inferioris e os grupos
buccinator, circumoral e risorius. Há um envolvimento superficial de
músculos zigomáticos. Práxis: prender barbante a um botão de pelo menos
4 cm de diâmetro, emprestado da segunda melhor capa de chuva do pai;
colocar o botão sobre dentes frontais superiores e inferiores e cobrir com os
lábios; segurar o barbante até sua extensão total num ângulo de 90º em
relação ao plano do rosto e puxar pela ponta com força gradualmente maior,
usando os lábios para resistir à força; manter por vinte segundos; repetir;
repetir.
Às vezes o pai se sentava no chão do lado de fora do quarto do menino,
com as costas apoiadas na porta. Não se sabe bem se o menino alguma vez
chegou a ouvi-lo tentando escutar ruídos de movimentos dentro do quarto,
embora a madeira da porta às vezes fizesse um ruído rangente quando o pai
se encostava nela ou voltava a se levantar no corredor ou mudava de
posição, ali sentado, encostado na porta. O menino estava lá dentro se
esticando e sustentando posições contorcidas por períodos de tempo
extraordinariamente longos. O pai era um homem algo nervoso, com um
comportamento apressado, irrequieto, que sempre lhe dava um ar de
iminente partida. Tinha diversas atividades empreendedorísticas e estava
quase sempre na correria. O lugar que ele ocupava nos álbuns mentais da
maioria das pessoas era provisório, cercado por alguma coisa como uma
linha pontilhada — a imagem de alguém que diz algo agradável por sobre o
ombro enquanto se dirige para a saída. A maioria dos clientes achava que o
pai os deixava nervosos. Era ao telefone que ele funcionava melhor.
Aos oito anos de idade, o objetivo de longo prazo da criança estava
começando a afetar seu desenvolvimento físico. Seus professores
perceberam mudanças em sua postura e em seu andar. O sorriso do menino,
que a essa altura parecia constante por causa dos efeitos da hipertrofia
circunlabial na musculatura circum-oral, parecia também incomum, rígido e
extra-amplo, e de uma aparência, de acordo com a avaliação de uma
professorinha, “que não era deste mundinho de meu Deus”.

Fatos: o estigmatista italiano Padre Pio exibiu chagas que lhe atravessam
a mão esquerda e os dois pés, centralmente, durante toda a vida. Santa
Verônica Giuliani, da Úmbria, apresentava chagas numa das mãos, assim
como em seu flanco, que se podia observar abrir, as chagas, e fechar
conforme ela ordenasse. A beata do século XVIII Giovanna Solimani
permitia que peregrinos inserissem chaves especiais nas chagas de suas
mãos e as girassem, o que segundo os relatos propiciava que aqueles
clientes se recuperassem de seu próprio desespero racionalista.
Segundo tanto são Boaventura quanto Tomás de Celano, os estigmas
manuais de são Francisco de Assis incluíam massas baculiformes do que
parecia ser carne negra endurecida em extrusão a partir dos dois planos
volares. Se e quando aplicava-se pressão a um dos supostos “cravos” nas
palmas das mãos, um pino de carne negra endurecida se projetava na hora
das costas da mão, bem exatamente como se um suposto cravo real
estivesse atravessando a mão.
E no entanto (fato): as mãos não têm a massa anatômica necessária para
sustentar o peso de um humano adulto. Tanto textos jurídicos romanos
quanto a análise contemporânea de esqueletos do século I confirmam que a
crucifixão clássica exigia que os cravos fossem pregados nos pulsos, não
nas mãos, da vítima. Donde as, entre aspas, “necessariamente simultâneas
verdade e falsidade dos estigmas” que o teólogo existencialista E. M.
Cioran explica em seu Lacrimi și Sfinți, o mesmo trabalho em que se refere
ao coração humano como “a chaga aberta de Deus”.

Somente algumas áreas das seções medianas do menino, do umbigo ao


processo xifoide na cesura das costelas, ocuparam dezenove meses de
exercícios posturais e de alongamento, e alguns deles, os mais radicais,
devem ter sido insanamente dolorosos. Nesse estágio, os avanços em
flexibilidade eram agora sutis a ponto de serem detectáveis apenas com um
registro diário extremamente acurado. Certos limites tênseis dos ligamentos
da flava, da cápsula e do processo, do pescoço e da parte superior das costas
foram delicada mas persistentemente alongados, o queixo do menino
postado no peito e na seção mediana do esterno (pontilhada e flechada com
marcas solúveis) e então deslizando aos poucos para baixo — 1, às vezes
1,5 mm por dia — e essa postura catatônica e/ou meditativa sendo
sustentada por uma hora ou mais.
No verão, durante sua rotina do começo da manhã, a árvore diante da
janela do menino se enchia de gralhas e fervilhava de gralhas que iam e
vinham; depois, à medida que o sol se levantava, a árvore se enchia dos
sons ríspidos, rascantes dos pássaros que enquanto o menino ficava sentado
de pernas cruzadas com o queixo no peito soavam pelo vidro como
parafusos enferrujados girando, algo complexamente emperrado que se
liberava com um ganido. Para além da árvore da face sul ficava a
perspectiva dos telhados da vizinhança, o hidrante de incêndio, a placa de
trânsito de um entroncamento em cruz e os quarenta e oito telhados
idênticos e de águas baixas de um conjunto suburbano depois da rua em
cruz, e, para além do conjunto, bem no horizonte, a orla dos milharais
verdejantes que começavam nos limites da cidade. No fim do verão o verde
dos campos era mais amarelado, e depois, no outono, havia apenas o triste
restolho e no inverno a terra nua dos campos parecia apenas o que ela era.
Na sua escola primária, com o comportamento exemplar do menino, suas
tarefas entregues e seu progresso plotado no ápice medial de todas as curvas
relevantes, ele era, entre os colegas, o tipo de figura social tão
marginalizada que não chegava nem a sofrer provocações. Já na terceira
série o menino tinha começado a se desenvolver fisicamente de formas
incomuns como resultado de seu comprometimento com o objetivo; mesmo
assim, algo em seu aspecto ou em seu porte servia para que ele fosse
colocado fora dos limites da crueldade escolar. O menino seguia as regras
em sala de aula e tinha desempenho satisfatório nos trabalhos em grupo. As
avaliações escritas de sua socialização descreviam o menino nem tanto
como arredio ou reservado, mas “calmo”, “anormalmente equilibrado” e
“autocontido [sic]”. O menino não causava problemas nem satisfação e não
chamava muita atenção. Não se sabe se isso o aborrecia. A imensa maioria
de seu tempo, de sua energia e de sua atenção era entregue ao objetivo de
longo prazo e às disciplinas cotidianas dele decorrentes.

E também jamais se estabeleceu com precisão por que esse menino se


devotou ao objetivo de tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu
próprio corpo. Não há nem mesmo a clareza de que ele concebesse seu
objetivo como uma “realização” em qualquer sentido convencional. Ao
contrário do pai, ele não tinha lido Acredite se quiser e jamais havia sequer
ouvido falar dos irmãos McWhirter — certamente não se tratava de alguma
proeza física exibicionista. Nem de qualquer tipo de autoevecção; isso foi
comprovado; o menino não tinha o desejo consciente de “transcender”
nada. Se alguém tivesse perguntado, o menino teria dito que apenas tinha
decidido tocar com os lábios todo e qualquer micrômetro quadrado de seu
próprio corpo individual. Não teria sido capaz de dizer mais que isso.
Conceitos ou concepções referentes à sua própria “inacessibilidade” física a
si mesmo (como somos todos inacessíveis a nós mesmos e podemos, por
exemplo, tocar com os lábios partes uns dos outros que sequer podemos
alcançar, labialmente, em nós mesmos) ou sobre a completa determinação
do menino de ao que parece atravessar aquele véu de inacessibilidade — de
ser, de certa forma pueril, autocontido e -suficiente —, essas coisas estavam
além do escopo de sua consciência. Ele, afinal, era só um menininho.

Os lábios dele tocaram as aréolas superiores de seus mamilos esquerdo e


direito no outono de seu nono ano. Os lábios a essa altura eram
marcadamente grandes e protrusivos; parte de sua rotina diária eram
exercícios monótonos de botão e barbante concebidos para promover a
hipertrofia dos músculos orbiculares. A capacidade de estender os lábios em
forma de bico em até 10,4 centímetros, tinha muitas vezes sido a diferença
entre atingir certas partes de seu tórax e não. Foram também os músculos
orbiculares, mais que qualquer destacado avanço na flexão vertebral, que
permitiram que ele acessasse as regiões posteriores do escroto e porções
substanciais da pele com textura de papel em torno do ânus antes de seu
nono aniversário. Essas áreas tinham sido tocadas, marcadas nas cartas de
quatro lados dentro de seu caderno pessoal e depois lavadas para retirar a
tinta e esquecidas. A tendência do menino era esquecer cada ponto depois
de tê-lo tocado com os lábios, como se o estabelecimento de sua
acessibilidade tornasse o ponto dali por diante irreal para ele, e o ponto
agora de certa forma existisse apenas na carta anatômica de quatro faces.
Plena e refinadamente reais para o menino em seu décimo primeiro ano
de vida, contudo, continuavam sendo as partes de seu torso que ainda não
havia tentado tocar: áreas do peito acima do pectoralis minor e da parte
inferior da garganta entre a clavícula e o platisma superior, assim como os
planos e trechos lisos e infindos das costas (à exceção das porções laterais
do trapézio e do deltoide posterior, que tinha alcançado aos oito anos e
meio) que subiam a partir das nádegas.

Quatro médicos documentados e licenciados aparentemente


testemunharam que os estigmas da mística bávara Therese Neumann
compreendiam estruturas dermais corticadas que passavam medialmente
por suas mãos. A capacidade adicional de Therese Neumann para a inédia
foi atestada por escrito por quatro freiras franciscanas que se revezaram
para cuidar dela entre 1927 e 1962 e confirmaram que Therese viveu por
quase trinta e cinco anos sem nenhum tipo de comida ou de líquido; sua
única evacuação registrada (12 de março de 1928) foi laboratorialmente
analisada e se confirmou que continha apenas muco e bile empireumática.
Um místico bengali conhecido por seus seguidores como “Prahansatha II”
passava por períodos de canto meditativo durante os quais seus olhos
deixavam as órbitas e ascendiam para flutuar acima de sua cabeça presos
apenas por seus ligamentos de dura-máter e em seguida exibiam (i.e., os
olhos flutuantes exibiam) movimentos rotatórios rítmicos estilizados que
testemunhas ocidentais descreveram como algo que evocava Shivas
dançantes de quatro rostos, serpentes encantadas, hélices genéticas
entrelaçadas, as órbitas contrapontísticas em formato de 8 da Via Láctea e
da galáxia de Andrômeda em torno uma da outra no perímetro do Grupo
Local, ou todas essas quatro coisas (supostamente) ao mesmo tempo.
Estudos de algesia humana determinaram que as estruturas
musculoesqueletais mais sensíveis a estímulos de dor são: o periósteo e as
cápsulas articulares. Tendões, ligamentos e ossos subcondrais são
classificados como significativamente sensíveis à dor, enquanto a
sensibilidade de músculos e de ossos corticais foi considerada moderada, e
a das cartilagens articulares e fibrocartilagens, leve.
A dor é uma experiência integralmente subjetiva e portanto “inacessível”
como objeto de diagnóstico. Considerações referentes a tipos diferentes de
personalidade também complicam a avaliação. Como regra geral, no
entanto, o comportamento observável do paciente que sente a dor pode
fornecer uma medida de (a) a intensidade da dor e (b) a capacidade do
paciente de suportar aquela dor.
Falácias comuns concernentes à dor incluem:

Pessoas que estejam gravemente doentes ou feridas sempre sentem dores intensas.
Quanto maior a dor, maior a extensão e a severidade dos danos que a geraram.
Uma dor crônica severa é sintoma de doença incurável.

Na verdade, pacientes que estão doentes de modo crítico ou gravemente


feridos nem sempre sentem dor intensa. Nem a intensidade observada da
dor é diretamente proporcional à extensão ou à severidade dos danos; a
correção depende também de estarem ou não intactos e funcionais nos
parâmetros para eles estabelecidos os “caminhos da dor” do sistema
espinotalâmico anterolateral. Além disso, a personalidade de um paciente
neurótico pode acentuar a percepção da dor, e uma personalidade estoica ou
resiliente pode diminuir a intensidade registrada da dor.

Ninguém jamais perguntou a ele. Seu pai achava apenas que tinha um
filho excêntrico mas muito ágil e flexível, uma criança que tinha levado a
sério as homilias de Kathy Kessinger sobre higiene espinhal como algumas
crianças levam a sério as coisas, e agora passava muito tempo flexionando e
flexibilizando corpo, o que em termos dos estranhos caminhos dos corações
das crianças era melhor que muitas outras fixações perdidas ou danosas em
que o pai conseguia pensar. O pai, um empreendedor que vendia fitas
motivacionais por reembolso postal, trabalhava em casa mas vivia se
ausentando para seminários e misteriosas vendas noturnas. A casa da
família, que tinha face oeste, era alta, estreita e contemporânea; parecia a
metade de um sobrado geminado de que a outra metade tivesse sido
subitamente removida. Era coberta de painéis de alumínio cor de oliva e
ficava num beco sem saída em cuja extremidade norte havia uma entrada
lateral para o terceiro maior cemitério do condado, cujo nome estava
entrelaçado no ferro que cobria o portão principal, mas não aquela entrada
lateral. A palavra em que o pai pensava quando pensava no menino era:
cioso, o que surpreendia o homem, por se tratar de uma palavra algo
antiquada e por ele nem imaginar de onde ela surgia quando pensava nele
ali, quando sentava encostado na porta.
A dra. Kathy, que às vezes recebia o menino para contínuos ajustes
profiláticos de suas vértebras, facetas e rami anteriores vertebrais, e não era
doida nem nenhuma charlatã com consultório em shopping center, mas
simplesmente uma quiroprática que acreditava na interpenetrante dança de
espinha, sistema nervoso, espírito e cosmos como totalidade — no universo
como um sistema infinito de conexões neurais que tinha evoluído para
formar, em seu ponto mais alto, um organismo capaz de ter consciência ao
mesmo tempo tanto de si próprio quanto do universo, de modo que o
sistema nervoso humano se tornasse a forma que o universo tinha de ser
consciente e assim “acessível [para]” si próprio —, a dra. Kathy acreditava
que seu paciente era um menino muito calado e voltado para si próprio que
tinha respondido a uma traumática subluxação da T3 com um
comprometimento com a higiene espinhal e a integridade neuroespiritual
que podia muito bem ser sinal de um dom para a quiropraxia como carreira
um dia. Foi ela quem deu ao menino seus primeiros manuais de
alongamento, comparativamente simples, além de exemplares dos famosos
diagramas neuromusculares de B. R. Faucet (©1961, Los Angeles College
of Chiropractic) que o menino usou como fonte para sua carta de papelão de
quatro faces que ficava como guardiã de sua cama sem travesseiro enquanto
ele dormia.

A crença do pai na ATITUDE como o sobejo determinante da ALTITUDE era


algo inabalável desde sua própria adolescência, tempo constrangedor
durante o qual descobriu as obras de Dale Carnegie e da Fundação Willard e
Marguerite Beecher, tendo utilizado essas filosofias práticas para ampliar
sua própria autoconfiança e melhorar sua posição social — essa posição,
assim como todos os contatos e incidentes interpessoais que serviam como
evidências dela, era plotada semanalmente em mapas e gráficos exibidos
para referência mais fácil na parte interna da porta do closet de seu quarto.
Mesmo quando um adulto provisório e secretamente torturado, o pai ainda
trabalhava de maneira incessante para manter e melhorar sua atitude e assim
influenciar sua própria altitude no que se referia a realizações pessoais. No
espelho do armário do banheiro da casa, por exemplo, onde não podia
deixar de relê-las e internalizá-las enquanto cuidava de sua aparência,
estavam grudadas com fita adesiva máximas inspiradoras como:
“PÁSSARO ALGUM VOARÁ ALTO DEMAIS, SE VOAR COM SUAS PRÓPRIAS

ASAS — BLAKE”
“SE ABDICARMOS DE NOSSA INICIATIVA, TORNAMO-NOS PASSIVOS —
VÍTIMAS RECEPTIVAS DAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE NOS ACOMETAM —
FUNDAÇÃO BEECHER”

“OUSE REALIZAR! — NAPOLEON HILL”


“OS COVARDES FOGEM SEM QUE HAJA NINGUÉM A PERSEGUI-LOS — BÍBLIA”
“TUDO QUE PODES FAZER OU SONHAR, PODES COMEÇAR. A OUSADIA TEM

SEU GÊNIO, SEU PODER E SUA MÁGICA. COMECE AGORA! — GOSTHE”

e assim por diante, dúzias ou às vezes até vintenas de citações e lembretes


inspiradores, cuidadosamente impressos em letras maiúsculas em pequenas
tiras de papel tamanho biscoito chinês e grudadas no espelho como
lembretes escritos sobre a responsabilidade pessoal do pai pela altura de
seus voos, por vezes tantas tirinhas e tantos pedaços de fita que só restavam
umas poucas lacunas de espelho de verdade acima da pia do banheiro, e o
pai tinha quase que se contorcer só para fazer a barba.
Quando o pai do menino, por outro lado, pensava em si próprio, a palavra
que lhe vinha primeiro, sem ser solicitada, era sempre: torturado. Muito
dessa tortura secreta — cujas causas ele considerava impossivelmente
complexas e proteicas, envolvendo tanto impulsos sexuais masculinos
normais quanto uma fraqueza pessoal extremamente anormal, que o fazia
sempre dobrar a espinha — era na verdade de diagnóstico muito simples.
Casado aos vinte anos com uma mulher sobre a qual sabia apenas uma coisa
relevante, esse futuro pai tinha quase imediatamente achado entediantes e
sufocantes as rotinas conjugais do casamento; e a sensação de monotonia e
de obrigação sexual (em oposição à realização sexual) geraram nele um
sentimento que ele achava que devia ser quase como a morte. Ainda recém-
casado, começou a sofrer de terrores noturnos e a acordar de pesadelos em
que se via em algum terrível confinamento, sentindo-se incapaz de se mexer
ou respirar. A interpretação desses sonhos não requeria exatamente nenhum
Einstein da psiquiatria, o pai sabia, e depois de quase um ano de luta
interior e de complexa autoanálise ele desistiu e começou se encontrar
sexualmente com outra mulher. Essa mulher, que o pai tinha conhecido num
seminário motivacional, também era casada e também tinha uma criança
pequena, e eles decidiram que isso estabelecia certos limites e restrições
razoáveis para o caso entre os dois.
Em pouco tempo, contudo, o pai também começou a achar essa outra
mulher algo tediosa e opressiva. O fato de viverem separados e terem muito
pouco assunto para suas conversas começou a fazer o sexo parecer
obrigatório. Isso acabava pondo peso demais no sexo físico, parecia, e
estragava tudo. O pai tentou dar uma esfriada nas coisas e se encontrar
menos com a mulher, quando então ela por sua vez também começou a
parecer menos interessada e menos acessível do que antes. Foi aí que teve
início a tortura. O pai começou a temer que a mulher fosse encerrar seu
caso com ele para ou retomar o sexo monogâmico com o marido ou
começar com outro homem. Esse medo, que era uma tortura completamente
secreta e interior, fez com que ele perseguisse de novo a mulher, mesmo à
medida que passava a desprezá-la cada vez mais. O pai, em resumo, queria
se afastar da mulher, mas não queria que a mulher conseguisse se afastar
dele. Começou a se sentir prostrado e até nauseado quando estava com essa
outra mulher, mas quando ficava longe dela se sentia torturado ao pensar
nela com outra pessoa. Parecia uma situação impossível, e os sonhos de
contorcida sufocação voltaram, tornando-se cada vez mais frequentes. O
único paliativo possível que o pai (cujo filho tinha acabado de completar
quatro anos) encontrou foi não se afastar da mulher com quem tinha um
caso, se manter firme ali, cumprindo seu dever para com aquele caso, mas
também achar e começar a se encontrar com uma terceira mulher, em
segredo e por assim dizer “por fora”, para sentir — ainda que por um breve
momento — o alívio e a empolgação de uma ligação escolhida de livre e
espontânea vontade.
Assim começou o verdadeiro ciclo de tortura do pai, em que o número de
mulheres com quem estava secretamente envolvido e com quem tinha
obrigações sexuais se expandia de forma constante, e em que nenhuma das
mulheres podia ser abandonada ou ter motivos para se afastar e acabar com
o caso, mesmo à medida que cada uma delas ia se tornando cada vez mais a
fonte de uma espécie de tédio cioso de energia e de tempo e da vontade de
seguir em frente diante do desespero.

As regiões medianas e superiores das costas do menino foram as


primeiras grandes áreas de indisponibilidade radical, talvez até impossível,
a seus próprios lábios, apresentando desafios à flexibilidade e à disciplina
que ocuparam grande porcentagem de sua vida interior na quarta e na
quinta séries. E adiante, é claro, como as quedas-d’água no fim de um longo
rio, ficavam as inconcebíveis perspectivas de alcançar a nuca, os oito
centímetros logo abaixo da ponta do queixo, a gálea da parte de trás e do
topo da cabeça, a testa e a região zigomática, as orelhas, o nariz, os olhos —
assim como a paradoxal Ding an sich dos seus próprios lábios, cujo acesso
parecia ser como pedir a uma lâmina que se cortasse. Esses pontos
ocupavam um lugar quase mítico no plano geral: o menino os reverenciava
de forma a colocá-los quase fora do alcance das intenções conscientes. Esse
menino não era por natureza “preocupado” (ao contrário de si próprio, seu
pai pensava), mas a inacessibilidade desses últimos pontos parecia tão
imensa que era como se a sombra por eles projetada caísse sobre todo o
lento progresso na direção da clavícula na frente e da curvatura lombar, por
trás, que ocuparam seu décimo primeiro ano, escurecendo todo o projeto.
Uma sombra tenebrosa que o menino escolhia ver como algo que dava à
empreitada uma dignidade melancólica mais que qualquer espécie de
futilidade ou páthos.
Ele ainda não sabia como, mas acreditava, ao se aproximar da puberdade,
que sua cabeça lhe pertenceria. Encontraria uma forma de acessar-se por
inteiro. Ele não tinha nada que alguém pudesse chamar de dúvida, por
dentro.
§ 37

“Que parece ser um restaurante legal, lá isso parece.”


“Parece bem legal.”
“Eu mesmo nunca fui. Mas ouvi falar bem; uns caras da Administração.
Eu fiquei a fim de dar uma olhada.”
“…”
“E olha a gente aqui.”
(Retirando o chiclete e embrulhando num lenço de papel retirado da
bolsa.) “Ã-rãh.”
“…”
“…”
(Faz detalhados ajustes no posicionamento dos talheres.) “…”
“…”
“Você acha que é muito mais fácil começar uma conversa com alguém
que você já conhece bem do que com alguém que você nem conhece
principalmente por causa de toda a informação previamente fornecida e das
experiências comuns das duas pessoas que se conhecem bem, ou quem sabe
porque é só com pessoas que a gente já conhece bem e sabe que conhece
bem que a gente não precisa passar pelo processo mental
superconstrangedor de submeter tudo que a gente pensa em dizer ou
mencionar como tópico de conversa leviana a uma análise crítica
autoconsciente e a uma avaliação que consegue fazer tudo que a gente
pensa em propor dizer pra outra pessoa parecer chato ou estúpido ou banal
ou por outro lado quem sabe íntimo demais ou tenso?”
“…”
“…”
“Como foi que você disse que era o seu nome mesmo?”
“Russell. Russell ou às vezes ‘Russ’, se bem que pra ser sincero eu tenho
uma preferência bem grande por Russell. Nada contra o nome Russ; só que
eu nunca me acostumei direito com ele.”
“Você tem uma aspirina aí com você, Russell?”
§ 38

Até a metade de 1987, as tentativas do IRS de chegar a um sistema


integrado de dados tinham sido infestadas de bugs de sistema e de
problemas, muitos deles exacerbados pelas tentativas do Departamento
Técnico de economizar ao atualizar os equipamentos Fornix mais antigos
de perfuração e análise de cartões para que eles pudessem lidar com os
Power Cards de noventa e seis colunas em vez dos holerites originais de
oitenta.1
Um erro em particular tem relevância aqui. O sistema Cobol da Divisão
de Recursos Humanos e Treinamento vinha há muito tendo problemas
sérios com o que por vezes se chamava de “redundâncias fantasmas” no
processamento das promoções de funcionários. O problema era mais do que
nunca acentuado com o pessoal das análises em virtude dos seus índices
anormalmente altos de evasão e de promoções entre os funcionários do CRA.
Imagine, por exemplo, que o sr. Fulano D. Tahl, um analista GS-9 de
molezas, foi promovido para o nível GS-11. O sistema então geraria uma
ficha pessoal novinha em folha e portanto reconheceria duas fichas
separadas para o que pareciam ser dois funcionários separados, o Fulano D.
Tahl GS-9 e o Fulano D. Tahl GS-11, o que causava um tumulto e uma
confusão tanto para o financeiro quanto para os protocolos de planejamento
dos Sistemas, a médio prazo.
Como parte de uma estratégia multilateral de eliminar os bugs de
programação em 1984, uma sub-rotina GO TO foi inserida em todas as seções
FILEdo sistema de recursos humanos: nos casos do que parecesse ser dois
funcionários diferentes com o mesmo nome e o mesmo código de Posto do
IRS, o sistema agora recebia a diretriz de apenas reconhecer o “Fulano D.
Tahl” de nível GS mais alto.2 Isso levou de modo mais ou menos direto ao
sururu do Posto 047 do IRS em maio de 1985. Com efeito, David F. Wallace,
GS-9, vinte anos, de Philo, IL, não existia; sua ficha tinha sido deletada ou
absorvida pela de David F. Wallace, GS-13, trinta e nove anos, do CRA
Nordeste de Rome, NY. Essa absorção ocorreu no mesmo instante em que o
Formulário Regional de Transferência 140(c)-TR e o Formulário 141-LOT de
lotação de David F. Wallace (i.e., do GS-13) foram gerados, instante a que
dois administradores diferentes de sistemas nas regiões Nordeste e Meio-
Oeste teriam que acabar retornando via um total combinado de 2 110 000
linhas de código gravado para poder passar por cima da absorção pelo
comando GO TO. Claro que tudo isso só foi explicado com algum grau de
detalhamento para David F. Wallace (GS-9, anteriormente GS-13 — ou seja,
o David F. Wallace de Philo, IL) muito mais tarde, depois que todo o
pampeiro administrativo tinha acabado e que várias queixas bizarras tinham
sido retiradas.
O problema não era, em outras palavras, que ninguém no escritório de
Recursos Humanos e Treinamento do Centro Regional de Análise Meio-
Oeste tivesse percebido que dois Davids F. Wallace estivessem com
recepção e processamento previstos no CRA Meio-Oeste em dois dias
consecutivos. O problema foi que o sistema computadorizado do escritório
reconheceu — e gerou um Power Card e um Formulário de Protocolo de
Processamento para — apenas um desses Davids F. Wallace, que o sistema
ainda consolidou ao mesmo tempo como (a) o funcionário de nível mais
alto que vinha transferido da Filadélfia e (b) o funcionário cuja chegada
física estava prevista primeiro no sistema, esse último, a saber, o efebo de
vinte aninhos de Philo, que o sistema também registrou, em outra
consolidação de diferenças, como tendo chegado no voo CT 4130, partindo
de Midway (em razão das informações referentes a bilhetes e viagens
geradas como parte das especificações de chegada do Formulário 140(c)-TR)
e não de ônibus Trailway, razão por que ninguém estava esperando para
receber e cuidar do traslado do David F. Wallace supostamente de elite e
precioso na rodoviária de Peoria no dia 15 de maio, e de o segundo (i.e., o
“verdadeiro”) David F. Wallace, que chegou no CRA em um táxi comercial
ordinário no dia seguinte — táxi este que o outro David Wallace, mais
velho, era evidentemente tão manso e passivo que nem foi registrado em
sua consciência como possível caca do pessoal de transporte do CRA, pelo
fato de seu nível e sua preciosidade merecerem um traslado especial com o
seu nome numa plaquinha de papelão, ou até que ele pudesse pedir um
reembolso, e que além de tudo chegou para uma transferência permanente e
uma completa mudança de endereço com (de maneira quase inacreditável)
toda sua vida contida apenas em uma malinha de mão — de aquele David
Wallace mais velho, de elite e preciosíssimo, ter passado dois dias úteis
inteirinhos com suas cópias xerocadas dos Formulários 141 e sua pastinha
fuleira marrom primeiro nas filas da Estação de Processamento GS-13,
depois nos guichês de Resolução de Problemas do saguão do prédio
principal do CRA, depois sentado num canto do próprio saguão e depois no
escritório da Segurança do corredor sudeste do Nível 2,3 sentado ali com
seu rosto neotênico sem nenhuma expressão e com o chapéu no colo,
incapaz de sair daquela situação, já que obviamente o sistema de
computadores da burocracia dizia que ele já tinha passado pelo
Processamento e recebido sua Identidade e seu crachá do Posto 047 — e
nesse caso onde é que estavam o crachá e a Identidade, um sujeito que só
fazia bico ali na Segurança ficava lhe perguntando repetidamente toda vez
que verificava o sistema, e se ele não tinha perdido então como era que não
podia apresentar os documentos? e assim por diante.4
No Centro Nacional de Computação de Martinsburg, WV,5 o problema de
“consolidação de fantasmas” para funcionários com nomes idênticos tinha
sido reconhecido já em dezembro de 1984 — em razão especialmente de
uma zorra monstruosa que envolveu duas Marys A. Taylor no Centro
Regional de Serviço Sudeste de Atlanta — e os programadores do Setor
Técnico já estavam no processo de inserir uma sub-sub-rotina BLOCK e RESET
que ignorava a sub-rotina GO TO para os trinta e dois sobrenomes mais
comuns nos Estados Unidos: a saber, Smith, Johnson, Williams, Brown &c.
Mas Wallace, segundo as cifras do Censo dos EUA de 1980,6 era apenas o
104º- sobrenome americano mais comum, lá no pé da lista, entre Sullivan e
Cole; e qualquer override de uma GO TO que abrangesse mais de trinta e dois
sobrenomes corria um risco estatisticamente significativo de reintroduzir o
problema original da “redundância fantasma”. Para resumir, o nome David
F. Wallace caía numa zona estatística intermédia em que o bug de
“consolidação fantasma” decorrente do processo original de correção de
outro bug ainda podia causar problemas e dores consideráveis,
especialmente para qualquer funcionário que fosse novo demais ali para
entender por que ou de onde surgiam essas acusações de tudo que ia de
fraude contratual a “fazer-se passar por imersivo” (esta última uma
acusação sem precedentes que pode muito bem ter sido simplesmente
inventada do meiíssimo do nada pelos asseclas de Dick Tate como forma de
se livrar do que em dado momento eles temeram que pudesse ser visto
como negligência ou erro administrativo do RH do CRA, um medo que até o
sr. Stecyk, o DDP, concedeu ser simplesmente uma paranoia burocrática,
quando o “falso” David Wallace [i.e., o autor]7 conseguiu ir falar com ele e
mais ou menos se jogar aos seus pés e pedir clemência).
§ 39

O GS-9 Claude Sylvanshine, de volta às instalações dos Sistemas de


Martinsburg como parte dos preparativos, no mês de abril, para seu trabalho
de ponta de lança no CRA Meio-Oeste, entrou duas vezes no aquário de input
direcionado e tentou, sob a supervisão de Reynolds via áudio, passar uma
ARF1 para os chefes do Posto 047, sendo que a primeira dessas sessões de

ARF gerou alguns frutos. Sylvanshine conseguiu conjuntos interpretáveis de

fatos a respeito do ódio patológico de mosquitos de DeWitt Glendenning


Jr., nascido de sua infância em Tidewater, de sua fracassada tentativa de se
tornar um Ranger do Exército americano em 1943, de sua violenta alergia a
crustáceos, de sua evidente crença de que sua genitália tinha algum tipo de
malformação, de seu entrevero com a temida Divisão de Inspeções Internas
quando foi Diretor Distrital de Auditorias em Cabin John, MD, partes do
endereço residencial e/ou profissional de seu psiquiatra num subúrbio de
Joliet, sua memorização do aniversário de todos os membros da família do
Comissário Regional do Meio-Oeste, e um grande volume de abstrusidades
a respeito do fabrico e do restauro de mobília doméstica e de ferramentas
elétricas que levou a uma abrupta IED2 em certas especificações que se
referiam ao polegar seccionado de um homem adulto. Tendo isso levado
certas pessoas dos Sistemas a concluir que o atual Diretor do CRA Meio-
Oeste e puxa-saco Regional DeWitt “Dwitt” Glendenning tinha perdido ou
viria a perder um polegar em algum tipo de acidente num trabalho
doméstico, e também a tecer certos planos e expectativas em torno desse
fato.
A verdade — que Claude Sylvanshine jamais irá nem poderá saber
apesar da coluna repetida de cifras referentes tanto à aerodinâmica do
sangue arterial quanto às velocidades com que uma serra de fita consegue
fatiar as diversas seções cônicas de uma mão humana de determinada massa
numa dada angulação — é que a relevância do polegar amputado de um
adulto existia na verdade para a vida e a psique de Leonard Stecyk, o DSRH,
que por uma questão prática assumia não apenas o que fosse seu dever mas
também muito do que era de seu superior. O incidente do polegar amputado
figura no desenvolvimento psíquico que transformou L. M. Stecyk num dos
mais brilhantes e mais capazes administradores do Serviço em toda a
Região, embora o incidente com o polegar esteja agora enterrado no fundo
do inconsciente do sr. Stecyk, sendo sua vida consciente dominada pelo
escritório de Recursos Humanos do CRA e pelas questões decorrentes das
tempestades que surgiam no horizonte tanto dos Sistemas quanto da
Adimplência.
O incidente em si não é imediatamente relevante e portanto pode ser
narrado de maneira bem sucinta. Por motivos ora perdidos nas névoas
administrativas, trabalhos manuais eram um pré-requisito para os alunos da
décima série em toda a região setentrional do Meio-Oeste, dando aos
pupilos das escolas profissionalizantes ao menos uma oportunidade de
massacrar e torturar os aluninhos que se preparavam para a universidade, de
quem tinham sido (no Michigan) separados no ano anterior. E Leonard
Stecyk passou bocados especialmente maus durante a aula de trabalhos
manuais do sr. Ingle, no terceiro horário, na Charles E. Potter High School
no outono de 1969. Não era só que com quase dezesseis anos Stecyk tinha
1,65 metro e pesava 47 quilos encharcado, o que ele ficou (encharcado)
quando os meninos no vestiário depois da aula de educação física urinaram
todos nele depois de derrubá-lo no chão de lajotas, ritual que chamavam de
Special Stecyk — tendo ele acabado como o único menino da história de
Grand Rapids a ir de guarda-chuva para os chuveiros da escola. Nem era
uma questão apenas dos óculos de segurança especiais aprovados pela Osha
e do avental especial de carpinteiro, feito em casa, com os dizeres MEU NOME
É LEN; NEM VEM QUE NÃO TEM
escritos na caligrafia Palmer que ele usava em
sala. Nem que nos TMs do terceiro horário constassem dois futuros
criminosos condenados, um deles tendo já cumprido uma semana de
suspensão por ter aquecido um lingote de ferro fundido com um maçarico
de acetileno até ele ficar vermelho, esperado que a cor sumisse todinha e aí
pedido como quem não quer nada que Stecyk lhe trouxesse aquele lingote
ali do lado da lista de chamada rapidinho. O verdadeiro problema era
prático: Leonard revelou não ter talento nenhum nem a mais remota
afinidade por trabalhos manuais, fossem eles de dinâmica básica, solda ou
de fundamentos de marcenaria ou de carpintaria. É verdade que os esboços
e as medidas calculadas pelo menino eram, o sr. Ingle admitia,
excepcionalmente (quase efeminadamente, ele sentia) bem cuidados e
precisos. Era nos projetos de fato, e na operação do maquinário, que Stecyk
era horrível, fosse para serrar em ângulo, para seguir um risco prévio ou até
para lixar a base da caixa especial de charutos de pinho que o sr. Ingle (que
gostava de charutos) forçava todos os pupilos a fazer para os pais, mas na
qual a pegada ao que parece frouxa ou insuficientemente masculina de
Stecyk fez a lixadeira jogar a caixinha como um obus do outro lado da sala
de trabalhos manuais, onde explodiu contra a parede de cimento a menos de
três metros da cabeça do sr. Ingle, que disse a Stecyk (que ele desprezava
sem culpa nem reservas) que o único motivo para não forçá-lo a se mandar
de aventalzinho e tudo para a turma de economia doméstica com as
meninas era que ele provavelmente ia queimar a choldra da escola inteira!
diante do que alguns meninos maiores e mais cruéis da décima série (um
dos quais seria expulso no outono seguinte por não apenas trazer uma
armadilha profissional de caçar ursos para o terreno da escola mas chegar a
ponto de abrir e engatilhar a armadilha — armadilha de mola, afiada como
um conjunto de adagas — diante da porta do escritório do vice-diretor, onde
teve que ser desativada com o cabo da vassoura de um zelador, que ela
cortou ao meio com um som que fez alunos das salas de aula que ficavam
ao longo do corredor se agacharem e entrarem embaixo das carteiras)
chegaram de fato a apontar diretamente para Stecyk enquanto riam.
Por outro lado, é possível que o incidente do polegar amputado não tenha
sido o responsável de fato pela alteração ou definição do caráter de Leonard
Stecyk, e sim pela mudança de suas próprias perspectivas a respeito de seu
caráter (se é que tinha alguma perspectiva), para além das percepções que
os outros tinham. Como sabem quase todos os adultos, as distinções entre o
caráter e o valor essenciais de uma pessoa e as percepções que as outras
pessoas têm desse caráter/valor são borradas e de difícil definição,
especialmente na adolescência. Há também o fato de que certa parcela dos
gatilhos situacionais e do contexto Leonard Stecyk não recorda mais, nem
mesmo em sonhos ou lampejos periféricos. Tinha algo a ver com a ideia de
cortar uma folha de drywall em tiras ou tábuas para algum tipo de reforço
na instalação dos umbrais e de uma porta numa parede interna. A serra de
fita estava instalada numa larga mesa de metal com gabaritos e sargentos
calibrados que segurariam bem certinho o que você ia cortar enquanto você
ia empurrando com cuidado a peça de madeira pela superfície lisinha para
que a lâmina de alta velocidade da serra de fita cortasse a linha que você
tinha traçado a lápis depois de medir pelo menos duas vezes. É claro que
havia detalhados procedimentos de segurança codificados pelo sr. Ingle
tanto nas Regras mimeografadas da Oficina quanto em vários cartazes de
estêncil com letras maiúsculas que ficavam sobre e em torno da estrutura
posterior que envolvia a serra de fita, procedimentos que Leonard Stecyk
tinha não apenas decorado mas para os quais tentara solicitamente
contribuir apontando alguns erros tipográficos ou casos de sintaxe ambígua
em seus rudes imperativos, o que tinha feito um lado do rosto do sr. Ingle
começar a saltar e enrugar involuntariamente, notório sinal de que o homem
mal conseguia controlar seu humor. A realidade por trás do excesso de
cartazes e de linhas amarelas de segurança pintadas no chão da oficina era
que o sr. Ingle trabalhava sob grande pressão aparente e em constante
estado limítrofe de frustração e fúria, já que era responsabilidade sua se
alguém se machucasse, e no entanto ao mesmo tempo muitos meninos das
turmas eram ou umas florzinhas cê-dê-efes ineptas e efeminadas como o
Stecyk e o Moss aqui ou uns delinquentes ruivos com jaquetas militares que
às vezes vinham para a aula cheirando a marijuana e schnapps de menta, e
ferravam com as regras e com o equipamento cujo perigo não tinham nem o
bom senso de respeitar, chegando até a ficar observando parados dentro do
perímetro nitidamente demarcado pela linha amarela ao lado da serra de fita
com sua lâmina exposta apesar das instruções claramente pintadas tanto na
máquina quanto no chão de FICAR ATRÁS DA LINHA QUANDO EM OPERAÇÃO, onde
bastaria um empurrãozinho descuidado ou até um gesto mais amplo com
um braço quando se estivesse ali na área não autorizada; e ao ilustrar isso a
plenos pulmões pelo que talvez fosse a quinta vez naquele semestre
enquanto aqueles infelizes ficavam atrás da linha amarela e o viam exagerar
um gesto infantil, sua mão direita sem querer fez contato com a lâmina da
serra de fita, que precisamente com a velocidade com que o sr. Ingle tinha
prometido que ela o faria, arrancou seu polegar e o material circunstante, da
teia interdigital até o tendão abductor pollicis longus, abrindo ainda a
artéria radial, o que causou um impressionante leque de sangue espirrado
enquanto o sr. Ingle levava a coisa vermelha contra o peito e desmoronava
de lado, cinza pelo estado de choque e pelos reflexos paralisantes do
trauma. Como praticamente todo mundo estava ali na sala — de cara
cinzenta, boquiaberto — observando de trás da linha amarela enquanto o
sangue da artéria radial mas também da primeira artéria metacarpiana
dorsal jorrava ritmicamente e ritmicamente parava e espirrava até nos
casacos cáqui de alguns meninos mais velhos e no painel de controle da
furadeira de bancada contra o qual eles trombaram quando deram por
reflexo um passo para trás. Não era o lento acumular de líquido de um dedo
ralado ou do fio de sangue de um nariz que levou um soco. Aquilo ali era
sangue arterial sob grande pressão sistólica, que saltava e se abria em leque
lá de onde o professor estava ajoelhado com a mão apertada contra o peito
pela outra e encarando a falange de meninos enquanto sua boca articulava
alguma coisa que não se podia ouvir por sobre o grito em A# da serra de
fita, alguns rostos dos meninos que iriam para a universidade também se
distenderam em gritos que podiam ser vistos mas não ouvidos, uns poucos
bem no fundão da sala já debandando em volta dos sargentos da furadeira
de bancada e correndo para a porta da sala com braços levantados e
sacudindo as mãos no movimento universal do pânico cego, o restante
achatado contra o colega ou a máquina mais próximos com olhos
esbugalhados e a mente em uma profunda espécie de ponto morto.
… Todos menos o pequeno Leonard Stecyk, que depois de brevíssima
pausa neural se adiantou, rápida e decisivamente, passou pelo flanco
externo do grupo, socando o botão que desligava a serra de fita, duplamente
sinalizado, com a base da mão enfaixada enquanto dava a volta na máquina,
sem olhar nem à direita nem à esquerda com seu avental e sua camisa bem
passada, tirando do caminho com um tranco um menino grandão de
bandana com padrão de caxemira que estava com as solas dos Keds numa
piscina de sangue humano — um menino que poucos dias antes tinha
ameaçado Stecyk com um par de tenazes de ferreiro atrás do quadro de
ferramentas expostas — e pareceu estar imediamente ao lado do sr. Ingle,
implementando a primeira regra do tratamento local de traumatismos
hemorrágicos, que era simultaneamente elevar o ferimento e identificar a
severidade do traumatismo usando os cinco graus da Escala de Ames, da
obra Primeiros socorros para lesões industriais, de 1962, da enfermeira
Cherry Ames, que Stecyk tinha emprestado da biblioteca pública como
parte de sua preparação regular para o calendário de aulas do outono de 69.
Stecyk simplesmente levantou a mão o máximo que pôde, mais ou menos
na altura dos olhos, enquanto o sr. Ingle ficava ajoelhado, encolhido e
desmontado ali embaixo. Não há como exagerar a velocidade com que tudo
isso se desenrolava. O polegar e os tecidos circunstantes à sua base não
estavam completamente separados, mas pendurados por um pedaço de
derme de modo que o polegar do próprio sr. Ingle apontava direto para
baixo numa paródia do julgamento imperial enquanto Stecyk, ignorando
tanto o sangue quanto os agudos diminutivos da palavra “Mãe” que
começaram a se fazer ouvir quando diminuíram as rotações da serra de fita,
retirou com uma das mãos primeiro seu cinto e depois a régua de conversão
para o sistema métrico que levava sempre num bolso especial bem estreito
no avental de carpintaria que o sr. Ingle tinha ridicularizado e — depois de
repassar mentalmente os protocolos e determinar à la enfermeira Cherry
Ames que apenas a pressão digital em volta do pulso não controlava o
sangramento — improvisou um hábil torniquete de nó duplo (c/ apenas a
insinuação de um floreio eduardiano no laço de quatro voltas que encerrava
o nó, o que era ainda mais incrível dado o fato de Stecyk ter dado aquele nó
especial com mãos escorregadias e carmesins que ainda sustentavam o peso
semidesvanecido de um adulto) que estancou o fluxo com apenas uma volta
e meia da régua, tamanha a precisão memorizada com que Stecyk tinha
colocado o torniquete exatamente no entroncamento crucial entre as artérias
ulnar e radial do antebraço. No silêncio ressonante que se seguiu à parada
da lâmina da serra dava para ouvir agora os sons de um macaco pneumático
vindo da sala de introdução à mecânica de automóveis logo ao lado. Foi
também agora, com o cessar do jorro, que o sr. Ingle perdeu a consciência,
de modo que a última imagem que alguns meninos mais altos nos flancos
do grupo viram foi a de Stecyk segurando a parte de trás do crânio do sr.
Ingle como se fosse ele uma criança e delicadamente fazendo com que ele
— ela, a cabeça do adulto — repousasse no piso com uma mão enquanto a
outra segurava o torniquete no lugar ali no pulso soerguido, havendo algo
tanto coreográfico quanto maternal e ao mesmo tempo nem um pouquinho
feminil naquela imagem, que reverberou na alma de alguns deles de
maneira estranha por dias e até semanas depois de terem sido afastados
rispidamente e de terem ouvido que era para dispersarem dali e deixarem o
sujeito respirar, tudo dito pelos professores de mecânica de automóveis e de
conserto de eletrodomésticos, que eram também rápidos e adultamente não
paralisados, mas que não tentaram afastar Len nem pedir que o monitor de
economia doméstica espantasse ele dali com todos os outros e suas pegadas
rubras, mas na verdade ficaram ali como subalternos parados dos dois lados
do braço soerguido do homem com seu polegar pendente, esperando as
instruções do menino para saber se aguardavam a ambulância ou quem sabe
tentavam colocar o sr. Ingle num de seus automóveis baratos mas
perfeitamente tunados e corriam direto para o Calvin, falando com Stecyk
mais como um colega e ouvindo réplicas pronunciadas sem deferência nem
hesitação.
Alunos de Escola Técnica tendem a não ser muito sensíveis nem
emocionalmente ágeis, e seria exagero dizer que “tudo mudou” depois
daquele dia nos trabalhos manuais. Não é que Leonard Stecyk tenha se
tornado “popular” nem que os meninos mais durões tenham passado a
convidá-lo a ir com eles à noite perpetrar atos de vandalismo ou usar drogas
de iniciantes. Só que alguns deles ficaram surpresos — mais abalados que
envergonhados — com sua própria paralisia em face do traumatismo e dos
atos daquela bichinha irritante. Era estranho. Eles eram meninos durões:
brigavam o tempo todo, tomavam surras de padrastos e de irmãos mais
velhos. Para os mais inteligentes deles, a ideia do que era ser durão, da
relação entre pose e o valor de fato das pessoas de alguma maneira ficou
meio fodida. Seus relatos do incidente eram confusos e variavam de um
menino para outro. Mais do que um fez alusões a Perdidos no espaço, que
na época era um programa popular. A principal mudança na qualidade de
vida do futuro DSRH foi que muitos dos Special Stecyks e dos súbitos socos
no nervo radial do braço no corredor da escola, e de outros atos cotidianos
de crueldade cessaram, basicamente porque um estranho desconforto
passou a acometer os durões quando viam ou apenas pensavam em Stecyk,
e a real crueldade — como sabe todo adolescente — depende de uma detida
atenção ao objeto dessa crueldade. Os atos de Stecyk naquele dia não o
deixaram mais, e sim menos especial; os durões pararam de enxergá-lo e de
implicar com ele. Era estranho, e ainda mais estranha foi a velocidade com
que o próprio Stecyk esqueceu aquilo tudo, mesmo depois que o sr. Ingle
retornou à C. E. Potter depois do Dia de Ação de Graças para seu novo
cargo de instrutor de Autoescola com a mão direita aleijada coberta por um
tipo de luva ou de estojo de poliuretano preto de proteção, o que resultou no
apelido, entre os alunos, de “Dr. No” durante toda a década de 70. Todo
mundo parecia ter incentivos para esquecer aquilo tudo. Um dos durões da
Escola Técnica que vinte meses depois serviria na região da Plaine des
Joncs na Indochina foi o único a ter uma lembrança clara e consciente de
Stecyk e do polegar do sr. Ingle naquele dia, isso quando um gordinho
alistado contra a vontade que quase ferrou com o treinamento básico e foi
objeto de um chá de sabonete violentíssimo numa dada noite assumiu o
controle de um esquadrão que tinha perdido seu cabo, reagrupou todos os
soldados e levou todos eles a passarem entre dois pelotões do exército NV

para se juntar de novo à Companhia Able; ele simplesmente se pôs de pé e


disse para eles pegarem a munição dos mortos e se abrigarem do outro lado
do leito do ribeiro, e todos obedeceram — sem nem pensar, por motivos que
depois não conseguiam explicar nem admitir —, e o durão se lembrou de
Stecyk com aquele aventalzinho e a gravata-borboleta com estampa de
caxemira (esta última uma distorção da sua memória) e no fato, de novo, de
que aquilo que eles naquele momento pensavam ser o imenso mundo inteiro
era o sonho de um menino impúbere.
§ 40

Cusk tinha sido convidado a entrar no consultório da psiquiatra e estava


contando as caixas de lencinhos de papel no pequeno cômodo forrado de
livros grossos e diplomas. A sexta ficava na mesinha a um canto que a
psiquiatra usava para prescrever receitas. Ao escritório faltava a pia que
alguns médicos tinham — ele tinha passado dias se preparando para a pia.
Quando seu nome foi chamado, Cusk apertou a mão da psiquiatra e sentou
na poltrona estofada que a outra mão da psiquiatra indicou. A psiquiatra deu
uma puxadinha na calça na altura do joelho e sentou na frente de Cusk, do
outro lado de uma mesinha de centro de vidro em que havia duas caixas de
lencinhos de papel. Sua mão era grande, quente e macia. Sua poltrona era
do mesmo modelo da de Cusk — um, talvez dois níveis de conforto abaixo
de uma poltrona reclinável — mas parecia, a não ser que fosse apenas a
imaginação dele, levemente mais alta que a sua.
… “de aranha, de cachorro, do correio”, Cusk listava — a psiquiatra
ouvia atentamente, concordando com a cabeça, mas não tomava nota, o que
foi um alívio para Cusk — “Medo de cadernos de espiral, daquele tipo com
a espiral de metal na lombada; medo de caneta-tinteiro — mas não das
hidrográficas nem das esferográficas, a não ser que a esferográfica seja
daquelas bem caras com aparência de coisa permanente — Cross,
Montblanc, essas que parecem de ouro — mas não das esferográficas de
plástico nem das descartáveis”. Tendo chegado ao fim das caixas de
lencinhos de papel que podia contar, Cusk estava mentalmente repetindo
“grande, macia e quente, grande, macia e quente” sem parar, um mantra
reflexivo logo abaixo do nível do pensamento.
“Medo de discos. Medo de ralos. Medo de basicamente todo tipo de
movimento espiralado em líquidos, geral.”
As sobrancelhas da psiquiatra eram extraordinariamente finas e ralas, e
quando ela as levantava isso queria dizer que não estava entendendo
direito…
“Turbilhões, sorvedouros, banheiras esvaziando”, Cusk ilustrou. Tinha
uma camada fina de suor no lábio superior, mas sentia que a testa
continuava seca, aguentando firme. “Bebidas que alguém mexe
vigorosamente. Descarga de privada.”
§ 41

“Você mandou o Cardwell ir pegar o cara?”


“Qual é o problema?”
“Ele é demente, Charlie, o problema é que ele é demente.”
“Ele dirige bem. É de confiança.”
“Ele vai ficar solando no ouvido do cara o tempo todo; o sujeito vai
pensar que isso aqui é um posto de evangelistas só de tocaia atrás dele. É o
ajudante do Lehrl, Charlie. Meu Deus.”
§ 42

Havia longos silêncios entre períodos de atenção.


“Porra, lembrei de uma. Só que foi tem um tempo já, quando eu estava na
universidade em St. Louis, quando a gente era Ranger da Reserva.”
“Eu vou engolir essa.”
“Vocês não vão entender tudo. Tinha que ter vivido no fim dos anos
sessenta.”
“E a gente não estava vivo?”
“Eu não estou falando vivo assim de brincar com os dedos do pé ou
espremer cravo do nariz. Estou falando maduro, consciente. Estou falando
culturalmente.”
“Contraculturalmente, você quer dizer.”
“Eu podia te mandar catar coquinho na ladeira, Gaines. Mas não vou. Em
vez disso eu digo que se tem alguma coisa bacana com um ar bem
específico e eu digo que o tal ar é tão puramente Beatles, aí você não vai
entender.”
“Tinha que estar lá.”
“Não é a mesma coisa que simplesmente ter os discos dos Beatles, você
está dizendo. Você tinha que estar lá, no meio daquilo tudo.”
“Sendo uma brasa, mora.”
“É bem isso. Ninguém dizia ‘uma brasa’. Quem dizia ‘uma brasa’ ou te
chamava de ‘irmão’ só estava encenando uma fantasia que tinha visto nas
reportagens da CBS. Eu estou dizendo que se eu falar ou Baxter-Bathing ou
Owsley ou mencionar o vestidinho que a Janis estava usando vocês vão
pensar em termos de dados. Não tem mais sentimento ligado a essas ideias
— e era um sentimento. É impossível descrever.”
“A não ser dizendo que um negócio é tão Beatles.”
“E tem coisa que nem dado é mais. E seu eu disser Lord Buckley? E se
eu mencionar a torre no Texas ou Sin-Killer Griffin filmado na prisão ou
Jesse Jackson no Today Show sentado na frente daquele chimpanzé que eles
chamavam de J. Fred com uma camisa que ainda está com sangue e
pedaços do cérebro do Reverendo sem ninguém nem abrir a boca apesar de
eles gravarem o Today em Nova York o que significa que o porra do
Jackson foi de avião lá de Memphis com aquela camisa só pra poder usar
sangue na TV — vocês sentem alguma coisa quando eu digo isso? Ou
Bonanza ou Eu sou curiosa travessão amarelo? J. Fred Muggs? Meu Deus,
O fugitivo — se eu disser o homem sem um braço, que sentimento interno
isso provoca em vocês?”
“Você está falando de nostalgia.”
“Eu estou falando de cloridrato de metanfetamina. Ou de December’s
Children ou Os vagabundos do Dharma ou Big Daddy Cole na House of
Blues em Dearborn ou cabelo raspado com óculos de armação de chifre ou
até deixa eu pensar calça Levi’s de barra dobrada pra mostrar uns sete
centímetros de algodão branco saindo do mocassim e eu sinto o gosto do
cloridrato dos dias na Universidade de Washington em que a gente era
Ranger da Reserva. Como é esquisito eu ter isso tudo dentro de mim e pra
vocês ser só um monte de palavras.”
“A gente também tem os nossos marcos culturais e as nossas catexias e
coisas que deixam todo mundo nostálgico.”
“Não é nostalgia. É todo um conjunto de referências que vocês nem
sabem que não têm. Se eu falar Dolly Peytões — vocês não sentem nada.
Jesus amado, aqueles Dolly Peytões.”
“Ácido não?”
“O quê?”
“Por que metanfetamina e não ácido? LSD? A maconha e o ácido não
eram as drogas que definiam aquela época?”
“Mas é disso que eu estou falando. As nuances e a complexidade toda
não entram no campo de vocês. Ácido era Costa Oeste e um grupinho
pequeno em volta de Boston. Não tinha ácido nem no Greenwich Village
até aquela coisa do Kesey e do Leary no norte do estado em 67. Em 67 os
anos sessenta já tinham acabado. O Meio-Oeste era metanfetamina e
alucinógenos fabricados. A gente tinha um pessoalzinho mais chegado na
faculdade que andava com o pessoal de Dogtown; um dos motivos de eu
estar aqui e não na iniciativa privada é que não acho que qualquer um de
nós ali tenha aberto um livro em dois anos, aí eu tive que me mudar por
causa dos Rangers de Salvamento e desse sujeito mais velho chamado,
perversamente, McCool, que queria andar com a gente, ficava cercando,
mas era desesperadamente não cool, fuleiro, a gente diria, mas pra vocês
isso não significa nada. McCool era representante de vendas da Welch
Lambeth. Eu estou imaginando que a Welch Lambeth faça parte do índice
cultural de vocês.”
“Produtos químicos. Agora é parte da Lilly. University City, Miz,
superdiversificada, produtos químicos e principalmente solventes
industriais, produtos médicos, adesivos, polímeros, moldes de chassis.”
“Produtos médicos que na época incluíam por exemplo que ele às vezes
trazia umas coisas, a gente lá na nossa mesa de sempre no Jaegerschnitzel,
um rathskeller que atendia o pessoal mais contracultura e antissistema da
UW, mas sem ser mod nem ‘uma brasa’, e numa certa noite no meio de uma

conversa qualquer me chega o McCool, que tinha um coração clepsígamo,


com uma caixinha térmica de duzentos gramas que ele tinha pego em
alguma sala de amostras e disse: ‘Eu sei que tem gente aqui que curte esse
negócio, aí quando eu vi eu falei: Cacilda eu tenho que liberar esses
breguetes pros meus chapas’, e coisa e tal. Fuleiro, mas atiradinho daquele
jeito meio Eisenhower. O cara tem seus trinta anos e já é careca com uma
fome futricada de aceitação; só dá pra imaginar o que deve ter acontecido
com ele na infância. O tipo de cara que chega na sua festa e você embebeda
o sujeito direitinho pra ele apagar às nove, mete no micro-ônibus dos
Rangers de Salvamento, tira tudo menos o sapato e a meia do camarada e
deixa ele ali apoiado num banco de ponto de ônibus em East St. Louis, e ele
não só dá um jeito de sobreviver como na noite seguinte aparece de volta no
Jaegerschnitzel te dando soquinho no ombro e dizendo Essa foi legal como
se você tivesse dado um croque no tipo, desesperado pra fazer parte da
turminha.”
“Os meus irmãos me ensinaram que o desespero é meio que assim a
barreira principal pra você fazer parte da turminha. Aprendi a duras penas e
isso eu posso dizer pra vocês. Uma vez porque quando eu era pequeno eu
tinha medo de água e eles me deixaram ir junto acampar com eles e o meu
irmão mais velho disse que era a minha maior chance de entrar pra aquela
turma e em vez de acampar acabou que era uma viagem pra pescar e
quando eu tentei subir no barco eles no fim…”
“E a gente ali meio tudo bem, beleza, mas aí o Eddie Boyce abre a
caixinha e lá dentro tem uns tubos de papelão corrugado de isolamento e
dentro de cada tubo tem uma provetinha com tampa de segurança, de uns
sete centímetros, com duas tampas cada, cheias de… cloridrato de
metanfetamina de pureza farmacêutica, três gramas e uns trocados em cada
um. A gente ali todo mundo sentado se olhando e as sobrancelhas do Boyce
lá no meio do cabelo já. O McCool tentando se fazer de bacanão mas
dizendo “Viu? O que vocês acham?”. Vocês estão entendendo o que isso
quer dizer? São 224 gramas de metanfetamina famacêutica pura naquela
caixa. Vocês sabem o que até uma metanfetamina vagabundinha,
adulterada, fabricada numa garagem consegue fazer com um sistema
nervoso de vinte aninhos?”
“Eu vendia tudo e usava o lucro pra comprar prata e aí ia falar com os
professores pra encher o saco deles e dizer que agora eu podia comprar todo
mundo ali e eles que fossem ver se eu estava na esquina.”
“A gente não vendeu muito, isso eu te digo. Mas o que a gente vendeu
causou estrago. As aulas viraram uma zona. Uns carinhas acneicos que
ficavam no fundão e nunca abriam a boca estavam agarrando os professores
pela lapela e citando a teoria da mais-valia fazendo voz de interrogadores
da SS. Uns figurões do Newman Club copulavam à vontade na escadaria da
biblioteca. A enfermaria se viu invadida por pós-graduandos de filosofia
implorando que alguém desligasse a cabeça deles. Os refeitórios ficaram
vazios. Todos os jogadores da defesa do time da UW foram presos por
agressão física do menino que levava água pro time da Kansas State.
Alunas cujos himens podiam servir de porta de cofre estavam dando nas
moitas em frente da Lambda Pi. Nos dois meses seguintes quase inteiros a
gente ficou de Rangers da Reserva, na van, atendendo ligações com pedidos
de socorro de uns carinhas que tinham conseguido um décimo de grama da
parada e agora encontravam a namorada pendurada no teto só pelas unhas e
rangendo os dentinhos brancos perfeitos até o sabugo. Rangers da Reserva!
“Uma semana sem dormir, todo mundo ali voando alto de metanfetamina
e sem descer nunca porque sair de um barato de metanfetamina é que nem
ter uma gripe horrorosa no inferno, a palma da mão do Boyce ficou com
umas marquinhas permamentes ali onde ele agarrava o volante do ônibus, e
o olho da gente parecia esses olhos vendidos avulsos, pra pegadinha. O
mais perto que a gente chegava de comer era se arrepiar de nojo quando
passava pela placa de algum restaurante a caminho de sem exagero uma das
dúzias de ligações com pedidos de Resgate que os Rangers estavam
recebendo toda noite, metendo pé em porta pra tudo quanto era lado,
verificando elevadores e subindo escada de cinco em cinco degraus
cantando a nossa canção de guerra dos Rangers a Trabalho.”
“Qual que é essa dos Rangers, Todd, se…?”
“Porque muitíssimo em breve à medida que a força e a pureza daquilo ali
começa a se ramificar por Dogtown a gente faz o McCool entender a
necessidade de algum tipo de auxílio de emergência lá do pessoalzinho
bacana da Welch Lambeth.”
“Que tipo de uso médico tem a metanfetamina? Obesidade? Pesquisas
sobre privação de sono? Experiências com psicose controlada?”
“E dois ou três dias depois — bem quando todo mundo está bem pra
chegar nos limites da resistência, as costelas aparecendo e a pele em volta
dos olhos começando a lembrar um hambúrguer — teve um acidente
terrível quando eu fiquei sozinho e decidi que, beleza, dessa vez a gente
solta o freio de mão e injeta quase um oitavo de grama puro e fiquei num
estado de espírito muito, mas muito estranho mesmo, a um passo da
paranoia clínica, e aí a campainha toca, eu abro a correntinha da porta e a
única coisa que vejo ali é um chapéu com umas flores de plástico na aba e é
uma velhinha minúscula do Comitê de Boas-Vindas, recebendo a gente na
nossa casinha mequetrefe alugada ali no bairro, com um cestinho de
cookies e produtos de higiene, olhando pra mim mas com aquelas espirais
hipnóticas esquisitaças, vermelha num olho e verde no outro, e aquela
carinha de amendoim saltada toda convexa de um jeito horroroso que nem
cara de jacaré e aí encolhida de novo pra dentro e aí de novo vindo na
minha cara, e eu vou poupar vocês dos detalhes de como reagi ali, mas
ainda digo que esse incidente foi a causa direta de eu me ver obrigado a sair
da faculdade e me mudar pro Colorado menos de dois meses depois, que foi
onde ganhei o meu apelido no Serviço, Colorado Todd.”
§ 43

Na manhã de terça-feira eu tive uma consulta no otorrino e peguei às


10h05. O complexo estava ainda mais tranquilo que o normal. As pessoas
falando baixo e andando com os ombros meio projetados pra frente.
Algumas mulheres conhecidas por tender a reagir a qualquer tipo de
transtorno ficando muito pálidas estavam pálidas. Havia um quê de esforço
em câmera lenta nas atividades de todo mundo, como se todos estivessem
reagindo a alguma coisa, mas também conscientes de estar reagindo e de
que todos os outros também reagiam. Eu estava sem aspirina. Por alguma
razão eu relutava em perguntar a alguém o que tinha acontecido. Detesto ser
a figura que nunca sabe o que está acontecendo e aí tem que perguntar pra
alguém. Isso é uma grande marca de posição hierárquica social, e eu resisti.
Foi só depois das onze que entreouvi Trudi Keener, Jane-Ann Heape e
Homer Campbell na sala do Univac reunindo pilhas de vouchers da EST com
as datas alteradas pra trás.
Tinha acontecido uma explosão em outro Regional. Ou em Muskegon ou
em Holland, os dois eram décimo anexo. Ou um carro ou uma caminhonete
estacionou direto na frente do Escritório Distrital e depois de dado
momento explodiu. Trudi Keener tinha citado George Molesworthy dizendo
que todo mundo sabia que o Posse Comitatus era muitíssimo ativo em
Michigan. Isso significava que se tratava de um ataque terrorista contra um
Posto do Serviço, o que em qualquer região agrícola atrasada vai fazer
marola. Eu fiquei ali com eles fingindo que verificava alguma coisa num
arquivo tanto quanto imaginei que pudesse ficar sem que Jane-Ann Heape
percebesse que eu estava tentando ouvir e deduzisse que eu era o tipo de
pessoa que não sabia o que estava acontecendo e consoantemente
recalibrasse a ideia que fazia de mim. O cabelo dela hoje estava preso num
penteado que envolvia um conjunto complexo de cachos e ondas que
parecia mais escuro sob a luz fluorescente que tendia ao extremo azul do
espectro ali na sala do Univac. Ela estava com uma blusa azul-clara de
tecido sintético e uma saia de um xadrez tão escuro e de tão baixo contraste
que era difícil de identificar como xadrez de verdade. Não surgiram
informações sobre perdas humanas, mas consegui ficar sabendo que dois ou
três membros da equipe dos Sistemas de Apoio à Coordenação das
Auditorias no 047 tinham ficado lotados no Michigan no começo da
carreira; eu não tinha ligações com os Sistemas de Apoio à Coordenação
das Auditorias e não reconheci os nomes deles.
Quando chegou o meu intervalo, a sala do café estava com um cheiro
rançoso, o que significava que a sra. Ooley não tinha lavado os bules e os
filtros antes de encerrar o expediente na noite passada. Mas aquilo ali era
uma mina de ouro em termos de RH. O sr. Glendenning e Gene Rosebury
estavam bebendo café com suas canecas de cortesia do Serviço (pra quem
fosse de GS-13 pra cima) e Meredith Rand estava comendo com um
garfinho de plástico um copinho de iogurte que tirou da geladeira GS-9 (o
que significava que Ellen Bactrim estava mocozando as colheres de novo).
Eles estavam tendo aquela conversa, e Gary Yeagle, James Rumps e vários
outros estavam parados logo ao lado, ouvindo. Eu entrei no meio e fingi que
estava examinando as máquinas de venda de comida e depois as moedas
que tinha na mão.
“Isso não é terrorismo. Isso é gente que não quer pagar os impostos que
deve”, Gene Rosebury disse. Havia vagos vestígios de seu tradicional
bigode de Mylanta. O “isso” indicava que tinha havido um bocado de
contexto conversacional e de informação correndo antes daquele momento.
“Se eu estou aterrorizada, isso já não diz que é terrorismo?”, Meredith
Rand disse. Ela tirou um nadinha de iogurte do canto da boca com o dedo
mínimo. Parecia significativo que ninguém estivesse rindo, nem os GS-9s. A
tirada de Rand era o tipo de golpe baixo cujo objetivo nem era tanto ser
engraçada, e sim dar ao ambiente uma oportunidade de rir e eliminar a
tensão. Ninguém aproveitou a oportunidade. Isso pareceu revelador. O sr.
Glendenning estava com um terno marrom e uma gravatinha de barbante
com um medalhão de turquesa no fulcro. O Diretor do CRA era um homem
acostumado a ser o centro das atenções em qualquer ambiente em que
estivesse, ainda que nele isso se manifestasse num ar de tranquila segurança
de si, e não de exibicionismo. Não conheço uma única pessoa no Posto que
não tivesse afeto e admiração por DeWitt Glendenning. Nessa época eu já
estava há tempo suficiente no Serviço pra entender que essa era uma das
qualidades de um administrador de sucesso, ser estimado. E não agir de
maneira a ser estimado, mas ser desse jeito. Ninguém jamais sentia que o sr.
Glendenning estivesse querendo projetar alguma imagem, como fazem
administradores menos talentosos, nem mesmo alguma imagem que fosse
projetada para eles mesmos, por exemplo dar uma de linha-dura porque em
algum lugar de sua cabeça eles têm uma imagem do bom administrador
como um tipo inflexível e estão tentando distorcer suas próprias
personalidades pra se encaixar nessa imagem. Ou aquela postura vaselina,
tipo minha-porta-está-sempre-aberta, do sujeito que acha que um bom
administrador tem que ser amigo de todo mundo e portanto age de maneira
superaberta e amistosa ainda que as responsabilidades da sua posição
exijam que ele discipline as pessoas ou corte orçamentos ou negue pedidos
pra passar alguém pras Análises ou qualquer coisa dessas que não têm nada
de amistosas. Esse tipo se coloca numa posição horrorosa, porque toda vez
que tem que fazer algo pelo bem do Serviço que vai ferir alguma
funcionária ou deixá-la enfurecida, a ação agora tem o fardo emocional
adicional de um amigo ferrando com uma amiga, e com frequência o
administrador se sente tão desconfortável com isso e com suas lealdades
divididas que tem que ficar pessoalmente bravo — ou se fazer de bravo —
com a funcionária pra conseguir fazer o que precisa fazer, o que deixa tudo
pessoal de um jeito inadequado e aumenta em muito a mágoa e o
ressentimento da funcionária ferrada, e com o tempo isso solapa totalmente
a autoridade do administrador, e em curtíssimo prazo todo mundo considera
o sujeito um falso e um traíra, fingindo que é seu amigo e seu colega, mas
pronto pra te ferrar quando lhe der na veneta. É interessante que esses dois
estilos administrativos falsos — o tirano e o falso amigo — sejam os dois
maiores estereótipos que os livros, programas de televisão e tirinhas de
quadrinhos usam pra apresentar os administradores. É de se suspeitar, na
verdade, que a imagem mental que o administrador inseguro erige dentro de
si seja baseada em parte nesses estereótipos da cultura pop.
O sr. Glendenning parecia mais transcender que subverter os estereótipos.
Sua segurança pessoal lhe permitia ser e agir exatamente como ele de fato
era. O que ele era, era um sujeito taciturno, um tanto não abordável, que
levava seu trabalho muitíssimo a sério e exigia o mesmo de seus
subordinados, mas ele também os levava a sério, ouvia o que tinham a dizer
e pensava neles tanto como seres humanos quanto como parte de um
mecanismo maior cujo funcionamento eficiente era responsabilidade dele.
Ou seja, se você tivesse uma sugestão ou preocupação, e se você achasse
que ela merecia a atenção dele, a porta dele estava aberta (isso se você
conseguisse que a Caroline Ooley marcasse um horário pra você), e ele iria
prestar atenção no que você dissesse, mas se e como ele iria agir a respeito
do que você tinha dito ia depender de reflexão, do que ele viesse a saber de
outras fontes e de considerações mais amplas que ele precisava equilibrar.
Em outras palavras, o sr. Glendenning podia te ouvir porque não sofria da
crença insegura de que te ouvir e te levar a sério ia deixá-lo na posição de te
dever alguma coisa — enquanto alguém encantado pela figura do linha-
dura teria que tratar você como alguém que não merece atenção, e alguém
encantado pela imagem do “chapa” se sentiria na obrigação ou de aceitar a
sua sugestão para não te ofender ou de te dar uma explicação exaustiva do
motivo pelo qual a sua sugestão não era implementável, ou talvez até de
entrar em algum tipo de debate a respeito daquilo tudo — para evitar te
ofender ou violar essa imagem de si próprio como o tipo de administrador
que jamais trataria a sugestão de um subordinado como algo que não
merecesse consideração — ou de ficar bravo como forma de anestesiar seu
desconforto por não receber de braços abertos a sugestão de alguém que ele
se sente obrigado a ver como amigo e como um chapa, seu igual.
O sr. Glendenning era também um homem de estilo, o tipo de homem
cujas roupas mantêm sempre um caimento perfeito no corpo mesmo depois
dele ter andado de carro e ficado sentado à mesa, trabalhando. Todas as suas
roupas tinham um caimento meio frouxo mas simétrico que eu sempre
associo a roupas europeias. Ele sempre punha uma mão no bolso da calça e
se apoiava na beirada do balcão quando bebia café. Era, na minha opinião,
sua postura mais abordável. Seu rosto era bronzeado e vivo mesmo sob a
luz fluorescente. Eu sabia que uma de suas filhas era uma ginasta com
alguma reputação nacional, e às vezes ele usava um alfinete de gravata ou
um broche ou algo que parecia consistir de duas barras horizontais e um
corpo de platina complexamente inclinado sobre elas. Às vezes eu
imaginava entrar na sala do café e encontrar o sr. Glendenning sozinho,
encostado no balcão, encarando o café dentro da caneca e pensando coisas
administrativas de grande profundidade. Na minha fantasia ele parece
cansado, não abatido mas aflito, sentindo o peso das responsabilidades da
sua posição. Eu entro e pego um café e o abordo, ele me chamando de Dave
e eu o chamando de DeWitt ou até de D. G. que diziam por ali que era seu
apelido entre os outros Diretores Distritais e Comissários Regionais
Assistentes — o sr. G está cotado pra ser Comissário Regional, dizem por aí
— e eu lhe pergunto o que há de novo e ele se abre comigo sobre algum
dilema administrativo com o qual está lidando, como o fato de ser um pé no
saco e uma puta perda de tempo aquele Lehrl dos Sistemas viver
reconfigurando o espaço das pessoas e as passagens entre esses espaços e
que se dependesse dele ele ia pessoalmente pegar o metidinho pelo cangote
e colocar numa caixa com um ou dois buracos de ventilação pra mandar de
volta pra Martinsburg, mas que Merrill Lehrl era protégé e peixinho do
Comissário Assistente de Serviços ao Contribuinte e Declarações no Três-
Meias, cujo outro grande protégé era o Comissário Regional de Análises do
Regional Meio-Oeste, que era essencial ainda que não formalmente o
superior imediato do sr. Glendenning em termos de Função de Análise
Empresarial no Posto 047 e era o tipo de administrador desastroso que
acreditava em alianças, patronos e política, e que podia negar a solicitação
do 047 de um meio turno adicional de analistas GS-9 por uma imensa
variedade de pretextos que pareceriam razoáveis no papel, e que somente D.
G. e o CRA saberiam que eram devidos a Merrill Lehrl, e DeWitt se sentia
responsável pelos sofridos analistas, por lhes conseguir algum auxílio e
diminuir um pouco do tempo do Fluxograma de Declarações, que dois
estudos diferentes indicavam que podia ser realizado de maneira melhor
através de auxílio e de expansão do que através de motivação e
reconfiguração (uma análise de que Merrill Lehrl discordava, D. G.
comentava lamentando). Na fantasia, a cabeça do D. G. e a minha estão
algo abaixadas, e nós falamos com discrição, muito embora não haja mais
ninguém na salinha do café, que cheira bem e tem latas de Melitta moído
bem fininho em vez das latas brancas da marca Jewel com aquelas letras
cáqui, e é aí, perfeitamente dentro do contexto do mesmíssimo problema
dos analistas torturados-e-raivosos a respeito do qual ele está se abrindo
comigo, que eu solto para o D. G. a ideia desses novos scanners de
documentos da Hewlett-Packard e de como o software poderia ser
reconfigurado para escanear tanto as declarações quanto os formulários
complementares e para aplicar o código PMAC para sublinhar dados
selecionados, de modo que os analistas só teriam que verificar e conferir os
itens sublinhados importantes em vez de ficar gramando com linhas e linhas
de coisas desimportantes e certas para poder chegar aos itens importantes.
O D. G. me ouve atenta e respeitosamente, e é apenas sua judiciosidade e
seu profissionalismo administrativo o que o impede de vocalizar ali mesmo
a imensa perspicácia e o grande potencial da minha sugestão, assim como
sua gratidão e felicidade por ter surgido aqui um analista GS-9, do meio do
nada, para lhe mostrar uma solução diagonal, heterodoxa, que vai tanto
auxiliar os analistas quanto liberar D. G. para dar um pé na bunda do odioso
Merrill Lehrl.
§ 44

Aprendi já aos vinte e um ou vinte e dois anos, no Centro Regional de


Análise do IRS em Peoria, onde passei dois verões como menino de carga.
Isso, segundo os camaradas que me viam como alguém pronto pra uma
carreira no Serviço, me punha na frente, ter entendido essa verdade numa
idade em que a maioria dos carinhas está só começando a suspeitar dos
elementos básicos da vida adulta — que a vida não te deve nada; que sofrer
tem muitas formas; que ninguém jamais vai se importar tanto com você
quanto sua mãe; que o coração humano é um otário.
Aprendi que o mundo dos homens como existe hoje é uma burocracia. É
uma verdade óbvia, claro, ainda que seja também uma verdade cuja
ignorância causa muito sofrimento.
Mas além disso descobri, da única maneira que um homem aprende de
fato qualquer coisa importante, a verdadeira habilidade que é necessária pra
alguém dar certo numa burocracia. Mas dar certo de verdade: trabalhar
direito, fazer a diferença, servir. Descobri a chave. E a chave não é
eficiência ou probidade, ou intuição, ou sabedoria. Não é astúcia política
nem habilidade interpessoal, QI bruto, lealdade, visão, nem quaisquer dessas
qualidades que o mundo burocrático chama de virtudes e faz testes pra
medir. A chave é uma certa capacidade que subjaz a todas essas qualidades,
mais ou menos como a capacidade de respirar e bombear sangue subjaz a
todo pensamento e toda ação.
A chave burocrática subjacente é a habilidade de lidar com o tédio. De
funcionar de maneira eficaz num ambiente que barra tudo que seja vital e
humano. De respirar, por assim dizer, sem ar.
A chave é a habilidade, seja ela inata ou condicionada, de encontrar o
outro lado do rotineiro, do reles, do irrelevante, do repetitivo, do
inutilmente complexo. Ser, numa só palavra, inentediável. Eu conheci, nos
anos de 1984 e 85, dois homens assim.
É a chave da vida moderna. Se você é imune ao tédio, não há literalmente
nada que você não possa conquistar.
§ 45

A mãe de Toni era meio doida, como a sua própria mãe, notória reclusa e
excêntrica que morava na Casa das Calotas de Peoria. A mãe de Toni se
juntou com uma série de sujeitos ficha-suja no Sudoeste dos EUA. O último
estava dando a elas uma carona de volta a Peoria, para onde a mãe de Toni
tinha decidido voltar depois que a relação anterior àquela tinha azedado.
Blá-blá. Nessa viagem, a mãe meio que pirou (parou de tomar os remédios)
e roubou a caminhonete do cara quando eles pararam num posto, deixando
o cara para trás.
Tanto a mãe quanto a avó eram dadas a estados catatônicos/catalépticos,
o que até onde posso dizer é sintoma de certo tipo de esquizofrenia. A
menina, desde bem novinha, se divertia tentando imitar esse estado, o que
envolvia ficar extremamente imóvel, baixar os batimentos cardíacos,
respirar de maneira a não mover o peito e manter os olhos abertos por
longos períodos, de modo a piscar só de tantos em tantos minutos. Esta
última parte é que é a mais difícil — os olhos começam a arder quando
secam. Muito, muito difícil suportar esse desconforto… mas se você
persiste, se resiste ao impulso quase involuntário de piscar que chega
quando a ardência e o ressecamento estão no pior grau possível, aí os olhos
começam a se lubrificar sem piscar. Eles vão manufaturar uma espécie de
lágrimas falsas ou vicárias, só para se salvar. Quase ninguém sabe disso,
porque o incrível desconforto de ficar com os olhos abertos sem piscar
detém a maioria das pessoas antes de elas chegarem a esse ponto crítico. E
via de regra você se machuca, de qualquer maneira. A menina chamava isso
de “fingir de morta”, já que era como sua mãe tinha tentado descrever e
contornar a coisa dos estados para a menina quando ela era bem
pequenininha, dizendo que estava apenas brincando e que a brincadeira se
chamava “fingir de morta”.
O homem abandonado alcançou as duas em algum ponto do leste do
Missouri. Elas seguiam numa estradinha asfaltada, e o primeiro sinal de que
ele estava atrás delas foi um par de faróis que surgiu bem quando estavam
numa descida que se estendia por quase dois quilômetros — elas viam os
faróis aparecerem quando o veículo que as seguia chegava ao topo e depois
perdiam o contato quando começavam a subir de novo a leve inclinação.
A história, conforme a lembrança de Toni Ware, e conforme a narrativa
que ela fez uma única vez para X numa noite que acabou revelando ser o
aniversário da ocorrência, foi de que o veículo que o sujeito tinha pego de
alguém ou alugado vinha rápido atrás delas — na verdade vinha bem mais
rápido que a caminhonete, que tinha uma cobertura na caçamba — e o
homem não estava dirigindo o veículo. Ele estava de pé no capô do que
revelou ser um gigantesco caminhão sem carreta, estourando de raiva e de
maldade até ficar com pelo menos o dobro do tamanho que tinha, de braços
erguidos e abertos num terrível gesto de vingança quase bíblica, e berrando
(no sentido rural de “berrar”, o que é quase uma forma especial de arte;
antigamente era como as pessoas que moravam totalmente isoladas em
terrenos montanhosos, longe dos olhos umas das outras, conseguiam se
comunicar — era a forma de dizer aos outros que você estava por perto,
porque senão podia parecer, nas áreas rurais montanhosas, que você era a
única pessoa em qualquer lugar, num raio de milhares de quilômetros) num
estático furor negro de ódio e satisfação que fez com que a mãe de Toni —
que, lembremos, não era um grande modelo de estabilidade — ficasse
histérica e cravasse o acelerador no chão para tentar escapar do veículo ao
mesmo tempo que tentava extrair da bolsa um frasco de comprimidos e
abrir a tampinha de segurança, coisa em que a mãe era uma catástrofe,
precisando normalmente que Toni abrisse para ela — fazendo com que o
veículo, que tinha um centro de gravidade elevado por causa da cobertura
LEER,saísse da estrada e capotasse de lado em algum tipo de campo ou área
de vegetação baixa, ferindo violentamente a mãe, a ponto de ela acabar
semiconsciente, gemendo, com sangue lhe cobrindo o rosto e com Toni
estendida contra a janela do lado do passageiro, sendo que ela ainda tem a
maçaneta da janela gravada no lado do corpo se você conseguir convencê-la
a erguer a blusa e mostrar a bizarra reprodução. O veículo acabou caído
sobre a lateral direita, e a mãe não estava de cinto de segurança, coisa que
gente como ela nunca usa, e estava parcialmente sobre Toni Ware,
prendendo a menina contra a janela de modo que ela não conseguia nem se
mexer nem saber se estava ferida. Nada além daquele terrível silêncio, e dos
zumbidos e estalidos de um veículo que acabou de sofrer um acidente, fora
o som de esporas ou talvez apenas de um monte de moedas tinindo
enquanto o homem ia descendo a encosta até chegar a elas. A janela em que
ela estava tinha se cravado no chão e a do lado do motorista apontava agora
para o céu, mas o para-brisa, apesar de entortado e meio dependurado ali,
tinha se transformado numa fenda vertical de mais de um metro através da
qual Toni Ware teve uma visão total do homem ali parado, estralando os
dedos e olhando para as ocupantes do carro. Toni ficou ali estendida de
olhos abertos, diminuiu a respiração e se fingiu de morta. Os olhos da mãe
estavam abertos, mas ela estava viva porque dava para ouvir a respiração e
as ocasionais exclamações que ela soltava no seu coma ou fosse aquilo o
que fosse. O homem olhou para Toni, bem no fundo dos olhos dela, por
muito tempo — depois ela entendeu que ele estava tentando avaliar se ela
estava viva. É inimaginavelmente difícil estar olhando direto em frente e aí
alguém olhar direto para você e mesmo assim você parecer que não está
olhando de volta. (Foi isso que começou a história; David Wallace ou outra
pessoa tinha comentado que Toni Ware era medonha porque, mesmo não
sendo tímida nem evasiva e mantivesse contato visual, ela parecia estar
olhando os seus olhos e não nos seus olhos; era mais ou menos como um
peixe de aquário que passa por você enquanto você olha pelo vidro e
aqueles olhos olham de volta — você sabe que eles estão de alguma
maneira conscientes de você ali, mas é inquietante porque não tem nada a
ver com o jeito de um ser humano parecer consciente de você quando olha
nos seus olhos.)
Os olhos de Toni estavam abertos. Era tarde demais para fechar. Se
fechasse de repente, o homem ia saber que ela estava viva. Sua única
chance era parecer tão morta que o homem não fosse ir ver seu pulso ou
segurar um espelho na frente de sua boca para verificar. O que impediria de
ele ir ver era aqueles olhos estar abertos e ficarem abertos — nenhum ser
humano vivo conseguia manter os olhos abertos por longos períodos. Não
havia ninguém por ali; o homem tinha tempo de sobra para ficar olhando
pelo para-brisa e ver se elas estavam vivas. O rosto da mãe estava
espremido contra o dela, mas por sorte o sangue escorria em alguma curva
da garganta de Toni; se estivesse pingando em seus olhos, teria feito ela
piscar involuntariamente. Ficou imóvel daquele jeito, de olhos abertos. O
homem subiu na carroceria e testou a porta do lado do motorista, mas ela
estava trancada por dentro. O homem voltou e pegou algum tipo de
ferramenta ou pé de cabra e arrancou o para-brisa, sacudindo violentamente
a caminhonete. Ele se estendeu de lado no chão e se espremeu pela fresta do
para-brisa, olhando primeiro a mãe e depois a menina. A mãe gemeu e se
mexeu de leve, e o homem a matou estendendo a mão e fechando suas
narinas com uma mão e lhe tapando a boca com um trapo sujo de óleo que
tinha na outra, que apertou firme, tão firme que a cabeça da mãe empurrou
a lateral da de Toni enquanto ela inconscientemente resistia ao
sufocamento. Toni ficou ali, respirando raso, de olhos ainda abertos e a
meros centímetros dos olhos do homem enquanto ele sufocava sua mãe, o
que levou mais de quatro minutos de pressão para o homem ter certeza
absoluta. Toni encarando sem ver e sem piscar muito embora a secura e o
desconforto devam ter sido horrendos. E de alguma maneira ela convenceu
o homem de que estava morta, porque ele não apertou as narinas dela nem
usou o trapo sujo de óleo, embora isso só fosse lhe custar quatro ou cinco
minutos a mais… mas nenhum ser humano normal consegue ficar ali
parado de olhos abertos todo aquele tempo sem piscar, isso ele sabia. Então
ele pegou uma ou duas coisas de valor no porta-luvas e ela ouviu o tilintar
de sua subida de novo pela encosta, o som tremendamente poderoso do
motor do caminhão ligando e o caminhão partindo, e aí a menina ficou ali
presa entre a porta e a mãe morta pelo que devem ter sido várias horas antes
de alguém passar por acaso, ver o desastre e chamar a polícia, e aí
provavelmente outro longo período até eles a retirarem da caminhonete,
sem ferimentos em nenhum sentido real, e a colocarem em uma espécie de
ambulância de caridade…
PQP.

Portanto não mexa com essa menina; essa menina é chave de cadeia.
§ 46

O que normalmente acontece é que sexta-feira à noite uma porcentagem


dos funcionários da Célula C se encontram para beber alguma coisa no
Happy Hour do Meibeyer’s. Como no caso da maioria dos bares da zona
norte que servem de ponto de encontro para o pessoal do Serviço, o Happy
Hour do Meibeyer’s dura exatamente sessenta minutos e inclui drinques
especiais cujo preço é indexado ao custo aproximado da gasolina e da
depreciação dos automóveis envolvidos no percurso de 3,7 quilômetros que
vai do CRA até o entroncamento da Southport-474. Níveis e Células
diferentes tendem a se congregar em lugares diferentes, alguns deles no
centro, imitando de várias maneiras os lugares mais estilosos de Chicago e
St. Louis. Os Homens em Forma de Sino estão quase toda noite no Father’s,
que fica logo ali na Self-Storage Parkway e cuja proprietária é, sem
intermediários, a distribuidora da Budweiser; sua função é mais intubatória
que social. Muitos fraldinhas, por outro lado, frequentam os bares
universitários esteroidais de temática esportiva na região do PCB com a
Bradley. Os homossexuais têm o Wet Spot na região artística do centro da
cidade. Quase todos os analistas com filhos, claro, vão para casa passar
algum tempo com a família, embora Steve e Tina Geach estejam com
frequência juntos no Meibeyer’s para o HH das sextas. Quase todo mundo
acha necessário soltar alguns demônios que foram ficando presos durante
uma semana de tédio e concentração extremas, ou de volume e estresse
extremos, ou ambas as coisas.
O Meibeyer’s tem paredes revestidas de um laminado cinza, tochas
havaianas elétricas cujas origens são desconhecidas mas que podem datar
de uma encarnação anterior, uma jukebox Wurlitzer 412-C, duas máquinas
de Pinball, uma mesa de pebolim e uma de aero-hóquei, e uma pequena
área para jogo de dardos prudentemente afastada, perto do corredorzinho do
telefone público e dos banheiros da entrada. As janelas amplas do
Meibeyer’s dão para as lojas à margem da Southport e para as complicadas
rampas de acesso do elevado da I-474. É o mesmo atendente ali no bar às
sextas-feiras há pelo menos três anos, segundo Chuck Ten Eyck. As bebidas
ficam mais para o caro porque os funcionários do Serviço, via de regra, não
bebem muito e não bebem rápido, nem no Happy Hour, o que afeta o que o
bar precisa cobrar pelas bebidas para não cair na insolvência. No inverno o
Meibeyer’s limpa ele próprio a neve do terreno com uma caminhonete que
tem uma lâmina na frente. No verão, o neon do bar, que apresenta o sema
de um chapéu flutuante cujo ângulo muda duas vezes por segundo, se
reflete em algo não perceptível à sua frente e aparece levemente, refletido
ao menos duas vezes, nas janelas dianteiras do bar. A aba do Meibeyer’s
sobe e desce sob a luz malariana dos primeiros momentos de um crepúsculo
em que nuvens pesadas e um aumento da umidade só vez por outra
significam chuva que de fato caia ao chão.
Sendo em geral solteiros, os heterossexuais recém-transferidos ou
contratados cabem direitinho nesse nicho. Robby van Noght vem sempre,
se bem que nessa sexta não. Gerry Moeller esteve aqui em todas as cinco
semanas de sua lotação no CRA. Harriet Candelaria vem, mas quase sempre
sai depois da primeira rodada se Beth Rath por acaso traz Meredith Rand,
com quem Candelaria tem problemas que nenhum dos recém-transferidos
faz a menor ideia de como surgiram. Steve e Tina Geach, que trabalham em
grupos diferentes, têm regimes de intervalos diferentes, são muito
devotados um ao outro e por consenso geral têm o tipo de casamento que
aumenta a atração e a credibilidade do casamento num grau bem elevado
para aquelas pessoas que nasceram para estar numa relação próxima e
duradoura como essa, sempre chegam juntos em sua Kombi carcomida de
ferrugem e sentam bem juntinhos, sempre consumindo o mesmo tipo e a
mesma marca de bebida, e normalmente indo embora assim que o sino toca
para marcar o fim do Happy Hour, muitas vezes demonstrando uma
estranha habilidade de andar abraçados sem parecer desengonçados. Chris
Acquistipace e Russell Nugent, Dave Witkiewicz, Joe Biron-Maint, Nancy
Johnson, Chahla (“A Crise Iraniana”) Neti-Neti, Howard Shearwater, Frank
Brown, Frank Friedwald e Frank De Chellis não perderam um único Happy
Hour no Meibeyer’s desde que vieram trabalhar aqui. Dale Gastine às vezes
vem acompanhado. Keith Sabusawa agora sempre traz Shane (“1100”)
Drinion, o A-EMP transferido com quem Sabusawa agora divide um quarto
num apartamento de Angler’s Cove compartilhado com outros dois
transferidos que aparentemente nunca vão ao Meibeyer’s. Chris Fogle e
Herb Dritz, especialistas no Anexo F, registram cerca de 50% de
comparecimento. Chuck Ten Eyck e Bob (“Segunda Junta”) McKenzie (os
dois com mais tempo de Peoria) são firmes como aço ali e sempre parecem
querer ser de alguma maneira os anfitriões. R. L. Keck e Thomas Bondurant
costumam aparecer. Toni Ware e Beth Rath quase sempre dão as caras e,
como mencionado, às vezes Beth Rath traz a lendariamente atraente mas
não universalmente popular Meredith Rand. Rath e Rand trabalham em
Tingles adjacentes no grupo de Sabusawa, que cobre tarefas
especializadas/excesso de fluxo, e as duas são amicíssimas. Drinion, que
não tem automóvel, precisa ficar enquanto Sabusawa ficar, nem mais nem
menos. Segundo Sabusawa, o A-EMP de La Junta, CA, não tem problemas
com isso, e sua resposta aos convintes que Sabusawa lhe faz para ir com o
pessoal até o Meibeyer’s depois da troca dos turnos é sempre ou “Beleza”
ou “Por que não”. O negócio com Meredith Rand é que ela tende a vir
apenas se o marido estiver de alguma maneira preso no trabalho ou fora da
cidade a negócios. Como Drinion, ela parece não ter automóvel e nem
mesmo carteira de motorista. Às vezes pega uma carona para casa, saindo
do Meibeyer’s com Beth Rath, porém o mais comum é o marido ir buscá-la,
e aparentemente antes ela liga lá da Célula para ele para dizer onde vai
estar, marido que ninguém no Meibeyer’s jamais viu, mas que sempre
simplesmente estaciona ali na frente e toca a buzina para Meredith Rand,
que por sua vez começa a juntar suas coisas um minuto ou dois antes de a
buzina do carro soar, mais ou menos (segundo Nancy Johnson) como um
cachorro que consegue ouvir o som do motor do dono que se aproxima e se
posta diante da janela da casa bem antes de o carro do dono aparecer em seu
campo de visão. Ela esteve no Meibeyer’s nas últimas cinco semanas
seguidas, o que significa que seu marido andou fazendo muita hora extra ou
viajando bastante. Segundo Sabusawa, ninguém sabe o que ele faz.
Não é difícil ver como a energia e a dinâmica da mesa da Célula C se
alteram quando Meredith Rand está presente no Happy Hour no
Meibeyer’s. De várias maneiras, é um fenômeno que ocorre em bares,
tavernas e grills de qualquer parte sempre que surge uma mulher de
suficiente beleza. Meredith Rand é uma de apenas um punhado de mulheres
no CRA que todo homem com alguma opinião no que se refere a isso
concorda que é totalmente (de morder o punho) atraente. Beth Rath não tem
nada de feia, mas Meredith Rand é outra coisa. Meredith Rand tem olhos
verdes abissais, uma estrutura óssea facial magnífica, uma compleição
cremosa e desprovida de poros, quase sem rugas ou sinais de desgaste, e
uma catarata imensa de cabelos encaracolados de um louro-escuro que,
segundo Sabusawa, quando soltos e livres para emoldurar-lhe o rosto e os
ombros já produziram tiques faciais até em homens gays ou
fundamentalmente assexuados. Ela é pura carne de primeira, é o consenso,
nem sempre tácito. Sua entrada em qualquer espécie de ambiente social do
Serviço produz mudanças palpáveis, sobretudo nos homens. As
especificidades desse tipo de mudança são suficientemente conhecidas, e
por todos, para merecer uma descrição mais longa. Eles por isso tendem a
ficar ou nervosos ou desconfortavelmente silenciosos, como se estivessem
envolvidos num jogo cujo cacife de repente ficou alto demais, ou então se
tornam mais volúveis e conversacionalmente dominantes e começam a
contar piadas demais e de maneira geral parecem deliberadamente não
autoconscientes, enquanto antes de Meredith Rand chegar e puxar uma
cadeira para se juntar ao grupo não havia entre eles essa sensação real de
deliberação e nem mesmo de autoconsciência. As analistas, por sua vez,
reagem a essas mudanças de diversas maneiras, algumas se afastando e
tornando-se visualmente menores (como Enid Welch e Rachel Robbie
Towne), outras reagindo ao efeito de Meredith Rand sobre os homens com
uma espécie de divertimento cínico, outras ainda apertando os olhinhos e se
inclinando a soltar suspiros hostis ou até a sair de maneira teatral (q.v.
Harriet Candelaria). Alguns analistas, lá pela segunda rodada de jarros,
estão representando papéis para Meredith Rand, mesmo que o núcleo da
atuação consista em demonstrações elaboradas de que eles não estão
representando papéis para Meredith Rand e nem mesmo especialmente
conscientes de sua presença à mesa. Bob McKenzie, em particular, fica
quase maníaco, dirigindo praticamente todos os seus comentários ou tiradas
à pessoa à direita ou à esquerda de Meredith Rand, mas jamais, nem uma
única vez, dirigindo-se a ela nem parecendo olhar para ela. Como Beth Rath
normalmente é uma das pessoas ou à direita ou à esquerda de Meredith
Rand, o hábito de McKenzie fazer isso tende a deixar Rath nitidamente
irritada ou deprimida, dependendo de seu estado de espírito.
Nas últimas quatro semanas, foi de fato apenas Shane Drinion quem
pareceu não se afetar pela presença de uma mulher terrivelmente atraente.
Tudo bem que ninguém entende direito o que é capaz de afetar Drinion. Os
outros transferidos de La Junta, CA (Sandy Krody, Gil Haight), descrevem
Drinion como um belo de um analista de Gordas e Empresas tipo S, mas um
traste total em termos de personalidade, possivelmente o ser humano vivo
mais chato deste mundo. Drinion costuma ficar sentado bem quietinho e
contido no lugar, com a mão em torno de um copo de Michelob (que é o
chope do Meibeyer’s), rosto desprovido de expressão a não ser que alguém
conte uma piada que de alguma maneira se dirija a todos ali na mesa,
quando então Drinion sorri brevemente e depois seu rosto volta a seu estado
inexpressivo. Mas não inexpressivo de um jeito vidrado ou catatônico. Ele
observa quem estiver falando de maneira compenetrada. Na verdade,
compenetração nem chega a ser a palavra certa. Não há um elemento
particular de concentração em seu olhar; ele simplesmente entrega toda a
atenção a quem quer que esteja falando. Seus movimentos corpóreos, que
são mínimos, sugerem ideias de concisão e precisão sem parecer afetados
ou delicados demais. Ele responde perguntas ou comentários dirigidos
explicitamente a ele, mas fora essas raras ocasiões não é uma das pessoas
que falam. Mas também não é desses que se encolhem ou somem dentro do
grupo até mal parecer que estão presentes. Não há nenhuma sensação de
que ele seja tímido ou inibido. Ele está ali, mas de um jeito incomum; ele se
torna parte do entorno da mesa, como o ar ou a luz ambiente. Foram Bob
“Segunda Junta” McKenzie e Chuck Ten Eyck que deram a Drinion o nome
de “1100”, uma abreviação de “Mais sem graça”.
Num certo Happy Hour de junho as coisas conspiram de tal maneira que
Drinion e Meredith Rand acabam sozinhos à mesa, mais ou menos um na
frente do outro, naquela parte da noite em que um monte de analistas já foi
para casa ou para outros bares. Mas os dois ainda estão ali. Meredith Rand
está evidentemente esperando uma carona do marido, que dizem que pode
ser algum tipo de estudante de medicina. Keith Sabusawa e Herb Dritz
estão de novo jogando pebolim enquanto Beth Rath (que não deixa de
gostar de Sabusawa; os dois se conhecem desde o Centro de Treinamento
do IRS em Columbus) assiste de braços cruzados e com um cigarro da marca
More aceso numa mão.
Portanto eles estão sentados sozinhos à mesa. Shane Drinion não parece
nem nervoso nem alguém sentado sozinho à frente da galvânica Meredith
Brand, com quem não trocou uma única palavra desde que chegou aqui em
fins de abril. Drinion olha direto para ela, mas não do jeito desafiador e
sensual de um Keck ou de um Nugent. Meredith Rand tomou dois gim-
tônicas e está no terceiro, um pouquinho de bebida a mais que o normal,
mas ainda não fumou. Como quase todas as analistas casadas, ela usa tanto
um anel de noivado quanto uma aliança de casamento. Ela devolve o olhar
a ele, embora eles não estejam ali se encarando, olho no olho nem nada
assim. A expressão de Drinion podia ser descrita como agradável, da
mesma forma que algumas temperaturas são classificadas como agradáveis.
Ele está ou no seu primeiro ou segundo copo de Michelob que serviu de um
dos jarros que ainda estão na mesa, alguns não totalmente vazios. Rand fez
uma ou duas perguntas inócuas para Drinion a respeito de suas origens.
Aquilo do orfanato do Juizado de Menores do Kansas parece interessar a
ela, ou então a honestidade fria com que Drinion diz que passou boa parte
da infância num orfanato. Rand descreve a Drinion uma breve cena de
infância, de quando foi até a casa de uma amiga e as duas usaram pés e
mãos para escalar a parte interna dos umbrais de uma porta e ficaram lá em
cima nos umbrais esticadas e como que emolduradas, apesar de mais tarde
ela não conseguir lembrar por que contou essa história nem em que
contexto. Mas percebe, quase imediatamente, a mesma coisa que Sabusawa
e vários analistas perceberam — que embora Drinion pareça apenas
parcialmente presente num grupo grande, há algo muito diferente em estar
tête-à-tête com ele; ele tem a qualidade de ser um papo simples ou bom,
atributo para o qual não existe uma palavra, o que é meio estranho, apesar
de também ser estranho esse elemento qualquer que faz ser bom conversar
com Drinion, já que ele não tem nada que possa ser chamado de charme ou
desenvoltura social nem mesmo de uma evidente compaixão. Ele, como
Rand depois dirá a Beth Rath (ainda que não a seu marido), é uma criatura
das mais esquisitas. Há uma breve troca de réplicas que Meredith Rand não
vai se lembrar direito sobre Drinion ser um analista itinerante, sobre o CRA,
as Análises e o Serviço em geral, ou seja, Rand: “Você gosta de trabalhar
aqui?”, coisa que Drinion parece ter levado um momentinho para processar.
D: “Acho que eu nem gosto nem desgosto”. R: “Bom, mas você ia preferir
fazer outra coisa?”. D: “Não sei. Não tenho experiência em mais nada.
Espera. Não é verdade. Eu trabalhei num supermercado, três noites por
semana, entre os meus dezesseis e dezoito anos. Eu não ia preferir trabalhar
num supermercado, comparado com o que estou fazendo hoje”. R: “O
salário é bem pior”. D: “Eu colocava as coisas nas prateleiras e grudava
uma etiquetinhas de preços. Não era nada de mais”. R: “Parece um tédio”.
D: “…”.
“Parece que a gente está meio que num tête-à-tête” é a primeira coisa que
depois Meredith Rand vai conseguir lembrar claramente de ter dito a Shane
Drinion.
“Isso é uma expressão estrangeira pra uma conversa particular”, Drinion
comenta.
“Bom, eu não sei o quanto isto aqui é particular.”
Drinion olha para ela, mas não com o olhar de alguém que não soubesse
bem o que responder. Uma coisa com ele é que ele é absolutamente o
mesmo, em termos de emoções e de comportamento, sozinho ou num grupo
grande. Se emitisse um som seria como a única nota sustentada de um
diapasão ou a linha morta de um eletrocardiograma em vez de qualquer
coisa que variasse.
“Sabe”, Meredith Rand diz, “pra te dizer bem a verdade, você meio que
me interessa.”
Drinion olha para ela.
“Eu imagino que você não ouça muito isso”, Meredith Rand diz. Ela dá
um sorrisinho rápido e seco.
“É um elogio você achar que eu sou motivo de interesse.”
“Acho que é mesmo, né”, Rand diz, sorrindo de novo. “Pra começo de
conversa, só isso de eu poder dizer uma coisa dessas, que você é meio
interessante, sem você pensar que eu estou te cantando.”
Drinion concorda com a cabeça, uma mão em torno da base do copo. Ele
fica bem imóvel, Meredith Rand percebe. Não tem movimentos nervosos
nem muda de posição na cadeira. Ele respira meio pela boca; sua boca fica
meio aberta. Com algumas pessoas isso de a boca ficar aberta faz com que
elas não pareçam tão inteligentes.
“Por exemplo”, ela diz, “imagine se eu digo uma coisa dessas pro Bob
‘2ª-’, como ele ia reagir.”
“Certo.”
Algo fica levemente nublado por um segundo nos olhos de Shane
Drinion, e Meredith sabe que ele está mesmo tentando imaginar ela dizer
“Eu te acho interessante” para o Bob Segunda Junta McKenzie. “Como que
você acha que ele ia reagir?”
“Você quer dizer por fora, assim visivelmente, ou por dentro?”
“A parte visível eu acho que nem quero imaginar”, Meredith Rand diz.
Drinion concorda com a cabeça. Ele, é bem verdade, não é assim tão
interessante de olhar, em termos de aparência. Sua cabeça é ligeiramente
menor que a média e muito redonda. Ninguém até hoje o viu com qualquer
tipo de chapéu ou de casaco; é sempre uma camisa social branca e um
colete de malha. Seu cabelo está caindo de um jeito que faz com que sua
testa pareça intricada. Há algumas marcas de espinhas em torno da região
das têmporas. O rosto não é muito definido nem muito estruturado; as
narinas têm tamanhos ou formatos diferentes uma da outra, dá para ela ver,
o que costuma ser uma péssima notícia quando se avalia o quanto alguém é
bonito. Sua boca é um tantinho pequena demais para a largura do rosto. Seu
cabelo é daquele louro fosco ou oleoso que às vezes acompanha uma tez
avermelhada e uma pele que não é das melhores. É o tipo de pessoa que
você teria que olhar com muita atenção até para conseguir descrever.
Meredith Rand está há algum tempo olhando com ar intrigado para ele.
“Você está pedindo pra eu descrever o que acho que seria a reação interna
dele?”, Drinion diz. O rosto dele não tem exatamente a mesma aparência
vermelho-esfolada de quando eles não estão sob as luzes frias da Célula,
uma vermelhidão nas pessoas que por algum motivo sempre deprime
Meredith Rand logo cedo.
“Digamos que fiquei curiosa.”
“Bom, não tenho como saber com certeza. Quando eu fiquei imaginando,
a minha impressão foi que ele ia ter medo.”
Há uma ligeira alteração na postura de Meredith Rand, mas ela mantém a
expressão facial muito neutra. “Como assim?”
“A minha impressão é que ele tem medo de você. Essa é só a minha
impressão. É difícil explicar em voz alta.” Ele para um momento. “A sua
beleza coloca o McKenzie diante de um tipo de teste em que ele receia ser
reprovado. Isso gera uma ansiedade nele. Quando tem mais gente por perto
ele pode representar um papel, pode entrar num estado adrenalizado que faz
ele esquecer que está com medo. Não, não é bem isso.” Drinion se detém de
novo um momento. Mas não parece frustrado. “A minha sensação é de que
a adrenalina da atuação faz o medo parecer empolgação. Nesse tipo de
ambiente, ele consegue achar que você deixa ele empolgado. É por isso que
ele faz esse papel de cara animado e presta tanta atenção em você, mas ele
sabe que tem mais gente olhando”, Drinion conclui e toma um gole de
Michelob; o movimento do seu braço é quase exatamente em ângulos retos
sem ser rígido ou robótico. Há algo nele de uma precisão e de uma
economia de movimentos. Meredith Rand também já percebeu isso durante
o expediente, quando se estica e olha em volta como que num intervalinho e
vê Drinion sentado, retirando grampos e colocando diferentes declarações
em diferentes pilhas sobre sua mesa Tingle. A postura dele é muito boa,
sem ser rígida ou travada. Ele parece um cara que nunca tem dor nas costas
nem no pescoço. Parece intrigado ou pensativo. “O medo e a empolgação
parecem ser parentes bem próximos.”
“Mas o Ten Eyck e o Nugent fazem igualzinho, quando a mesa toda está
nessa”, Rand diz.
Drinion concorda só um pouco com a cabeça indicando que não foi
exatamente disso que ela pediu para falar. Não é igual à demonstração de
impaciência dele, no entanto. “Só que numa conversa particular, num tête-à-
tête com você, a minha impressão é de que ele ia sentir o medo mais como
medo de verdade. Ele não ia gostar de ficar diretamente consciente disso.
De sentir isso. Ele não ia nem saber do que era aquele medo. Ele ia ficar em
alerta, confuso, de um jeito que não ia ter como fazer parecer empolgação.
Se você dissesse pra ele que achava ele interessante, acho que ele não ia
saber o que dizer. Ele não ia saber como é que devia agir. Acho que não
saber uma coisa dessas ia deixar o Bob bem incomodado.”
Drinion olha direto para ela por um tempo. Seu rosto, que é um pouco
gorduroso, tende a brilhar sob a luz fria das áreas de Análise, mas menos
com a luz indireta das janelas, cuja sombra indica que nuvens se acumulam
lá no alto, embora seja apenas uma impressão de Meredith Rand, e
impressão não de todo consciente.
“Você é bem observador”, Meredith Rand diz.
Drinion responde: “Não sei se isso é verdade. Acho que não tenho nem
observações diretas nem um padrão de fatos pra sustentar essa afirmação. É
um palpite. Mas o meu palpite, por alguma razão, é que ele podia chegar até
a cair no choro mesmo”.
Meredith Rand parece de repente satisfeita, o que quase literalmente
ilumina seu rosto. Ela estende a mão e dá tapinhas secos na mesa com os
dedos de uma mão. “Eu acho que você tem razão.”
“Não sei bem por quê, mas é uma coisa horrível de imaginar.”
“Acho que ele podia cair da cadeira e sair correndo, chorando e
sacudindo as mãos no ar que nem um histérico.”
Drinion diz: “Isso eu não tenho nem como chutar. O que sei é que você
não gosta dele. Sei que ele te deixa incomodada”.
Drinion está virado para a janela da frente do Meibeyer’s, Meredith Rand
para a parte dos fundos, onde ficam o corredor e o cantinho do jogo de
dardos e um quadro decorativo com diferentes tipos de chapéus formais ou
sociais colados pelas abas a uma placa envernizada. Meredith Rand se
inclina para a frente e faz que descansa o queixo nas juntas dos dedos de
uma mão, embora seja fácil perceber que o peso de fato de seu queixo e de
seu crânio não está descansando naqueles dedos; é mais uma postura
predeterminada que uma maneira de se acomodar. “Mas e aí se eu digo que
você é interessante, qual é a sua reação interna?”
“É um elogio. É uma brincadeirinha, mas também é um convite pra
continuar o tête-à-tête. Pra deixar a conversa mais pessoal ou mais
reveladora.”
Rand acenou com aquela mão num pequeno gesto de impaciência ou de
reconhecimento. “Mas o que é que isso te faz sentir, como eles dizem na
Avaliação?”
“Bom”, Shane Drinion diz, “acho que uma manifestação de interesse
como essa faz a pessoa se sentir bem. Desde que a pessoa que diga uma
coisa dessas não esteja tentando propor um nível de intimidade que faça
você se sentir incomodado.”
“E fez você se sentir incomodado?”
Drinion se detém por mais um breve instante, apesar de não se mexer e
de não alterar sua respiração. De novo há talvez um ligeiríssimo momento
de vazio ou de afastamento. Rand tem a sensação de um scanner óptico
escaneando um baralho com grande velocidade e com grande eficiência; há
em torno dele uma espécie de zumbido assônico ambiente. “Não. Acho que
se você tivesse dito com um tom de sarcasmo ia ser incômodo. Mas você
não deu sinal de que estava sendo sarcástica. Então não, não sei direito o
que você quis dizer com interessante, mas é normal que as pessoas gostem
que os outros achem que elas são interessantes, então a curiosidade sobre o
que exatamente você quer dizer não é incômoda. Na verdade, se entendi
direito, é essa curiosidade que o comentário ‘Pra te dizer bem a verdade,
você meio que me interessa’ pretende despertar. A conversa a partir daí
passa a ser sobre o que a pessoa que disse isso queria dizer. Aí a outra
pessoa pode ficar sabendo exatamente o que ela tem que interessa a uma
outra pessoa, o que é agradável.”
“Ex…”
“Ao mesmo tempo”, Drinion continua, sem dar sinal de ter percebido que
Rand começava a dizer alguma coisa apesar de estar olhando direto para
ela, “alguém que te acha interessante parece então de repente, quase por
conta do interesse que tem por você, mais interessante pra você. Esse
também é um lado bem interessante dessa situação.” Ele para. Meredith
Rand se detém por um segundo a mais para ter certeza de que ele parou de
vez. Como o mindinho esquerdo dela, o mindinho esquerdo de Drinion é
perceptivelmente enrugado e pálido por usar a borrachinha o dia todo nas
Análises. Nem a pau que ela ia sequer ter vontade de notar as roupas do
Drinion com um grau de atenção que lhe permitisse catalogar ou
caracterizar o guarda-roupa dele. Só o coletinho já é mais do que brochante.
Ela está com a cigarreira branca de vinil na mão e a abre e retira um cigarro,
já que são só os dois ali na mesa.
“E você, você se acha interessante?”, Meredith Rand pergunta. “Você vê
como alguém podia se interessar por você?”
Drinion toma outro gole do copo e o põe de novo na mesa. Meredith
Rand percebe que ele o coloca exatamente no meio do guardanapo sem nem
tentar e nem ter que ajeitar a base do copo com gestinhos preciosistas para
que ela fique perfeitamente centrada no guardanapo. Drinion não é gracioso
como os bailarinos e atletas, mas há algo nele de gracioso. Seus
movimentos são muito precisos e econômicos sem ser delicados demais. Os
copos da mesa que não estão sobre guardanapos têm grandes poças de
condensação de formatos variados a sua volta. Alguém escolheu a mesma
canção popular para tocar duas vezes seguidas na grande jukebox do
Meibeyer’s, que tem círculos concêntricos de luzes vermelhas e brancas
num circuito integrado que permite que elas acendam e apaguem de modo a
acompanhar a linha de baixo da canção selecionada.
Shane Drinion diz: “Acho que eu nunca pensei de verdade nisso”.
“Você sabe por que eles te chamam de 1100?”
“Acho que sei.”
“Você sabe por que eles chamam a Chahla de Crise Iraniana?”
“Acho que não.”
“Você sabe por que eles chamam o McKenzie de Bob Segunda Junta?”
“Não.”
Meredith Rand vê que Drinion está olhando para o cigarro. O isqueiro
dela fica numa bainha especial presa à cigarreira, que é de um vinil barato,
texturizado — Meredith Rand acaba perdendo os cigarros em lugares
diferentes, então não faz sentido ter uma cigarreira cara. Ela sabe, por causa
dos intervalos no expediente da Célula, que não faria sentido oferecer um
cigarro a Drinion.
“Mas e você? Você acha que eu sou interessante?”, Rand pergunta a
Shane Drinion. “Assim, sem levar em conta que eu disse que você era
interessante.”
Os olhos de Drinion estão nela — ele mantém bastante contato visual
sem ser desafiador ou sedutor — enquanto parece fazer o mesmo tipo de
processamento interno de dados que fez antes. Drinion está usando um
colete de malha xadrez, uma calça estranha de tergal com textura granulada
e uma imitação de sapato Wallabee marrom que bem podia ser da JC

Penney. A corrente de ar gelado que entra pela abertura de ventilação no


alto esfiapa o anel de fumaça assim que Rand lhe dá forma e exala. Beth
Rath agora está jogando pebolim com Herb Dritz enquanto Keith Sabusawa
assiste ao aquecimento dos times para uma partida de beisebol dos
Cardinals na televisão que fica na parede, acima do balcão. Dá para ver que
Beth preferia estar sentada com Sabusawa, mas que não sabe direito o
quanto demonstrar do que sente por Sabusawa, que Meredith Rand sempre
achou alto pacas para um oriental. Drinion também tem um jeito de
concordar com a cabeça em que o gesto não tem nada a ver com etiqueta ou
afirmação. Ele diz: “Você é agradável, e até aqui estou gostando do tête-à-
tête. É uma oportunidade de prestar atenção diretamente em você, o que não
costuma ser uma coisa fácil de fazer, porque parece que te deixa
incomodada”. Ele espera um momento para ver se ela quer dizer alguma
coisa. A expressão facial de Drinion não é vazia, mas é vaga e neutra de
uma maneira que podia até ser vazia pelo tanto que te informa. Meredith
Rand, sem nem perceber direito, parou de tentar fazer os anéis.
“Gostar de prestar atenção é a mesma coisa que se interessar por
alguém?”
“Bom, eu diria que praticamente tudo que você observar de perto, com
bastante atenção, acaba ficando interessante.”
“É verdade isso?”
“Eu acho que é, sim.” Drinion diz: “Claro que é mais interessante prestar
atenção em você porque você é bonita. Quase sempre é interessante prestar
atenção na beleza. Não demanda esforço”.
“Os olhos de Rand se estreitaram, se bem que talvez em parte por causa
da fumaça que a saída do ar-condicionado jogava de volta no rosto dela.
Shane Drinion diz: “A beleza é interessante quase que por definição, se
você pensa que interessante significa uma coisa que atrai a atenção e faz a
atenção parecer agradável. Tudo bem que você disse se interessar e não ser
interessante”.
“Você sabe que eu sou casada, né?”, diz Meredith Rand.
“Claro. Todo mundo sabe que você é casada. Você usa aliança. O seu
marido vai te pegar na saída sul várias vezes na semana. O carro dele tem
um furinho no escapamento que deixa o motor com um som poderosão.
Quer dizer, um barulho que faz o carro parecer mais poderoso que o
normal.”
Meredith Rand não parece nada satisfeita. “Vai ver sou eu que estou
confusa aqui. Se você acabou de dizer que eu fico incomodada, por que
mencionar essa coisa da beleza?”
“Bom, você me fez uma pergunta”, Drinion diz. “Eu te disse o que eu
concluí que é verdade. Levei um segundinho pra concluir qual era a
resposta de verdade e o que faz e o que não faz parte da resposta. Aí eu
disse. Não é pra você ficar incomodada. Mas também não é pra evitar que
você fique incomodada — não foi essa a sua pergunta.”
“Ah, e desde quando você é uma autoridade pra definir o que é a
verdade?”
Drinion espera um momento. No mesmíssimo intervalo diminuto da
pausa, ocorre a Meredith Rand que Drinion está esperando para ver se a
pergunta é literal ou não. Ou seja, se é sarcástica. Ou seja, ele não tem uma
noção natural de sarcasmo. “Não. Eu não sou uma autoridade nisso. Você
me fez uma pergunta sobre eu estar interessado, e eu tentei determinar a
verdade do que estava sentindo, e tentei te dizer essa verdade, porque supus
que era isso que você queria.”
“Percebi que você foi bem menos, assim, direto e seco sobre como se
sentiu quando eu disse que te achava interessante.”
A expressão e o tom de Drinion não mudaram nadinha. “Desculpa. Eu
estou com dificuldade aqui pra entender o que você acabou de dizer.”
“Eu estou dizendo que quando eu te perguntei como você se sentia por eu
ter dito que te achava interessante, você não foi tão direto na resposta. Você
ficou dançando e desviando do assunto. Agora comigo do meio do nada te
vem essa total preocupação com a verdade seca e direta.”
“Agora eu entendi.” De novo uma breve pausa. A fumaça da marca de
cigarro de baixos teores de fato tem um sabor ralo depois do que restou do
gosto da tônica com limão. “Eu não me lembro de nenhum momento em
que tentei ser evasivo ou falso naquela resposta. Vai ver consigo expressar
melhor umas ideias do que outras. Acho que é uma coisa que as pessoas
descobrem o tempo todo. Além disso, normalmente eu não converso muito.
Eu quase nunca me vejo num tête-à-tête, pra te dizer a verdade. Pode ser
que eu não seja tão bom quanto os outros nisso de falar de um jeito mais
consistente sobre como alguma coisa me deixa.”
“Posso te fazer uma pergunta?”
“Sim.”
Rand agora não tem dificuldade em olhar direto para Drinion. “Não te
ocorre nem de longe que isso tudo possa parecer meio condescendente pra
quem estiver ouvindo?”
As sobrancelhas de Drinion sobem um quase nada enquanto ele pensa. O
jogo de beisebol já começou na televisão, o que pode explicar por que Keith
Sabusawa, que costuma sair rapidinho quando o Happy Hour acaba, ainda
não saiu e, portanto, Shane também ficou. Sabusawa é alto o suficiente para
que seu mocassim fique parcialmente apoiado no chão em vez de enroscado
naquele pequeno suporte perto da base do banco. Ron, o barman, está com
um paninho e um copo na mão, faz gestos de quem enxuga mas também
olha para o jogo, e está dizendo alguma coisa para Keith Sabusawa, que pra
dizer a verdade às vezes guarda longas listas de estatísticas de beisebol na
cabeça, coisa que segundo Beth Rath ele considera que o acalma, que o
sossega. Duas grandes máquinas de pinball cheias de luzes e barulhinhos
ficam apoiadas na parede logo ao sul do jogo de hóquei de mesa, que
nenhum dos frequentadores do Meibeyer’s chega a usar porque a máquina
tem algum defeito crônico que faz o ar soprar forte demais pelos
buraquinhos da mesa e levar o puck a ficar flutuando a vários centímetros
da superfície e a ser quase impossível de não jogar para fora da mesa de
uma vez. Nas máquinas de pinball mais próximas, uma linda amazona com
um macacão de laicra levanta pelo cabelo um homem cujos membros
parecem rodopiar em sincronia com as luzes sincopadas dos obstáculos,
portais e alavancas.
Drinion diz: “Não me ocorre, não. Mas o que eu estou percebendo é que
você ficou brava ou chateada com alguma coisa que eu disse. Isso dá pra
ver”, ele diz. “E me ocorre que você pode querer encerrar essa conversa
tête-à-tête apesar de o seu marido ainda não ter chegado pra te pegar, mas
que pode ser que você não saiba direito como fazer isso e aí esteja se
sentindo meio presa aqui, e que isso é uma das coisas que estão te deixando
brava.”
“E você, você não tem que ir pra algum lugar?”
“Não.”
Um dado interessante é que na verdade Meredith Rand é
hierarquicamente superior a Shane Drinion, tecnicamente, já que ela é GS-10
e Drinion GS-9. Isso muito embora Drinion esteja várias ordens de
magnitude acima de Rand em termos de eficiência como analista. Tanto sua
média diária de declarações quanto a razão entre o seu total de declarações
verificadas e a renda adicional gerada em auditoria são muito mais altas que
as de Meredith Rand. A verdade é que os analistas de empreitada têm mais
dificuldade para serem promovidos, já que as promoções costumam
decorrer das recomendações de um Gerente de Grupo, e os A-EMPs

raramente ficam num Posto ou numa Célula tempo suficiente para


desenvolver o tipo de relação com os superiores que faça o superior se
motivar a encarar a chatice burocrática de recomendar alguém para uma
promoção. Além disso, como os analistas de serviços muitas vezes são os
melhores no que fazem, há um desincentivo no serviço no que se refere às
suas promoções, já que chegando a GS-15 um funcionário do Serviço passa
para o administrativo e não pode mais ficar viajando de um Posto a outro.
Uma das coisas que os fraldinhas regularmente lotados acham misteriosa
nos A-EMPs são as possíveis motivações que os levam a trabalhar como A-
EMPs quando a posição é meio que uma sentença de morte em termos de
carreira e de aumento de salário. Em números de 1º- de julho de 1983, a
diferença entre o salário anual de um GS-9 e o de um GS-10 é de $3 220,
brutos, o que não é pouca coisa. Como muitos fraldinhas, Meredith Rand
supõe que exista algum tipo de personalidade de base que talvez se sinta
atraída pela movimentação constante e pela ausência de laços que decorrem
de você ser um analista de empreitada, fora a diversidade de desafios, e que
o RH tem formas de testar esses traços de personalidade e assim identificar
alguns analistas como prováveis candidatos ao posto de A-EMP. Mas em
parte isso é uma romantização de funcionários casados ou pelo menos
juntados sobre o estilo de vida livre de ficar indo de um Posto a outro
movido apenas pelos caprichos do Serviço, como um caubói ou um
mercenário. Montes de A-EMPs vieram para Peoria desde o fim do verão e o
começo da primavera de 84 — há várias teorias para explicar o motivo.
“Você normalmente fica por aqui depois do horário e depois que todo o
pessoal do Segunda-Junta foi embora?”
Drinion sacode a cabeça. Ele não menciona que não pode sair do
Meibeyer’s enquanto Keith Sabusawa não sair. Meredith Rand não sabe se
ele deixa de mencionar esse fato óbvio porque sabe que Meredith já sabe,
ou se esse cara é tão totalmente literal que só o que ele faz é responder
literalmente a qualquer pergunta que ela fizer, como uma máquina, assim
meio que só com sim ou não se for uma pergunta do tipo sim ou não. Ela
apaga o cigarro no cinzeirinho descartável de papel-alumínio amarelo que
você tem que pedir direto pro Ron se quiser fumar, porque o Meibeyer’s
andou tendo problemas com cinzeiros que sumiram, por mais que seja
difícil acreditar, sendo eles rastaquera como são. Ela apaga o cigarro um
tanto mais determinada e de forma mais enfática do que costuma fazer, para
reforçar certa impaciência tonal no que diz enquanto apaga o cigarro: “Tudo
bem, então”.
Drinion gira um pouco o torso na cadeira para ver onde Keith Sabusawa
está exatamente, ali no balcão. Rand tem 90% de certeza de que o
movimento não é um tipo de atuação nem alguma coisa que tenha como
objetivo lhe comunicar algo de maneira não verbal. Lá fora no céu do
noroeste pairam imensas muralhas abruptas de nuvens crespusculares
iluminadas pelas bordas, em cujo interior por vezes há resmungos e luz.
Nenhuma pessoa ali no Meibeyer’s pode ver essas nuvens, se bem que
sempre seja possível dizer fisicamente que a chuva vem chegando se você
prestar atenção a certos sinais físicos subliminares como nos seios nasais,
joanetes, um certo tipo de dor de cabeça incipiente, uma leve alteração que
se faz sentir na qualidade do frio do ar-condicionado.
“Então me diga por que você acha que esse negócio de ser bonita me
incomoda.”
“Eu não sei com certeza. Só posso te dar um palpite.”
“Sabe, estou vendo que no fundo você não é tão direto quanto parecia
assim de cara.”
Drinion continua olhando diretamente para Meredith Rand, mas sem
nenhum tipo de desafio ou intenção evidente. Rand, que com certeza tem
condições de saber que a falta de malícia pode ser uma espécie de malícia,
vai dizer a Beth Rath que foi um pouco como ter uma vaca ou um cavalo te
olhando: Não apenas você não sabe o que eles estão pensando enquanto te
olham, ou até se eles estão pensando, mas você também não tem noção do
que eles estão vendo enquanto te olham — e mesmo assim você se sente
verdadeiramente vista.
“Tudo bem, eu vou entrar nesse joguinho então”, Meredith Rand diz.
“Você me acha bonita?”
“Acho.”
“Você me acha atraente?”
“…”
“Então, acha ou não acha?”
“Eu fico meio sem saber o que fazer com essa pergunta. Eu ouvi isso no
cinema e vi em livros. É uma expressão esquisita. Tem alguma coisa meio
confusa. Parece que a pergunta pede uma opinião objetiva quanto à
possibilidade da pessoa com quem você está conversando ser descrita como
atraente. Só que nos contextos em que a expressão normalmente aparece, dá
a impressão de quase sempre ser um jeito de perguntar se a pessoa com
quem você está conversando sente alguma atração sexual por você.”
Meredith Rand diz: “Bom, de vez em quando a gente precisa deixar
passar um jeito meio tortuoso de dizer as coisas, não é verdade? Tem coisa
que não dá pra dizer de uma vez senão fica grosseiro demais. Você
consegue imaginar alguém dizendo ‘Você sente atração sexual por mim?’”.
“Eu consigo, sim.”
“Mas seria desconfortável pacas perguntar desse jeito, não acha?”
“Eu consigo entender como poderia ser desconfortável ou até
desagradável, principalmente se a outra pessoa não sentisse atração sexual.
Eu tenho quase certeza que embutida ali na pergunta direta vem a sugestão
de que a pessoa que faz a pergunta sente uma atração sexual pela outra e
quer saber se o sentimento é recíproco. Então — sim, isso quer dizer que eu
estava errado. Também existem perguntas e suposições embutidas na
questão subjacente. Você está certa — tudo indica que a questão da atração
sexual é um tema de que não dá pra falar de um jeito totalmente direto.”
Agora a expressão condescendente de Rand desagradaria ou irritaria a
imensa maioria das pessoas com quem ela estivesse conversando. “E por
que você acha isso?”
Drinion se detém por um momento. “Acho que talvez porque a rejeição
sexual direta é extremamente desagradável para as pessoas, e quanto menos
direta for a maneira de você receber informações a respeito da sua atração
sexual sobre alguém, menos diretamente você se sente rejeitado se a sua
atração não for correspondida.”
“Tem alguma coisa em você que me cansa”, Rand observa. “Nisso de
conversar com você.”
Drinion concorda com a cabeça.
“É como se você fosse ao mesmo tempo interessante e chato pacas.”
“Que eu sou chato pode saber que já me disseram.”
“A coisa do ‘100 graça’.”
“O apelido é obviamente sarcástico.”
“Você já saiu com uma mulher?”
“Não.”
“Você já convidou alguém pra sair ou manifestou interesse e atração por
alguém?”
“Não.”
“Você não fica meio sozinho?”
Pequena pausa para isso. “Acho que não.”
“Você acha que ia perceber se ficasse?”
“Acho que ia.”
“Você sabe o que está tocando na jukebox agora?”
“Sei.”
“Você por acaso não é homo?”
“Acho que não.”
“Você não acha?”, Rand diz.
“Eu não acho que no fundo eu seja qualquer coisa. Eu não acho nem que
eu já tenha sentido o que você chama de atração sexual.”
Rand é muito boa para perceber emoções no rosto dos outros, e até onde
ela pode ver não há o que se perceber no rosto de Drinion. “Nem na
adolescência?”
De novo aquela pequena pausa para uma conferência interna. “Não
mesmo.”
“Você ficou preocupado que podia ser homo?”
“Não.”
“Você ficou preocupado que tivesse alguma coisa errada com você?”
“Não.”
“Outras pessoas ficaram preocupadas?”
Outra pausa, ao mesmo tempo vazia e não. “Acho que não.”
“Mesmo?”
“Você quer dizer na minha adolescência?”
“Sim.”
“Acho que a verdade é que ninguém prestava tanta atenção assim em
mim, a ponto de ficar imaginando o que estaria passando pela minha
cabeça, muito menos a ponto de se preocupar com isso.” Ele não se mexeu
nem um pouquinho.
“Nem a sua família?”
“Não.”
“E isso te chateava?”
“Não.”
“Você se sentia sozinho?”
“Não.”
“Você às vezes se sente sozinho?”
Rand já é quase capaz de prever a pausa depois de algumas perguntas, ou
de absorvê-la como parte normal do ritmo conversacional de Drinion.
Drinion não dá mostras de ter percebido que ela já perguntou isso.
“Acho que não.”
“Nunquinha?”
“Acho que não.”
“Por que não?”
Drinion toma outro gole de seu copo de cerveja morna. Há algo na
economia dos movimentos dele que Rand gosta de olhar sem nem ter
grande consciência de que gosta. “Acho que eu nem sei como responder
essa”, o analista de empreitada diz.
“Bom, assim, quando você vê outras pessoas tendo romances ou vidas
sexuais, e você não, ou você percebe que elas se sentem sozinhas e você
não, qual você acha que é a diferença entre elas e você?”
Vem uma pausa. Drinion diz: “Eu acho que isso que você está
perguntando tem dois gumes. No fundo é uma questão de comparação.
Acho que é mais que se eu estou vendo alguém e presto atenção na pessoa e
fico pensando como ela é, aí eu não presto tanta atenção em mim e em
como sou. Então não tem como comparar”.
“Você nunca compara uma coisa com outra?”
Drinion olha para a mão e o copo. “Eu acho meio duro prestar atenção
em mais de uma coisa ao mesmo tempo. Acho que é um dos motivos de eu
não saber dirigir, por exemplo.”
“Mas você sabe o que está tocando na jukebox.”
“Sei.”
“Mas se você está prestando atenção aqui na nossa conversinha, como é
que você sabe o que está na jukebox?”
Vem uma pausa mais longa. O rosto de Drinion parece levemente
diferente quando ele chega ao fim da sua conferência de dois segundos.
Drinion diz: “Bom, está tocando bem alto, e também eu já ouvi essa
música várias vezes no rádio, coisa de quatro ou cinco vezes, e quando toca
no rádio e acaba aí às vezes eles dizem o nome da música e do artista. Eu
acho que é assim que as emissoras de rádio conseguem tocar uma música
que tem copyright sem ter que pagar algum tipo de taxa cada vez que usam
a música. A transmissão radiofônica é parte da publicidade do disco de que
aquela música faz parte. Mas é meio confuso. A ideia de que ouvir a música
várias vezes de graça no rádio aumenta a chance do consumidor ir até a loja
para comprar a música me parece meio confusa. Tudo bem que na maioria
das vezes o que está à venda é o disco inteiro de que a música é só uma
parte, então pode ser que a música no rádio funcione mais ou menos como
um trailer de filme que eles passam pra te levar a comprar um ingresso pra
aquele filme depois, filme de que o trailer é só uma pequena parte. Também
tem a questão de saber como é que os contadores das gravadoras tratam as
despesas envolvidas na veiculação radiofônica gratuita. Parece ser não uma
questão de ICE e empresarial mas no fundo uma coisa interempresarial, se
você para pra pensar. Claro que tem custos significativos de envio e de
distribuição nessa coisa de levar a gravação da música às mãos das
emissoras de rádio que vão tocar. Será que a gravadora ou a matriz pode
deduzir esses custos se as emissoras não estão pagando nada pelos direitos
de transmissão da música e portanto não há renda que possa contrabalançar
os gastos? Ou será que eles podem ser deduzidos como gastos de marketing
e publicidade se a bem da verdade ninguém está entregando dinheiro a
quem ostensivamente vai fazer a publicidade, no caso as emissoras de rádio
ou suas matrizes, mas só pro serviço postal ou alguma transportadora
particular? Como é que o analista do Serviço ia poder distinguir esses
gastos de deduções ilícitas ou inflacionadas se nenhuma compensação
maior pudesse ser referenciada como base de acréscimo ou de subtração pra
esses custos de distribuição?”.
Meredith Rand diz: “Posso te dizer que um dos motivos que te fazem
parecer meio chato é que você parece não ter a menor noção do assunto real
de uma conversa? Isso tudo aí não tem nadíssima a ver com o que a gente
estava discutindo, não é?”.
Drinion fica com uma cara algo desorientada por um momento, mas não
magoada nem constrangida. Rand diz: “O que é que te faz imaginar que
alguém neste mundo ia poder querer ficar ouvindo um conversê comprido
de trabalho que você nem entende direito se a questão central da gente estar
aqui é ser sexta-feira e a gente não ter que pensar nessas merdas por dois
dias?”.
Drinion diz: “Normalmente você prefere não dedicar tempo a essas
questões fora do expediente, é isso?”.
“Eu estou falando de solidão e das pessoas prestarem ou não prestarem
atenção em você, e você me entra nessa coisarada toda comprida de
protocolos de gastos radiofônicos e que no fim o negócio é que tem umas
partes da conduta oficial nesse caso que você desconhece?”
Drinion concorda com a cabeça de maneira pensativa. “Eu entendi o que
você está dizendo.”
“O que é que você imagina que passa pela cabeça da outra pessoa
enquanto você sola desse jeito? Você simplesmente deduz automaticamente
que as pessoas estão interessadas? Quem quer saber de contabilidade
radiofônica a não ser que tenha que fazer isso profissionalmente?”
Beth Rath agora está sentada entre Keith Sabusawa e outra pessoa no
balcão, todos em banquinhos, com posturas próprias de quem está sentado
em banquinhos de bar, que para Meredith Rand sempre parecem vulturinas.
Howard Shearwater está jogando pinball, jogo em que ele supostamente é
uma maravilha — sua máquina de pinball é a mais distante da mesa deles, e
o ângulo de incidência da luz não permite que Rand veja o padrão ou o
motivo gráfico da máquina. O sol ainda não se pôs de fato, mas as luzes
fracas do bar nas tochas havaianas artificiais do corredor já se acenderam, e
o fluxo das saídas do ar-condicionado parece pelo menos ter sido reduzido
um pouco. Como torcedores de beisebol, os peorianos de verdade tendem a
se dividir igualmente entre os Cubs e os Cardinals, ainda que atualmente os
torcedores dos Cubs tendam a manter sua preferência mais em segredo.
Beisebol na televisão é quase oficialmente o tipo mais entediante de esporte
que existe, na opinião do marido de Meredith Rand. Pode chover ou não,
como sempre. Havia poças de condensação com formatos variados em
todos os lugares que têm ou tinham um copo, e nenhuma jamais evaporava.
Drinion ainda não falou nem se mexeu nem mudou de expressão facial,
quase nada. Este aqui, bem aqui, é o cigarro número três desde as 5h10.
Não há tentativas de anéis.
Meredith Rand diz: “No que você está pensando agora?”.
“Eu estou pensando que você levantou várias questões que parecem
válidas e que eu vou ter que pensar mais nessa coisa toda sobre o que os
outros estão pensando quando eu estou falando com eles.”
Rand faz aquilo que consegue fazer, de sorrir bem largo com tudo menos
os músculos em volta dos olhos. “Você está me tratando como criança?”
“Não.”
“Você está sendo sarcástico?”
“Não. Mas estou vendo que você ficou brava.”
Ela exala duas breves presas de fumaça. Por causa da menor corrente
resultante do fluxo da saída de ar-condicionado, um pouco da fumaça está
indo para o rosto de Shane Drinion. “Você sabia que o meu marido está
morrendo?”
“Não. Eu não sabia”, Drinion diz.
Eles ficam ali sentados em silêncio por um momento, fazendo cada um o
tipo de coisas faciais que por hábito fazem.
“Você não vai dizer que sente muito?”
“O quê?”, Drinion diz.
“É o que se diz. É a coisa-padrão de se dizer, por etiqueta.”
“Bom, eu estava considerando esse fato à luz de você ter me perguntado
aquilo dos sentimentos sexuais e da solidão. Parece que a entrada desse fato
altera o contexto daquela conversa.”
“É pra eu perguntar como?”, Meredith Rand diz.
Drinion inclina a cabeça. “Não sei.”
“Por acaso você achou que pensar que ele estava morrendo queria dizer
que você tinha alguma chance comigo, sexualmente?”
“Não. Eu não pensei isso.”
“Bom. Que bom.”
Beth Rath vinha voltando à mesa com a boca parcialmente aberta para
quem sabe dizer alguma coisa ou tentar participar da conversa, mas
Meredith Rand lhe dá uma olhada que faz Rath dar meia-volta e retornar ao
lugar onde estava, no banquinho de couro vermelho do balcão, onde Ron
está trocando o cartucho da máquina de soda. Meredith Rand põe a bolsa na
mesa e levanta para reabastecer o copo.
“Quer outra Heineken ou alguma outra coisa?”
“Eu ainda não terminei esta aqui.”
“Você não é de beber aos montes, né?”
“Eu fico cheio rápido. Acho que a minha barriga é pequena.”
“Sorte sua.”
Rand, Rath e Sabusawa têm alguma conversinha rápida enquanto Ron
prepara o gim-tônica de Meredith Rand, coisa que Drinion não ouve,
embora possa ver reflexos vagos das pessoas que estão no balcão na janela
da frente do Meibeyer’s. Ninguém sabe que cara ele tem ou que
movimentos faz seu rosto quando está sozinho sentado à mesa, nem mesmo
o que está olhando.
“Você sabe o que é cardiomiopatia?”, Rand pergunta quando senta de
novo à mesa. Ela olha para a sua bolsa, que é quase mais uma sacola em
termos de formato. Metade do gim-tônica já se foi.
“Sim.”
“Sim o quê?”
“Acho que é uma doença cardíaca.”
Meredith Rand bate curiosa o isqueiro contra os dentes da frente. “Você
parece um bom ouvinte. Você é mesmo? Quer ouvir uma história triste?”
Depois de um momento, Drinion diz: “Eu não sei bem como responder”.
“Eu estou falando da minha história triste. De um pedaço da minha. Todo
mundo tem a sua história triste. Quer ouvir um pedaço da minha?”
“…”
“Na verdade é uma doença do músculo cardíaco. A cardiomiopatia.”
“Eu achava que o coração já era um músculo”, Shane Drinion diz.
“Em oposição à vascularização cardíaca. Vai por mim, eu sou meio
especialista nisso. O que se chama de doença cardíaca é sempre dos vasos
principais. Ataque cardíaco, assim por diante. Cardiomiopatia é do músculo
cardíaco, a coisa que forma o coração, que aperta e relaxa. Principalmente
quando é de causa desconhecida. O que é o caso. Eles não sabem direito o
que causou. A teoria é que ele pegou alguma gripe terrível ou algum vírus
quando estava na universidade, aparentemente melhorou, mas ninguém
sabia que na verdade acabou se instalando no miocárdio, no tecido
muscular do coração, que foi aos poucos ficando infeccionado e
comprometido.”
“Acho que estou entendendo.”
“Você deve estar pensando que coisa mais triste se apaixonar e casar e aí
o marido tem uma doença fatal — porque é, é fatal. Que nem aquele
menino rico daquele filme, como é que chama, só que lá é a mulher, que é
meio mala sem alça na minha modesta opinião, mas o riquinho é deserdado
e tudo, e casa com ela, e aí ela tem uma doença fatal. É uma choradeira só.”
Os olhos de Rand também se alteram levemente quando ela revisita algum
tipo de lembrança. “É meio parecido com insuficiência cardíaca. Na
verdade, em muitos casos de cardiomiopatia a causa mortis real quando a
pessoa finalmente morre aparece como insuficiência cardíaca.”
Shane Drinion está com a mão em volta do copo que tem um pouco de
cerveja, mas não ergue o copo. “Isso é porque o músculo do coração fica
comprometido e não consegue se comprimir a ponto de fazer o sangue
circular?”
“É, e ele já tinha isso antes da gente casar, tinha até já antes da gente se
conhecer, e a gente se conheceu quando eu era supernovinha, eu ainda nem
tinha feito dezoito anos. Ele tinha trinta e dois e já era responsável por uma
ala do Zeller.” Ela está pegando um cigarro. “Por acaso você sabe o que é o
Zeller?”
“Acho que você está falando da sede do centro de saúde psiquiátrica
perto dos Exposition Gardens na Northmoor.” A bunda de Drinion está
pairando muito pouco — quem sabe um ou dois milímetros no máximo —
acima do assento da cadeira de madeira.
“Na verdade fica na University, a entrada principal pelo menos.”
“…”
“É um hospital psiquiátrico. Você sabe o que é um hospital psiquiátrico?”
“No sentido geral, sim.”
“Você está só sendo educado?”
“Não.”
“O pinel. Hospício. Uma casa de orates. Quer saber por que eu estava
lá?”
“Você estava visitando alguém importante na sua vida?”
“Negativo. Eu fiquei internada ali por três semanas e meia. Quer saber
como foi que isso aconteceu?”
“Eu não sei dizer se você está me perguntando de verdade ou se essa
pergunta é meramente um prenúncio do que você vai contar.”
“Meredith Rand dá um formato sardônico e enviesado à boca e estala a
língua algumas vezes. “Tudo bem. Isso é meio irritante, mas não dá pra
dizer que você não tenha razão. Eu era de me cortar. Você sabe o que isso
quer dizer?”
Não há nenhuma diferença — o rosto de Drinion continua composto e
neutro sem parecer de modo algum que ele faça força para se manter
neutro. Meredith Rand tem uma antena subliminar muito boa para esse tipo
de coisa — tem alergia a atuações. “Eu suponho que seja a pessoa se cortar
mesmo.”
“Isso foi uma piadinha?”
“Não.”
“Eu não sabia por que eu fazia aquilo. Ainda não sei bem, só que ele me
ensinou que tentar analisar aquilo e entender todos os porquês era uma
asneira — a única coisa importante era parar com aquilo, porque se eu não
parasse aquilo ia me jogar de novo na ala psiquiátrica, que a ideia de que eu
pudesse esconder aquilo com bandagens ou com mangas e manter tudo
absolutamente escondido sem afetar mais ninguém era uma asneira
arrogante. E ele tem razão. Onde quer que você faça, e por mais que faça
com cuidado, sempre chega uma hora que alguém vê alguma coisa e diz
alguma coisa, ou que alguém está de bobeira no corredor e fingindo que
implora pra você matar a aula de álgebra e ir até o parque se chapar e
escalar a estátua de Lincoln e te agarra pelo braço com muita força e alguns
cortes abrem, você sangra e empapa a manga comprida, mesmo que esteja
com duas camisas, aí alguém chama uma enfermeira mesmo com você
mandando todo mundo ir se foder, dizendo que foi só um acidente e que
você vai só dar uma passada em casa e resolver aquilo em casa. Sempre
chega um dia em que alguém vê alguma coisa no seu rosto que diz que você
está mentindo e aí quando você se dá conta já está lá, num quarto iluminado
com as pernas e os braços à mostra, tentando se explicar pra alguém
totalmente desprovido de senso de humor, mais ou menos a mesma coisa
que conversar com você agora.” Com um sorrisinho rápido e cerrado.
Drinion bebe devagar.
“Isso foi meio sórdido. Eu preciso te pedir desculpas.”
“Eu não tenho um senso de humor muito bom, é verdade.”
“Mas é diferente. Eles fazem uma coisa que é meio que uma consulta de
entrada, com um formulário oficial numa prancheta branca, e te fazem as
perguntas que a lei diz que são obrigatórias, e se eles te perguntam se você
de vez em quando ouve vozes e você diz claro, estou ouvindo a sua agora
mesmo me fazendo uma pergunta, eles não acham engraçado nem
reconhecem que você estava tentando ser engraçada, mas só ficam ali
sentados te olhando. Como se eles fossem um computador que só consegue
processar os seus dados se você der uma resposta formatada da maneira
certa.”
“A própria pergunta já parece ambígua. Por exemplo, de que vozes eles
estão falando?”
“Então eles têm, assim, três tipos de alas diferentes no Zeller, e duas são
trancafiadas, e eles me colocam como paciente psiquiátrica bem naquela
onde ele trabalhava, no terceiro andar, onde basicamente ficam umas
meninas ricas dos bairros chiques que não conseguem comer ou que
tomaram um monte de Tylenol quando o namoradinho deu o fora nelas, et
cetera, ou meteram o dedo na garganta toda vez que comeram alguma coisa.
Muita bulímica por lá.”
Drinion continua olhando para ela. Agora parte nenhuma de sua bunda
ou de suas costas toca a cadeira, embora a separação seja tão mínima que
ninguém pode ver a não ser que de alguma maneira projetasse lateralmente
alguma luz bem forte, que iluminasse a fresta entre Drinion e a cadeira.
“Você pode agora estar se perguntando como foi que eu fui parar lá, já
que a gente definitivamente não era rico nem morava em bairro chique.”
“…”
“A resposta é um bom seguro-saúde graças ao sindicato do papai. Ele foi
o responsável pela linha de arames de enfardamento na American Twine de
1956 até a fábrica fechar. Os únicos dias em que ele faltou ao trabalho em
sua vida toda foram alguns dias que eu passei no Zeller.” Rand faz uma cara
horrorizada e exagerada que dura instantes e cujo significado exato não fica
claro, e acende o cigarro que vinha segurando e olhando. “Pra te dar uma
ideia.”
Drinion termina o que restava da Michelob e enxuga um pouco a boca
com o guardanapo onde o copo estava pousado. Ele então repõe guardanapo
e copo. Sua cerveja está em temperatura ambiente há tanto tempo que não
tem como produzir mais condensação.
“É verdade que ele já parecia doente quando a gente se conheceu. Nada
assim muito repulsivo, não é que ele vazasse ou andasse por aí tossindo
nem nada, mas pálido até pro inverno. Ele parecia frágil, que nem uma
pessoa velha. Todo esquelético também, ainda que na comparação com as
anoréxicas fosse difícil ver assim de cara o quanto ele era esquelético — era
mais como se ele fosse muito pálido e se cansasse fácil; não conseguia fazer
nada muito rápido. Com aquelas olheiras horrorosas. Às vezes ele parecia
cansado ou sonolento, se bem que, também, isso já era tarde da noite,
porque ele era responsável pela ala no período noturno, das cinco da tarde
até o meio da madrugada, quando o terceiro cara chegava, um cara que a
gente nem via de verdade a não ser na hora do café ou se alguém tivesse
uma crise no meio da noite.”
“Ele não era médico, então”, Drinion diz.
“Os médicos eram uma piada. Lá no Zeller. Os psiquiatras. Eles
apareciam de tarde e ficavam coisa de uma hora, de terninho — estavam
sempre com uns ternos bons; os caras eram profissionais —, e conversavam
mais com os enfermeiros e os parentes quando chegavam, quase só com
eles. Aí eles entravam e era hora de uma conversa esquisita, formal, mais
ou menos como se eles fossem o seu pai. Eles eram totalmente desprovidos
de senso de humor e ficavam o tempo todo olhando no relógio. Até os caras
que dava pra você ver que podiam ser pessoas de verdade estavam mais
interessados no seu caso, não em você. Assim, no que o seu caso podia
significar, no que ele diferia de outros casos na literatura que eles
conheciam. Nem queira me ouvir falar da classe médica das alas
psiquiátricas. Era bizarro lidar com aquele povo; era de ferrar com a sua
cabeça. Se você dizia que odiava estar ali e que não estava servindo pra
nada e você queria ir embora, eles viam como um sintoma do seu caso, não
como você querendo ir embora. Era como se você não fosse uma pessoa,
um ser humano, mas uma máquina que eles podiam desmontar e entender
como é que funcionava.” Ela fica abrindo e fechando a cigarreira. “Era de
dar medo, de verdade, porque eles podiam assinar uma papelada pra te
deixar ali ou te passar pra uma ala pior, a outra ala trancafiada era bem pior
e as pessoas ficavam falando dela, você nem queira saber. Ou eles podiam
decidir te dar uns remédios que faziam umas meninas ali virarem zumbi;
parecia que um dia elas estavam ali e no dia seguinte não tinha mais
ninguém em casa. Assim umas zombudas mesmo com uns roupões bonitos
que as famílias mandavam. Era medonho, pura e simplesmente.”
“…”
“Só que eles não podiam fazer aquelas coisas de filme de terror, não
podiam ficar te dando eletrochoque que nem naquele filme, porque os pais
de todo mundo estavam ali praticamente todo dia e sabiam o que estava
rolando. Se você estivesse naquela ala você não estava internada no Zeller,
você era aceita, e depois de sete dias eles tinham que te deixar sair se os
seus pais quisessem. E alguns queriam, os das zumbis. Mas legalmente eles
podiam assinar uns formulários que te passavam pra condição de internada.
Quem podia eram os médicos de terninho, então era deles que dava medo.”
“…”
“Sem contar que a comida era mais que um nojo.”
“Você estava fazendo cortes pequenos e escondidos no corpo como uma
compensação psicológica de algum tipo”, Shane Drinion diz.
Meredith Rand dá uma olhada franca para ele. Ela acaba percebendo que
ele parece estar sentado ligeiramente mais ereto ou alguma coisa assim,
porque o pedaço mais de baixo do quadro de diferentes tipos de chapéus
está encoberto, e ela sabe que ela não está reclinada. “Era bom. Era
esquisito, e eu sabia que não podia ser bom se eu escondia tanto aquilo e
tratava como uma coisa tão esquisita, mas era bom. Eu não sei o que mais
posso dizer.” Toda vez que ela bate a cinza, são três batidas de mesmas
velocidade e angulação com um dedo de unha vermelha. “Mas eu tinha
fantasias de cortar o pescoço, o rosto, o que já era esquisito, e eu estava
subindo cada vez mais pelos braços o ano inteiro e não conseguia parar, o
que começou a me dar medo. Era uma coisa boa eu estar ali; era doido —
então vai ver que no final das contas eles tinham razão.”
Drinion simplesmente a observa. Não há como saber se está vindo uma
chuva de verdade ou se a massa vai passar por eles. A luz lá fora tem a cor
aproximada de uma lanterna gasta. Aqui dentro há barulho demais para
saber se há trovões. Às vezes parece que o ar-condicionado fica mais frio ou
mais insistente quando está prestes a cair uma tempestade, mas não é o que
parece acontecer agora.
Meredith Rand diz: “Você precisa dizer umas coisinhas de vez em
quando, como se fosse uma conversa de verdade, pra mostrar que pelo
menos você está interessado. Senão a pessoa só sente que está tagarelando e
que o outro pode estar pensando em sabe Deus o quê”.
“Mas fazer cortes no rosto teria externalizado demais a situação”,
Drinion diz.
“Isso mesmo. Sem contar que eu não queria cortar o rosto. Como ele
acabou me fazendo ver, a superfície era a única coisa que eu achava que
tinha de verdade. O rosto e o corpo, o fato de eu supostamente ser gata. Eu
era uma das gatas da Central Catholic. É uma escola secundária daqui. Eles
chamavam a gente assim — as gatas. Quase todas eram líderes de torcida
também.”
Drinion diz: “Então você foi criada na Igreja católica”.
Rand sacode a cabeça enquanto bate o cigarro. “Isso não é relevante. Não
é desse tipo de reação ocasional que eu estava falando.”
“…”
“A conexão é a coisa da beleza e da solidão de que você estava falando.
Ou a gente estava, que é ruim de entender, provavelmente, já que ser
considerada bonita na escola é garantia de popularidade e de aceitação pras
meninas e de tudo que devia ser o contrário da solidão.” Ela às vezes usa
perguntas diretas como desculpas para encarar os olhos dele: “Você se
sentia solitário na escola secundária?”.
“Não muito.”
“Certo. Está certo. Fora que a beleza é uma forma de poder. As pessoas
prestam atenção em você. Pode ser bem sedutor.”
“Sim.”
Só analisando de perto agora Meredith Rand avalia a fundo a estranha
intensidade da conversa com o analista de empreitada. Normalmente muito
consciente do seu entorno e do que os outros à sua volta estavam fazendo,
Rand depois veio a perceber que grandes blocos do tête-à-tête no
Meibeyer’s pareciam desligados de qualquer contexto. Que dentro desses
blocos de intenso envolvimento ela não teve consciência da música invasiva
da jukebox ou das pancadas do seu excesso de graves no esterno, dos
insistentes gorgolejos e estalidos das máquinas de fliperama e do joguinho
de corrida, do jogo de beisebol na televisão, do troar normalmente
desconcentrador das conversas em torno, com diferentes trechos audíveis
que por vezes se destacavam e exigiam um pouco de atenção e depois
mergulhavam no desconcentrador ruído ambiente de vozes misturadas entre
si e todas levantadas para suplantar o barulho do próprio lugar. A única
forma que ela encontrou de explicar aquilo a Beth Rath foi dizer que era
como se uma espécie de contêiner isolado acusticamente tivesse se formado
em volta da mesa deles impedindo às vezes que quase mais nada
conseguisse penetrar. Por mais que não tenha sido o caso de ela ter ficado
ali sentada olhando direto para o cara das empreitadas o tempo todo; não foi
um negócio hipnótico. Ela também não teve consciência de quanto tempo
tinha passado ou estava passando, o que para Meredith Rand era uma coisa
bem incomum.1 A melhor teoria que Meredith Rand encontrou foi que o
“1100” prestava tanta atenção, e tão concentradamente, no que ela disse —
com uma intensidade que nada tinha a ver com flerte ou com algo
romântico; era um tipo de intensidade totalmente diferente — se bem que
também fosse verdade que Meredith Rand não sentiu necas de atração
romântica ou sexual por Shane Drinion naquela mesa no Meibeyer’s.
Tratava-se de outra coisa, totalmente nada a ver com isso.
“Foi ele que me disse isso. Que expôs a coisa desse jeito. À noite, depois
do jantar, depois que todos os grupos e a TO tinham acabado e que os
médicos com seus terninhos bacanas tinham ido pra casa e quando ficava só
ele e uma enfermeira no posto de medicação. Ele estava com o jaleco
branco da equipe médica e um suéter, com esses tênis de plástico e uma
argola cheiona de chaves. Dava pra ouvir ele pelo corredor sem nem olhar,
só por causa da argola de chaves. A gente dizia pra ele que parecia que a
argola de chaves era mais pesada que ele. Algumas meninas ali fizeram ele
comer o pão que o diabo amassou, porque afinal ele não podia fazer nada de
verdade com elas.”
“…”
“Não tinha nada pra fazer à noite depois do horário de visitas a não ser
ficar vendo TV na sala de convívio ou jogar pingue-pongue numa mesa com
uma rede bem baixinha pra deixar até as meninas que estavam tomando
medicação pesada achando que também conseguiam jogar, e ele só tinha
que verificar a medicação de todo mundo e dar autorização pra quem
precisava usar o telefone, e no fim do turno ele tinha que fazer uma
avaliação de cada uma, o que era totalmente pura rotina a não ser que
tivesse acontecido alguma crise psi.”
“Então você ficou observando ele atentamente, pelo que parece”, Shane
Drinion diz.
“Não que ele fosse grande coisa em termos de aparência. Tinha umas
meninas que chamavam ele de Cadáver. Elas precisavam arranjar um
apelidinho malvado pra todo mundo. Ou chamavam ele de Tristão de
Ataúde. Era tudo físico e só. Mas parecia que o corpo dele nem encostava
na parte de dentro das roupas; elas só ficavam ali boiando. Ele andava como
um cara de uns sessenta anos. Mas era engraçado, e conversava de verdade
com você. Se alguém precisasse conversar sobre alguma coisa, assim,
conversar de verdade, ele ia pra salinha de reuniões ao lado da cozinha com
a menina e conversava.” Meredith Rand tem um conjunto de hábitos para
apagar o cigarro, todos eles, sejam velozes e cortantes, sejam lentos e mais
de esfregar lateralmente, são muito meticulosos. “Ele não obrigava ninguém
a fazer aquilo. Ele não ficava te puxando pela manga pra ir lá pra um tête-à-
tête ou pra você deixar ele praticar com você. A maioria do pessoal só
ficava vegetando na frente da televisão, ou quem estava ali por causa de
drogas tinha que ir de van pra reunião das drogas. Ele normalmente
precisava pôr os pés em cima da mesa quando você ia bater um papo com
ele. A mesa da sala de reunião em que os médicos espalhavam os
prontuários pra conversar com os pais. Ele se reclinava bem pra trás, punha
o tênis em cima da mesa e dizia que era porque tinha dor nas costas, mas no
fundo era por causa da cardiomiopatia, que apareceu misteriosamente
quando ele estava na universidade e foi o motivo dele não ter terminado a
universidade, apesar de ser trocentas vezes mais inteligente e mais ligado
no que estava acontecendo de verdade com o pessoal ali do que os médicos
e os supostos ‘psicólogos’. Eles enxergavam todo mundo com uma lente
profissional que tinha coisa de um centímetro de diâmetro — o que não
coubesse na lente eles ou não viam ou torciam e espremiam bem pra caber.
E ele ali com aquele tênis vagabundo de supermercado e os pés em cima da
mesa daquele jeito, pelo menos ele acabava parecendo mais uma pessoa,
alguém que estava conversando de verdade com você e não alguém que só
queria te diagnosticar ou classificar a sua etiologia pra ter alguma coisa pra
dizer que coubesse naquela lentezinha. Era uma piada total aquele tênis.”
“Posso fazer uma pergunta?”
“Por que não fazer a pergunta de uma vez sem precisar gastar esse tempo
me fazendo dizer que sim, que você pode fazer uma pergunta?”
“Entendi o que você está dizendo.”
“E aí?”
“Elevar os pés era para ajudar na eficiência da circulação do sangue?”
“Era isso que você queria perguntar?”
“Não é desse tipo de perguntinha que você estava falando, pra dar
força?”
“Pelo amor de Deus”, Rand diz. “É, é por causa da circulação. Se bem
que na época ninguém sabia de nada. Dava pra acreditar que ele tivesse dor
nas costas. Ele não tinha cara de alguém que estivesse confortável. Só dava
pra ver era que aquele sujeito ali não estava em grande forma física.”
“Ele parecia frágil, principalmente pra alguém daquela idade.”
Às vezes agora Rand vez por outra joga a cabeça para trás e para o lado
um quase nada, bem rápido, como se estivesse recompondo a plumagem
capilar sem tocar nela, coisa que alguns tipos de meninas adolescentes
fazem direto sem necessariamente terem consciência disso. “Aliás, foi ele
que me ensinou a palavra etiologia. E explicou por que os médicos tinham
que ser tão distantes e tão formais; eram apenas ossos do ofício. Ele não
forçava ninguém, mas às vezes parecia que ele escolhia certas pessoas pra
conversar, e ele fazia de um jeito que era difícil você resistir. As noites nem
sempre eram fáceis, e ficar assistindo Maude com um bando de suicidas ou
de gente medicada até as orelhas não ia ajudar muito.”
“…”
“Você lembra de Maude?”
“Não, não lembro.”
“A minha mãe adorava essa série. Era praticamente a última coisa do
mundo que eu queria ver ali. Se o marido dela ficava puto e dizia ‘Maude,
senta’, ela sentava, que nem um cachorro, e a claque mandava uma bela
gargalhada. Isso que é feminismo. Ou As panteras, que era
totalissimamente ultrajante, se você era feminista.”
“…”
“O jeito que ele encontrou de começar a conversar comigo foi no quarto
rosa, que era o quarto de isolamento, onde eles te colocam se você está em
alerta de suicídio e a lei diz que você tem que ficar sob observação direta
vinte e quatro horas por dia, ou se você teve um chilique que fez eles
dizerem que você representava um risco ou má influência — eles podiam te
pôr ali.”
“Chamado de quarto rosa porque era a cor do quarto?”, Drinion pergunta.
Meredith Rand sorri com indiferença. “Rosa Baker-Miller, pra dizer a
verdade, porque tinha tido uns experimentos que demonstravam que ver a
cor rosa tranquilizava a agitação mental, e de uma hora pra outra tudo
quanto era pinel por aí começou a pintar o quarto de isolamento deles de
rosa. Foi ele que me disse isso também. Ele explicou a cor do quarto em
que eles me colocaram; com o chão inclinado e um ralo no meio que nem
uma coisa meio medieval. Eu nunca fiquei em alerta de suicídio, caso você
esteja pensando. Eu não faço ideia do quanto isso tudo está te deixando
surtado, assim meio ai-ai-ai minha nossa que menina mais doida, no Zeller
aos dezessete anos.”
“Eu não estava pensando isso.”
“O que fiz foi que eu disse pra um médico que nem era o meu médico,
sabe assim o médico que o seguro do meu pai estava pagando, mas que era
um outro médico que aparecia pra cobrir os casos do médico quando ele
não podia ir, eles viviam cobrindo as faltas uns dos outros desse jeito, aí em
coisa de cinco dias você falava com três médicos diferentes, e eles tinham
que espalhar o seu prontuário e as anotações ou sei lá mais o quê ali em
cima da mesa até pra lembrar quem que você era mesmo — e esse médico,
que nunca nem piscava, ficava tentando me fazer falar de abuso e de
negligência na minha infância, coisa que nunca aconteceu, e eu acabei
dizendo pra ele que ele era um porrinha de um idiota gordolento e que se
ele não queria acreditar nas coisas que eu contava, ele que enfiasse aquela
história toda naquele cu imbecil dele. E aí naquela noite eu acabei no quarto
rosa, foi ele que determinou, só de sacanagem. Não que eles tenham me
arrastado pra lá, me jogado lá dentro e batido a porta — todo mundo lidava
com aquilo tudo de um jeito bem delicado. Mas, sabe, uma das coisas
estranhas de ficar num hospital psiquiátrico é que você aos poucos começa
a sentir que tem permissão pra dizer o que te passar pela cabeça. Você
começa a sentir que tudo bem ou até que de repente eles esperam que você
faça umas coisas doidas, ou sem controle, o que de início parece meio
libertador, parece bom; tem essa sensação de que acabou a máscara de
maria-felicidade, chega de fingir, o que é gostoso, só que vai ficando meio
sedutor e perigoso, e no fundo isso pode é fazer você piorar ali dentro —
tem inibições que são boas, que são normais, ele disse, e parte da síndrome
que nem eles dizem de algumas pessoas que acabam internadas de vez é
que elas vão parar no pinel bem novinhas ou num momento de fragilidade
em que a noção de eu delas ainda não está bem fixa ou bem firme, e elas
começam a agir como acham que se espera das pessoas do pinel, e depois
de um tempo elas já são mesmo aquelas coisas, e ficam presas no sistema,
no sistema de saúde mental, e nunca mais conseguem sair.”
“E ele te disse isso. Ele te alertou para os riscos de usar insultos sem
controle com o psiquiatra.”
Os olhos dela mudaram; ela põe o queixo na mão, o que faz com que
pareça mais jovem. “Ele me disse um monte de coisas. Um monte. A gente
ficou duas horas conversando nessa noite que eu passei no quarto rosa. Hoje
em dia nós dois rimos dessa história — ele falou mais do que eu, o que em
teoria não é como devia ser. Depois de um tempo toda noite a gente estava
ali sem erro, to…”
“Você ia pro quarto de isolamento?”
“Não, eu só fiquei lá aquela noite, e o médico normal que me
acompanhava, isso eu tenho que admitir, ele encrencou a vida do substituto
com algum rolo disciplinar por ter me posto lá; ele disse que foi uma atitude
reativa.” Rand para e bate com os dedos na bochecha. “Merda, esqueci o
que eu estava dizendo.”
Drinion olha um pouquinho para o alto por um instante. “‘Toda noite a
gente estava ali sem erro’.”
“Na sala de reunião, depois das visitas e da fulana da vez que tivesse
pirado por causa de alguma coisa da hora da visita já ter sido acalmada ou
medicada. A gente sentava ali e conversava, só que ele tinha que levantar de
vez em quando pra dar uma olhada onde todo mundo estava e conferir se
ninguém estava no quarto dos outros, e fazer quem tinha que tomar remédio
ir até o balcão dos medicamentos. Toda noite nos dias de semana a gente
entrava ali e ele fazia uma coisa que sempre fazia que era encher uma lata
de Coca-Cola com água do bebedouro, ele usava uma lata de Coca em vez
de um copo, e a gente sentava ali e ele me vinha com: ‘Então, a coisa vai
ser barra-pesada hoje, Meredith, ou só um papinho relax?’, e eu agia como
uma pessoa que está consultando um cardápio e dizia: ‘Bom, hmm, hoje
acho que eu estou a fim de uma coisa mais barra-pesada, se não for
incômodo’.”
“Posso fazer uma pergunta?”
“Grr. Manda.”
“Eu posso inferir que barra-pesada se refere aos cortes e aos seus
motivos pra se cortar?”, Drinion pergunta. As mãos dele agora estão sobre a
mesa com os dedos entrelaçados, o que para a maioria das pessoas acaba
fazendo com que as costas se curvem e percam a postura, mas não com
Drinion — ele continua ereto.
“Negativo. Ele era esperto demais pra uma coisa dessa. A gente quase
não falava dos cortes. Não ia servir pra nada. Não era o tipo de coisa que
desse pra abordar direto assim. O que ele… no fundo ele mais me mostrava
um monte de coisas sobre mim mesma.”
Um dos dedos entrelaçados de Drinion se mexe um quase nada. “Não te
fazia perguntas?”
“Negativo.”
“E isso não te deixava brava? Querer se meter a falar coisas sobre você
mesma?”
“A grande diferença é o quanto ele estava certo. Praticamente tudo que
ele dizia estava certo.”
“No que ele te dizia sobre você mesma.”
“Olha, e ele fez isso já de cara, quando precisava ganhar confiança. Foi o
que ele me disse depois — ele sabia que eu não ia ficar muito tempo ali, no
Zeller, e sabia que eu precisava conversar com alguém, e ele precisava me
mostrar bem rápido que me entendia, que me conhecia, que não estava só
lidando comigo como um caso ou um problema que ele precisava resolver
em benefício da própria carreira, que era como ele sabia que eu pensava dos
médicos e dos psicólogos, e ele disse que nesse caso não fazia diferença se
eu tinha ou não tinha razão sobre eles, o negócio era que eu acreditava
nisso, era parte das minhas defesas. Ele disse que eu era uma das pessoas
com as defesas mais pesadas que ele já tinha visto passar por ali. No Zeller.
Sem contar os psicóticos de vez, quer dizer, que eram praticamente
inexpugnáveis, mas esses acabavam transferidos quase na mesma hora; ele
quase nunca batia papo com um psicótico de verdade. A coisa da psicose é
só um monte de estruturas de defesa e de crenças, tão fortes que a pessoa
não consegue sair, elas viram o mundo de verdade, e aí normalmente é tarde
demais, porque a estrutura do cérebro se alterou. A única esperança da
pessoa é a medicação e um monte de quartos rosa por perto o tempo todo.”
“Ele te entendia como pessoa, você está dizendo.”
“O que ele fez, ali mesmo no quarto rosa, comigo ali sentada no leito
hospitalar e pensando ai Jesus tem um ralo no chão, foi que ele já de cara
me disse duas coisas diferentes sobre mim mesma que eu sabia e que
ninguém mais sabia. Ninguém. Sério, isso”, Meredith Rand diz. “É uma
coisa assim que não dava pra eu acreditar. Ele foi na lata.”
“…”
“Agora você está pensando que coisas são essas”, ela diz.
Drinion faz aquela coisa bem minúscula com o ângulo da cabeça. “Você
está dizendo que queria que eu te perguntasse que coisas são essas?”
“Nem a pau.”
“Quase por definição, eu duvido que você fosse contar essas coisas a
alguém.”
“Bingo. Na mosca. Nem a pau. Não que elas seja tão interessante assim”,
ela diz. “Mas ele sim. Ele sabia, e pode apostar que isso me fez prestar
atenção. Me fez levantar a cabeça e ouvir direitinho. Como não?”
Drinion: “Eu consigo entender isso”.
“Exatamente. Que ele me conhecia, me entendia, estava interessado em
entender. As pessoas vivem dizendo isso: entende, eu estou entendendo, por
favor nos ajude a entender você”.
“Eu também já disse isso várias vezes enquanto a gente conversa”,
Drinion diz.
“Você sabe quantas vezes?”
“Oito, se bem que eu acho que só quatro foram bem desse jeito que
parece que você está mencionando, se é que estou entendendo o que você
quer dizer.”
“Você está fazendo piada?”
“Eu usar a palavra entender de novo logo agora?”
Rand faz uma cara exasperada e a dirige para um lado e depois para outro
como se houvesse mais pessoas à mesa com eles.
Drinion diz: “Não se eu seguir o sentido de entender que você quis usar,
que não se refere a entender uma afirmação ou a implicação do que alguém
disse, mas mais uma pessoa, o que me parece menos uma questão cognitiva
que uma questão de empatia ou eu até diria que compaixão seria a palavra
melhor pra esse tipo de compreensão”.
“O negócio”, ela diz, “é que ele entendia mesmo. Use a palavra que você
quiser. Ninguém sabia dessas coisas que ele me disse — uma delas acho
que nem eu mesma sabia, de verdade, até a hora em que ele disse tudo às
claras.”
“Isso te impressionou”, Drinion diz solícito.
Rand o ignora. “Ele nasceu pra ser terapeuta. Ele disse que era o dom
dele, a arte. Que nem pintar, saber dançar bem pacas ou ficar ali sentado
lendo a mesma coisa por horas e horas a fio sem se mexer e sem se distrair
é o dom de outras pessoas.”
“…”
“Você diria que você tem um dom?”, a A-POT pergunta a Shane Drinion.
“Duvido.”
“Ele não era médico, mas quando via alguém ali que ele achava que de
repente podia ajudar, ele tentava ajudar a pessoa. Senão ele ia ser mais um
segurança, ele disse.”
“…”
“Uma vez ele disse que estava mais era pra espelho. Nas conversas barra-
pesada. Se ele parecia mau ou estúpido, o que aquilo significava de verdade
era que você se via como alguém mau ou estúpido. Se uma vez ele te
pareceu inteligente e sensível, isso queria dizer que naquele dia você estava
inteligente e sensível — ele só te mostrava o que estava lá.
“Ele tinha uma aparência horrorosa, mas isso também fazia parte do que
era poderoso naquilo de ficar ali sentada com ele nas tais sessões barra-
pesada. Ele parecia tão doente e tão acabado e frágil que você nunca ficava
com a sensação de que tinha um médico metido, normal, saudável e rico ali
te apontando um dedo e ficando feliz por não ser você ou te vendo como
um caso a ser resolvido. Era de verdade que nem conversar com alguém,
com ele.”
“Qualquer um poderia ver que ele te deixou bem impressionada nesse
momento difícil, o seu futuro marido”, Shane Drinion diz.
“Você está sendo irônico?”
“Não.”
“Você está pensando, assim, olha lá uma menina de dezessete aninhos,
toda ferrada e se apaixonando por uma figura adulta tipo terapêutica que ela
acha que é a única pessoa que entende?”
Shane Drinion sacode a cabeça exatamente duas vezes. “Não é o que eu
estou pensando.” Passa pela cabeça de Rand que não é impossível que ele
esteja morrendo de tédio e que ela não teria como saber.
“Porque é patético”, Meredith Rand diz. “É meio que a história mais
velha do mundo, e por mais que você possa pensar que a coisa fosse toda
ferrada, isso eu sei que não era.” Ela está sentada bem reta agora por um
instante. “Você sabe o que é monopsônio?”
“Acho que sei.”
“É o quê então?”
Shane Drinion limpa a garganta de leve. “É o contrário de monopólio. Só
um comprador e múltiplos vendedores.”
“Certo.”
“Acho que licitações pra contratos públicos, que nem quando o Serviço
reformou as leitoras de cartão no centro de La Junta no ano passado, são um
exemplo de um monopsônio de mercado.”
“Certo. Então, ele também me ensinou essa aí, ainda que num contexto
mais pessoal.”
“Como uma metáfora”, Drinion diz.
“Você percebe o que isso pode ter a ver com solidão?”
Outro breve momento de conferência interna. “Eu consigo perceber
como isso podia levar a uma desconfiança, já que essas situações de
licitação são suscetíveis a esquemas, projeções fraudulentas de custos e
coisas assim.”
“Você é uma pessoa bem literal, sabia?”
“…”
“Mas olha a parte literal aqui, então”, Meredith Rand diz. “Digamos que
você seja bonita e que você goste de certas coisas nisso de ser bonita — as
pessoas te tratam de um jeito especial, prestam atenção em você, falam de
você, e se você entra num lugar quase dá pra sentir a atmosfera se
modificar, e você curte.”
“É uma forma de poder”, Drinion diz.
“Mas ao mesmo tempo você também tem menos poder”, Meredith Rand
diz, “porque o poder que você tem é todo integralmente ligado à beleza, e a
partir de um certo ponto você percebe que a beleza é meio que uma caixa de
onde você nunca consegue sair, ou uma prisão, que ninguém vai conseguir
te enxergar ou pensar em você sem isso da beleza.”
“…”
“E não é nem que eu me achasse tão bonita assim”, Meredith Rand diz.
“Especialmente no colegial.” Ela está rolando um cigarro de um lado para
outro entre os dedos, mas sem acender. “Mas pode apostar que eu sabia que
todo mundo me achava bonita. Desde que eu tinha doze anos as pessoas
ficavam dizendo como eu era linda e tal, e no colegial eu era uma das gatas,
e todo mundo sabia quem eram as gatas, e ficou uma coisa meio oficial,
socialmente: eu era bonita, eu era desejável, eu tinha o poder. Você está
sacando?”
“Acho que estou”, Shane Drinion diz.
“Porque é isso que significava barra-pesada ali — eu e ele conversando
de verdade sobre isso, sobre beleza. Foi a primeira vez na vida que eu
conversei de verdade sobre isso com alguém. Principalmente com um cara.
Quer dizer, sem contar ‘Você é tão linda, eu te amo’ e tentar meter a língua
na sua orelha. Como se você só precisasse ouvir isso, que era linda, e aí
tivesse que cair de quatro e deixar eles te traçarem.”
“…”
“Se você é bonita”, Meredith Rand diz, “pode ficar difícil respeitar os
caras.”
“Eu consigo entender isso”, Drinion diz.
“Porque você nunca chega a ver como eles podem ser de verdade. Porque
assim que você aparece eles mudam; se eles decidem que você é linda, eles
mudam. É que nem aquela coisa da física — se você tiver que olhar o
experimento aí de repente vai ferrar com os resultados.”
“Tem um paradoxo nisso”, Drinion diz.
“E por um tempo você até que curte. Você curte a atenção. Mesmo que
eles mudem, você sabe que é você que provoca a mudança. Você é atraente,
eles se sentem atraídos por você.”
“Daí as línguas na orelha.”
“Se bem que com vários deles acaba tendo o efeito contrário. Eles quase
te evitam. Ficam com medo ou ficam nervosos — eles ficam querendo
alguma coisa e ficam com vergonha ou com medo de querer aquilo — eles
não conseguem conversar com você e nem olhar pra você, e ainda tem os
que começam a dar showzinho que nem o Bob Segunda Junta, essa coisa
sexista de conquista, quando eles acham que estão fazendo aquilo pra te
impressionar, mas no fundo é pra impressionar os outros carinhas, pra
mostrar que eles não têm medo. E você não fez e não disse nada pra
começar aquilo; você só tem que estar ali, e tudo muda. Abracadabra.”
“Parece pesado”, Drinion diz.
Meredith Rand acende o cigarro que estava segurando. “Fora que as
outras meninas te odeiam; elas nem te conhecem nem falam com você e já
concluem que te odeiam só por causa do jeito que todos os meninos reagem
— como se você fosse uma ameaça ou como se elas já saíssem pensando
que você é uma vaca metida sem nem tentar te conhecer.” Ela tem um estilo
marcado de afastar a cabeça para expelir a fumaça e então trazê-la de volta.
Quase todo mundo acha que ela é muito direta.
“Eu não era uma anta”, ela diz. “Eu era boa com números. Ganhei o
prêmio de álgebra na álgebra do décimo ano. Mas claro que ninguém ligava
se eu era inteligente ou boa em matemática. Até os professores ficavam de
olhão estalado e nervosos ou tarados e metidos a sensuais quando depois da
aula ou alguma coisa assim eu ia perguntar alguma coisa. Como se já que
eu era gata nem a pau que alguém ia se dar ao trabalho de ver alguma coisa
que não fosse isso.
“Olha”, Meredith Rand diz. “Não me leve a mal. Não é que eu me ache
assim tão bonita. Eu não estou dizendo que eu seja linda. Na verdade eu
nunca me achei assim tão linda. As minhas sobrancelhas são pesadas
demais, pra começo de conversa. Eu é que não vou me dar ao trabalho de
fazer a sobrancelha, mas elas são pesadas demais. E o meu pescoço, sabe, é
meio que o dobro do tamanho do pescoço de uma pessoa normal, quando eu
me olho no espelho.”
“…”
“Não que faça alguma diferença.”
“Não.”
“Não o quê?”
“Não, eu entendo que não faz diferença”, Drinion diz.
“Mas faz. Você não está sacando. A coisa da beleza — pelo menos
quando você é nova daquele jeito, é meio que uma armadilha. Tem uma
parte ambiciosa de você que gosta pacas da atenção. Você é especial, você é
desejável. É fácil começar a pensar que a beleza é você, como se fosse a
única coisa que você tem, como se fosse o que te faz ser especial. Com a
sua calça jeans de marca e as blusinhas de malha que você pode colocar na
secadora pra ficarem mais justas ainda. Andando por aí daquele jeito.”
Ainda que não se possa dizer que o que Meredith Rand usa no Posto seja
para se apagar ou se passar por descuidada. São conjuntinhos profissionais,
totalmente dentro dos regulamentos, mas muitos analistas do Posto ainda
mordem os dedos quando ela passa, sobretudo nos meses de inverno,
quando o ar extremamente seco faz as coisas grudarem por causa da
eletricidade estática.
Ela diz: “Sendo que o reverso da medalha é que você também começa a
entender que no fundo você é só um pedaço de carne. É isso que você é.
Carne desejável, é verdade, mas que você nunca vai ser levada a sério e
nunca, assim, nunca vai ser presidente de um banco ou alguma coisa do tipo
porque ninguém vai conseguir enxergar além da beleza, a beleza é o que
afeta as pessoas e faz elas sentirem o que sentem, e é só isso que importa
pra elas, e é difícil não cair nessa, não começar, sabe, a se acomodar e a se
ver do mesmo jeito”.
“Você quer dizer ver os outros e reagir aos outros conforme eles sejam ou
não sejam bonitos?”
“Não, não.” Dá para ver que Meredith Rand sofreria para largar o
cigarro, já que ela usa o jeito de tragar, soltar a fumaça e mexer a cabeça
para transmitir muita informação não verbal. “Eu estou falando de começar
a se ver como um pedaço de carne, ver que a única coisa em você é a
aparência e como ela afeta os carinhas, os caras. Você começa a cair nessa
sem nem perceber. E é de dar medo, porque ao mesmo tempo também
parece uma caixa; você sabe que por dentro de você tem muito mais porque
você consegue sentir, mas ninguém vai saber — nem as outras meninas, que
ou te odeiam ou têm medo de você, porque você é um monopsônio, ou
ainda se elas também são as gatas ou as líderes de torcida aí elas são as suas
rivais e acham que têm que entrar nessa de competição e de mesquinharia
que os caras nem imaginam, mas vai por mim, pode ser cruel pacas.”
O fato de uma narina de Drinion ser ligeiramente maior que a outra às
vezes faz parecer que ele está com a cabeça um pouco de lado, mesmo
quando não está. É de alguma forma um paralelo daquilo de ele respirar
pela boca. Meredith Rand normalmente interpreta inexpressividade como
desatenção, que nem quando o rosto de uma pessoa fica vazio quando você
está falando e ela finge que está ouvindo, mas na verdade não está ouvindo,
porém não é assim que lhe parece a inexpressividade de Drinion. Além
disso, ou é imaginação dela ou Drinion está cada vez mais reto e mais alto
na cadeira, porque ele parece estar ligeiramente mais alto do que quando o
tête-à-tête começou. Uma coleção de diferentes espécies de fedoras e
homburgs antiquados e diversos chapéus sociais colados ou presos de
alguma maneira a uma prancha envernizada de jacarandá que estava visível
na parede atrás deles do outro lado do Meibeyer’s acima da cabeça de
Drinion agora está parcialmente obscurecida pelo topo de sua cabeça e pelo
pequeno redemoinho que se ergue no redondo ápice de sua cabeça. Drinion
na verdade levita de leve, que é o que acontece quando ele está
completamente imerso; é bem de leve, e ninguém consegue ver que sua
bunda flutua levemente acima do assento da cadeira. Numa noite alguém
entra no escritório e vê Drinion flutuando de cabeça para baixo acima da
mesa com os olhos grudados numa declaração complexa, com o próprio
Drinion por definição inconsciente disso da levitação, já que é apenas
quando sua atenção está toda em outra coisa que ela acontece, a levitação.
“O que faz parte dessa sensação da caixa.” Meredith Rand está
prosseguindo. “Tem esta sensação, que nos adolescentes é superpesada com
ou sem isso, de você sentir que ninguém vai conseguir te entender ou te
conhecer pelo que você é porque eles não conseguem te ver de verdade e
por algum motivo você não vai deixar te verem apesar de você querer que
eles consigam. Mas ao mesmo tempo também é uma sensação que você
sabe que é mala e imatura e parecida com um problema medíocre de filme,
‘Ui ui ui, ninguém ama o meu verdadeiro eu’, então você também tem
consciência de que a sua solidão é burra e banal já quando está sentindo, a
solidão, então você nem consegue sentir empatia por você mesma. Era disso
que a gente falava, foi disso que ele me falou, que ele sabia sem eu contar:
o quanto eu era solitária e o quanto os cortes tinham alguma coisa a ver com
a beleza e com a sensação de que eu não tinha o direito de reclamar, mas
ainda assim estava bem infeliz ao mesmo tempo achando que não ser bonita
ia ser mais ou menos o fim do mundo, eu ia ser só um pedaço de carne que
ninguém queria em vez de um pedaço de carne que por acaso eles queriam.
Como se eu estivesse presa naquilo, e que no fundo eu ainda nem tinha o
direito de reclamar daquilo tudo porque olha lá aquelas meninas todas
cheias de inveja e achando que ninguém que é bonito pode sentir solidão
nem ter problemas, e mesmo que eu chegasse a reclamar, aí essa
reclamação toda ia ser lugar-comum, foi ele que me ensinou lugar-comum e
tête-à-tête, e como isso pode virar uma parte de toda essa coisa da solidão
— a verdade de dizer ‘Eu sou só carne, as pessoas só querem saber que eu
sou bonita, ninguém dá bola pra o que eu sou por dentro, eu estou sozinha’
é totalmente mala e lugar-comum, igual o que tem em revista de menininha,
nada bonito, nada único nem especial. E foi a primeira vez que eu pensei
que as cicatrizes e os cortes eram um jeito de eu deixar a verdade interior e
feia vir à tona, vir pra fora, mesmo que eu estivesse escondendo por baixo
das mangas compridas — se bem que o sangue seja até bonito se você olhar
direitinho, assim bem na hora que ele sai, se bem que tem que cortar com
cuidado e o corte ser bem fininho e não muito fundo pro sangue só aparecer
assim numa linha em vez de ir empoçando, pra demorar trinta segundos ou
mais pra você ter que limpar porque está começando a escorrer.”
“Dói?”, Shane Drinion pergunta.
Meredith Rand solta um jato de fumaça e olha direto para ele. “Como
assim dói? Eu não faço mais isso. Nunca mais fiz desde que a gente se
conheceu. Porque ele me disse basicamente isso tudo e me disse a verdade,
que no fundo não fazia diferença o motivo de eu fazer aquilo ou, assim, o
que aquilo representava ou o que gerou aquilo.” O olhar dela é bem direto e
franco. “A única coisa que tinha importância é que eu estava fazendo e ia
parar de fazer. Só isso. Ao contrário dos médicos e dos grupinhos que só
queriam saber dos seus sentimentos e motivos, como se sabendo por que
você fazia aquilo você fosse conseguir parar num toque de mágica. O que
ele disse que era a grande mentira que eles todos engoliam e que fazia os
médicos e a terapia normal ser uma puta perda de tempo pra gente como a
gente — eles achavam que diagnóstico era o mesmo que cura. Que se você
soubesse por quê, tudo ia parar. O que é uma grande bobagem”, Meredith
Rand diz. “Você só para se parar. Não se ficar esperando alguém explicar de
algum jeito mágico que aí abracadabra vai te fazer parar.” Ela faz um
floreio sardônico com o cigarro quando diz abracadabra.
Drinion: “Parece que ele te ajudou bastante”.
“Ele foi bem direto”, ela diz. “No final das contas ser direto é uma coisa
de que ele se orgulha — é parte do papel dele não representar um papel. Só
que eu descobri isso depois.”
“…”
“É claro que você percebe o quanto ter alguém com esse tipo de
compaixão e de compreensão do que está acontecendo de verdade dentro de
você, o quanto isso ia afetar alguém que achava que o seu maior problema
era a impossibilidade de os outros enxergarem além da beleza e verem o
que estava por dentro. Você quer saber o nome dele?”
Drinion pisca uma vez. Ele não pisca muito. “Sim.”
“Edward. ‘Ed Rand, semibacharel em medicina’, como ele dizia. Então
dá pra você ver por que eu estava caindo de madura pra me apaixonar por
ele.”
“Acho que sim.”
“Então eu não preciso explicar tim-tim por tim-tim”, Meredith Rand diz.
“De certa forma, se ele fosse tarado ou algum monstro que funcionasse
desse jeito, ia ser o método perfeito pra fazer menininhas bonitas se
apaixonarem por ele. Trabalhar num lugar em que todo mundo chega
detonado, solitário e numa crise, e encontrar as menininhas, cujo problema
básico provavelmente vai ser sempre com a aparência. Então só precisava,
se ele fosse esperto, e ele já tinha visto centenas de meninas ferradas
passarem por ali, que se matavam de fome ou roubavam roupas no
shopping, ou comiam e não conseguiam parar de comer, ou se cortavam, ou
entravam nas drogas, ou ficavam fugindo com uns negros mais velhos e
sendo arrastadas de volta pra casa pelos pais, enfim, dá pra entender, mas
que no fundo tinham todinhas o mesmo problema essencial, cada vez que
uma delas aparecia ali, fosse qual fosse o motivo oficial da internação, que
era não sentir que estavam sendo compreendidas ou enxergadas e que essa
era a causa da sua solidão, da dor constante com que elas viviam e que fazia
elas se cortarem ou comerem, ou não comerem, ou chuparem o pau do time
de basquete inteiro enfileirado lá atrás da lixeira da cantina, que foi o que eu
sei com certeza que uma líder de torcida fez o tempo todo no terceiro ano,
se bem que ela nunca chegou a ser uma gata de verdade porque todo mundo
sabia que ela era superpiranha; a maioria das gatas simplesmente detestava
a menina.” Rand olha rápida e diretamente para Drinion para ver se há
alguma reação à expressão “chupar o pau”, coisa que ele aparentemente não
lhe propicia. “E ia ser fácil levar as meninas pra sala de reunião e dizer
umas coisas sobre elas que iam deixar as meninas totalmente chocadas e
espantadas porque elas nunca tinham contado pra ninguém e mesmo assim
era molinho sacar e saber, porque no fundo era tudo a mesma coisa.”
Drinion pergunta: “Você disse isso pra ele durante as sessões de terapia
que eram classificadas como barra-pesada?”.
Rand sacode a cabeça enquanto apaga o cigarro Benson & Hedges. “Não
eram sessões de terapia. Ele odiava o termo, essa terminologia toda. Eram
só tête-à-têtes, só conversa.” De novo ela usa o mesmo número de
estocadas e de esfregadelas parciais para apagar o cigarro, ainda que com
menos força do que quando pareceu impaciente ou zangada com Shane
Drinion. Ela diz: “Ele disse que era só disso que eu aparentemente
precisava, só conversar com alguém que não viesse com bobagens, que era
o que os médicos do Zeller Center não percebiam, ou sei lá se não
conseguiam entender porque aí a estrutura toda da coisa ia desmoronar, que
ali os médicos tinham gasto trocentos milhões de anos no curso de medicina
e na residência, e as empresas de seguro de saúde estavam pagando um
dinheirão pelos diagnósticos, pela TO e pelos protocolos de terapia, era tudo
uma estrutura institucional, e quando as coisas ficam institucionalizadas, aí
tudo vira esse, assim, esse organismo artificial que começava a tentar
sobreviver e cuidar dos seus próprios interesses igualzinho uma pessoa, só
que não era uma pessoa, era o contrário de uma pessoa, porque ali não tinha
nada por dentro fora a vontade de sobreviver e de crescer enquanto
instituição — ele disse dá só uma olhada no cristianismo e na Igreja cristã
inteira”.
“Mas a minha pergunta foi se você falou com ele daquela sua possível
suspeita, da possibilidade de que ele na verdade não te entendesse nem se
importasse com você, mas fosse um monstro.”
Às vezes durante a conversa Meredith Rand olha criticamente para as
unhas, que têm formato de amêndoas, não são nem compridas nem curtas
demais, e estão pintadas de um vermelho lustroso. Shane Drinion olha para
as mãos dela apenas quando Rand olha, via de regra.
“Eu não precisei”, Rand diz. “Ele puxou o assunto. O Edward. Ele disse
que tendo em vista o meu problema era só uma questão de tempo antes de
me ocorrer que de repente ele não me entendia nem se importava comigo,
mas só me entendia como um mecânico entende uma máquina — isso foi
num momento da segunda semana ali no pinel quando eu estava sonhando
sem parar com tudo quanto é tipo de maquinário, com engrenagens e
mostradores, que os médicos e os supostos terapeutas queriam que eu
mencionasse pra eles poderem discutir os simbolismos e tal, coisa que tanto
pra mim quanto pra ele foi motivo de riso porque era tão óbvio que até um
idiota podia enxergar, coisa que ele não disse que era culpa dos médicos ou
que eles eram estúpidos, era só o funcionamento da máquina de uma
instituição de terapia de pacientes internados, e que os médicos tinham
tanto poder de decisão no que se referia à importância que eles davam aos
sonhos quanto um mecanismozinho da máquina tem quanto a fazer a tarefa
ou o movimento insignificante que foi posto ali pra ele fazer sem parar
como parte da operação geral da máquina maior.” A reputação de Rand no
CRA é de que ela é sexy mas maluca e chata demais, simplesmente incapaz
de calar a boca depois que você dá uma brecha; eles discutem se no final
das contas têm inveja ou pena do marido dela. “Mas ele mencionou o
assunto antes de eu até ter chance de começar a pensar isso.” Ela abre o
estojinho de vinil branco, mas não retira um cigarro dali. “O que eu tenho
que admitir que foi meio uma surpresa, porque a essa altura eu estava com
dezoito anos e já tinha tido tanta experiência ruim com tarados,
monstrengos e playboyzinhos e os ‘eu te amo’ dos universitários já no
primeiro encontro que era bem desconfiada e cínica no que se referia às
duplas intenções dos caras, e normalmente no mesmo minuto em que esse
funcionariozinho doente começasse a prestar atenção em mim eu ia erguer
bem alto os meus escudos de defesa e começar a considerar tudo quanto era
tipo de possibilidade medonha, deprimente.”
A testa de Drinion se franze por um breve momento. “Você tinha dezoito
ou dezessete anos?”
“Ah”, Meredith Rand diz. “Está bem.” Na medida em que vai se
comportando como alguém mais jovem, ela começa a rir de vez em quando
de maneira acelerada e monótona, como num reflexo. “Eu tinha acabado de
fazer dezoito. O meu aniversário caiu no meu terceiro dia no Zeller. O meu
pai e a minha mãe apareceram e trouxeram um bolo e umas línguas de
sogra no horário de visita e tentaram fazer uma comemoração, assim meio
eba!, que foi tão constrangedora e deprimente que eu não sabia o que fazer,
sabe, uma semana atrás vocês estão pirando por causa de uns cortinhos e
me metem no hospício e agora querem fingir que é feliz aniversário, vamos
ignorar a moça gritando no quarto rosa enquanto eu sopro as velas e você
ajeita o elástico do chapeuzinho embaixo do queixo, e eu simplesmente
entrei na deles porque não sabia o que dizer sobre o quanto era esquisitaço
eles ficarem naquela de feliz aniversário, Meredith, eba.” Ela está
massageando a carne de um braço com a mão do outro enquanto relata isso.
Às vezes, enquanto Drinion fica sentado com as mãos entrelaçadas sobre a
mesa à sua frente, ele troca o polegar que está por cima. Seu ex-copo de
cerveja resta vazio, fora um semicírculo de uma matéria espumosa junto às
beiradas, no fundo. Meredith Rand agora tem três canudinhos estreitos
diferentes que pode escolher para mastigar; um deles já está bem
mastigadinho e achatado numa ponta. Ela diz:
“Então ele mencionou. Disse que provavelmente aquilo logo ia me
ocorrer em algum nível, então se eu queria a coisa barra-pesada mesmo era
bom a gente falar sobre aquilo. Ele sempre soltava umas bombas dessas, e
aí enquanto eu ficava ali sentada meio”: — ela forma uma expressão
exagerada de alguém surpreso — “ele gemia um pouco, tirava os pés da
mesa e saía com a prancheta pra fazer a ronda — ele oficialmente tinha que
avaliar todo mundo de quinze em quinze minutos e anotar onde eles
estavam e garantir que ninguém estava se forçando a vomitar ou amarrando
fronhas umas nas outras pra se enforcar — e ele saía e me deixava ali na
sala de reunião sem nada pra olhar e nada pra fazer, esperando ele voltar, o
que normalmente demorava pacas porque ele nunca estava muito bem, e se
não tivesse um supervisor de enfermagem ou outra pessoa ali pra ficar de
olho ele andava bem devagar e ia se apoiando na parede de quando em
quando pra recuperar o fôlego. Ele era branco que nem um fantasma. Sem
contar que tomava um monte de diurético e aí ficava fazendo xixi o tempo
todo. Só que quando eu perguntava sobre isso ele dizia que era problema
dele e que a gente não estava lá pra falar dele, que ele não importava porque
era só uma espécie de espelho pra mim.”
“Então você não sabia que ele tinha cardiomiopatia.”
“Ele só dizia que a saúde dele era um caos, mas que a vantagem de ser
fisicamente um caos era que a aparência dele era exatamente a do caos que
ele era, não tinha como esconder nem fingir que ele estava menos um caos
do que estava. O que era bem diferente de pessoas como eu; ele disse que o
único jeito que a maioria das pessoas tem de mostrar o caos era desmoronar
e ser mandadas pra um lugar que nem aquele lá, que nem o Zeller, onde
ficava inegavelmente óbvio pra você, pra sua família e pra todo mundo que
você estava um caos, então tinha pelo menos um grau de alívio em ser
jogado num hospício, mas ele disse que com as realidades de lá, ou seja, os
seguros, a grana e o funcionamento de instituições como o Zeller, com
aquelas realidades era quase certeza que eu não ia ficar ali tanto tempo
assim, e o que é que eu ia fazer quando saísse de novo pro mundo real que
ainda estava cheio de navalhas, de estiletes e de camisas de força comprida.
Camisas de manga comprida.”
“Posso fazer uma pergunta?”
“Claro.”
“Você reagiu? Quando ele mencionou a ideia de que ele estar te ajudando
e aquelas conversas barra-pesada com você estavam ligadas ao quanto você
era atraente?”
Rand abre e fecha a cigarreira. “Eu disse alguma coisa meio assim: então
você está dizendo que ia ficar aqui comigo todo cheio de preocupação e de
interesse e tal se eu fosse gorda e cheia de espinha e, assim, com uma
queixola imensa? Ele disse que não podia dizer nem que sim nem que não,
que tinha trabalhado com todo tipo de gente que chegava ali e algumas
eram umas meninas feiosas e outras eram bonitas, ele disse que tinha mais a
ver com o grau de defesa das pessoas. Se elas fossem defensivas demais em
termos dos problemas reais que tinham — ou se fossem psicóticas mesmo e
quando olhassem pra ele vissem alguma estátua pavorosa com quatro rostos
ou alguma coisa assim —, aí ele não fazia nada. Era só se ele sentisse meio
que uma vibe na pessoa que fizesse ele sentir que de repente podia entender
aquela ali e de repente oferecer uma conversa interpessoal de verdade e
ajudar em vez de simplesmente ficar naquela coisa inevitável da relação
médico-paciente.”
“Você aceitou isso como resposta pra sua pergunta?”, Drinion diz, sem
nenhum tipo de expressão incrédula ou de censura que Meredith Rand
pudesse ver.
“Não, eu disse alguma coisa sarcástica tipo blá-blá-blá, sei lá, mas ele
disse que aquilo não era a resposta de verdade dele, ele queria responder a
pergunta porque sabia como era importante, ele entendia superbem a
angústia e a suspeita sobre se ele ia me dar bola ou prestar atenção se eu
não fosse bonita, porque ele disse que na verdade era esse o meu grande
problema de base, o que não ia me largar quando eu saísse do Zeller, e que
eu tinha que descobrir como lidar com aquilo senão ia acabar voltando lá ou
coisa pior. Aí ele disse que estava quase na hora de apagarem as luzes e que
a gente tinha que parar, e eu ali meio você está me dizendo que tenho um
grande problema de base que preciso entender como lidar senão coisa e tal,
e aí deu, hora de fazer naninha? Eu fiquei muito puta. E aí nas duas ou três
noites seguintes ele nem apareceu, e eu pirando legal, e só tinha outro cara
ali dos fins de semana, e a equipe do diurno não te dizia nada, eles só
conseguem ver que você está agitada e aí relatam que você está agitada,
mas na real ninguém dá bola pro motivo da sua agitação, ninguém quer nem
saber qual é a pergunta que você quer fazer, se você é interna você não é um
ser humano e eles não precisam te dizer nada.” Rand faz seu rosto adotar
uma expressão de distanciamento frustrado. “No final das contas ele estava
no hospital — no hospital de verdade; quando a inflamação piora, aí o
coração não bombeia o sangue até o fim, é mais ou menos o que eles
chamam de insuficiência cardíaca; eles têm que te colocar no oxigênio e
nuns anti-inflamatórios pesados.”
“Aí você ficou preocupada”, Drinion diz.
“Na época eu nem sabia disso, só sabia que ele não estava por lá, e aí
veio o fim de semana, então levou um tempão pra ele voltar, e no começo
quando ele apareceu eu estava tão totalmente emputecida que nem queria
falar com ele no corredor.”
“Ele tinha te deixado na mão.”
“Bom”, Rand diz, “eu levei pro lado pessoal ele ter se envolvido daquele
jeito e dito aquelas coisas terapêuticas pesadas e aí desaparecido, como se
aquilo fosse um joguinho sádico dele, e quando ele voltou na semana
seguinte e me chamou na salinha de TV, fingi que estava concentrada no
programa e fiz que ele nem estava ali.”
“Você não sabia que ele tinha ficado internado”, Drinion diz.
“Depois que eu descobri o quanto ele estava doente, me senti bem mal
por causa daquilo; parecia que eu tinha agido como uma criancinha mimada
ou uma garota que levou um fora no dia do baile de formatura. Mas também
percebi que me importava com ele, quase parecia que eu meio que
precisava dele, e fora o meu pai e uns amigos de quando eu era pequena, eu
não conseguia nem lembrar quanto tempo fazia que eu não sentia que me
importava de verdade com alguém e precisava de alguém. Por causa da
coisa da beleza.”
Meredith Rand diz: “Você já percebeu alguma vez o quanto se importava
com alguém porque a pessoa não estava por perto e aí você ficava Ai, Jesus,
a pessoa não está por perto, e agora o que é que eu faço?”.
“Não, na verdade não.”
“Bom, enfim, mas aquilo me impressionou. O que acabou saindo quando
eu finalmente disse ah tá tudo bem que seja e comecei a conversar com ele
na sala de reunião de novo é que de repente eu tinha achado que tinha
deixado ele emputecido e que acabei afastando ele quando perguntei se ele
ia fazer o tête-à-tête barra-pesada comigo se eu fosse gorda e vesga. Como
se isso tivesse deixado ele puto, ou se ele finalmente tivesse chegado à
conclusão de que eu era tão cínica e tão desconfiada de que os homens só
estavam interessados em mim por causa da coisa da beleza que ele
finalmente tivesse entendido que não ia conseguir me passar a perna e me
fazer acreditar que estava incomodado de verdade pra conseguir me traçar
ou até só alimentar o seu ego com a ideia da moça supostamente linda que
ficou caidinha por ele e se importava com ele e escrevia o nome dele sem
parar com uma letra redonda grandona no diário ou sei lá qual que seria a
viagem dele. Acho que esse monte de coisas feias acabou saindo porque eu
estava furiosa por ele ter desaparecido daquele jeito, achei, e simplesmente
me deixado na mão e largada ali. Mas ele era bem bom naquilo; ele disse
que conseguia entender que eu estivesse me sentindo daquele jeito,
considerando qual na verdade era o meu problema, que aí por um tempinho
depois disso acho que ele me deixou pensar que ele não tinha ido trabalhar
naqueles dias só pra eu poder começar a enxergar o problema sozinha, a
sacar o que era e começar a ver de verdade o que aquilo representava.”
“E você exigiu algum tipo de explicação?”, Drinion pergunta.
“Montes de vezes. O esquisito é que agora, tanto tempo depois, não
consigo lembrar direito se ele acabou cuspindo tudo de uma vez ou se me
fez entender sozinha”, Meredith Rand diz, agora olhando um nadinha para
cima de modo a encontrar o olhar de Drinion, o que se ela parasse para
pensar era bem estranho, dadas as respectivas estaturas e posições deles à
mesa, “o tal problema de base.” A testa de Drinion se franze de leve
enquanto ele olha para ela. Ela gira os dedos de uma mão como quem
encaminha ou resume uma discussão: “O Espécime, considerado muito
bonito, quer ser amado por mais que sua beleza e sente raiva por não ser
amado nem estimado por motivos que não tenham a ver com sua beleza.
Mas na verdade tudo no Espécime é filtrado por sua beleza para si próprio
— ele sente tanta raiva e tanta desconfiança que não conseguiria aceitar um
amor real, verdadeiro, sem segundas intenções nem que ele lhe fosse
oferecido, porque bem no fundo ele, o próprio Espécime, não consegue
acreditar em nada que não seja beleza ou sex appeal como motivos para o
amor de alguém. A não ser pelos seus pais”, ela insere, “que são simpáticos
mas não as pessoas mais inteligentes do mundo, e enfim, são os pais do
Espécime — a gente está falando aqui das pessoas em geral”. Ela faz um
gesto de resumo da história que pode ser ou não irônico. “O Espécime é na
verdade seu próprio problema fundamental, e só ele pode resolver esse
problema, e só se parar de querer se sentir sozinho, sentir pena de si próprio
e ficar de ‘Coitadinha de mim, tão sozinha, ninguém entende o tamanho do
meu sofrimento, ui ui ui’.”
“Pra ser sincero eu estava querendo saber de outra explicação.” Nesse
momento Drinion já parece consideravelmente mais alto do que parecia
quando o tête-à-tête começou. As fileiras de chapéus na parede atrás dele
estão quase completamente obnubiladas. Também é estranho ter alguém te
encarando direto nos olhos por tanto tempo assim sem se sentir desafiada,
ou nervosa, ou nem mesmo empolgada. Mais tarde vai ocorrer a Rand,
quando estiver sendo levada para casa, que durante o tête-à-tête com
Drinion ela se sentiu sexualmente excitada de uma forma que tinha pouco a
ver com empolgação ou nervosismo, que sentiu a superfície da cadeira
contra a bunda e as costas e a parte de trás das pernas, e o tecido da saia, e a
lateral dos sapatos contra a lateral dos pés dentro da meia-calça cuja trama
microtexturizada também conseguia sentir, e a sensação da língua contra o
fundo dos dentes e o palato, o ar da saída de ventilação contra a testa e o
outro ar, do ambiente, contra o rosto e os braços, e o gosto do resíduo da
fumaça do cigarro. Em um ou dois momentos ela até chegou a sentir que
sentia o formato preciso dos globos oculares contra a parte interna das
pálpebras quando piscava — ela piscava com consciência. O único tipo de
experiência que associou com isso foi com a gata que eles tiveram quando
ela era menina antes da gata ser atropelada, o jeito que ela sentava com a
gata no colo e fazia carinho nela, sentia as ondas do ronronar da gata e cada
pedacinho da textura da pelagem quente dela, de seus músculos e ossos por
baixo da pele, e podia ficar longos períodos sentada afagando a gata e
sentindo o corpo do animal com os olhos semicerrados como se estivesse
em transe ou num estupor, mas que na verdade parecia ser o contrário de
um estupor — ela se sentia totalmente consciente e viva, e ao mesmo tempo
quando ficava sentada afagando devagar a gata com o mesmo movimento
sem parar era como se ela esquecesse seu nome e seu endereço e quase todo
o resto da sua vida por dez ou vinte minutos, apesar de não ser nada
parecido com um transe, ela adorava aquela gata. Sentia saudade da
sensação do peso da gatinha, não tinha coisa igual neste mundo, não era
muito nem pouco, e de vez em quando por quase dois ou três dias depois
ela se sentia como estava se sentindo agora, como a gata.
“Você está falando da coisa de ele querer me traçar?”
Drinion: “Acho que sim”.
Meredith Rand: “Ele disse que estava basicamente morto, ele usou as
palavras morto e semimorto, então a questão é que ele não podia estar atrás
de mim desse jeito, ele disse. Ele não teria a energia física pra tentar me
levar pra cama nem que quisesse”.
Shane Drinion: “Ele te falou da doença aí”.
Meredith Rand: “Não muito; ele disse que não era problema meu a não
ser que afetasse a minha questão. E eu disse que estava começando a
suspeitar que ele estava dando esse monte de dicas sobre o ‘meu problema,
o meu problema’ e não desembuchava de uma vez o que aquilo
supostamente seria pra meio que me atiçar por alguma razão, e que eu não
ia fingir que sabia exatamente que razão era essa ou o que ele queria, mas
era difícil não pensar que em algum nível era uma coisa monstruosa ou
tarada, coisa que eu simplesmente disse de uma vez pra ele. Àquela altura
eu já tinha deixado de ser educada”.
“Eu estou meio confuso aqui”, Drinion diz. “Isso tudo foi antes dele
simplesmente declarar qual achava que era o seu principal problema?”
Meredith Rand sacode a cabeça, ainda que agora fique duplamente difícil
determinar em resposta a quê. Uma das reclamações dos analistas é que ela
dispara nessas histórias compridas, mas em algum momento perde o fio da
meada e é quase impossível não apagar ou se desligar quando você não
entende mais de que diabo ela está falando. Vários analistas solteiros
lotados ali haviam concluído que ela é simplesmente doida, ótima de se
olhar de longe, mas sem dúvida uma figura do tipo mantenha distância,
especialmente nos intervalos, quando qualquer momento de diversão é
precioso, e ela pode ser pior que o próprio trabalho. Ela está dizendo:
“Àquela altura eu estava ou tomando cantada ou tomando secada de tudo
quanto era homem do Zeller, do zelador diurno aos caras do segundo andar
quando a gente descia pra TO, que era um puta pé no saco geral. Se bem que
ele não deixou de comentar que se aquilo me irritava tanto, por que é que eu
passava rímel apesar de estar num hospital psiquiátrico. O que você tem que
admitir que era uma coisa válida pra se comentar”.
“Sim.”
Ela está esfregando um olho com a base da mão, para demonstrar ou
fadiga ou uma tentativa de não se perder com a história, embora Drinion
não dê sinais de estar entediado ou impaciente. “Fora que ainda mais ou
menos àquela altura ele disse que os médicos do Zeller tinham começado a
dizer que a minha suposta ligação com esse funcionário — eles também
viam as secadas e as farejadas gerais de todo mundo por ali — que esse
monte de tête-à-têtes barra-pesada estava começando a parecer dependente
ou nocivo, e sem dizer nada pra mim sobre isso, mas fazendo tudo quanto
era pergunta pra ele e basicamente começando a dificultar a vida dele ali,
então a gente começou a ter que esperar todo mundo mergulhar na sala da
televisão e aí ir conversar na escada de incêndio logo na saída da ala, onde
não era tão público, onde ele normalmente deitava no cimento do patamar
com os pés no segundo ou no terceiro degrau mais alto, o que àquela altura
ele admitiu que não era por causa da coluna, mas que ele precisava da
elevação pra manter a circulação. Aí a gente acabou passando boa parte
desses primeiros dias na escada conversando sobre a coisa toda das minhas
suspeitas quanto ao que ele queria de mim e por que estava fazendo aquilo,
dando voltas e mais voltas, e ele acabou me contando sim alguma coisa dele
e de ter ficado com cardiomiopatia na universidade, mas ele também ficava
dizendo que tudo bem, que ele podia falar disso quanto eu quisesse, mas
que era meio que um círculo vicioso porque eu podia criar alguma
desconfiança de tudo que ele dissesse e atribuir alguma segunda intenção a
tudo se eu quisesse, e eu podia pensar que era tudo honesto e franco mas
que na verdade não era barra-pesada nem eficaz, na opinião dele, era mais
um jeito de ficar fuçando e refuçando no problema em vez de olhar de
verdade pro problema, que ele disse que porque ele estava quase morto e
não fazia parte de verdade da instituição do pinel ele achava que de repente
era a única pessoa ali que ia me dizer a verdade, de verdade, sobre o meu
problema, que ele disse que era basicamente que eu precisava crescer.”
Meredith Rand se detém e olha para Shane Drinion esperando sua
pergunta sobre o que aquele diagnóstico poderia querer dizer exatamente;
mas ele não pergunta. Ele parece ter se reconciliado com alguma coisa ou
ter decidido aceitar o jeito de Meredith Rand lembrar da história à sua
maneira, ou ter concluído que tentar impor certo tipo de ordem na parte dela
do tête-à-tête ia acabar tendo o efeito contrário.
Ela está dizendo: “E claro que a coisa de ‘crescer’ me deixou puta, e eu
mandei ele ir catar coquinho na ladeira, mas não foi tão a sério, porque mais
ou menos naquela altura ele também tinha dito que estavam começando a
falar em me dar alta logo, a equipe de tratamento estava começando a falar
no assunto, apesar de obviamente ninguém nem ter pensado em me contar
alguma coisa do que andava acontecendo, e que a minha mãe estava
tentando montar um esquema de tratamento extraclínica e tentando marcar
com um dos médicos pra ele continuar me atendendo no consultório
particular, que vivia cheio e além de tudo o seguro do meu pai não cobria,
então a coisa toda era um pesadelo burocrático, e ia levar um tempinho, mas
estava começando a me cair a ficha de que não era pra sempre, que talvez já
na semana seguinte ou na outra eu não ia mais estar falando com ele ou nem
tendo mais conversas barra-pesada, talvez a gente nem se visse de novo —
eu me dei conta de que não sabia onde ele morava nem o sobrenome dele,
cacete. Isso tudo meio que caiu na minha cabeça, e aí eu começo a pirar
quando penso nisso, porque eu já conhecia um pouquinho qual era o gosto
de passar uns dias de repente sem poder falar com ele nem saber onde ele
estava, e eu ali pirando, e na minha cabeça começo a imaginar a
possibilidade de afiar alguma coisa e me cortar um pouco mesmo sem no
fundo ter vontade, só pra ficar mais um pouquinho no hospício, o que eu
sabia que era loucura total”. Ela olha bem rápido para Drinion para ver se
ele está reagindo a essa informação. “O que era loucura, e na verdade eu
acho que ele sabia que isso estava acontecendo, ele sabia como àquela
altura ele já era importante pra mim, acho, então ele tinha mais força ou
mais munição pra usar pra me mandar parar com aquela bobagem — eu
ficava sentada na escada que levava ao Quarto e ele ali deitado de costas no
pé da escada com os pés erguidos bem embaixo de mim, então eu passava
todo aquele tempo olhando as solas do sapato dele, que era meio que uns
tênis de supermercado e as solas eram de plástico — e que ‘crescer’ era pra
já, pra agorinha mesmo, e parar de ser criança, porque aquilo ia acabar
comigo. Ele disse que as meninas que passavam pelo Zeller eram todas
iguais e que ninguém ali tinha a menor ideia do que significava ser adulta.
O que era totalmente condescendente e normalmente a coisa errada de dizer
a uma menina de dezoito anos. Então teve uma discussãozinha por causa
disso. O que ele estava dizendo era que ser infantil não era a mesma coisa
que ser criança, ele disse, porque fique olhando uma criança de verdade
brincar ou fazer carinho num gato ou ouvir uma história e você vai ver que
é meio que o contrário do que a gente estava fazendo ali no Zeller.” Shane
Drinion está levemente inclinado para a frente. Sua bunda está agora a
quase 4,5 centímetros do assento da cadeira; as solas do seu sapato de
trabalho que parecem borracha, escurecidas em seu perímetro pelo mesmo
processo que escurece a borracha da ponta de um lápis, balançam logo
acima do piso de lajotas. Não fosse o blazer pendurado no encosto de sua
cadeira, Beth Rath e os outros poderiam enxergar através da substancial
fresta entre o assento da cadeira e a calça dele. “Da parte dele, era mais uma
explicação do que uma discussão”, Rand diz. “Ele dizia que existe como
que um estágio particular da vida em que você é separado da, assim, da
felicidade espontânea e da mágica da infância — ele disse que só crianças
com problemas bem sérios ou com autismo não têm essa alegria da infância
— mas mais adiante na vida e na puberdade é possível deixar pra trás essa
liberdade e essa completude da infância, mas ainda assim continuar
totalmente imaturo. Imaturo no sentido de desejar ou querer que algum
papai mágico ou um herói te veja, te conheça, te entenda de verdade e pense
tanto em você quanto os seus pais pensam, e que ele te salve. Te salve de
você mesma. Ele também ficava bocejando um monte e batendo um pé de
tênis no outro, e eu ficava vendo as solas indo e vindo. Ele disse que é
assim que a imaturidade aparece nas moças e nas meninas; nos homens ela
tem uma aparência um pouco diferente, mas no fundo é a mesma coisa, que
é querer não ter que pensar no que você perdeu, e ser consertado e salvo por
alguém. O que é bem lugar-comum, é mais ou menos um caso típico, e aí eu
digo então o meu problema central é esse? Era isso que eu estava aqui
tentando fazer você dizer? E ele diz que não, que é o problema central de
todo mundo, por isso as meninas são obcecadas pela beleza e por
conseguirem ou não conseguirem atrair alguém e despertar naquela pessoa
um amor que possa ser a salvação delas. O meu problema central, ele disse,
e isto se liga com o problema central de que acabei de te falar, era a bela de
uma armadilha que eu tinha construído pra mim mesma pra garantir que eu
nuca ia precisar crescer e ia poder continuar imatura e esperando pra
sempre que alguém viesse me salvar porque eu nunca ia conseguir descobrir
que ninguém que não fosse eu ia conseguir me salvar porque eu tinha
tornado impossível conseguir o que eu tinha tanta certeza que precisava ter
e merecia ter, aí eu podia viver emputecida e podia me dar o direito de
andar por aí pensando que o meu problema de verdade era que ninguém
conseguia me ver ou amar quem eu era de verdade como eu precisava tanto
que amassem pra aí eu poder sempre ter o meu problema pra sentar e pôr no
colo, afagar e fazer de conta que era o problema de verdade.” Rand olha de
maneira cortante para Shane Drinion. “Isso parece um lugar-comum?”
“Não sei.”
“Pareceu um pouco pra mim”, Meredith Rand diz. “Eu disse pra ele que
aquilo me ajudava um monte e que agora eu sabia exatamente o que fazer
quando tivesse alta do Zeller, que era bater os saltos dos meus sapatinhos e
transformar diagnóstico em cura, e como é que um dia eu ia conseguir
pagar ele por aquilo.”
Drinion diz: “Você estava sendo profundamente sarcástica”.
“Eu estava puta!”, Meredith Rand diz meio alto. “Eu disse pra ele veja só
que no final das contas parecia que ele era igualzinho aos médicos do
diagnóstico-é-cura com aqueles terninhos bacanas, com a óbvia exceção de
que o diagnóstico dele além de tudo era ofensivo, o que ele podia chamar de
honestidade e curtir um barato a mais nisso de magoar os outros. Eu estava
tão, mas tão puta! E ele riu e disse que queria que eu pudesse me ver
naquele momento — ele podia me ver porque estava deitado e eu estava de
pé acima dele, porque mais ou menos a cada quinze minutos eu tinha que
ajudar ele a levantar pra ele poder entrar quietinho pelo corredor e fazer a
sua ronda com a prancheta e verificar tudo. Ele disse que eu parecia uma
criança de quem acabaram de tomar um brinquedinho.”
“O que provavelmente te deixou ainda mais brava”, Drinion diz.
“Ele disse alguma coisa assim meio beleza então, tudo bem, que ele ia
me explicar como se estivesse falando com uma criancinha, com alguém
tão trancafiado dentro do problema que não consegue nem enxergar que
aquilo é o seu problema e não simplesmente o mundo como o mundo é. Eu
queria ser amada e conhecida por alguma coisa além da mera beleza. Eu
queria que as pessoas passassem por cima da beleza e de toda a coisa sexual
e me enxergassem como eu era, como uma pessoa, e eu ficava muito
enfurecida e com pena de mim porque as pessoas não faziam isso.”
Meredith Rand, no bar, levanta brevemente os olhos para Drinion. “Não
enxergavam além da superfície”, ele diz, para demonstrar que entende o que
ela está dizendo.
Ela inclina a cabeça de lado. “Mas na verdade tudo era a superfície.”
“A sua superfície?”
“Isso, porque por baixo da superfície tinha só essa pilha de sentimentos e
de conflitos a respeito da superfície, e raiva, raiva da minha aparência e do
efeito que eu tinha nas pessoas, e no fundo a única coisa que existia lá
dentro era esse chilique constante de como eu não ia ser salva e de que isso
era por causa da minha beleza, que ele disse que se você parar pra pensar
era uma coisa das menos atraentes — ninguém quer ficar perto de alguém
que está o tempo todo no meio de um chilique. Quem é que ia querer isso?”
Rand faz uma espécie de gesto triunfal irônico no ar. “Então ele disse que
eu no fundo tinha montado tudinho pra que a única razão pra que alguém de
fato ficasse atraído por mim como pessoa era eu ser bonita, que era
exatamente o que me deixava muito enfurecida, muito sozinha e muito
triste.”
“Isso parece uma armadilha psicológica.”
“A comparação dele foi que ele comparou isso a criar uma máquina
qualquer que te desse um choque cada vez que você dissesse ‘Ai!’. Claro
que ele sabia que eu andava sonhando com aquelas máquinas. Sei que eu
fiquei só olhando pra ele, dando uma olhada assim de raio da morte que
todas as gatas da escola aprendem direitinho a dar, como se ele tivesse que
derreter e morrer de você olhar pra alguém daquele jeito. Ele estava deitado
com os pés erguidos nos degraus enquanto ia dizendo isso tudo. Com os
lábios meio roxos, a cardiomopatia estava piorando o tempo todo, e a
escada do Zeller tinha aquelas luzes frias horrorosas que deixavam a cara
dele pior; ele nem era tão pálido, era mais meio cinza, com um grude meio
espumoso nos lábios porque ele não conseguia beber na sua canequinha de
água quando estava deitado de costas.” Os olhos dela parecem estar
realmente vendo a cena de novo in situ ali na escada do Zeller. “Pra te falar
bem a verdade, pra mim ele parecia nojento, medonho, repulsivo, que nem
um cadáver ou uma pessoa lá daquelas fotos das pessoas de roupa listrada
nos campos de concentração. O esquisito é que eu gostava dele e ao mesmo
tempo achava ele nojento. Ele me dava nojo”, ela diz. “E eu estava tão
afundada no meu problema que não conseguia aceitar o interesse real,
legítimo, não sexual ou não romântico ou não daquele-tipo-ligado-à-beleza
que ele estava me oferecendo — ele estava falando de si próprio, coisa que
eu sabia, mesmo que não dissesse com todas as letras; a gente tinha passado
por aquilo dias e dias a fio, e o tempo estava acabando, nós dois sabíamos.
Eu ia receber alta e nunca mais a gente ia se ver. Mas eu disse umas coisas
bem horrorosas.”
“Você está se referindo à escadaria”, Shane Drinion diz.
“Porque bem lá no fundo, ele disse, eu só me via em termos de beleza.
Eu me via como uma pessoa tão medíocre e tão lugar-comum por dentro
que não conseguia imaginar alguém que não fossem os meus pais
interessados em mim por qualquer motivo que não fosse a minha aparência,
o fato de eu ser gata. Eu estava brava demais, ele disse, porque as pessoas
só conseguiam se importar ou prestar atenção na beleza, mas ele disse que
isso era uma cortina de fumaça, o teatro da mente humana, e que o que na
verdade me incomodava demais era que eu me sentia assim também, os
meninos e os homens estavam me tratando do mesmo jeito que no fundo eu
me tratava, e que na verdade era comigo mesma que eu estava brava só que
não enxergava isso — eu projetava isso tudo nos tarados que assobiavam na
rua ou nos meninos suarentos que tentavam me traçar, ou nas outras
meninas que resolviam achar que eu era uma vaca porque era metida com a
coisa da beleza.”
Há um breve momento de silêncio, ou seja, nada além do barulho do
fliperama, do jogo de beisebol e dos sons das pessoas relaxando.
“Isso é um tédio?”, ela pergunta a Drinion de repente. Ela não tem
consciência de como está olhando para Drinion enquanto pergunta isso. Por
apenas um momento parece quase uma pessoa diferente. Subitamente
ocorreu a Meredith Rand que Shane Drinion pode ser uma dessas pessoas
cativantes que acabam se revelando superficiais e que podem parecer que
prestam atenção, mas na verdade deixam sua atenção vagar por tudo quanto
é canto, inclusive talvez considerando o quanto ele não queria estar ali
concordando educadamente com a cabeça e ouvindo aquela parolagem
tediosa, aquela parolagem narcisista, se aquilo não lhe desse a chance de
olhar direto para os olhos verdes abissais de Meredith e para sua incrível
estrutura óssea, fora um pouco do decote, já que ela tinha tirado o babado e
aberto o botão de cima no mesmo minuto em que a campainha das 17h
havia tocado.
“Hein? É um tédio isto aqui?”
Drinion reage: “A maior parte não, não mesmo”.
“Qual parte é um tédio?”
“Tédio não é uma palavra muito boa. Algumas partes você tende a repetir
ou dizer várias vezes de jeitos só um pouquinho diferentes. Essas partes não
acrescentam informações novas, então essas partes dão mais trabalho pra
prestar atenção, emb…”
“Quais por exemplo? O que é que você acha que eu fico dizendo de
novo?”
“Mas eu não diria um tédio. É mais que ouvir direito essas partes dá
trabalho, ainda que não fosse justo chamar de desagradável, o efeito. É que
ouvir as partes que acrescentam informações ou ideias novas, essas partes
geram uma atenção que não precisa de esforço.”
“O quê, é que eu fico falando sem parar do quanto eu sou supostamente
linda?”
“Não”, Drinion diz. Ele põe a cabeça um pouco de lado. “Na verdade, pra
ser sincero, nessas partes em que você fica repetindo a mesma questão ou a
mesma informação essencial de um jeito minimamente diferente, o motivo
subjacente, que fico com a impressão que é uma preocupação de que o que
você está transmitindo não seja claro ou interessante e precise ser
reformulado e reapresentado de várias maneiras diferentes pra você garantir
que o ouvinte está te entendendo de verdade — isso é interessante, e um
pouco emotivo, e tem uma coerência bem interessante com o tema da
superfície que o Ed, na história que você está contanto, está te ensinando, e
assim nesse sentido até os elementos repetitivos ou redundantes geram
interesse e requerem pouco esforço consciente pra prestar atenção, ao
menos no que se refere a mim.”
Meredith Rand pega mais um cigarro. “Você parece que está lendo um
roteiro ou alguma coisa assim.”
“Desculpe se parece isso. Eu estava tentando explicar a minha resposta à
sua pergunta, porque tive a sensação de que você ficou magoada com a
minha resposta, e eu senti que uma explanação mais completa podia evitar
essa mágoa. Ou minorar caso você estivesse brava. Do meu ponto de vista,
houve só uma incompreensão baseada numa incomunicabilidade gerada
pela palavra tédio.”
O sorriso dela é e não é zombeteiro. “Então eu não sou a única pessoa
preocupada com a possibilidade de ser mal-entendida e que fica tentando
evitar essas incompreensões por razões emocionais.” Mas ela consegue ver
que ele está sendo sincero; ele não está nem de sacanagem nem de puxa-
saquismo. Meredith sente isso. Há uma sensação que decorre de estar ali
sentada com Shane Drinion e ter os olhos e a atenção dele sobre você. Não
é excitação, mas é barra-pesada, mais ou menos como ficar perto dos
transformadores de alta voltagem ali ao sul da Joliet Street.
“Posso perguntar”, Drinion diz, “se é projeção quando você projeta
emoções suas em outras pessoas? Ou é deslocamento isso?”
Ela faz outra cara. “Ele odiava palavras como essas, na verdade. Ele dizia
que elas eram parte da instituição autoalimentadora do sistema de saúde
mental. Ele disse que até a palavra era contraditória — sistema de saúde
mental. Isso foi na noite seguinte, no elevador de serviço, porque alguém
que estava na escada em algum outro andar ouviu a nossa voz na noite
anterior porque o fosso da escada era todo de cimento e de metal e cheio de
ecos, e o Ed tomou uma dura ou alguma coisa assim do supervisor de
enfermagem por encorajar a minha conexão nociva com ele que eles meio
que deduziram por causa da minha perturbação na vez que ele passou dois
dias sem aparecer — no final das contas ele estava quase sendo demitido,
principalmente porque tinha começado a perder de vez em quando as
verificações de cada quinze minutos e uma menina estava enfiando o dedo
na garganta e vomitando o jantar, alguém encontrou um pouco do vômito e
o Ed tinha deixado de ver porque estava deitado na escada e era mais difícil
levantar daquela posição lá no chão com os pés nos degraus, nem que eu
ajudasse, e ele foi deixando de levantar pra ir fazer as verificações.
Algumas meninas também tinham começado a resmungar por causa dessas
nossas conversas, como se eu fosse a preferida coisa e tal, e começaram
uma fofocagem generalizada com as equipes de tratamento de que eu estava
fingindo que tinha que conversar em segredo com ele, arrastando ele dali e
tentando agarrar ele ou sei lá mais o quê. Algumas meninas ali eram
simplesmente horríveis, eu nunca vi gente mais vaca do que aquelas lá.”
“…”
“E foi também o dia em que eu recebi alta, ou me disseram que eu ia ter
alta no dia seguinte; os meus pais tinham ajeitado tudo e tinha coisa de
setecentos mil documentos pra assinar no dia seguinte e aí eu ia pra casa.
Teve toda uma história da minha mãe conseguir que um médico assinasse
como responsável pelo tratamento extraclínica blá-blá. Ninguém usava o
elevador de serviço de noite depois das bandejas do jantar, então ele abriu, a
gente entrou ali e sentou no chão, o chão tinha uma coisa de um padrão de
metal e não dava pra deitar. Aquilo fedia, era pior que a escada.
“Ele disse que era a última noite, a última conversa, e quando eu disse
que queria barra-pesada ele disse que era pra valer, que a gente
provavelmente nunca mais ia se ver depois dali. Eu disse como assim. Só
que eu estava desmontando total. Era eu que tinha segundas intenções. Era
pra valer. Eu sabia que não podia inventar alguma saída mandrake pra ficar
ali, eu sabia que ele ia perceber, ia só rir de mim. Mas eu estava pronta pra
admitir que tinha sentimentos românticos — que eu me sentia atraída por
ele, mesmo apesar de eu sentir que não era verdade, sexualmente, mesmo
apesar que depois acabou que era isso mesmo, sim. Só que eu não
conseguia admitir pra mim mesma como eu me sentia, por causa do meu
problema. Só que eu tenho que dizer agora que não sei bem”, Meredith
Rand diz. “Estar casada é totalmente diferente de estar com dezessete
aninhos, numa crise de identidade total e idealizando alguém que parece
que te enxerga e se preocupa com você.” Ela agora parece bem mais ela
mesma. “Mas ele foi o primeiro cara que me deu a sensação de que estava
me dizendo a verdade, que não começou simplesmente a ter segundas
intenções e inventar de atuar ou ficar todo suarento e intimidado e que
estava disposto a me ver de verdade e me conhecer e simplesmente me
dizer a verdade do que estava vendo. E ele me conhecia mesmo — lembre,
ele me falou tudo aquilo da minha mãe e do vizinho que ninguém sabia.” O
rosto dela enrijece de novo, um tanto, ou tensiona, enquanto ela olha
diretamente para Drinion, segurando o cigarro mas sem acender. “Essa é
uma das partes que você falou que eu fico repetindo?”
Drinion sacode a cabeça um pouquinho e então espera que Meredith
Rand continue. A A-POT hiperatraente continua olhando para ele.
Drinion diz: “Não. Acho que o tema original da história era você
casando. Casar obviamente pressupõe uma atração recíproca e certas
emoções românticas, então a sua primeira menção de uma disposição para
reconhecer a atração romântica é informação nova, e muito relevante”. A
expressão dele não mudou nada.
“Então não é um tédio.”
“Não.”
“E você mesmo nunca sentiu uma atração romântica.”
“Não, que eu saiba não.”
“Se um dia você sentiu, você não ia saber?”
Drinion: “Acho que sim, ia sim”.
“Então a sua resposta foi meio escorregadia, não foi?”
“Imagino que sim”, Drinion diz. Depois ela ia considerar que ele não
pareceu nada surpreso. Parecia que estava apenas absorvendo informação e
acrescentando a informação a si próprio. E que (Rand não exatamente
consideraria isto, porém mais lembraria como parte de uma lembrança
sensória dela rindo um pouquinho às custas de Drinion e do jeito estranho
com que ele reagia toda vez que ela fazia isso, coisa que ela fazia mais ou
menos quando quisesse, rir às custas dele, porque de certa maneira ele era
um nerd total e um megapafúncio.) o quadro com diferentes tipos de
chapéus da parede dos fundos agora estava completamente obnubilado, a
não ser pela pontinha da aba de um boné de pescador na fileira de cima.
“Bom, enfim”, Meredith Rand diz. Ela está com o queixo na mesma mão
que segura o Benson & Hedges apagado, o que parece o oposto de
confortável. “Então o que eu sei é que naquela última noite, no elevador, eu
não estava ouvindo com atenção o que ele dizia, assim, mergulhando no que
ele me dizia, porque estava lutando com esse monte de sentimentos e de
conflitos internos sobre me sentir atraída por ele e também pirando legal
por ter ouvido que a gente nunca mais ia se ver, porque o acordo era que eu
ia continuar com o tratamento extraclínica, mas o acompanhamento era no
segundo andar onde os médicos todos tinham os consultórios de verdade, e
ele só vinha de noite e só ficava no terceiro andar, que era uma ala
trancafiada. Só a ideia de que eu não sabia onde ele morava já me pirava.
Fora que eu sabia que ele podia ser demitido logo, logo porque mal
conseguia mais fazer as verificações, e tinha acontecido aquele problema
com uma das vomitadoras que andava vomitando e que ele não tinha ido
ver, fora que eu sabia que ele não tinha contado da situação de saúde dele
pro pessoal do Zeller, da cardiomiopatia, que estava mais ou menos sob
controle quando ele foi contratado, pelo que parecia, mas que estava
ficando cada vez pior…”
“Mas ele ainda não tinha te falado da cardiomiopatia.”
“Isso, mas fosse o que fosse o pessoal do Zeller não sabia, e eles
achavam que ele não se cuidava muito bem ou que vivia de ressaca ou era
preguiçoso, alguma coisa horrorosa dessas. Aí eu ficava me desligando do
que ele dizia e pensando e se eu tirasse a blusa e, assim, me atracasse com
ele ali mesmo, será que ele ia deixar ou ia ficar com nojo e rir de mim, e
como é que eu podia fazer pra ele me ver de novo e ainda ter umas
conversas barra-pesada depois que eu saísse e tivesse que voltar pra minha
mãe e pra Central Catholic, e se eu dissesse pra ele que amava ele, e se ele
morresse e eu saísse e eu nem ficasse sabendo que ele tinha morrido porque
não sabia quem ele era nem onde ele morava. E me ocorreu que eu nem
sabia o que ele achava de verdade de mim como eu mesma e não como uma
menina qualquer que ele estava ajudando, assim, será que ele me achava
interessante ou inteligente, ou bonita. Era muito duro imaginar que alguém
que parecia me entender tão bem e me dizer a verdade não pensava em mim
daquele jeito mais especial.”
“Você quer dizer ter sentimentos amorosos.”
Rand meio que dá de ombros com as sobrancelhas. “Ele era homem,
afinal. Então… e aí me ocorreu que eu estava meio que fazendo exatamente
o que ele disse que era o meu problema central — pensando nele e em não
perder ele, que ele é que podia me salvar e que o jeito de não perder ele era
com sentimentos sexuais porque isso era só o que eu tinha.
“Então aí eu sei que em algum momento ele me fez um questionário
sobre os tópicos gerais que a gente tinha coberto. Era e não era uma piada.”
Ela acende o cigarro finalmente. “Depois ele acabou confessando que era
porque ele achava que ia morrer mesmo daquela crise de cardiomiopatia —
acabou que ele passava vários dias seguidos sem conseguir respirar direito,
como se estivesse correndo mesmo quando estava ali deitado; tinha um
motivo pra aqueles lábios ficarem roxos — e ele disse que tinha quase
certeza que nunca mais ia me ver e conseguir ficar sabendo se tinha sido
útil, ele queria confirmar pra si próprio que tinha ajudado alguém um pouco
antes de morrer. E claro que da minha parte eu estava pirando, eu não
conseguia calcular se era melhor eu gabaritar o questionário ou zerar pra
poder ver ele de novo. Mesmo com ele fingindo que a coisa toda do
questionário era piada, como se eu fosse uma aluninha de pré-escola sendo
testada por um professor de pré-escola. Ele era bom pacas em ser sério e rir
de si próprio ao mesmo tempo — era um dos motivos por que eu amava
ele.”
Drinion: “Amava?”.
“Assim, pergunta número um: O que foi que nós aprendemos sobre se
cortar? E eu disse, assim, a gente aprendeu que não importa por que eu me
corto ou qual que é o mecanismo psicológico por trás dos cortes, se é uma
projeção de um ódio por mim mesma ou sei lá o quê. Exteriorização do que
é interior. A gente aprendeu que a única coisa importante é não se cortar.
Cortar essa. Ninguém mais pode me fazer cortar essa; só eu posso decidir
parar com isso. Porque seja qual for a razão institucional, isso está me
fazendo mal, isso sou eu sendo má comigo mesma, o que era infantil. Era
não se tratar com respeito. A única forma de você ser má com você mesma
é se bem lá no fundo você espera que alguém venha a galope e te salve, o
que é fantasia de criança. A realidade significava que ninguém mais ia com
certeza ser legal comigo ou me tratar com respeito — era esse o sentido
dessa coisa de crescer, perceber que — e ninguém mais ia com certeza me
ver ou me tratar como eu queria ser vista, então era problema meu dar um
jeito de me ver e me tratar como se eu valesse muito a pena. Isso se chama
ser responsável em vez de infantil. As verdadeiras responsabilidades são pra
comigo. E se gostar da minha aparência era parte disso e parte do que eu
bem no fundo achava que valia a pena, tudo bem. Eu podia gostar de ser
bonita sem fazer a beleza ser a única coisa que eu tinha pra oferecer ou sem
sentir pena de mim mesma se as pessoas pirassem com isso da beleza. Foi
essa a minha resposta ao questionário.”
Shane Drinion: “Mas, até onde posso perceber, a sua experiência real ali
era que outra pessoa estava sendo legal com você e te tratando como se
você valesse a pena”.
Rand sorri de um jeito que faz parecer que ela está sorrindo apesar de não
querer. Ela também está fumando seu cigarro de um jeito mais meticuloso,
mais sensual. “Bom, é isso, era nisso que eu estava pensando na verdade, ali
parada no elevador e olhando pra ele lá embaixo e respondendo o
questionário dele, o que eu fiz com toda sinceridade, mas secretamente eu
estava pirando legal. A verdade é que eu estava sentindo que na realidade
ele era exatamente o que ele estava dizendo que era impossível e infantil,
ele era exatamente a outra pessoa que ele estava dizendo que eu nunca ia
encontrar. Parecia que ele me amava.”
“Então tinha um conflito emocional barra-pesada ali”, Shane Drinion diz.
Rand põe as mãos uma em cada lado da cabeça e faz uma cara rápida que
imita alguém tendo um colapso nervoso. “Eu estava falando pra ele sobre
não pensar nos outros ou em por que eles se sentiam ou não atraídos e se
importavam ou não e de simplesmente me tratar com decência, de me tratar
como se eu valesse a pena, me amar de maneira adulta — e era tudo
verdade, eu tinha aprendido mesmo, mas eu também estava dizendo aquilo
tudo pra ele porque é o que ele queria que eu dissesse, pra ele sentir que
tinha me ajudado de verdade. Mas se eu dissesse o que ele queria que eu
dissesse, será que ele ia se mandar e nunca mais me ver, que ele não ia ter
saudade de mim, porque ia pensar que eu estava legal e ia ficar legal? Mas
eu disse mesmo assim. Eu sabia que se eu dissesse que amava ele ou tirasse
a roupa e lhe tascasse um beijo bem ali, ele ia pensar que eu ainda estava no
meio do problema infantil, ia pensar que eu ainda confundia ser tratada
como uma pessoa de valor com ideias de sexo e sentimentos amorosos, e ia
pensar que tinha perdido tempo e que a coisa não tinha jeito, ele ia achar
que eu não tinha jeito e que ele não tinha conseguido me passar nada, e eu
não podia fazer isso com ele — se ele ia morrer ou ser demitido pelo menos
eu podia dar isso pra ele, a certeza de que tinha me ajudado, apesar de no
fundo eu estar achando de verdade que tinha me apaixonado por ele ou que
precisava dele.” Ela apaga o cigarro sem nada dos gestos cortantes de antes,
quase meio que de um jeito terno, como se estivesse pensando com ternura
em outra coisa. “Eu meio que de repente senti assim: Ai meu Deus, é disso
que as pessoas falam quando dizem ‘Eu vou morrer sem você, você é a
minha vida’, sabe, ‘Can’t live, if living is without you’”, Meredith Rand
acompanhando esse último trecho ao som de “Can’t Live (If Living is
Without You)” de Harry Nilsson. “Todas aquelas músicas country
horrorosas que o meu pai ficava ouvindo enquanto trabalhava na garagem,
parecia que cada uma delas falava de alguém conversando com um amante
que tinha perdido e do porquê e do como eles não podiam mais viver sem
aquela pessoa, como a vida tinha ficado terrível, e bebendo o tempo todo
porque doía de um jeito terrível ficar sem aquela pessoa, que eu não
conseguia aturar porque eu achava que era tudo muito lugar-comum e eu
nunca abria a boca, mas não conseguia acreditar que ele conseguisse ouvir
aquilo tudo sem nem botar os bofes pra fora.… Na verdade, ele disse, se
você ouvir essas músicas e trocar o você por um eu, assim, você vai
entender que no fundo eles estão falando é da perda de uma parte de você
mesmo ou de se trair o tempo todo em nome do que você acha que as
pessoas querem até você ficar simplesmente morto por dentro e nem saber
mais o que significa eu, e isso porque o único jeito que essas pessoas têm de
pensar naquilo e no motivo de elas estarem tão mortas e tão tristes é pensar
que aquilo é precisar de outra pessoa e não conseguir viver sem ela, essa
outra pessoa — o que por alguma coincidência é exatamente a situação de
um bebezinho de colo, que sem alguém pra segurar e dar comida e cuidar
dele, morre, literalmente, o que ele disse que está longe de ser coincidência,
na verdade.”
A testa de Drinion está um quase nada franzida enquanto ele pensa. “Eu
estou confuso. O Ed explicou o verdadeiro sentido das canções de música
country no elevador? Então você falou pra ele das letras e que tinha passado
a entender o sentimento das letras?”
Rand está olhando em volta, possivelmente em busca de Beth Rath. “O
quê? Não, isso foi mais pra frente.”
“Então vocês acabaram se vendo de novo depois do elevador.”
Rand ergue o dorso da mão para exibir a aliança. “Ah, sim.”
Drinion diz: “Tem mais alguma informação que eu precise pra entender
isso aí?”.
Rand parece distraída e irritada. “Bom, ele não morreu, obviamente, sr.
Einstein.”
Drinion gira o copo vazio. Sua testa tem uma ruga bem perceptível. “Mas
você passou bastante tempo descrevendo o conflito entre confessar o amor e
os seus reais motivos, e como você estava chateada e incomodada com a
possibilidade de não voltar a ver o Ed.”
“Eu tinha dezessete anos, cacete. Eu era megadramática. Eles me levam
pra casa, eu olho na lista telefônica, ele está bem ali na lista. O apartamento
dele ficava a coisa de dez minutos da minha casa.”
A boca de Drinion está na posição distendida de alguém que quer fazer
uma pergunta mas não sabe nem por onde começar e está demonstrando
isso facialmente em vez de com a voz.
O braço de Rand está erguido numa espécie de sinal para Beth Rath.
“Enfim, foi assim que a gente se conheceu.”
§ 47

Toni Ware estava no telefone que fica no limite do terreno. Em vez de


uma cabine era só um aparelho no poste mesmo. Ela se encostava um pouco
no para-choque dianteiro do carro, que brilhava. A cara de um dos cães
apareceu por sobre o banco traseiro; quando ela olhou firme para ele por um
momento a cara sumiu de vista. No banco do passageiro, na frente, havia
uma dúzia de tijolos comuns de três quilos, cada um com um cartão de
Resposta-Pré-Paga de um fabricante diferente. Ela era uma mulher de
tamanho comum, loura já quase pálida, vestindo calça comprida e um
casaquinho bege meia-estação que se desfraldava e estalava ao vento. O
homem do outro lado da linha estava repetindo a encomenda dela, que era
complexa e envolvia vários metros de tubos de cobre #6 cortado na
diagonal em segmentos de dez centímetros; o ângulo da diagonal seria de
60 graus. Essa mulher tinha vinte vozes diferentes; todas menos duas eram
cálidas e agradáveis. Ela não protegia o telefone com a concha da mão para
barrar o vento, mas deixava que ele troasse no áudio. Todo mundo tem
maneirismos inconscientes que aparecem quando ao telefone; o dela era
olhar para as cutículas da mão que não estava segurando o telefone e usar o
polegar daquela mão para tatear uma cutícula por vez. Havia quatro
mulheres no estacionamento da loja de conveniência e um busto da
operadora do caixa numa fresta entre avisos na janela para compra de
cerveja no atacado. Duas mulheres estavam nas bombas; outra num
Gremlin castanho esperando que uma bomba ficasse livre. Tinham o cabelo
embrulhado em plástico para se proteger do vento. Houve um período em
que Toni teve que esperar que o atacadista de ferramentas verificasse seu
cartão de crédito, o que significava que eles estavam no momento
trabalhando com uma margem apertada e não podiam bancar nem uma
suspensão de quatro horas para aquele pedido, o que significava que
podiam ser afetados. Todo mundo conduz uma rápida verificação
inconsciente de cada objeto dos sentidos sociais que encontra pela frente. A
grande preocupação de algumas verificações envolvia potenciais sexuais,
potenciais de lucro, gradações estéticas, indicadores de status, poder e/ou
suscetibilidade a dominação. As verificações de Toni Ware, que eram
detalhadas e minuciosas, ocupavam-se unicamente de saber se o objeto
podia ser afetado. Seu cabelo parecia de um louro-acinzentado ou do tipo de
louro ressecado que sob certas luzes parece quase cinza. O vento batia forte
na porta quando as pessoas saíam; ela observou sua força afetar o rosto
delas e os pequenos gestos inconscientes de recolhimento que faziam
quando tentavam ao mesmo tempo se encolher e andar depressa. Não estava
especialmente frio ali, mas o vento fazia parecer frio. A cor dos olhos dela
dependia das lentes que estivesse usando. O número do cartão de crédito
que deu ao homem era de fato o seu, mas nem o nome nem o número da
identidade que forneceu eram dela, exatamente. Os dois cães tinham o
mesmo nome, mas sabiam infalivelmente qual ela estava chamando. Seu
amor por cães transcendia toda experiência e determinava sua vida. A voz
que usou com o balconista da Butts Hardware era mais jovem que ela,
ostensivamente insípida, acarretando que mercadores cujos gostos
emocionais fossem refinados demais para a mera exploração se sentissem
paternais — superiores e ternos ao mesmo tempo. O que ela disse quando
confirmou o pedido foi: “Joia. Maravilha. Eba”, com o “Eba” declamado e
não gritado. Era uma voz que levava o ouvinte a imaginar alguém de cabelo
louro comprido e calça boca de sino que punha a cabecinha de lado e
pronunciava até asserções com uma entonação interrogativa. Ela brincava
nesse fio de navalha quase o tempo todo — dando uma impressão falsa que
mesmo assim era concreta e estritamente controlada. Parecia uma forma de
arte. A questão não era a destruição. Exatamente como a ordem total é sem
graça, o caos também é sem graça: não há nada informativo na bagunça. O
caixa da loja dava um sorriso frio para cada freguês e começava uma
conversinha breve. Toni Ware em três anos já tinha participado duas vezes
de investigações daquela loja, cujo nome era QWIK’N’EZ — com um ícone na
placa suspeitamente similar ao Big Boy do Bob’s — e que foi um dos
primeiros pontos à beira da rodovia a eliminar os frentistas e abrir uma
lojinha minúscula com cigarros, refrigerantes e porcarias para compras
rápidas. Eles ganhavam horrores em espécie e tinham sido marcados pela
função DIF local todo ano; mas eram imaculados, uma auditoria de campo
foi considerada uma perda de salários, os recibos deles batiam
perfeitamente e os livros-caixa eram confusos só o suficiente para não ser
manipulados, o proprietário era um cristão pentecostal que já tinha
começado a construir outro do que o Bondurant chamava de Tumores de
Acostamento na segunda saída 74 e tinha feito proposta de compra de mais
dois terrenos para o mesmo fim.

Ela possuía dois telefones em casa e um celular grandalhão e dois


códigos para usar os aparelhos do escritório, mas utilizava orelhões para
seus negócios pessoais. Não era nem atraente nem feia. Descontada certa
intensidade anêmica em seu rosto não havia nela nada que atraísse ou
repelisse ou gerasse mais atenção do que mil outras mulheres de Peoria que
já tivessem sido descritas como “bonitinhas” quando no auge e que agora
eram invisíveis. Ela gostava de escapar do radar dos outros. A única pessoa
que podia ter percebido que ela desligou o telefone seria alguém que
quisesse usar o aparelho. Duas mulheres e um homem rubicundo com roupa
de flanela estavam enchendo seus tanques. Uma criança num dos carros
chorava, rosto contorcido. As janelas do carro transformavam seu choro
numa pantomima. Sua mãe tinha um rosto desmoronado e encarava o vazio
com uma expressão estúpida junto ao tanque, alisando o plástico do cabelo
enquanto a mangueira fornecia gasolina no automático. Polias do poste do
posto no lastro do mastro tremiam vibrando no vento. O leve pulsar do
ponto morto do carro dela atrás dela, os dois cães abaixados em posturas
idênticas. Ela diminui de velocidade apenas o suficiente para olhar bem nos
olhos da criança enquanto passa pela janela traseira direita, seu rosto
enrugado e vermelho, ela com o rosto vazio de intenções enquanto por um
momento todo o terreno e toda a rua brilhavam intensamente, um tom não
conotativo na cabeça dela, como um sino tocado. Interessante como
algumas pessoas ficam paradas junto do tanque enquanto ele enche e outras
como a atarracada ali na frente não conseguem, têm que se ocupar de
pequenas tarefas, como passar o rodinho no para-brisa ou usar as toalhas
azuis para limpar as lanternas traseiras, incapazes de ficar paradas
esperando. O homem abastecia no manual, arredondando para um valor
fechado. Metade do rosto da criança ficava cortada pelo reflexo no vidro do
sol e da bandeira que batia bem alto sobre ela. E ela gostava do som de seus
próprios passos, o som sólido e a sensação do impacto nos dentes. O tubo
#6 era duro o bastante para entrar até o fim e macio o suficiente para fazer
pouco barulho quando introduzido; três na base cuidavam de qualquer
árvore.
A parte interna do Tumor tinha a luz descolorida de uma mercearia e
estava cercada das portas de vidro para refrigerantes ao fundo e dois
corredores de café de varejo calibre industrial e comida para animais de
estimação e salgadinhos E-W com as compras variadas e os cigarros atrás
do balcão laranja onde a moça de camisa de uniforme jeans e com uma
bandana vermelha atada à moda dos escravos com minúsculas orelhinhas de
coelho por trás perguntava quanto combustível e somava o preço da cerveja
e do tabaco e passava o troco por uma rampinha anodizada para cair num
copinho de aço. Atrás da porta que ficava no fundo do segundo corredor
ficavam a sala do estoque e o escritório do gerente. As lojas das cadeias
maiores tinham introduzido câmeras de vídeo, mas esses Tumores de
Acostamento eram cegos. Havia mais cinco cidadãos dos EUA na loja e aí
um sexto quando a mulher desprovida do filho entrou para pagar, e
enquanto Toni selecionava itens suficientes para encher uma sacola ela
observava as interações ou não interações de todos eles e sentia de novo a
familiaridade de que sempre supunha que gozavam todos os desconhecidos
nos ambientes em que entrava, a convicção de que todos naquele ambiente
se conheciam bem e sentiam a conexão e a semelhança que compartilhavam
em virtude do que tinham em comum, a qualidade de não ser ela. Nenhum
deles foi nem minimamente afetado por ela. Uma lata de Carne Gourmet
SuperCão custava 69c, o que, considerando o varejo e os custos, ainda eram
20% de margem de pura papa fina. A mulher do balcão, que tinha trinta e
pouquinhos anos e incorporara seu peso corpóreo a uma persona de mãe
caipira que incluía bochechas róseas, uma risada que lembrava um trovão e
uma sexualidade mundana e bem-humorada, perguntou se ela tinha
abastecido hoje.
“Estou de tanque cheio”, Toni disse. “Parei pra usar o telefone e entrei
pra sair desse vento desgraçado!”
“Ainda está um sopro lá fora pelo que eu estou vendo.” A mulher do
balcão sorriu, somando a ração que Toni ia jogar fora numa NCR 1280
comprada com desconto que somava os recibos num rolo que durava um
dia e que eles guardavam numas latinhas que tinham que ser levadas para
fora para desenrolar se fosse para fazer uma auditoria de campo, com o
escritório cheio de tiras de 25 metros de papel como um navio de cruzeiro
decorado de bandeirolas ao partir.
“Estava que quase me joga pra fora da estrada quando eu cheguei”, Toni
disse. A mulher do balcão parecia não perceber que Toni Ware estava
afetando o mesmíssimo sotaque e a cadência de sua própria fala. A
suposição de que todo mundo é como você. De que você é o mundo. A
doença do capitalismo de consumo. O solipsismo complacente.
“Arranjou uns cachorrinhos que comem bem, hein?”
“Nem me fale. Eu que o diga.”
“Ficou $11,80.” O sorriso bem treinado para parecer sincero. Como se
Toni fosse ser lembrada um segundo depois de ter forçado a porta e saído
trôpega sob a bandeira como todos os outros. E por que o convencional
ficou? A criatura mirrada atrás cheirava a óleo capilar e ao café da manhã
ambiente; ela imaginou partículas de carne e de ovos nos pelos daquele
rosto e por baixo daquelas unhas enquanto entregava uma cédula do
Tesouro.
“A grandona, de vinte”, a mulher do balcão disse, como que sozinha,
apertando os botões com a ligeira força extra que uma 1280 demanda.
Um momento depois Toni já estava fora da loja, abrigada dos olhos de
quem estivesse no terreno graças à máquina de gelo Kluckman, com a parte
de cima da sacola de plástico chicoteando o ar e batendo entre os pés de seu
sapato enquanto ela tirava um Kleenex de viagem da bolsa, rasgava pela
metade, de novo, e enrolava um quarto do lencinho bem apertado em volta
do dedo mínimo, cuja unha era perfeita e tinha forma de amêndoa, pintada
de um vermelho arterial. E cavidade nasal direita adentro e à volta toda
numa espiral abrangente, e o que saiu incluía um coágulo de cor-padrão,
simultaneamente viscoso e duro e até com a minúscula linha de um capilar
na borda direita. A única coisa que alguém numa loja ou numa fila podia
perceber nela era uma vaga abstração afetiva, uma espécie de descolamento
que não era o descolamento da paz ou de uma relação pessoal com Nosso
Senhor Jesus Cristo. O qual ela limpou cuidadosamente na lapela esquerda
de seu casaco cor de creme, com pressão suficiente para lhe dar alguma
extensão mas não o bastante para comprometer sua aderência ou distorcer o
nougat em seu coração. Uma uniformidade plastificada em torno dela que
lembrava ar processado, comida de companhias aéreas, som transistorizado.
Isso era meramente para fazer hora até que seu pedido na Butts Hardware
fosse processado. A sala de estoque quando ela entrou só tinha coisas de
papel e caixas grandes de papelão e bórax na junção piso-parede por causa
das baratas, e a porta do escritoriozinho do gerente com suas pinups
adesivas e um pôster Paz com Honra de uma águia com um nariz de rampa
de esqui e a barba por fazer estava entreaberta e emitia aroma de Dutch
Master e o lamento apaziguado da música country num radinho de bolso. O
gerente do período diurno, que não tinha crachá com seu nome (a mulher do
balcão era “Cheryl”) e estava com os pés para cima lendo exatamente o que
ela teria imaginado, e que tinha uma testa alta e convexa e um desses ritmos
de piscar velozes e fortes demais como alguém quase fazendo cara de
assustado quando piscava e que significava que alguma coisa estava
neuralmente errada, só um tantinho, tirou os pés da mesa e levantou com
rangidos complexos da cadeira quando as tímidas batidinhas dela e a força
com que ela praticamente cambaleou porta adentro escancararam toda a
inocência do choque que alguém haveria de admitir na personagem dela.
Ela eliminara a cor do rosto e ficara de olhos abertos no vento quando saiu
da lateral para a frente da loja de novo, o que a deixou de olhos úmidos, e
estava com os ombros encolhidos e os braços estendidos numa atitude de
tácita profanação. Parecia tanto maior quanto menor do que de fato era, e o
gerente com as piscadelas que pareciam um tique não se mexeu nem foi até
lá nem encontrou dentro de si a força necessária para reagir nem quando ela
se preparava, um processo que foi sôfrego e hipóxico, e esboçava uma
história em que era uma freguesa assídua ou melhor ainda habitual desse
Tumor de Acostamento QWIK’N’EZ e tinha sempre recebido não somente o
que lhe rendia o dinheirinho suado que ganhava fazendo costura em casa, o
que como mãe solteira de duas crianças era tudo que conseguia fazer,
embora tivesse formação de secretária jurídica, resultado de cinco anos de
estudos noturnos durante o tempo em que cuidava da mãe cega nos
momentos finais de sua longa doença terminal, não apenas mercadorias e
gasolina mas sempre um atendimento simpático e educado das meninas do
balcão, até que — aqui um arrepio fez o gerente, que ainda segurava o que
restava de algum produto Little Debbie na mão esquerda, a quase dar a
volta na mesa para consolá-la até ver o caos de cinco centímetros na lapela
esquerda dela, que era resultado de vários dias sem cotonetes e com a
sensação constante de quase espirro e era de fato um coágulo mucal de um
horror de fazer parar relógios —, até que hoje agora mesmo, agorinha, ela
nem sabia como dizer aquilo — seu impulso mais forte tinha sido
simplesmente dirigir quase cega pelas lágrimas até chegar em casa para
jogar o casaco cuja aquisição lhe custara meses de privações para poder
levar os dois filhinhos para a igreja usando algo de que eles não tivessem
vergonha na lixeira do cortiço financiado e passar o resto do dia rezando a
Deus para que Ele a ajudasse a tentar compreender a incompreensível
violação que acabara de sofrer e a evitar para sempre doravante aquele
QWIK’N’EZmovida por degradação e horror mas não, ela sempre tinha feito
boas compras e sido bem atendida nesse estabelecimento e portanto sentia
que era quase seu dever, por mais que lhe fosse constrangedor e degradante
assumir, contar a ele o que a funcionária que operava a caixa registradora
tinha feito, ainda que não fizesse sentido, muito menos para ela mesma, que
certamente parecia normal e até simpática e com quem tinha tentado ser
agradável e não tinha feito mais do que tentar pagar pelos itens que decidira
comprar aqui, que tinha, enquanto ela pegava suas moedinhas e ela a fitava
direto nos olhos tinha, tinha, com a outra mão metido o dedo no nariz e aí
estendido o braço e… e… aqui se entregando completamente aos soluços e
a uma espécie de uivo agudo e olhando para a lapela de um casaco do qual
dava a impressão de simultaneamente tentar se afastar horrorizada como se
o único motivo de ainda não ter tirado o casaco lambrecado de verde era
não conseguir suportar a ideia de tirar aquilo, sentindo as piscadas clônicas
concentradas na pelota para registrar até o risco de sangue rubro que o
deixava mais horrendo, e então se virando para cambalear como que
transtornada demais para prosseguir ou insistir numa compensação, saindo
se esgueirando até que a canção transistorizada de uísque e perda tivesse
sumido e ela estivesse de novo sob a luz descolorida da própria loja, com o
som dos saltos do sapato no corredor bem mais veloz e mais satisfatório
enquanto o aceno e o tchauzinho-até-a-próxima da mulher do balcão iam
sumindo sem resposta e o gerente ficava ali parado tentando sair de um
estado de choque para um estado de fúria e os meninos calados e dóceis
como gárgulas no banco de trás mesmo quando ela entrou e praticamente
disparou dali, caso o gerente tivesse chegado até a loja, coisa de que ela
duvidava, entrando derrapando na Frontage Road com uma força tão
histérica que um cachorro foi lançado sobre o outro, ela se firmando com
um braço direito apoiado na sacola de tijolos, semicantarolando o refrão da
canção country, casaco profanado já saindo de um ombro rumo à caixa de
correio.
§ 48

“É tudo meio nebuloso.”


“Isso certamente é compreensível, senhor.”
“Acho que eu preciso te dizer que estou bem transtornado.”
“Nós certamente podemos imaginar.”
“Não. Não. Eu estou falando por dentro. Transtornado por dentro.”
“Acho que eles previram isso, senhor, e que toda possível…”
“Pra baixo mesmo, sabe.”
“Talvez se o senhor pudesse apenas nos transmitir a informação como se
estivesse repassando dados, senhor.”
“Você sabe: pra baixo? Você está me entendendo?”
“São só os efeitos, senhor. Não precisa ter pressa.”
“Era o piquenique anual. É isso que vocês querem?”
“Isso nós já sabemos, senhor.”
“Todo ano, no verão. No Coffield Park, financiado por Obrigações do
Tesouro. O piquenique anual das Análises. Frango frito mumificado, salada
de batata. Uns ovos recheados acho que com páprica que deixa uns
pontinhos que parecem sangue seco — um horror. A carne pro almoço
disposta em leque nas mesas. Um monte de proteína. Os analistas comem
que nem uns animais selvagens, como sei que vocês sabem. O pessoal da
Auditoria é mais frugal. Vocês devem saber disso. A variação de…”
“Nós certamente recebemos os relatórios, senhor.”
“E umas coisas grelhadas. Aquelas grelhas esquisitas fixas que ficam nos
parques, pode apostar que financiadas pelas Obrigações também. Salsicha,
uns hambúrgueres empilhados num papel branco brilhante. Enxames
gigantescos e nuvens de insetos na comida em cima da mesa. Moscas
esfregando as perninhas. Vocês sabem o que significa quando uma mosca
faz isso? Vespas nas latas de lixo, sobrevoando. Melancia com formiga.
Quando ela esfrega as pernas desse jeito?”
“…”
“Um hambúrguer cru é que nem sangue na água pra um inseto, gente.”
“O senhor estava inventariando os itens do piquenique, senhor.”
“Chá gelado, Kool-Aid. Tinha refrigerante numa caixa térmica que o GG
trouxe. Umas gelatinas de cores primárias. Vermelhas e verdes ou
vermelhas-e-verdes. É pro moral do pessoal, o piquenique anual, mudar o
contexto de interação.”
“Nada de errado num piquenique, senhor.”
“Ver a família de todo mundo, as crianças. As crianças. Você não imagina
que os GS-9s têm filhos, brincam com os filhos, os Linha 40, pequenininhos.
E mesmo assim eles estão lá todo ano. As mães inventam brincadeiras. E
garrafas de cerveja numa caixa térmica que o marido da Marge van Hool
trouxe.”
“Nós conversamos com o sr. Van Hool, senhor.”
“E mosquito por toda parte. Do tipo terrível, que projeta sombra e tem
perna cabeluda. Dá pra você ouvir esses mosquitos mas não dá pra ver. Até.
O sangue atrai tudo quanto é — e os caras da Auditoria, os caras da
Auditoria estavam brincando com algum joguinho de criança com aquele
disco voador da Hasbro. Um disco aerodinâmico, bem colorido, da Hasbro,
onde foi que…?”
“Um frisbee, talvez, senhor?”
“A Hasbro agora tem uma divisão que eu acho que é de Diversões
Unidas, supostamente com sede em St. Paul, mas com significativas contas
fora do país.”
“…”
“E vocês sabem tão bem quanto eu o que isso normalmente quer dizer.”
“E o senhor não percebeu nada fora do comum no que se refere ao chá
gelado, à gelatina.”
“Então eles acham que foi a gelatina.”
“Isso não seria questão para o nosso departamento, senhor.”
“A gelatina tinha uns marshmallows bem pequenininhos até onde me
lembro. Uma daquelas cores primárias bem fortes, a gelatina. As moscas
deixaram em paz, se bem que aqueles mosquitos sanguinolentos Jesus
amado se você…”
“Sim, senhor.”
“Eu preciso te dizer que estou extremamente agitado e transtornado.”
“Nós estamos registrando esse fato pela segunda vez, sr. Diretor, para
deixar bem marcado.”
“Acho que os efeitos ainda não desapareceram completamente.”
“Só continue, por favor, lembrando que não temos poder sobre isso,
senhor.”
“Eu falei com os representantes da lei, acho, a não ser que fossem os
efeitos.”
“Isso foi várias horas atrás, senhor. Nós somos do Serviço. Eu sou o
agente Clothier e esse é o agente especial Petaypelor.”
“É um prazer conhecê-lo, senhor, apesar de eu lamentar muito que tenha
que ser nessas circunstâncias.”
“Vocês são da DIC?”
“Não, senhor, nós somos das Inspeções, lá de Chicago, Posto 1516.”
“Eles trouxeram vocês.”
“Todo mundo está bem preocupado, senhor, como é compreensível.”
“Um mosquito mal passa de uma agulha com asas.”
“Eu não sei bem como responder a isso, senhor.”
“Não tinha ninguém da DIC no piqueninque.”
“Não, senhor, como o senhor deve lembrar a DIC tinha um serviço interno
de contabilidade forense lá na Regional naquele fim de semana, senhor.”
“Eles não se misturam muito, via de regra, o pessoal da DIC.”
“Não, senhor.”
“Ficam meio de canto, se é que vocês me entendem. Vomitando.”
“Vomitando, senhor?”
“Quando elas esfregam as perninhas. Parece inócuo, mas na verdade as
moscas estão vomitando sucos digestivos nas pernas e aplicando aquilo à
comida. É um dos animais que pré-digerem. Mosquito é igualzinho.”
“Senhor, eu…”
“Vômito dentro de você. É isso que levanta aquele calombo. Eles estão
pré-digerindo o sangue antes de te chuparem. Umas coisonas grandalhonas
de perna cabeluda. Elas se reproduzem no mato, sabe. Umas agulhas com
asas. Vetor de doenças. Civilizações inteiras derrubadas. Leiam um pouco
de história.”
“Nós estamos dando a devida importância ao problema dos insetos aqui,
senhor.”
“Eu estava na grelha. Salsichão e hambúrguer. Pelo menos um tempinho.
Me deram um avental. Alguma coisa engraçadinha escrita na frente. Uma
certa impertinência que a gente deixa passar nos piqueniques, na festa de
Natal. Deixar todo mundo mais à vontade, se é que vocês me entendem.”
“O senhor estima que tenha ficado na grelha durante os primeiros
momentos do piquenique, então, o que confirma o relato do sr. Van Hool.”
“O chá gelado foi feito ali mesmo, não aquela coisa horrorosa em pó com
uma espuminha em cima.”
“O chá gelado teria sido consumido por quantas pessoas, na sua opinião,
ali no piquenique, senhor?”
“Pletoras. Quente pacas, sabe? Ninguém quer refri quando está calor, fora
as crianças, claro, que aí elas ainda ficam com a boca toda grudenta, que aí
o açúcar do refri atiça os mosquitos.”
“Ave-maria, Clothier, os mosquitos de novo.”
“Pecapelapeapebopeca.”
“Nada contra a DIC, sabe. Parte indispensável do mecanismo. Uns
sujeitinhos trabalhadores e sérios. Apesar daquela montoeira de casos
condenados, um desperdício horroroso de recursos, a Regional tinha umas
cifras de…”
“Então, se havia um denominador comum, senhor, o senhor diria que era
o chá gelado, é isso que o senhor está nos dizendo?”
“Todo mundo bebeu. Um calor do cão. Quem é que quer tomar cerveja
com uma lua daquelas? Vocês, algum de vocês está ouvindo um… um
barulhinho?”
“Mas ao mesmo tempo o senhor está dizendo que não viu ninguém
levando o chá gelado para a área do piquenique nem fazendo o chá gelado.”
“Uma urna. Um jarro grande com torneira. De plástico laranja
granuladinho, com um jorro que parecia de um barril, não é?”
“O chá gelado, o senhor está dizendo.”
“Eu não lembro de já ter me sentido tão agitado assim. Parece que eu.”
“Eles disseram que vai durar um tempo ainda, senhor, enquanto o nível
se estabiliza na circulação.”
“Disseram que daqui a pouquinho o senhor vai estar normal, senhor.”
“Tentando ficar feliz por estar ajudando. Os nossos rapazes de farda.”
“Clothier, que tal…”
“O senhor estava nos ajudando a identificar a urna, senhor, do chá
gelado.”
“Um jarrão laranja que dizia Gatorade ali do lado. Umas das crianças
mais velhas se animaram; acharam que era Gatorade.”
“Nenhuma criança bebeu o chá.”
“Os analistas chamam os filhos de Linha 40. Como todo mundo sabe é
onde você registra a CCDC do Formulário 2441 na 1040. Tinha umas
crianças jogando Cobranças. Perto das quadras de jogo de ferradura. Mais
velhas. Arresto de brinquedos, uma avaliação de risco financeiro e
apreensão das coisas das crianças menores; teve o chororô de sempre.”
“E o senhor diria que percebeu os primeiros efeitos estranhos ou alguma
coisa fora do comum quando, então, senhor, se o senhor tivesse que dizer?”
“Uma atividade terrível de ensinar pras crianças. As Cobranças eram
problema do Ghent. Eram do Ghent. Eu evito as Cobranças.”
“Compreensível do nosso ponto de vista, senhor.”
“Isso aí são óculos de sol, então?”
“Senhor, nós não estamos usando nenhum tipo de proteção ocular.”
“O meu nariz está coçando que é uma loucura.”
“Infelizmente não podemos encostar em nenhuma parte da sua pessoa,
senhor.”
“A minha cabeça normalmente é bem mais organizadinha do que isto.”
“Por favor, vá com toda a calma necessária.”
“Parecia um horror total. Umas nuvens. Nuvens, neves, névoas de
mosquitos. E eles são vetor de doença sabe. Leiam um pouco de história. Se
reproduzem nas árvores. Quando eu fui olhar numa das sombras, duas
criancinhas menores estavam cobertas. Uma névoa de mosquito em volta
das duas, nos olhos, no nariz, deixando elas sem ar — eu vi uma delas cair;
não deu nem pra gritar. A Linhazinha 40 do Pendleton.”
“Então aí o senhor diria que esse foi o primeiro sinal observável de
algum efeito, então, senhor?”
“Eu estava com um garfão bem comprido, sabe?”
“Pra grelha, não é verdade, senhor?”
“Vamos levantar acampamento, Norm, meu chapa. Esse cara ainda está
no mundo da lua. Coça o nariz dele e simbora.”
“Peespepepera, Petaypelor.”
“O Culex e a malária. O Aedes aegypti e a dengue. Podem ler. Está
escrito. Com ou sem garfo.”
“Para o seu trabalho na grelha do quadrante sudeste da área de
piquenique segundo este esquema aqui, senhor.”
“Um garfo comprido pacas. Acho que vocês não estão entendendo. Com
uns dentes serrilhados. Fazia sombra.”
“E por acaso — por acaso o senhor pôde observar nesse momento algum
dos outros agentes ou membros das famílias agindo de alguma maneira
incomum ou mexendo no chá gelado de alguma forma, senhor?”
“Se bem que eu percebi os joguinhos americanos. Nas mesas. De pano
xadrez. E só tinha faca. Nada de colher, nada de garfo. Eu estava com o
garfo. Faca, prato, faca, faca. Três facas medonhas pra cada pessoa. Em
outros anos às vezes a brisa soprava os pratos da mesa. Mas esse ano não,
isso eu vi.”
“Então isso era um efeito, ou o senhor estava observando um efeito, será
que o senhor consegue dizer se era uma coisa ou outra?”
“O Fechner tem um olho de vidro.”
“Seria o Agente Fechner do Serviço, senhor. O senhor ficou observando
enquanto ele punha as facas na mesa?”
“Perdeu um olho na guerra. Ele diz assim: ‘Perdi um olho’. Que ideia.
Digam lá, rapaziada, será que alguém não viu meu olho por acaso?”
“Portanto o senhor não tinha observado nenhuma pessoa ou pessoas
pondo de fato essas facas todas na mesa, então, senhor?”
“Norm, meu chapa, que facas? Vamos levantar acampamento.”
“Isso é vocabulário de guerra, se não estou enganado. Agente Taylor.
Você acha que eu não sei o que é isso?”
“É Petaypelor, senhor. Prazer em conhecê-lo, senhor, apesar de eu
lamentar muito que tenha que ser nessas circunstâncias.”
“Eles estavam saindo das árvores.”
“Era rapel, senhor. A incursão pode ou não ter sido uma manobra tática,
até aí a gente já sabe.”
“Teve arremesso de ovo e corrida do saco — o ovo não se mexeu; ficou
parado em pleno ar. A corrida de três pernas estava acontecendo quando
eles saíram das árvores e o pessoal tentou correr, tentou chegar até as
crianças, mas estavam de pernas amarradas. Foi uma carnificina, os
mosquitos — e eu sacudindo aquele garfão.”
“E o senhor disse que observou o agente Fechner do Serviço sofrendo os
efeitos do chá adulterado.”
“Então era o chá.”
“Não é a nossa área, senhor, sinto muito. Nós estamos reunindo
informações.”
“Sobre as facas.”
“Um belo conjunto de facas mesmo, senhor, o senhor se incomoda de dar
uma olhada nelas?”
“Quem é que vocês são de verdade? Você são homens?”
“O senhor estava dizendo que o agente Fechner e o seu olho de vidro.”
“Que ele estava na frente da caixa térmica de cerveja do Van Hool; tinha
tirado o olho de vidro, então era só o buraco.”
“E será que por algum acaso essas facas eram mais ou menos… assim,
senhor?”
“Pepapecipeenpecipea, Petaypelor. Pessem pecorpetar peapeinpeda.”
“Vocês acham que eu não falo latim?”
“Senhor, que bom que o senhor fala latim.”
“Quem é esse sujeito do seu lado esquerdo e direito?”
“Tente se concentrar, senhor. Eu sei que é difícil.”
“O Fechner estava na frente da caixa térmica, tinha tirado o olho e
estava… estava abrindo garrafas de cerveja com o buraco do olho. O buraco
do abridor. Pega uma garrafa, dá uma viradinha. Os Linha 40 só olhando —
era uma coisa horrorosa!”
“O agente Fechner vai ficar bem, senhor. Eles acharam o olho e ele vai
ficar novinho em folha.”
“Estava chovendo, senhor?”
“Colocando a tampinha no buraco e aí virando a garrafa pra baixo com
um tranco, aí as crianças gritaram e bateram palmas porque a tampinha
ficou no buraco. Um sol cinza ali naquele olho. Olho olho!”
“Por mim a gente só corta fora de uma vez. Está bem ali, Clothier, está
vendo?”
“Escopolamina segundo vocês. Burundanga. Parentis. Mens sano in
corpus. E nada de faquinha de plástico não. E me permitam dizer que vocês
têm uns crânios lindos aí por baixo dessa pele, rapazes.”
“E a última vez que o senhor viu o agente Drinion foi antes da incursão
tática, senhor, ou depois?”
“O Drinion estava à mesa. Segurando lugar na mesa, como se diz. Quase
dormindo, parecia. O Drinion nunca participa. Eles não estavam encostando
nele — os mosquitos. Ele com o queixo na mão.”
“O senhor não quer dizer literalmente, não é, senhor?”
“Perceba a borda afiada. Perceba o comprimento de dezoito centímetros,
seu coió. Perceba as cinco estrelas na lâmina e o lugar onde diz Inoxidável,
Enrijecida a Frio, Zwilling e J. A. Henckels, Solingen FRG. Você sabe o que
é isso aqui?
“Eu ainda estou me sentindo bem mal. Os analistas — uma maçaroca de
gente se contorcendo e rolando pelo chão.”
“Por causa da corrida de três pernas, não é, senhor, o senhor não está
falando do que a Miriam chamava de sua ‘terceira perna’, lá no tempo em
que ela queria a tal perna, senhor, não é, senhor, antes dela pegar nojo da tal
perna.”
“Eles estavam fazendo rapel. Cordas nas árvores. Victor Charles. Uma
maçaroça de analistas GS-9 se contorcendo — copulação em massa entre os
analistas que eu pude observar pessoalmente — está tudo lá no meu
relatório num Formulário 923(a) pra observações pessoais de conduta
inadequada; vocês lá das Inspeções sabem tudo desses 923(a)s, não é
verdade.”
“O senhor observou isso lá da grelha, então, senhor.”
“Eu observei o efeito do chá nos buracos abertos e na copulação e
encoxação em massa alucinada e meio com jeito de orgia embaixo das
árvores, em cima da mesa, embaixo do ovo arremessado, dos dois lados da
gruta das ferraduras. Tinha uma bunda de verdade aparecendo embaixo da
minha grelha.”
“E eu acho que o senhor disse que estava usando um avental, senhor.”
“Corta. Arranca isso de uma vez, Clothier.”
“Então a essa altura todo mundo com a possível exceção das crianças
estava sofrendo efeitos claros, senhor, é o que o senhor está dizendo.”
“Até as salsichas estavam se contorcendo, dando estocadas. Roliças,
lúbricas, reluzentes e molhadas ali na grelha, na bandeja de alumínio da sra.
Kagle, pelo ar. Eu com o garfo e observando aquilo tudo até que lá das
árvores onde eles se reproduzem! Reprodução, sem parar, reprodução!”
“Acho que já temos um bom retrato da situação do seu ponto de vista,
senhor.”
“O senhor sabe que não passa, senhor. Não tudo. O senhor vai ficar desse
jeito. Olhe pra mim. O senhor vai ficar com essa aparência, senhor. Sempre.
A gente veio dizer isso pro senhor. A gente corta agora mesmo se o senhor
quiser. É só pedir.”
“Agulhas com asas. Facas com asas, dançando todas ali naquelas
pontinhas afiadas, névoas de mosquitos escurecendo tudo. O céu não é mais
o céu.”
“Ele não quer, Clothier.”
“O ar não é mais branco por causa daquilo.”
“Vai se acostumando, sua bicha velha impotente. Isso mesmo: bicha.”
“Penão, Taylor.”
“Eu vi a minha mulher arrancar a própria pele, sabe? Já que você chegou
até aqui, hein? Descascar a pele branca do braço inteirinha como se fosse
uma luva de ópera. Tirar do topo do rosto até o queixo.”
“Mais ou menos: assim, senhor?”
“Acho que eu vou passar agora para o nosso próximo entrevistado,
senhor. Muitíssimo obrigado pelo seu tempo.”
“Como se ainda fosse seu, hein, Dwitt? Hein?”
“Eu estou simplesmente transtornado de maneira inédita. Acho que isso
não vai melhorar.”
“Você sabe o que os médicos fazem, não sabe? Quando você está
dormindo. Do topo pra baixo, como se você fosse uma uva velha molenga
lá no fundo da geladeira que alguém esqueceu de jogar fora. DeWitt, eu já
te disse isso milhões de vezes.”
“Eu vou registrar isso, senhor, assim como o agradecimento das
Inspeções pela sua cooperação em tais circunstâncias.”
“Bom, então não fique aí parado à toa e diga alguma coisa. Diga o que
eles querem senão eles vão cortar fora. Eles praticamente disseram isso com
todas as letras. Você é bobo por acaso?”
“E eu sei que eles vão voltar e vão fazer tudo o que for possível para o
seu conforto até isso sair, senhor. Quer dizer até passar. O nível no sangue.”
“Eu estou pelado, sabe. Por baixo disso tudo.”
“Pode ser que a gente precise e pode ser que a gente não precise falar
com o senhor de novo. Quando os efeitos estiverem menos perceptíveis
digamos assim.”
“Que nem um pintinho. Peladinho. Em pelo.”
“Fala logo pra eles, anda. É alemão.”
“É e eu tenho sim, eu tenho um pênis. Pênis.”
“Eu odeio essa palavra, Clothier.”
“Palavra horrorosa, hein? Pênis? Parece uma coisa que só ia dar pra
pegar com uma luva de borracha bem grossa e olha lá.”
“Ah DeWitt, seu esperobão! Eu ainda sou mulher, sabe!”
“Digam comigo, rapazes. Pênis pênis pênis pênis pênis.”
“Você não esqueceu, ah DeWitt, que lindo.”
“Tente descansar, senhor.”
“O nome dele é — eu não vou te dizer. Que tal essa agora? Não vou
não!”
“Eu lembro que você olhava pra mim desse jeito.”
“E tem nome. O nome dele é — eu não vou te dizer. É meu. É a minha
terceira perna, como diz a Miriam. Mas nunca da testa. Não é uma máscara.
Eles começam pelo queixo. Levantadinho. E lá vem a agulha de asas!”
“Pevapemos, Petaypelor?”
“Meu probóscide está coçando pra eu poder enfiar bem fundo antes de
vomitar.”
“Não em mim, DeWitt. Parece que você está vomitando dentro de mim.
Até a sua cara é de uma pessoa doente. Se você pudesse se ver, você…”
“A Miriam é frígida sabe.”
“Eu vou trancar quando sair, senhor, mas é só procedimento de praxe.”
“Desde o nosso terceiro. Um parto horrível. Natimorto. Roxo e frio. Sabe
que nome a gente deu?”
“Taylor?”
“Isso mesmo. Taylor. Um belo de um Clothier que nem o papai.”
“Eu não quero mesmo. Não me torture por não querer, eu estou
implorando.”
“Vamos… está aqui, senhor.”
“Nenhum interesse depois. Frígida. Seca como um bom martíni, Bernie
Cheadle diria.”
“Então tchauzinho, senhor.”
“Graças a Deus que a gente tem o nosso trabalho, hein? E os hobbies. As
oficininhas em casa, não é mesmo? Pra fazer agulhas e asas pra
comunidade, não é, Taypelor?”
“Só que eu vou voltar com mais uma dessas se o senhor não ficar
quietinho deitado aí que nem uma criança boazinha, senhor, esperando eles
virem pegar, senhor, pro senhor poder ficar: ASSIM! Só um puxão bem
firme e lá se vai.”
“Ela diria Dê o puxão você mesmo, seu velho degenerado.”
“Quase nem sentiu nada. O pessoal vai rolar de rir dessa, hein, senhor,
não é verdade?”
“Eu consigo puxar o ar, mas parece que não dá pra soltar.”
[Vozes no corredor.]
“A minha oficina é organizada, é mesmo, vocês tinham que ir ver.”
[Vozes no corredor.]
“Eu consigo achar qualquer coisa lá.”
[Vozes no corredor.]
“Vocês vão ver.”
[Vozes no corredor.]
§ 49

Fogle estava sentado aguardando na pequena sala de espera diante do


escritório do Diretor. Ninguém sabia o que significava o fato de Merrill
Errol Lehrl ainda estar usando o escritório do sr. Glendenning. O sr.
Glendenning e a sua equipe sênior estavam lá na Regional; podia ser só
uma coisa cordial de polidez profissional o Lehrl ainda estar usando o
escritório do sr. Glendenning. A sra. Oooley não estava à sua mesa na
recepção; em vez dela à mesa estava um dos assistentes de Lehrl cujo nome
ou sobrenome era Reynolds. Ele tinha deslocado um pouco as coisas de
Caroline por ali, dava pra ver. A área tinha um grande tapete cujos padrões
geométricos, que eram intricados, faziam o tapete parecer turco ou
bizantino. As lâmpadas de teto estavam apagadas; alguém tinha distribuído
vários abajures pela sala, criando atraentes oásis numa atmosfera geral de
melancolia. Fogle achava a meia-luz melancólica. O outro assistente do dr.
Lehrl, Sylvanshine, estava numa cadeira logo à direita de Fogle, de modo
que os dois assistentes estavam logo além da periferia da visão de Fogle e
não podiam ser vistos ambos ao mesmo tempo, e ele tinha que virar a
cabeça um pouquinho para olhar diretamente para qualquer um deles. O que
se via forçado a fazer, e bastante, porque eles pareciam estar lhe passando
instruções prévias por alguma razão. Coordenadamente. Mas pareciam
também, de certa forma, estar conversando um com o outro por cima de
Fogle. Quando se dirigiam diretamente a Chris Fogle, tendiam a afetar certo
didatismo, mas ao mesmo tempo a coisa não era de todo desinteressante.
Tanto Reynolds quanto Sylvanshine tinham muita informação a respeito das
trajetórias de carreira e dos currículos de vários poderosos administradores.
Era o tipo de coisa que você podia contar que os assistentes na Nacional
conheciam a fundo; eles eram meio parecidos com cortesãos das antigas.
Quase todos os nomes das pessoas que eles mencionavam eram pessoas da
Nacional; Fogle só tinha ouvido falar de uns poucos. Como era de praxe no
Serviço, os assistentes falavam de maneira veloz e empolgada sem que o
rosto deles demonstrasse empolgação e nem mesmo interesse pelo tema de
que estavam tratando, que começou como uma pequena aulinha sobre as
duas diferentes maneiras pelas quais uma pessoa podia subir e alcançar
proeminência e grande responsabilidade na estrutura burocrática do IRS. A
aerodinâmica burocrática e os modos de progresso interno eram tópicos de
interesse muito comuns entre os analistas; não ficou claro se Reynolds e
Sylvanshine não sabiam que Fogle já conhecia boa parte daquilo tudo ou se
não davam bola. Fogle imaginou que onde quer que fosse o Posto em que
aqueles dois estavam lotados, eles eram notórios malas.
Segundo os dois assistentes, uma forma de progredir para níveis
gerenciais acima de GS-17 era o acúmulo de lentas e constantes
demonstrações de competência, lealdade, iniciativa razoável, habilidades
inter-humanas com as pessoas que estivessem acima e abaixo de você, subir
lentamente os degraus das promoções.
“A outra, menos conhecida, é o estalo.”
“Estalo significa aquela ideia ou inovação repentina e extraordinária que
faz o pessoal dos níveis mais altos prestar atenção em você. Até os dos
níveis nacionais.” Dava a impressão de que eles estavam macaqueando um
ao outro.
“O dr. Lehrl é do segundo tipo. Do tipo do estalo.”
“Deixa a gente explicar o contexto aqui.”
“Faz um tempinho. Será que eu especifico o ano?”
O ritmo da troca de réplicas de Reynolds e Sylvanshine era muito
preciso. Não havia tempo perdido. As perguntas tinham um vago quê de
encenação. Se o próprio dr. Lehrl estava atrás daquela porta de vidro
jateado, não estava claro se Reynolds e Sylvanshine achavam que ele podia
ouvir o que estavam dizendo.
“Os detalhes são desimportantes. Ele não passava de um carinha de nível
básico num grupo de auditoria num distrito qualquer no meio do nada e teve
uma ideia.”
“Ele não lida nem com as 1040 ali naquele grupo, veja bem. Ele está nas
microempresas e nas empresas S.”
“Só que a ideia se refere às 1040.”
“Especificamente às isenções.”
“Uma área que não é desconhecida pra você, eu imagino.” Nenhum deles
tinha sotaque de espécie alguma.”
“Você, por exemplo, pode ou não saber que até 1979 quem preenchia as
fichas podia declarar os dependentes só pelo nome.”
“Na 1040 daquela época.”
“Dependentes. Filhos, idosos sob os cuidados do declarante.”
“Acho que dá pra supor que ele sabe o que é um dependente, Claude.”
“Mas você conhece a 1040 daquele período? O que o declarante tinha
que fazer era colocar o primeiro nome da criança na Linha 5c, nomes e grau
de parentesco dos outros na 5d.”
“Agora, claro, é tudo 6c e 6d. A gente está falando de 1977.”
“Mas a questão é que é só nome e parentesco. O que já dá pra ver o
problema.”
“Não tem como verificar”, Sylvanshine disse.
“Olhando agora, parece um absurdo”, Reynolds disse.
“Mas é depois do estalo que a coisa parece tão simplória. Já que não
tinha como verificar.”
“Não mesmo. Só nome e parentesco.”
“Era no fio do bigode. Não tinha como garantir de verdade que os
dependentes existiam.”
“Não de um jeito eficiente, pelo menos.”
“Ah claro, claro, eles imaginavam que o declarante imaginava que eles
tinham como verificar, mas no fundo a gente não tinha como verificar. Não
mesmo. Não de um jeito definitivo.”
“Especialmente se você pensar que o processamento de dados estava
num estágio superprimitivo. Você podia até conferir a consistência dos
dependentes listados em anos sucessivos, mas era lento e não era
conclusivo.”
“Um filho podia ter completado dezoito. Um dependente idoso podia ter
morrido. Um filho novo podia ter nascido. Quem é que ia correr atrás disso
tudo? Não valia as horas-homem pra ninguém aqui.”
“É bem verdade que se desse auditoria e tivesse dependente inventado
ali, o declarante estava bem ferrado e tinha até consequências criminais
além de juros e multas. Mas isso era só na base do acaso mesmo. Os
dependentes por si só não tinham como detonar uma auditoria.”
“Cada dependente eu acho que era duzentos dólares a mais na dedução-
padrão.”
“Coisa que hoje em dia vocês chamam de faixa de isenção.” Os dois
assistentes estavam perto de seus trinta anos de idade, mas falavam com
Fogle como se fossem muito, mas muito mais velhos que ele. “Porém antes
de 78 todo mundo conhecia como dedução-padrão.”
“Mas isso foi em 77.”
Sylvanshine deu uma olhada para Reynolds, cuja impaciência se
transmitiu pela duração e não pela expressão. Então ele disse: “Caso isso
possa parecer bobagem ou mesquinharia, vamos deixar bem claro aqui que
a gente está falando de $1,2 bilhão”.
“Bilhão com bê, por uma mudancinha minúscula.”
Fogle ficou pensando se devia perguntar qual mudança, se estava sendo
incluído ali na coreografia como uma espécie de escada, se a sofisticação do
duo tinha chegado a esse grau.
Sylvanshine disse: “O que o dr. Lehrl viu, ao contrário de todos os outros
auditores GS-9, foi a falta de incentivos adequados pros declarantes
registrarem acuradamente os dependentes. Incentivo institucional. Olhando
daqui, parece óbvio”.
“O gênio funciona assim, o estalo.”
“E a solução dele parece simples. Ele simplesmente sugeriu que se
passasse a exigir que os contribuintes incluíssem o número da identidade de
cada dependente.”
“Exigir um número de identidade ao lado de cada nome.”
“Já que tudo na base de dados de Martinsburg naquela época estava
indexado por número de identidade.”
“O que na verdade não aumentava muito a facilidade de realmente
verificar aquilo.”
“Mas o declarante não sabia. A exigência ia aumentar em muito o medo
do declarante de que se detectasse um dependente fantasma.”
“Tamanho o poder do número de identidade.”
“Aquilo, em outras palavras, criou um incentivo adicional pra
adimplência no que se refere aos dependentes.”
“E era bem simples e baratinho. Só acrescentar ‘e número de identidade’
nas instruções para a 5c e a 5d.”
“O Diretor Distrital dele teve o bom senso de reconhecer um estalo e
passou a ideia pra Regional, que mandou pro escritório de Adimplência da
Capital no 666 da Independence.”
“Ninguém conseguia acreditar que ninguém tinha pensado naquilo
antes.”
“O primeiro ano fiscal em que a diretriz é efetivamente implementada é
78, como Seção 151(e) do Código. Então 79 é o primeiro ano em que as
novas instruções aparecem nas 1040. Seis-ponto-nove milhões de
dependentes desaparecem.”
“Das 1040 do país inteiro.”
“Chá de sumiço, puff.”
“Na comparação com as declarações de 77.”
“Não há sanção. Todo mundo decide simplesmente fingir que os
dependentes fajutos nunca existiram.”
“O que dá um acréscimo líquido de $1,2 bilhão no primeiro ano.”
“É um típico estalo.”
“E também é politicamente brilhante. Porque tem mais de um tipo de
estalo.”
“Esse foi as duas coisas.”
“Porque apesar de não custar quase nada pra implementar, demanda uma
alteração na Seção 151 do Código Fiscal dos EUA, o que demanda que um
membro da equipe sênior do Deus-Tripartite faça aquilo tudo passar pelo
processo do comitê federal, pra se transformar em lei.”
“O que significa que a ideia acaba sendo comentada nos níveis mais altos
do Três-Meias.”
“E do meio do nada o dr. Lehrl pula quatro níveis e até pula a Regional
depois de dois trimestres e rapidinho vira a figura que os Sistemas da
capital consideram mais preciosa…”
“Bom, uma das mais preciosas, pra falar a verdade, já que também tem o
em .”
“Que é uma história completamente diferente, que envolve uma subida
mais lenta e mais convencional pela estrutura.”
“Mas com certeza um dos caras mais preciosos dos Sistemas.”
“Meio que um consultor interno.”
“Principalmente depois da Iniciativa.”
“Principalmente nos Sistemas de RH.”
“Que é onde o senhor entra, sr. Fogle.”
“Essencialmente, ele chega e reconfigura os Postos pra maximizar a
renda.”
“Essencialmente, ele é um reorganizador.”
“O cara das ideias.”
“Fazer o dinheiro render mais.”
“Verdade, mais no nível Distrital.”
“Mas esse aqui está longe de ser o primeiro Centro Regional dele.”
“Tem umas coisas aqui que a gente não pode comentar.”
“Dever profissional.”
“Dá pra pensar nele como um cara do RH ou um cara dos Sistemas.”
“Sistemas de RH, essencialmente.”
“Mas ele responde aos Sistemas. Ele segue ordens do Comissário
Substituto dos Sistemas. Ele é um instrumento do CSS, por assim dizer.”
“Mas não é escravo de sistema nenhum.”
“Ele é um leitor de pessoas.”
“Ele é um administrador, no fim.”
“Ou está mais pra um administrador de administradores.”
“A Divisão de Sistemas, como você pode ou não saber, antes era
chamada de Administração.”
“É um termo vago, com certeza.”
“Ele se descreveria mais como um ciberneticista.”
“O Serviço, afinal, é um sistema composto de muitos sistemas.”
“O trabalho dele é chegar aqui e reprojetar os Postos pra fazer eles
renderem mais. Encontrar maneiras de repensar e aumentar a produtividade,
eliminar gargalos, resolver travas. Isso funde um conhecimento avançado
de automação, de RH, de logística de apoio e dos sistemas em geral.”
“Ele vai aonde mandam. A lotação dele é simplesmente um dado Posto.
Os memorandos de lotação sempre têm coisa de uma linha de extensão.”
“A primeira fase é descobrir os fatos. Tatear e perceber a situação.”
“O maior gênio que ele tem é o do incentivo. De criar incentivos.
Descobrir o que move as pessoas.”
“Ele te desmonta que nem uma maquininha.”
“Não é que a Linha 5 tenha sido o único estalo dele. A gente só está te
dando um exemplo. O que ele é de verdade é um gênio das motivações e
dos incentivos humanos e de projetar sistemas pra atingir essas motivações
e incentivos.”
“Ele vai testar você.”
“Quando você entrar ali.”
“Ele lê as pessoas. Chega a dar um medinho.”
“A gente só está dizendo fique preparado.”
“Mas não dê pinta de nervoso ou de estar pronto pra uma bateria de
testes.” Fogle tinha ouvido falar de culturas orientais em que cada pequena
transação comercial precisava ser negociada através de intricados sistemas
de conversinhas e fingimentos rituais. Só um idiota não teria parado para
pensar se não era isso que estava acontecendo, ou se Reynolds e
Sylvanshine seriam apenas sujeitos extremamente chatos e que demoravam
demais para dizer o que queriam, isso se você acreditasse que eles queriam
mesmo dizer alguma coisa. Fogle já estava há meia hora longe de sua mesa.
Sylvanshine continuava. “Por que a coisa não funciona assim. Não é esse
tipo de teste.”
“Dá um exemplo pra ele, de repente”, Reynolds disse a Sylvanshine,
indicando Fogle com um movimento de cabeça como se houvesse outra
pessoa a quem ele pudesse estar se referindo.
“Beleza.” Sylvanshine fez todo um ritual do movimento de olhar
diretamente para Chris Fogle. “Onde é que você estudou?”
“Hmm, em que nível?”
“Na universidade. Onde você se formou.”
“Eu cursei várias, na verdade.”
Se Sylvanshine ficou impaciente, era impossível discernir. Seu rosto não
entregava jogo algum, até onde Fogle pudesse ver. “Escolhe uma.”
“UIC. DuPage. DePaul.”
“Ótimo. DePaul. Aí ele vai perguntar, você vai dizer DePaul, ele vai
dizer ‘Ah, os Demônios Azuis’. Só que não são os Demônios Azuis, são os
Diabos Azuis. Mas e você corrige o cara?”
“Pra dizer a verdade, são os Demônios Azuis. Os Diabos Azuis são da
Duke.”
Uma pausa de um instante. “Enfim. Seja lá qual for o nome do time, ele
diz o nome errado. Mas e daí: Você corrige o cara?”
Fogle olhava de Sylvanshine para Reynolds. Os paletós de ambos não
eram idênticos, mas as camisas e as calças, sim, ele podia ver. Reynolds
disse: “Corrige?”.
“Se eu corrijo o cara?”, Fogle disse.
“Eis a questão.”
“Eu não sei se estou entendendo direitinho o que você está perguntando.”
“Corrige. A resposta certa é que você corrige o cara”, Sylvanshine disse.
“Porque é um teste. Ele está testando pra ver se você é um puxa-saco, se
você fica intimidado, se você é vaquinha de presépio.”
“Um sicofanta”, Reynolds diz.
“Era um teste?”
“Se ele disser Diabos Azuis e você só concordar com a cabeça e der um
sorrisinho, ele não vai falar nada, mas você foi reprovado no teste.”
Fogle deu uma olhadela no relógio. “Tem mais de um?”
“Bom, tem e não tem”, Sylvanshine disse. “É extremamente sutil. Você
não vai ter a menor ideia do que está rolando. Mas durante o tempo todo da
interface ali ele vai estar testando você, sondando. O tempo todo.”
“Mais uma coisa”, Reynolds disse, forçando Fogle a virar a cabeça de
novo. “Vai ter um menino ali com ele. Um menino de sete, oito anos de
idade.”
Houve um momento de silêncio. Um olhar indecifrável foi trocado por
Reynolds e Sylvanshine. Sylvanshine tinha um bigode pequeno, fininho,
muito bem cuidado.
“É o filho do dr. Lehrl?”, Fogle perguntou finalmente.
“Não pergunte isso a ele. O negócio é bem esse. O menino vai ficar num
canto, lendo, brincando com alguma coisa. Ignore o menino. Não pergunte
a ele nem se refira ao menino. O menino vai ignorar você, você vai ignorar
ele.”
“Pode também ter um fantoche. É uma coisa antiga lá das auditorias que
ele não abandonou. Digamos que é uma excentricidade. Se eu fosse você,
também não mencionava o fantoche.”
“Só pra constar”, Sylvanshine disse, “o menino não é dele.”
Fogle estava olhando direto para a frente, de maneira ruminativa.
“O menino é filho de um membro da equipe sênior do dr. Lehrl lá em
Danville”, Reynolds disse. “O dr. Lehrl só gosta de ter o menino por perto.”
“Mesmo que o pai não esteja lá.”
“É uma história longa e tediosa. A questão, no que se refere a você, é
ignorar o menino, você é que decide, mas o nosso conselho é você ignorar o
fantoche do dobermann também.”
A pálpebra de Fogle estava fazendo aquele tremelique irritante de novo,
coisa que nenhum dos assistentes podia ver. Ele disse: “Tem uma coisa,
posso fazer uma pergunta?”.
“Manda.”
“Isso do time da universidade — como é que pode vocês me contarem
isso?”
Reynolds, sentado à mesa, fez um minúsculo ajuste no punho de uma de
suas mangas. “Como assim?”
“Bom, se vai ser um teste quando ele me perguntar, por que me dizer
antes o que é pra eu falar? Isso não vai contra a ideia do teste?”
Sylvanshine abriu o processo que estava no topo da pilha a seu lado e de
modo algo ostensivo fez uma marquinha ali dentro. Reynolds se reclinou na
cadeira de Caroline Oooley e ergueu os braços, dizendo: “Muito bem.
Pegou a gente”.
“Desculpa?”
“Você pegou a gente. Passou. O teste era: Por acaso você é um mero
puxa-saco, tão ansioso pra agradar o figurão da Nacional que ia engolir a
fofoca dos funcionários e entrar lá e dizer o que a gente te mandou dizer?”
“Coisa que você não fez”, Sylvanshine disse.
“Mas eu ainda não entrei lá”, Fogle disse.
“Você preferiu questionar um detalhe lógico.”
“Tudo bem que era uma questão bem óbvia.”
“Mas você ia ficar surpreso de saber quanta gente não faz isso. Quantos
GS-9 entram ali de rabinho no meio das pernas e corrigem o suposto engano
do dr. Lehrl, tentando ser um sicofanta.”
“Um ruminante de presépio lambedor de botas.”
O que parecia que a pálpebra dele fazia era o equivalente de uma pessoa
estremecendo de medo. “Então o teste era esse?”
“Considere-se merecedor de tapinhas nas costas.”
Erguer os braços num gesto de rendição e congratulação fez os punhos
das mangas de Reynolds protuberarem dos braços do paletó
assimetricamente de novo, e agora ele os ajustava de novo.
“Aí, mas eu posso fazer outra pergunta?”
“O garoto está embaladão”, Sylvanshine disse.
“Quando eu entrar ali, o dr. Lehrl vai me perguntar da universidade?
Vocês só inventaram essa?”
“Vamos olhar pra isso pelo outro lado”, Sylvanshine disse.
Então agora ele teve que olhar de novo para Sylvanshine do outro lado,
que não tinha mudado de posição na sua cadeira junto à mesinha de revistas
e boletins internos nem uma única vez, durante todo aquele tempo, pelo que
Fogle viu.
Sylvanshine disse: “Digamos que você entre ali pra uma interface e que
num dado momento ele identifique equivocadamente o seu time de futebol
— o que é que você faz?”.
“Porque”, Reynolds disse, “se você não corrigir o erro dele, vai estar
sendo vaquinha e, se corrigir, de repente também vai estar sendo vaca de
presépio por estar agindo motivado por informações privilegiadas que a
gente acaba de te dar.”
“E ele despreza vacas de presépio”, Sylvanshine disse, abrindo de novo o
processo.
“Mas ele está mesmo lá, pra começo de conversa?”, Fogle disse. “Com
alguma criancinha misteriosa que é pra eu fingir que não está lá? E isso é
outro teste — eu ignoro ou não ignoro a presença do menino depois do que
vocês falaram?”
“Um item de cada vez”, Reynolds disse. Ele e Sylvanshine olhavam
muito intensamente para Fogle; Fogle pensou, pela primeira vez, que talvez
eles pudessem ver a coisa da pálpebra. “Ele chama o time de Diabos Azuis
— o que é que você faz?”
§ 50

O escritório podia ser qualquer escritório. Lâmpadas fluorescentes


embutidas e com dimmer, mobília modular, uma mesa que é praticamente
uma abstração. O sussurro da ventilação de fonte oculta. Você é um
observador treinado e não há nada a observar. Uma lata de Coca Diet cuja
cor parece obscena contra o bege e o branco. O gancho de aço inoxidável
para o seu paletó. Sem fotos nem diplomas ou toques pessoais — a
mediadora é ou recém-lotada ou terceirizada. Uma mulher com uma cara
agradável, de olhos esbugalhados, cabelo começando a ficar grisalho, numa
poltrona estofada idêntica à sua. Certos olhos protuberantes dão ao rosto um
aspecto medonho, obsessivo; não os da mediadora. Você recusou a sugestão
de tirar o sapato. O botão ao lado do dimmer é o controle da sua poltrona;
ela reclina e os pés sobem. É importante que você esteja confortável.
“Você tem um corpo, sabe?”
Ela não tem um caderno, agora lhe ocorre. E dada sua posição no
extremo noroeste do prédio, o escritório devia ter uma janela.
A regulagem em que você não sente o próprio peso na poltrona é de uma
reclinação de dois terços. Há um pedaço descartável de papel preso ao
apoio da cabeça. A sua linha de visão é a emenda da parede com o forro
rebaixado; o bico dos seus pés de sapato fica visível na periferia inferior. A
mediadora não fica visível. A emenda parece se espessar, já que as
lâmpadas estão reduzidas ao nível de uma falsa aurora.
“A gente começa relaxando e ganhando consciência do corpo.
“É no nível do corpo que nós continuamos.
“Não tente relaxar.” O som de sua voz é alegre. É delicado sem ser suave.
Como todos nós respiramos, o tempo todo, é impressionante o que
acontece quando uma pessoa te orienta sobre como e quando respirar. E a
nitidez com que alguém sem um pingo de imaginação consegue ver o que
lhe dizem que está bem ali, com corrimão, passarelas de borracha e tudo
mais, numa curva que desce e segue à direita para uma escuridão que se
afasta de você.
Não tem nada a ver com dormir. E a voz dela também não se altera nem
parece se afastar. Ela está bem ali, falando calmamente, e você também.
Notas e apartes

Em todo o manuscrito de O rei pálido, David Foster Wallace deixou


centenas de notas, observações e ideias mais amplas. Alguns desses apartes
sugerem rumos possíveis para a trama do romance. Outros dão informações
adicionais a respeito do passado ou do desenvolvimento futuro dos
personagens. Contradições e complicações abundam entre esses registros.
Por exemplo, algumas notas dizem que é DeWitt Glendenning quem está
levando analistas com habilidades singulares para Peoria; outras, que é
Merrill Errol Lehrl. Uma nota relativa ao capítulo 22 sugere que Chris
Fogle conhece uma sequência de algarismos que, quando recitada, lhe dá o
poder da concentração total, mas em parte alguma dos demais capítulos
Fogle demonstra tal capacidade. (Talvez essa capacidade seja o motivo de
Fogle ter sido chamado para uma reunião com Merril Lehrl no capítulo 49.)
Esperamos que essas notas permitam compreender as ideias que David
estava explorando e esclareçam o estágio de desenvolvimento do romance.
Notas vinculadas a capítulos específicos aparecem antes, seguidas de
notas provindas de outras partes do manuscrito.

O editor
§7 Sylvanshine quer desesperadamente entrar para a DIC — é por isso que
ele quer passar na prova para COC. Os membros da DIC precisam ser COCs,
exatamente como os do FBI precisam ser advogados. Sylvanshine
representando diante do espelho — “Parado aí! É o Tesouro Federal!”.
3 figuras no topo — Glendenning, um sujeito especial do RH de que
Glendenning precisa para encontrar analistas dotados de talentos, Lehrl.
Mas nós nunca os vemos, só seus assistentes e os funcionários que
preparam o terreno para eles.

§12 Stecyk é chamado por obra de Lehrl para ajudar a deixar os analistas
malucos.

§13 Predisposto é uma das palavras do IRS para o ato de colocar os analistas
num estado em que eles prestam o máximo de atenção às declarações.
nota de rodapé 34, a imagem do dragão sempre guarda algo de valor
inestimável. Esse outro menino jamais, em toda sua instrospecção e análise
infindável, concebeu os ataques como formas de chorar com todo o corpo e
nem mesmo como tristeza — pelo fim da infância, pelo ego cindido que a
sociedade exige, por quaisquer possíveis traumas e alienações. A repulsa
dos outros era uma vil projeção de seu segredo mais íntimo, que o dragão
tanto guardava quanto representava — ele desconhecia a piedade.

§15 Sylvanshine é que é o médium de fatos, e Lehrl, que acredita em


ocultismo, mandou que ele fosse localizar e instalar os melhores de todos os
fraldinhas GS-7 que conseguisse num dado grupo, de modo que, quando o
A/NADA ultrapassar os índices de performance deles em termos de renda, a
coisa seja convincente para o Três-Meias. Isso exigiria reescrever a
sequência da chegada de Sylvanshine… S quer se tornar COC porque todos
os outros nos Sistemas de Controle Interno são COCs? Ou para poder sair do
Serviço?

§19 São os caras do RH que acabam sendo substituídos por computadores —


eles se distraem fácil demais, se deixam desviar demais.
O filho de Glendenning num navio da Marinha ancorado no mar do Irã?
Apavorado com a ideia de estar arriscando a vida por um país pelo qual já
não vale a pena lutar.

§22 Chris “Irrelevante” só é irrelevante no que se refere a ele mesmo? Em


todos os outros tópicos/assuntos ele é objetivo & persuasivo e interessante?
O veredicto sobre ele no CRA é que ele é boa gente desde que você evite que
ele fale de si próprio — porque aí a coisa desanda?
Fogle acaba no IRS como o insuportável certinho que Stecyk era na
infância?
A “entrevista filmada” era uma armação? O objetivo era extrair de Chris
Fogle a sequência de números que permite a concentração total? A questão
é que ele não lembra — ele não estava prestando atenção quando leu por
acaso a série de documentos que, somados, geraram a sequência numérica
que, ao ser mantida em ordem em sua mente, permite que ele permaneça
interessado e concentrado como bem quiser? Vão ter que dar um jeito de
fazer sem ele se dar conta? Os números têm como efeito colateral uma dor
de cabeça incrível.

§24 Richard “Dick” Tate é o Diretor de Pessoal. Ned Stecyk é seu Vice-
Diretor. Tate se opõe a Lehrl e ao SCI porque quer poder, controle — não há
poder se houver menos funcionários vivos.
Glendenning é ineficiente — perdido numa névoa de idealismo cívico —
o CRA na verdade é basicamente administrado por Tate e Stecyk e pela
pessoa dos Sistemas de Informação.
Quando DW e Stecyk cruzam olhares no momento em que Stecyk acalma
o sujeito no escritório, uma expressão de tremenda compaixão e empatia se
espalha pelo rosto de Stecyk, basicamente por causa da pele hedionda de
DW. Stecyk assim vai procurar DW e tenta ser simpático com ele, imaginando
que ele foi evitado e traumatizado a vida toda. DW não gosta disso — sua
posição é de que se as pessoas forem rasas a ponto de considerar a pele de
alguém como a definição total de seu valor e de seu caráter, então que se
fodam; ele não precisa delas — mas está disposto a explorar a bondade de
Stecyk para conseguir diversas vantagens para si próprio.
David Wallace, depois de se acomodar ali, tem essa coisa de olhar pela
janela e ver, no outro prédio, mais de elite, alguém à janela trabalhando
num computador e olhando de volta para ele. Com óculos grossos. Seus
olhares se cruzam, mas eles nunca se encontram e nunca conversam.
Pacer azul-claro com adesivo de peixe. Esse carro é de Lane Dean — que
tem que correr como um alucinado de manhã porque vai à missa (ou Sheri,
sua mulher, é quem vai) bem cedinho, e sempre está a ponto de se atrasar
(Dean foi ficando menos fervorosamente cristão desde que começou a
trabalhar no CRA, enquanto Sheri ficou mais) — que fazia essa manobra
quase toda manhã.

§26 Stecyk sabe de Blumquist. Ele estava no CRA quando Blumquist


morreu. Tinha acabado de sair da academia do IRS em Columbus e
trabalhava como líder de tento nas molezas. Foi ele quem teve que
entrevistar os fraldinhas (em 1978?) que tinham continuado a trabalhar e
ficado trabalhando por coisa de três dias enquanto Blumquist estava sentado
rígido à mesa, morto. Alguns deles se sentiram mal por causa disso. Uns
pediram transferência. Stecyk vai descobrir que o total geral da renda
derivada das auditorias dos analistas a cada mês aumenta quando Blumquist
fica ali sentado com eles, sem conversar nem se distrair, mas simplesmente
sentado ali, ficando com eles. Teoriza que equipes de duplas de Analistas
poderiam compensar o custo maior — o salário dobrado poderia ser
ultrapassado pela renda total derivada das auditorias. Mas como vender essa
ideia? O Diretor de RH da Regional ia querer saber como isso lhe ocorreu
originalmente… como Stecyk pode se referir a um fantasma? Ou quem sabe
tenha sido ideia de um Substituto anterior de RH, que se complicou porque a
Regional sacou que ele tinha tentado um experimento com dois analistas de
fato, o que significava salário dobrado. Seria um enredo plausível?
Como é Stecyk agora, quando adulto? Ainda incrivelmente bonzinho,
mas sem ser um mané completo? Um pouco mais triste? Um distribuidor de
lugares-comuns de psicologia de balcão? O que aconteceu para ele perceber
que aquele lado “bonzinho” da sua infância era no fundo sádico, patológico,
egoísta? Que as outras pessoas também querem se sentir boas e fazer
favores, que ele tinha sido gigantescamente egoísta no que se referia a
generosidade? Num evento esportivo universitário, será que ele ficava
deixando o outro time marcar pontos por “bondade” e acabou recebendo
uma visita do árbitro — alguém vestido todo de preto e branco, como o
jesuíta do Irrelevante Chris Fogle na universidade —, que muito
rispidamente lhe disse que ele era um bostinha e que a verdadeira decência
era diferente da generosidade patológica, porque a generosidade patológica
não levava em consideração os sentimentos das pessoas que eram o objeto
da generosidade? Stecyk causava engarrafamentos em entroncamentos
rodoviários por sempre deixar os outros passarem na sua frente? Ou o
árbitro magicamente faz Stecyk entender como sua mãe tinha se sentido
quando Stecyk levantava todo dia cedo para cuidar da casa para ela —
como se fosse inútil, como se a família achasse que ela era incompetente
etc. Stecyk conta a David Wallace a história da borboleta — se você ajudar
ela a sair do casulo quando ela parece estar com dificuldade, e à beira da
morte, suas asas não ficam fortes e ela não sobrevive.
Os patologicamente bonzinhos são um dos tipos básicos atraídos para o
IRS, porque se trata de um trabalho tão terrível e impopular — sem gratidão
—, que apenas aumenta a noção de sacrifício.
Sylvanshine tem uma opinião diferente sobre a questão Blumquist.
Sylvanshine descobriu que alguns dos melhores Analistas — os mais
atentos, os mais minuciosos — são os que têm algum tipo de trauma ou de
abandono no passado. Ele está ali para intuir quais são os melhores para que
possam ser testados para a comparação com o A/NADA. Blumquist, afinal,
tinha pais de um fundamentalismo brutal — eram do tipo que considera
leques e colchões um luxo excessivo. Eles tinham um castigo especial:
faziam ele ficar de cara para a parede da sala de estar — uma parede vazia
— e ficar encarando aquilo por horas a fio. Esse era o trauma. Havia um
espelho na outra parede, atrás dele; ali só apareciam suas costas. É essa a
imagem que Sylvanshine recebe de Blumquist; uma visão de suas costas
infantis, imóveis, com uma moldura de madeira trabalhada à volta.
Blumquist tinha índices de produtividade bem, bem mais altos que os de
qualquer outro funcionário, embora tenha recusado oportunidades de ser
promovido a um nível funcional mais alto e a um posto administrativo.
Sylvanshine procura um analista moleza com a mesma qualidade, para
participar da série de comparações com o programa A/NADA e seu
computador digital. Vários Analistas recém-transferidos estão entre os
melhores de todos os analistas de rotina que sobraram nos CRAs regionais.
Os carinhas de Lehrl nos Sistemas querem uma comparação justa, o
computador e o A/NADA contra os melhores de todos os analistas de rotina
que possam encontrar… para que quando o A/NADA acabar com o outro
grupo, o teste seja ainda mais definitivo.

§30 LEHRL & PRO-TECH LEHRL VS GLENDENNING & OS DIRETORES DISTRITAIS: o


projeto é substituir os Analistas humanos por computadores exatamente
como Lehrl inventou os Sistemas Automatizados de Cobrança — os
Diretores Distritais não querem, porque são fiéis à ideia tradicional do IRS-
como-Civismo, enquanto a nova escola tem uma filosofia corporativa:
maximizar a rentabilidade minimizando os custos. A grande P é se o IRS

será uma entidade essencialmente empresarial ou moral.


Charles Lehrl está se preparando para informatizar as Análises como
informatizou o Sistema Automatizado de Cobranças nas Cobranças — os
experimentos que aconteceram em Rome e na Filadélfia. Inventou o PRI que
compara as w2 e as 1099 às declarações — inutilizou o trabalho dos
Analistas.
Reynolds & Sylvanshine (namorados? colegas de quarto?) disputam a
atenção & a preferência de Lehrl como cortesãos ou criancinhas — é como
eles passam o tempo em meio ao tédio que são as intrigas internas do IRS.
Reynolds & Sylvanshine vivem juntos — mais ou menos como
Rosencrantz & Guildenstern no Hamlet. Eles têm uma reprodução
incrivelmente boa da Advertência Paterna de Gerard ter Borch (28 3 71 3
73 cm, Rijksmuseum, Amsterdã) que penduram onde estiverem morando —
ou talvez uma falsificação incrivelmente boa, feita por um dos grandes
pintores-imitadores dos EUA modernos.

§38 DW, por causa do sururu, favorece a ideia de atualizar os sistemas


informáticos do IRS — Stecyk quer preservar os analistas humanos?

§43 Não existe bomba. O que se revela é que uma carga de fertilizante à
base de nitrato foi o que alguém detonou. De novo, algo grande ameaça
acontecer, mas não chega a acontecer de fato.
Isso se torna um desastre — os scanners digitais passam a ser
considerados como possível substituição dos analistas — seus empregos se
veem ameaçados: disputa entre Drinion 1 um scanner é preparada.

§46 Rand trabalha na Solução de Problemas, e não nas Análises? Porque a


beleza dela ajuda a neutralizar os querelantes e evita que eles deem tanto
trabalho quanto poderiam dar? Outro golpe de RH de X, o gênio da
distribuição de talentos?
Drinion um dia chegou em casa na infância e descobriu que toda sua
família tinha ido embora — ao menos é o que se diz. Boa parte das coisas a
respeito de Drinion, sua maneira de prestar atenção, deveria ser implícita,
ou deveria ir se mostrando bem mais lentamente.
A opinião geral do IRS sobre Meredith Rand: ela é bonitinha, mas fala
mais que a mulher da cobra, sem parar, é uma tortura — eles especulam que
o marido dela deve usar algum tipo de aparelho auditivo que pode ser
desligado quando ele quer.
No último encontro entre Rand e Drinion, no livro, Drinion pergunta:
“Você prefere que seja barra-pesada ou casual?”. Rand cai no choro.
Rand fica obcecada por Drinion (como um tipo de “salvador”)
exatamente como ficou obcecada por Ed Rand no hospital?
O Centro de CRA num subúrbio de Peoria chamado “Anthony, Illinois”?
Quem é Santo Antônio? O tornado continua…
Fim da parte 1. Na parte 2 (em breve?) Rand descreve, rapidamente,
como eles se envolveram sentimentalmente (ou Rath ou outra pessoa
descreve, ou a coisa se apresenta em sumário mediado por vários narradores
diferentes): M. R. sentiu que precisava de Rand, ou na verdade sentiu pena
dele porque ele era doente e nada atraente (outros sintomas particulares
repulsivos) e ia morrer logo. Sempre à espera de que venha a morrer em
breve. E viu o quanto a vida dele era triste e solitária, e seu apartamento
também. Então casou com ele com apenas dezenove anos de idade… Mas
ele não morreu, não morre; e agora M. R. está presa, infeliz, especialmente
porque Ed não lhe tem gratidão, riria com desdém se ela tentasse lhe dizer
que ele devia sentir gratidão, que ela tinha ficado com pena — Rand diria
que a pessoa de quem ela tinha pena de verdade era ela mesma, e que casar
com alguém sempre à beira de uma possível morte era uma ótima maneira
dela se sentir tanto segura quanto heroica.
Todo dia no fim do dia eles trocam as mesmas frases:
“Como foi o seu dia?”
“Eu trabalho num hospital psiquiátrico. Como você acha que foi o meu
dia?”
Não é uma coisa engraçada ou íntima, não é uma piada dos dois — eles
estão no mesmo relacionamento básico há seis anos, s/ mudança nem
crescimento, e Rand está em busca de alguém que a salve, que a tire dali.

***

A grande questão é analistas humanos ou máquinas. Sylvanshine está atrás


dos melhores analistas humanos que puder encontrar.

Esqueleto embriônico:
2 Grandes arcos:
1. Prestar atenção, tédio, TDA, Máquinas vs pessoas na realização de
trabalhos repetitivos.
2. Ser um indivíduo vs ser parte de coisas maiores — pagar impostos, ser
“pistoleiro solitário” no IRS vs homem de equipe.
David Wallace desaparece depois de 100 pp.
Questão Central: Realismo, monotonia. A trama é uma série de
preparações para coisas que vão acontecer, sem que nada aconteça de fato.

David Wallace desaparece — torna-se criatura do sistema.

Movimento geral: a velha guarda do IRS é movida por correção moral,


fraudadores fiscais como gentinha, pagamento de impostos como virtude,
ou pela resolução de suas próprias questões psíquicas como raiva, rancor,
subserviência à autoridade etc. Ou ainda são funcionários públicos
enfadonhos que estão ali por causa da segurança, barnabés-padrão. A jovem
guarda do IRS é formada por pessoas que são não apenas boas contadoras
mas também boas de planejamento estratégico e comercial: a questão
central é maximizar a renda — desconsideram a virtude cívica,
desconsideram o lado “guardião da moralidade” de se trabalhar na
arrecadação de impostos. O novo diretor de RH do CRA de Peoria é da jovem
guarda: ele só quer saber de encontrar funcionários e organizar as coisas de
modo a possibilitar que os analistas maximizem a arrecadação que os
auditores e as cobranças podem render. Sua disposição para
experimentar/pensar de maneiras novas leva, paradoxalmente, a um
profundo misticismo: um certo conjunto de algarismos que permite que os
analistas se concentrem melhor etc. A questão final é determinar se
humanos ou máquinas conseguem fazer melhor as análises, conseguem
maximizar a eficiência ao perceber quais declarações podem precisar de
auditoria e podem gerar receita.

Drinion é feliz. Capacidade de prestar atenção. Revela-se que um êxtase —


uma alegria segundo a segundo 1 gratidão pelo presente de estar vivo,
consciente — é a contrapartida do tédio mais absoluto e aniquilador. Preste
muita atenção à coisa mais entediante que puder encontrar (declarações de
renda, golfe na televisão), e, em ondas, um tédio como você jamais
conheceu vai te cobrir e praticamente te matar. Pule essas ondas, e é como
sair de um mundo em preto e branco para um mundo em cores. Como água
depois de dias no deserto. Êxtase constante em cada átomo.

STECYK?

Há uma contrapartida a Sylvanshine. Trata-se de uma pessoa de alto


escalão do RH do CRA (do lado dos que defendem os analistas humanos
contra os computadores e o FID). Ele procura imersivos. Laranjas que podem
ser convocados para analisar declarações complexas com o tipo de tédio
que te nocauteia. (Ou é Stecyk, um analista totalmente devotado ao seu
trabalho — odiado, uma aplicação abstrata da probidade e da virtude —
constantemente em busca de formas de ser útil. É ele quem vai até o
escritório de Meckstroth com a ideia de mandar os recibos das declarações
direto para o banco, poupando dinheiro e tempo.) Stecyk agora no RH e no
Treinamento de RH?
Elas são raras, mas estão entre nós. Pessoas capazes de atingir e manter
certo estado de concentração constante, de atenção, fazendo o que quer que
façam. A primeira que Stecyk viu foi na biblioteca do Peoria College of
Business, na sala de leitura, um rapaz asiático numa dessas cadeiras de
leitura que parecem bem mais confortáveis do que são de verdade, com o
corpo largado e as pernas cruzadas, tornozelo sobre o joelho, lendo um
manual de estatística. Stecyk passa de novo ali vinte minutos depois, o
rapaz ainda está exatamente na mesma posição, lendo. Stecyk atravessa a
sala para olhar por trás e analisar que o rapaz avançou várias páginas. Suas
anotações são precisas e alinhadas perfeitamente à esquerda, numa
caligrafia minúscula e legível. Uma hora depois, o rapaz ainda está na
mesma posição, lendo o mesmo livro, agora catorze páginas depois.
Um guarda cuidando da segurança na frente de uma cooperativa de
crédito. Parado na posição de descansar dos exercícios de ordem unida, o
dia todo. Não pode ler nem bater papo. Simplesmente vendo pessoas
entrarem e saírem, cumprimentando com a cabeça quem o cumprimenta
com a cabeça. Com a falsa farda de polícia dos Seguranças da Midstate.
Esperando caso haja algum problema. Stecyk entra e sai várias vezes,
ocasiões para observar o guarda. O que é impressionante é que o guarda
presta cada vez mais atenção nele, o que significa que o guarda registra que
Stecyk está entrando e saindo mais vezes do que é normal. Ele é capaz de
prestar atenção mesmo no que tem que ser um trabalho horrendamente
maçante.
Semifinal do torneio de meditação da Midwest. Competidores ligados a
aparelhos de EEG — ganha quem conseguir atingir e manter ondas theta pelo
período mais longo.
Mulher na linha de montagem contando o número de voltas visíveis de
barbante na parte externa de um rolo de barbante. Contando sem parar.
Quando o apito toca, todos os outros operários praticamente disparam rumo
à porta. Ela se demora um instante, imersa no trabalho. É a capacidade de
ficar imerso.
Quatro cenas previamente inéditas de O rei pálido

Entre as milhares de páginas do material que David Foster Wallace


esboçou e desenvolveu durante os anos em que trabalhou em O rei pálido,
havia diversas cenas que retratavam o Centro Regional de Análise do IRS e
seus personagens principais, mas que não se encaixavam no restante da
narrativa. Algumas eram fragmentos e ideias abandonadas. Outras tinham
contradições internas ou apresentavam personagens em papéis diferentes
daqueles que Wallace acabou lhes dando. Apesar de não se encaixarem no
restante do romance, muitos desses esboços são hilariantes e envolventes e
revelam as ideias em que Wallace trabalhava enquanto escrevia O rei
pálido. Quatro dessas cenas mais completas são apresentadas a seguir.
Um funcionário de nível baixo do IRS lembra de uma epifania, durante
seus estudos universitários, a respeito de seu comportamento perdulário e
de seu autocentramento. É uma experiência parecida com a de Chris Fogle
no §22, mas com a típica vivacidade e compressão da ficção de Wallace.
Nos primeiros esboços por vezes Shane Drinion era mencionado como uma
figura central.

Um dos maiores serviços prestados pelo Serviço consiste no fato dele


agir como um antídoto ou antagonista do egoísmo natural das pessoas. Nós
estamos ali — amplamente capacitados — para lembrar aos americanos que
eles são parte de algo maior do que eles e suas famílias, e que devem um
tributo a esse coletivo mais amplo. É possível enxergar o governo federal
como um parasita que se alimenta do sangue e da vida do contribuinte. Mas
a finalidade do sangue é circular, é suprir; ele anda ou há morte. Também é
possível enxergar o governo federal como o coração das pessoas enquanto
Povo — como a Constituição é Nosso cérebro — e o Serviço como as
vigorosas contrações desse coração.
Eu prefiro esta última visão; acho esta última visão simultaneamente
mais precisa e mais fértil. Shane Drinion foi quem me ensinou. Eu adoro
Shane Drinion; ele me ensinou muita coisa. A história que tenho a oferecer
é a história dele, e eu a entendo como uma história de amor.
A vida da maioria das pessoas é pequena, restrita, pálida e triste, mais
trágica que a morte de cada uma delas. Nós morremos de fome no
banquete: não conseguimos ver que há um banquete porque enxergar o
banquete exige que também nos vejamos ali sentados morrendo de fome —
a ideia de nos vermos claramente, ainda que apenas por um momento, é
aterradora.
Nós não estamos mortos mas adormecidos, sonhando conosco. Eu não
me excluo dessa categoria. Mas me debati na cama. Eu, muito de vez em
quando, despertei brevemente. Acordei quase já dando um passo no dia 5
de outubro de 1975, meu terceiro ano no PCB. Eu tinha ido a uma festa em
uma das fraternidades da Bradley University do outro lado da cidade. Tinha
tomado quatro copas da espuminha e dado duas bolas de Indica num
cachimbo de Sherlock Holmes que andava de mão em mão ali nos quartos
do primeiro andar; eu tinha me sujeitado a dançar com quatro meninas
diferentes da Bradley ao som de canções de três épocas diferentes do pop
comercial, tinha conseguido dois números de telefone e combinado de sair
da festa com uma menina medianamente bonita que acabou aceitando uns
goles de Everclear de um copinho de plástico e ficou impossibilitada de sair
dali com quem quer que fosse. Lembro de tudo com alguns detalhes, e no
entanto estava dormindo. Mais tarde eu estava voltando para o carro e por
acaso olhei para a vitrine de uma livraria para avaliar o jeito que eu estava
andando — como todos nós fazemos distraída, hipnoticamente, em dezenas
de espelhos e superfícies oportunas todo dia, tanto concentrada quanto
distraidamente, tentando ao que parece analisar alguma coisa que nem
saberia descrever — quando me dei conta de que tinha conhecido e
conversado com pelo menos uma dúzia de pessoas novas na festa (eu me
via como uma pessoa “social”, mas não da maneira convencional, que
envolvia ir a um monte de festas) e não fazia a menor ideia se eu tinha ou
não gostado de alguém — eu tinha ficado tão obcecado em imaginar se elas
estavam gostando de mim que mal percebi a existência delas, pelo menos
não daquele jeito que — foi então que percebi, e ainda é difícil verbalizar
— de repente me pareceu ao mesmo tempo importante e algo de que eu era
incapaz. Eu não consegui dar nome à sensação que me assolou, apoiado
num parquímetro, mas sei que tinha percebido um vislumbre periférico e
desperto de mim mesmo, e não numa vitrine qualquer. Seria exagero dizer
que isso foi além de um breve bater de pálpebras ou uma virada de
travesseiro — porque a percepção foi quase de imediato absorvida pela
ideia relacionada mas sonolenta de que ser tão inseguro e tão autocentrado a
ponto de não conseguir conceber sentimentos em relação às pessoas que eu
tinha conhecido certamente não podia me fazer parecer muito interessante
ou atraente para aquelas pessoas e de que assim elas muito provavelmente
não tinham gostado nadinha de mim, e tinham desgostado de mim não
apesar de, mas perversamente porque me parecia ser tão importante que
pessoas de quem eu nem sabia se eu gostava gostavam de mim, e toda essa
reflexão se emaranhou e virou um desses paradoxos insolúveis e sufocantes
que são a matéria tanto dos pesadelos quanto da auto-obsessão, e eu fiz uma
careta e me afastei enojado do campus da Bradley e fiquei meditando a
respeito daquele lampejo por semanas a fio e supus que toda aquela
meditação estivesse a serviço da auto-honestidade. Mesmo assim tive
aquele lampejo inicial, e a ideia de que eu era capaz de reações tão
limitadas assim não me abandonou e sobreviveu à meditação sobre a
aparência dessas limitações para os outros, e durante o resto da minha vida
acadêmica e mesmo durante a pós-graduação eu me mantive mais atento a
deformidades autoconscientes e obsessões introrsas na minha personalidade
— tive a vaga noção de um banquete que eu estava perdendo porque ficava
fixado no meu reflexo numa das colheres de sopa, tentando determinar o
que no reflexo era correto e o que era distorção — e na dos outros.
Eu sou um Contador Público Certificado e um Agente da Receita de grau
D-4 no IRS. Fiz a prova para COC em abril de 1979 e depois fiz de novo em
outubro de 79.
Este capítulo se entrecruza com outros do livro em seus comentários a
respeito da imagem pública dos agentes do IRS. Seu narrador parece
criado como um oposto do personagem autoconsciente da seção anterior.

Eu sou um bandido. Nunca fui outra coisa. Isso tem que ficar claro já de
cara. O mundo é um lugar abominável, uma fogueira que se consome
sozinha, todos contra todos. Duvido que você ignore isso — já que tem
tempo livre e os recursos para ler estas memórias — que você não tenha
chegado a uma aceitação sobre os fatos brutais da vida — de que a vida se
preserva a si mesma através da consumação de outras vidas. De que ou
você come ou vira comida. É uma lei que não foi feita por nenhum de nós,
até onde eu possa determinar.
Então fique sabendo: se você quiser conhecer a história bem
impressionante do Agente da Receita Shane Drinion, GS-13, Setor de
Auditorias Técnicas do IRS 44/42/04, você depende para essa história de
uma consciência narrativa limitada, de um homem de “ação” e não de
“ideias”, de uma consciência “vai-e-faz”, “automotivada”, “focada-em-
resultados”, “pragmática”, “mão-na-massa” (todos os termos entre aspas
vêm de várias Análises Anuais de Desempenho de supervisores tanto das
Cobranças quanto dos AI) que estava determinada, em primeiro e em último
lugar, a se preparar para conseguir o que quer, a agir antes de ouvir. Eu não
reflito muito: a reflexão paralisa. Pode surpreender um civil isto dele ficar
sabendo que a Receita necessita de bandidos, de homens de ação — você
pensa que o IRS se compõe de sujeitinhos cinzentos de gravata-borboleta, de
legiões dos que sofreram bullying na escola agora armados com a lei para
praticar bullying em você com uma precisão desprovida de humor. Existem
personalidades assim, algumas, nas Análises. Mas eu era das Cobranças.
Alguém, na hora do vamos ver, quando um contribuinte simplesmente se
recusava a pagar o que a Análise tinha estabelecido que ele devia ao Estado
— alguém tinha que ir lá pegar o dinheiro. Bandidos. Homens de ação. Do
lado da lei — atrás da lei.
Eu poderia contar a minha própria história. Eu não vou fazer isso. Você
me conhece. Na infância eu tinha “cólicas”, me alimentava de maneira tão
voraz que a minha mãe me desmamou cedo para se salvar. Mais tarde tive
“déficits de controle de impulsos” e “podia melhorar” tanto em “resolução
de conflitos” quando nas minhas “capacidades de dividir coisas”. Quando
criança, eu era um valentão. Eu tinha seguidores como todo valentão tem
seguidores — mantidos pelo medo de serem o próximo, por desprezo a
mim, escravizados pela linha que eu traçava entre os de Dentro e os de
Fora, entre quem comia e quem era comida. Eu ridicularizava nomes
incomuns e infortúnios de rosto e corpo. Pequenas extorsões, humilhações
na cantina, surras no parquinho que acabavam quase ao mesmo tempo que
começavam — as lágrimas da vítima depois da primeira pancada, lágrimas
vistas e apontadas por todos, eram sua derrota, minha comida: eu entendia
isso. No primário, as avaliações dos professores me classificavam como
“perturbado” ou “com baixa autoestima” ou “com tendência a reagir”. Eu
não era nada disso. O que eu era era presciente da minha compreensão do
mundo, que não tinha nada a ver com as histórias e os gráficos que eles me
ensinavam em salas de lâmpadas fluorescentes. Eu não era desprovido de
inteligência pragmática — compreendia a economia do poder. Era um bom
atleta e não tinha piedade de quem não era.
Eu era ameaçador. Eu fui, desde o primeiro dia do ensino médio, um
bandido. Ameaçador. Alguém com quem era melhor não mexer. Os alunos
do segundo e até do terceiro ano aquiesciam aos meus desejos ou pelo
menos me evitavam; alguns bandidos de classe mais alta e eu simplesmente
nos excluíamos da nossa atenção, uma tensa neutralidade que compunha
uma espécie de tácito respeito mútuo. Eu não era um cara enorme, ou
anormalmente forte, nem um desses psicóticos que mais tarde viemos a
conhecer, que não têm nenhum senso de autoproteção e que depois de
provocados simplesmente não se detêm, absorvendo violências horrendas
sem se importar, querendo apenas causar dor, o tipo que morde ou usa um
cano de chumbo, o tipo que acaba na cadeia e não consegue lembrar direito
os detalhes do que fez quando estava enfurecido. Esses não são bandidos.
Esses são psicóticos, escravos da sua própria fúria — eles viram vítimas,
encarcerados ou desempregados, surtados, fora dos círculos do poder.
Essa não é a minha história. Eu estou te falando de mim só pra você
poder conhecer a sensibilidade através da qual se media a história do Setor
Técnico 44-04. Eu te devo isso. Eu não me importo muito se você gosta ou
não de mim — eu mesmo não gosto de narradores que se preocupam
principalmente em saber se as pessoas gostam deles ou se eles são
narradores inteligentes. A linguagem e as observações empetecadas e a
diversão à custa dos personagens da história — elas são todas
exibicionismo, a forma mais baixa de manipulação. Mas eu te devo, acho
— já que entramos nessa juntos — uma parte suficiente de mim pra você
entender com quem e com o que está falando. Se isso pode ou não
comprometer certa intensidade dramática ou certa “realidade” que algumas
histórias usam pra manter o controle do ouvinte, nada mais justo. Eu não
deixo de ter interesse em controlar. Mas existem tipos diferentes. Nada me
parece mais justo.
Todas as burocracias são microcosmos do mundo. Como tais elas se
compõem dos dois tipos que existem no mundo, os devoradores e a comida.
Pessoas abstratas vs homens de ação.
Essa história é cheia de segredos. Lá vai um. É pra meninos, portanto é
tarde demais para você usar. O segredo de ser um bandido; o segredo de ser
fisicamente ameaçador: disposição pra agir. Nada de tamanho nem de
habilidade. Disposição permanente pra agir. Alergia à abstração. Um gatilho
levíssimo e controlado logo atrás dos olhos. Toma pancada — bate de volta:
automática, imediatamente. Sem mais demora do que a que existe na mão
que se afasta do forno quente. Você não pensa. Você não fica ali tentando se
conformar com o fato de que acabou de levar uma pancada. Você bate de
volta. Ou bate primeiro. Entre o impulso e a ação há apenas nervos
espinhais e feixes musculares de resposta rápida. Não é uma vida da mente.
Esta cena com Claude Sylvanshine e Charles Lehrl morando juntos não
se alinha com os detalhes do personagem Merrill Errol Lehrl no restante do
livro. Mas sua evocação de uma infância na Peoria semirrural acrescenta
dados à imagem da cidade que se constrói em outros momentos.

Charles Lehrl cresceu não em Peoria mas em Decatur, ali pertinho, terra
da Archer Dentists Midland e segundo Lehrl uma cidade de uma miséria e
de um abandono tão desinteressantes e incessantes que os peorianos
apontam com legítimo orgulho o fracasso de sua cidade em ser tão ruim
quanto Decatur, cujo ar fede ou a processamento de carne suína ou a milho
queimado dependendo do vento, e cuja classe aristocrática se distinguia por
mascar chiclete com os dentes da frente. A narrativa de Lehrl era que ele
tinha crescido em um trailer cor de fruta podre em frente a uma vala de
drenagem ao lado da Self-Storage Parkway, uma ramificação da rodovia
interestadual que um dia construíram para uma subsidiária da A. E. Staley
que fechou quando o mercado de barriga de porco estagnou completamente
e agora era lar de mosquitos, cladóforas, sorgo selvagem e de uma
abundância de ervas daninhas hipertróficas em consequência dos
fertilizantes nitrogenados em que se dissolviam os animais domésticos do
verão. //O que impediu seu pai de se tornar um alcoólatra de fato foi que ser
um alcoólatra de fato daria muito trabalho. O sr. e a sra. Lehrl não apenas
permitiam como ainda encorajavam as crianças a brincar na estrada. Os
únicos negócios ainda abertos na vizinhança eram os 3,4 acres de unidades
de armazenamento U-Lock It e uma pequena graxaria que era de uma
grande família de albinos que parecia crescer constantemente sem nenhuma
espécie de renovação genética não albina e que mesmo sendo composta de
oitenta e sete pessoas não conseguia lidar com mais de um animal por vez.
O sr. Lehrl passou a maior parte da infância de Charles deitado no sofá com
o braço sobre os olhos. Lehrl falava de Decatur no verão como se tivesse
crescido suspenso no ar: as planícies enflaneladas e os alfabetos de canos de
irrigação instalados nos campos de soja — Peoria, Lake James e Pekin eram
milho, Decatur e Springfield, soja para os japoneses —, campos que
chiavam estrídulos, céus azuis cremosos e encobertos intocados pelas
chaminés da ADM cujo produto era invisível mas perceptível ao olfato e,
segundo os boatos, inflamável, mosquitos que surgiam como um único
corpo do sistema de valas ao pôr do sol — e detalhava o ponto alto desses
dias de verão, que consistia de Lehrl, seu irmão e sua irmãzinha bem
pequena vencendo valas e cercas e atravessando a Self-Storage Parkway
para escalar o suporte da placa de um restaurante Big Boy e espiar pelo
buraco que era o incisor esquerdo do ícone do Big Boy (um grande menino
sorridente num copo de lanchonete, segurando uma bandeja) para ficar
vendo a vaca ou o porco solitários da graxaria, ali acorrentados sobre o
capim enquanto quatro ou mais das crianças albinas ensandecidas
arremessavam pedras e cacos de vidro no bicho até que algum sistema lá
dentro estivesse preparado e o animal fosse levado para um curral que
parecia uma calha e ficava cercado pelos dois lados por diversos albinos
mais velhos trepados em blocos de concreto com martelos e rifles de
pequeno calibre, quando então Lehrl, seu irmão e sua irmã desciam e
tentavam atravessar de volta a via expressa para brincar na rua que ficava
na frente do trailer deles. Muitas vezes Lehrl, que tinha crescido não em
Decatur mas em Chadwick, uma confortável cidade-dormitório pertinho de
Springfield onde seu pai era funcionário do financeiro da Comissão de
Tráfego e Estradas de Rodagem e sua mãe estava no quinto mandato como
Notária Municipal, gostava de evocar sua infância enquanto ele e
Sylvanshine relaxavam cada um com sua lager Dorfmurderer Onion durante
a meia hora (10h40-11h10) de relaxamento de Lehrl antes dele se preparar
para ir dormir, e Sylvanshine gostava de ficar ouvindo, interrompendo
apenas para fazer pequenas perguntas ou manifestar espanto nos momentos
adequados, até porque gerava nele uma espécie de ternura o fato de algo
manifesto mas inexprimível na hidráulica do sorriso de Lehrl deixar tão
paternalmente claro quando o que ele estava dizendo não era literalmente
verdade. Havia uma imensa quantidade de pequenas variáveis e
compensações que equilibravam a dinâmica dos dois, uma espécie de
complexa congruência de caixa-e-espiga entre seus ativos e passivos
enquanto homens e faixas etárias, e, embora Sylvanshine nunca tivesse se
dado conta disso de maneira consciente, era um dos motivos deles terem se
tornado tão amigos e de preferirem tão marcadamente a companhia um do
outro à de quaisquer outras pessoas, que lá na Filadélfia tinham decidido
morar juntos, apesar das aparências e das consequências dessas aparências a
que a decisão os sujeitou. Era por Lehrl ser ambicioso mas não de maneira
convencional que ele sugeriu essa solução, e Sylvanshine seria forçado a
admitir que a inconvencionalidade da ambição de Lehrl e o estranho caráter
de autodestruição de muitas de suas decisões profissionais — malgrado seu
extraordinário talento acadêmico e suas avaliações inalteravelmente altas
por todos os DDs dos lugares em que esteve lotado, Charles Lehrl ainda era
G-2 e pra dizer a verdade subordinado em nível funcional a muitas pessoas
que ele supervisionava — eram um grande mecanismo — e uma ternura —
que nivelava as coisas, já que a carreira do próprio Sylvanshine não estava
exatamente indo rápido, se bem que quando ele passasse na prova para COC,
como com certeza passaria, também seria promovido a G-2 e poderia ao
menos pagar exatamente metade das despesas comuns dos dois, uma
igualdade com que Sylvanshine sonhava ali sentado sozinho com seu
chinelo de couro e robe xadrez, esperando que o inevitável terceiro xixi que
cada cerveja representava ganhasse corpo e fosse eliminado para ele poder
ir dormir sem se preocupar em ter que levantar de novo bem quando suas
ideias fossem ficando pictóricas e de associação mais livre e muitas vezes
matizadas de sépia ou até com uma espécie de filtro visual
salmão/amarelado, o que costumava ser sinal de que ele estava de fato
caindo no sono e não meramente se iludindo por medo da insônia e pelo
medo terrível do que a privação de sono faria com seu estado de alerta e de
concentração no dia seguinte. Há muito pouco espaço em qualquer ramo da
contabilidade para imprecisão, lentidão ou qualquer tipo de abstração de
faculdades ou no enfoque dos problemas em pauta. É a busca por uma
atenção escrupulosa e por clareza e precisão metálicas. Isso pelo menos
Sylvanshine sabia com certeza.
Esta seção, ambientada num refeitório, mostra Sylvanshine observando
vários personagens que não são vistos em lugar nenhum do romance. Sua
discussão obsessiva das minúcias de um projeto muito complexo se
interrompe de maneira abrupta, e os personagens e o projeto nunca mais
reaparecem.

Era 12h40 e o terceiro turno do almoço no CRA, e Claude Sylvanshine e


Keith Singh voltaram a área de alimentação para tentar ver quem estava
pegando o almoço na máquina automática versus quem trazia marmita de
casa, já que tipos diversos de personalidades gravitavam para diferentes
tipos de opções prandiais. O terceiro turno do almoço tinha primeiramente
vira-bostas das 9h às 17h30, G-2s sazonais fazendo análises cruzadas de
vira-bostas em 1040As e em Estimadas em células de doze homens. Alguns
eram alunos que estavam nas férias de verão do Peoria College of Business
ou da Illinois State. O espaço afinal se revelou quase cheio; Sylvanshine
observou que os analistas mais jovens tendiam a se congregar durante o
almoço enquanto os analistas mais velhos, mais experientes ou
especializados tendiam a ficar no seu canto e trazer marmita. Os fumantes
não tinham escolha senão ir fumar no calor obliterante que fazia lá fora. Na
área de alimentação estavam analistas de ou três ou quatro células
diferentes; Singh e Sylvanshine precisariam da planilha do primeiro
trimestre para saber exatamente de que grupos dentro das células se
compunham as diversas mesas.
Eles estavam no segundo andar seção D. Não havia janelas, o ar-
condicionado jogo-sério da seção D ficava reservado para o equipamento de
ACS, estava quente e abafado no lugar e aquilo cheirava a comida aquecida
às pressas e ao desodorante de diversas pessoas. O piso não tinha sido
encerado e as cadeiras faziam barulhos horrorosos quando arrastadas para
reposicionamento em diferentes mesas. Havia relógios no alto de duas
paredes diferentes, corretos até nos segundos.
Singh estava começando a sacar qual era a dos analistas durante os
intervalos. Havia uma noção fosforescente tanto de alívio quanto de tensão
no ambiente, como uma pessoa irrompendo na superfície depois de uma
longa imersão e respirando bem fundo antes de voltar a mergulhar. A mente
de alguns analistas ficava acelerada e eles tagarelavam e riam alto demais;
outros pareciam atônitos e vítreos, retirados de uma letargia mineral, e
encaravam a comida na mesa como se tentassem decifrá-la.
O grupo mais loquaz e mais coeso no bufê acabou se revelando o
aglomerado de elementos de dois grupos de uma célula de vira-bostas na
seção de Justine Downer. Nenhum muito mais velho que Singh e todos com
as identificações presas aos bolsos porque você tinha que estar com elas
para entrar e sair das células. Havia uma dúzia de pessoas à mesa; de todas,
só duas não eram homens, e todas pareciam fundamentalmente similares em
sua energia geral. Os olhos dos G-2 estavam vidrados e suas mentes
aceleravam depois de uma manhã de declarações moleza. Vários ainda
estavam com suas trapaças de mindinho. Dois tinham molduras azuis nos
crachás que significavam que eram líderes de grupo; eram C. Pulte e K.
Evashevsky, sendo que este último Singh já tinha ouvido ser chamado de
Ken Meio-Que-Assim mas não sabia por que Singh nunca tinha conversado
com ele e o conhecia só pela sua ficha funcional. Carol Pulte era uma
mulher de menos de trinta com grandes óculos redondos à la Elton John e
volumosos lábios vermelhos, que estava numa extremidade da mesa
comendo alguma coisa num pote Tupperware. A outra mulher bebia um
refrigerante enlatado e usava o dedo para delinear um elaborado desenho na
mesa de plástico com a condensação da latinha. Keith Singh sorriu e fez
rapidamente um irônico símbolo da paz para Pulte, que ele tinha conhecido
na segunda operação interna e que podia, sob certas circunstâncias, ser
chamada de atraente. Pulte olhou rapidamente para ele e revirou os olhos
para indicar a interface de grupo que se desenrolava entre os homens da
mesa. Sylvanshine encontrou um lugar para fazer sua entrada e dizer oi para
todos os G-2s e se apresentar e apresentar Keith e perguntar de maneira
casual o que eles estavam fazendo, o que andavam inventando etc. Havia
uma discussão se desenrolando a respeito de um dos G-2s da mesa, um
rapaz corpulento com um chapéu espertinho e uma linguagem corporal
muito equilibrada e contida, de olhos baixos. O tipo de rapaz que no ensino
médio os outros meninos acham que é descolado unicamente por causa da
linguagem corporal e de uma expressão entediada ou indiferente. O nome
no crachá dele logo abaixo da fotinho era T. Hovatter. Na luz fluorescente,
seu rosto era da cor de chumbo molhado. Segundo alguns dos outros vira-
bostas, esse rapaz estava trabalhando num turno de sessenta horas,
evidentemente dedicando-se a uma frugalidade ascética extrema em sua
vida pessoal, poupando uma porcentagem máxima de seu salário de modo a
que a partir do quarto trimestre do ano seguinte pudesse ficar um ano todo
sem trabalho e sem escola para se devotar a um projeto pessoal de
obviamente assistir a todo e qualquer segundo das transmissões televisivas
do mês de maio de 1986. A mulher sentada com Carol Pulte fez o gesto de
quem quer tapar as orelhas e perguntou se por favor eles podiam ser
poupados de ouvir aquilo tudo de novo. O rosto de Carol Pulte era redondo
e sardento, mas seus lábios eram grandes e de um contorno perfeito e
inflados como se quase estivessem para estourar como gemas de ovo se
você lhe desse um beijo muito forte. Keith Singh, que associava TV a
enervação e miséria, esperava um sinal de Sylvanshine para saber se eles
iam sentar ali ou estavam só de passagem para trocar saudações com o resto
dos vira-bostas na área de alimentação. Os G-2s cujos nomes eram Tantillo
e Randall, respectivamente, se dirigiam a Claude Sylvanshine como se ele
viesse de uma nação e de uma cultura totalmente diferentes. Pareciam de
alguma maneira representar ou ser a voz dos G-2s. Com o advento da
televisão a cabo em todos menos os distritos mais afastados e rurais de
Peoria, já não havia somente os quatro canais clássicos e tradicionais de
televisão à disposição hoje em dia; havia também HBO, Cinemax, a WGN de
Chicago, a TNT-Superstation de Atlanta, CNN, ESPN, USA Network, e um canal
especial que era só uma varredura de radar no centro do estado de Illinois
mostrando se havia tempestades e onde. O que significava doze canais ao
todo. Assim, assistir tudo que era transmitido localmente por um mês
demandaria doze meses, o que significava um ano, por isso a folga de ano
inteiro de todas as outras atividades. Singh ficou observando Sylvanshine
em um de seus talentos de RH, que parecia ser uma passividade desprovida
de pavio curto que tornava impossível irritá-lo, concordar atenta e
atenciosamente com a cabeça enquanto pensava, Singh de alguma maneira
podia afirmar isto, em questões que nada tinham a ver com aquilo. O
projeto de Hovatter, durante maio de 86, portanto, Tantillo disse, exigia que
ele conseguisse gravar o que estivesse passando nos outros canais que não
fosse o que estivesse assistindo em dado momento, usando VHS e/ou Sony
Betamax. Hovatter, que também usava uma viseira verde de caixa de banco,
estava reclinado na cadeira de pernas cruzadas, sem abrir a boca. Outro G-2
disse que obviamente Hovatter até ali só tinha conseguido arranjar oito
amigos que aceitaram deixar Hovatter levar uma televisão e um
videocassete para a casa deles e pedir para a Multivision ir instalar o cabo e
aí deixar a televisão ligada e sintonizada num canal a cabo específico
gravando vinte e quatro horas por dia em alguma área da casa deles. Este
último G-2 era extremamente pequeno e compacto, e intenso, o tipo de
pessoa que fecha as mãozinhas ao lado do corpo quando fala, e apesar de
seu crachá estar pendurado torto em um clipe jacaré defeituoso, e ser difícil
de ler, Singh o conhecia das fichas como F. A. Runyon 79 954, já no seu
segundo ano, mas ainda G-2 com os temporários. E que a questão ali na
mesa, Tantillo explicou, eram os quatro amigos ou assistentes adicionais
que Hovatter precisaria recrutar para completar os preparativos para o
projeto.
“Mais três, na verdade”, Tantillo corrigiu. “Já que o próprio Hovatter é o
décimo segundo.”
Runyon se deu um tapa na testa com a base da mão demonstrando estar
se corrigindo.
“Então vocês estão só dando uma descansada e limpando as fitas mentais
aqui com a discussão desse projeto externo”, Sylvanshine disse.
“E ainda são onze TVs e videocassetes pra comprar, além dos pacotes a
cabo pra todos os onze mais as fitas.” Isso vindo de alguém com um
topetinho cujo crachá Singh não conseguia ver. “Supondo que o Hovatter já
tenha a sua própria TV e a conexão.”
Hovatter sorriu em particular, consigo próprio.
Randall disse: “Depois de um mês ele desconecta o cabo e devolve as TVs
e os videocassetes”.
“Melhor guardar as notas”, Sylvanshine disse como um tipo de tiradinha
para entendidos que supostamente intensifica as relações pessoais. Houve
um ou dois gestos bem sérios de cabeça, mas ninguém riu. Pulte e a outra
mulher estavam se retirando sem fazer muita força para limpar os restos que
tinham deixado ou a condensação das bebidas, que Singh podia ver que
tinha sido moldada no formato de uma estrela intricadamente rotacionada
com outro padrão dentro do pentágono central que a evaporação parcial já
tinha obscurecido.
“Mas ele vai de Beta ou VHS”, interpôs um G-2 chamado Wakeland que
tinha ou uma leve gagueira do tipo da Costa Leste ou os vestígios de um
problema fonoaudiológico real.
“Mas alguém sabe o que quer dizer VHS?”
A pessoa do topetinho disse: “Fora que a fita de vídeo mais longa dura
quatro horas, então os caras iam ter que trocar de fita cinco vezes por dia”.
“Seis”, Randall disse. “Vinte e quatro horas por quatro horas.”
“Não, cinco. Da meia-noite às quatro é a primeira fita. Você não troca
aquela fita. É a fita original.”
“Vídeo alguma coisa Storage.”
Randall: “Mas você trocou à meia-noite, Pethwick. Você trocou a das
oito à meia-noite da noite anterior pela fita da meia-noite às quatro à meia-
noite”.
Tantillo suspirou de maneira exagerada. “Só depende de como o Hovatter
contabiliza as trocas de fitas, se a troca da fita da meia-noite é uma entrada,
por assim dizer, do dia anterior ou do tia atual.”
“Como se fizesse diferença”, resmungou Pethwick, que Singh
comprovou era o nome do rapaz com apenas um topetinho aparecendo por
sobre o ombro direito de Hovatter. Hovatter, que tinha um submarino
aquecido no micro-ondas à sua frente, ainda na embalagem de papel, ergueu
o punho até a boca e delicadamente deu uma tossidinha nele. Vários rapazes
em torno da mesa encaravam o vazio.
Wakeland: “M-mas quem é que vai fazer essas trocas a cada quatro
horas? Essa é que é a pergunta fulcral aqui. Vamos dizer que eu deixo o
Terry ligar uma TV e um videocassete em algum cômodo que não uso e que
eu até banco a eletricidade pra deixar aquilo rodando vinte e quatro horas
por dia…”.
“Putz, ele tem razão. O Hovatter vai ter que reembolsar os caras pela
conta de luz.” Era de novo o G-2 chamado Runyon, que tinha o tipo de
cabelo raspado bem reto no alto que fazia com que sua cabeça parecesse a
pista de um porta-aviões. “Como é que dá pra calcular a quantidade de
eletricidade consumida? Acho que você olha a mediana das contas do
trimestre anterior e registra o aumento de maio pra obter o saldo devedor
líquido.”
“Se bem que se for no verão a conta do ar-condicionado vai afetar a
mediana das contas, distorcendo o…”
“O trimestre seria março abril maio, Runyon. Fica na sua.”
“Exatamente, porque em maio você já pode estar registrando aumentos
de consumo. Ou digamos que você tenha um aquecedor elétrico e deixe o
aquecedor ligado em março.”
Hovatter tinha um caderninho espiral na mesa ao lado do seu
refrigerante, e agora fez ali uma pequena anotação cifrada.
Wakeland disse: “Mas a questão re-relevante é quem é que vai trocar as
fitas. Vamos dizer que mesmo que eu deixe o Hovatter alterar a minha vida
e o meu jeito de viver com uma televisão ali tocandinho um canal só o
tempo todo…”.
“É só um mês”, Randall disse. Ele parecia se dirigir à mesa toda. “Não é
uma doação de rim.”
Wakeland assentiu com a cabeça num gesto de concessão. “Mesmo
assim, eu é que não vou pra casa de quatro em quatro horas pra trocar a fita,
nem dar um jeito de acordar à meia-noite e às quatro toda noite pra trocar a
fita do Hovatter.”
“Está certo, aí já é abuso.”
Eles não estavam mais nem olhando muito para o G-2 Terry Hovatter.
Singh percebeu que Sylvanshine nunca olhava para o rosto da pessoa que
estivesse falando. Ele costumava olhar para o rosto e os olhos dos outros G-
2, alternadamente.
“A não ser que o Hovatter dê algum jeito de compensar o pessoal”,
Tantillo refletiu.
“Como é que você calcula o pagamento adequado por uma coisa que é
mais uma encheção que um trabalho?”
“Claro que ele ia ter que negociar as condições com cada pessoa
individualmente, uma por vez.”
“Será que pelo menos o Hovatter estimou uma curva de referência pra
isso tudo? Será que dá pra gente dar uma olhada?”
Tantillo: “Você está dizendo que os limites orçamentários do Hovatter
podem ser usados pra negociar compensações com os onze amigos. Ele
podia apontar a planilha e dizer: ‘Olha, é com esses recursos que eu tenho
que trabalhar’”.
“As negociações iam ficar bem complicadas.”
“Bom, vai ser em maio de 86. Não é mês que vem. O Hovatter já previu
as complicações. Ele nunca disse que não ia ser difícil.” Randall e Tantillo
eram obviamente os porta-vozes de Hovatter no que se referia ao projeto.
Singh estava irrequieto e queria seguir adiante. O G-2 Pethwick disse:
“Claro que a outra opção é que ele mesmo podia trocar as fitas.”
“Aí ele ia precisar de treze meses no total, e não doze”, Wakeland disse,
“porque o primeiro mês inteirinho ele ia ficar indo de um lado pro outro
trocando fita, inclusive as da casa dele mesmo porque ele nunca ia estar em
casa pra assistir o que estivesse passando; ia ficar o tempo todo no carro.”
“O Hovatter está morando com os pais.”
“Mas como é que ele vai me fazer uma coisa dessas então?”
“É parte de um plano radical de economizar dinheiro pra poder guardar o
salário pro projeto.”
“Não era isso que eu estava dizendo.” Essa era uma conversinha paralela
entre Tantillo e outro G-2 chamado G. Sandover, que tinha arrastado uma
uivante cadeira da mesa adjacente. Dois outros G-2s originais tinham
deixado a mesa, e Singh percebeu Sylvanshine observando detidamente os
dois no que eles saíam. Ele também parecia estar registrando quais analistas
olhavam para os relógios na parede e com que frequência. Restavam
dezenove minutos no terceiro turno do almoço. Sandover tinha uma mancha
ou um borrão qualquer de um lado do colarinho da camisa.
No que parecia ser a interface principal, contudo, o líder de grupo K.
Evashevsky, que comia de maneira muito ordenada e metódica e era
obviamente o tipo de pessoa que não falava enquanto não tivesse comido
seu sanduíche e pressionado com o polegar todas as várias migalhas e
sobras de alface para levá-las à boca de maneira eficiente, estava
perguntando: “Qual é o custo mensal médio de uma televisão compatível
com um videocassete e que também pode acomodar uma dessas conexão de
cabo? Duzentos dólares? Meio que assim”.
“Precisa ser colorida ou preto e branco está beleza?”
“Se a transmissão original é colorida, você não acha que o Hovatter tinha
que ver colorido?”
“A gente não sabe quantas televisões o Hovatter tem que nem precise
comprar, vai que de repente os pais dele emprestam uma ou duas.”
Wakeland disse: “Sem falar que os horários em que ele vai colocar as
fitas novas nos videocassetes vão ter que ficar escalonados entre as várias
casas onde as televisões forem ficar, já que o Hovatter não tem como estar
em doze lugares ao mesmo tempo exatamente às oito ou à meia-noite pra
trocar as fitas”.
Randall passava os dedos pela mandíbula enquanto falava. “Então a
distância entre a casa dele e, digamos, a do Fulano e entre a do Fulano e a
seguinte vai ter que ser fatorada na hora de estabelecer um sistema e um
cronograma pra quando o Hovatter for trocar as fitas.”
Pethwick: “Fora que ele quer que as fitas todas comecem ao mesmo
tempo, certo? O projeto é assistir tudinho por exatamente um mês. Os
videocassetes portanto vão ter que começar todos à meia-noite ou ao meio-
dia”. Com todos que abriam a boca Sylvanshine concordava com a cabeça
da mesmíssima maneira encorajadora. Singh estava ficando extremamente
entediado e inquieto, e frustrado por ter que ficar olhando o tempo todo
para o crachá das pessoas para identificá-las, por não ser melhor em ligar de
vez os nomes das pessoas a um ou dois traços de identificação e ser capaz
de acompanhar a conversa sem ficar olhando o crachá das pessoas.
Involuntariamente, Singh sentia que estava começando a apagar como
apagava quando era um lesado na escola. Lembrava de viagens de carro
com os pais na infância quando eles ainda estavam juntos e sentados no
banco da frente e Singh ficava caindo no sono no banco de trás e a conversa
dos pais ia ficando apressada, rugida e desconexa aos seus ouvidos e era só
assim que ele sabia que estava começando a cair no sono de verdade e não
apenas deitado ali no banco de trás ouvindo a conversa dos pais enquanto
seu pai dirigia.
“Por que é que as fitas iam precisar de troca, pra começo de conversa?”,
perguntou um G-2 chamado M. Rabwin, que tinha uma pálpebra meio caída
do lado esquerdo, e sua pergunta só foi registrada por olhares vazios e um
átimo de um silêncio atônito, murcho. Hovatter estava com a mão no
queixo e um vago sorriso misterioso que por algum motivo irritava Singh.
Hovatter o lembrava alguém de quem ele não gostava, mas não conseguia
lembrar quem era.
“Mas”, Wakeland disse, “se eles começarem todos ao mesmo tempo,
como é que vai dar pra trocar as fitas em vários horários escalonados
sem…”
“Você está supondo uma condição ideal em que cada minutinho de cada
fita acaba sendo usado”, Tantillo disse. “Não é um problema matemático.
Algumas fitas podem ter três horas e meia de duração.”
“O que você há de admitir que vai se acrescentar à rubrica total
disponível pra fitas de VHS que já está cobrindo cento e oitenta fitas vezes
onze — vezes doze se for ele mesmo de carro de um lado pro outro
trocando as fitas todas — e aí você acrescenta duas ou três fitas às cento e
oitenta por causa da de utilização incompleta de cada fita e já lá se vão…”
Randall: “Vocês estão esquecendo que no mínimo metade desses canais
sai do ar à noite. As redes pelo menos saem”.
“Então o tempo total é de menos de treze meses, é isso que você está
dizendo.”
“A ESPN desliga de noite?”
“Mas por que ele quer fazer uma coisa dessas?”
“Hino, bandeira, esquadrilha, informação sobre a licença de transmissão,
despedida, listrinhas coloridas.”
“E o Hovatter tem que assistir as listrinhas coloridas? Se isso é o que as
redes transmitem depois das duas da manhã, será que as listrinhas fazem
parte do que ele tem que assistir?”
“A PBS desliga lá pelas onze, sem hino nem bandeira.”
“Vamos dizer que um canal tenha problemas técnicos e fique só aquela
estática por três horas, como no dia 17 de maio, por exemplo — o Hovatter
tem que ficar ali sentado assistindo a estática?”
“Se as listrinhas entrarem na conta, aí a gente volta pros treze meses.”
“Ele precisa de um conjunto de parâmetros e de regras claramente
delineadas pra esse projeto.”
K. Evashevsky: “Sou só eu ou parece que o Hovatter está complicando
demais isso tudo? Meio que assim. Por que não deixar todas em casa
mesmo?”.
“Mas era bem isso que eu estava dizendo”, o tal do Rabwin tentou
interpor sem ninguém registrar de maneira alguma a não ser pelo fato de
Runyon olhar para ele com os olhos apertados. Nem mesmo Sylvanshine
olhava para M. Rabwin 78 225.
“Não, olha só. Se você está pagando pelas televisões e pelas conexões, se
você não vai usar as TVs e o cabo dos amigos ou dos funcionários, por que
não colocar todas as onze…”
“Ainda assim seriam doze”, o rapaz do topete. Pethwick. Tantillo fez uma
careta exagerada para ele.
Evashevsky estava inclinado para a frente com os cotovelos apoiados na
mesa na clássica posição de líder de grupo. “Por que não manter
simplesmente o total agregado de quantas televisões e videocassetes forem
necessários na própria casa dele? Com as fitas todas sendo trocadas ali
mesmo, pim-pam-pum, meio que assim. Por que complicar com isso dos
amigos e das TVs em momentos diferentes por toda parte que o Terry tem
que ir cuidar, meio que assim?”
“Porque você ia ficar louco, porra. Doze televisões berrando o dia inteiro
e a noite toda. Doze telas diferentes. Ia ser uma sobrecarga sensória. Eles
iam achar o cara desmontado ali no meio.”
Pethwick disse: “De qualquer modo eles vão achar o cara desmontado.
Um ano assistindo televisão sem parar? Parece alguma experiência
nazistoide de entretenimento”.
“Sem falar de como ele ia fazer os pais embarcarem nessa.”
“Ele ainda está na casa dos pais durante o projeto? Ou será que ele aluga,
assim, um apê só pra ele?”
Num dado momento Singh percebeu que Hovatter não estava mais ali à
mesa. Não tinha visto sua saída. Não sabia dizer quem mais teria percebido
que Hovatter não estava mais ali.
“Além de tudo”, Wakeland disse, “por mais que as televisões estejam
aqui ou ali e por mais que ele tenha esse ou aquele cronograma pra trocar as
fitas, no fundo ia levar bem mais de um a-a-ano pro projeto. Parem pra
pensar. Um mês de transmissão dia e noite da HBO. A gente até aqui está
trabalhando com a premissa de que o Hovatter pode assistir vinte e quatro
horas de conteúdo em vinte e quatro horas. Mas ele tem que comer, dormir,
tomar banho.”
Randall sorriu. “Acho que não precisa fatorar muito tempo de banho pro
Hovatter.” Ele estendeu a mão e Tantillo deu um tapa nela com a sua.
“Então, e-escovar os dentes, então. A questão aqui é que são no fundo
fundamentalmente mais coisa de umas dezesseis horas de televisão em cada
vinte e quatro.”
Rabwin: “Fora que sem nem falar do monte de vezes que ele ia ter que
assistir o mesmo filme sem parar na HBO. Eles ficam reprisando as coisas o
tempo todo. A força do destino, A força do destino”.
“E o Cinemax não é quase só um monte de filme que já passou agorinha
há pouco na HBO? Ele vai ficar maluco.”
“O Cinemax põe umas coisas novas.”
“Não muito, não mesmo.”
“A CNN também repete sem parar.”
“Ele pode variar? Ele pode assistir duas horas de HBO e duas horas de NBC
e aí duas de HBO? Meio que assim.”
“Quais são os parâmetros?” Pethwick, que agora mostrava ter uma testa
alta e branca, disse: “Ele tem que estabelecer um parâmetro e um conjunto
de procedimentos. Tem umas partes imensas do projeto como um todo que
ainda não foram codificadas como precisam ser”.
Todos os G-2s ficaram em silêncio e concordando com a cabeça por um
tempo, durante o qual Keith Singh limpou de leve a garganta e disse: “Eu só
tenho uma pergunta, e a pergunta é por quê”.
“Por que fazer uma coisa dessas”, Randall disse.
“Não se preocupem”, Runyon disse. “O Hovatter tem as suas razões.”
“O Hovatter é excêntrico mas não é imbecil.”
“Ele não se importa com a opinião dos outros.”
“Tem que ser uma coisa comercial. O Hovatter achou algum jeito de
capitalizar em cima disso — por que é que ele ia contar pra vocês?”
“Um esquema de sonegação, talvez?”, Sylvanshine perguntou. “Perdas
passivas?”
De novo alguns olhares mas nenhuma risada, o que aparentemente não
incomodou Sylvanshine. Singh não entendia nem tinha nenhuma
compreensão do tipo de pessoa que Sylvanshine podia ser.
“Melhor nem deixar o Hovatter começar a falar disso, cara”, Tantillo
disse a Singh. “Ele fala até te torrar a orelha.”
“Ele está falando disso desde o começo do ano.”
“Você vai pedir misericórdia. Ele tem montes de motivos, vai por mim.”
Singh inclinou a cabeça. “Eu acho que vou perguntar mesmo assim.”
Hovatter tirou a mão do queixo e olhou vagamente na direção de Singh,
ainda que não direto para ele, como que para não lhe conceder o privilégio
de uma abordagem direta. “Por que as pessoas escalaram o K2?”
“Porque ele estava lá, é isso que você está dizendo?”, Pethwick disse.
“Pra mostrarem que dava pra fazer.”
Wakeland ergueu a mão. “O K2 também é conhecido como Monte G-
Godwin-Austen.”
“É isso. Godwin-Austen escalou pra montanha ter o nome dele depois.”
“Negativo. A primeira escalada foi em 1948, de uma equipe italiana.”
“1958.”
“Godwin e Austen descobriram a montanha, logo, ela foi batizada
assim.”
“E como é que alguém ‘descobre’ uma montanha gigante com gente
morando em volta há milênios? Meio que assim. Meio que assim.”
“Tinha um prêmio. Tinha alguma competição que os alpinistas italianos
ganharam.”
“É um desafio. É uma coisa por si própria difícil de fazer”, Runyon disse.
“O hercúleo desafio e o indomável ímpeto humano de superar desafios.”
Singh fingiu derrubar um pedacinho de papel, se abaixou e pode apostar
que as mãozinhas curtas de Runyon estavam fechadas embaixo da mesa.
Hovatter enquanto isso olhava para Singh e esperava que ele recuperasse
o papel e ressurgisse, dando então de ombros várias vezes, esperando
(Singh tinha certeza) que os outros à mesa percebessem o gesto
despreocupado e ficassem impressionados de uma maneira meio ensino
médio. Hovatter, cuja voz era mais aguda do que seu tamanho indicaria,
disse: “Só pra mostrar pra eles que é possível. Que alguém consegue”.
Os crachás dos dois vira-bostas que estavam no círculo da discussão em
torno da mesa mas não tinham aberto a boca os identificavam como os G-2s
M. Hafaf e B. Wiegand. Singh estava registrando mentalmente.
Pethwick estava dobrando o papel que embalava seu sanduíche no
complexo formato triangular que os fuzileiros navais usam para dobrar a
bandeira. “Mas e os segundos que iam ficar faltando quando ele trocasse as
fitas? Por mais que você seja rápido, vai ficar com cinco, seis segundos a
menos na fita antes da outra começar a gravar.”
“A não ser que você dê um jeito de ligar dois videocassetes diferentes na
televisão e ligar o outro antes de desligar o primeiro.”
“Você está dobrando o custo bruto dos videocassetes aqui.”
“Mesmo supondo que seja possível esse negócio dos dois vídeos.”
“Ele devolve tudo no fim do mês, o Hovatter explicou.”
“O Pethwick está vendo pelo em ovo. Se o próprio Hovatter trocar as
fitas, ele está ali bem na frente da televisão assistindo esses cinco segundos
em que nenhuma fita está gravando. Não está perdendo os cinco segundos.”
Pethwick gesticulou com a embalagem dobrada. “Mas ele não está
assistindo TV nessa hora — ele está trocando fita.”
“Ele está a coisa de quinze centímetros da televisão, a televisão está
ligada, a tela bem ali na cara dele.”
“O Pethwick tem r-razão. O que na verdade significa ‘assistir’? Se é só
ficar ali na frente da TV quando ela está ligada, então o Hovatter pode
dormir no sofá com a TV ligada e contar essas horas também.”
“Ou ele pode ficar sentado na frente das doze empilhadinhas ali uma em
cima da outra e nem precisa gravar nada.”
O G-2 Wiegand, que parecia ter algo de errado ou atrofiado no braço
esquerdo, que se enroscava de um jeito anormal, encarava
concentradamente o relógio da parede como se quisesse se fundir a ele.
O G-2 Randall: “Então ele tem que estar o quê, assim, em posição de
lótus com os olhos grudados na tela e sem fazer mais nadinha? Pra alguém
poder dizer que ele estava assistindo? Ninguém assiste TV desse jeito”.
Wakeland e Runyon tentaram falar ao mesmo tempo; houve um
brevíssimo impasse e então Runyon desistiu e ficou encarando Wakeland.
Wakeland, que tinha olhos encavados e uma aura meio nórdica, disse: “A
questão relevante é que o Hovatter vai ter que estabelecer critérios ele
mesmo pra definir o que ele considera que é assistir. Além da presença
física, quanta atenção você tem que prestar, se ele pode alternar o que
assiste, se precisa dar pause na fita cada vez que vai ao banheiro etc.”.
“Taí mais uma. Dá pra dar pause no videocassete, mas quando você
assiste mesmo televisão não tem como dar pause pra mijar ou ir pegar uma
cerveja. O Hovatter quer assistir de uma maneira tradicional à la televisão
mesmo ou de uma maneira totalmente nova, de videocassete?”
“É mais complicado do que você pensa, quando você começa a olhar. O
Hovatter sabe bem disso.”
Hovatter tinha se reclinado bem na cadeira e posto a mão atrás da cabeça.
Era a postura universal da autoconfiança relaxada. A viseira sombreava seu
rosto de verde. Só então Singh percebeu, quando as mangas de Hovatter
desceram da posição mais esticada, que ele usava um relógio em cada
pulso. Tantillo disse: “Em resumo, Sandover, é uma coisa que eles não estão
esperando e não imaginavam”.
“‘Eles’”?
“Quatro canais era uma coisa. Agora doze. Ano que vem vai saber
quantos mais, ou ainda depois? O que é que você faz quando eles vierem
com cinquenta canais?”
Sandover disse: “Além de não ter a mais mínima de quem sejam ‘eles’, o
que é que tem de errado em ter cinquenta canais pra escolher?”.
“Não é escolha se te afoga num monte de escolhas pra você não ter como
escolher de verdade porque tem opções demais pra escolher.”
“Você está dizendo que é uma conspiração?”
“É o mercado. As pessoas querem escolhas, você dá as escolhas?”
Tantillo estava olhando para Sandover de modo muito frio e direto.
“Alguém quer que você não assista.”
“Não assista o quê?”
“Pense um pouco. Você assiste uma coisa, tem mais onze coisas que você
não pode assistir. Você vai tendo que não escolher cada vez mais coisas só
pra poder escolher alguma coisa. É demais.”
“Não à noite quando seis saem do ar, aí não”, Rabwin disse e foi de novo
ignorado. A conversa agora era entre Tantillo e Sandover.
Tantillo deu uma breve olhada para Hovatter e continuou: “Imagine que
tem alguma coisa importante de verdade. Uma coisa que é fundamental
você assistir. Como é que você vai saber? Quanto mais escolhas
irrelevantes, mais escondida fica a coisa de verdade”.
“Ele está falando de um tipo de padrão de fatos.”
“Eu estou falando de sinal e ruído, o sinal se perdendo no ruído. Imagine
que eles querem que fique em segredo, então em vez de esconder eles
simplesmente enterram a coisa no meio desse monte de escolhas?”
“Ele está falando de um tipo de metacensura. Eles vão conseguir colocar
qualquer coisa no ar, sem se dar mal, porque todo mundo vai estar
paralisado e assoberbado demais pra prestar atenção.”
“De novo nos surge o misterioso Eles.”
“Ou eles deixam tudo supertedioso e estatístico e cercam tudo com essas
outras opções todas que são bem mais interessantes e mais divertidas e
coisa e tal.”
Tantillo: “A tese do Hovatter é que eles não acham que a gente consegue.
Ele vai mostrar que é possível. É rebelião da única maneira que a rebelião
vai ter pra continuar sendo relevante daqui pra frente. Ele vai absorver tudo
que mandarem pra cima dele. Vai engolir tudinho”.
“Isso não é rebelião. Isso é obsceno, sugerir que ficar sentado num sofá
olhando pra uma caixinha é um ato de rebelião.”
“Uma espécie de superconsumidor?”
“Eles vão ter que parar pra pensar.”
“Eu percebo que ninguém ainda explicou esse eles.”
“Você não está percebendo. Pode ser a última vez que um homem
sozinho consiga absorver tudo. Com cinquenta, nem a pau — são cinquenta
meses pra assistir um mês de programas.”
“Quarenta e nove, Jesus.”
“Como é que você consegue ser tão ingênuo?”
“Na pior das hipóteses, dá pra ver que a configuração toda vai dar um
certo trabalho. Tem muita coisa pra codificar.”
Todo mundo estava levantando porque o rapaz que tinha ficado
monitorando o relógio o tempo todo estava levantando.
“Se dá pra fazer, o Hovatter é o cara.”
Notas

§ 9
1. Fato pouco conhecido: os únicos cidadãos dos Estados Unidos cujos números de seguro social
começam com o algarismo 9 são aqueles que são, ou em algum momento foram, funcionários
contratados do Internal Revenue Service, o IRS. Através de sua relação especial com a Administração
de Seguridade Social, o IRS te emite um novo número de SS no dia em que começa o seu contrato. É
como se você nascesse de novo, SS-mente, quando entra para o Serviço. Pouquíssimos cidadãos
comuns sabem disso. Eles não têm por que saber. Mas pense no seu próprio número de Seguro Social
ou no das pessoas próximas a você a ponto de te confiarem o SS delas. Há apenas um dígito com que
esses números de SS nunca começam. O número é 9. O 9 fica reservado para o Serviço. E se você
recebe um desses ele fica com você o resto da vida, mesmo se por acaso você tiver saído do IRS há
muito tempo. Ele meio que te marca numericamente. Todo mês de abril — e trimestralmente, claro,
para os que são autônomos e pagam ESTs trimestrais — as declarações de renda e os ESTs de
declarantes cujos SSs começam com 9 são automaticamente retirados e passam por um regime
especial de processamento e análise no Centro de Computação de Martinsburg. O seu status no
sistema fica eternamente alterado. O Serviço reconhece os seus, sempre.

2. Trata-se de uma expressão convencionada juridicamente; o que de fato eu quero dizer é que tudo
que cerca este Prefácio é essencialmente verdade. O Prefácio ter sido movido 79 páginas para dentro
do texto é algo que se deve a mais um espasmo de cautela de última hora do editor, coisa que fica
mais esclarecida mais abaixo.

3. Por conselho de seu departamento jurídico, a editora declinou de ser mencionada pelo nome neste
Prefácio do Autor, apesar de que qualquer um que olhe para a lombada ou a capa do livro vá saber
imediatamente qual é a empresa. O que significa que se trata de uma restrição irracional; mas vá lá.
Como os meus próprios representantes legais observaram, advogados corporativos não são pagos
para ser totalmente racionais, mas são pagos para ser totalmente cautelosos. E não é difícil ver por
que uma empresa oficialmente registrada nos EUA como a editora deste livro fosse tomar cuidado
com a mera possibilidade de parecer estar metendo a colher nas questões do Internal Revenue System
ou (isso vem de um dos primeiros e mais histéricos memorandos do Jurídico) parecer estar
“aquiescendo” com a violação por parte de um autor do Termo de Confidencialidade que todos os
funcionários do Tesouro precisam assinar. Entretanto — como meu advogado e eu tivemos que
lembrar a eles umas 105 vezes antes que o Jurídico da empresa parecesse sacar —, a versão do
Termo de Confidencialidade que se aplica a todos os funcionários do Tesouro, e não só aos agentes
do Bureau de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo e do Serviço Secreto, como anteriormente, foi
promulgada em 1987, que por acaso foi o primeiro ano em que computadores e uma fórmula
estatística poderosíssima conhecida como Anada (para “Auditar/Não Auditar Declarações
Anexadas”) foram usados pela primeira vez para a análise de quase todas as declarações de renda de
pessoas físicas nos Estados Unidos. Sei que se trata de uma carrada de informações confusas e bem
enroladas pra eu jogar assim em cima de você num mero Prefácio, mas o cerne da questão aqui é que
é o Anada(a) e os elementos constituintes da sua fórmula para determinar quais declarações têm mais
probabilidade de gerar receita adicional quando auditadas, que o Serviço se preocupa em proteger, e
que foi por isso que o Termo de Confidencialidade foi repentinamente estendido aos funcionários do
IRS em 1987. Mas eu já tinha saído do Serviço em 1987. A pior parte de certas dificuldades pessoais
já tinha passado, e a minha transferência para outra universidade tinha sido aceita, e no outono de
1986 eu estava de volta à Costa Leste e mais uma vez ativo no setor privado, apesar é claro de ainda
estar com meu novo número de SS. Toda a minha carreira no IRS foi entre maio de 1985 e junho de
1986. Daí minha isenção do Termo. Isso sem nem mencionar que eu mal estava em posição de saber
qualquer coisa comprometedora ou específica a respeito do Anada. O meu posto de trabalho era
totalmente humilde e regional. Durante quase todo o meu tempo lá, fui analista moleza, ou seja, um
“fraldinha” na nomenclatura do Serviço. Meu nível como funcionário público contratado era GS-9, o
que na época era o nível mais baixo dos funcionários em tempo integral; havia secretárias e zeladores
que eram meus superiores hierárquicos. E fiquei lotado em Peoria IL, o que é praticamente o mais
distante que se possa imaginar do 666 e do Centro de Martinsburg. É bem verdade, ao mesmo tempo
— e isto foi o que causou mais preocupações ao Jurídico da empresa —, que Peoria era um CRA, um
dos sete eixos de organização da Divisão de Análise do IRS, que foi exatamente a divisão a ser
eliminada ou, mais precisamente (apesar de isto ser discutível), transferida do Setor de Adimplência
para o recém-expandido Setor Técnico, com o advento do Anada e de uma rede Fornix digital. Isso é
o tipo esotérico e descontextualizado de informações referentes ao Serviço que eu não esperava ter
que pedir para você engolir assim de cara, e posso te garantir que tudo isso acaba sendo explicado
e/ou glosado em termos muito mais agradáveis e dramaticamente adequados no livro de memórias
propriamente dito, assim que ele embalar. Por enquanto, só para você não ficar totalmente
assoberbado e entediado, digamos apenas que Análises é a divisão do IRS encarregada de passar um
pente-fino geral em vários tipos de declarações de renda e de classificar algumas como “20s”, que é
terminologia do Serviço para as declarações que têm de ser encaminhadas para o escritório distrital
relevante, para auditoria. As auditorias propriamente ditas são conduzidas por agentes da Receita que
são normalmente GS-9 ou 11, e funcionários da Divisão de Auditoria. É difícil expor tudo isso suave
ou agradavelmente — e por favor, saiba que nenhuma dessas informações mais abstratas é vital para
a missão desse Prefácio. Então fique à vontade para pular um trecho ou só passar os olhos pelo que
segue, se quiser. E não pense que o livro inteiro vai ser assim, porque não vai. Se você estiver
loucamente interessado, no entanto, cada declaração de renda pescada, por qual-/quaisquer razão/-ões
(algumas delas inteligentes e prescientes e outras, francamente, piradas e ocultas, dependendo do
fraldinha), por um analista de rotina e encaminhada para auditoria deveria ser acompanhada por um
Memorando Interno Série 20 do IRS, que é de onde vem o termo “20”. Como a maioria das agências
insulares e (sejamos francos) desprezadas do governo federal, o Serviço fervilha de jargões especiais
e códigos que parecem de início incompreensíveis mas que acabam sendo internalizados tão rápido e
usados com tanta frequência que quase viram um hábito. Às vezes eu ainda sonho em servicês. Para
voltar à questão central, no entanto, Análises e Auditorias eram duas das divisões principais do Setor
de Adimplência do IRS, e a preocupação do departamento Jurídico da editora era que o Jurídico do
próprio IRS viesse, caso eles ficassem suficientemente ofendidos e quisessem criar problema com
aquela coisa do Termo de Confidencialidade, a argumentar que eu e vários colegas e administradores
do Posto 047 do CRA que fazemos parte dessa história deveríamos ser incluídos retroativamente nas
provisões do Termo de Confidencialidade, porque éramos não apenas funcionários do Setor de
Adimplência mas ainda estávamos lotados no CRA que veio a ter papel de tanto destaque nos
momentos que antecederam o que ficou conhecido seja como “O Novo IRS”, seja como “a Iniciativa
Spackman”, ou simplesmente como “a Iniciativa”, que foi ostensivamente algo criado pelo Ato de
Reforma Fiscal de 1986 mas que na verdade era resultado de uma longa e complicadíssima briguinha
burocrática entre o Setor de Adimplência e o setor Técnico a respeito das Análises e da função de
análise nas operações do IRS. Fim da carrada de dados. Se você ainda está lendo, espero que pelo
menos parte significativa disso tudo tenha feito sentido para você ao menos entender por que a
questão de eu dizer explicitamente ou não o nome da editora não foi algo com que decidi gastar
muito tempo e boa vontade editorial. Você meio que tem que deixar algumas coisas passarem, nisso
de escrever não ficção.
(*) Aliás, é sério isso do nome da fórmula. Será que os estatísticos do Setor Técnico tinham
consciência de estar dando ao algoritmo um acrônimo tão pesado, de sonoridade quase tanatoide?
Parece duvidoso, na verdade. Como montes de americanos hoje em dia sabem, programas de
computador são total e enlouquecedoramente literais e não conotativos; e o pessoal do Setor
Técnico também era.

4. (fora aquela parte de “Todos os direitos reservados”, claro)

5. Este último caso é um bom exemplo do tipo de coisa que deixava o pessoal do Jurídico da editora
numa total piração obsessivo-cautelosa. Nem sempre as pessoas entendem a seriedade com que as
grandes empresas americanas recebem até mesmo a ameaça de um processo. Como acabei
percebendo, não se trata nem mesmo de uma questão de saber se a editora perderia nos tribunais; o
que realmente incomoda esse pessoal é o custo da defesa e o efeito desses custos nas franquias dos
seguros da empresa, que já são uma grande despesa operacional. Problemas jurídicos, em outras
palavras, são uma questão de lucro; e é melhor que o editor ou o departamento jurídico que acabarem
expondo uma editora a possíveis problemas legais consiga demonstrar ao presidente da empresa que
todo mínimo gesto razoável de cautela e prudência foi executado quanto ao manuscrito, para que não
acabe usando o que nós nas Análises chamávamos de “capacete marrom”. Ao mesmo tempo, não é
justo atribuir cada mudançazinha e cada desvio tático aqui ao editor. Eu (ou seja, de novo, o humano
real David Wallace) também tenho medo de tribunais. Como muitos americanos, fui processado —
duas vezes, na verdade, apesar de os dois processos terem sido ações sem mérito e de um deles ter
sido considerado de má-fé ainda antes de eu prestar depoimento — e sei o que muitos de nós
sabemos: brigar na Justiça não é divertido, e bem vale gastar tempo e se dar ao trabalho de evitar essa
possibilidade sempre que der. Fora, é claro, que pairava por todo o processo de revisão e
acautelamento de O rei pálido a sombra do Serviço, que ninguém em sua sã consciência jamais
sequer sonharia em querer irritar desnecessariamente ou até em chamar a atenção, já que o Serviço,
como os processos cíveis, pode fazer a sua vida virar uma desgraça sem nem te arrancar uma
moedinha a mais.

6. P. ex., uma delas é agora o Comissário Regional Assistente da Assistência ao Contribuinte no


Escritório da Comissão Regional Oeste em Oxnard CA.

7. Um pedido assinado, com firma reconhecida, baseado no Ato da Liberdade de Acesso à


Informação, que solicita cópias dessas fitas de vídeo está nos arquivos do Escritório de Informação
Pública do Internal Revenue System, 666 Independence Avenue, Washington DC. ... E sim: o
endereço do QG nacional do Serviço é mesmo “666”. Até onde eu saiba, não passa de um acidente
infeliz durante a alocação de espaço de escritórios do Departamento do Tesouro depois da ratificação
da Décima Sexta Emenda em 1913. Em níveis regionais, o pessoal do Serviço tende a se referir ao
escritório nacional como “Três-Meias” — o significado do termo é óbvio, apesar de que ninguém
com quem eu tenha conseguido falar parecia saber quando exatamente ele passou a ser usado.

8. O emprego desse termo vago pretende designar a reconstrução dramatizada de uma ocorrência
empiricamente real. Trata-se de uma ferramenta moderna comum e totalmente respeitável usada tanto
no cinema (q. v. A tênue linha da morte, Forrest Gump, JFK) quanto na literatura (q. v. A sangue
frio, de Truman Capote, A nave da revolta, de Wouk, Zumbi, de Oates, O emblema rubro da
coragem, de Crane, Os eleitos, de Wolfe &c. &c.).

9. A principal forma de se perceber que os acordos são diferentes vem das reações que temos quando
eles são desrespeitados. A sensação de traição ou infidelidade que o leitor tem quando descobre que
um texto aparentemente de não ficção tem partes inventadas (como se revelou em alguns escândalos
literários recentes, e. g. O pássaro pintado, de Kosinski, ou aquele infame livro de Carcaterra) se
deve ao fato de os termos do acordo da não ficção terem sido violados. É claro que existem formas de
entre aspas enganar o leitor na ficção também, mas elas tendem a ser mais técnicas, ou seja,
pertencentes à estrutura interna das regras formais da própria história (cf., p. ex., o narrador em
primeira pessoa do romance policial que só revela que na verdade o assassino é ele na última página,
apesar de obviamente saber disso o tempo todo e ter escondido a informação só pra zoar com a
gente), e o leitor tende a se sentir mais esteticamente desiludido que pessoalmente sacaneado.

10. Mil perdões pela sentença anterior, que é resultado de muita discussão e de muitas concessões à
equipe jurídica da editora.

11. (que, caso você queira saber, não era tema de aulas formais naquela época)

12. (corretamente, como veio a se revelar)

13. O terceiro ano, aliás, era quando muitos dos outros, mais privilegiados, alunos da universidade,
inclusive vários que tinham sido meus clientes, estavam gozando do seu tradicional “semestre no
exterior” em lugares como Cambridge e a Sorbonne. Só pra constar. Não há nenhuma expectativa de
que você fique torcendo as mãos por causa de alguma hipocrisia ou injustiça que possa discernir
neste estado de coisas. De forma nenhuma este Prefácio é uma tentativa de conquistar a sua simpatia.
Fora que agora já são tudo águas passadas, obviamente.

14. (mas tremendamente improvável, dada a preocupação da universidade com a sua reputação e RP)

15. Desculpa essa frase. A verdade é que essa situação toda de armário-da-fraternidade-e-
necessidade-de-bode-expiatório-pra-um-escândalo-fora-de-controle ainda me deixa às vezes meio
emocionalmente acelerado. Dois fatos podem tornar mais compreensível a durabilidade dessas
emoções: (a) dos cinco alunos que o Conselho-J descobriu que ou compraram as monografias ou as
plagiaram dos que tinham comprado, dois acabaram se formando com louvor e distinção e (b) um
terceiro agora faz parte do Conselho Administrativo da universidade. Só vou deixar assim, como
fatos brutos, pra você tirar suas próprias conclusões a respeito de toda essa história mesquinha.
Mendacem memorem esse oportet. [Para ser mentiroso é preciso ter boa memória].

16. E por favor desculpe todos esses subterfúgios. Dados os possíveis constrangimentos famílio-
jurídicos detalhados logo abaixo, esse tipo de antiexplicação é a única maneira que me é permissível
de evitar que toda a coisa da minha presença em um Posto 047 do IRS vire um vazio imenso, não
explicado e não motivado, o que em certos tipos de ficção de repente tudo bem (tecnicamente), mas
num livro de memórias constituiria uma violação profunda e essencial do acordo.

17. (não um dos meus pais)

18. Cf. nota 2, supra.

19. A palavra burocracia aqui vai não obstante o fato de que parte do espírito que levou a toda aquela
coisa do “Novo IRS” era uma mentalidade cada vez mais anti ou pós-burocrática tanto da Besta
quanto do Regional. Veja, só pra dar um exemplo, este trechinho de uma entrevista com o sr. Donald
Jones, um GS-13 Líder de Equipe do grupo das Gordas do CRA Meio-Oeste entre 1984 e 1990:
Talvez fosse útil definir burocracia. O termo. O nosso assunto. Eles disseram que era pra você ir
olhar no dicionário. Administração caracterizada pela autoridade difusa e pela adesão a regras
inflexíveis de operação, fecha aspas. Regras inflexíveis de operação. Um sistema administrativo
em que a necessidade ou o desejo de seguir procedimentos complexos impede a ação efetiva, fecha
aspas. Eles tinham transparências da definição que eles projetavam na parede durante as reuniões.
Eles disseram que mandavam todo mundo recitar as definições quase como um tipo de catequese.
O que significa, em termos discursivos, que esses anos em questão aqui viram uma das maiores
burocracias de qualquer lugar passar por uma convulsão em que ela tentava se reconceber como uma
não- ou até como uma antiburocracia, o que assim de cara pode soar como só mais uma loucurinha
burocrática. A bem da verdade, foi de dar medo; era como ver uma máquina imensa ganhar
consciência e começar a pensar e sentir como um ser humano real. O terror de filmes coetâneos como
O exterminador do futuro e Blade Runner se baseava justamente nessa premissa... mas claro que no
caso do Serviço as convulsões e suas consequências, ainda que mais difusas e nada dramáticas,
tiveram um impacto efetivo na vida dos americanos.
N.B. que o “eles” do sr. Jones se refere a certas figuras alto nível que eram expoentes da assim
chamada “Iniciativa”, que seria totalmente não prático aqui tentar explicar em termos abstratos (se
bem que cf. Item 951 458 221 do §14, Documentário com Entrevistas, que consiste de uma longa e
provavelmente não idealmente centrada versão de uma explicação como essa, fornecida pelo sr.
Kenneth [“Meio que assim”] Hindle, um dos fraldinhas mais antigos do grupo moleza onde acabei
[depois de um monte de confusões e trapalhadas iniciais] sendo lotado), a não ser pra dizer que a
única figura dessas que alguém do nosso nível baixo jamais chegou a ver de perto foi M. E. Lehrl do
Setor Técnico e a sua estranha equipe de intuitivos e efebos do oculto, que tinham a tarefa (viemos a
saber) de implementar a Iniciativa em tudo que se referia às Análises. Se isso não faz o menor
sentido a esta altura, por favor nem se preocupe. Tive várias dúvidas sobre o que explicar aqui versus
o que deixar se desenrolar de forma mais natural e dramática nas memórias propriamente ditas.
Acabei decidindo oferecer certas explicações rápidas e potencialmente confusas, apostando que se
elas forem obscuras ou barrocas demais agora, você simplesmente não vai prestar muita atenção, o
que, de novo, faço questão de te garantir que súper tudo bem.

20. Caso você esteja interessado, o termo se refere a um pagamento adiantado e não reembolsável
feito com base numa projeção dos direitos autorais (numa escala progressiva que vai de 7,5% a 15%
do preço de capa) sobre as vendas de um livro. Como é difícil prever as vendas reais, é do interesse
financeiro do autor receber o maior adiantamento possível, mesmo que o pagamento de uma bolada
possa criar problemas fiscais pro ano em que a renda entrou (em grande medida pelo fato de o Ato de
Reforma Fiscal de 1986 ter eliminado o recurso à média da renda). E porque, de novo, a previsão de
vendas não é uma ciência exata, o tamanho do adiantamento imediato que uma editora se dispõe a
pagar ao autor em troca dos direitos de um livro é a melhor indicação tangível da disposição do editor
de “trabalhar” aquele livro, este último termo se referindo a tudo que vai desde o número de
exemplares impressos até o tamanho do orçamento de marketing. Esse trabalho é praticamente a
única maneira de um livro ganhar a atenção de um público massificado e garantir vendas
significativas — gostando você ou não, é essa a realidade comercial de hoje.

21. Aos quarenta anos, artista ou não, a realidade é que só um mané imprudente deixaria de começar
a poupar e investir pra uma eventual aposentadoria, especialmente nessa era de planos de previdência
tipo IRA e SEP-IRA, com desconto no Imposto de Renda e tetos de isenção anual generosos —
extraespecialmente se você pode abrir um pequeno negócio e deixar a empresa fazer uma
contribuição anual adicional, acima ainda do seu plano, como “benefício” pago ao “funcionário”,
isentando assim aquela quantia extra da sua renda tributável. As leis fiscais de hoje são praticamente
escritas nas coxas, implorando que os americanos de nível econômico mais alto tirem vantagem
dessa brecha. O truque, claro, é ganhar o bastante pra ser classificado como americano de nível
econômico mais alto — Deos fortioribus adesse [Os deuses favorecem os mais fortes].

22. (Apesar de sua celebridade e prosperidade repentinas eu ainda, quase quatro anos depois, espero
pelo pagamento do empréstimo feito a esse escritor cujo nome não será evocado e a quem me refiro
não por mimimi nem por vingança, mas meramente como uma pequena parte da minha situação
financeira enquanto motivação.)

23. (ou seja, de maneira algo confusa, liberais clássicos)

24. (atitudes que não são de todo injustificadas, dada a hostilidade que os contribuintes nutrem pelo
Serviço, o hábito dos políticos de falar mal da agência para ganharem pontos populistas &c.)

25. Estou razoavelmente seguro de que sou o único americano vivo que de fato leu todos esses
arquivos do começo ao fim. Não sei se consigo explicar como eu fiz uma coisa dessas. O sr. Chris
Acquistipace, um dos GS-11 Líderes de Mesa no nosso grupo de Análise Moleza e pessoa de não
pouca intuição e sensibilidade, propôs uma analogia entre os registros públicos que cercam a
Iniciativa e os gigantescos budas de ouro maciço que ladeavam alguns templos no antigo Khmer.
Essas estátuas de valor inestimável, jamais vigiadas nem protegidas, estavam a salvo de roubo não
apesar de mas por causa de seu valor — eram imensas e pesadas demais para alguém removê-las dali.
Algo nisso me consolava.

26. (o que é, afinal, a especialidade das memórias)

27. (estejamos ou não conscientes disso)

28. (de novo, consciente ou inconscientemente)


§ 13
1. Psicodinamicamente, ele estava, enquanto sujeito de reflexão, chegando a uma compreensão tardia
e portanto traumática de si próprio também como objeto, corpo entre outros corpos, algo que podia
ver e também ser visto. Era o tipo de autoimagem binária a que muitas crianças chegam às vezes aos
cinco anos de idade, muitas vezes graças a um encontro ocasional com um espelho, uma poça, uma
janela ou uma fotografia vista assim do jeito certo. Apesar de o menino ter uma quantidade-padrão de
refletores à sua disposição na infância, no caso dele no entanto, esse estágio de desenvolvimento foi
de alguma maneira retardado. A compreensão de si próprio também como um objeto-para-outros no
caso dele foi postergada até praticamente as vésperas da vida adulta — e, como a maioria das
verdades reprimidas, quando finalmente eclodiu ela veio como algo atordoante e terrível, como uma
coisa alada que cuspia fogo.

2. No sentido clínico, ele estava lutando para re-reprimir uma verdade que para começo de conversa
tinha ficado reprimida demais, confinamento este que lhe havia conferido energia psíquica demais
para que, depois que o espelho tivesse estourado (por assim dizer), ela pudesse ser ativamente
empurrada para fora da consciência. A consciência das coisas simplesmente não funciona assim.

3. Principalmente não acontecia quando ele estava sozinho no banheiro do andar de cima, tentando
fazer um ataque acontecer para que pudesse se examinar diante do espelho e ver com os próprios
olhos, de modo objetivo, quanto aquilo parecia feio e óbvio visto de vários ângulos, e de que
distância era visível. Ele esperava, e em algum canto escondido acreditava que de repente aquilo não
fosse tão óbvio ou não tivesse um aspecto tão bizarro quanto ele sempre temia que tivesse durante
um ataque real, mas nunca conseguia analisar porque nunca conseguia fazer um ataque de verdade
acontecer quando queria, só quando não queria de forma alguma, de forma alguma.

4. O sobrenome desse menino, que era Cusk, o deixava bem perto da frente nas aulas que tinham
lugares marcados.

5. Em qualquer interpretação de profundidade e digna de respeito, um holofote ou um farol


representa um nítido símbolo onírico da atenção humana. No nível do conteúdo latente, no entanto, o
pesadelo recorrente podia ser interpretado como a representação de qualquer coisa entre, p. ex., um
desejo narcísico reprimido pelos olhares dos outros e um reconhecimento inconsciente da obsessão
do menino por si próprio enquanto causa imediata do sofrimento. Teriam relevância clínica questões
como a fonte do holofote onírico, a condição da figura do professor seja como imago, seja como
arquétipo (ou, talvez, como autoimagem projetada, já que é nessa figura que o incômodo se
externaliza como afeto), bem como as associações feitas pelo próprio sujeito no que se referia a
termos como nojento, ataque e terrível.

6. Mas os segredos escondem segredos — sempre.


§ 24
1. Não vou ficar dizendo isso toda vez que eu, o autor de verdade, estiver ativamente narrando. Por
enquanto estou incluindo esse aviso só como uma dica inócua pra te ajudar a manter em ordem as
diversas partes e os diversos agonistas do livro, já que (como explicado no Prefácio do Autor) a
situação legal aqui acarreta certo grau de polifonia e de fluxo.

2. Naquela época, Lake James era algo entre um subúrbio e uma cidade independente da Peoria
metropolitana. O mesmo é verdade sobre outras comunidades próximas, como Peoria Heights,
Bartonville, Sicklied Ore, Eunice &c., sendo que estas duas últimas faziam fronteira com Lake James
ao longo de certas regiões não urbanizadas a leste e oeste. A coisa toda desses distritos-separados-
mas-interligados tinha a ver com a inexorável expansão da cidade e sua anexação da rica terra
agricultável à sua volta, o que com o tempo levou certas comunidades agrícolas pequenas e
anteriormente isoladas a entrarem na órbita de Peoria. Eu sei que cada uma dessas cidadezinhas-
satélites tinha sua própria estrutura de impostos territoriais e sua própria autoridade de zoneamento
urbano, mas em muitos outros campos (p. ex., proteção policial) elas funcionavam como distritos
suburbanos da Peoria propriamente dita. A coisa toda podia ser extremamente embrulhada e confusa.
Por exemplo, o endereço da fachada do Centro Regional de Análise estava registrado como Self-
Storage Parkway, 10 047, Lake James, IL, enquanto o endereço postal oficial do CRA era “Centro de
Análise do Serviço de Renda Interna, Peoria IL 67 452”. Isso pode ser porque a agência dos Correios
na região central de Peoria, na G Street, tinha toda uma área separada com três caixas postais pro
CRA, no entanto, além de um par de bitrens especiais que saíam da ruela fechada dos fundos três
vezes por dia pra ir até as docas de descarga do CRA atrás do Anexo, ou seja, pode ser que o endereço
postal fosse de Peoria simplesmente porque era pra lá que a montanha diária de correspondência ia de
fato. Ou seja, pode ter sido mais uma questão da relação entre o Serviço Postal dos Estados Unidos e
o IRS do que qualquer outra coisa. Como tantas outras características do IRS e do Serviço, a resposta
pra essa questão da incongruência de locação-física & -postal é sem sombra de dúvida incrivelmente
complicada e idiossincrática e pra ser desemaranhada e efetivamente compreendida seria preciso
mais tempo e energia do que qualquer pessoa boa da cabeça estaria disposta a gastar. Outro exemplo:
A coisa realmente relevante e representativa a respeito de Lake James enquanto cidade é que apesar
de ela ter a palavra “lago” no nome, não tem lago nenhum lá. Existe, a bem da verdade, um corpo de
água chamado lago James, mas objetivamente aquilo está mais pra uma grande poça fétida, entupida
de algas por causa do agrochorume, coisa de quase vinte quilômetros a noroeste de Lake James
propriamente dito, mais perto de Anthony Illinois, cidade que na verdade é separada de Peoria e tem
seu próprio CEP &c. &c. … Em outras palavras, incongruências como essas são complexas e
desorientadoras, mas no fundo nem são tão importantes a não ser que você esteja imerso nas
minúcias geográficas de Peoria (possibilidade que eu decidi que posso supor com segurança ser bem
remota).

3. N.B.: Não vou ser desses memorialistas que fingem que lembram tudo quanto é fato e tudo quanto
é coisa com detalhes fotorrealistas. A mente humana não funciona desse jeito, e todo mundo sabe; é
um artificialismo insultante num gênero que pretende ser 100% “realista”. Pra falar a verdade, acho
que você merece coisa melhor e que você tem inteligência suficiente pra compreender e quem sabe
até aplaudir quando o autor de suas memórias tem a integridade de admitir que não é algum monstro
eidético. Ao mesmo tempo, não vou ficar perdendo tempo me enrolando com qualquer buraquinho e
qualquer imprecisão na minha própria memória, coisa cujos riscos ficam muito bem ilustrados no
solilóquio vocacional do “Irrelevante” Chris Fogle (cf. §22 supra, que ainda foi violentamente
editado e recortado) como parte da debacle do abortivo documentário fajuto de
recrutamento/motivacional da Divisão de Pessoal em 1984, que acabou sendo uma debacle em parte
porque Fogle e outros dois ou três tagarelas mais fominhas ocuparam tanto filme e tanto tempo, e
porque o sr. Tate deixou de mandar seu representante, o sr. Stecyk, atribuir a alguém in loco a
responsabilidade de manter a resposta das pessoas à “pergunta do documentário” abaixo de um certo
teto de sanidade, o que significou que o suposto “documentarista” e sua equipe tiveram todo
incentivo do mundo para deixar Fogle & cia. mandarem ver enquanto eles ficavam lá olhando o
vazio e calculando o total atualizado das horas extras acumuladas que estavam embolsando. A coisa
toda, apesar de seu óbvio valor documental, foi evidentemente uma merdarada sem fim, uma das
muitas que o Tate provocou quando se deixou levar pelos seus surtos mentais em vez de
simplesmente deixar o Stecyk cuidar de tudo no escritório de RH como sempre.

4. Não tenho mais esse Formulário OL-141 original de duas páginas, que foi consumido pelos
sistemas de arquivamento da Resolução de Problemas dos Sistemas de Controle Interno e de
Recursos Humanos do CRA durante toda a balbúrdia e a comédia de erros que cercou a minha lotação
inicial equivocada numa Unidade de Análise Imersiva, história essa que será exposta com todos os
seus detalhes patéticos e megaburocráticos a seguir.

5. N.B.: Com a possível concorrência apenas de East Saint Louis, Peoria e Joliet são consabidamente
as duas mais horrendas, mais depauperadas e depressivas antigas cidades industriais de Illinois,*
coisa que no fundo nem é coincidência, já que gera uma economia estatisticamente verificável para o
Serviço em termos tanto de instalações quanto de mão de obra. A localização de quase todos os QGs,
CRAs e Centros de Serviço regionais em cidades depauperadas e/ou desvitalizadas, cuja origem pode
ser encontrada lá na grande reorganização do Serviço e na descentralização que se seguiu ao relatório
da Comissão King diante do Congresso em 1952, é apenas um sinal das arraigadas filosofias pró-
negócios e -resultados que começaram a ganhar força no Serviço já na administração Nixon.
* Como parte do contexto geral relevante, fique sabendo que as cinco maiores cidades e regiões
metropolitanas de Illinois em termos de população (fora Chicago, que é mais meio que uma
galáxia independente) c. 1985 eram, em ordem descendente, Rockford, Peoria, Springfield, Joliet e
Decatur.

6. Aliás, ainda estou com essa carta, que por motivos legais me disseram que não posso reproduzir, a
não ser que seja só uma sentençazinha tipo “fair use”, só pra “dar o gosto” da coisa, procedendo
então a sentença que escolhi do segundo parágrafo manuscrito, imaculadamente burocrático; a saber:
“Ele deverá receber apenas um emprego humilde no começo e caberá a ele subir na carreira via
aplicação e concentração”, sendo que na margem ao lado dela o destinatário inominado dessa carta
tinha distraidamente rabiscado ou um “HA!” ou um “HAH!”, a depender de como se tentasse
decodificar a caligrafia angulosa e quase indecifrável de alguém pra quem “um drinquezinho antes do
jantar” envolvia uma caneca e nenhum gelo.

7. Isso, não esqueça, foi nos estertores da era dos mainframes, do armazenamento de dados em fitas e
cartões &c., coisa que agora parece flintstonicamente distante.

8. Por mais que agora pareça pueril, sei que às vezes eu sentia uma angústia irracional diante da
possibilidade de que o rolo recente na universidade tivesse acabado chegando a algum sistema
misteriosamente universal de recuperação de dados a que o IRA de alguma forma estivesse ligado, e
de que algum tipo de campainha ou de sirene fosse soar de repente quando eu me apresentasse no
balcão pra pegar a identificação e o crachá, e coisa e tal… um medo irracional que eu sabia que era
irracional e assim não chegava a admitir plenamente na minha consciência, se bem que ao mesmo
tempo sei que passei pelo menos parte do interminável período ali a bordo do ônibus pra Peoria
desligadamente elaborando planos de emergência e roteiros pra como, se e quando soasse a
campainha ou sirene, eu poderia evitar voltar pra casa em Philo no mesmo dia em que tinha saído e
encarar fosse lá quem fosse abrir a porta quando eu batesse e me visse ali na varandinha imunda de
casa com as malas e a pasta de mensageiro — em alguns momentos sei que a angústia inconsciente
consistia apenas de visualizar a expressão no rosto de qualquer parente imediato que abrisse a porta,
me visse e abrisse a boca pra dizer alguma coisa, quando então eu percebia que estava elaborando
fantasias angustiadas e as afastava da mente ali no ônibus, voltando ao livro incrivelmente insípido
que me tinha sido dado de “presente”, pela minha família, a ideia que eles faziam de apoio, esse
“presente” que me foi entregue na hora do jantar na noite anterior à minha partida (jantar especial de
despedida que, aliás, consistiu de [a] sobras e [b] espigas de milho no vapor que eu tinha acabado de
ajustar o aparelho e nem podia sonhar que ia comer), depois de primeiro me dizerem para abrir o
presente com muito cuidado pro papel poder ser reutilizado.

9. (Além de, vamos admitir, certa parcela de um alívio geral diante do que parecia ser o oposto de
campainhas/sirenes e da possível rejeição por inadequação ética ou seja lá o que o meu inconsciente
tinha inventado; acho que eu estava mais apavorado que reconhecia.)
10. Esse menino também tinha passado os primeiros, vários, minutos depois que eu embarquei e me
acomodei, encarando boquiaberto a condição da lateral do meu rosto, sem fazer esforços pra
esconder ou disfarçar o interesse clínico com que as criancinhas encaram, sendo que é claro que isso
tudo eu vi (e de certa forma quase apreciei) com o canto do olho.

11. I.e.: esses homens todos de chapéu, chapéus que logo suspeitei e mais tarde soube de fato serem
marca registrada da Divisão de Análise (exatamente como coldres de ombro para a calculadora de
bolso eram o acessório típico dos auditores, tampões de ouvido e alfinetes de gravata estilizados eram
do pessoal dos Sistemas, e assim por diante) de modo que as salas coletivas do CRA, fossem as
molezas, fossem as imersivas, tinham todas pelo menos uma parede com um quadro de cabides pros
chapéus dos analistas, já que cabides individuais de chapéus ou ganchos aparafusados à borda da
Tingle da pessoa criavam obstáculos pra passagem dos carrinhos dos meninos de cargas…

12. (p.s.: fazer um dos personagens informar a outro coisas que eles de fato já sabem, apenas para
transmitir tal informação ao leitor — algo que sempre achei extremamente irritante, pra não falar do
quanto parece suspeito numa obra de “não ficção”, embora seja verdade [conquanto misterioso] que
os leitores do grande mercado parecem não se incomodar com esse tipo de enrolação.)

13. N.B.: alguns desses dados foram mais ou menos copiados direto do material de orientação do IRS
que os recém-contratados e -transferidos recebem durante o processo de Registro & Processamento;
donde seu sabor algo morto, burocrático, que decidi não empetecar nem vivificar.

14. Eu, por outro lado, acrescentei também detalhes que obviamente não se encontravam nos
materiais oficiais. A debacle de Rome não era coisa que o Serviço tivesse qualquer interesse em
divulgar, nem mesmo internamente; mas ela também teve papel de destaque em todas as escaramuças
de alta hierarquia a respeito da dita “Iniciativa” e de sua implementação. Coisas todas a respeito das
quais eu não tinha ideia nem interesse naquele primeiro dia, isso vai sem dizer.

15. Um dos trabalhos esporádicos que eu tinha concluído logo antes da estupidez toda dos arquivos
da fraternidade ter estourado bem na minha cara (e na de todo mundo) foram os primeiros dois
capítulos de um trabalho de conclusão de curso de um aluno bem simpático mas todo desorganizado
do curso de sociologia, a respeito dos shopping centers e malls como o análogo funcional moderno
das catedrais medievais (com alguns paralelos inquestionavelmente notáveis), e eu não tinha mais
estômago pra malls, mesmo que fossem muitas vezes os únicos lugares onde ainda havia cinemas, já
que os grandiosos palácios do centro das cidades agora estavam fechados ou transformados em
pornôs.

16. É bem verdade que não deixou de haver passeios em silêncio no carro da família, embora o rádio
AM nesses casos estivesse sempre tocando música ambiente num volume altíssimo, o que ajudava a
explicar-barra-mascarar a ausência de conversas.

17. O GS-9 Chris Fogle mais tarde explicaria (provavelmente enquanto eu e quem mais estivesse por
perto girávamos a mão no ar daquele jeito por-favor-anda-logo-com-isso que fazia quase todo mundo
involuntariamente começar a girar a mão sempre que o “Irrelevante” Chris estava empolgado) que a
ampliação da Self-Storage Parkway estava parada havia mais de um ano, primeiro porque uma nova
emissão de títulos tinha sido embargada pela ação de um grupo de cidadãos de Illinois dedicado a
monitorar abusos tributários, e segundo porque os invernos extremamente rigorosos da região e seus
abruptos degelos de primavera que com tanta frequência se regelavam um dia depois (o que é tudo
verdade) faziam com que toda e qualquer parte da terceira pista da SSP que não tivesse sido tratada
com um tipo especial de selante industrial acabasse inchando e rachando, e o Judiciário tinha
suspendido as obras do ano anterior bem no momento em que o tal selante seria aplicado com o
auxílio de certo maquinário pesado raro e extremamente dispendioso que tinha que ser alugado com
bastante antecedência de um único distribuidor especializado ou em Wisconsin ou em Minnesota
(ainda tenho uma memória física concreta de como a minha mão começava a girar no ar, quase
involuntariamente, quando Fogle começava a soçobrar em meio a detalhes circunvenientes — sua
impopularidade não tinha a menor proporção em relação a seu caráter, que pra dizer a verdade era
decente e irretocavelmente bem-intencionado; ele era um dos Verdadeiros Crentes dos estamentos
mais baixos de que o Serviço dependia tão centralmente pra uma parcela tão grande do trabalho
braçal e pesado de suas operações cotidianas, e o que acabou acontecendo com ele foi uma grande
injustiça, sempre achei, já que no seu caso ele precisava mesmo da medicação e tomava aquilo com
finalidades unicamente profissionais; não era “recreacional” de maneira nenhuma), com, claro,
aquela liminar e a não aplicação do selante causando então prejuízos consideráveis no inverno e na
primavera seguintes, o que quase dobrou os custos da obra em comparação com a proposta inicial da
firma de engenharia civil. O que significava que a coisa toda virou um superimbróglio de processos
judiciais e infortúnios técnicos que, como sempre, tornou-se um fardo crônico, irritante e maçante
pros usuários normais do sistema de rodovias da cidade. Aliás, acabou se sabendo que outro motivo
pro trânsito na circunveniente SSP ser tão cronicamente ruim ainda antes do caos das obras era que,
compreendida não como aglomeração de seres humanos mas como empreendimento econômico
ativo, Peoria nos anos 80 tinha adotado o mesmo formato básico de rosquinha de tantas outras
cidades outrora industriais: o centro histórico estava vazio e nu, praticamente morto, enquanto ao
mesmo tempo uma robusta coleção de shoppings, centros comerciais, franquias, empresas e parques
de indústrias leves acabou empurrando quase toda a vida da cidade pra um anel suburbano. Os
meados dos anos 90 veriam um renascimento parcial e certa gentrificação da parte do centro que
ficava às margens do rio — algumas antigas fábricas e depósitos foram convertidos em apartamentos
e restaurantes conceituais; artistas e profissionais mais jovens ocuparam outros e os dividiram em
lofts &c. —, embora boa parte desse crescimento otimista tenha sido motivada pelo estabelecimento
de cassinos em barcos bem onde antes havia sido o principal conjunto de docas industriais de
descarga, cassinos que não tinham proprietários locais e de cujos rendimentos brutos Peoria nunca
viu nem o cheiro de uma fatia, sendo todo o rejuvenescimento do centro motivado por gastos
fortuitos, insignificantes, de turistas… ou seja, das pessoas que iam até ali por causa dos cassinos,
que, como cassinos operam separando as pessoas do dinheiro que se não fosse por isso elas usariam
pra comprar coisas e se alimentar, significava que a relação de fato entre os lucros dos cassinos e os
gastos dos turistas era invertida, o que, dada a merecida reputação de extrema rentabilidade dos
cassinos, significava que qualquer pessoa com a cabeça no lugar teria sido capaz de prever a curva de
declínio agudo de renda que em pouquíssimos anos fez com que quase todo o processo de
renascimento do “Novo Centro” abrisse o bico, especialmente quando os cassinos (depois de
prudentemente esperar um intervalo decente de tempo) lançaram todos eles seus próprios restaurantes
e lojas varejistas. E assim por diante… a mesma coisa que basicamente aconteceu em cidades de todo
o Meio-Oeste.

18. (identificáveis como tais na lembrança por não serem Gremlins, Mercury Montegos ou vans Ford
Econoline. Acabou se sabendo que a frota do Serviço de Apoio do CRA se originava quase toda de
uma apreensão numa auditoria feita numa revenda multimarcas em Effingham, no sul do estado,
coisa que necessitaria de uma explicação longa e digressiva demais pra ser aqui imposta ao leitor.)

19. Breve aparte, inevitável: durante os primeiros seis trimestres de uma lotação contratada, os
analistas sem dependentes podiam usufruir de habitações especiais do Serviço num conjunto de
complexos de apartamentos e hotéis convertidos que se alinhavam à margem leste do anel
circunveniente da SSP, imóveis governamentais depois de apropriações ou vendas em acordos de
pagamento de impostos durante a recessão do começo dos anos 80. É claro que há aqui toda uma
história longa e complicada, que inclui o fato de que a situação habitacional tinha sido imensamente
complicada pela grande quantidade de transferências e reorganizações de RH pela qual tinham
passado todos os CRAs em função de (a) resultados da catástrofe do CRA meio-atlântico e de sua
dissolução em 1981 e (b) as primeiras fases da assim chamada “Iniciativa” que no fim das contas
teve impacto direto no CRA Meio-Oeste. A questão, no entanto, era que essas residências eram
oferecidas tanto pra facilitar as transferências quanto pra oferecer um atrativo financeiro, já que o
aluguel mensal (por exemplo) no complexo de Angler’s Cove era pelo menos 150 dólares menos que
os valores praticados no setor privado pra instalações equivalentes. Os meus próprios motivos pra
aceitar essa opção residencial devem estar claros… embora seja também verdade que o IRS em 1986
começou a tratar a diferença entre aluguéis subsidiados e de livre mercado como “renda implícita”,
passando então a taxá-la, o que como você pode imaginar provocou uma infinita má vontade entre os
funcionários do Serviço, que são também, claro, cidadãos e contribuintes dos EUA e cujas declarações
anuais são alvo de escrutínio especial todo ano por causa do distintivo número “9” que encabeça
nossos números de identidade &c. &c. Ou seja, pensando bem, a coisa toda das residências do
Serviço provavelmente não valia a pena, com toda a encheção e as idiotices burocráticas do processo
(cf. infra), embora a economia mensal com o aluguel fosse substancial.

20. Nós observamos que eram quase sempre os carros particulares e as picapes que travavam tudo ali
tentando de maneira egoísta cortar caminho pela pista de contenção e depois voltando. Os veículos
do Serviço, inclusive as vans do Serviço de Apoio que ficavam indo e voltando entre a residência dos
fraldinhas em Angler’s Cove, no norte de Peoria, e os Oaks, nunca desviavam da pista legal, já que
os motoristas do Serviço eram contratados por hora e não tinham incentivos para correr ou tentar
cortar caminho, o que apresentava toda uma nova série de problemas pra nós que precisávamos estar
nas nossas mesas num momento muito precisamente definido no começo de cada turno; mas do
ponto de vista de um trânsito tranquilo ainda assim era provavelmente uma boa medida
administrativa do pessoal do Serviço de Apoio, apesar de significar que os motoristas do Serviço de
Apoio, cujo emprego era quiropraticamente sádico além de tedioso e repetitivo a um ponto
inimaginável, não podiam entrar pro sindicato do Tesouro, ter direito a seguro-saúde &c.

21. Essas regulamentações ali citadas, quando de uma vista d’olhos por todo o código de
regulamentações do Manual da Receita Federal, em período de pouca atividade de análises, sem mais
literalmente nada a fazer pra ocupar o tempo, revelaram um tipo estranho de erro: os dizeres dos
avisos no interior dos carros e vans na verdade se referiam à regulamentação que exigia que os avisos
fossem “exibidos com destaque, em ponto visível” dentro de cada veículo; era na verdade uma
regulamentação duas regs. acima da reg. citada, que proibia comida, tabaco &c. dentro das viaturas
que pertencessem ao Serviço. Ou seja, a reg. citada nos avisos se referia ao próprio aviso, e não à
regulamentação que o aviso supostamente ilustrava.

22. Com 158 funcionários, as instalações de suplementação-cafeínica-e-sublimação-a-vácuo do Café


Solúvel Bright Eyes representavam o último remanescente das pretensões industriais de Philo.
Subsidiária da Rayburn-Thrapp Agronomics, a Bright Eyes era uma marca regional de alto teor de
cafeína, reconhecível nas lojas do Meio-Oeste pelo tosco desenho de um esquilo com uma expressão
meio eletrocutada e sóis redondos em chamas em lugar dos olhos nos seus potes, além do que
pareciam ser minúsculos relâmpagos de cartoon saindo de suas extremidades estendidas. Quando a
Archer Daniels Midland Co. absorveu a Rayburn-Thrapp Agronomics em 1991, a Bright Eyes foi
(felizmente)* retirada do mercado. Mais do que isso eu me vejo legalmente impedido de te contar
devido ao fato de certos membros de minha família terem se recusado a assinar as devidas liberações
legais. Basta dizer que sei bem mais da química, da manufatura e dos odores ambientes do café
solúvel do que qualquer pessoa em sã consciência desejaria saber, e que os aromas não tinham nada
dos aromas acolhedores dos café matinais que você poderia ingenuamente supor (estavam mais pra
cabelo queimado, na verdade, quando o vento batia do jeito certo).
*Já na década de 70 havia dados que associavam teores artificialmente aumentados de cafeína a todo
tipo de coisa, de arritmias à paralisia de Bell, ainda que a primeira ação coletiva só tenha sido movida
em 1989.

23. Ainda outra ironia: durante um tornado perto de De Kalb, em 1987, uma parte arrancada de um
desses outdoors que promoviam a SEGURANÇA NAS FAZENDAS saiu voando e pra todos os efeitos
decapitou um plantador de soja — a coisa dos outdoors da 4-H meio que acabou aí.

24. (i.e. o lado que dava para o sul e para a SSP, onde nos movíamos rumo oeste literalmente na
velocidade de um bebê engatinhando)

25. De novo, quase tudo isso vem de fato do caderninho em que foram registradas tais impressões.
Tenho consciência de estar descrevendo a estrada de acesso de longe, mas atribuindo a ela qualidades
que se tornaram evidentes apenas quando muito lentamente nos aproximamos e então nos vimos de
fato nela. Parte disso é engenhosa compressão artística; parte é o fato de ser quase impossível fazer
anotações coerentes num automóvel em movimento.

26. (grafada com um lápis que desde havia muito perdera ponta e nitidez, que é algo que eu detesto;
seria necessário que houvesse considerável pressão/incentivo de ordem psíquica pra eu me ver
disposto a escrever com um lápis rombudo)

27. De novo, o “atrás” é do ponto de vista da estrada. Como nos aproximávamos dos fundos do
edifício principal, as vagas de elite ficavam na verdade na “frente” do CRA, conquanto essa “frente”
se ocultasse da Self-Storage.

28. Ibid.

29. Vamos basicamente pular a questão da disfunção e da lotação adicionais causadas pelos pedestres
provindos dos estacionamentos mais afastados em sua tentativa de trafegar pela estreita beira da
estrada de acesso junto com a constante fila de carros que lotava a estrada, problema que poderia ter
sido resolvido em grande parte pela simples construção de uma calçada ao longo do imaculado
gramado e de algum tipo de entrada pela frente (i.e., pelo que parecia ser a frente; era de fato os
fundos do prédio). Em essência, o esplendor baronial da grama do CRA era testamento da idiotice e do
estorvo que tinha sido toda a concepção daquele lugar.

30. E não podia ser diferente: ela não tinha largura suficiente nem pra sonhar em conter duas pistas,
isso pra não falar do espaço adicional ocupado pelos pedestres que tentavam seguir a pé de/para seus
veículos pela beira da estrada.

31. O que eu não sabia na época era que, como resultado de certas reorganizações do Departamento
de Adimplência, relacionadas à implementação da “Iniciativa”, o CRA Meio-Oeste tinha registrado
um ganho líquido de mais de trezentos funcionários nos dois trimestres fiscais anteriores. Uma teoria
entre os analistas moleza em Angler’s Cove era que isso ajudou a destruir algum equilíbrio muito
delicado nas condições de estacionamento do CRA, exacerbado pelas obras na Self-Storage e pela
eliminação, por motivos oficialmente ligados ao moral da equipe, de vagas reservadas àqueles cujo
nível no funcionalismo ultrapassava o de GS-11. Este último dado foi ideia do sr. Tate, Diretor de RH
do CRA, que considerava as vagas reservadas algo que corroía o moral do pessoal do CRA. A síndrome
do DRH Dick Tate instituir uma política que resultava em problemas muito maiores do que os que
resolvia era tão familiar que os fraldinhas se referiam a ela como “dicktadura”.

32. Na época eu não sabia nada a respeito das hostilidades diplomáticas entre o IRS e o estado de
Illinois, que datavam desde a já provecta apresentação, pelo governo estadual, de um imposto
progressivo sobre transações comerciais, quando funcionários de alto escalão do Três-Meias na era
Carter se juntaram a outras pessoas que escreviam os editoriais dos maiores diários financeiros para
ridicularizar, além de vilipendiar o “conselho de curadores” por trás do plano de tributação do
Estado, o que gerou um mal-estar que persistiu, sob forma de múltiplas espécies de mesquinharias e
atritos, por toda a década de 80.

33. Factoide cortesia do GS-9 Robert Atkins (sabe tudo, tudo fala).

34. (A fonte acabou se revelando quebrada e necessitada de um obscuro componente hidráulico.)

35. Tinha havido certas alterações e modificações no 1040 desde 1978, cujos detalhes eu viria a
conhecer mais do que bem nos meses seguintes.

36. N.B. que uma detalhada foto ilustrativa da junção da face oeste do Anexo espelhado do CRA com
a fachada do prédio principal c. 1985, que eu tinha feito questão de incluir como Ilustração 1 na
lembrança original, aqui acabou eliminada pelos editores por motivos “legais” que (na minha
opinião) não fazem o menor sentido. Hiatus valde deflendus.

37. Coisa que tivemos que fazer porque vários outros veículos estavam estacionados em fila dupla e
até tripla logo à frente, e era impossível ir mais longe, e o motorista simplesmente pôs o carro em
ponto morto e ficou ali girando o pescoço travado, com as mãos ainda no volante, enquanto os
funcionários mais experientes do Serviço começaram a vazar dali.

38. Alguns homens como baratas tontas ali na área de entrada estavam em mangas de camisa, e um
vento turbilhonante provocado pelo contraste entre as temperaturas dentro e fora da sombra do
edifício soprava a gravata deles pra trás por cima do ombro ou (por um segundo ou dois) pra longe
do peito de um jeito meio flechístico, como se eles estivessem empalados pelas próprias gravatas,
que é o que explica a estranha memorabilidade desse fragmento enquanto nós estacionávamos.

39. A representante do RH, Ms. Neti-Neti, acabou revelando ser o que ela chamava de persa. Era ela
que o Bob 2K McKenzie e outros do grupo de Rotinas de Hindle tinham batizado de “a crise
iraniana.”

40. Foi na verdade o colega de quarto paquistanês quem, já na Semana de Recepção dos Calouros me
batizou com o nomezinho cruel que me acompanhou pelos três semestres seguintes, “Rapaz
Carbunculoso”.

41. Existe na verdade um terceiro tipo de pessoa reativa, cujos olhos ficavam imobilizados no meu
rosto numa espécie de fascínio indisfarçadamente horrorizado. Essas eram normalmente pessoas com
um histórico pessoal de vários tipos de problema de pele e um interesse subsequente pelos exemplos
à la casos-mais-graves de peles ruins que anula (i.e., o interesse anula) seu tato ou sua inibição
naturais. Eu cheguei mesmo a conhecer pessoas que vinham falar comigo e começavam a falar de
seus próprios problemas de pele passados ou presentes, supondo que eu não tinha como não me
importar ou não me interessar, o que eu devo admitir que achava irritante. As crianças, aliás, não são
membros dessa categoria (c) — seu olhar interessado é muito diferente, e em geral elas ficam (as
crianças) fora de toda e qualquer taxonomia de reações, já que seus instintos e inibições sociais ainda
não estão plenamente desenvolvidos e é impossível levar as reações delas ou falta de tato para o lado
pessoal — cf. e.g. aquele menino do ônibus, ainda que obviamente ele também tivesse um problema
repulsivo todo seu.

42. E ela também não me ofereceu ajuda com as minhas malas, apesar do fato de que a que eu
segurava com o mesmo braço com que tinha que meio que prensar minha valise contra o corpo batia
dolorosamente contra o mesmo joelho contra o qual vinha batendo o dia todo sempre que tive que
carregar as malas de um ponto a outro, enquanto as roupas do meu lado esquerdo faziam com que
aquele ponto das costelas começasse a coçar loucamente mais uma vez.

43. Dado o grande número tanto de novos funcionários quanto de funcionários transferidos que
chegavam com bagagem naquele dia (por motivos que eu levaria algum tempo pra entender), no
entanto, é justo observar que o escritório de RH do CRA poderia muito bem ter estabelecido algum tipo
de sistema em que as pessoas fossem primeiro conduzidas aos apartamentos, deixassem suas malas, e
apenas então fossem conduzidas ao CRA pra processamento e orientação. Por mais que pudesse ser
complexa a logística de um esquema como esse, a alternativa era um número enorme de funcionários
do IRS tendo que levar as malas pra onde fossem naquele primeiro dia no CRA, inclusive pra
elevadores lotados e escadarias, assim como pilhas de malas abandonadas no canto de quaisquer
cômodos em que se dessem as várias sessões de orientação e produção de Identidades.

44. Eram as mesas Tingle, uma convenção do pessoal da Análise com a qual acabei ficando mais do
que íntimo — ainda que ninguém com quem eu pude conversar soubesse a origem de “Tingle”, tipo
se era epônimo, sardônico ou o sei lá o quê.

45. Pra mim, apontador é coisa séria. Eu gosto de um tipo bem específico de lápis bem apontado, e
alguns apontadores são bem melhores que outros pra obter esse formato especial, que então se vê
rombudo e arruinado depois de meramente uma sentença, ou duas, o que exige grande quantidade de
lápis apontados, todos alinhados numa ordem especial de idade, estatura remanescente &c. O lado
bom é que quase todo mundo que eu conheci tinha esses seus rituaizinhos, rituais cujo sentido todo,
bem no fundo, era serem distrações.

46. Essa noção de desorganização pessoal, que obviamente é muito comum, pra mim se via ampliada
pelo fato de eu ter muito pouca dificuldade pra analisar o caráter e a motivação central de outras
pessoas, suas forças e fraquezas &c., enquanto toda e qualquer tentativa de autoanálise redundava
numa baralha de fatos e tendências contraditórios e desesperadamente complexos, impossível de
desemaranhar ou de usar como base para conclusões gerais.

47. Eu não esqueço uma observação feita durante uma das sessões de bate-papo na sala de Chris
Acquistipace, que era Líder de Mesa e um dos únicos fraldinhas do CRA acomodados no segundo
andar do complexo de Angler’s Cove a demonstrar algum sinal de simpatia ou até de mente aberta na
minha direção, apesar da caca administrativa que de início me promoveu a uma posição superior até
à dos outros GS-9s do andar. Foi ou o Acquistipace ou o Ed Shackleford, cuja ex-mulher dava aulas
no ensino médio, que observou que o que então começava a ser descrito como “ansiedade de prova”
podia muito bem ser uma ansiedade relacionada a provas com tempo, ou seja, exames e testes
padronizados, onde não há como fazer a infinidade de gestos e atividades distraídas que é parte do
trabalho mental concentrado de 99,9% das pessoas reais. Não posso dizer com toda a sinceridade que
lembro de quem veio a observação; fazia parte de uma discussão mais ampla sobre os analistas mais
jovens, a televisão e a teoria de que a América tinha algum interesse econômico velado em manter as
pessoas hiperestimuladas e desacostumadas ao silêncio e à concentração focada. Por mera
conveniência, vamos dizer que foi o Shackleford. A observação do Shackleford era que o verdadeiro
objeto motivador da ansiedade assassina envolvida na “ansiedade de prova” podia muito bem ser um
temor da imobilidade, do silêncio e da falta de tempo pra distrações que estava envolvida na situação
de prova. Sem distrações, ou até sem a possibilidade da distração, certos tipos de pessoas sentem
pavor — e é esse pavor, e não tanto a prova em si, que provoca ansiedade nas pessoas.

48. Mais uma vez, seria só mais tarde que eu viria a saber que a maioria dos fraldinhas e do pessoal
dos Serviços de Apoio do CRA se referia a todo o ritual de Processamento/Orientação como
“desorientação”, o que era mais um exemplo de piada interna meio canhestra. Por outro lado,
nenhuma autoridade possível esperava que eu estivesse tão completamente confuso e perdido quanto
estava ao chegar, já que acabou transpirando que o escritório de RH tinha me confundido com outro
David Wallace, a saber, um analista de imersivas de elite, cheio de experiência, que vinha do CRA
Nordeste da Filadélfia e tinha sido atraído para o 047 devido a um complexo sistema de trocas de
pessoal e de finas manobras burocráticas. I.e., que não havia apenas um mas sim dois David Wallaces
cujas lotações no 047 começavam naquele dia útil. O problema informático por trás desse erro está
detalhado no §38. Vai sem dizer que esses fatos todos emergiram somente depois de muito tempo, de
muita confusão e de muito atrito em cima de atrito. Eles eram a verdadeira explicação da efusão pré-
escrita e da deferência de Ms. Neti-Neti: era na verdade o nome daquele outro, GS-13, em termos
ontológicos, que estava na placa branca especial que ela segurava, ainda que não é que “David
Wallace” seja um nome tão comum nos EUA pra que alguém tivesse alguma esperança de que eu
imediatamente imaginasse ter havido alguma confusão de nomes e identidades, especialmente
durante a confusão toda e a inépcia daquela “desorientação”.
(N.B. Puramente como aparte autobiográfico, vou inserir aqui que o uso do meu nome do meio
completo no que vim a publicar na vida tem origem nessa confusão e nesse trauma originais, i.e., o
trauma da ameaça inicial de levar a culpa por toda a baderna, que, mesmo que fosse uma enorme
bobagem, ainda era compreensivelmente traumática pra um recruta imaturo de vinte anos com medo
de burocracias e com uma única violação de um suposto “código de honra”, por mais que se tratasse
de algo insidioso e hipócrita, já no seu currículo. Durante anos, depois disso, eu tive uma angústia
mórbida com a possibilidade de que houvesse sabe Deus quantos outros David Wallaces soltos por aí,
fazendo sabe Deus o quê; e eu nunca mais quis ser profissionalmente confundido ou fundido a um
outro David Wallace. E depois que você se decidiu por um certo nom de plume, você meio que fica
preso a ele, por mais que possa soar alheio ou pretensioso aos seus ouvidos na vida cotidiana.)
49. O andar subterrâneo, que tinha sido escavado e acrescido (a um custo exorbitante) ao edifício
central em 1974-5, era chamado de Nível 1, e o térreo, portanto, tecnicamente era o Nível 2, o que
era ainda mais confuso porque nem todas as placas mais antigas do CRA, pré-escavação e acréscimo,
tinham sido substituídas, e essas placas e sinalizações ainda identificavam o andar principal, térreo,
como Nível 1, o andar acima como Nível 2, e assim por diante, de modo que você só podia se
orientar com essas sinalizações antigas e esses mapas tipo “Você está aqui” se soubesse de antemão
recalibrar cada número de andar pra um dígito acima, o que era mais um dado da idiotice
institucional facilmente corrigível do qual o sr. Stecyk agradecia ter sido informado mas lamentava
não ter visto e resolvido antes, e pelo qual fundamentalmente aceitava total responsabilidade, muito
embora tecnicamente se tratasse de uma responsabilidade do sr. Lynn Hornbaker e do escritório de
Instalações Físicas, que deveriam ter visto e corrigido as placas muitos anos antes, o que é um dos
motivos pelos quais o processo de licitação pro design e a confecção das novas placas se tornaram
tão densos e inutilmente complexos — ao fazer a coisa das placas o mais difícil e complexa posível,
o pessoal da equipe do Hornbaker ajudava a suavizar e difundir a responsabilidade pelo fato das
placas não terem sido percebidas e corrigidas anos antes, de modo que, quando o escritório do
Diretor do CRA ficou sabendo daquilo, foi em meio a uma nuvem de memorandos internos e
circulares tão rebuscadas e obscuras que ninguém que não estivesse diretamente envolvido teria
prestado atenção, a não ser do jeito mais superficial e apenas nos detalhes mais gerais da baderna.

50. Essas portas duplas eram de aço cinza, e esse era o esquema cromático geral do Nível 1 —
branco estourado e cinza-fosco.

51. (com o Meio-Oeste tendo seu CRS naquela era em East St. Louis, duas horas a sudoeste dali)

52. (Só pra constar, o fim da primavera era sempre um período excepcionalmente ruim, em termos de
pele, durante aquela época; e as indelicadas lâmpadas fluorescentes do Nível 1 punham cada bolha,
cada sarna e cada lesão em impiedoso relevo.)

53. A informação logística, também, é pós-datada, pra ser bem preciso. No dia propriamente dito eu
não saberia te dizer nem onde nós estávamos no prédio àquela altura; ninguém saberia.

54. = Diretor Substituto de Recursos Humanos, que era o título oficial da posição do sr. Stecyk. Meu
contrato com o IRS, aliás, foi assinado, não pelo sr. Stecyk ou pelo DRH Richad Tate, mas pelo sr.
DeWitt Glendenning Jr., cujos títulos bivalentes eram DCRA (Diretor do Centro Regional de Análises)
e CRAA (Comissário Regional Assistente de Análises), mas que quase todo mundo chamava de
“Dwitt”.

55. Essa seria a sra. Marge van Hool, adjuvante e braço-direito do sr. Stecyk, que tinha os olhos sem
cílios, protuberantes e permanentemente abertos de um réptil ou de uma lula, algo que poderia te
matar e te comer sem que seu olhar alienígena e projetado sequer se alterasse, embora a sra. Van
Hool acabasse se provando o verdadeiro sal da terra, uma clássica manifestação da verdade de que a
aparência da maioria das pessoas tem muito pouco a ver com suas qualidades humanas intrínsecas…
verdade que me era muito preciosa naquele momento da vida.)

56. (intervalo durante o qual, por miradas momentaneamente disponíveis, eu primeiro percebi a Crise
Iraniana lendo um livro e depois, ulteriormente, cuidando da manga de seu paletó azul-chama-de-gás
com alguma espécie de implemento portátil de costura — ela era nitidamente bem preparada por
temperamento e/ou experiência pra ficar em filas longas.)

57. (i.e., nauseantemente aquecida pelo calor das costas e da bunda de um desconhecido)

58. Só bem mais tarde fiquei sabendo que o filho da sra. Sloper tinha sofrido queimaduras
gravíssimas em algum tipo de acidente automobilístico no Serviço, e que o estado da minha pele a
afetava mais que a média típica das mães por aí. Na ocasião, eu só soube que nos desprezamos à
primeira vista, como é claro que pode acontecer com certas pessoas.

59. Como normalmente cabe aos jovens de vinte anos, quando eu estava em casa, em Philo, fazia
questão de discutir com os membros da minha família sobre suas atitudes políticas, e no entanto
quando fora de casa eu muitas vezes me surpreendia sustentando por reflexo, ou ao menos
simpatizando com, as mesmas atitudes parentais. Imagino que isso tudo queria dizer que eu ainda não
tinha formado uma identidade própria estável.

60. (cujos méritos pessoais não incluíam a perceptividade — e eu estou longe de ser o único membro
da família que percebeu isso, pode apostar)

61. Eu ouvi, no entanto, uma troca oral envolvendo duas ou quem sabe três vozes invisíveis no
estreito corredor diante de cuja entrada estava minha cadeira, de dois funcionários do CRA que
deviam estar em alguma fila naquele corredor, que eu recordo (a troca) em detalhes porque a
iluminação fluorescente da sala de espera era de um branco acinzentado atordoante, e desprovida de
sombras, o tipo de luz que faz as pessoas quererem se matar, e eu não conseguia imaginar como era
passar nove horas por dia numa luz como aquela, e portanto estava emocionalmente predisposto a
perceber aquela troca em meio a todo o ruído ambiente das trocas realizadas na sala, apesar de não
conseguir enxergar os envolvidos; e cheguei até a transcrever partes da conversa em tempo real numa
espécie de estenografia particular na parte interna da capa do livro de psicologia popular, pra depois
transferir pro caderninho (o que é o motivo de eu poder narrar isso tudo com um grau de detalhe tão
de-aparência-suspeita); a saber:
“Isso que é a versão curta?”
“Bom, a questão é que o pessoal do Sistema não é incriativo. Não dá pra colocar todos eles no
mesmo saco.”
“Não incriativo? Que tipo de palavra é essa?”
“A economia imediata com as lâmpadas fluorescentes era óbvia. Era só comparar as contas de luz.
A iluminação fluorescente nos Centros de Análise já era uma questão de doutrina. Mas o Lehrl
descobriu, pelo menos em La Junta, que trocar as lâmpadas incandescentes embutidas no teto por
luminárias comuns e de mesa aumentava a eficiência.”
“Não, a única coisa que os caras dos Sistemas descobriram é que o número de declarações
processadas aumentou depois que trocaram as fluorescentes pelas luminárias.”
“De novo, não. O que a equipe do Lehrl descobriu foi que o número bruto de declarações
auditadas no CRA Oeste aumentou mensalmente, pelo menos por três trimestres depois da
instalação das incandescentes, e aumentou de maneira a tornar o custo de instalação e o valor
mensal da eletricidade por causa das incandescentes uma questão quase negligenciável, desde que
você amortizasse a despesa de tirar as fluorescentes todas e consertar o teto.”
“Mas eles nunca provaram que as incandescentes tinham uma relação causal direta com o aumento
das declarações auditadas.”
“Mas como é que você prova uma coisa dessas? A planilha geral de uma reunião são milhares de
páginas separadas. O aumento vinha de escritórios distritais espalhados por toda a região Oeste.
São variáveis demais pra você controlar — uma conexão única é improvável. Por isso precisa de
criatividade. Os caras do Lehrl sabiam que existia uma correlação. Eles só não conseguiram fazer
ninguém do Três-Meias aceitar a correlação.”
“Isso é a sua interpretação.”
“Eles querem tudo quantificado. Mas como é que você quantifica o moral?”
… transcrição esta que acabou deixando o livro algo precioso, em termos de reprodução, décadas
depois. Então ao mesmo tempo foi e não foi uma perda de tempo, dependendo do ponto de vista e
do contexto de cada um.

62. O escritório do próprio Diretor de Recursos Humanos ficava no fim de um dos corredores radiais
da sala de espera. Como eu ainda viria a saber, Mr. Tate, como muitos administradores superiores,
preferia trabalhar longe dos olhos dos outros; ele raramente interagia com qualquer um que não
estivesse acima de GS-15.

63. Eles, depois eu aprendi, eram “vira-bostas”, termo este que se referia a funcionários de apoio de
funções mais baixas ou com contratos temporários que vinham especialmente pra alimentar dados
nos sistemas informáticos do CRA. Muitos deles eram alunos ou da universidade profissionalizante
local ou do Peoria College of Business, que não era uma universidade de elite. Como muitos grupos
marginalizados ou de castas baixas, os vira-bostas acabavam sendo muito unidos e muito
excludentes, mesmo quando alguns deles eram designados pra tarefa de “menino de cargas” e como
resultado disso passavam a conhecer e a trocar gracejos com muitos fraldinhas e imersivos de maior
estatuto hierárquico cujos materiais de análise e suprimentos eles (i.e., os vira-bostas) tinham que
transportar de um lado pro outro em grandes carrinhos cheios de níveis internos, caixas e bandejas
que podiam ser expandidas como uma enorme caixa de ferramentas cheia de andares e
compartimentos diferentes, de modo que os carrinhos viravam imensas e complicadas versões de um
carrinho normal de supermercado ou de entrega de correspondência numa empresa, que mais
pareciam uma máquina de Goldberg, sendo que alguns deles (ou seja, os carrinhos) faziam um
tremendo estardalhaço ao ser empurrados, por causa daquela montoeira de partes internas, camadas e
compartimentos ajambrados ali dentro.

64. (significando que o primeiro rapaz não disse nada)

65. Sendo mais preciso, era alguém que eu supus ser um homem… De onde eu estava, que era
fundamentalmente atrás da pessoa agachada, ele/ela parecia estar usando um terno cujas ombreiras
estofadas, naquela época, eram unissex.

66. (gênero, de novo, por suposição minha)

67. Pra dizer a verdade, essas pessoas estavam paradas numa espécie de fila preliminar apenas pra
poderem entrar nas filas dos três corredores a fim de falar com vários funcionários de nível médio do
RH como a sra. Van Hool, que estava bem naquele momento (extrapolando retroativamente a partir do

iminente ressurgimento de Ms. Neti-Neti com o Formulário 706-CI assinado) dando-lhe um conjunto
sucinto e decisivo de instruções quanto ao que devia ser feito com e pelo valioso, veterano,
qualificadíssimo especialista em análises imersivas que elas achavam que eu era. (N.B. Aquele
analista, transferido do CRA Nordeste, da Filadélfia, sendo não apenas chamado David Wallace mas
estando também com a chegada prevista pro dia seguinte, e que a Crise Iraniana tinha sido enviada
pra esperar e acompanhar pessoalmente, depois que os sistemas informáticos do RH cometeram um
erro de conflação que será explicado no §38 ao de fato ter fundido aquele segundo e retardado David
Wallace comigo, o que explicava tanto a identidade trocada quanto a data trocada… tudo isso sendo,
vai sem dizer, informação post facto que eu não tinha nem como saber nem como supor naquele
momento, já que David Wallace, ainda que não seja o nome mais raro dos Estados Unidos, também
não é tão comum assim. Nem eu nem qualquer outra pessoa sabia, obviamente, naquele 15 de maio
— data em que o outro, mais velho e mais “valioso” David Wallace estava liberando as bandejas de
sua mesa e ajudando um menino de carga de nível sênior a coligir e organizar os arquivos e
documentos de apoio que seriam distribuídos a outros membros de sua equipe imersiva em
preparação pra sua transferência e seu voo do dia seguinte — que quando, no dia seguinte, esse
transferido de alto nível chegasse na hora marcada e tentasse se registrar na Estação de
Processamento GS-13 do saguão do CRA Meio-Oeste, ele não conseguiria fazê-lo — se registrar e
receber permissão pra seguir até a fila onde receberia seu novo crachá do CRA — porque a Estação de
Processamento GS-13 obviamente já teria seu nome entre os das pessoas que já estavam registradas e
de posse de suas novas identidades, tendo aquele crachá GS-13 e aquele número de identidade (que
era daquele outro David Wallace; ele tinha recebido doze anos antes) já sido entregues em Peoria a
mim, o autor e “verdadeiro” (pra mim) David Wallace, que obviamente não estava em posição de
entender nem explicar (depois) que a coisa toda era uma grande cagada administrativa e não uma
tentativa intencional de suplantar ou de corporificar um GS-13 do IRS com mais de doze anos de
devotados serviços prestados num trabalho cuja dificuldade e cujas arcanas complicações eu logo
começaria a descobrir; mas de um jeito ou de outro essa baderna toda acabaria explicando não apenas
as efusivas boas-vindas e o equivocado nível de carreira de servidor com seu salário adequado (que
eu não vou fingir que não foi uma surpresa agradável pra mim, ainda que algo intrigante) como
também, em parte, o estranho e — pra mim — inédito interlúdio no escuro armário de fusíveis de um
dos corredores radiais que se estendiam do corredor central do Nível 1 com Ms. Neti-Neti logo
depois de eu ter sido conduzido até a frente da fila de identidades e recebido o novo crachá, em que
(i.e., no incidente no armário de fusíveis) ela me jogou contra uma série cálida de caixas embutidas
de circuitos e administrou o que, segundo o ex-presidente W. J. Clinton, não poderia ser
adequadamente considerado como sendo “sexo”, mas que pra mim foi disparado a coisa mais sexual
que tinha acontecido ou que ia acontecer até quase 1989, tudo isso gerado em razão tanto da
incapacidade do computador do RH de distinguir dois David Wallaces internos diferentes quanto da
aparente instrução da sra. Van Hool pra que Ms. Neti-Neti estendesse a “mim” (i.e., ao GS-13 que eles
tinham se empenhado tanto pra recrutar e convencer a se transferir da Célula Imersiva de elite do CRA
Nordeste) “toda a atenção possível”, o que acabou revelando ser uma expressão muito carregada
semântica e psicologicamente para Chahla Neti-Neti, que tinha amadurecido na cultura sibarita, mas
tremendamente rica em termos de etiqueta e de eufemismos do Irã pré-revolução (fiquei sabendo
disso depois, obviamente), e tinha, como muitas outras moças iranianas núbeis com conexões
familiares com o governo atual, sido basicamente obrigada a “trocar” ou “mercadejar” atividades
sexuais com funcionários de alto escalão a fim de conseguir tirar do Irã a si própria e a outros dois ou
três membros de sua família durante o tenso período em que a substituição do regime do xá estava
ficando cada vez mais certa, e para quem “estend[er] toda a atenção possível” portanto se traduzia
numa rodada veloz e quase percussiva de felação, sendo aparentemente esse o método preferencial de
satisfazer os funcionários do governo de quem se buscava obter algum favor mas cujo rosto você não
desejava ou não conseguia suportar olhar. Mas ainda assim foi bem excitante, malgrado tenha sido —
por motivos óbvios — extremamente breve, e também ajuda a explicar por que demorou tanto pra eu
até me dar conta de que tinha deixado uma das minhas malas na sala de espera do escritório do RH…
Contexto esse todo que também explicaria depois o apodo de “Crise Iraniana” dado a Ms. Chahla
Neti-Neti, cujo formato dos seios contra o veludo úmido das minhas coxas continua sendo uma das
mais vivas lembranças sensuais de toda aquela cagada geral que foram os meus primeiros dias como
imersivo do IRS.

68. (de novo, mais um auxílio para a confusão de gêneros…)


§ 35
1. (na verdade uma mulher, judia)

2. As cotas de produtividade são uma realidade no Serviço. Não é difícil entender esse fato. Diante da
existência de numerosas e repetidas declarações públicas em sentido contrário, dadas por
funcionários de alto escalão do Três-Meias, contudo, tais cotas internas precisam ser mantidas e
registradas em código. Ao mesmo tempo, os administradores consideram o conhecimento de tais
cotas um precioso incentivo de desempenho, o que é motivo do Departamento de Adimplência
determinar e autorizar o uso de códigos internos que são ridiculamente familiares para quase todos os
auditores. O código Charleston, em que C representa o número 0 e H representa o número 1,
pontinho, pontinho, pontinho, até o N que representa o 9, é hoje em dia fundamentalmente
empregado por varejistas que usam um sistema perpétuo de inventário que precisa incluir o custo
declarado dos bens em cada registro de transação. Assim, a etiqueta com o preço no varejo de
determinado item em, digamos, um supermercado rural IGA vai incluir tanto o preço no varejo em
dígitos quanto o preço do distribuidor por unidade ou no sistema CGS em código Charleston,
normalmente na parte inferior da etiqueta. Assim, qualquer pessoa que conheça o código pode
determinar a partir, digamos, de um preço no varejo de $1,49 e de um minúsculo TE abaixo dele, que
a margem de lucro por unidade aqui é de quase 100% e que o supermercado IGA onde ele faz suas
compras ou está disposto a lhe arrancar os olhos da cara ou tem despesas de funcionamento
extraordinárias, que possivelmente envolvem dívidas mal negociadas — problema comum no
gerenciamento de cadeias de supermercados no Meio-Oeste. Por outro lado, uma vantagem do
código Charleston é que inflacionar o Custo das Mercadorias Vendidas no Anexo A é uma das
formas mais comuns e eficientes de uma franquia varejista maquiar seus números na Linha 33,
especialmente se o varejista emprega um tipo de código para o sistema CGS e seu distribuidor usa
outro para o que recebe dele — e quase todos os distribuidores usam um código PIS de base oito,
muito mais sofisticado. É por isso que tantas auditorias empresariais de grande porte se coordenam
para analisar todos os vários níveis da cadeia de fornecimento de maneira simultânea. Essas
auditorias coordenadas são conduzidas pelo Regional, normalmente empregando analistas GS-13
especialmente escolhidos no Centro Regional de Análise; nós não fazemos essas auditorias no nível
do Distrito.

3. (eu observei que uma das ribanas elásticas de seu macacão amarelo de camurça estava encharcada
de saliva e parecia, vários centímetros antebraço do bebê acima, mais escura que a do outro punho,
coisa que o bebê parecia ignorar e que eu certamente não mencionei nem considerei como um
assunto que devesse abordar)
§ 38
1. Por causa do volume pesado e basicamente ininterrupto de dados que o IRS processa, seus sistemas
computacionais tiveram que ser construídos com o bonde andando e tinham que ser mantidos e
atualizados da mesma maneira. A situação era análoga à da manutenção de uma estrada cujo alto
volume de tráfego tanto demanda quanto dificulta uma manutenção séria (i.e., não há maneira de
simplesmente fechar a estrada para consertar tudo de uma vez; não há como desviar aquele tráfego
todo). Pensando a posteriori, teria no fim sido mais barato e mais eficiente fechar o Serviço inteiro
por um breve período e transferir tudo para um sistema moderno e recém-instalado a partir de discos
em todo o país. Só que na época isso parecia inimaginável, especialmente à luz da espetacular
debacle do CRA de Rome, Nova York, em 1982, sob a pressão de um acúmulo de dados por processar.
Então muitas correções e atualizações eram temporárias e parciais e, olhando a posteriori,
insanamente ineficazes, p. ex. tentar aumentar o poder de processamento alterando equipamentos
antiquados para acomodar cartões de computador ligeiramente menos antiquados (fora que os Power
Cards tinham furos redondos em vez dos quadrados dos holerites, o que exigia tudo quanto era tipo
de alteração violenta num equipamento Fornix que já era velho e frágil).

2. O que para um leigo pode parecer um problema óbvio causado por essa correção — i.e., a perda da
capacidade do sistema de reconhecer e classificar rebaixamentos dentro do IRS — não era na verdade
um grande problema, comparativamente, para os Recursos Humanos. O fato é que menos de ,002%
dos funcionários do Internal Revenue Service acabam um dia rebaixados de nível funcional em razão
em grande medida do poder coletivo de barganha da Associação Nacional de Funcionários do
Tesouro. Com efeito, as condições e as barreiras burocráticas necessárias para um rebaixamento
foram sendo gradualmente revigoradas até que na maioria dos casos elas não eram menos duras do
que as necessárias para uma demissão por justa causa… embora essa seja em grande medida uma
questão de somenos importância, mencionada apenas para evitar algumas possíveis confusões do
leitor.

3. (que, de novo, era na verdade o térreo do edifício principal)

4. Provavelmente vale a pena mencionar dois outros bugs ou duas outras fraquezas sistêmicas ou seja
lá o que for que contribuiu com o banzé de cuia todo e com minha recepção inicialmente equivocada
no Posto 047. O primeiro problema era que, devido a limitações impostas pela reconfiguração de
certos programas básicos para acomodar Power Cards de noventa colunas e furos redondos, as
etiquetas de arquivo do sistema computadorizado só podiam acomodar a inicial do segundo nome de
um funcionário, o que no caso de David Francis Wallace, transferência preciosa da Filadélfia, não foi
o bastante para que ele se distinguisse no sistema de David Foster Wallace, contratado de baixo valor.
O segundo problema, bem mais sério, era que os números originais de Seguro Social do pessoal do
IRS (i.e., os números civis conferidos a eles na infância) são sempre deletados e substituídos em todo
o sistema pelo novo número gerado pelo IRS que também serve como Identidade no Serviço. O
número original de um funcionário fica “guardado” apenas na sua inscrição original com solicitação
de emprego — inscrições essas que são sempre gravadas em microfilme e armazenadas no Centro
Nacional de Registros, CNR esse que em 1981 estava espalhado por uma dúzia de anexos regionais e
armazéns diferentes e era notoriamente mal gerenciado, desorganizado e ruim de entregar registros
específicos em qualquer prazo decente. Fora que de qualquer maneira as etiquetas de arquivo do
sistema de RH só acomodam um único número de SS, e esse há de obviamente ser o novo número
iniciado por um “9” que funciona como número de Identidade dentro do Serviço. E como o 975-04-
2012 que o novo David F. Wallace, ralé, recebe quando do Processamento Expresso era também o
975-04-2012 da Identidade do Serviço do David F. Wallace mais velho, elite, GS-13, os dois
funcionários se tornaram, no que se referia ao sistema computadorizado do Serviço, a mesma pessoa.

5. Pensando bem, agora fica claro que havia na verdade um terceiro problema sistêmico ainda mais
grave, que era, antes de 1987, os sistemas computadorizados do Serviço estarem organizados no que
se conhece como um modelo de integração de rede do tipo “Roda Ruim”. De novo, há muitos
detalhes arcanos e muita explicação — quase sempre envolvendo não apenas a situação de
manutenção tentando-arrumar-uma-estrada-enquanto-ainda-se-permite-que-as-pessoas-transitem
detalhada acima, mas também a qualidade fragmentária e ajambrada dos sistemas cuja manutenção
dependia de dotações orçamentárias anuais para o Ramo Técnico, que por vários motivos
burocráticos/políticos flutuavam loucamente de um ano para outro — mas a questão dessa coisa da
Roda Ruim era que a organização de rede do Ramo Técnico em meados dos anos 80 parecia uma
roda com cubo mas sem aro. Em termos de interfaces de computador, tudo tinha que passar pelo NCC
de Martinsburg. Uma transferência de dados do Centro Regional de Análise Meio-Oeste de Peoria
para o QG Regional Meio-Oeste em Joliet, por exemplo, acarretava na verdade duas transferências
separadas de dados, a primeira de Peoria para Martinsburg e a segunda de Martinsburg para Joliet. Os
modems e as linhas reservadas de Martinsburg eram (para aquela época) de alta capacidade, em
Bauds, e eficientes, mas ainda assim vivia acontecendo um atraso no “prazo de roteamento”, termo
neutro que no fundo se referia ao fato de que os dados que chegavam ficavam ali parados nos cofres
magnéticos dos mainframes Fornix de Martinsburg até ser a sua vez na fila de roteamento. O que
significava que sempre havia um atraso. E, por motivos compreensíveis, a fila era sempre maior e o
atraso era sempre pior nas semanas que se seguiam ao tsunâmi de declarações de pessoas físicas no
dia 15 de abril. Houvesse qualquer coisa parecida com processamento lateral no sistema do IRS —
i.e., fossem os computadores do RH e dos Sistemas do CRA Meio-Oeste capazes de uma interface
direta com suas contrapartidas de RH/Sistemas no CRA Nordeste da Filadélfia, todo o banzé de cuia
sobre David F. Wallace teria sido resolvido (e toda a responsabilização indevida teria sido evitada)
com muito mais rapidez. (Isso sem falar que a coisa toda de um modelo de roda sem aro negava a tão
falada descentralização do Serviço a partir do relatório da Comissão King, em 1952, que em termos
gerais não é relevante aqui a não ser no que tenha de simples acréscimo à imbecilidade tipo máquina
de Goldberg da situação toda.)

6. (Eram os dados publicados mais recentes, e o Serviço tinha que confiar exclusivamente em dados
publicados porque o novo sistema Univac do Dep. de Comércio dos EUA era incompatível com o
hardware Fornix mais antiquado que Martinsburg ainda estava usando.)

7. (Agora você provavelmente pode ver por que essa coisa apositiva de “autor” às vezes se faz
necessária; acabou que havia dois David Wallaces separados postados no CRA Meio-Oeste, sendo que
o único deles que acabou sendo acusado de falsidade ideológica foi adivinha quem?)
§ 39
1. Aquisição Remota de Fatos.

2. Intrusão Espontânea de Dados.


§ 46
1. Meredith Rand não fica menos atraente ou bonita quando fala com alguém sobre se cortar de
maneira ritualística e acabar indo parar no Zeller Center. Mas de fato acaba parecendo abruptamente
mais velha ou mais sofrida. Dá para ver, não só imaginar, mas ver como o rosto dela vai estar aos
quarenta — o que afinal, como se sabe muito bem, será só uma nova forma de beleza, uma beleza
menos ganha e mais severa ou “conquistada”, em que as imperfeições e rugas que emerjam não
conspurcam seus belos traços, mas na verdade os emolduram, revelam emendas num rosto que é feito
e não simplesmente moldado aleatoriamente. O rosto e a leve fenda do queixo de Meredith Rand
brilham vagamente sob a luz vermelha das chamas falsas da parede.
MARION ETTILINGER

DAVID FOSTER WALLACE nasceu em 1962, em Nova York, e faleceu em 2008. Foi
romancista, contista e ensaísta. Dele, a Companhia das Letras publicou o volume
de contos Breves entrevistas com homens hediondos, a coletânea de ensaios
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo e o romance Graça
infinita, considerado um dos melhores livros das últimas décadas.
Copyright © 2011 by David Foster Wallace Literary Trust

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Título original
The Pale King

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Preparação
Ciça Caropreso

Revisão
Ana Maria Barbosa
Aminah Haman

Versão digital
Rafael Alt

ISBN 978-65-5782-469-6

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
facebook.com/companhiadasletras
instagram.com/companhiadasletras
twitter.com/cialetras
Graça infinita
Wallace, David Foster
9788543802190
1144 páginas

Compre agora e leia

2ª edição com notas atualizadas Um dos romances mais importantes das


últimas décadas, Graça infinita chega enfim aos leitores brasileiros em
tradução do vencedor do prêmio Jabuti Caetano W. Galindo. Os Estados
Unidos e o Canadá já não existem: eles foram substituídos pela poderosa
Onan, a Organização de Nações Norte-Americanas. Uma enorme porção do
continente se tornou um depósito de lixo tóxico. Separatistas quebequenses
praticam atos terroristas e a contagem dos anos foi vendida às grandes
corporações. Graça infinita foi o último grande romance do século XX e
teve um impacto duradouro e ainda difícil de ser aferido. Ora cômico, ora
doloroso, ele encapsulou uma geração ligada à ironia e ao entretenimento,
mas desconectada da imaginação, da solidariedade e da empatia. No
romance, seguimos os passos dos irmãos Incandenza - membros da família
mais disfuncional da literatura contemporânea -, conforme tentam dar conta
do legado do patriarca James Incandenza, um cientista de óptica que se
tornou cineasta e cometeu suicídio depois de produzir um misterioso filme
que, pela alta voltagem de entretenimento, levava seus espectadores à
morte. Enquanto organizações governamentais e terroristas querem usar o
filme como arma de guerra, os Incandenza vão se embrenhar numa cômica
e filosófica busca pelo sentido da vida. Graça infinita dobra todas as regras
da ficção sem jamais sacrificar seu próprio valor de entretenimento. É uma
exuberante e original investigação do que nos torna humanos - e um desses
raros livros que renovam a ideia do que um romance pode ser.

Compre agora e leia


Limite branco
Abreu, Caio Fernando
9786557824337
200 páginas

Compre agora e leia

O romance de estreia de um dos autores mais marcantes da literatura


brasileira.

Escrito quando Caio Fernando Abreu tinha apenas dezenove anos e


publicado poucos tempo depois, em 1971, Limite branco inaugura a
trajetória de uma das vozes mais apaixonantes da nossa literatura. Ao longo
da trama, acompanhamos as descobertas, os anseios e os temores de
Maurício num período intenso e angustiante, quando a infância fica para
trás e o caminho que leva à vida adulta não passa de uma incógnita.

Para a escritora Natalia Borges Polesso, que assina o posfácio da presente


edição, neste livro "há um limite branco, que uma pessoa cruza para
amadurecer, no qual as emoções se borram e se sobrepõem e não se tem
muito uma ideia de onde começa um sentimento e o outro termina."

Compre agora e leia


O amanhã não está à venda
Krenak, Ailton
9788554517328
12 páginas

Compre agora e leia

As reflexões de um de nossos maiores pensadores indígenas sobre a


pandemia que parou o mundo.

Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam bravamente


ameaças que podem levá-los à aniquilação total e, diante de condições
extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades.
Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a reconsiderar seu estilo
de vida, o pensamento de Ailton Krenak emerge com lucidez e pertinência
ainda mais impactantes.
Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia de
"volta à normalidade", uma "normalidade" em que a humanidade quer se
divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco de
desigualdade entre povos e sociedades. Depois da terrível experiência pela
qual o mundo está passando, será preciso trabalhar para que haja mudanças
profundas e significativas no modo como vivemos.
"Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham
que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso,
como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos
de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã.
Temos de parar de vender o amanhã."

Compre agora e leia


Solitária
Cruz, Eliana Alves
9786557824269
168 páginas

Compre agora e leia

"Mãe, a senhora precisa se libertar destas pessoas. A senhora não deve


nada pra elas. Não tenha medo de encarar esse povo que nunca limpou
a própria privada."

Solitária conta a história de duas mulheres negras, Mabel e Eunice, mãe e


filha, que moram no trabalho, um condomínio de luxo desses encontrados
em qualquer grande cidade brasileira. Eunice, a mãe, é testemunha-chave de
um crime chocante ocorrido na casa dos patrões. Mabel, a filha, constrói o
caminho que leva não apenas à elucidação deste crime, mas a uma mudança
radical na vida das pessoas que cercam as protagonistas.

Em prosa ágil, intensa e assertiva, Eliana Alves Cruz constrói uma miríade
de histórias que revolve o imaginário do trabalho doméstico no Brasil —
ainda tão vinculado à época escravocrata — e o relaciona a questões
contemporâneas urgentes como a pandemia, o debate sobre ações
afirmativas e a luta por direitos reprodutivos.

Testemunho de uma crucial mudança de sensibilidade no espírito de nosso


tempo, Solitária dá provas do quão urgente se tornou elaborar — sem meias
palavras — não apenas a história, mas as sobrevidas da escravidão colonial.
Ao fazê-lo, mostra como é possível enfrentar o desafio moral e ético de
abordar essas experiências de vida sem replicar gratuitamente a violência
que a sustenta nem reencenar nenhum pacto oculto de subalternidade. É um
romance libertação.
"Eliana narra com a maestria da linguagem de alguém que sabe lidar com as
palavras." — Conceição Evaristo

"Em Solitária, Eliana desponta como uma das mais importantes vozes de
nossa literatura contemporânea." — Itamar Vieira Junior

Compre agora e leia


Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 páginas

Compre agora e leia

O que significa ser feminista no século XXI? Por que o feminismo é


essencial para libertar homens e mulheres? Eis as questões que estão no
cerne de Sejamos todos feministas, ensaio da premiada autora de
Americanah e Meio sol amarelo.
"A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É
importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um
mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais
felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar:
precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também
precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente."
Chimamanda Ngozi Adichie ainda se lembra exatamente da primeira vez
em que a chamaram de feminista. Foi durante uma discussão com seu
amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz
dele; era como se dissesse: 'Você apoia o terrorismo!'". Apesar do tom de
desaprovação de Okoloma, Adichie abraçou o termo e — em resposta
àqueles que lhe diziam que feministas são infelizes porque nunca se
casaram, que são "anti-africanas", que odeiam homens e maquiagem —
começou a se intitular uma "feminista feliz e africana que não odeia
homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma, e não para os
homens".
Neste ensaio agudo, sagaz e revelador, Adichie parte de sua experiência
pessoal de mulher e nigeriana para pensar o que ainda precisa ser feito de
modo que as meninas não anulem mais sua personalidade para ser como
esperam que sejam, e os meninos se sintam livres para crescer sem ter que
se enquadrar nos estereótipos de masculinidade.

Compre agora e leia

Você também pode gostar