O Rei Pálido David Foster Wallace
O Rei Pálido David Foster Wallace
O Rei Pálido David Foster Wallace
Capa
Folha de rosto
Sumário
Nota do editor
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§2
§3
§4
§5
§6
§7
§8
§9
§10
§11
§12
§13
§14
§15
§16
§17
§18
§19
§20
§21
§22
§23
§24
§25
§26
§27
§28
§29
§30
§31
§32
§33
§34
§35
§36
§37
§38
§39
§40
§41
§42
§43
§44
§45
§46
§47
§48
§49
§50
Notas e apartes
Quatro cenas previamente inéditas de O rei pálido
Sobre o autor
Créditos
Nota do editor
“O quinto efeito tem mais a ver com você, com como você é percebido.
É poderoso apesar de um uso mais restrito. Preste atenção, guri. A próxima
pessoa adequada com quem você estiver numa conversa tranquila, pare de
repente no meio da conversa e olhe bem de perto para a pessoa e diga: ‘O
que foi?’. Você fala isso de um jeito preocupado. Ela vai dizer: ‘Como
assim?’. Você diz: ‘Alguma coisa está te incomodando. Dá pra ver. O que
é?’. E ela vai fazer uma cara impressionadíssima e dizer: ‘Como é que você
sabe?’. Ela não percebe que sempre tem alguma coisa errada com todo
mundo. Muitas vezes mais de uma coisa. Ela não sabe que todo mundo está
sempre andando por aí com alguma coisa errada na vida e acreditando que
está exercendo uma grande força de vontade e um controle incrível para
evitar que os outros, com quem elas acham que nada, nunca, está errado,
acabem vendo. As pessoas são assim. Pergunte de repente o que foi, e caso
elas se abram e vomitem tudo ou neguem e finjam que você está enganado,
de todo jeito elas vão achar que você é atencioso e compreensivo. Vão ficar
ou gratas ou assustadas e vão passar a te evitar daí em diante. As duas
reações têm suas utilidades, como vamos ver. Pode ser útil de um jeito ou
de outro. Funciona em mais de 90% das vezes.”
que ele tinha se prometido fazer hoje de manhã quando dormiu um tantinho
além da conta e aí se deparou com problemas bagagísticos de última hora
que tinham cancelado a revisão matinal para a prova, firmemente agendada,
antes ainda de uma das vans não identificadas dos Sistemas chegar para
levar a ele e às malas por Harpers Ferry e Ball’s Bluff até o aeroporto, isso
sem falar ainda mais de qualquer tipo de organização sistemática dos
volumosos materiais de Lotação, Trabalho, Pessoal e Protocolos de
Sistemas que ele ia receber imediatamente depois do registro e de ter seus
formulários processados no novo posto de trabalho, o que qualquer Diretor
de RH razoável teria esperado que um novo analista tivesse internalizado
plenamente antes de se apresentar para o primeiro dia de efetiva interação
com analistas do CRA, e que nem a pau em qualquer mundo real Sylvanshine
poderia esperar tentar rever e internalizar depois de um jejum de dezesseis
horas e depois de uma noite num colchonete com a capa de chuva úmida
servindo de travesseiro — ele não tinha conseguido incluir na bagagem o
travesseiro ortopédico com contorno especial para o nervo cronicamente
pinçado ou inflamado que tinha no pescoço; ele precisaria de uma mala
exclusiva, portanto ultrapassaria o limite de bagagem e acarretaria uma
sobretaxa exorbitante que Reynolds se recusou a deixar Sylvanshine pagar
simplesmente por uma questão de princípios — com o problema adicional
de ele conseguir qualquer espécie de desjejum substancioso ou uma nova
ida até o CRA de manhã sem um telefone, ou como se esperava que alguém
sem telefone conseguisse inclusive analisar se e quando o telefone do
apartamento seria ativado, fora é claro a ominosa probabilidade de dormir
demais na manhã seguinte por consequência tanto da fadiga da viagem
quanto de não ter colocado na mala seu despertador de viagem — ou de
pelo menos não ter certeza de ter posto o despertador na mala em vez de
deixar que ficasse numa das três caixas de papelão grandes que ele tinha
enchido e etiquetado mas feito um trabalhinho apressado, meia-boca, na
hora de escrever as Listas de Conteúdos das caixas para poder consultar
quando fosse desembalar tudo em Peoria, e que Reynolds tinha jurado que
ia colocar nos mecanismos de malote do Departamento de Apoio do
Serviço mais ou menos no momento em que estava agendada a partida do
voo de Sylvanshine que saía de Dulles, o que significava dois ou talvez até
três dias antes de as caixas com todos os bens essenciais que Sylvanshine
não tinha conseguido acomodar na bagagem chegassem, e mesmo aí, elas
iriam chegar ao CRA e ainda não estava claro como Claude então as levaria
para casa, no apartamento — tendo sido a percepção da questão do
despertador de viagem o principal motivo de Sylvanshine ter precisado
destrancar e abrir todas as malas cuidadosamente feitas naquela manhã ao
levantar da cama já meia hora atrasado, para tentar achar ou analisar a
inclusão do despertador portátil, o que não conseguiu fazer — a coisa toda
apresentava um ciclone tão gigante de problemas e complexidades
logísticas que Sylvanshine foi forçado a fazer um pouco de Interrupção de
Pensamento bem ali na pista molhada, cercado de respiradores irrequietos,
girando 360o várias vezes e tentando fundir sua própria atenção com o
panorama circunstante, que a não ser pelos itens aeropórticos era
uniformemente indistinto e de um cinza de moeda velha e tão
impressionantemente plano que era como se a terra tivesse sido pisoteada
por alguma botina cósmica, com a visibilidade em todas as direções
limitada apenas pelo horizonte, que tinha as mesmas cor e textura gerais do
céu e criava a impressão especular de que se estava no centro de algum
imenso corpo de água estagnada, uma impressão oceânica tão literalmente
obliterante que Sylvanshine era jogado ou lançado para trás e como que de
volta para dentro de si e sentia de novo o gume da sombra da asa do Terror
Total e da Desqualificação passar por cima de si, a certeza de que ele era
certa e imprestavelmente inadequado para o que quer que o esperasse, e de
ser apenas uma questão de tempo antes de esse fato emergir e se fazer
manifesto para todos os que estivessem presentes no momento em que
Sylvanshine finalmente, e para sempre, perdesse a cabeça.
§ 3
smiley que ele mesmo fez. Para os automóveis cujos donos conhece ele
acena e dá um sorriso extragrande e lança palavras animadoras enquanto a
faixa de pedestre fica livre e os carros arrancam e passam voando, alguns só
de brincadeirinha fazendo uma manobra para cima dele e desviando por
centímetros enquanto ele ri e sai de lado num passo de dança e fazendo uma
careta de pânico fingido para as laterais e os para-choques traseiros. (Na vez
em que aquele SUV não desviou em cima da hora aconteceu mesmo um
acidente, e ele enviou vários bilhetes para deixar perfeitamente claro que
sabia disso e compreendia, e pediu que um montão de gente com quem
ainda não tinha tido a oportunidade de fazer amizade assinasse seu gesso, e
decorou as muletas com todo o cuidado com pedacinhos de fita colorida,
papel laminado e lantejoulas adesivas, e antes mesmo do mínimo de seis
semanas que o médico rigorosamente prescreveu ele doou as muletas para a
ala pediátrica do hospital Calvin Memorial para iluminar a convalescência
de alguma outra criança menos afortunada e menos feliz, e quando aquilo
tudo acabou ele se sentiu inspirado a escrever uma redação bem longa para
inscrever no Concurso Anual de Redações de Estudos Sociais sobre como
até mesmo um ferimento acidental doloroso e debilitante pode gerar novas
oportunidades para fazer amigos e ajudar aos outros, e por mais que a
redação não tenha vencido e nem mesmo conseguido uma menção honrosa
ele para dizer a verdade nem ligou porque sentia que escrever a redação já
tinha sido uma recompensa e que ele tinha ganhado muito com todo aquele
processo de revisar nove versões dela, e ficou feliz de verdade pelas
crianças cujas redações ganharam prêmios e lhes disse que tinha mais que
100% de certeza de que elas mereciam e que se elas quisessem conservar as
redações premiadas e talvez até quem sabe transformá-las em objetos de
exposição para seus pais seria um prazer para ele plastificar as redações e
até corrigir qualquer errinho de ortografia que encontrasse se elas
quisessem, e em casa seu pai põe as mãos no ombro do pequeno Leonard e
diz que fica orgulhoso por seu filho ser tão bom perdedor e se oferece para
levá-lo à sorveteria Dairy Queen como uma espécie de recompensa, e
Leonard diz ao pai que agradece muito e que o gesto significa bastante para
ele mas que com toda a sinceridade ele ia gostar ainda mais se eles
pegassem o dinheiro que o pai ia gastar em sorvetes e fossem doá-lo ou
para a Apae ou, melhor ainda, para o Unicef, para que ele atendesse às
necessidades de criancinhas biafrenses mortas de fome que ele sabe com
certeza que provavelmente nunca nem ouviram falar de sorvete, e diz que
aposta que isso ia acabar dando aos dois uma sensação ainda melhor do que
a que viria da DQ, e enquanto o pai larga as moedas na fenda para moedas
do cofrinho-abóbora especial de voluntário do Unicef, feito de papelão
laranja-brilhante, Leonard para um segundo para manifestar outra vez sua
preocupação com o tique facial do pai e lhe dar um delicado cutucão sobre
sua relutância em ir falar com o médico da família a respeito disso,
registrando mais uma vez que de acordo com a planilha atrás da porta do
seu quarto o pai está três meses atrasado para o checape anual e que já se
passaram quase oito meses da data recomendada para a dose de reforço da
antitetânica.)
Ele atua como monitor de corredor para os Períodos 1 e 2 (ele tem meio
semestre adiantado de créditos) mas dá muito mais advertências oficiais que
punições efetivas — sente que está ali para servir e não para humilhar as
pessoas. Normalmente com as advertências ele aplica um sorriso e diz aos
alunos que só se é jovem uma única vez, e que então é melhor aproveitar, e
que eles saiam logo dali e façam aquele dia valer a pena, então. Ele é
membro do Unicef e da Apae e inaugura um programa de reciclagem de
lixo em três séries consecutivas da escola. Ele é saudável e limpinho e está
sempre bem-vestido o suficiente para projetar uma noção básica de cortesia
e respeito pela comunidade de que faz parte, e educadamente levanta a mão
em sala de aula para todas as perguntas, mas só se tiver certeza de que sabe
não apenas a resposta correta mas a formulação daquela resposta que a
professora está querendo para adiantar a discussão do tema geral daquele
dia, muitas vezes ficando depois da aula para conferir com a professora se a
abordagem dele dos objetivos gerais dela está em ordem e para perguntar se
havia alguma maneira de tornar melhores ou mais úteis suas respostas em
sala de aula.
A mãe do menino sofre um acidente horrível enquanto está limpando o
forno e é levada às pressas para o hospital, e muito embora fique fora de si
de tão preocupado e reze constantemente pela estabilização e recuperação
dela, ele se prontifica a ficar em casa e fazer telefonemas, transmitir
informações para uma lista alfabética de parentes e amigos preocupados, e a
garantir que o correio e o jornal sejam entregues, e a manter as luzes da
casa acendendo e apagando num padrão aleatório à noite como recomenda
o Policial Chuck do programa Chega de Crime que a Polícia Estadual do
Michigan montou em colaboração com a educação pública por mera
questão de bom senso quando os adultos repentinamente têm que sair de
casa, e também para ligar para o número de emergência da empresa de gás
(que ele decorou) e pedir que eles venham dar uma olhada no que pode
muito bem ser uma válvula ou um circuito com defeito no fogão antes de
mais alguém da família se ver exposto aos riscos de ferimentos acidentais, e
também (em segredo) para trabalhar na elaboração de um imenso
espetáculo de faixas, bandeirolas e cartazes de BEM-VINDA DE VOLTA e A
MELHOR MÃE DO MUNDO que ele pretende usar a escada de armar da garagem
(com um adulto responsável da vizinhança segurando a escada e
supervisionando tudo) para prender com todo o cuidado na fachada da casa
com cola solúvel em água para que estejam lá para receber e animar a
mamãe quando ela receber alta dos Cuidados Intensivos com a saúde
totalmente em ordem, coisa por que Leonard liga repetidas vezes para o pai
no telefone pago da ala de Cuidados Intensivos para lhe garantir que não
tem a menor sombra de dúvida, dessa saúde totalmente em ordem, ligando
de hora em hora com pontualidade britânica até que acaba havendo algum
problema mecânico com o telefone e quando ele liga só ouve um apito
agudo, o que ele devidamente relata à linha especial 1-616-PROBLEMA da
companhia telefônica, lembrando de incluir os oito dígitos do Código de
Produto Externo do telefone pago (que tinha anotado só para garantir) como
recomenda o material técnico em letrinhas miúdas para a linha 1-616-
PROBLEMA nas ultimíssimas páginas da lista telefônica, para um serviço mais
rápido e eficiente.
Ele consegue produzir diversos tipos diferentes de caligrafia, frequentou
a oficina de origami (duas vezes), sabe fazer desenhos extraordinários à
mão livre da flora local, assobia todos os seis Nouveaux Quatuors de
Telemann além de imitar praticamente todo canto de pássaro e outros em
que nem Audubon jamais teria pensado. Ele às vezes escreve a editoras
acadêmicas a respeito de possíveis erros de categorização e/ou sintaxe nos
manuais. Não vamos nem falar dos concursos de soletração. Ele sabe fazer
vinte tipos diferentes de chapéus de almirante, caubói, clericais e
multiétnicos com uma folha comum de jornal e se propõe a visitar as turmas
de pré-2 da escola para ensinar às crianças como se faz, oferecimento que o
diretor da Escola Fundamental Carl P. Robinson diz que agradece e que
analisou mui cuidadosamente antes de recusar. O diretor odeia a mera ideia
de ver o menino mas não sabe bem por quê. Ele vê o menino em sonhos,
nos momentos mais excruciantes de seus pesadelos — a camisa xadrez bem
passadinha, a risca reta do cabelo, as sardas, o sorriso generoso e sempre
pronto: tudo ele sabe fazer. O diretor imagina um dia enfiar um gancho de
açougueiro na carinha iluminada de Leonard Stecyk e arrastar o menino de
cara no chão atrás do seu fusquinha pelas ruas irregulares da pequena
cidade de Grand Rapids. Essas ideias vêm do nada e aterrorizam o diretor,
que é um menonita fiel.
Todo mundo odeia o menino. Trata-se de um ódio complexo, que muitas
vezes faz com que quem o odeia se sinta mau e culpado e se odeie por
sentir algo assim a respeito de um menino tão talentoso e bem-
intencionado, o que então tende a fazer com que a pessoa sem querer odeie
ainda mais o menino por ele provocar essa espécie de auto-ódio. A coisa
toda é totalmente confusa e incômoda. Toma-se muita aspirina quando ele
está por perto. Os únicos amigos de verdade do menino entre as crianças
são os defeituosos, os aleijados, os gordos, os últimos escolhidos, as non
grata — ele vai atrás dessas pessoas. Todos os 316 convites para o FESTÃO
ARRASA-QUARTEIRÃO do seu aniversário de onze anos — 322 convites
se você contar os feitos em fita cassete para os cegos — são impressos em
ofsete em pergaminho de alta qualidade com envelopes de papel de fibra de
algodão endereçados numa elaborada caligrafia Filipe II em que ele gastou
três fins de semana, com cada convite detalhando em formato de esquema
numerado com algarismos romanos o período de meio dia a ser passado no
parque Six Flags, com passeio particular guiado por um ph.D. pelo
Blanford Nature Center, e a Área Privada para Banquetes c/ jogos grátis na
Pizzaria e Flíper Indoor Shakey’s na Remembrance Drive (tudo grátis e
pago com as coletas de papel e de alumínio que o menino levantou às 4h da
manhã durante todo o verão para organizar e liderar, indo o saldo restante
da receita para a Cruz Vermelha e os pais de um aluno de terceiro ano em
Kentwood com spina bifida terminal que sonha acima de tudo ver Dick
“Night Train” Lane dos Lions jogar ao vivo, de sua cadeira de rodas
motorizada), e os convites explicitamente chamam a festa disso — um
FESTÃO ARRASA-QUARTEIRÃO — numa fonte em formato de balão
como legenda para uma explosão ilustrada de bons-fluidos e -espíritos e de
uma ALEGRIA total-e-absoluta-sem-limite-e-sem-censura, com o aviso
negritado POR FAVOR — NÃO TRAGA PRESENTES nos quatro cantos do cartão; e
os 316 convites, enviados via Correio Registrado para cada aluno,
professor, professor substituto, auxiliar, administrador e zelador da
Fundamental C. P. Robinson, rendem um público total de nove celebrantes
(sem contar os pais e os cuidadores dos incapacitados), no entanto todos se
divertem definitivamente a valer, e é esse o consenso nos cartões de
Avaliação Franca e Sugestões (também em pergaminho) que circularam no
final da festa, sendo que as sobras gigantescas de bolo de chocolate, sorvete
napolitano, pizza, batatas fritas, pipoca doce, Hershey’s Kisses, panfletos da
Cruz Vermelha e do Policial Chuck a respeito de doações de órgãos e
tecidos e dos procedimentos corretos em caso de abordagem por estranhos,
respectivamente, pizza kosher para os ortodoxos, guardanapos de grife e
refrigerantes dietéticos em copos plásticos especiais Eu sobrevivi ao Festão
Arrasa-Quarteirão do Aniversário de 11 anos de Leonard Stecyk, 1964 c/
lemniscáticos canudinhos embutidos que os convidados guardariam como
suvenires foram doados para o Lar Infantil de Kent County através de
procedimentos e esquemas de transporte que o aniversariante começou a
organizar ainda enquanto se desenrolava o grande festerê de arromba,
movido pela preocupação com sorvetes derretidos e coisas rançosas e
azedas e com perda de uma oportunidade de ajudar os menos afortunados; e
o pai dele, guiando a perua com laterais de madeira e firmando a bochecha
com uma mão, reconhece mais uma vez que o menino ao seu lado tem um
coração grande e generoso, e que ele tem orgulho, e que se a mãe do
menino um dia recobrar a consciência como eles esperam muito que
aconteça, ele sabe que ela também vai ter o mesmo orgulho.
O menino tira As e uma quantidade razoável de Bs de vez em quando
para se impedir de ficar todo metido por causa das notas, e os professores
dele estremecem só de ouvir seu nome. No quinto ano ele organiza uma
arrecadação em todo o distrito para garantir um Fundo Especial de
moedinhas para qualquer pessoa que na hora do recreio já tenha gastado o
dinheiro do seu leite mas que ainda possa por qualquer razão querer ou
achar que precisa de mais leite. A marca de leite Jolly Holly fica sabendo e
põe uma notinha a respeito do Fundo e uma foto estilizada do menino na
lateral de algumas embalagens de 200 ml. Dois terços da escola param de
tomar leite, enquanto o Fundo Especial cresce tanto que o diretor precisa
requisitar um pequeno cofre para seu escritório. O diretor agora toma
Seconal para dormir, sofre de leves tremores e por duas vezes é multado por
não frear na faixa de pedestres.
Uma professora em cuja sala de aula o menino sugere uma planilha para
a reorganização dos cabides de casacos e das caixas de botas de uma das
paredes de modo que os casacos e galochas do aluno cuja mesa fica mais
perto da porta fiquem também mais perto da porta, e os do segundo fiquem
em segundo, e assim por diante, acelerando a saída dos pupilos e reduzindo
os atrasos e as possíveis briguinhas e aglomerações de crianças
semiagasalhadas na porta da sala (atrasos e aglomerações que o menino
tinha se dado ao trabalho naquele semestre de mapear por incidência
estatística, com gráficos e setas relevantes, mas com os nomes
desconsiderados), essa professora veterana, com anos de casa e muito
respeitada, acaba brandindo tesouras sem ponta e ameaçando matar o
menino primeiro e depois cometer suicídio, e é afastada em Licença
Médica, durante a qual recebe cartões de Melhoras três vezes por semana,
com resumos muito bem datilografados das atividades e do progresso da
classe em sua ausência, polvilhados de glitter e dobrados em perfeitas
formas de diamante que se abrem com um apertão nas duas longas facetas
internas (i.e. dentro dos cartões), até que os médicos da professora ordenam
que sua correspondência seja guardada até que a melhora ou pelo menos a
estabilização de seu estado permita.
Logo antes da grande arrecadação para o Unicef no Dia das Bruxas de
1965 três alunos do sexto ano abordam o menino na sala de recreação
sudeste depois da quarta aula e fazem coisas indizíveis com ele, deixando-o
pendurado em um gancho de roupa num dos cubículos do banheiro pelo
elástico da cueca; depois de ser tratado e liberado do hospital (um hospital
diferente daquele em que sua mãe é paciente na ala de convalescença de
longa permanência) o menino se recusa a identificar quem o atacou e depois
lhes entrega discretamente bilhetinhos individualizados explicando sua
renúncia a todo e qualquer rancor sobre o incidente, pedindo desculpas por
qualquer ofensa involuntária que possa ter cometido para provocar aquilo,
exortando os que o atacaram a por favor deixarem tudo aquilo para trás e de
maneira alguma ficarem se recriminando por causa do acontecido —
especialmente no futuro, porque até onde o menino soubesse era esse tipo
de coisa que às vezes podia virar uma espécie de assombração na vida
adulta no futuro, citando um ou dois artigos de periódicos acadêmicos em
que os que o atacaram bem podiam querer dar uma olhada se quisessem
uma documentação dos efeitos psicológicos de longo prazo sobre
autorrecriminação — e, nos bilhetes, afirmando sua esperança de que uma
verdadeira amizade pudesse de fato surgir de todo aquele lamentável
incidente, linhas que vinham acompanhadas de um convite para uma breve
Mesa-Redonda de Resolução de Conflitos sem-precisar-de-explicações que
o menino convenceu uma organização local de serviços de apoio à
comunidade a patrocinar depois das aulas na terça-feira seguinte “(Lanches
à Disposição!)”, o que ocasiona que o armário com as coisas de Educação
Física do menino, além dos quatro de cada lado dele, seja destruído num ato
de vandalismo pirotécnico que todos de ambos os lados no subsequente
julgamento concordam que saiu totalmente de controle e que não foi uma
tentativa premeditada de ferir o zelador noturno ou de causar o tipo de
danos estruturais que acabou causando à sala em que estava o armário do
menino, julgamento este no qual Leonard Stecyk recorre repetidamente aos
advogados das duas partes a fim de solicitar a oportunidade de se apresentar
como testemunha de defesa, no mínimo para atestar o bom caráter dos
acusados. Uma grande porcentagem dos colegas do menino se esconde —
eles efetivamente adotam procedimentos de retirada tática — quando o vê
chegando. Por fim até os marginais e os desvalidos param de retornar suas
ligações. A mãe dele precisa ser virada na cama e ter os membros
manipulados duas vezes por dia.
§ 6
Sob a placa erguida todo mês de maio à beira da estrada mais externa e
que dizia É PRIMAVERA, PENSE NA SEGURANÇA NAS FAZENDAS e passando pela
entrada norte com o seu próprio nome adulterado e placas dedicadas a
vendas e velocidades e ao glifo universal de crianças brincando e descendo
o corredor polonês asfaltado de casas móveis mais bonitas passando pelo
rottweiler que encoxa o nada em espasmos alucinados no extremo da
corrente e pelo som de fritura que vem da janela da cozinha do trailer
depois de uma curva aguda à direita e aí de outra à esquerda seguindo o
comprimento de uma lombada para entrar num bosque denso ainda não
derrubado para novos trailers e pelo som de coisas secas quebrando e do
estridular dos insetos nas folhas decompostas do chão do bosque e por duas
garrafas e uma colorida embalagem plástica empalada no ramo da amoreira
enxergando através da móvel paralaxe dos cortes dos ramos dos brotos e aí
dos trailers ao longo das anfractuosas estradas e ruelas que desviam do
trailer de metal ondulado onde dizem que o sujeito deixou a família e voltou
um tempo depois com uma arma e matou todo mundo enquanto eles
assistiam Dragnet e pelo trailerzinho sucateado semicoberto de mato à beira
do bosque onde meninos e suas meninas faziam estranhas formas agnadas
sobre esteiras e deixavam coloridas embalagens rasgadas até um incidente
com um fogão que explodiu a entrada de gás e rasgou a parede sul do trailer
numa grande fenda labial que expõe as entranhas abertas do trailer aos
olhares provindos da beira do bosque e à pluralidade de olhos enquanto as
agulhas e os caules de um longo inverno estalam ruidosos sob uma
pluralidade de sapatos onde o bosque se interrompe numa tangente para lá
do fim de um beco sem saída inabitado onde eles vêm agora ao pôr do sol
para ficar vendo o carro estacionado arfar sobre as molas. Os vidros
embaçados quase opacos e tão vivos no chassi que ele parece andar mesmo
desligado, o carro do tamanho de um barco, rangido de barras e
amortecedores e um sacudir que por pouco não se conforma de fato em
ritmo. Os pássaros do crepúsculo e o cheiro de pinho partido e do chiclete
de canela de uma mais nova. Os movimentos oscilantes lembram os de um
carro em alta velocidade por uma estrada ruim, tornando onírica a aparência
estática do Buick, e carregada de alguma coisa como romance ou morte sob
o olhar das meninas agachadas à beira arrepiada do bosque, lembrando
dríades e com olhos quase tão abertos e solenes quanto, esperando a
eventual passagem da sombra clara de um membro por uma janela (uma
vez foi só um pé descalço contra o vidro, e que tremia), aproximando-se
progressivamente e aos poucos e mais abaixadas a cada noite da semana
antes da vera primavera, desafiando-se caladas umas às outras para ver
quem chegaria perto do carro arfante e olharia lá dentro, e quando a única
que finalmente vai e aí enxerga nada além que o reflexo de seus próprios
olhos estalados enquanto do outro lado do vidro vem um grito que conhece
bem demais, que a desperta de novo toda vez do outro lado da parede de
papelão do trailer.
Havia incêndios nos morros de gipsita mais ao norte, cuja fumaça pairava
e fedia a sal; aí os brincos de estanho desapareceram sem queixas e nem
mesmo menção. Aí uma noite toda ausente, e duas. A criança como mãe da
mulher. Eram augúrios e sinais: Toni Ware e a mãe de novo no estrangeiro
em noites sem fim. Rotas em mapas que não geram nenhuma forma
razoável quando retraçadas.
À noite do parque dos trailers os morros dotados de encardido brilho
laranja e os sons de árvores vivas que explodiam no calor do fogo iam
longe, e o ruído de aviões que aravam o ar ondulante no alto e largavam
grossas línguas de talco. Em algumas noites chovia uma cinza fina que ao
tocar as coisas virava fuligem e mantinha as almas todas do lado de dentro
de modo que por todo o parque a janela de cada trailer se via dotada da
subaquática luminosidade dos televisores e quando havia muitas
sintonizadas identicamente os sons dos programas chegavam nítidos à
menina por entre a cinza como se a televisão das duas ainda estivesse com
elas. Tinha desaparecido sem comentários antes da última mudança. O sinal
daquela última vez.
Os meninos do parque usavam grandes chapéus amassados e gravatas
fininhas e alguns exibiam turquesa no corpo, e um desses a ajudou a
esvaziar o tanque sanitário do trailer e aí a pressionou a um compensatório
ato de felação, quando ela então lhe garantiu que qualquer coisa que saísse
da calça dele não voltaria mais. Nenhum menino do tamanho dela tinha
sucesso nessas pressões desde Houston e dos dois que colocaram alguma
coisa no refrigerante dela que fez com que eles girassem de lado no ar e ela
aí não pôde lutar e ficou deitada olhando o céu enquanto eles atingiam seus
distantes objetivos.
No pôr do sol então oeste e norte eram da mesma cor. Em noites limpas
ela podia ler à luz ambarina do céu noturno sentada na caixa de plástico que
servia de degrau de entrada. A porta de tela não tinha tela mas era ainda
assim uma porta de tela, fato em que ela pensava. Sabia pintar com os
dedos na fuligem em cima do fogão da cozinha do trailer. Em laranja
incendiário até o crepúsculo cada vez mais denso no cheiro de creosoto
queimando nos ríspidos morros vento abaixo.
Sua vida interior, rica e multivalente. Em fantasias romantizadas era ela
que lutava e por conseguinte resgatava algum objeto ou figura que nunca na
imaginação se resolvia ou adotava forma ou nome quaisquer.
Depois de Houston sua boneca favorita era a mera cabeça de uma
boneca, cabelo prolixamente arrumado e o buraco da cabeça preso a um fio
para encontrar o fio também de um pescoço; tinha oito anos quando corpo
se perdeu que ora jazia para sempre supino e perdido no capim enquanto
sua cabeça seguia vivendo.
As habilidades relacionais da mãe eram insignificantes e não incluíam a
fala confiável ou consistente. A filha foi aprendendo a confiar em ações e
detalhadamente ler sinais dos quais o grosso das crianças se mantém
inocente. O surrado atlas rodoviário tinha então aparecido e estendido jazia
sobre a fresta mediana do balcão aberto no estado natal da mãe sobre cuja
representação de seu ponto de origem restava um esporo de muco seco
rajado de rubro fio de sangue. O atlas ficou aberto daquele jeito por quase
uma semana inconsulto; elas comiam em volta dele. Acumulava cinzas que
o vento trazia pela tela rasgada. Formigas assolavam todos os trailers do
parque, havendo algo na cinza do fogo de que elas precisavam. O ponto de
formicação daquelas duas era o trecho no alto em que os painéis
amadeirados da cozinha tinham desgrudado no calor anterior e se curvado
para fora e de onde desciam duas colunas vasculares de formigas negras. De
pé comendo direto da lata diante da pia anodizada. Duas lanternas e uma
gaveta com pedaços diferentes de velas que a mãe desconsiderava porque
os cigarros eram sua luz de entrada no mundo. Uma caixinha de bórax em
cada canto da cozinha. A água em baldes da torneira do lave e pague, o
trailer isolado com os cabos laterais pendurados e o paradeiro do dono
desconhecido dos anciãos do parque, cujas cadeiras de jardim restavam
imolestadas pela cinza na sombra central da árvore que esfumava o parque.
Uma entre eles, Dona Tia, lia a sorte, couraçada e trêmula no rosto como
uma pecã descascada enrodilhada inteira em xales pretos e com dois dentes
solitários como pinos que sobraram num boliche, e tinha seu próprio
baralho e uma bandeja em que a cinza coletada restava branca, chamando-a
de chulla e sem cobrar tarifa por causa do Mau Olhado que dizia temer
quando a menina olhava para ela pelo buraco da tela com o telescópio de
uma revista enrolada. Dois cães ossudos e de olhos amarelos deitados
pulsando à sombra da árvore que esfumava o parque levantavam só de vez
em quando e latiam para os aviões que assolavam os incêndios.
O sol lá no alto como um olho mágico que se mostrava o coração do
inferno consumindo-se sozinho.
Mas outro sinal foi quando Dona Tia então se negou a prever e o fez
suplicando clemência em vez de recusar pura e simplesmente ante o riso
rachado dos outros anciãos e viúvas da sombra; ninguém entendia por que
ela temia a menina e ela não dizia, lábio inferior preso atrás de um dente
enquanto retraçava repetidamente a carta especial apenas no ar à sua frente.
Cuja falta sentiria e cuja memória em confiança dali por diante a cabeça da
boneca portaria também.
Sendo indiferentes a isso as habilidades relacionais da mãe desde o
período de confinamento clínico em University City MO onde foram
negadas visitas à mãe por dezoito dias úteis e a menina escapou ao Serviço
Social durante esse período e dormiu num Dodge abandonado cujas portas
podiam ser trancadas com cabides bem enroscados.
A menina olhava sempre o atlas aberto e a cidade lá marcada com um
espirro. Nasceu ali, logo na periferia, na cidade que tinha seu nome. Sua
segunda experiência do tipo que graças a uma linguagem indiferente seus
livros faziam parecer delicada ocorreu no carro abandonado em University
City MO nas mãos de um homem que sabia como deslocar um cabide com o
gancho endireitado de um outro e que disse ao rosto dela sob a luva sem
dedos dele que aquilo ali podia acabar de duas maneiras.
O maior período em que ela sobreviveu apenas de comida roubada de
lojas foi de oito dias. Ladra não mais que competente. Quando estiveram
em Moab UT um parceiro uma vez lhe disse que os bolsos dela não tinham
imaginação e logo depois foi preso e obrigado a catar lixo na beira da
estrada enquanto ela e a mãe passavam no trailer reformado dirigido pelo
“Chute”, o vendedor de pirita e pontas de flecha feitas em casa a quem a
mãe jamais dirigia uma única palavra ali sentada diante do rádio pintando
cada unha de uma cor diferente e que uma vez lhe deu um soco tão forte no
estômago que ela viu cores e cheirou bem de perto a base grudada do
carpete e pôde ouvir o que a mãe então fez para distrair o “Chute” de novas
atenções àquela menina desbocada. Tendo sido assim também que ela
aprendeu a cortar um cabo de freio de maneira a retardar seu rompimento
até onde a profundidade do corte deixou ela aguentar.
À noite na esteira sob o brilho ocreado sonhava também com um banco à
beira de um lago e o sonolento resmungo dos patos enquanto a menina
segurava a cordinha de algo que flutuava no alto com um rosto pintado,
uma pipa ou um balão. De outra menina que jamais veria ou reconheceria.
Uma vez no sistema interestadual de rodovias da nação a mãe falou de
uma boneca sem cabeça que também tivera e que guardou durante o inferno
na terra que foram os anos de sua infância em Peoria e da doença nervosa
de sua mãe (perfil todo enfarruscado enquanto pronunciava as palavras)
durante os quais a mãe da mãe se recusava a deixar que ela saísse da casa
na qual contratara andarilhos de passagem para pregar calotas achadas e
abandonadas em todo centímetro do interior de modo a defletir as
transmissões de um certo Jack Benny, um homem rico que a mãe tinha
passado a acreditar que era insano e buscava o controle global dos
pensamentos através de ondas de rádio de um tom e matiz especial. (“‘Um
sujeito malvado desses nunca ia deixar o mundo escapar’” era uma citação
indireta ou um boato quando ela dirigia, o que a mãe podia fazer enquanto
ao mesmo tempo fumava e lixava as unhas.) A menina decidiu se ocupar de
ler placas e saber os fatos da sua própria história passada e presente. Moer
vidro quebrado até virar pó requer uma hora com uma lasca de tijolo numa
superfície sólida. Roubou acém moído e uns pãezinhos, enfiou o vidro em
pó na carne que preparou num braseiro coberto por uma tela de janela no
porta-malas do Dodge abandonado e deixou essas refeições tão esmeradas
de sanduíches no banco da frente por dias a fio até o homem que a forçara a
usar sua ferramenta de cabide para arrombar o veículo e roubá-las não
voltar mais; a mãe então logo liberada sob responsabilidade da filha. A
imbricação é impossível com discos, mas as especificações da avó eram que
cada calota tocasse as outras em todos os cantos possíveis. Assim a
eletrificação de uma tornava-se a carga de todas, para deter o bombardeio
de ondas. A criação de um campo letal que bloqueava aparelhos de rádio na
quadra toda. Depois de receber duas notificações por desvio de amperagem
doméstica, a velha descobriu um gerador em algum lugar que funcionava
ainda que ruidosamente a querosene e batia e sacudia ao lado do tanque de
propano em forma de bomba na frente da cozinha. A jovem mãe às vezes
tinha autorização de sair para enterrar as andorinhas que pousavam na casa
e cujas almas partiam num único raio de uma bola de fumaça em forma de
ave.
A menina lia estórias sobre cavalos, biologia, ciência, psiquiatria e a
revista Popular Mechanics quando estava à disposição. Ela lia história de
maneira determinada. Leu Minha luta e não conseguiu entender por que
tanto carnaval por causa do livro. Leu Wells, Steinbeck, Keene, Laura
Wilder (duas vezes) e Lovecraft. Leu metades de muitas coisas rasgadas e
descartadas. Leu um Emblema vermelho sem capa e soube só por instinto
que o autor nunca tinha visto a guerra nem sabia que depois de um certo
grau de extremidade você apenas flutua logo além do medo e pode olhar
para ele sem piscar enquanto faz o que deve ser feito ou permitido para se
manter viva.
O menino do parque de trailers que a forçara ali no cheiro denso do
próprio esgoto deles reunia agora os amigos diante dos trailers à noite para
espreitar e fazer sons animalescos sob a queda das cinzas enquanto a filha
da filha desenhava círculos dentro de círculos sobre seu nome de batismo
no mapa e nas artérias que levavam a ele. As chamas de gipsita e a placa
iluminada do parque eram os polos da noite do deserto. Os meninos
arrotavam e uivavam para a lua e os uivos não pareciam em nada os de
verdade e a risada deles era forçada e as palavras, indiferentes ao amor que
diziam que os fazia inchar e que cairia sobre ela vezes sem fim.
Nessas ausências da mãe com os homens a menina encomendava
catálogos e Ofertas Gratuitas que chegavam diariamente pelo correio com
amostras de produtos que as pessoas com casas compravam para usar
quando lhes bem aprouvesse como a menina, que se considerava autodidata
e não andava de ônibus com as crianças do parque. Elas todas possuíam a
aparência atordoada e apagada daqueles que se veem pobres num mesmo
lugar; os trailers, a placa e os caminhões que passavam eram a mobília do
mundo delas, que orbitava mas não girava. A menina muitas vezes as
imaginava num espelho retrovisor, afastando-se, com os dois braços
erguidos num gesto de adeus.
Tecido de amianto cortado cuidadosamente em tiras das quais uma foi
depositada na secadora paga quando a mãe do pretenso ameaçador deixou
sua carga e retornou ao Circle K para pegar mais cerveja fez com que nem o
menino nem a mãe fossem mais vistos fora de seu trailer duplo, que
repousava em blocos de cimento. As serenatas do rapaz também cessaram.
Uma latinha de sopa cheia de esgoto ou de uma carcaça encontrada na
estrada, quando posta sob os blocos ou a treliça plastificada de uma
extensão de varanda comprada em alguma loja assola um trailer com uma
praga de moscas moles. Uma árvore de sombra podia ser morta se você
inserisse um tubo curto de cobre em sua base, a um palmo do chão; as
folhas de pronto se punham marrons. O truque com um cabo de freio ou
com uma mangueira de combustível era usar um alicate de eletricista para
deixar só um risquinho em vez de cortar tudo de uma vez. Precisava de
certa sensibilidade. Quinze gramas de açúcar cristal de pacotinhos no
tanque de gasolina inutilizavam qualquer veículo sem demandar habilidade.
O mesmo vale para uma moedinha na caixa de fusíveis ou tinta vermelha na
caixa-d’água de um trailer, acessível pelo painel sanitário de todos os
modelos a não ser os bem atuais, inexistentes no parque Vista Verde.
Concebida num carro e nascida noutro. Esgueirando-se em sonhos para
ver sua própria concepção.
O deserto não era dotado de ecos e nisso era como o mar de onde
provinha. Por vezes à noite os sons do fogo iam longe, ou dos aviões que
circulavam, ou dos caminhões estradeiros na 54 rumo a Santa Fé cujos
pneus pranteavam lembrando a longínqua lalação das ondas; ficava deitada
ouvindo na esteira e imaginava não o mar ou caminhões em movimento
mas o que quer que naquele momento escolhesse. Ao contrário da mãe ou
da boneca sem corpo, era livre dentro da cabeça. Um gênio ilimitado, maior
que qualquer sol.
A menina leu uma biografia de Hetty Green, a matricida acusada de
falsária que dominou o Mercado de Ações enquanto guardava restos de
sabão numa caixinha amassada de metal que levava consigo o tempo todo, e
que não temia vivalma. Leu Macbeth como gibi colorido com diálogos em
quadros.
O artista de palco Jack Benny largava o rosto numa mão de um jeito que
a mãe, quando lúcida, dissera que via como terno e que lhe provocava
desejos, sonhos, dentro daquela casa e de sua carapaça de escudos
eletrificados enquanto sua própria mãe escrevia cartas em código para o FBI.
Perto do nascer do sol as planícies vermelhas do leste perdiam seu tom
escuro e o terrível calor dominante do dia se remexia em seu covil
subterrâneo; a menina colocava a cabeça da boneca no peitoril da janela
para ela ver o olho rubro se abrir e pedrinhas e pedaços de lixo projetarem
sombras do tamanhão de um homem.
Nem uma única vez, em cinco estados diferentes, usou um vestido ou
sapato de couro.
Na aurora do oitavo dia do incêndio sua mãe surgiu num veículo de
tamanho aumentado pela caçamba corrugada a cujo volante estava um
macho desconhecido. A lateral da caçamba dizia LEER.
Então voltaram a viajar à noite. Sob uma lua que se erguia redonda à
frente delas. O que se chamava de banco traseiro da caminhonete era uma
prateleira estreita em que a menina conseguia dormir se acomodasse as
pernas no vão entre os assentos de verdade cujos apoios de cabeça tinham o
brilho fosco do cabelo não lavado. A bagunça e o cheiro de levedo
delatavam uma caminhonete que tinha sido ou era uma casa. A
caminhonete e o homem da caminhonete tinham o mesmo cheiro. A menina
com o colante de algodão e a calça jeans que se consumia nos joelhos. A
concepção que a mãe tinha dos homens era que ela os usava como uma
feiticeira faria com animais irracionais, como símbolo e objeto de seus
poderes extraordinários. Seu nome em voz alta para eles, que a menina não
reprovava, era daemons. Homens de costeletas, queimados do sol, que
chupavam fósforos de madeira e amassavam latinhas com as mãos. Cujos
bonés tinham abas com linhas de suor como anéis de árvores. Cujos olhos
percorriam o seu corpo no retrovisor. Homens que era impossível conceber
que um dia tivessem sido crianças ou tivessem olhado nus para alguém em
quem confiavam, com um brinquedo na mão. Com quem a mãe conversava
como se fossem bebês e que deixava que a tratassem como uma boneca sem
cabeça, sevícias.
Num hotelzinho Amarillo de beira de estrada a menina ficou com um
quarto só para si, onde não pudesse ouvir. Os cabides ficavam presos à
barra do armário. A cabeça da boneca usava um batom de giz de cera rosa e
olhava para a TV. A menina muitas vezes desejava ter um gato ou algum
bichinho pequeno para alimentar e confortar afagando-lhe a cabeça. A mãe
tinha medo de insetos com asas e andava com latas de veneno. Spray de
pimenta, cosméticos derretidos, o estojinho imitação de couro dos cigarros
e o isqueiro tudo ao mesmo tempo numa bolsa de lantejoulas vermelhas
imbricadas que a menina tinha arranjado para o Natal em Green Valley só
com um rasgo bem pequeno perto do fundo onde a etiqueta eletrônica tinha
sido arrancada com uma lixa e então usado para carregar o mesmo colante
que a menina agora usava, no qual corações cor-de-rosa bordados
formavam uma linha como de uma cerca na altura dos seios.
A caminhonete também tinha cheiro de mantimentos estragados e uma
janela com a alavanca desaparecida que ele erguia e baixava com um
alicate. Um cartão grudado com durex num dos vidros proclamava que as
cabeleireiras ficam alisando até ficar duro. Os dentes dele não sobreviveram
num lado da boca; o porta-luvas ficava trancado. A mãe aos trinta com o
rosto começando a exibir as vagas emendas do mapa do segundo rosto que
a vida tinha guardado para ela e que ela temia viesse a ser o de sua própria
mãe que na época do confinamento em University City ficava sentada
abraçada aos joelhos se balançando e se arranhando, tentando destruir o
mapa do rosto. A fotografia sépia da mãe da mãe com a idade da menina
usando um aventalzinho num banco de pelo de cavalo enrolada e enfiada na
cabeça da boneca e levada por aí com restos de sabonete e três carteiras de
biblioteca no seu nome de batismo. Seu diário no forro duplo da mala
redonda. E aquela única foto da mãe dela criança, a céu aberto, atordoada
pelo inverno com tantos casacos e gorros que ela e o tanque de propano
pareciam aparentados. A casa eletrificada fora do campo de visão, o círculo
de neve derretida a sua volta e a mãe atrás da mãezinha segurando-a de pé;
a criança tivera crupe e uma febre tão forte que temeram que viesse a
morrer e a mãe tinha se dado conta de que não tinha fotos dela pequena para
guardar se ela morresse e empacotou a filha e a mandou para fora, na neve,
para esperar enquanto ela implorava uma chapa com a Polaroid do vizinho
para sua filhinha não ser esquecida quando morresse. A foto distorcida por
tanto tempo dobrada e sem pegadas à vista em qualquer parte da neve no
quadro que a menina pudesse ver, a boca da criança escancarada e os olhos
erguidos para o homem com a câmera como quem confia que aquilo fazia
sentido, que era assim que a vida correta se dava. Os planos da menina para
a avó, muito refinados com a idade e a habilidade adquirida, ocupavam boa
parte do primeiro terço do diário mais recente.
Sua mãe, e não o homem, estava ao volante quando ela acordou com o
estardalhaço dos pedregulhos no Kansas. Uma parada de caminhões se
afastava enquanto algo vertical corria pela estrada atrás deles e acenava
com o boné. Ela perguntou onde estavam mas não perguntou do homem
que por três estados dirigira tendo na coxa da mãe a mesma mão criminosa
que tinha sido posta nela, uma mão estudada pela fresta entre os assentos
pela cabeça da boneca assim de canto e sua desconexão e seu voo pelo ar
vistos no mesmo sonho de que o solavanco e os sons pareciam fazer parte.
A filha agora com treze e começando a aparentá-los. Os olhos de sua mãe
eram distantes e de pálpebras baixas em companhia de homens; agora no
Kansas ela fazia caretas para o retrovisor e mascava chocolate. “Vem pra cá
pra aqui na frente aqui, vamos.” O chiclete tinha cheiro de canela e seu
papel-alumínio dobrado podia dar uma ferramenta de abrir porta-luvas
enrolado para suavizar o grão de uma lixa na ponta.
Diante de um posto de beira de estrada em Portales, sob um sol de ouro
malhado, a menina em decúbito dorsal e semiadormecida num cochilo
poroso sobre a prateleirinha dos fundos suportou o homem que se içou de
trás do volante da caminhonete e formou com a mão uma garra nada
sensual que enviou por sobre o encosto do assento para apertar o seu
próprio peitinho, esganar o peitinho, olhos claros e ilascivos, ela se fingindo
de morta e encarando sem piscar um ponto atrás dele, audível a respiração
do homem e recendente seu boné cáqui, espremendo o peitinho com o que
parecia uma descolada assentimentalidade, abandonando aquilo ao som dos
saltos altos lá no estacionamento. Ainda assim uma nítida evolução em
relação ao Cesar do ano anterior, que trabalhava pintando placas de estrada
e sempre trazia grãos verdes nos poros do rosto e das mãos e exigia que
tanto a mãe quanto a menina deixassem a porta do banheiro aberta não
importava o que tivessem de fazer lá dentro, ele próprio por sua vez um
avanço em relação ao distrito de armazéns e apartamentos abandonados de
Houston em que com elas se vira por dois meses “Murray Facada”, o
soldador semiprofissional cuja faca no suporte com mola do antebraço
cobria uma tatuagem da mesmíssima faca entre dois seios azuis sem dona
que o apertão de um punho fazia incharem nos lados o que ele achava
divertido. Homens com coletes de couro e gênios ruins que quando bêbados
eram delicados de maneiras que faziam a pele das suas costas se eriçar em
pedrisco.
A rodovia 54 leste não era federal e o vento dos caminhões em sentido
contrário batia na caminhonete e em sua caçamba e causava uma arfagem
que a mãe controlava com o volante. Todos os vidros abertos para combater
o cheiro acumulado do homem. Uma coisa inconcebível no porta-luvas que
a mãe disse para fechar porque ela não queria nem ver. O cartão com seu
calembur desenhou espirais rococós na esteira de ar da caminhonete,
sumindo atrás dela contra a cintilação da estrada.
A oeste de Pratt KS elas adquiriram e consumiram burritos do Convenient
Mart aquecidos no aparelho fornecido para tal propósito. Uma imensa
raspadinha gigante inacabável.
Por trás da carapaça dela de discos e papel-alumínio a mãe da mãe
sustentava que quando o ensandecido Jack Benny ou seus escravos com
olhos vorticosos viessem buscá-las, a melhor defesa possível era se
fingirem de mortas, ficar deitadas com olhos vazios e abertos e sem piscar
nem respirar enquanto os homens guardavam as armas de raios e andavam
pela casa olhando para elas, dando de ombros e dizendo uns aos outros que
tinham chegado tarde porque olha ali a mulher e sua filha núbil estavam já
falecidas e era melhor deixá-las em paz. Forçada a praticar com ela nas
camas geminadas com frascos abertos de comprimidos sobre a mesa a meio
caminho e as mãos compostas sobre o peito e os olhos bem abertos e
respirando de forma tão leve que o peito nunca subia. A mulher mais velha
conseguia manter os olhos abertos por um tempo muito longo; a mãe
quando criança não, e eles logo se fechavam sozinhos, pois uma criança
viva não é boneca e precisa de fato piscar e respirar. A mulher mais velha
disse que era possível se autolubrificar com a devida aplicação e disciplina
e tempo. Ela rezava sua década num colar que ganhou numa brincadeira de
parque de diversões e tinha um cadeadinho de níquel na caixa de correio.
Janelas cobertas de papel-alumínio nos crescentes entre os círculos negros
das calotas. A mãe andava com um colírio e sempre dizia que estava com os
olhos secos.
Ir na frente era bom. Ela não perguntou sobre o homem da caminhonete.
Era na caminhonete dele que estavam mas ele não estava nela; era difícil
achar que isso merecesse algum tipo de lamentação. Os relatos da mãe eram
menos indiferentes quando as duas encaravam a mesma coisa; fazia
piadinhas, cantava e dava olhadelas para a filha. O mundo para além do
alcance dos raios dos faróis ficava muito obscuro. O nome dela era o de
solteira da mãe, Ware. Podia encostar a sola dos pés no painel negro da
caminhonete e ficar olhando por entre os joelhos, no meio deles toda a
língua de estrada sob os faróis. A interrupta linha central disparava Morse
na direção delas, a lua branca como osso era redonda, as nuvens ganhavam
forma ao passar por ela. Primeiro dedos depois mãos inteiras e árvores de
relâmpagos vibravam no horizonte oeste; nada vinha atrás delas. Ficava
procurando faróis ou sinais de perseguição. O batom da mãe era intenso
demais para o formato da sua boca. A menina não perguntou. As chances
eram grandes. O homem era ou da espécie de homem que registraria uma
queixa ou da que tentaria seguir como um segundo “Chute” e encontrá-las
por ter sido deixado na beira da estrada abanando o boné. Se ela
perguntasse, o rosto da mãe murcharia como se ela pensasse no que dizer
quando a verdade era que nem tinha pensado. Sendo a bênção e o fardo da
menina conhecer a mente das duas como se uma fossem, segurar o volante
enquanto de novo ela pingava Murine.
Tomaram café da manhã sentadas em Plepler MO sob uma chuva que
escumava as calhas e batia contra o vidro do café. A garçonete que trajava
branco-enfermeira tinha um rosto escarpado, chamava as duas de querida,
usava um bóton que dizia só me sobrou um nervo e você está dando bem
nele e flertava com os trabalhadores cujos nomes conhecia enquanto saía
vapor da cozinha sobre o balcão acima do qual ela pregava folhas de seu
bloco, e a menina usou a escova de dentes das duas num banheiro com
tranca sem ferrolho. O sino pendente da porta da frente soava quando
acionado para indicar a presença de clientes. A mãe queria biscoitos, batata
palha e mingau com xarope, elas pediram e a mãe foi atrás de um palito de
fósforo seco e logo a menina ouviu ela rindo de alguma coisa que os
homens do balcão disseram. A chuva rolava pela rua, os carros passavam
lentos, a caminhonete delas com sua caçamba encarava a mesa e ainda
estava com o farol baixo aceso, o que ela viu, e mentalmente viu também o
legítimo proprietário da caminhonete ainda lá na estrada perto de Kismet
com as mãos estendidas em garras para o espaço onde a caminhonete tinha
sumido de vista enquanto a mãe dava socos no volante e soprava o cabelo
dos olhos. A menina arrastava a torrada na gema. Dos dois homens que
entraram e ocuparam a mesa ao lado um tinha costeletas e olhos parecidos
com os dele sob um boné vermelho enegrecido pela chuva. A garçonete
com seu toquinho de lápis e seu bloco disse para eles:
“Por que é que cês me foram escolher uma mesa suja?”
“Pra eu poder ficar mais pertinho de você, querida.”
“Mas cês podia ter sentado ali e ficado mais perto ainda.”
“Manda ver.”
§ 9
PREFÁCIO DO AUTOR
Autor aqui. Ou seja, o autor de verdade, o ser humano vivo que segura o
lápis, não alguma persona narrativa abstrata. Tudo bem que às vezes tem
uma persona dessas em O rei pálido, mas trata-se basicamente de um
construto compulsório formal, uma entidade que existe apenas por motivos
comerciais e legais, mais ou menos que nem uma empresa; ela não tem
nenhuma conexão direta, verificável, comigo como pessoa. Mas este aqui
sou eu enquanto pessoa real, David Wallace, quarenta anos, rg 975-04-
2012,1 que me dirijo a você da minha casa dedutível em Formulário 8829
no número 725 do Indian Hill Blvd., Claremont 91 711 CA, neste quinto dia
da primavera de 2005, para lhe informar o seguinte:
Tudo aqui é verdade. Este livro é real de verdade.
Obviamente eu tenho que explicar. Primeiro, por favor volte as páginas e
dê uma olhada no termo de responsabilidade legal, que está na página com
as informações de copyright, anverso, quatro folhas depois da capa algo
infeliz e enganosa. O termo é o texto sem defesa de parágrafo que começa
com: “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no
universo da ficção”. Tenho consciência de que os cidadãos comuns quase
nunca leem esse tipo de termo de responsabilidade, exatamente como não
nos damos ao trabalho de olhar os dados do copyright ou as especificações
da ficha catalográfica ou todo aquele material tedioso e protocolarmente
obrigatório em contratos de venda e anúncios que todo mundo sabe que só
está ali por motivos legais. Mas agora eu preciso que você leia, o termo, e
entenda que aquela abertura “Os personagens e as situações desta obra…”
inclui até este Prefácio do Autor. Em outras palavras, este Prefácio é
descrito naquele termo como algo também ficcional, o que quer dizer que
ele fica dentro da jurisdição de proteção legal definida por aquele termo. Eu
preciso dessa proteção legal para te informar que o que se segue,2 na
verdade, não tem nada de ficção, mas é substancialmente verdadeiro e
preciso. Que O rei pálido é, a bem da verdade, mais uma memória que um
tipo qualquer de estória inventada.
Isso pode aparentemente gerar um paradoxo espinhudo. O termo de
responsabilidade do livro descreve tudo que se segue a ele como sendo
ficção, inclusive este Prefácio, mas agora, aqui neste Prefácio, eu estou
dizendo que a coisa toda na verdade é não ficção; então se você acreditar
em uma coisa não pode acreditar na outra &c. &c. Por favor saiba que eu
também acho irritante esse tipo de paradoxo espertinho e autorreferencial
— pelo menos agora que já passei dos trinta — e que a última coisa neste
mundo que este livro seria é alguma espécie de sacanagenzinha
metaficcional de nariz empinado. É por isso que eu estou fazendo questão
de quebrar o protocolo e me dirigir aqui diretamente a você como eu
mesmo; é por isso que todos os dados específicos que me identificam
enquanto pessoa real foram expostos no começo deste Prefácio. Para eu
poder te informar a verdade: que a única “ficção” de boa-fé aqui é o termo
de responsabilidade lá na página do copyright — que, repetindo, é um
instrumento legal: o único e total objetivo daquele termo é proteger a mim,
ao tradutor, ao editor do livro e aos distribuidores escolhidos pelo editor de
qualquer imputabilidade legal. O motivo de essas proteções serem
especialmente necessárias aqui — o motivo, na verdade, que levou o editor3
a insistir na sua presença como precondição para a aceitação do manuscrito
e o pagamento do adiantamento — é a mesma razão pela qual, se formos
ser estritamente rigorosos, o termo de responsabilidade é uma mentira.4
Eis a verdade verdadeira: o que se segue é substancialmente verdadeiro e
preciso. No mínimo é um registro basicamente verdadeiro e preciso do que
eu vi e ouvi e fiz, de quem eu conheci e de com quem trabalhei, e sob
ordens de quem, e da coisarada toda que aconteceu no Posto 047 do IRS, o
Centro Regional de Análise Meio-Oeste, de Peoria IL, em 1985-6. Boa parte
do livro na verdade se baseia em diversos cadernos e diários que mantive
durante os meus treze meses como analista de rotina no IRS do Meio-Oeste.
(“Baseado” quer dizer mais ou menos copiado direto, por motivos que sem
dúvida ficarão claros.) O rei pálido, portanto, em outras palavras, é uma
espécie de memória vocacional. Ele também deveria funcionar como o
retrato de uma burocracia — possivelmente a burocracia federal mais
importante da vida dos americanos — num tempo de imensas disputas
internas e angústias, as dores do parto do que veio a ser conhecido entre os
profissionais do ramo como o Novo IRS.
Em nome da sinceridade total, no entanto, preciso ser claro e dizer que o
modificador em “substancialmente verdadeiro e preciso” se refere não
apenas à inevitável subjetividade e ao viés típico das memórias. A verdade
é que há, nesse relato não ficcional, certas leves alterações e reorganizações
estratégicas, quase todas surgidas de várias revisões textuais em reação às
opiniões do editor do livro, que por vezes ficou em posição muito delicada
no que se refere ao equilíbrio de prioridades literárias e jornalísticas, de um
lado, e preocupações jurídicas e empresariais, de outro. Provavelmente eu
não devo dizer mais nada quanto a isso. É claro que há toda uma tortuosa
história de bastidores aqui, no que se refere ao veto jurídico das três versões
finais do manuscrito. Mas você vai ser poupado de ter que ouvir muita coisa
a respeito disso tudo, quando menos porque relatar essa história interna iria
contra a própria finalidade do processo repetitivo e microscopicamente
cauteloso dos vetos e da miríade de pequenas alterações e reorganizações
para acomodar tais mudanças que passaram a ser necessárias quando, p. ex.,
certas pessoas se recusaram a assinar autorizações legais ou quando uma
empresa de porte mediano ameaçou entrar na Justiça se seu nome real ou
detalhes que permitissem a identificação de sua situação atual sobre
impostos atrasados fossem usados, com ou sem termo de responsabilidade.5
Em última análise, no entanto, há muito menos dessas mudanças e
reorganizações temporais destinadas a obscurecer identidades do que se
poderia esperar. Pois há vantagens nisso de você limitar o escopo de um
livro de memórias a um determinado intervalo de tempo (mais os
flashbacks relevantes) no que agora para todo mundo parece um passado
distante. Com o que me refiro às pessoas presentes neste livro. Os
parajurídicos da editora tiveram muito menos trabalho para conseguir as
assinaturas nas liberações do que o departamento tinha previsto. Os motivos
são variados mas (como o meu advogado e eu tínhamos levantado
antecipadamente) óbvios. Das pessoas mencionadas, descritas e até às vezes
cuja consciência foi sondada sob a forma de supostos “personagens” em O
rei pálido, a maioria já saiu do Serviço. Das que ficaram, muitas atingiram
níveis de hierarquia GS em que são basicamente invulneráveis.6 Além disso,
por causa do período do ano em que os manuscritos do livro foram
apresentados para que elas os avaliassem, tenho certeza de que outras
pessoas ligadas ao Serviço estavam tão ocupadas e distraídas que nem
chegaram a ler de fato o manuscrito e, depois de esperarem um intervalo
decente para darem a impressão de uma análise detalhada e da devida
deliberação, assinaram a autorização legal para poderem sentir que tinham
uma coisa a menos por fazer. Alguns também pareceram lisonjeados com a
possibilidade de que alguém tivesse prestado tanta atenção neles a ponto de
ser capaz, anos depois, de lembrar as contribuições que eles deram. Uns
poucos assinaram porque continuaram sendo, por todos esses anos, meus
amigos pessoais; um deles é provavelmente a mais valiosa e mais profunda
amizade que já tive. Alguns morreram. Dois nós descobrimos que estavam
encarcerados, sendo que um deles era uma pessoa que você nunca ia ter
imaginado ou suspeitado.
Nem todo mundo assinou as autorizações legais; eu não quero insinuar
isso. Só que a maioria assinou. Vários também consentiram em ser
entrevistados e até citados. Onde isso cabia, partes de suas respostas
gravadas foram transcritas diretamente no texto. Outros assinaram com boa
vontade autorizações adicionais que liberavam o uso de certas gravações
audiovisuais feitas em 1984 como parte de uma abortada iniciativa
motivacional e de recrutamento da Divisão de RH do IRS.7 Como bônus, eles
ainda ofereceram reminiscências e detalhes concretos que, quando
combinados com as técnicas da reconstrução jornalística,8 geraram cenas de
intenso realismo e de grande autoridade, independentemente do fato de este
autor ter ou não estado de corpo presente na cena quando de sua ocorrência.
O que estou querendo deixar claro aqui é que ainda é tudo
substancialmente verdade — i.e., o livro de que este Prefácio faz parte —
independentemente das várias maneiras em que alguns dos §§ vindouros
tiveram que ser distorcidos, despersonalizados, polifonicizados ou
sacudidos em geral para se adequarem aos contornos do termo de
responsabilidade legal. Isso não quer dizer que essa sacudida toda é só uma
sacanagenzinha gratuita; dadas as supramencionadas preocupações legais-
barra-comerciais, ela acabou sendo fundamental para todo o projeto do
livro. A ideia, conforme decisão dos representantes legais das duas partes, é
que você venha a considerar características como pontos de vista
alternados, fragmentação estrutural, incongruências internas propositais &c.
simplesmente como os análogos literários modernos de um “Era uma
vez…” ou “Num reino muito distante, morava um…” ou quaisquer outros
recursos tradicionais que assinalavam para o leitor que o que estava se
passando era ficção e devia ser processado consoantemente. Pois como
todos sabemos, seja consciente, seja inconscientemente, há sempre uma
espécie de acordo tácito entre o autor de um livro e seu leitor; e os termos
desse acordo sempre dependem de certos códigos e gestos que o autor
emprega para sinalizar ao leitor o tipo de livro que ele está lendo, i.e., se é
invenção ou verdade. E esses códigos são importantes, porque o acordo
subliminar para não ficção é bem diferente do da ficção.9 O que estou
tentando fazer neste exato momento, dentro dos limites da proteção do
termo de responsabilidade da página de copyright, é passar por cima dos
códigos tácitos e ser 100% franco e direto sobre os termos do contrato em
questão aqui. O rei pálido é basicamente um livro não ficcional de
memórias, com elementos adicionais de jornalismo reconstrutivo,
psicologia organizacional, educação moral e cívica básica e teoria fiscal &c.
Nosso acordo mútuo aqui se baseia na pressuposição de (a) minha
veracidade e (b) a sua compreensão de que quaisquer dados ou sêmions que
possam parecer minar essa veracidade são na verdade artefatos jurídicos de
proteção, não muito diferentes das letras miúdas que acompanham bilhetes
de loteria ou contratos cíveis, e assim não estão aqui para serem
decodificados ou “lidos” mas sim meramente tolerados como parte do custo
dessa nossa transação, por assim dizer, no ambiente comercial dos dias de
hoje.10
Fora isso, tem o fato autobiográfico de que, como tantos outros jovens
meio nerds e descontentes daquela época, eu sonhava em me tornar
“artista”, i.e., alguém cujo emprego na vida adulta fosse original e criativo
em vez de tedioso e mecânico. Meu sonho específico era me tornar um
grande autor de ficção à la Gaddis ou Anderson, Balzac ou Perec &c.; e
muitas das entradas dos cadernos em que trechos dessas memórias são
baseados eram por si sós textos literariamente sacudidos e fraturados; era
apenas a ideia que eu fazia de mim mesmo na época. De certa maneira,
pode-se dizer que as minhas ambições literárias eram o motivo principal de
eu ter tirado uma pausa da universidade e de estar trabalhando naquele CRA
do Meio-Oeste pra começo de conversa, apesar de a maior parte dessa
história prévia ser tangencial e vir a ser abordada somente aqui no Prefácio,
e de forma muito breve, a saber:
Em resumo, a verdade é que os primeiros textos de ficção pelos quais
cheguei até mesmo a receber um pagamento envolviam certos outros alunos
da primeira universidade que frequentei, que era extremamente cara e de
nível altíssimo e recebia acima de tudo egressos de escolas particulares de
elite de Nova York e Nova Inglaterra. Sem entrar em muitos detalhes,
digamos apenas que houve lá certos textos que produzi pra certos alunos a
respeito de certos temas acadêmicos, e que esses textos eram ficcionais na
medida em que tinham estilos, teses, personas acadêmicas e nomes autorais
que não eram os meus. Acho que deu pra sacar. A principal motivação por
trás desse modesto empreendimento era, como tantas vezes no mundo real,
financeira. Não é que eu fosse desesperadamente pobre quando cursava a
universidade, mas a minha família estava longe de ser rica, e parte do meu
pacote de auxílio financeiro envolvia pedir pesados empréstimos tipo
crédito estudantil; e eu tinha consciência de que esses empréstimos tendiam
a ser uma coisa ruim para alguém que queria seguir qualquer espécie de
carreira artística depois da universidade, já que é fato mais que sabido que a
maioria dos artistas trabalha em ascética obscuridade por anos a fio antes de
ganhar dinheiro de verdade com a profissão.
Por outro lado, havia muitos alunos naquela universidade cujas famílias
estavam em posição não apenas de pagar totalmente a faculdade mas,
parece, de dar dinheiro também pra quaisquer despesas pessoais em que
seus filhos viessem a incorrer, sem mas nem meio mas. “Despesas pessoais”
aqui se refere a coisas como viagens para esquiar no fim de semana,
sistemas de som ridiculamente caros, festas de fraternidades com bares
cheinhos &c. Sem falar que o campus inteiro tinha menos de dois acres e
mesmo assim a maioria dos estudantes tinha carro, o que custava a eles U$
400 por semestre para deixar o carro num dos estacionamentos da
universidade. Era tudo bem inacreditável. Em muitos quesitos, aquela
universidade foi minha introdução à dura realidade das questões de classe,
de estratificação econômica e das realidades financeiras diferentíssimas que
diferentes tipos de americanos habitavam.
Alguns desses alunos de classe alta eram profundamente mimados,
imbecis e/ou nem um pouco incomodados por questões éticas. Outros
estavam sob grande pressão familiar e se viam incapazes de alcançar, por
quaisquer motivos, o que seus pais consideravam ser o verdadeiro potencial
de desempenho deles. Alguns simplesmente não gerenciavam direito tempo
e responsabilidades, e se viam contra a parede na hora de entregar um
trabalho. Tenho certeza que dá pra sacar. Digamos apenas que, como forma
de me pôr em posição de pagar alguns dos meus empréstimos em ritmo
acelerado, eu oferecia determinados serviços. Não eram serviços baratos,
mas eu era bem competente, e cuidadoso. P. ex., eu sempre exigia um
grande corpus de amostras de textos do cliente antes de redigir o texto final
para determinar como ele tendia a pensar e soar, e nunca cometia o
equívoco de entregar alguma coisa que fosse irrealmente superior aos
trabalhos anteriores da pessoa. Você talvez consiga ver o quanto esses
exercícios eram um bom aprendizado para alguém interessado na suposta
“escrita-criativa”.11 Os lucros do empreendimento foram investidos em uma
carteira de fundos de alta rentabilidade; e as taxas de juros da época
estavam altas, enquanto os empréstimos do crédito estudantil só
começavam a acumular juros depois que você saísse da universidade. Era
uma estratégia conservadora, tanto financeira quanto academicamente. Não
que eu estivesse fazendo por encomenda vários textos ficcionais por
semana, ou coisa assim. Afinal eu também tinha bastante trabalho meu para
fazer.
Antecipando-me a uma provável pergunta, deixa eu já admitir que na
melhor das hipóteses a ética aqui era cinzenta. Por isso decidi já ser sincero
lá em cima sobre não ser um pobretão nem precisar de uma renda extra pra
poder comer ou coisa assim. Eu não estava desesperado. Estava, no entanto,
tentando fazer uma poupança para me preparar para o que eu já imaginava12
que seriam dívidas terríveis pós-universidade. Tenho consciência de que
isso não é desculpa no sentido mais estrito do termo, mas realmente
acredito que me serve pelo menos de explicação; e também havia outros
fatores, mais gerais, e outros contextos que poderiam ser considerados
atenuantes. Pra começo de conversa, no final das contas a própria
universidade tinha lá uma hipocrisia moral que não era pouca, p. ex., ao se
autocongratular por sua diversidade e pelo bom-mocismo esquerdista da sua
política enquanto na verdade se dedicava à tarefa de preparar os filhos da
elite para entrar em profissões de elite e ganhar um monte de dinheiro,
aumentando assim o universo de doações vindas de ex-alunos prósperos.
Sem que ninguém discutisse nem se permitisse tomar consciência disto, a
universidade era um verdadeiro templo de Mamon. Não estou brincando.
Por exemplo, o curso mais popular era economia, e os melhores e os mais
inteligentes alunos da minha turma pareciam obcecados com uma carreira
em Wall Street, cujo éthos público na época era “Ganância é bacana”. Sem
falar que havia traficantes varejistas de cocaína no campus que ganhavam
muito mais do que eu podia sonhar. Esses eram apenas alguns fatores
atenuantes que eu poderia, se quisesse, apresentar. A minha atitude a
respeito disso era descolada e profissional, não muito diferente da de um
advogado. O meu ponto de vista básico era que, por mais que no meu
empreendimento houvesse elementos que pudessem tecnicamente ser
definidos como um ato de cumplicidade criminosa com a decisão do cliente
de violar o Código de Conduta Acadêmica da universidade, essa decisão,
assim como a responsabilidade prática e moral por ela, assentava-se no
cliente. Eu estava realizando tarefas literárias como um autônomo
remunerado; por que determinados alunos queriam determinadas
monografias de determinada extensão sobre determinados temas, e o que
eles iriam fazer com elas depois da entrega, isso não era problema meu.
Digamos apenas que esse não era um ponto de vista compartilhado pelo
Conselho Jurídico da universidade em fins de 1984. Aqui a história se
complica e fica meio pesada, e um livro de memórias tipo-padrão
provavelmente iria se demorar nos detalhes, nas injustiças e hipocrisias
gritantes envolvidas na história toda. Eu não vou fazer isso. Só estou
mencionando tudo isso para situar o contexto dos elementos de aparência
ostensivamente “ficcionais” das memórias não-tipo-padrão que você
(espero) comprou e que agora está se divertindo ao ler. Além, claro, da ideia
também de explicar o que eu estaria fazendo num dos trabalhos de
escritório mais tediosos e mecânicos dos Estados Unidos durante o que teria
sido o meu terceiro ano numa universidade de elite,13 para que essa
pergunta óbvia não fique solta gerando desconcentração ao longo do livro
(um tipo de desconcentração que eu, como leitor, detesto). Dados esses
limitados objetivos, então a debacle toda relacionada ao Código-de-CA
provavelmente fica mais bem esboçada com pinceladas esquemáticas, a
saber:
(1a) Pessoas ingênuas são, mais ou menos por definição, inconscientes da
sua ingenuidade. (1b) Eu era, quando olho para trás, ingênuo. (2) Por vários
motivos pessoais, não era membro de nenhuma das fraternidades do
campus, e assim ignorava muitos dos costumes bizarros e práticas tribais da
assim chamada comunidade “grega” da universidade. (3a) Uma das
fraternidades da universidade tinha instituído a prática fenomenalmente
estúpida e arriscada de colocar atrás do bar da sala de bilhar um armário
com duas gavetas cheias de cópias de determinadas provas recentes,
problemas, relatórios de laboratório e monografias que tivessem recebido
notas altas, que ficavam à disposição para plágio. (3b) Por falar em
estupidez fenomenal, no fim não apenas um mas três membros dessa
fraternidade tinham, sem se dar ao trabalho de consultar o prestador de
serviço de quem as tinham encomendado e recebido, jogado monografias
que não eram tecnicamente suas nesse arquivo comunitário. (4) O paradoxo
do plágio é que na verdade é necessário muito cuidado e um trabalho muito
aplicado pra que o ato dê certo, já que o estilo, a substância e as sequências
lógicas do texto original têm que ser suficientemente modificados pro
plágio não ser total e ofensivamente óbvio pro professor que vai corrigir o
trabalho. (5a) O tipo de aluninho mimado e imbecil dessas fraternidades
que recorre a um arquivo comunitário em busca de uma monografia sobre o
uso de deflatores implícitos de Produto Interno Bruto na teoria
macroeconômica também é o tipo que não vai nem saber fazer nem se
importar com o paradoxal trabalho extra que um bom plágio requer. Ele,
por mais que pareça inacreditável, vai simplesmente sentar a bunda e
redatilografar aquilo tudo, palavra por palavra. (5b) E, coisa ainda mais
inacreditável, ele nem vai se dar ao trabalho de analisar se outro irmão da
fraternidade não pretende plagiar a mesma monografia pra mesma
disciplina. (6) O sistema moral de uma fraternidade universitária no final de
contas é classicamente tribal, i.e., caracterizado por uma profunda noção de
honra, discrição e lealdade pra com os supostos “irmãos”, além de uma falta
de consideração total, sociopata, pelos interesses e até pela humanidade de
qualquer indivíduo que não pertença ao conjunto fraterno.
Vamos parar este esboço por aqui. Duvido que você precise de um
diagrama inteiro pra prever o que aconteceu, ou de uma grande cartilha de
dinâmica de classe nos EUA, com os cinco alunos que acabaram
academicamente suspensos ou forçados a cursar de novo certas disciplinas
versus o único aluno suspenso de modo formal durante a análise do pedido
de expulsão e possível14 entrega do caso ao Promotor Público do condado
de Hampshire, que não por acaso é este que vos fala, o autor vivo, sr. David
Foster Wallace de Philo IL, cidadezinha minúscula, morta-viva e
insignificante à qual nem eu nem minha família estávamos morrendo de
vontade de me ver voltar pra ficar à toa vendo TV por pelo menos um e
possivelmente os dois semestres que a administração da universidade ia
usar com a maior calma do mundo pra determinar meu destino.15 Enquanto
isso, pelos termos do §106(c-d) do Ato de Cobrança de Pendências Federais
de 1966, o relógio do pagamento dos meus Empréstimos de Crédito
Estudantil começou a correr, a partir de 1º- de janeiro de 1985, a uma taxa
de juros de 6,25%.
E, de novo, se alguma coisa aqui parece vaga ou truncada, é porque estou
te passando só uma versão bem nua, monotarefa, de quem eu era e onde
estava, em termos de situação, nos treze meses em que passei como analista
do IRS. E tem mais: infelizemente, a forma específica como fui parar nesse
emprego governamental, pra começo de conversa, é um assunto pregresso
que eu só posso explicar de maneira meio torta, i.e., ostensivamente
explicando os motivos de eu não poder discutir esse assunto.16 Primeiro, eu
te pediria pra não esquecer a supracitada indisposição de me ver cumprir
em Philo o meu período de limbo, relutância mútua esta que por sua vez
tem a ver com uma cacetada de problemas e de histórias anteriores entre
mim e a minha família que eu não poderia abordar nem se quisesse (vide
infra). Segundo, eu te informaria que a cidade de Peoria IL fica a mais ou
menos cento e trinta quilômetros de Philo, o que é uma distância que
permite um monitoramento familiar básico sem nenhum tipo de
conhecimento detalhado, íntimo mesmo, que poderia conferir sensações de
preocupação ou responsabilidade. Terceiro, eu poderia chamar a sua
atenção pro Ato de Práticas de Cobrança de Dívidas de 1977 do Congresso
Americano, que no final de contas anula o §106(c-d) do Ato de Cobranças
Federais e autoriza a postergação de pagamentos de Crédito Estudantil para
funcionários documentados de certas agências governamentais, inclusive
adivinha qual. Quarto, eu tenho o direito, depois de exaustivas negociações
com o jurídico da editora, de dizer que o meu contrato de treze meses, com
lotação e salário de funcionário GS-9, foi resultado de ações de bastidores de
certo parente17 cujo nome não será mencionado, com ligações não
especificadas com o Escritório da Comissão Regional Meio-Oeste de certa
agência governamental cujo nome não será mencionado. Por fim, e
importantissimamente, também me permito dizer, embora em linguagem
que não me é de todo própria, que membros da minha família foram quase
unânimes em declinar de assinar as necessárias autorizações legais para
qualquer uso mais específico, qualquer menção ou representação dos
supracitados parentes ou qualquer imagem deles em qualquer âmbito,
ambiente, forma ou guisa, o que inclui referências sine damno, no escopo
da obra escrita doravante intitulada O rei pálido, e que é por isso que eu não
posso entrar em maiores detalhes acerca dos comos e dos porquês mais
amplos. Fim da explicação da ausência de explicação real, que, por mais
que possa soar irritante ou obscura, é (de novo) melhor do que deixar a
questão de por que/como eu estava trabalhando num Centro Regional de
Análise do Meio-Oeste só ali parada, imensa e não comentada durante todo
o texto que virá,18 como o proverbial elefante na sala.
Aqui eu provavelmente também deveria abordar outra questão tipo
motivação central que tem a ver com as questões de veracidade e confiança
levantadas vários §s acima, v.g., por que um livro não ficional de memórias,
pra começar, já que eu sou primariamente um autor de ficção? Sem falar na
questão de por que um livro de memórias restrito a um único ano bem lá
atrás no passado, em que fiquei exilado de tudo que ao menos remotamente
me interessasse ou a que eu desse bola, cumprindo minha sentença como
pouco mais que uma minúscula engrenagenzinha mecânica e efêmera da
imensa burocracia federal?19 Há dois tipos de respostas válidas, uma
pessoal e a outra mais literária/humanística. A coisa pessoal é de início
tentar dizer que não é da sua conta… só que uma das desvantagens de me
dirigir aqui diretamente a você e em pessoa no presente cultural de 2005 é o
fato de que, como tanto eu quanto você sabemos, não há mais nenhuma
linha nítida entre o público e o pessoal, ou na verdade entre o privado
versus o performativo. Entre os óbvios exemplos estão os web logs, os
reality shows, as câmeras do telefone celular, as salas de chat… sem falar
da popularidade extremamente aumentada das memórias como gênero
literário. Claro que popularidade, nesse contexto, é sinônimo de
lucratividade; e na verdade esse mero fato já deveria bastar, em termos de
motivação pessoal. Considere que em 2003 o adiantamento20 típico que um
autor recebia por um livro de memórias era quase 2,5 vezes o que era pago
por uma obra de ficção. A verdade pura e simples é que eu, como muitos
outros americanos, sofri alguns revezes com a volatilidade econômica dos
últimos anos, e esses reveses ocorreram ao mesmo tempo em que minhas
obrigações financeiras aumentaram junto com a idade e as
responsabilidades;21 enquanto isso, tudo que é escritor americano — alguns
dos quais conheço pessoalmente, incluindo um a quem cheguei a emprestar
dinheiro pras despesas básicas de sobrevivência ainda no começo de 2001
— andou fazendo um enorme sucesso com livros de memórias,22 e eu seria
um hipócrita imundo se fingisse que estava menos sintonizado do que os
outros com as forças do mercado.
Como todas as pessoas maduras sabem, no entanto, é possível que tipos
muito diferentes de motivos e emoções coexistam na alma humana. Não há
possibilidade de que um livro de memórias como O rei pálido pudesse ser
escrito apenas pra obter lucro. Um dos paradoxos da literatura como
atividade profissional é que livros escritos apenas por dinheiro e/ou sucesso
quase nunca vão ser bons o suficiente pra garantir uma das duas coisas. A
verdade é que a narrativa mais ampla que abrange este Prefácio tem
significativo valor social e artístico. Isso pode soar metido, mas fique
tranquilo, eu não poderia investir e não teria investido três anos de trabalho
puxado (fora os quinze meses de futricação jurídica e editorial) nesse O rei
pálido se não estivesse convicto dessa verdade. Dê, p. ex., uma olhada no
que se segue, que foi transcrito verbatim dos comentários feitos pelo sr.
DeWitt Glendenning Jr., Diretor do Centro Regional de Análise Meio-Oeste
durante a maior parte da minha estada por lá.
Se você sabe a posição de uma pessoa em relação aos impostos, você pode determinar toda a
filosofia [dela]. O código tributário, depois que você conhece ele bem, incorpora toda a essência
da vida [humana]: ganância, política, poder, bondade, caridade.
A essas qualidades que o sr. Glendenning atribuía ao código eu
respeitosamente acrescentaria mais uma: tédio. Opacidade. Hostilidade ao
usuário.
Isso tudo pode ser dito de outra maneira. Pode soar meio seco e até
obsessivo, mas é porque estou reduzindo tudo ao esqueleto abstrato:
1985 foi um ano crítico para a tributação americana e para a aplicação do
código tributário dos EUA pelo seu Internal Revenue Service. Em poucas
palavras, aquele ano viu não apenas mudanças fundamentais no escopo
operacional do Serviço, mas também o clímax de uma complexa batalha
intra-Serviço entre defensores e oponentes de um sistema tributário cada
vez mais automatizado, computadorizado. Por intricadas razões
administrativas, o Centro Regional de Análise Meio-Oeste tornou-se um
dos locais em que a fase crucial dessa batalha se desenrolou.
Mas isso é só parte da história. Conforme alusão em Nota lá bem supra,
subjacente a essa batalha operacional entre aplicação humana versus digital
do código tributário estava um conflito mais profundo a respeito das
próprias missão e raison d’être do Serviço, um conflito cujas consequências
se estenderam dos corredores do poder lá no Tesouro e na Besta até o
escritório distrital mais fuleiro e afastado. Nos níveis mais altos, a luta aqui
era entre servidores tradicionais ou “conservadores”,23 que viam os
impostos e sua administração como uma arena de justiça social e virtude
cívica, de um lado, e os administradores mais progressivos, “pragmáticos”,
que valorizavam o modelo de mercado, a eficiência e um retorno máximo
do investimento feito no orçamento anual do Serviço. Reduzida à sua
essência, a questão era se, e em que medida, o IRS deveria ser concebido
como uma entidade com fins lucrativos.
Talvez isso é tudo o que eu devia dizer aqui em termos de síntese. Se
você souber pesquisar e decodificar os arquivos governamentais, vai
encontrar pilhas de documentos históricos e teóricos sobre praticamente
cada faceta do debate. Está tudo nos registros públicos.
Mas eis o problema. Tanto naquela época como agora, muito poucos
americanos comuns sabem alguma coisa a respeito disso tudo. Também não
sabem muita coisa das profundas mudanças que o Serviço sofreu na metade
dos anos 80, mudanças que hoje afetam diretamente a forma de determinar
e fiscalizar as obrigações fiscais dos cidadãos. E o motivo dessa ignorância
pública não é o sigilo. Apesar da bem documentada paranoia e da aversão
do IRS por publicidade,24 o sigilo, no caso, não teve nada a ver com isso. O
verdadeiro motivo de os cidadãos americanos não estarem conscientes
desses conflitos, dessas mudanças e do que elas acarretam é que o tema
política tributária e sua administração é muito chato. Gigantesca e
espetacularmente chato.
É impossível exagerar a importância dessa característica. Considere, do
ponto de vista do Serviço, as vantagens do chato, do arcano, do
estupefacientemente complexo. O IRS foi uma das primeiras agências
governamentais a aprender que tais qualidades ajudam a isolá-las dos
protestos públicos e da oposição política, e que a aridez mais abstrusa é na
verdade um escudo muito mais eficiente que o sigilo. A grande
desvantagem do sigilo é que se trata de algo interessante. As pessoas se
sentem atraídas por segredos; elas não conseguem evitar. Não esqueça que
o período de que estamos falando foi só uma década depois de Watergate.
Tivesse o Serviço tentado esconder ou camuflar seus conflitos e convulsões,
algum ou alguns jornalistas dedicados teriam feito revelações que
provocariam muita atenção e interesse e uma balbúrdia escandalosa. Mas
isso nem de longe foi o que aconteceu. O que aconteceu foi que boa parte
do debate político de alto nível se desenrolou por dois anos diante dos olhos
do público, p. ex., em audiências abertas do Comitê Conjunto de
Tributação, do Subcomitê de Procedimentos e Estatutos do Tesouro no
Senado, e do Conselho de Comissários Assistentes e Auxiliares do IRS.
Paraplegia crônica
Paraplegia temporária
Paralisia agitans temporária
Estados de fuga paracatatônica
Prurido
Edema intracraniano
Discinesia espasmódica
Paramnésia
Parese
Ansiedade fóbica (numérica)
Lordose
Neuralgia renal
Tinnitus
Alucinações periféricas
Torcicolo
Sinal de Cantor (destro)
Lumbago
Lordose diedral
Estados de fuga dissociativa
Síndrome de Kern-Børglundt (radial)
Hipomania
Ciática
Torcicolo espasmódico
Baixo limiar de susto
Síndrome de Krendler
Hemorroidas
Estados de fuga ruminativa
Colite ulcerativa
Hipertensão
Hipotensão
Sinal de Cantor (sinistro)
Diplopia
Hemeralopia
Cefaleia vascular
Ciclotimia
Visão borrada
Tremores finos
Tiques faciais/digitais
Ansiedade localizada
Ansiedade generalizada
Déficits cinéticos
Sangramento inexplicado
§ 12
É um analista do IRS numa cadeira numa sala. Não há muito mais para
ver. Encarando o tripé da câmera, falando com a câmera, um analista depois
do outro. É uma antiga sala de armazenamento de cartões que dá para o
corredor radial do núcleo de processamento de dados do Centro Regional de
Análise, então o ar-condicionado funciona e nada se vê do brilho do verão
no rosto das pessoas. De dois em dois, eles são trazidos das salas de espera;
o analista da vez fica atrás de uma divisória de vinil, para receber
instruções. As instruções consistem basicamente em apenas assistir à
abertura. Dizem a eles que a abertura do documentário veio da Besta
através do QG do Comissário Regional lá em Joliet; a caixa da fita tem o
brasão do Serviço e uma advertência legal. O putativo título provisório é O
seu IRS hoje. Possivelmente para a televisão pública. Para alguns eles
dizem que é para as escolas, para as aulas de educação moral e cívica. Isso
na introdução. As entrevistas são descritas como coisa de RP, com um
objetivo sério. Para humanizar, desmistificar o Serviço, ajudar os cidadãos a
entender como o trabalho deles é difícil e importante. Quanto está em jogo
ali. Que eles não são hostis nem máquinas. O sujeito que faz a apresentação
lê uma série de cartões impressos; há um espelho perto do canto da sala
para o sujeito da vez ajeitar a gravata ou alisar a saia. Eles devem assinar
uma autorização, especialmente elaborada — cada analista lê aquilo com
todo o cuidado, por reflexo; eles ainda estão no escritório. Alguns estão
animadões. Empolgados. É alguma coisa sobre a perspectiva de receberem
atenção, o objetivo real do projeto. Conceitualmente, ele é cria do PD Tate,
apesar de Stecyk ter feito o trabalho todo.
Há também o monitorzinho de vídeo para eles poderem ver a abertura
improvisada, cujo mal-ajambramento é reconhecido já de cara na
introdução, a necessidade de ajustes. São só cenas isoladas e tomadas que
vieram dos arquivos fotográficos e cujo tom estilizadamente carinhoso não
combina com a voz que narra. É desorientador, e ninguém sabe direito qual
é a daquela abertura; os responsáveis pela introdução sublinham que se trata
apenas de uma orientação.
“O Internal Revenue Service, o IRS, é o setor do Departamento de
Tesouro dos Estados Unidos que tem a responsabilidade de recolher no
momento adequado todos os impostos federais devidos na vigência dos
estatutos atuais. Com mais de cem mil funcionários em mais de mil
escritórios nacionais, regionais, distritais e locais, o seu IRS é a maior
agência de policiamento da nação. Mas é mais que isso. No organismo
político dos Estados Unidos da América, muitos já compararam o seu IRS ao
coração pulsante da nação, recebendo e distribuindo os recursos que
permitem que o seu governo federal opere de maneira eficaz a serviço e em
defesa de todos os americanos.” Cenas de frentes de trabalho, o Congresso
visto da galeria do Capitólio, um carteiro na varanda rindo de alguma coisa
junto com o dono da casa, um descontextualizado helicóptero com o código
de arquivamento ainda no canto direito inferior, uma funcionária da
Previdência sorrindo enquanto entrega um cheque a uma negra em cadeira
de rodas, uma frente de trabalho em que os operários erguem o capacete
numa saudação, um centro de reabilitação de veteranos de guerra &c. “O
coração, também, desses Estados Unidos enquanto equipe, com cada
tributado contribuindo para a grandeza da nossa nação.” Um dos cartões da
responsável pela introdução a instrui a se aproximar do entrevistado nesse
ponto e comentar que o texto da narração ainda não está fechado e que a
narração do produto finalizado vai ter inflexões humanas reais — é para
usar a imaginação. “O sangue vital desse coração: os homens e as mulheres
do IRS de hoje.” Agora várias tomadas do que podem até ser funcionários
reais mas estranhamente atraentes do Serviço, quase todos GS-9s e -11s de
gravata e em mangas de camisa, apertando a mão dos contribuintes,
curvados sorridentes sobre a papelada de alguém que caiu na malha fina,
com um sorriso enorme diante de um Honeywell 4C3000 que na verdade é
um chassi vazio. “Longe de serem burocratas anônimos, esses [inaudível]
homens e mulheres do IRS de hoje são cidadãos, contribuintes, pais, vizinhos
e membros de sua comunidade, todos eles responsáveis por uma tarefa
sagrada: manter o sangue vital do governo saudável e circulante.” Uma foto
de um grupo que seria uma equipe ou de Análise ou de Auditoria
organizada não por hierarquia mas por altura, todos acenando. Uma tomada
do mesmo brasão com lema que orna a fachada norte do CRA. “Como o lema
fundador da nação, E pluribus unum, o do nosso Serviço, Alicui tamen
faciendum est, diz tudo — essa tarefa difícil, complexa, tem de ser
realizada, e é o seu IRS que arregaça as mangas e cumpre esse trabalho.” É
ridiculamente ruim, daí sua intrínseca plausibilidade para os fraldinhas,
inclusive claro o lapso de não traduzir o lema para um público de
contribuintes que muitas vezes chegava até a errar a grafia do próprio nome
nas declarações, que o pessoal dos Sistemas do Centro de Serviço pega e
manda para as Análises, desperdiçando o tempo de todo mundo. Mas que
aparentemente deveriam saber latim clássico. Talvez testando na verdade
para ver se os analistas que passam pela introdução percebem esse erro —
às vezes é difícil saber o que o Tate está armando.
A cadeira não é estofada. É tudo muito espartano. A iluminação é a luz
fria do CRA; não há refletores nem rebatedores. Nada de maquiagem,
embora durante a introdução o cabelo dos analistas seja cuidadosamente
penteado, mangas dobradas em exatas três vezes sem vincos, blusas abertas
no botão superior, crachás de identificação removidos do bolso da camisa.
Nenhum diretor propriamente dito na sala; ninguém para dizer que ajam
com naturalidade ou que falem dos remendos na edição. Um técnico
cuidando da câmera no tripé, um sujeito cuidando do boom com fones de
ouvido para analisar os níveis de áudio, e o entrevistador. O teto rebaixado
de espuma de poli-isocianurato foi removido por causa da acústica.
Encanamentos expostos e chicotes de fiação de quatro cores passando sobre
os vigotes do antigo teto, fora do enquadramento. O quadro é só o analista
na cadeira de armar diante de uma tela cor de creme que tapa uma parede de
cartões holerite em caixas de papelão. A sala podia estar em qualquer lugar,
em lugar nenhum. Isso é parcialmente explicado, teorizado antes; a
introdução é orquestrada com precisão. Uma tomada fechada, eles
explicam, do torso para cima, com movimentos aleatórios sendo
desencorajados. Os analistas estão acostumados a ficar imóveis. Há uma
sala do monitor, um ex-closet, ligado a ela, com Toni Ware e um técnico
fazendo hora extra ali dentro, assistindo. É um monitor de vídeo. Eles têm
um microfone ligado ao fone intra-auricular que o
documentarista/interlocutor para de usar quando ele acaba emitindo um
feedback rascante toda vez que o leitor de cartões Fornix do outro lado da
parede roda determinada sub-rotina. O monitor é de vídeo, como a câmera,
sem nenhuma iluminação nem maquiagem. Pálidos e atordoados, com a
superfície dos rostos numa sombra esquisita — isso não é problema, se bem
que no vídeo alguns rostos ficam de um branco-acinzentado meio exangue.
Os olhos são um problema. Se o analista olha para o documentarista e não
para a câmera, pode ficar parecendo evasivo ou coagido. Não é o melhor, e
o conselho que eles recebem na introdução é olhar para a câmera como
quem olha para os olhos de um amigo de confiança ou um espelho,
depende.
Os responsáveis pela introdução, ambos GS-13s emprestados de algum
Posto em que o Tate tem uma influência não especificada, receberam
também suas introduções no escritório de Stecyk. Os dois são verossímeis,
com roupas combinadas marrons e azul-marinho, a mulher com algo ríspido
por baixo dos seus encantos que sugere uma carreira que começou lá nas
Coletas. Mas o homem é um vazio para Ware; podia ser de qualquer lugar.
Como seria de se esperar, alguns analistas são melhores que outros.
Naquilo ali. Alguns conseguem atuar, esquecem o ambiente, a
artificialidade rígida, e falam como que de coração. De modo que com esses
os técnicos de gravação podem esquecer por algum tempo o tédio terrível
daquele trabalho, o fingimento, o cansaço de ficar parados diante de
máquinas que podiam funcionar sozinhas. Os técnicos, em outras palavras,
ficam encantados com os melhores; a atenção não demanda esforço. Mas só
uns poucos são melhores… e a questão no monitor é por que, e o que isso
quer dizer, e se o que aquilo quer dizer vai ter importância, em termos de
resultados, quando aquilo tudo for dado ao Stecyk, para ele avaliar lá na
frente.
Lane Dean Jr. e dois analistas mais velhos de uma Célula diferente estão
em frente a uma das portas sem alarme entre as Células, num hexagrama de
cimento cercado de uma grama bem cuidada, olhando o sol sobre os
campos incultos logo ao sul do CRA. Ninguém está fumando; estão só um
tempinho lá fora. Lane Dean não saiu com os dois; ele foi tomar um ar no
intervalo ao mesmo tempo que os analistas, e por acaso se encontrou com
eles. Ainda está procurando um lugar desejável de verdade, divertido, para
frequentar nos intervalos; isso é muito importante. Os dois caras se
conhecem ou trabalham na mesma equipe; foram lá para fora juntos; dá
para ver que se trata de uma velha rotina.
Um dos homens abre as pernas de um jeito meio artificial e se alonga.
“Nossa”, diz. “Bom, eu e a Midge, a gente foi lá na casa dos Bodnar no
sábado. Sabe o Hank Bodnar, lá da equipe K das Análises de Capital, com
aqueles oclões com as lentes que escurecem sozinhas no sol, como é que
chama?” O homem está com as mãos atrás das costas e sobe e desce
rapidinho na ponta dos pés, como alguém esperando o ônibus.
“Ãh-rãh.” O outro homem, que talvez seja uns cinco anos mais novo que
o homem que foi na casa dos Bodnar, está contemplando uma espécie de
cisto ou verruga benigna na parte interna do pulso. O calor está se
concentrando no meio da manhã, e o som elétrico dos gafanhotos no capim
selvagem cresce e cai nas partes dos campos onde o sol ataca. Nenhum dos
homens se apresentou a Lane Dean, que está parado mais longe deles do
que eles estão um do outro, ainda que não tão longe que pudesse ser
considerado totalmente desligado da conversa. Talvez estejam lhe dando
privacidade porque veem que ele é novo e que ainda está se acostumando
com o inacreditável tédio do trabalho de analista. Talvez sejam tímidos e
desajeitados e não saibam direito como se apresentar. Lane Dean, cuja calça
tinha subido tanto que ele precisou ir ao banheiro para tirá-la de dentro da
bunda, sente vontade de sair correndo pelo campo naquele calor, correr em
círculos batendo os braços como asas.
“Era pra gente ter ido lá no fim de semana passado, que dia, acho que no
dia sete”, diz o primeiro homem, olhando para uma paisagem que na
verdade não tem grandes atrativos para os olhos, “mas a nossa mais nova
estava com febre e com a garganta meio inflamada, e a Midge não quis
deixar a menina com a babá se ela estava com febre. Aí ela ligou pra
cancelar, e a Midge e a Alice Bodnar deram um jeito, e a gente mudou a
coisa pra semana seguinte, sete dias depois do dia sete, que assim ficava
fácil de lembrar. Você sabe como é que as mamães urso ficam quando seus
filhotinhos estão com febre.”
“Nem me fale”, Lane Dean arrisca de vários metros de distância, rindo
meio forte demais. Um sapato está na sombra da marquise da célula e outro
no sol da manhã. Lane Dean agora está começando a se sentir desesperado
com o fim inexorável dos quinze minutos de intervalo e com o fato de que
ele vai ter que voltar e analisar declarações por mais duas horas antes do
próximo intervalo. Uma xicrinha vazia de isopor está tombada de lado no
cinzeiro preso a uma latinha de lixo num nicho da parede. Estar numa
conversa faz o tempo passar de um jeito diferente; não fica claro se é
melhor ou pior. O outro homem ainda está examinando a coisa em seu
pulso, com o antebraço levantado como o de um cirurgião que acabou de
lavar as mãos. Se você para e pensa que os gafanhotos estão é gritando, a
coisa toda fica muito mais perturbadora. O protocolo normal é não ouvir;
depois de um tempo você não percebe mais que eles existem.
“Mas enfim”, diz o primeiro analista. “A gente chega lá, toma uma
coisinha. A Midge e a Alice Bodnar ficam lá falando sem parar de umas
cortinas que eles estão escolhendo pra sala de estar. Troço bem chato, coisa
de esposa. Aí eu e o Hank acabamos na sala de televisão, porque o Hank
coleciona moedas — sério, ele leva a coisa bem a sério, pelo que eu vi, não
é só aqueles álbuns de papelão com buraquinho redondo, ele entende
mesmo do riscado. E ele quis me mostrar a foto de uma moeda que ele
estava pensando em adquirir, pra coleção.” O outro homem tinha olhado de
verdade pela primeira vez quando o cara que estava contando a história
mencionou numismática, que é um hobby que para Lane Dean, como
cristão, sempre pareceu decadente e desvirtuado de diversas maneiras.
“Um níquel, eu acho”, o primeiro camarada está dizendo. Ele fica nisto
de quase parecer que está falando sozinho, enquanto o segundo homem
começa e para de analisar a coisa da verruga. Você saca que esse é o tipo de
conversa que os dois têm nos intervalos há muitos, muitos anos — tão
natural que nem é mais consciente. “Não daqueles com um búfalo atrás,
mas uma moedinha lá de cinco centavos com uma parte de trás diferente
que é bem conhecida; eu não sei grandes coisas de moeda mas até eu já
tinha ouvido falar, então deve ser bem conhecido mesmo. Mas não consigo
lembrar o termo certo.” Ele ri de um jeito que parece dolorido. “Sumiu
totalmente da cabeça. Agora eu não lembro.”
“A Alice Bodnar cozinha superbem”, o outro sujeito diz. As presilhas
plásticas de uma gravata marrom-clara de prender aparecem um pouco em
volta do colarinho da camisa dele. O nó da gravata propriamente dito está
apertado como uma figa; não haveria como soltar. De onde está, Lane dá
uma olhada melhor e mais discreta nesse segundo analista. A coisa no lado
interno do pulso dele é do tamanho do nariz de uma criança e composta do
que parece matéria córnea, ou alguma secreção endurecida, e tem uma
aparência avermelhada e meio inflamada, se bem que isso pode ser porque
o segundo sujeito fica cutucando tanto. E quem não cutucaria? Lane Dean
sabe que corria o risco de ficar obsessivamente fixado na coisa do pulso do
homem se eles trabalhassem em mesas vizinhas na mesma Célula —
tentando olhar aquilo sem ser percebido, tomando decisões de não olhar etc.
Ele fica meio chocado por quase sentir inveja de quem esteja nessa mesa
vizinha, imagina o cisto avermelhado e a carreira do cisto como objeto de
distração e atenção, algo a se guardar como um corvo guarda coisinhas
inúteis e brilhantes que encontra por acaso, até tirinhas de papel-alumínio
ou pedacinhos da corrente rompida de um medalhão. Sente um desejo
estranho de perguntar ao homem sobre a coisa, qual é a daquele negócio, há
quanto tempo etc. Aconteceu bem como o sujeito tinha dito: Lane Dean não
precisa mais olhar para o relógio nos intervalos. Agora restam seis minutos.
“Nossa, então, a ideia lá era cozinhar uns filés de salmão e comer na
varanda e o salmão lá pincelado com um vinagrete de sálvia que a Midge e
a Alice queriam inventar e batatinha escalopada — acho que é escalopada;
de repente você diz au gratin. E uma saladona, tão grande que não dava
nem pra gente passar a saladeira de um pro outro na mesa; ela teve que ficar
numa mesinha separada.”
Agora o segundo homem está desenrolando cuidadosamente a manga da
camisa e a abotoando de novo no pulso sobre a coisa, se bem que quando
ele senta com as declarações e a manga sobe um pouquinho, Dean aposta
que a borda da penumbra rubra do cisto ainda vai aparecer no punho, e que
o movimento do punho para a frente e para trás por cima da coisa num dia
inteiro de análises pode ser parte do que a deixa vermelha e machucada —
pode ocorrer uma dorzinha minúscula e enjoada toda vez que o punho da
camisa do homem passa para cá ou para lá em cima da coisinha córnea.
“Mas foi um dia bem bacana. Eu e o Hank lá na sala de televisão, que
tem aquelas janelonas grandes que dão pra uma parte do jardim e da rua;
tinha umas crianças da vizinhança andando de bicicleta pela rua, gritando e
se divertindo pacas. A gente decidiu, o Hank decidiu, mas, cacete, está um
dia bonito pra cacete, vamos ver se as meninas não querem um churrasco.
Aí a gente pegou a grelha do Hank, uma grandona modelo Weber com
rodinha que dava pra empurrar de um lado pro outro se você inclinasse ela
assim pra trás; eram três pernas mas só duas tinham rodinha — você sabe
como é.”
O segundo homem se inclina para a frente e cospe direitinho por entre os
dentes na grama que cerca o hexagrama. Ele talvez tenha seus quarenta
anos, fios prateados entre o cabelo do lado da cabeça, assim sob o sol dá
para Lane Dean ver. Lane Dean se imagina correndo pelo campo num
círculo enorme, batendo os braços como Roddy McDowall.
“Aí a gente levou, com as rodinhas”, o primeiro homem diz. “E a gente
assou o salmão em vez de cozinhar, apesar do resto ser igual, e a Midge e a
Alice ficaram falando de onde eles compraram a saladeira, que tinha assim
um monte de entalhes mais perto da borda, que aquilo devia pesar mais de
dois quilos. O Hank assou ali no quintal e a gente comeu lá na varanda por
causa dos mosquitos.”
“Como assim?”, Lane Dean pergunta, ciente do leve tom histérico em sua
voz.
“Ora”, diz o primeiro cara, o mais gordo, “o sol estava se pondo. As
muriçocas descem lá do campo de golfe em Fairhaven. Nem a pau que a
gente ia ficar sentado ali no quintal pra ser comido vivo. Ninguém nem
precisou falar.” O homem vê Lane Dean ainda olhando para ele, a cabeça
exageradamente inclinada numa curiosidade que nem de longe ele sentia.
“Bom, é uma varanda com tela.” O segundo homem está olhando para
Lane Dean com cara de quem que é esse fulano?
O homem que tinha jantado na casa dos outros ri. “O melhor de dois
mundos. Uma varanda com tela.”
“A não ser que chova”, o segundo homem diz. Os dois riem
pesarosamente.
§ 17
“Eu sempre assim desde criança acho que meio que imaginei os caras da
Receita como aquele tipo assim de herói institucional, burocrático, herói
com h minúsculo — que nem policial, bombeiro, assistente social, gente da
Cruz Vermelha e do Exército da Salvação, o pessoal encarregado de ajudar
os mais pobres no governo, até um certo tipo de gente do clero e de
voluntários religiosos — quem tenta suturar ou pôr um curativo nos buracos
que o pessoal mais egoísta, mais exibido, mais desligado, mais ‘eu-eu-eu’
fica sempre abrindo na comunidade. Eu estou falando mais assim da polícia
e dos bombeiros e do pessoal da Igreja do que dos que todo mundo conhece
e que acabam no jornal por causa do que eles fazem. Eu não estou falando
do tipo de herói que ‘arrisca a vida’. Acho que o que estou dizendo é que
tem outros tipos. Eu queria ser. Do tipo que parecia até mais heroico porque
ninguém aplaudia nem pensava neles, ou se pensava normalmente era como
se fosse inimigo. O tipo de gente que entra pro comitê que vai organizar a
limpeza depois da festa em vez de tocar na banda do baile ou ficar ali com a
rainha, se é que você me entende. O tipo quietinho que limpa a bagunça e
faz o trabalhinho sujo. Você sabe.”
§ 18
Eu nem sei direito o que dizer aqui. Pra te falar a verdade, um pedação eu
nem lembro. Acho que a minha memória não está mais funcionando que
nem antes. Pode ser que esse tipo de trabalho mude a gente. Até só isso das
análises. Pode mudar mesmo o cérebro do cara. No geral, é quase como se
eu estivesse preso no presente. Se eu tomasse, por exemplo, um Tang, eu
não ia me lembrar de nada — só ia sentir gosto de Tang.
Até onde entendi, é pra eu explicar como foi que cheguei a essa carreira.
De onde eu vim, por assim dizer, e o que o Serviço representa pra mim.
Acho que a verdade é que eu era o pior tipo de niilista — o tipo que nem
percebe que é niilista. Eu era que nem uma folha de papel na rua, voando no
vento e pensando: “Agora acho que eu vou pra cá, agora acho que eu vou
pra lá”. A minha resposta essencial pra tudo era “Tanto faz”.
Isso principalmente depois do colegial, quando fiquei à deriva por vários
anos, entrando e saindo de três universidades diferentes, uma delas duas
vezes, e de quatro ou cinco cursos diferentes. Um deles era só uma
habilitação. Eu era basicamente um lesado. No fundo eu não tinha
motivação, o que o meu pai chamava de “iniciativa”. Além disso, lembro
que tudo naquela época era bem vago e abstrato. Eu me inscrevi num monte
de disciplinas de psicologia e ciência política, literatura. Umas aulas em que
tudo era vago, abstrato, aberto a interpretações, e aí as interpretações eram
abertas a mais interpretações. Eu escrevia os meus trabalhos à máquina no
dia de entregar e normalmente tirava um B com um “Interessante em certos
trechos” ou “Nada mal!” escrito embaixo da nota como comentário
didático. A coisa toda era meio automática; não significava nada — até o
sentido geral das próprias aulas era que nada significava nada, que tudo era
abstrato e infinitamente interpretável. Só que, claro, não estava em
discussão o fato de você ter que entregar os trabalhos, ter que fazer toda a
sua parte automática, apesar de ninguém explicar por quê, qual era
supostamente a sua motivação final. Eu tenho 99% de certeza que só cursei
uma turma de introdução à contabilidade nesse tempo todo, e fui bem até a
gente chegar nos cronogramas de depreciação, a coisa do método direto em
comparação com a depreciação acelerada, e a combinação de dificuldade
com tédio extremo dos cronogramas de depreciação detonou a minha
iniciativa, principalmente depois que perdi umas aulas e me atrasei com o
conteúdo, o que com depreciação é fatal — acabei largando essa disciplina
e fui reprovado. Isso na Lindenhurst College — a turma de introdução que
eu peguei depois no DePaul tinha o mesmo nome mas uma ênfase meio
diferente. Lembro também que esses abandonos irritavam o meu pai bem
mais que uma nota baixa, dá pra entender.
Em três ocasiões diferentes desse período desmotivado eu larguei a
universidade e tentei o que as pessoas chamam de empregos de verdade. Fui
segurança num estacionamento em North Michigan, recolhi ingressos na
entrada da Liberty Arena, fiquei um tempinho na fábrica da Cheese Nabs
operando o injetor de produtos de queijo, trabalhei numa empresa que fazia
e instalava pisos de ginásios esportivos. Aí, depois de um tempo, eu não
aguentava mais o tédio dos empregos, todos incrivelmente chatos e sem
sentido, pedia demissão e ia me matricular em algum lugar e
essencialmente tentava começar a universidade de novo. O meu histórico
escolar parecia um trabalho de colagem. Dá pra entender que essa rotina foi
dando nos nervos do meu pai, que era supervisor contábil de custos da
cidade de Chicago — apesar de nessa época ele estar morando em
Libertyville, que a gente pode descrever como um subúrbio burguês chique
do Norte. Ele dizia, seco e com uma expressão neutra, que eu estava a
caminho de virar um excelente fogo de palha profissional. Era o jeito dele
de pegar no meu pé. Ele lia muito e curtia umas expressões secas,
sardônicas. Se bem que noutra situação, depois de eu ter sido reprovado ou
de ter abandonado alguma universidade e voltado pra casa, lembro que
estava na cozinha pegando alguma coisa pra comer e ouvi ele discutir com a
minha mãe e a Joyce, dizendo que eu não conseguia achar minha bunda
nem usando as duas mãos. Foi a vez que acho que vi ele mais puto nessa
minha época de dispersão. Não lembro exatamente o contexto, mas por
saber como o meu pai era um sujeito digno e todo reservado, tenho certeza
de que devo ter feito alguma coisa especialmente irresponsável ou patética
pra deixar ele daquele jeito. Não lembro da reação da minha mãe nem como
acabei ouvindo o comentário, já que bisbilhotar as conversas dos pais
parece coisa que só uma criança bem pequena ia fazer.
A minha mãe era mais tolerante, e toda vez que o meu pai começava a
pegar no meu pé por causa dessa coisa da falta de rumo, a minha mãe me
defendia um tempo e dizia que eu estava tentando achar meu caminho na
vida, que nem todo caminho vem indicado com luz de neon que nem pista
de pouso e que eu tinha o direito de procurar esse caminho e deixar as
coisas irem acontecendo. Pelo que eu entendo de psicologia básica, é uma
dinâmica bem típica — filho descarado e sem direcionamento, mãe
tolerante que acredita no potencial dele e defende o filho, pai emputecido
que critica sem parar e pega no pé do filho mas ainda assim, na hora do
vamos ver, sempre assina o chequinho pra próxima universidade. Lembro
do meu pai se referindo a dinheiro como “o solvente universal da
ambivalência” em relação a esses cheques pra universidade. É preciso
mencionar que a minha mãe e o meu pai estavam amigavelmente
divorciados nessa época, o que também era bem típico daqueles tempos,
então também tinha toda aquela dinâmica típica do divórcio, em termos
psicológicos. O mesmo tipo de dinâmica que provavelmente estava rolando
em casas do país inteiro — o filho tentando se rebelar meio que de forma
passiva enquanto ainda estava financeiramente amarrado aos pais, e toda
essa coisa psicológica bem típica que vem no pacote.
Enfim, tudo isso na região de Chicago nos anos 70, período que agora
parece tão abstrato e disperso quanto eu era. De repente o Serviço e eu
temos isto em comum — que a década passada parece bem mais distante do
que foi de verdade, por causa do que aconteceu nesse meio-tempo. Quanto
a mim, eu tinha dificuldade até pra prestar atenção, e as coisas que eu
lembro agora em geral parecem sem sentido. Quer dizer: lembrar de
verdade, não só ter uma impressão geral das coisas. Lembro que eu tinha
um cabelo bem compridinho, assim comprido dos quatro lados, e eu
também dividia do lado esquerdo e mantinha o cabelo no lugar com um
spray que vinha numa lata bordô. Lembro da cor dessa lata. Eu não consigo
pensar no meu cabelo dessa época sem meio que tremer. Lembro das coisas
que eu usava — muito laranja-queimado e marrom, muita estampa de
cashmere com bastante vermelho, calça boca de sino de veludo, helanca e
náilon, colarinhos largos, coletes de brim. Eu tinha um pingente com o
símbolo da paz que pesava quase meio quilo. Docksiders, botas Timberland
amarelas e uma bota bacana e brilhante de couro marrom com zíper do lado
e só os biquinhos aparecendo por baixo da boca de sino. Cordãozinho de
couro no pescoço pra mostrar sensibilidade. A psicodelia de mercado. A
obrigatória jaqueta de camurça. Os jeans com a barra arrastando no chão e
se desfazendo num mar de fios brancos. Cintos largos, meias brancas, tênis
japoneses. O guarda-roupa-padrão. Lembro das japonas redondas e infladas
de inverno, de náilon e plumas, que deixavam todo mundo parecendo uma
bexiga de parque de diversões. Das calças brancas de pintor que pinicavam,
com alças do lado da coxa pras supostas ferramentas. Lembro de todo
mundo desprezar o Gerald Ford não tanto por ter perdoado o Nixon mas por
viver caindo. Todo mundo detestava o cara. Das calças jeans de grife bem
azuis. Lembro daquela tenista feminista, a Billie Jean King, ganhando do
que parecia ser um jogador velho e frágil na televisão e a minha mãe e todas
as amigas dela muito empolgadas com aquilo. “Porco chauvinista”,
“liberação feminina” e “estagflação”, tudo isso me parecia obscuro e
indistinto naquela época, era como ouvir ruídos de fundo sem prestar muita
atenção. Não lembro o que eu fazia com toda a minha atenção de verdade,
pra onde ela estava indo. Eu nunca fazia nada, mas ao mesmo tempo não
conseguia ficar parado e prestar atenção no que estava acontecendo de
verdade. É difícil explicar. Eu meio que me lembro de um Cronkite mais
jovem, de Barbara Walters e Harry Reasoner — acho que eu não via muito
noticiário na televisão. De novo, tenho a impressão de que isso fosse mais
típico do que eu pensava na época. Se tem uma coisa que você aprende nas
Análises Moleza é como a maioria das pessoas é desorganizada e desatenta
e como elas não prestam muita atenção no que está acontecendo fora da
esfera pessoal delas. Alguém chamado Howard K. Smith também estava
direto no jornal, eu lembro. A gente quase não escuta mais a palavra gueto
hoje em dia. Lembro da briga entre Acapulco Gold e Colombia Gold, da
Ritalina contra o Ritadex, Cylert e Obetrol, Laverne e Shirley, Café da
Manhã Instantâneo Carnation, John Travolta, discoteca e camisetas infantis
com o “Fonz”. E das camisetas do Robert Crumb que a minha mãe adorava,
com os sapatos e as solas de todo mundo parecendo anormalmente grandes.
De realmente preferir, como quase todas as crianças da minha idade, Tang e
não suco de laranja de verdade. De Mark Spitz e Johnny Carson, da
celebração de 1976 com frotas de navios antigos entrando no porto na
televisão. De ir fumar maconha depois da aula no colegial e aí assistir TV e
comer Tang direto do saquinho com o dedo, molhando o dedo e enfiando lá
dentro sem parar, até eu espiar e não acreditar quanto eu já tinha comido.
De ficar ali sentado com os meus amigos lesados e assim por diante — e
nada disso tinha nenhum sentido. É como se eu estivesse morto ou
dormindo sem nem ter consciência disso, como naquela frase de Wisconsin:
“Nem se deu ao trabalho de deitar”.
Lembro de conseguir Dexedrina no colegial com um garoto que tinha
uma mãe com úlcera péptica, e o gosto esquisito daquilo, e de como era
impressionante o jeito que ela tinha de fazer sumir aquela coisa de contar
enquanto eu lia ou falava — o apelido dos comprimidinhos era beleza negra
— mas como depois de um tempo eles te deixavam com dor nas costas e
um hálito horrível, horrível mesmo. Você ficava com um gosto na boca
igual ao cheiro de um sapo morto há um tempão dentro de um pote de vidro
embaçado na aula de biologia quando você abria o pote. Ainda me dá nojo
só de pensar. Teve também aquele período que a minha mãe ficou tão
transtornada pelo fato do Nixon ter sido reeleito tão fácil, coisa que lembro
porque foi mais ou menos quando tentei usar Ritalina, que eu comprei de
um cara na aula de culturas do mundo que tinha um irmãozinho no primário
que supostamente tomava Ritalina por indicação de um médico que não
cuidava muito bem do seu bloquinho de receitas, e que tinha gente que não
achava que ela era grandes coisas comparada com a beleza negra, a
Ritalina, mas eu gostava pacas, primeiro porque com aquilo era possível
ficar sentado estudando bastante tempo, e era até interessante, coisa que eu
achava muito, mas muito legal, mas foi duro parar de usar — a Ritalina —
principalmente depois que, claro, o tal irmãozinho surtou um dia no
primário por não ter tomado a Ritalina e os pais e o médico descobriram as
irregularidades com as receitas e de repente não tinha mais o camaradinha
espinhento com óculos escuros cor-de-rosa vendendo comprimidos de
Ritalina a quatro doletas no corredor dos armários da escola.
Parece que eu lembro que em 1976 o meu pai previu abertamente a
presidência Reagan e até mandou uma doação pra campanha deles — se
bem que pensando agora eu nem acho que o Reagan disputou a presidência
em 76. Isso era a minha vida antes da repentina mudança de direção e de eu
acabar entrando pro Serviço. As meninas usavam bonés ou chapéus de
brim, mas os caras em geral eram uns bocós se usassem chapéu. Chapéu era
motivo de piada. Boné era pros capiaus do interior. Se bem que os caras
mais velhos e mais sérios ainda usavam às vezes aqueles chapéus tipo
profissional na rua. Eu me lembro do chapéu do meu pai melhor que do
rosto dele por baixo. Eu ficava imaginando como seria a cara do meu pai
quando ele estava sozinho — quer dizer, a expressão do rosto, os olhos —
quando ele ficava sozinho no escritório dele no trabalho lá no anexo da
prefeitura no centro e não tinha ninguém que o levasse a adotar uma certa
expressão. Lembro que o meu pai usava bermuda xadrez no fim de semana,
e meia preta, e ia cortar a grama com esse figurino, lembro de às vezes
olhar pela janela, ver ele daquele jeito e sentir uma dor de verdade por ser
parente dele. Lembro de todo mundo fingindo ser samurai ou dizendo:
“Pega leve!” em tudo que era contexto — era bacana. Pra demonstrar
aprovação ou empolgação, a gente dizia: “Massa”. Na universidade, dava
pra ouvir “massa” trocentas vezes por dia. Lembro de algumas tentativas
minhas de deixar as costeletas crescerem no DePaul e de sempre acabar
tendo que raspar, porque depois de certo ponto elas ficavam só com cara de
pentelho. Do cheiro de brilhantina dentro do chapéu do meu pai, Garganta
Profunda, Howard Cosell, a garganta da minha mãe exibindo ligamentos
dos dois lados quando ela ria com a Joyce. Abanando as mãos ou se
dobrando toda. A mãe tinha uma risada muito física — o corpo todo dela
entrava na dança.
Também tinha a palavra “maneiro” que era usada o tempo todo, mas já de
cara quando apareceu essa palavra me incomodava; eu simplesmente não
gostava dela. Se bem que às vezes eu talvez ainda a use sem saber que uso.
A minha mãe é aquele tipo de mulher mais velha e magra que parece que
vai ficando seca e dura com a idade em vez de inflar, ela vai ficando fina e
ossuda e com os zigomas ainda mais pronunciados. Lembro de às vezes
pensar em charque assim que vejo ela, e aí me sentir supermal por ter feito
essa associação. Mas ela era bem gata quando nova, e um pouco dessa
perda de peso mais tarde também teve a ver com os nervos, porque depois
da coisa com o meu pai os nervos dela só pioraram. Devo admitir também
que outra razão pra isso dela me defender com o meu pai no negócio de eu
ficar saindo da universidade foi a dificuldade que eu tive com leitura no
primário quando a gente morava em Rockford e o meu pai trabalhava na
prefeitura de Rockford. Isso foi no meio dos anos 60, na escolinha
Machesney. Eu passei por um período em que de repente eu não sabia mais
ler. Quer dizer, eu não conseguia ler mesmo — a minha mãe sabia que eu
lia porque a gente tinha lido livrinhos infantis juntos. Mas durante quase
dois anos na Machesney, em vez de eu ler alguma coisa, eu contava as
palavras do texto, como se ler fosse a mesma coisa que contar palavras. Por
exemplo, “Lá vinha o meu Melhor Companheiro me salvar dos porcos”
seria igual a dez palavras que eu contava de um a dez em vez de ser uma
frase que fazia você adorar ainda mais o cachorro no livro. Era um
problema esquisito lá na minha fiação interna na época que gerou um monte
de problema e de vergonha e foi um dos motivos da gente acabar se
mudando pra região de Chicago, porque por um tempo parecia que eu ia
precisar ir pra uma escola especial em Lake Forest. Lembro pouca coisa
desse período fora a sensação de não ter grandes desejos de contar palavras
nem de fazer de propósito, mas de simplesmente ser incapaz de evitar —
era frustrante e esquisito. Piorava sob pressão ou se eu ficava nervoso, o
que é bem normal com esse tipo de coisa. Enfim, parte da atitude furiosa da
minha mãe ao defender a ideia que eu precisava viver e aprender as coisas
do meu jeito vem dessa época, quando o Distrito Escolar de Rockford
reagiu ao problema com a leitura de tudo quanto foi jeito que ela não achou
nem útil nem justo. Parte da consciência crítica dela e do fato dela ter
entrado pro movimento feminista dos anos 70 provavelmente vem também
dessa época em que ela brigou com a burocracia do distrito escolar. Eu às
vezes ainda tenho uma recaída nisso de contar palavras, ou na verdade o
normal é que a contagem fica acontecendo enquanto eu leio ou falo, meio
que assim que nem um ruído de fundo ou um processo inconsciente, mais
ou menos que nem respirar.
Por exemplo, até agora eu já disse 2918 palavras desde que comecei. Ou
seja, 2918 antes de eu dizer “eu já disse” ou 2921 se você contar “eu já
disse” — e eu ainda conto. Os números eu conto como uma palavra só
independente do tamanho do número. Não que tenha algum sentido — é
mais assim um cacoete mental. Eu não lembro exatamente quando
começou. Sei que não tive dificuldade pra aprender a ler ou pra ler os
livrinhos do Sam e da Ann que eles usam pra te ensinar a ler, então deve ter
sido depois do segundo ano. Eu sei que a minha mãe, quando criança lá em
Beloit WI, onde ela cresceu, tinha uma tia que tinha uma coisa de lavar as
mãos sem parar e sem conseguir parar, o que acabou ficando tão sério que
ela teve que ir pra um asilo. Parece que lembro de pensar que a minha mãe
de algum jeito associava isso de eu contar mais com a tia e a pia e que ela
não via como uma forma de retardo ou de incapacidade de só ficar ali
sentadinho e ler como eles mandavam, que era como as autoridades da
escola de Rockford parece que viam. Daí o ódio que ela sentia das
instituições tradicionais e das autoridades, que foi outra coisa que ajudou
aos poucos a afastar ela do meu pai e a pôr o casamento deles em perigo, e
assim por diante.
Lembro que uma vez, acho que em 75 ou 76, eu raspei só uma costeleta e
fiquei um tempo daquele jeito, achando que só uma costeleta me
transformava num não conformista — sério, meu — e entrando em longas
conversas sérias com as meninas nas festas que me perguntavam o que
aquela costeleta solitária “queria dizer”. Um monte de coisas que eu lembro
de dizer e de acreditar nessa época literalmente faz eu me encolher de
vergonha na cadeira hoje só de pensar. Lembro do Kiss, do REO
Speedwagon, Cheap Trick, Styx, Jethro Tull, Rush, Deep Purple e, claro, do
bom e velho Pink Floyd. Lembro de Basic e Cobol. Cobol era o que rodava
no equipamento de contabilidade de custos do meu pai no escritório. Ele
entendia pacas de computadores naquela época. Lembro dos rádios
transistorizados de bolso da Sony e daquela manha da maioria dos negros
da cidade de segurar o rádio no ouvido enquanto os garotos brancos dos
subúrbios usavam o foninho de ouvido opcional, que nem um tampão da
DIC, que a gente tinha que limpar quase todo dia senão ficava supernojento.
Teve a crise de energia, a recessão, a estagflação, apesar de eu não lembrar
em que ordem essas coisas aconteceram — se bem que eu sei que a
principal crise de energia deve ter acontecido quando eu estava morando de
novo em casa depois do negócio da Lindenhurst College, porque esvaziei o
tanque do carro da minha mãe num dia que eu fiquei festando até de noitão
com uns velhos amigos de escola, o que não deixou o meu pai superfeliz, dá
pra entender. Acho que a cidade de Nova York foi de fato à falência por um
tempo nessa época. Teve também a calamidade de 1977 que foi a tentativa
de o estado de Illinois transformar o imposto estadual sobre vendas num
imposto progressivo, o que eu sei que transtornou o meu pai um monte mas
que eu nem entendi nem achei importante na época. Depois, claro, eu ia
entender por que transformar um imposto sobre vendas num imposto
progressivo é uma ideia horrorosa, e por que o caos que ela provocou quase
custou o mandato do governador na época. Mas eu não lembro de ter
percebido nada na época além de uma multidão maior que o normal nos
shoppings e do inferno que foi comprar os presentes de fim de ano em 77.
Não sei se isso é relevante. Duvido que alguém que não trabalhe no
governo dê muita bola pra isso, apesar de ainda ter umas piadas velhas
sobre tudo isso aqui, coisa dos fraldinhas mais antigos no CRA.
Lembro de sentir de verdade uma sensação física de ódio por quase tudo
que era rock comercial — que nem discoteca, que se você era legal você
basicamente tinha que odiar, e todas as bandas com nomes de lugar de uma
palavra só. Boston, Kansas, Chicago, America — ainda sinto um ódio quase
corpóreo. E de achar que eu e de repente um ou dois amigos estávamos
entre as pouquíssimas pessoas que realmente entendiam o que o Pink Floyd
estava tentando dizer. É constrangedor. A maior parte disso tudo quase
parece ser lembrança de outra pessoa. Eu não lembro quase nada dos meus
primeiros anos de infância, quase só uns estrobos isolados e esquisitões.
Mas quanto mais fragmentada é a lembrança, mais ela me parece
autenticamente minha, o que é estranho. Fico pensando se alguém por aí
sente ser a mesma pessoa que ela se lembra ter sido. Isso acho que ia fazer
as pessoas terem um ataque. Acho que nem ia fazer sentido.
Não sei se isso já dá. Não sei o que os outros te disseram.
A palavra que a gente usava com esse tipo de niilista na época era lesado.
Lembro que eu morava num dormitório da UIC num prédio bem alto com
um aluno superdescolado, supermoderninho de Naperville que também
usava costeleta, cordão de couro e tocava violão. Ele se via como um não
conformista, todo desconcentrado e niilista também, e mergulhadão na cena
lesada e drogada da universidade, e tinha o que preciso admitir era um
Firebird 72 hiperbacana que um dia a gente descobriu que eram os pais dele
que pagavam o seguro. Não lembro o nome dele por mais que eu tente. UIC
era a Universidade de Illinois, Campus de Chicago, uma universidade
urbana gigantesca. O dormitório onde a gente morava ficava bem na
Roosevelt, e as janelas principais davam pra uma clínica de podologia bem
grandona — também não lembro o nome — que tinha um neon imenso
vertical que girava num eixo todos os dias úteis das 8h às 8h com o nome e
o número mnemônico de telefone que terminava em 2256 de um lado e do
outro um contorno imenso de um pé humano colorido — a gente achava
que era um pé de mulher, pelo tamanho — e eu lembro que esse meu colega
de quarto e eu inventamos um tipo de ritual em que a gente fazia de tudo
pra tentar estar a postos na janela às 8h toda noite pra ver a placa do pé
apagar e parar de girar quando a clínica fechava. Ela sempre escurecia ao
mesmo tempo que as janelas da clínica e a gente criou a teoria de que tudo
ficava ligado num disjuntor central. A rotação da placa não parava na hora.
Ela ia mais é ficando lenta, com um jeitão quase de roda da fortuna até
finalmente parar. O ritual era que se a placa parasse com o pé virado pra
longe, a gente ia estudar na biblioteca da UIC, mas se ela parasse com o pé
ou com qualquer parte importante do pé virada pra nossa janela, a gente
considerava isso um “anúncio” (com o duplo sentido incrivelmente óbvio) e
largava no ato toda e qualquer tarefa ou suposta responsabilidade que a
gente tivesse e ia pro Hat, que na época era o bar mais bacana e o palco da
moda pras bandas da UIC, e ficava tomando cerveja e tentando quicar uma
moeda pra ela cair num copo e contando pra todos os carinhas cujos pais
pagavam a universidade deles o nosso ritual do pé giratório de um jeito que
fazia a gente, todo mundo ali, parecer niilisticamente lesado e bacana. Fico
superenvergonhado de lembrar essas coisas. Eu lembro da placa do
podólogo, do Hat, da cara e até do cheiro do Hat, mas não consigo lembrar
o nome desse colega de quarto, isso apesar da gente passar três ou quatro
noites por semana juntos naquele ano. O Hat não tinha nenhuma ligação
com o Meibeyer’s, que é meio que o bar principal dos analistas moleza aqui
no CRA, e também tem uma decoração com chapéus e um porta-chapéus de
exposição, mas esses aqui supostamente seriam chapéus históricos do IRS e
do COC, chapéus de adultos sérios. O que quer dizer que a similaridade é
mera coincidência. Na verdade eram dois Hats, que nem uma franquia —
tinha o da UIC na esquina da Cermak com a Western, e outro lá no Hyde
Park pros carinhas mais motivados e mais centrados da U de Chicago. Todo
mundo do nosso Hat chamava o Hat do Hyde Park de “Quipá”. Esse meu
colega de quarto não era nem um mau sujeito nem um sujeito mau, apesar
de eu ter descoberto que ele só sabia tocar três ou quatro músicas no violão,
e ele tocava violão o tempo todo sem parar, e apesar de ele racionalizar de
forma descarada a venda de drogas como parte da rebelião social em vez de
puro e simples capitalismo, mesmo naquela época eu já sabia que ele era
um total conformista em relação aos padrões do suposto não conformismo
de fins dos anos setenta, e às vezes eu sentia um certo desprezo por ele. Eu
posso ter achado ele um pouco inferior. Como se eu não estivesse na
mesma, claro — mas esse tipo de projeção e de deslocamento descarado
fazia parte da hipocrisia niilista daquele período todo.
Eu lembro da “Anti-Cola” e de como nos comerciais de Noxzema sempre
tocava um tema pesadão de striptease. Parece que eu lembro de muitos
padrões que imitavam madeira em coisas que não eram de madeira, e
peruas com painéis laterais feitos pra parecer de madeira. Lembro do
Jimmy Carter na televisão com um cardigã, e alguma coisa sobre um irmão
do Carter que descobriram que era um lesado e um bocó total que só de ser
parente já deixava o presidente com vergonha.
Acho que eu não votei. A verdade é que eu não lembro se votei ou não.
Provavelmente eu quis ir e disse que ia e aí meio que me distraí e acabei
não indo. Isso ia ter toda a cara dessa época.
Claro que provavelmente nem precisa dizer que eu festei pacas nesse
período todo. Eu não sei quanto é pra eu falar disso tudo. Mas eu não festei
nem mais nem menos do que todo mundo que eu conhecia — pra falar a
verdade, muito exatamente nem mais nem menos. Todo mundo que eu
conhecia e que saía comigo era lesado, e a gente sabia. Era bacana ter
vergonha de ser lesado, de um jeito meio torto. Um tipo doido de um
desespero narcisista. Ou só se sentir sem rumo e perdido — a gente
romantizava essa coisa toda. Eu gostava mesmo é de Ritalina e de uns tipos
de bolinha que nem Cylert, o que era meio incomum, mas todo mundo tinha
lá suas preferências idiossincráticas nisso de festar. Eu não tomei
quantidades gigantes de bolinhas, já que os tipos que eu curtia eram difíceis
de achar — você meio que topava com elas por acaso. O colega de quarto, o
do Firebird azul, era obcecado por haxixe, que ele sempre dizia que era
massa.
Pensando agora, duvido que um dia tenha me ocorrido que o que eu
achava desse meu colega de quarto era provavelmente o que o meu pai
achava de mim — que eu era tão conformista quanto ele, além de hipócrita,
um “rebelde” que na verdade só parasitava a sociedade sob a forma dos
seus pais. Eu queria poder dizer que eu tinha um grau de consciência capaz
de fazer essa contradição aparecer na época, apesar que eu provavelmente
ia ter feito ela virar uma piadinha descolada e niilista. Ao mesmo tempo, às
vezes sei que eu me preocupava com essa minha falta de rumo e de
iniciativa, com o quanto tudo parecia abstrato e aberto a diferentes
interpretações na época, até com o quanto a minha memória estava
começando a parecer vaga e sem sentido. O meu pai, em compensação, eu
sei bem, lembrava de tudo — particularidades, detalhes, o dia e a hora
exatos das coisas marcadas e afirmações anteriores que agora eram
inconsistentes com afirmações atuais. Mas aí acabei descobrindo que esse
tipo de atenção aos detalhes e de memória perfeita fazia parte do trabalho
dele.
O que eu era mesmo era um ingênuo. Por exemplo, eu sabia que mentia,
mas eu quase nunca pensava que as pessoas em volta de mim podiam estar
mentindo. Agora eu me dou conta do quanto isso era bobo e do quanto
deixa a realidade nebulosa de verdade. Eu era uma criança, na verdade. O
fato é que quase tudo que sei de verdade sobre mim eu aprendi no Serviço.
Isso pode parecer meio puxação de saco, mas é verdade. Eu estou aqui há
cinco anos e aprendi pacas.
Enfim, eu também lembro de fumar maconha com a minha mãe e a
companheira dela, a Joyce. Elas mesmas plantavam, e não era exatamente
forte, mas a questão não era bem essa, porque com elas era meio que mais
uma posição política liberada do que se chapar mesmo, e a minha mãe
quase parecia fazer questão de fumar maconha toda vez que eu ia lá visitar
elas, e por mais que isso me deixasse meio desconfortável, não lembro de
ter me recusado nunca a “queimar unzinho” com elas, por mais que eu
ficasse meio sem graça quando elas usavam esses termos de universidade.
Naquela época, a minha mãe e a Joyce eram sócias de uma livrariazinha
feminista que eu sabia que o meu pai não gostava de ter ajudado a financiar
com o acordo do divórcio. E eu lembro de estar sentado uma vez com elas
nos pufes do apartamento de Wrigleyville, passando um daqueles beques
grandões e amadoristicamente enrolados lá delas — e beque era a palavra
descolada dos lesados pra baseado na época, pelo menos lá pros meus lados
— e ouvindo a minha mãe e a Joyce contarem lembranças bem vívidas e
detalhadas da infância delas, as duas rindo, chorando e passando a mão no
cabelo uma da outra pra dar apoio emocional, o que não me incomodava
mesmo — elas se tocarem e se beijarem na minha frente — ou pelo menos
àquela altura eu já tinha tido mais do que tempo de me acostumar, mas
lembro de ir ficando cada vez mais paranoico e nervoso na época, porque,
quando eu fazia bastante força pra pensar em algumas das minhas próprias
recordações de infância, a única lembrança vívida que eu conseguia evocar
era de eu socando Glovolium na luva de beisebol Rawlings que o meu pai
tinha me dado, e daquele dia que eu peguei a luva autografada do Johnny
Bench eu lembrava direitinho, se bem que a casa da minha mãe e da Joyce
não era lugar de ficar sentimentalizando a lembrança de ganhar alguma
coisa do meu pai, claro. Aí a pior parte era começar a ouvir a minha mãe
narrar todas essas lembranças e histórias engraçadas da minha infância e
perceber que na verdade ela se lembrava muito mais da minha infância do
que eu, como se ela tivesse dado um jeito de arrancar ou confiscar
lembranças e experiências que eram tecnicamente minhas. Óbvio que não
pensei na palavra confiscar na época. Ela é uma palavra mais do Serviço.
Mas fumar maconha com a minha mãe e a Joyce não costumava ser uma
experiência assim tão agradável, e normalmente me deixava todo esquisito,
agora que eu parei pra pensar — e mesmo assim eu ia lá queimar um com
elas quase toda vez. Duvido que a minha mãe também curtisse muito
aquilo. A coisa toda tinha um ar fajuto de diversão e liberação. Quando
penso nisso agora, tenho a sensação de que a minha mãe estava tentando me
fazer ver ela mudar e crescer bem ali na minha frente, nós dois do meu lado
do abismo de gerações, como se a gente ainda estivesse tão próximo como
quando eu era criança. Que nem dois não conformistas, e mostrando o dedo
pro meu pai, simbolicamente. Enfim, fumar maconha com ela e com a
Joyce sempre parecia meio hipócrita. Os meus pais se separaram em
fevereiro de 1972, na semana em que Edmund Muskie chorou em público
durante a campanha e a TV ficou o tempo todo passando imagens dele
chorando. Eu não lembro por que ele estava chorando, mas aquilo
definitivamente acabou com as chances dele na campanha. Foi na sexta
semana da aula de teatro do colegial que aprendi a palavra niilista. O que
sei é que eu não sentia nenhuma hostilidade pela Joyce, apesar de que eu
lembro de sempre ficar meio tenso quando estava sozinho com ela e do
alívio que era a minha mãe chegar em casa e eu poder meio que lidar com
elas como um casal em vez de tentar manter uma conversa com a Joyce, o
que era sempre complicado porque sempre parecia que tinha muito mais
temas e coisas que eu precisava me lembrar de não mencionar do que de
incluir na conversa, e aí tentar bater papo com ela era que nem tentar descer
a montanha Devil’s Head de slalom com as bandeiras a centímetros umas
das outras.
Vendo daqui, só depois fui perceber que o meu pai era um cara esperto e
sofisticado. Na época acho que eu pensava nele como um sujeito que mal
estava vivo, assim meio que nem um robô ou um escravo do conformismo.
É verdade que ele era certinho, pentelho e rápido nas respostinhas cínicas
dele. Ele era 100% convencional e estava totalmente do outro lado do
abismo de gerações — ele tinha quarenta e nove anos quando morreu, foi
em dezembro de 77, o que obviamente significa que ele cresceu durante a
Depressão. Mas acho que eu nunca valorizei o senso de humor dele sobre
tudo isso — ele tinha lá o jeito dele de expor as suas opiniões pró-sistema
num estilo seco e inteligente que não lembro de ter entendido ou sacado as
piadas dele na época. Parece que o meu senso de humor não era lá muito
grande ou então embarquei naquela coisa-padrão de criança de considerar
tudo que ele dizia como comentário ou crítica pessoal. Tinha umas coisas
que eu sabia dele, que eu fui pegando nos anos da minha infância, em geral
com a minha mãe. Que, assim, ele era supertímido quando eles se
conheceram. Que ele tinha querido fazer mais que um curso
profissionalizante mas tinha contas pra pagar — ele serviu na logística e em
suprimentos na Coreia, mas como já tinha casado com a minha mãe quando
foi mandado pra lá teve que arrumar emprego assim que voltou. Era isso
que as pessoas da idade dela faziam na época, ela explicou — se você
conhecia a pessoa certa e tinha pelo menos terminado o colegial, você
casava sem nem pensar duas vezes e sem nem se questionar. O negócio é
que ele era bem inteligente e meio frustrado na vida, como muitos da
geração dele. Ele trabalhava duro porque não tinha escolha, e os sonhos
pessoais iam ficando pra trás. Isso é tudo indireto, veio pela minha mãe,
mas encaixava com certos pedaços e fiapos de histórias que nem eu
conseguia deixar de perceber. Por exemplo, o meu pai lia direto. Ele estava
o tempo todo lendo. Era a grande diversão dele, principalmente depois do
divórcio — ele vivia chegando da biblioteca com uma pilha de livros com
aquele plástico transparente por cima das capas. Eu nunca prestei a menor
atenção naqueles livros ou por que ele lia tanto — ele nunca falava sobre o
que andava lendo. Nem sei que tipo ele preferia, se era história, livros
policiais, sei lá. Pensando bem, acho que ele era muito sozinho,
principalmente depois do divórcio, já que as únicas pessoas que dava pra
dizer que eram amigas dele eram os colegas de trabalho, e na minha opinião
ele achava o emprego dele basicamente uma chatice — não acho que ele se
sentisse muito envolvido com o orçamento e os protocolos de gastos da
cidade de Chicago, até porque não tinha sido ideia dele se mudar pra cá —
e acho que os livros e as questões intelectuais funcionavam como válvula
de escape pra esse tédio. Na verdade ele era um sujeito bem inteligente. Eu
gostaria de conseguir lembrar de mais exemplos do tipo de coisa que ele
dizia — na época acho que essas coisas me pareciam mais hostis ou críticas
do que piadas que ele fazia de nós dois ao mesmo tempo. Mas lembro que
ele às vezes se referia à suposta geração jovem (ou seja, a minha) como
“Essa coisa que saiu das entranhas da América”. Não é o melhor dos
exemplos. É quase como se ele pensasse que a culpa era dos dois lados, que
tinha alguma coisa errada com os adultos de todo o país se eles podiam
gerar crianças que nem as que estavam por aí nos anos 70. Lembro que uma
vez em outubro ou novembro de 76, com vinte e um anos, durante outro
período meu de folga, depois de eu ter entrado na DePaul — o que na
verdade não foi uma ideia assim tão boa, essa primeira vez que eu entrei na
DePaul. Foi basicamente um desastre. Eles meio que me pediram pra sair,
pra falar a verdade, e foi a única vez que isso me aconteceu. Nas outras
vezes, na Lindenhurst College e depois na UIC, eu mesmo é que saía. Enfim,
durante essa folga eu estava trabalhando no turno da noite na fábrica da
Cheese Nabs em Buffalo Grove e morando lá na casa do meu pai em
Libertyville. Nem a pau que eu ia dormir no apartamento da minha mãe e
da Joyce na região de Wrigleyville, em Chicago, onde os quartos tinham
cortinas de contas em vez de portas. Mas eu só entrava nesse trabalho bocó
às seis, então eu basicamente ficava de bobeira pela casa a tarde toda até a
hora de sair. E às vezes durante esse período o meu pai saía da cidade por
uns dias — como o Serviço, o financeiro da cidade de Chicago vivia
mandando o pessoal mais técnico pra umas conferências e uns eventos de
trabalho, que depois eu ia acabar sabendo aqui no Serviço que não são que
nem as convenções enormes e beberronas da indústria privada e que são
normalmente umas coisas bem intensivas e centradas no trabalho. O meu
pai dizia que as conferências da prefeitura eram em geral bem tediosas, que
era uma palavra que ele usava consideravelmente, tedioso. E nessas viagens
era só eu em casa, e você pode imaginar o que acontecia quando eu ficava
lá sozinho, ainda mais nos fins de semana, apesar de eu supostamente ser o
responsável pela casa enquanto ele estava fora. Mas a lembrança dele
chegando em casa mais cedo numa tarde de 76, voltando de uma dessas
viagens de trabalho, coisa de um ou dois dias antes do que ele tinha me dito
que ia chegar, e entrando e me vendo com dois dos meus velhos supostos
amigos lá da escola de Libertyville na sala — que, por causa do projeto
levemente elevado da varanda e da porta da frente, era de fato uma sala de
estar afundada que mais ou menos começava logo depois da porta de
entrada, com uma escadinha que ia pra sala de estar e outra que ia pro andar
de cima. Arquitetonicamente, o estilo da casa é chamado de rancho elevado,
como a maioria das outras casas mais velhas da rua, e ainda tinha mais uma
escada que ia do corredor do andar de cima pra garagem, que na verdade
sustenta uma parte do andar de cima — ou seja, a garagem, estruturalmente,
é uma parte necessária da casa, e isso é o que diferencia uma planta tipo
rancho elevado. No momento que ele entrou, dois estavam escarrapachados
no sofá Davenport com os pezões sujos em cima da mesinha de centro
especial, e o carpete todo forrado de latinhas de cerveja e embalagens da
Taco Bell — as latinhas eram da cerveja que o meu pai comprava no
atacado duas vezes por ano e guardava na despensa pra normalmente beber
um total de duas por semana — com a gente lá lesado total e assistindo
Rastros de ódio na WGN, e um dos caras ouvindo Deep Purple nos fones de
ouvido do meu pai, especiais pra ouvir música clássica, e o tampo especial
de carvalho ou de bordo da mesinha de centro ali com umas rodelonas de
condensação das latas de cerveja por tudo que é canto porque a gente tinha
aumentado geral o aquecimento da casa pra muito além de onde ele
normalmente deixava colocar, pensando na economia de energia e de
gastos, e o outro cara do meu lado no Davenport dobrado bem no ato de dar
uma bola bem comprida no bong — esse cara era famoso por conseguir dar
umas bolas enormes. Fora que a sala toda estava fedendo. Quando aí, de
repente, na memória, eu ouvi o som inconfundível dos passos dele na
varanda larga de madeira e o som da chave na porta da frente, e um mero
segundo depois o meu pai de repente entra junto com uma onda de um ar
muito frio e muito limpo, de chapéu e com a malinha de viagem — eu
estava no estado paralisado de choque de uma criança flagrada de calça na
mão, fiquei ali paralisado, incapaz de fazer alguma coisa e ao mesmo tempo
vendo cada quadro da cena da entrada dele com um foco e uma nitidez
horríveis — e ele ali parado à beira dos poucos degraus que desciam até a
sala, tirando o chapéu com aquele gesto característico que envolvia tanto a
cabeça quanto a mão enquanto ele ficava ali parado absorvendo a cena e
nós três — ele não fazia segredo do fato de não gostar muito desses velhos
amigos de escola, que eram os mesmos caras com quem eu estava na rua
quando roubaram a tampinha do tanque de gasolina da minha mãe e
chuparam todo o tanque, e nenhum de nós tinha mais dinheiro quando a
gente achou o carro, e eu tive que ligar pro meu pai e ele teve que ir lá de
trem depois do trabalho pra pagar a gasolina pra eu poder levar o Le Car de
volta pra minha mãe e pra Joyce, que era coproprietária e usava o carro pras
coisas da livraria — os três largados ali totalmente doidos e paralisados, um
dos caras com uma camiseta velha toda ferrada que eu juro que dizia FODA-
SE no peito, o outro tossindo aquela bola imensa por causa do susto, uma
pluma de fumaça de maconha subia deslizando pela sala na direção do meu
pai — pra te encurtar a história, a minha lembrança é dessa cena ser a pior
confirmação do pior tipo de estereótipo de abismo de gerações e de repulsa
paterna por aqueles filhos decadentes e lesados, e do meu pai largando
devagar a malinha e a pasta e só ali parado, sem expressão e sem dizer nada
pelo que me pareceu uma enormidade, e aí ele bem devagar fez um gesto
com um braço um pouco erguido no ar e olhando pra cima disse: “Eis
minha obra, ó grandes, desesperem!”, e aí ele pegou de novo a malinha de
viagem e sem dizer uma palavra subiu os degraus da entrada, foi pro antigo
quarto deles e fechou a porta. Ele não bateu a porta, mas deu pra ouvir ela
fechando bem firme. Estranho, a lembrança, que é horrivelmente nítida e
detalhada até aí, nessa hora para total, que nem uma fita que chegou no fim,
e eu não sei o que aconteceu depois, de eu tirar os caras dali e tentar limpar
tudo na pressa e baixar de novo o termostato pra vinte graus, apesar de eu
lembrar sim de me sentir uma bosta total, não tanto a sensação de ter sido
apanhado de calça na mão ou de estar ferrado, mas simplesmente de ser
infantil, uma criancinha egoísta e mimada, sentado no meio do lixo em
casa, doido, com o pé sujo em cima da mesinha de centro toda marcada que
ele e a minha mãe tinham poupado tanto pra comprar numa loja de
antiguidades em Rockford quando ainda eram jovens e não tinham muita
grana, e que ele valorizava e esfregava com óleo de limão o tempo todo, e
dizia que ele só pedia pra eu por favor não colocar o pé em cima e usar uma
bolachinha pros copos — de assim por um ou dois segundos ver o que é que
ele devia ter visto em mim enquanto ficou lá parado vendo a gente tratar a
sala dele daquele jeito. Não era uma cena bonita, e parecia ainda pior já que
ele não gritou nem pegou no meu pé — ele só ficou com uma cara exausta e
meio que envergonhada por nós dois — e lembro que por um ou dois
segundos consegui até sentir o que ele devia estar sentindo, e por um
instante me vi pelos olhos dele, o que deixou a coisa toda muito, mas muito
pior do que se ele tivesse ficado furioso ou gritado comigo, coisa que ele
nunca fez, nem depois quando eu e ele ficamos sozinhos na mesma sala —
coisa que nem lembro quando foi, se eu saí cabisbaixo da casa depois de
limpar tudo ou se fiquei lá pra encarar. Não sei qual das duas coisas eu fiz.
Nem entendi o que ele falou, apesar de obviamente entender que ele estava
sendo sarcástico e de certa forma se culpando ou rindo de si próprio por ter
produzido a “obra” que tinha acabado de jogar as embalagens da Taco Bell
e os saquinhos no chão em vez de se dar ao trabalho de levantar e dar assim
uns oito passos pra ir jogar no lixo. Se bem que depois eu simplesmente
topei com o poema que no fim era o que ele tinha citado, em algum
contexto esquisitão no CAT de Indianápolis, e o meu olho quase me pula da
cabeça, porque eu nem sabia que era um poema — e um poema famoso, do
mesmo poeta inglês que evidentemente escreveu o Frankenstein original. E
eu nem sabia que o meu pai lia poesia inglesa, muito menos que ele citava
poesia inglesa quando estava puto. Resumo, ele devia ser muito mais do
que eu imaginava, e não lembro nem de sacar como eu sabia pouco dele, de
verdade, até depois de ele ter morrido e ser tarde demais. Acho que esse
tipo de arrependimento é típico também.
Enfim, essa única lembrança terrível de erguer os olhos lá no sofá e me
ver pelos olhos dele, e daquele jeito triste e sofisticado dele de exprimir
toda a sua tristeza e repulsa — isso meio que define todo aquele período pra
mim agora, quando penso nisso. Também me lembro do nome daqueles
dois ex-amigos daquele dia fodido, mas óbvio que não é relevante.
As coisas começam a ficar bem mais nítidas, claras e concretas em 1978,
e olhando daqui agora acho que concordo com a minha mãe e a Joyce que
foi naquele ano que “me achei” ou “larguei de criancice” e comecei o
processo de desenvolver alguma iniciativa e alguma orientação na vida, o
que obviamente me levou a entrar pro Serviço.
Apesar de não estar diretamente ligado à minha escolha do IRS como
carreira, é verdade que o meu pai morrer num acidente de trânsito no fim de
77 foi um acontecimento horrível e de mudar a minha vida mesmo, que eu
obviamente espero nunca ter que passar de novo, de jeito nenhum. A minha
mãe sofreu demais e teve que tomar tranquilizantes, e ela acabou
psicologicamente sem condições de vender a casa do meu pai, deixou a
Joyce e a livraria e voltou pra casa de Libertyville, onde ela mora até hoje,
com algumas fotos do meu pai e deles quando eram um jovem casal e
moravam naquela casa. É uma situaçãozinha bem triste, e um psicólogo de
boteco provavelmente ia dizer que de alguma maneira ela se culpava pelo
acidente, apesar de que eu, mais que ninguém, estava em condição de saber
que não era verdade e que, em última análise, o acidente não foi culpa de
ninguém. Eu estava lá quando aconteceu — o acidente — e não tem como
negar que foi 100% terrível. Até hoje lembro da coisa toda com detalhes tão
nítidos, tão concretos que parece mais uma gravação que uma lembrança, o
que já me disseram que é comum nos traumas — e mesmo assim não tinha
como contar pra minha mãe exatamente o que aconteceu do começo ao fim
sem acabar com ela, já que ela já estava muito abalada, se bem que
qualquer um podia ter visto que boa parte da dor dela vinha de conflitos não
resolvidos e de coisas que ainda ficaram do casamento e da crise de
identidade que ela teve em 72 com quarenta ou quarenta e um anos e com o
divórcio, sendo que ela não lidou com nada disso na época porque se jogou
tão de cabeça no movimento feminista e naquilo de desenvolver a
consciência crítica naquele círculo novo de mulheres esquisitas, a maioria
acima do peso e todas com seus quarenta anos, fora a nova identidade
sexual com a Joyce quase assim de cara, o que eu sou obrigado a dizer que
praticamente acabou com o meu pai, visto que ele era todo quadradinho e
convencional, apesar de que eu e ele nunca falamos disso diretamente e de
ele e a minha mãe terem dado um jeito de continuarem até que bem amigos
e de eu nunca ter ouvido ele abrir a boca pra falar do assunto a não ser por
um ou outro resmungo sobre o quanto dos pagamentos de pensão que eles
tinham combinado acabava indo pra livraria, que ele às vezes chamava de
“aquele vórtex financeiro” ou apenas de “o vórtex” — o que por si só já é
uma história comprida. Então a gente nunca falou disso de verdade, o que
eu duvido que seja lá muito incomum em casos assim.
Se eu tivesse que descrever o meu pai, ia começar dizendo que o
casamento dele com a minha mãe foi um dos únicos que eu vi em que a
mulher era visivelmente mais alta que o marido. O meu pai tinha um e
sessenta e oito ou um e sessenta e nove, não era gordo mas era troncudo,
como esses caras mais baixos de quarenta e tantos anos são troncudos. Ele
devia pesar uns oitenta quilos. Ficava bem de terno — como muitos homens
da geração dele, o corpo parecia projetado pra rechear e sustentar um terno.
E ele tinha uns ternos bacanas, quase todos com um botão e uma fenda
atrás, discretos e conservadores, basicamente meia-estação e um ou dois de
anarruga pra quando fazia calor, quando ele também deixava de lado o
chapéu de sempre. Ele tinha o bom senso — pelo menos pensando agora —
de rejeitar o estilo supostamente moderno de gravata larga, cores mais
fortes e lapelas enormes, e achava asqueroso o fenômeno dos terninhos tipo
safári e dos blazers de veludo cotelê. Os ternos dele não eram feitos por
alfaiate, mas quase todos eram da Jack Fagman, uma loja bem antiga e
respeitada de roupas masculinas em Winnetka que ele frequentava desde
que a nossa família se transferiu pra região de Chicago em 1964, e alguns
eram bem bacanas mesmo. Em casa, no que ele chamava de estar “à
paisana”, ele usava umas calças mais informais e umas camisas tipo polo,
às vezes por baixo de um suéter — o preferido era xadrez tipo argyle. Às
vezes ele usava um cardigã, se bem que eu acho que ele sabia que os
cardigãs deixavam a cintura dele muito larga. No verão, às vezes tinha
aquela coisa horrenda da bermuda com meia social preta, que no fim eram
as únicas meias que o meu pai teve na vida. Um blazer esportivo, um 48
curto azul-marinho de seda estriada, vinha da juventude dele e dos
primeiros dias da conquista da minha mãe, ela explicou — depois do
acidente ela sofria até de ouvir falar desse casaco, que dirá me ajudar a
pensar o que fazer com ele. No armário de roupas tinha o melhor e o
terceiro melhor sobretudo dele, também da Jack Fagman, com o cabide de
madeira vazio no meio dos dois. Ele punha os calçados sociais e de trabalho
dele em fôrmas; ele herdou do pai. (Ele “herdou” obviamente as fôrmas,
não os sapatos.) Lá tinha também uma sandália de couro que ele ganhou de
Natal e que não só nunca tinha usado como nem tinha chegado a tirar a
etiqueta da loja quando coube a mim vasculhar o armário de roupas dele e
esvaziar tudo. A ideia de usar sapato com salto embutido nunca teria nem
ocorrido ao meu pai. Naquela época até onde eu soubesse nunca tinha visto
uma fôrma pra sapato e nem sabia pra que elas serviam, já que eu nunca
cuidei dos meus sapatos ou dei valor a eles.
O cabelo do meu pai, que nitidamente tinha sido quase castanho-claro ou
louro quando ele era mais novo, primeiro foi escurecendo e aí ficou
misturado com branco, e de uma textura mais dura que a do meu e uma
tendência a enrolar na parte de trás nos dias úmidos. A nuca dele estava
sempre vermelha; a aparência dele era viva do jeito que o rosto de certos
caras mais velhos e troncudos tem de ser meio vivo, aceso. Um pouco desse
vermelho era congênito, provavelmente, e um pouco era psicológico —
como a maioria dos homens da geração dele, ele era ao mesmo tempo tenso
pacas e supercontrolado, uma personalidade tipo A mas com um superego
dominante e umas inibições tão radicais que elas apareciam principalmente
como uma dignidade e uma precisão exageradas nos movimentos dele. Ele
quase nunca se permitia nenhum tipo de expressão facial aberta ou
proeminente. Mas não era uma pessoa calma. Ele não falava nem agia de
um jeito nervoso, mas havia meio que uma aura de tensão extrema nele —
lembro meio que de um zumbido leve emanando dele quando ele estava
parado. Olhando daqui, acho que quando o acidente aconteceu ele devia
estar a um ou dois anos de precisar tomar remédio pra pressão.
Lembro de ter consciência de que a postura ou o porte geral do meu pai
parecia incomum pra um cara mais baixo — a maioria dos baixinhos tende
a se pôr reto que nem um pau, por motivos compreensíveis — nem tanto
porque ele parecesse corcunda mas meio que dobrado perto da cintura, bem
pouquinho, o que aumentava a sensação de tensão dele ou de ele estar
sempre andando contra algum vento. Eu só fui entender isso quando entrei
pro Serviço e vi a postura de alguns analistas mais velhos que tinham
passado dias e dias anos a fio numa mesa de trabalho, inclinados pra frente
verificando declarações, em primeiro lugar pra identificar as que mereciam
uma auditoria. Em outras palavras, é a postura de alguém cujo trabalho
diário significa ficar sentado imóvel na frente de uma mesa e trabalhando
concentrado por anos a fio.
Na verdade, sei muito pouco da realidade do trabalho do meu pai e de sei
lá o que ele acarretava, apesar de agora eu certamente saber o que é a
contabilidade de custos.
Com tudo isso, eu entrar pra fazer carreira no IRS podia parecer uma coisa
ligada ao acidente do meu pai — num sentido mais humanístico, ligada à
minha “perda” de um pai que tinha sido contador. A área técnica do meu pai
era sistemas e processos contábeis, que na verdade está mais pra
processamento de dados que pra contabilidade de verdade, como eu depois
ia entender. Da minha parte, por outro lado, tenho a convicção de que de um
jeito ou de outro eu agora ia estar no Serviço, por causa do evento chocante
que lembro que mudou completamente os meus objetivos e a minha atitude
e que ocorreu no outono seguinte, no terceiro semestre da minha volta à
DePaul e quando eu estava cursando introdução à contabilidade de novo,
junto com teoria política americana, que era outra disciplina que eu tinha
abandonado na Lindenhurst basicamente depois de eu não encarar a coisa e
não me esforçar. Mas é bem verdade que eu posso ter feito isso — cursar
introdução de novo — pelo menos em parte pra agradar ou tentar
compensar o meu pai, ou pelo menos pra diminuir a repulsa que senti de
mim depois que ele entrou e viu aquela cena niilista na sala que eu acabei
de mencionar. Foi provavelmente poucos dias depois da cena e da reação do
meu pai que eu peguei o trem da CTA até o Lincoln Park e comecei a tentar
me rematricular pros dois anos que me faltavam — em termos de créditos,
quatro semestres — na DePaul, se bem que por causa de umas
questõezinhas técnicas eu só fui conseguir entrar de novo no outono de 77
— outra história comprida — e, graças a eu decidir me esforçar e também
engolir o orgulho e pedir ajuda externa pra lidar com as tabelas de
depreciação e amortização, acabei passando, junto com a versão DePaul de
teoria política americana — que eles chamavam de pensamento político,
apesar de que a versão deles e da Lindenhurst desse curso eram quase
idênticas — no semestre de outono de 78, apesar de eu não ter exatamente
tirado notas excepcionais, porque eu basicamente deixei de estudar a sério
pras provas finais dessas duas disciplinas por causa (um negócio meio
irônico) do fato chocante que ocorreu por acaso numa aula totalmente
diferente na DePaul, de uma disciplina que eu nem estava fazendo mas em
que meio que entrei de bobeira por causa de um vacilo na hora da semana
de ajustes logo antes dos feriados de Natal, e eu fiquei tão chocantemente
tocado e comovido com aquilo que mal estudei pras provas finais das
disciplinas normais, apesar de que dessa vez não foi por descuido nem por
preguiça mas porque decidi que tinha muito em que pensar, e muito longa e
concentradamente, depois do encontro chocante com o jesuíta substituto em
tributarismo avançado, que foi a aula que falei que assisti por engano.
O negócio é que provavelmente tem umas pessoas que acabam atraídas
por uma carreira no IRS. Pessoas que são, como o padre substituto disse
naquele último dia de tributarismo avançado, chamadas a “prestar contas”.
Quer dizer, a gente está falando aqui quase de um tipo especial de perfil
psicológi>co, provavelmente. Não é um tipo lá muito comum — de repente
um em cada 10 mil — mas aí esse tipo de pessoa que decide que quer entrar
pro Serviço quer mesmo, mas mesmo, entrar pro Serviço, e o sujeito fica
todo determinado e vai ser duro desviar o cara do caminho depois que ele se
centrou nessa vocação real dele e começou a ficar ativamente atraído por
ela. E até um em cada 10 mil, num país do tamanho dos Estados Unidos,
vai chegar a um número razoável de pessoas — cerca de 20 mil — pra
quem o IRS preenche todos os critérios profissionais e psicológicos pra ser
uma vocação real. Esses mais ou menos 20 mil formam o cerne do Serviço,
ou o coração, e nem todos são dos níveis mais altos da administração do IRS,
apesar de alguns serem. Eles são 20 mil de um total de mais de 105 mil
funcionários do Serviço. E não se pode nem duvidar que essas pessoas
tenham em comum características centrais, fatores preditivos que num dado
momento entram em cena e geram uma legítima vocação pra seguir
contabilidade fiscal, administração de sistemas e comportamento
organizacional e pra elas se devotarem a ajudar a administrar e aplicar as
leis fiscais do nosso país conforme estabelecido no Caput 26 do Código de
Regulamentação Federal e no Código de Receita Interna Revisado de 1954,
além de todos os estatutos e regulamentações vinculados ao Ato de
Reforma Fiscal de 1969, ao Ato de Reforma Fiscal de 1976, ao Ato de
Receita de 1978, e assim por diante. Que razões e que fatores são esses, e
em que medida eles coexistem com os talentos e as disposições particulares
de que o Serviço precisa — são perguntas interessantes que o IRS de hoje se
interessa ativamente por entender e quantificar. No que diz respeito à minha
história pessoal e de como acabei aqui, o importante é que descobri que
tinha — os tais fatores e as tais características — e descobri isso de repente,
pelo que na época pareceu ser nada mais que um equívoco bem
irresponsável.
Eu deixei de fora a questão do abuso de drogas recreativas durante esse
período e a relação de algumas drogas com o modo como eu acabei aqui, o
que de maneira nenhuma significa um apoio ao uso de drogas, mas é só
uma parte da história dos fatores que acabaram me levando pro Serviço.
Mas é complicado e meio tortuoso. É óbvio que as drogas eram uma parte
bem relevante do cenário daquela época — isso todo mundo sabe. Lembro
que no fim dos anos 70 a droga supostamente mais descolada nos campi da
região de Chicago era a cocaína, e como eu era superangustiado pra me
encaixar tenho certeza que teria usado mais cocaína, ou “coca”, se tivesse
curtido os efeitos. Mas não — quer dizer, não curti. Pra mim ela não causou
excitação e euforia, aquilo mais me deixou como se eu tivesse tomado uma
dúzia de cafés de estômago vazio. Foi uma sensação horrorosa, apesar de
todo mundo perto de mim que nem o Steve Edwards ficar falando da
cocaína como a melhor sensação de todos os tempos. Pra mim não foi. Eu
também não gostava de como ela fazia os olhos de quem tinha acabado de
cheirar saltarem e a boca das pessoas ficar se mexendo no rosto de uns
jeitos esquisitos e incontroláveis, e de como qualquer ideia rasa ou óbvia
parecia incrivelmente profunda pras pessoas. A minha lembrança geral da
cocaína nesse período era de estar em algum tipo de festa com alguém
cheirado que ficava falando comigo de um jeito veloz e intenso e eu
tentando delicadamente me afastar, e cada vez que eu dava um passo pra
trás eles davam um passo pra frente, e assim por diante, até me acuarem
num canto da festa e eu ficar literalmente contra a parede, e eles lá falando
bem rápido a centímetros da minha cara, que era um negócio que eu não
achava nada legal. Isso aconteceu de verdade numas festas dessa época.
Acho que tenho um pouco da inibição do meu pai. Proximidade corpórea
radical com alguém muito empolgado ou transtornado é uma coisa que
sempre foi difícil pra mim, o que é um dos motivos por que a Divisão de
Auditoria ficou fora de questão pra mim na fase de seleção e lotação no CAT
— que eu devia explicar que significa “Centro de Avaliação e
Treinamento”, que coisa de um quarto do pessoal regular do Serviço acima
do nível de GS-9 começou frequentando, especialmente quem — como eu
— entrou via programa de recrutamento. Hoje em dia são dois centros
desses, um em Indianápolis e outro um pouquinho maior em Columbus OH.
Os dois CATs são divisões do que o pessoal costuma chamar de Escola do
Tesouro, já que o Serviço é tecnicamente um ramo do Departamento do
Tesouro dos Estados Unidos. Mas o Tesouro também inclui tudo que vai do
Bureau de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo ao Serviço Secreto dos EUA,
ligada, não dava pra deixar de ouvir pela parede, que era famosa por ser
fácil de atravessar com um soco se você era do tipo que socava parede, e
ouvindo esse palavrório sedutor com a aluna, e não só meio que detestando
o cara e sentindo vergonha dele por causa daquele jeito afetado de falar com
as meninas — até parece que alguém que prestasse a menor atenção ia
deixar de ver a força que ele estava fazendo pra tentar projetar essa ideia de
si próprio como um cara descolado e radical sem ter a menor noção de
como aquilo soava mesmo, que era mimado, inseguro e fútil — e ouvindo e
sentindo isso tudo, mas também desconfortavelmente ciente de estar, ou
seja, tendo que sentir e perceber conscientemente essas reações internas em
vez de só deixar elas agirem em mim sem admitir direito essas coisas pra
mim mesmo. Acho que eu não estou me explicando direito. Era assim uma
coisa de ter que conseguir se dizer “Eu estou fingindo que estou aqui
sentado lendo A queda do Camus pra primeira prova de literatura e
alienação, mas na verdade estou me concentrando pacas em ouvir o Steve
tentando impressionar uma menina pelo telefone, e estou sentindo vergonha
e desprezo por ele, e pensando que ele é um falso, e ao mesmo tempo eu
fico incomodamente desconfortável às vezes porque eu também já tentei
projetar uma ideia de mim como um cara descolado e cínico pra
impressionar alguém, ou seja, eu não só meio que detesto o Steve, o que
com toda sinceridade é verdade mesmo, mas parte da razão de eu detestar
o Steve é que quando fico escutando ele falar no telefone eu sou forçado a
ver as semelhanças e a perceber coisas a meu respeito que me deixam
envergonhado, mas não sei exatamente como parar de fazer essas coisas —
assim, se eu parar de tentar ser niilista, até só pra mim mesmo, aí o que é
que ia acontecer, como é que eu ia ser? E será que vou conseguir lembrar
disso tudo quando eu não estiver obetrolado, ou será que vou voltar a ficar
irritado com o Steve Edwards sem me deixar tomar consciência disso
direito ou do porquê?” Será que isso faz sentido? Às vezes dava medo,
porque eu via isso tudo com uma nitidez desagradável, se bem que eu não ia
ter usado uma palavra que nem niilismo durante aquele período sem tentar
fazer ela soar descolada ou como se fosse uma alusão a alguma coisa, o que
internamente, na clareza do redobro, eu não ia me ver tentado a fazer, já que
eu só fazia esse tipo de coisa quando não estava bem ligado no que estava
fazendo ou nos meus objetivos reais, mas sim em algum tipo esquisito de
piloto automático robô. O que, quando eu tomava Obetrol — ou uma vez
só, na DePaul, uma variante chamada Cylert, que só vinha em comprimidos
de 10 mg, e só esteve à mão uma vez numa situação bem especial que
nunca se repetiu —, eu tendia a perceber de novo que eu nem estava
sacando o que estava rolando, quase nunca. Que nem andar de trem em vez
de ir dirigindo você mesmo e ter que saber onde é que você está e ter que
tomar decisões sobre onde fazer uma curva. No trem, você pode
simplesmente desligar e deixar rolar, que era o que parecia que eu estava
fazendo o tempo todo. E eu tinha consciência disso, também, com esses
estimulantes, e consciência do fato de estar consciente. Só que as
consciências eram passageiras, e depois que passava o efeito do Obetrol —
o que normalmente incluía uma puta dor de cabeça — depois parecia que eu
mal lembrava de tudo que tinha ganhado consciência. A memória da
sensação de acordar de repente e ter consciência das coisas parecia vaga e
difusa, que nem assim uma coisa que você acha que está vendo bem com o
canto do olho, mas aí não consegue ver quando tenta olhar direto. Ou meio
que nem um fragmento de memória que você não sabe direito se era de
verdade ou fazia parte de um sonho. Bem como eu tinha previsto e tinha
temido quando estava redobrado, claro. Então não era só moleza, o que era
uma das razões da obetrolagem parecer uma coisa verdadeira e importante e
não uma palhaçada e um negócio gostoso que nem maconha. Tinha coisa ali
que era desagradavelmente vívida. Uma coisa assim não só de acordar
consciente de não gostar do colega de quarto e das camisas jeans de
operário dele e de ter que fingir que gostava dele e achava ele bacana pra
conseguir aquele grama de haxixe com o cara ou sei lá mais o quê, e não só
de não gostar da situação toda de dividir o quarto e até o ritualzinho niilista
do pé e do Hat, que a gente fingia que era bem mais descolado e mais
engraçado do que era — já que não era uma coisa que a gente tinha feito só
uma ou duas vezes, mas que a gente basicamente fazia o tempo todo, que
no fundo era só uma desculpa pra não estudar nem fazer a tarefa e ficar
sendo uns lesados enquanto os nossos pais pagavam a universidade, a
moradia estudantil, a comida — mas também de ter consciência, quando eu
olhava de verdade aquilo tudo, de que uma parte de mim tinha escolhido
dividir o quarto com o Steve Edwards porque uma parte de mim na verdade
gostava de meio que não gostar dele e de catalogar as coisas que eram
hipócritas nele e me deixavam meio com uma repulsa constrangida, e de
que devia ter umas razões psicológicas lá pra eu morar, comer, festar e jogar
conversa fora com uma pessoa de quem eu nem gostava e que eu nem
respeitava muito… o que provavelmente queria dizer que eu não me
respeitava tanto assim, também, e que era por isso que eu era tão
conformista. E o negócio é que, sentado ali entreouvindo o Steve dizer pra
menina no telefone que ele sempre achou que as mulheres de hoje tinham
que ser vistas como algo além de meros objetos sexuais se ainda houvesse
esperança pra raça humana, eu ficava articulando tudo isso sozinho, com
muita clareza, muito conscientemente, em vez de só ficar largado ali com
esse monte de sensações e de reações sobre aquele cara e sem chegar a ter
consciência mesmo disso tudo. Então aquilo no fundo era acordar e
perceber o quanto eu normalmente não tinha consciência das coisas e saber
que eu ia voltar a dormir daquele jeito quando passasse o efeito artificial
das bolinhas. Ou seja, não era só moleza. Mas dava uma sensação de vida, e
era provavelmente por isso que eu gostava. Parecia que eu era dono de
verdade de mim mesmo. Em vez de estar, sei lá, só me alugando. Mas essa
analogia aí parece muito vagabunda, que nem uma tiradinha vagabunda. É
ruim de explicar, e isso aqui já está provavelmente levando mais tempo do
que eu devia usar pra explicar. E também é óbvio que eu não estou tentando
passar alguma mensagem pró-dependência de drogas aqui. Mas era
importante. Hoje em dia eu gosto de pensar no Obetrol e nos outros
subtipos de bolinhas como mais assim meio que uma placa ou uma seta no
caminho, alguma coisa que apontava o que podia ser possível se eu pudesse
ter mais consciência de tudo e pudesse ser mais vivo assim no cotidiano.
Nesse sentido, acho que abusar dessas drogas foi uma experiência valiosa
pra mim, já que eu era tão totalmente moloide e largado naquela época que
eu precisava meio que de uma pista bem clara, bem direta, de que isso de
ser um adulto vivo, responsável e autônomo era bem mais complicado do
que eu imaginava.
Por outro lado, nem precisa dizer que o barato é a moderação. Não dava
pra você ficar o tempo todo tomando Obetrol e ali sentado redobrado e
consciente e ainda ter alguma esperança de cuidar direito da vida. Eu
lembro de não ter conseguido ler A queda do Camus a tempo, por exemplo,
e de ter que enrolar totalmente na prova de literatura da alienação — em
outras palavras, eu era uma fraude, pelo menos por tabela — mas não
estava me incomodando muito com aquilo tudo, que eu consiga me lembrar,
só meio que sentindo um alívio cínico e enojado quando o monitor do
professor escrevia alguma coisa tipo “Algumas ideias são interessantes!”
embaixo do B. O que significava uma resposta de merda que não
significava nada pra uma merda que não significava nada. Mas não dava pra
negar que era forte — aquela sensação de que tudo que era importante
estava bem ali e que eu podia de vez em quando acordar quase com um pé
no ar enquanto andava, e de repente ganhar essa consciência. É difícil de
explicar. A verdade é que eu acho que o Obetrol e isso de redobrar foi a
minha primeira ideia do tipo de ímpeto que eu acho que acabou me levando
pro Serviço e pros problemas e as prioridades especiais aqui do Centro
Regional de Análise. Tinha alguma coisa a ver com prestar atenção e com a
capacidade de escolher em que prestar atenção, e de ter consciência dessa
escolha, do fato de ser uma escolha. Eu não sou o cara mais inteligente do
mundo, mas até durante aquele período todo, patético e desorientado, acho
que bem no fundo eu sabia que a vida era mais e que eu era mais do que os
impulsos psicológicos normais de prazer e de vaidade que eu deixava me
conduzirem. Que eu tinha umas coisas que não eram merda e que não eram
criancice, mas que eram profundas, e não eram abstratas, mas que eram na
verdade bem mais reais que as minhas roupas ou a minha autoimagem, e
que brilhavam assim de um jeito quase sagrado — eu estou falando sério;
não estou querendo fazer isso tudo soar mais dramático do que foi — e que
essas partes mais reais, mais profundas de mim não tinham a ver com
impulsos nem com apetites, mas simplesmente com atenção, consciência,
era só eu conseguir ficar acordado sem as bolinhas.
Mas não dava. Conforme mencionado, normalmente depois eu nem
conseguia lembrar o que era que tinha parecido tão nítido e tão profundo
naquilo de que eu ganhei consciência lá naquela poltrona verde e barata do
inquilino anterior, que alguém tinha simplesmente deixado lá no quarto
quando foi embora do dormitório e que tinha alguma parte quebrada ou
empenada na estrutura por baixo das almofadas e meio que adernava de um
lado quando você tentava se reclinar, e aí você tinha que sentar nela bem
retinho e bem ereto, o que era uma coisa esquisita. O incidente todo do
redobro ficava coberto meio que de uma névoa mental na manhã seguinte, e
mais ainda se eu acordava tarde — o que era normal acontecer, já que pegar
no sono era basicamente um tipo de efeito das anfetaminas — e tinha meio
que sair correndinho pra aula sem nem perceber ninguém nem nada que
passava na minha frente. Em essência eu era um desses caras que têm
horror de atraso mas que vivem chegando atrasados. Se eu chegava atrasado
em alguma coisa normalmente ficava tenso e nervoso demais assim de cara
até pra poder seguir o que estava acontecendo. Sei que herdei do meu pai
esse medo de atraso. Sem contar que é bem verdade que às vezes essa
consciência despertada e a autoarticulação do redobro por causa do Obetrol
podiam passar do limite — “Agora eu estou consciente de que estou
consciente de que estou sentado reto desse jeito meio esquisito, agora eu
estou consciente de que sinto uma coceira no lado esquerdo do pescoço,
agora estou consciente de que estou deliberando se coço ou não coço,
agora estou consciente de prestar atenção naquela deliberação e da
sensação provocada pela ambivalência em relação à coceira e do que essas
sensações e a minha consciência delas fazem com a minha consciência da
intensidade da coceira”. O que significa que depois de um certo ponto o
elemento de escolha de atenção no redobro meio que se perdia e a
consciência meio que explodia em um salão de espelhos de sensações
conscientemente percebidas e de ideias e de consciências de consciências
de consciências disso tudo. Isso era atenção sem escolha, o que significa a
perda da capacidade de se concentrar e se centrar numa coisa só, e era outro
grande incentivo à moderação no uso do Obetrol, especialmente tarde da
noite — tenho que admitir que eu sei que uma ou duas vezes me perdi tão
feio nos salões ou nas camadas empilhadas de consciência da consciência
que fui ao banheiro bem ali na poltrona — isso foi na Lindenhurst College,
onde eram três moradores por unidade e tinha uma “sala social”
semimobiliada no meio da unidade, onde ficava o sofá — o que, mesmo
naquela época, parecia um nítido sinal da perda de prioridades básicas e do
fracasso em lidar com a realidade. Por algum motivo hoje eu às vezes me
visualizo tentando explicar pro meu pai como acabei tão totalmente
concentrado e consciente que fiquei ali sentado e mijei na calça, mas a
imagem se interrompe bem na hora que ele abre a boca pra responder, e eu
tenho 99% de certeza de que isso não é uma lembrança de verdade — como
é que ele podia saber alguma coisa de uma poltrona lá na Lindenhurst?
Que fique bem claro, é verdade que eu tenho saudade do meu pai e que
fiquei bem transtornado com aquilo tudo, e às vezes eu fico bem triste
quando penso que ele não está aqui pra ver a carreira que escolhi e as
mudanças em mim, enquanto pessoa, por conta disso, e pra ver algumas das
minhas avaliações de desempenho PP-47, e pra eu conversar com ele sobre
sistemas de custos e contabilidade forense de uma perspectiva
incrivelmente mais adulta.
E mesmo assim esses momentinhos de uma consciência mais profunda,
gerados ou não pelas drogas — porque dá pra discutir que relevância isso
tem no final das contas — provavelmente tiveram um efeito mais direto na
minha vida e na minha mudança de rumo e na minha entrada no Serviço em
1979 do que o acidente do meu pai, ou quem sabe até mais que a
experiência traumática que eu tive na aula de contabilidade avançada que
assisti por engano na minha segunda, que acabou sendo bem mais atenta e
bem-sucedida, passagem pela DePaul. Eu já mencionei esse curso. Pra
encurtar a história, o lance dessa experiência é que o campus da DePaul no
Lincoln Park tinha dois prédios novos bem parecidos, eles eram
literalmente quase imagens especulares um do outro, de propósito,
arquitetonicamente, e eram interligados tanto no térreo quanto — por um
gio elevado não muito diferente desse nosso aqui no CRA Meio-Oeste — no
terceiro andar, e os departamentos de ciências contábeis e políticas da
DePaul ficavam nos dois prédios diferentes desse conjuntinho idêntico, eu
não lembro o nome deles neste momento. O nome dos dois prédios. Era o
último horário de aula pras turmas de terça e quinta no semestre de outono
de 78, e a gente ia ter aula de revisão pra prova final de pensamento político
americano, que ia ser inteira discursiva, e no caminho pra essa aula de
revisão eu sei que estava tentando rever mentalmente as áreas que eu queria
garantir que pelo menos uma pessoa da turma fizesse alguma pergunta —
não tinha que ser eu — em termos de que grau de profundidade essas áreas
iam ter na final. Fora introdução à contabilidade, eu ainda estava fazendo
basicamente disciplinas de psicologia e ciência política — nesse caso
especialmente por causa das exigências pra você poder declarar que
diploma ia tirar, senão não dava pra se formar — mas agora que eu não
estava tentando escapar com qualquer merda de última hora, essas aulas
eram obviamente bem mais difíceis e mais pesadas. Lembro que quase toda
a versão DePaul de pensamento político americano tinha a ver com O
federalista, de Madison et al., que eu já tinha visto na Lindenhurst mas não
lembrava quase nada. Em essência, eu estava tão concentrado pensando na
revisão e na prova final que o que aconteceu foi que entrei pela porta errada
do prédio sem perceber, e acabei na sala certa do terceiro andar, mas no
prédio errado, e essa sala era uma imagem especular tão idêntica da sala
certa do prédio ao lado, do outro lado do gio, que nem notei o erro assim de
cara. E acabou que nessa sala estava rolando a última aula de revisão de
contabilidade avançada, uma disciplina famosa por ser difícil lá na DePaul
que era conhecida como o equivalente no departamento de ciências
contábeis do que a química orgânica era pros alunos de ciências — a
barreira final, a aula que derrubava os fracos, que precisava de vários pré-
requisitos e só era aberta pra veteranos prestes a se formar em contabilidade
e pós-graduandos, e que diziam que era ministrada por um dos poucos
professores jesuítas que ainda restavam na DePaul, o que significava um
cara com o conjunto oficial de roupas pretas e brancas e absolutamente
lhufas de senso de humor ou de desejo de ser amado ou de criar uma
“ligação” com os alunos. Na DePaul, os jesuítas eram notoriamente jogo
duro. O meu pai, aliás, foi criado católico, mas tinha nada ou quase nada a
ver com a igreja quando adulto. A família da minha mãe originalmente era
luterana. Como muita gente da minha geração, não tive uma formação
religosa. Mas esse dia na sala idêntica também acabou sendo um dos
acontecimentos mais inesperadamente poderosos, determinantes da minha
vida na época, e me causou uma impressão tão grande que até hoje me
lembro do que eu estava usando ali sentado — blusa listrada vermelha e
branca de orlon, calça branca de pintor e uma bota Timberland de uma cor
que o meu colega de quarto — que era um veterano sério de química,
àquela altura nada de Steve Edwardses e pés giratórios — chamava de
“amarelo bosta de cachorro”, com os cadarços desamarrados e arrastando
no chão, que era o jeito que todo mundo que eu conhecia ou que andava
comigo usava aquela bota naquele ano.
Por falar nisso, acho mesmo que consciência é uma coisa diferente de
pensamento. Eu sou igual a quase todo mundo, acho, nisto de que não
penso nas coisas mais importantes assim em grandes blocos intencionais de
ficar sentado direto numa cadeira e saber de antemão no que é que eu vou
pensar — assim, por exemplo: “Vou pensar na minha vida, no meu lugar
nela e no que é realmente importante para mim, para daí poder começar a
estabelecer objetivos concretos e determinados, e projetos para a minha
carreira de adulto” — e aí eu sento ali e fico pensando até chegar a uma
conclusão. Não funciona assim. No meu caso, tendo a pensar nas coisas
mais importantes de uns jeitos incidentais, acidentais, quase distraídos.
Fazendo sanduíche, tomando banho, sentado numa cadeira de ferro na praça
de alimentação do shopping de Lakehurst e esperando alguém que está
atrasado, andando no trem da CTA e olhando ao mesmo tempo a paisagem
que passa e o meu reflexo transparente sobreposto a ela na janela — e de
repente você se liga que está pensando umas coisas que acaba que eram
importantes. É quase o contrário de consciência, se você parar pra pensar.
Acho que essa experiência de pensamento acidental é uma coisa comum,
por mais que não seja universal, apesar de não ser uma coisa que dê pra
falar com os outros porque acaba sendo muito abstrato e difícil de explicar.
Enquanto num estirão intencional de pensamento sério de verdade, em que
você fica sentado com a intenção consciente de confrontar questões pesadas
que nem “Será que eu sou feliz?” ou “Pra que coisas, no final de contas, eu
dou importância de verdade, e em que coisas eu acredito?” ou — ainda
mais se alguma figura de autoridade da vida acabou de pegar no teu pé —
“Será que eu sou essencialmente uma pessoa do tipo que contribui, que
vale a pena, ou uma pessoa indiferente, perdida, niilista?”, aí você
normalmente acaba não respondendo as perguntas, mas meio que cobrindo
elas de porrada, atacando as coitadas por tantos ângulos e com as diferentes
objeções e complicações de cada ângulo que elas acabam ainda mais
abstratas e radicalmente sem sentido do que quando você começou. Assim
você não chega a nada, pelo menos foi o que me disseram. Pode ter certeza:
por tudo que se sabe, nem são Paulo, nem Martinho Lutero, nem os autores
de O federalista, nem o presidente Reagan, eles nunca mudaram a direção
da vida deles desse jeito — foi mais por acidente.
Quanto ao meu pai, sou obrigado a admitir que não sei como ele pensava
pesado sobre as coisas que levaram aos rumos que ele seguiu a vida inteira.
Não sei nem se ele tinha uma reflexão séria, consciente nesse caso. Como
um monte de homens da geração dele, ele pode muito bem ter sido um
desses caras que simplesmente foram seguindo no piloto automático. Essa
postura dele na vida era que existem coisas que precisam ser feitas e você
vai lá e simplesmente faz — assim, por exemplo, ir trabalhar todo dia. De
novo, pode ser que isso seja mais um elemento da diferença de gerações. Eu
não acho que o meu pai adorava o emprego dele na prefeitura, mas por
outro lado não sei bem se ele algum dia se perguntou coisas sérias que nem
“Será que eu gosto do meu trabalho? Será que é isso que eu quero passar a
vida fazendo? Isso está me completando tanto quanto alguns daqueles
sonhos que eu tive para mim quando era jovem e servia o Exército na
Coreia e lia poesia britânica na minha cama de campanha de noite?”. Ele
tinha família pra sustentar, o trabalho dele era aquele, ele levantava todo dia
e fazia o seu trabalho, e ponto final, o resto é só bobajada complacente. Isso
pode até ter sido a soma total de uma vida pra ele, no que se referia a pensar
sobre o assunto. Ele essencialmente disse “Tanto faz” pro que lhe coube na
vida, mas claro que de um jeito bem diferente do “Tanto faz” que os lesados
sem rumo da minha geração dizem.
Já a minha mãe mudou o rumo da vida dela de uma forma impressionante
— mas, de novo, não sei se foi resultado de alguma reflexão concentrada.
Pra dizer a verdade, duvido. Não é assim que essas coisas funcionam. A
verdade é que quase todas as escolhas da minha mãe tiveram motivos
emocionais. O que era outra dinâmica comum da geração dela. Acho que
ela gostava de achar que a coisa feminista da conscientização e a Joyce e
aquilo tudo dela com a Joyce e o divórcio foram resultado de reflexão,
assim, uma mudança consciente de filosofia de vida. Mas no fundo foi
emocional. Ela teve meio que um colapso nervoso em 1971, apesar de
ninguém nunca ter usado essa palavra. E de repente ela ia fugir de “colapso
nervoso” e acabar dizendo que foi uma súbita mudança consciente de
crenças e de rumos. E quem é que pode discutir com uma coisa dessas?
Quem dera eu tivesse entendido isso na época, porque eu tive lá os meus
jeitos de ser malvadinho e superior com a minha mãe por causa da coisa
toda da Joyce e do divórcio. Quase como se eu inconscientemente ficasse
do lado do meu pai e assumisse a responsabilidade de dizer tudo de
malvadinho e de superior que ele era autodisciplinado e composto demais
pra se permitir dizer. Até especular sobre isso tudo provavelmente não faz
sentido — como o meu pai dizia, as pessoas são como são, e a única coisa
que te cabe de verdade é fazer o melhor jogo possível com as cartas que a
vida te deu. Eu nunca soube com nenhum grau de certeza se ele pelo menos
sentia saudade dela ou estava triste. Quando penso nele hoje, percebo que
ele estava sozinho, que foi bem duro pra ele, divorciado e sozinho naquela
casa em Libertyville. Depois do divórcio, de certa forma ele deve ter se
sentido livre, o que é claro que tem o seu lado bom — ele podia ir e vir
quando quisesse, e quando pegava no meu pé por algum motivo não tinha
que ficar preocupado em escolher as palavras com cuidado ou em discutir
com alguém que ia me defender de qualquer coisa. Mas esse tipo de
liberdade também fica bem perto, no contínuo psicológico, da solidão. As
únicas pessoas com quem a gente acaba sendo “livre” de verdade, desse
jeito, são os desconhecidos, e nesse sentido o meu pai tinha razão sobre
aquilo do dinheiro e do capitalismo serem o equivalente da liberdade, na
medida em que vender ou comprar alguma coisa não te obriga a nada mais
do que está escrito no contrato — se bem que tem o contrato social, que é
onde aparece a obrigação de pagar a sua cota justa de impostos, e eu acho
que o meu pai teria concordado com a afirmação do sr. Glendenning de que
“A liberdade real é a liberdade de obedecer à lei”. Isso tudo provavelmente
nem faz muito sentido. Enfim, a esta altura é tudo só especulação abstrata,
porque eu nunca conversei de verdade com nenhum dos meus pais sobre
como eles se sentiam sobre a vida adulta deles. Não é o tipo de coisa que os
pais sentam pra discutir abertamente com os filhos, pelo menos naquela
época não era.
Enfim, acho que ia ser útil eu dar umas informações de contexto aqui. A
maneira mais simples de definir um imposto é dizer que o valor do imposto,
simbolizado por I, é igual ao produto da base tributável e da alíquota
tributária. Isso normalmente é simbolizado por I5B3R, de modo que se
pode obter R5I/B, que é a fórmula pra determinar se uma tarifa é
progressiva, regressiva ou proporcional. Isso é contabilidade tributária
superbásica. É tão familiar pra maioria do pessoal do IRS que a gente nem
tem que pensar nisso. Mas, enfim, a variável crítica é a relação entre I e B.
Se a relação entre I e B se mantiver a mesma apesar de B, a base tributável,
poder subir ou descer, então o imposto é proporcional. Isso também é
conhecido como imposto de alíquota fixa. Um imposto progressivo é
quando a razão I/B aumenta quando B aumenta e diminui quando B diminui
— que é essencialmente como o imposto de renda marginal de hoje em dia
funciona, quando você paga 0% nos primeiros 2300 dólares, 14% nos
próximos 1100 dólares, 16% nos próximos 1000, e assim por diante, até
70% de tudo que ultrapassar $108 $300, o que é tudo parte da atual política
tributária do Tesouro americano, em teoria, que quanto mais renda anual
você tem, maior a proporção da sua renda que a sua obrigação fiscal deve
representar — se bem que é claro que na prática nem sempre funciona
assim, por causa de todas as deduções e dos créditos legais que fazem parte
do código tributário moderno. Enfim, programas de taxações progressivas
podem ser representados por um simples gráfico de barras ascendentes, com
cada barra representando uma alíquota fiscal. Às vezes as pessoas também
chamam um imposto progressivo de imposto gradual, mas não é a palavra
usada pelo Serviço. Um imposto regressivo, por outro lado, é quando a
razão I/B aumenta na medida em que B diminui, o que significa que você
paga mais impostos sobre as menores quantias, o que a princípio não faz
muito sentido em termos de justiça e do contrato social. Só que esses
impostos regressivos podem frequentemente aparecer disfarçados — por
exemplo, os que se opõem às loterias estaduais e aos impostos sobre o
tabaco vivem dizendo que essas coisas na verdade equivalem a taxação
regressiva disfarçada. O Serviço não tem nenhuma opinião formada sobre o
assunto. Enfim, a tributação de renda é quase sempre progressiva, por causa
dos ideais democráticos do nosso país. Aqui, por outro lado, estão alguns
tipos de impostos que costumam ser proporcionais ou fixos: bens imóveis,
bens móveis, aduana, consumo e, principalmente, a tributação de vendas.
Como muita gente aqui lembra, em 1977, com alta da inflação, alta dos
déficits, e durante a minha segunda passagem pela DePaul, houve um
experimento fiscal em Illinois em que o imposto sobre vendas passou de
proporcional a progressivo. Foi provavelmente a minha primeira
oportunidade de ver como a implementação de uma política fiscal pode
afetar de verdade a vida das pessoas. Como já mencionei, os impostos sobre
vendas costumam ser proporcionais, e isso de um jeito quase universal.
Como eu hoje entendo a questão, a ideia por trás da tentativa de
implementar uma tributação progressiva era aumentar a receita do Estado
sem que isso pesasse pros pobres do Estado ou desencorajasse os
investidores, sem contar que ia ajudar a combater a inflação ao taxar o
consumo. A ideia era que quanto mais você comprasse, mais imposto você
pagava, o que ajudaria a desencorajar a demanda e aliviar a inflação. O
imposto progressivo de vendas foi fruto das ideias de alguém lá no alto da
hierarquia do Escritório do Tesouro Estadual em 77. Quem exatamente era
essa pessoa, ou se ele envergou o capacete marrom de alguma maneira
depois do desastre que se seguiu, eu não sei, mas tanto o tesoureiro estadual
quanto o governador de Illinois definitivamente perderam o emprego por
causa do fiasco. Fosse de quem fosse a culpa, no fim, o fato é que a coisa
foi um hiperescorregão fiscal que pra dizer a verdade podia ter sido evitado
facilmente se alguém no Escritório do Tesouro Estadual tivesse se dado ao
trabalho de consultar o Serviço sobre a adequação do esquema. Apesar da
existência tanto do Escritório do Comissário Regional Meio-Oeste quanto
de um Centro Regional de Análise dentro das fronteiras de Illinois, está
confirmado que isso nunca aconteceu. Apesar das agências estaduais da
Receita dependerem de declarações tributárias federais e dos arquivos
máster do sistema informatizado do Serviço pra poderem fazer cumprir a lei
fiscal estadual, tem uma tradição de autonomia e de desconfiança entre os
escritórios estaduais da Receita em relação às agências federais como o IRS,
o que às vezes detona graves lapsos de comunicação, e o desastre fiscal de
Illinois em 77, dentro do Serviço, é um caso clássico e tema de várias
piadas e histórias profissionais. Como quase todo mundo aqui no Posto 047
teria dito pra eles, uma regra fundamental da boa execução fiscal é lembrar
que o contribuinte típico sempre vai agir movido pelo seu próprio interesse
monetário. Isso é lei econômica básica. Na tributação, o resultado é que o
contribuinte sempre vai fazer tudo que a lei permite que ele faça pra
minimizar os impostos devidos. Isso é simplesmente natureza humana,
coisa que os políticos de Illinois ou não conseguiram entender ou deixaram
de ver que implicações tinha pras transações que envolviam impostos sobre
a venda. Pode ser um caso em que o Escritório do Tesouro Estadual
permitiu que a coisa toda chegasse a um tal grau de complexidade e de
abstração que eles acabaram deixando de ver o que estava ali bem na cara
— a base, B, de um imposto progressivo não pode ser alguma coisa que dê
pra subdividir com facilidade. Se der pra subdividir fácil, aí o contribuinte
típico, movido pelo seu próprio interesse econômico, vai fazer tudo que ele
puder fazer dentro da legalidade pra subdividir o B em dois ou mais Bs
menores e evitar a progressão efetiva. E isso, no fim de 77, foi exatamente o
que aconteceu. O resultado foi o caos no varejo. Digamos, por exemplo, no
supermercado, aí os clientes não compravam mais três sacos grandes de
mercadorias num total de $78 pra se submeter ao pagamento de 6%, 6,8% e
8,5% das partes daquela compra que ultrapassassem $5,00, $20,00 e
$42,01, respectivamente — eles agora tinham uma motivação pra estruturar
aquela compra de mercadorias em diversas pequenas compras separadas de
$4,99 ou menos pra tirar vantagem do imposto muito mais atraente de
3,75% pras compras abaixo de $5,00. A diferença entre 8% e 3,75% é mais
do que suficiente pra estabelecer um incentivo e fazer o interesse próprio
econômico dos cidadãos vir à tona. Aí, na loja, você de repente via todo
mundo comprando menos de $5,00 em mercadorias, correndo pro carro,
colocando a sacolinha no carro, correndo de volta pra loja e comprando
outra quantidade que desse menos de $5,00, correndo pro carro, e assim por
diante. As filas das caixas nos supermercados começaram a ir até o fundo
da loja. Nas lojas de departamentos era a mesma coisa, e eu sei que os
postos de gasolina ficaram até piores — poucos meses depois do choque
dos fornecedores da Opep e das brigas na fila da gasolina por causa do
racionamento, agora, naquele outono em Illinois, começaram a surgir brigas
também nos postos por causa dos motoristas forçados a esperar enquanto as
pessoas que estavam na frente deles na fila da bomba tentavam colocar
$4,99 em dinheiro, ir pagar, voltar correndo, zerar a bomba, colocar mais
$4,99 e assim por diante. Era totalmente o oposto de descolado, pra dizer o
mínimo. E o custo administrativo de calcular o imposto sobre quatro
margens diferentes de valores praticamente faliu os varejistas. Os que
tinham caixas automáticos e sistemas de contabilidade viram os sistemas
caírem com a nova demanda. Pelo que entendi, os altos custos
administrativos do novo ônus contábil acabaram sendo transferidos pros
preços e causando uma bolha inflacionária em Illinois que irritou ainda
mais os consumidores que já andavam putos porque o imposto progressivo
estava forçando economicamente todo mundo a enfrentar a fila da caixa
umas seis vezes — ou mais em muitos casos. Teve quebra-quebra,
especialmente na região sul do estado, que faz fronteira com o Kentucky e
tende a ser, digamos, não lá muito compreensiva ou tolerante com a
necessidade que o governo tem de recolher tributos, pra começo de
conversa. A verdade é que o norte, o centro e o sul de Illinois são
praticamente países diferentes em termos culturais. Mas o caos foi no
estado inteiro. O tesoureiro do Estado quase foi crucificado. Os bancos
viram uma corrida desesperada por notas de um e moedinhas. Do ponto de
vista dos custos administrativos, a pior parte foi quando comerciantes mais
empreendedores viram naquilo uma nova oportunidade e começaram a usar
“Subdivisível!” como um apelo de vendas. Inclusive, por exemplo,
vendedores de carros usados, dispostos a te vender um carro como um
amontoado de transaçõezinhas separadas pro para-choque dianteiro, pro
para-lama traseiro direito, pra mola do alternador, pra vela de ignição e
assim por diante, com a compra estruturada como se fosse umas mil
transações diferentes de $4,99. Era tecnicamente legal, claro, e outros
varejistas de mais porte logo seguiram a corrente — mas acho que foi
quando os corretores de imóveis também começaram com isso de
subdividir que as coisas foram pras cucuias de uma vez por todas. Bancos,
corretores hipoteca, vendedores de commodities e de ações, o
Departamento de Receita de Illinois, todo mundo viu seus sistemas de
processamento de dados abrir o bico — o imposto progressivo sobre vendas
gerou um verdadeiro tsunâmi de informação de vendas subdivididas que
sufocou a tecnologia da época. A coisa toda foi derrubada menos de quatro
meses depois de começar. Pra dizer a verdade, o Legislativo estadual voltou
a Springfield no meio do recesso de Natal pra uma convocação especial só
pra derrubar a lei, já que aquele período tinha sido o mais desastroso pro
varejo — a temporada das compras de Festas de 77 foi um pesadelo que
ainda é motivo de conversas melancólicas com gente de fora daqui quando
o pessoal se vê parado em filas de caixa aqui no estado, ainda hoje, anos
depois. Mais ou menos como um calor ou um clima úmido ao extremo faz
as pessoas começarem a trocar lembranças sobre outros verões terríveis que
elas viveram. Springfield, aliás, é a capital do estado, além de ser o lugar
com uma quantidade insana de lembranças do presidente Lincoln.
Enfim, também foi nessa época que o meu pai morreu de repente num
acidente de metrô da CTA em Chicago, durante a correria quase
indescritivelmente horrenda e caótica das compras de fim de ano em
dezembro de 77, e o acidente, pra falar a verdade, aconteceu enquanto ele
estava fazendo essas compras no fim de semana, o que provavelmente
ajudou a deixar a coisa toda mais trágica ainda. O acidente não foi na
famosa parte “elevada” da CTA — ele e eu estávamos na estação da
Washington Square, vindo de Libertyville na linha alimentadora pra pegar
uma linha de metrô que ia mais pro centro da cidade. Acho que a gente
estava era indo pra loja de presentes do Art Institute. Eu estava passando o
fim de semana na casa do meu pai, lembro bem, pelo menos em parte,
porque eu tinha que estudar pesado pra minha primeira rodada de provas de
final de semestre desde que me rematriculei na DePaul, onde eu estava
morando no dormitório do campus da Loop. Pensando nisso agora, parte do
motivo de eu voltar pra casa em Libertyville pra estudar pode também ter
sido pra dar uma oportunidade pro meu pai ver eu me aplicando e
estudando sério num fim de semana, apesar de eu não lembrar de ter
consciência dessa motivação naquela época. Além disso, pra quem não
sabe, o sistema de trens da Chicago Transit Authority é uma barafunda de
linhas elevadas, convencionais e alimentadoras de alta velocidade. Como a
gente tinha combinado antes, fui com ele pra cidade naquele sábado pra
ajudar a achar algum presente de Natal pra minha mãe e pra Joyce — tarefa
que imagino que todo ano ele devia achar difícil — e também, acho, pra
irmã dele, que mora com o marido e os filhos em Fair Oaks, OK.
Basicamente, o que aconteceu na estação da Washington Square, quando
a gente estava fazendo a baldeação pro centro, foi que a gente desceu a
escada de cimento do metrô e foi dar no meio da multidão e do calor da
plataforma — até em dezembro os túneis do metrô de Chicago tendem a
ficar quentes, apesar de nem passarem perto do insuportável que é nos
meses de verão, mas, por outro lado, o calor de inverno nas plataformas é
uma coisa que você enfrenta mesmo de sobretudo e cachecol, e ali ainda
estava superlotado por causa das compras de última hora de Natal, com a
loucura e o caos adicionais também daquela tributação do imposto
progressivo naquele ano. Enfim, lembro que a gente chegou no pé da
escada e foi pra multidão da plataforma bem quando o trem veio
encostando — ele era de aço inoxidável e de plástico marrom, com adesivos
de ramos de azevinho total ou parcialmente descolados nas janelas dos
vagões — e as portas automáticas abriram com um som pneumático, e o
trem ficou parado em ponto morto por um momento enquanto a grande
massa de consumidores impacientes e cheios de um monte de sacolas de
pequenas compras ia entrando e saindo. Em termos de multidãozidade,
também era o horário de pico das compras de sábado à tarde. O meu pai
tinha querido fazer as compras de manhã, antes das multidões do centro da
cidade saírem totalmente de controle, mas eu dormi demais, e ele ficou lá
me esperando, nada satisfeito com isso e sem disfarçar. A gente finalmente
saiu depois do almoço — o que significava, no meu caso, o café da manhã
— e até da linha alimentadora pra cidade a multidão estava considerável.
Nós chegamos na plataforma mais entupida ainda de gente num momento
em que quase todo usuário de metrô reconhece que é constrangedor e meio
tenso, com o trem parado com as portas abertas, mas sem ninguém saber
quanto tempo elas ainda vão ficar assim, enquanto você atravessa a
multidão na plataforma, tentando alcançar o trem antes das portas fecharem.
Você não chega a pensar em correr ou empurrar as pessoas pra elas saírem
do caminho, já que a sua parte mais racional sabe que aquilo está longe de
ser uma questão de vida ou morte, que outro trem vai chegar dali a pouco e
que o pior que pode te acontecer é você quase conseguir entrar, as portas
fecharem bem na hora que você chegou perto delas, que quase você entrou,
mas vai ter que ficar esperando uns minutos mais na plataforma quente e
entupida de gente. Só que outra parte sua — ou pelo menos minha, e eu
tenho quase certeza, olhando agora daqui, que do meu pai também — quase
entra em pânico. A ideia das portas fechando e do trem com aquela
multidão de gente que conseguiu entrar, todo mundo lá dentro se afastando
de você bem na hora que você chegou na porta provoca uma sensação
estranha e involuntária de angústia ou desespero — acho que não tem nem
nome pra isso, psicologicamente falando, apesar de que pode estar ligado a
uns medos primais, pré-históricos, de você de alguma maneira acabar
perdendo a chance de comer o que te cabe da caça da tribo ou de se ver
sozinho no capim alto da savana no cair da noite — e, apesar de ele e eu
com certeza nunca termos falado disso, hoje suspeito que essa sensação
profunda e involuntária de angústia de conseguir chegar no trem parado a
tempo era ruim acima de tudo pro meu pai, que era um sujeito
superorganizado e disciplinadíssimo, com programações bem detalhadas e
que estava sempre exatamente na hora pra tudo, e pra quem a angústia
primal de quase conseguir chegar perto de alguma coisa era particularmente
pesada — apesar de que por outro lado ele também era um cara com uma
dignidade e uma compostura pessoal altas pacas que normalmente não ia
nunca querer ser visto dando tranco nos outros ou correndo numa
plataforma pública com o sobretudo voando atrás dele, a mão segurando o
chapéu cinza-escuro na cabeça, as chaves e as moedinhas soltas no bolso
chacoalhando pra todo mundo ouvir, a não ser que ele sentisse algum tipo
muito forte e irracional de pressão pra chegar no trem, porque no fim são as
pessoas mais disciplinadas, organizadas e compostas que você descobre que
estão sob as pressões internas mais radicais, por causa da repressão ou do
superego, e que podem de repente meio que surtar de trocentos jeitos
diferentes e, com pressão suficiente, agir de umas maneiras que assim de
cara podiam parecer totalmente nada a ver com o que você achava delas. Eu
não tinha como ver os olhos ou a expressão do rosto dele; eu estava atrás
dele na plataforma, primeiro porque ele costumava andar mais rápido que
eu — quando eu era criança, o termo que ele usava pra isso era “se arrastar”
— apesar de que, naquele dia, também foi porque a gente estava no meio de
mais uma batalhazinha psicológica infantil sobre eu ter dormido demais e
ter feito, pelo ponto de vista dele, ele “se atrasar”, por isso tinha alguma
coisa marcadamente impaciente no passo rápido e na pressa dele ali na
estação da CTA, ao que eu reagia de propósito não acelerando muito meu
passo normal nem fazendo muita força pra ficar junto dele, ficando atrás só
o suficiente pra ele se irritar, mas não o bastante pra fazer ele se virar e
pegar no meu pé por causa daquilo, além de eu adotar uma atitude meio
avoadona, apática — mais ou menos como uma criança sem noção, na
verdade, apesar, claro, de que eu nunca teria assumido isso na época. Em
outras palavras, a situação básica era ele puto e eu emburrado, mas nenhum
de nós dois consciente disso, nem de como era normal, pra nós, esse tipo de
lutazinha psicológica — olhando agora daqui, me parece que a gente fazia
esse tipo de coisa um com o outro o tempo todo, e provavelmente só por um
hábito inconsciente. Meio que uma dinâmica típica entre pais e filhos. Vai
ver era até parte da motivação inconsciente por trás da minha falta de rumo
generalizada e da minha preguiça monstro em todas as várias universidades
que ele tinha que acordar cedinho todo dia pra ir trabalhar pra pagar. Claro
que nada disso rolava num nível consciente pra mim naquela época, e nem
de longe era reconhecido ou discutido por qualquer um de nós dois. Num
certo sentido daria pra dizer que o meu pai morreu antes que a gente
pudesse se dar conta de até que ponto a gente estava envolvido nesses
rituaizinhos infantis de conflito, ou de quanto o casamento deles tinha sido
afetado pelo fato de a minha mãe viver sendo colocada no papel de
mediadora entre nós, com todo mundo ali representando papéis típicos de
que ninguém tinha plena consciência, como umas máquinas que estivessem
só fazendo o que tinham sido programadas pra fazer.
Eu lembro que, naquela pressa de passar pelas pessoas na plataforma, vi
ele se virar de lado pra abrir caminho com o ombro entre duas mulheres
hispânicas gordas e lentas que estavam indo na direção das portas abertas
do trem com umas sacolinhas de compras com alça de barbante, e uma
delas tomando uma joelhada da perna do meu pai e balançando pra frente e
pra trás. Não sei se essas mulheres estavam juntas mesmo ou só se viram
forçadas a andar assim tão do ladinho uma da outra pelo tamanho que
tinham e pela pressão das pessoas em volta. Elas não estavam entre as
pessoas entrevistadas depois do acidente, o que significa que já deviam
estar no trem quando tudo aconteceu. A essa altura eu só estava coisa de
dois metros, dois metros e meio atrás dele e claramente me apressando pra
chegar perto, já que o trem pro centro da cidade estava bem ali parado, e a
ideia do meu pai conseguir por pouco entrar no trem e eu ficar pra trás e
levar com as portas fechadas na cara, e de ver a expressão no rosto dele
emoldurada pelos adesivos de azevinho enquanto a gente se olhava pelas
partes envidraçadas das portas e ele ia se afastando no trem — acho que
qualquer um consegue imaginar como ele ia ficar puto e enojado, além de
cheio de razão e triunfante na nossa lutazinha psicológica a respeito de
pressa e “atrasos”, e aí eu senti a minha ansiedade crescendo diante da ideia
de ele conseguir entrar no trem e eu perder o trem por pouco, então àquela
altura eu estava tentando diminuir a distância entre nós. Até hoje não sei se
o meu pai teve consciência naquela hora de que eu estava quase grudado
atrás dele ou de que eu estava praticamente trombando com as pessoas no
caminho, e empurrando, de tão apressado pra chegar nele, porque, até onde
sei, ele não olhou pra trás por cima do ombro nem me fez nenhum sinal
enquanto ia indo pras portas do trem. No litígio todo que aconteceu depois,
nenhum dos interrogados e nenhum dos advogados deles contestaram uma
só vez o fato de que os trens da CTA a princípio só podem andar se todas as
portas estiverem completamente fechadas. E ninguém também tentou
contestar o meu relato sobre a ordem exata de tudo o que aconteceu, já que
naquele momento eu estava coisa de meio metro atrás dele, e testemunhei
tudo aquilo com uma clareza assustadora, como todo mundo reconheceu.
As duas metades da porta do vagão tinham começado a fechar com aquele
barulhinho pneumático quando o meu pai chegou e meteu um braço entre as
metades pra impedir que elas fechassem e assim ele poder se espremer lá
pra dentro, e a porta fechou no braço dele — com força excessiva,
evidentemente, tanto pra deixar o resto do meu pai se espremendo pela
abertura da porta quanto pra poder forçar de novo a abertura da porta pra
deixar ele tirar o braço, o que no final parece que foi causado por um
defeito no mecanismo que controlava a força do fechamento das portas — e
aí o trem do metrô já tinha começado a andar, o que foi outro problema
inexplicável — a princípio tem uns disjuntores especiais entre os sensores
das portas e o console do condutor do trem que soltam o acelerador se a
porta de um vagão estiver aberta (como dá pra imaginar, nós todos
aprendemos um monte sobre o projeto e as especificações de segurança dos
trens da CTA durante o processo do acidente) — e o meu pai estava sendo
forçado a trotar com velocidade cada vez maior ali ao lado, ao lado do trem,
tirando a mão que segurava o chapéu na cabeça e passando a socar as portas
enquanto dois ou possivelmente três caras dentro do vagão do metrô
ficavam na frestinha da porta tentando puxar ou forçar a abertura um pouco
mais pra pelo menos o meu pai poder tirar o braço dali. O chapéu do meu
pai, que ele adorava e que tinha um molde especial pra ficar guardado em
casa, saiu voando e se perdeu na densa multidão da plataforma, onde surgiu
um vazio, um rasgo visível que foi se alargando — ou seja, surgiu na
multidão mais lá na frente da plataforma, coisa que eu via lá de onde estava,
preso na multidão na beirada da plataforma num ponto que ia ficando cada
vez mais pra trás do vazio ou da fissura que se ampliava na multidão da
plataforma enquanto o meu pai era forçado a correr cada vez mais ao lado
do trem que acelerava, e as pessoas iam saindo ou pulando dali pra não
serem derrubadas nos trilhos. Como muitas dessas pessoas também estavam
carregando vários pacotinhos subdivididos e sacolas compradas
individualmente, muitos desses itens voaram pelo ar, rodopiando ou
arremessando seu conteúdo de várias maneiras sobre o vazio que se abria
enquanto os consumidores abandonavam suas compras na tentativa de
liberar o caminho do meu pai, de modo que parte da aparência daquele
vazio era a ilusão de que ele de alguma maneira estava cuspindo ou fazendo
chover bens de consumo. Além disso, as questões causais ligadas à
responsabilidade pelo incidente se revelaram incrivelmente complexas. As
especificações que o fabricante do sistema pneumático das portas forneceu
não explicavam de maneira adequada como as portas podiam fechar com
tanta força a ponto de um homem adulto saudável não conseguir tirar o
braço, o que significava que o argumento do fabricante de que o meu pai —
talvez por pânico ou por causa de algum ferimento no braço — não agiu de
maneira a desentalar o braço era difícil de refutar. Os passageiros homens
do metrô que pareceram estar fazendo tanta força pra abrir a porta por
dentro acabaram que sumiram trilho abaixo com o trem que partiu e não
foram identificados, isso porque em parte os investigadores policiais e de
trânsito que chegaram depois não se aplicaram muito decididamente a essa
identificação, talvez por estar claro, mesmo no local, que o incidente era
uma questão cível e não criminal. O primeiro advogado da minha mãe de
fato publicou alguns anúncios pessoais no Tribune e no Sunday Times
pedindo que esses dois ou três passageiros se apresentassem e prestassem
depoimento pra auxiliar no processo, mas por motivos de custo e de
viabilidade esses anúncios acabaram sendo bem pequenos e ficaram
enterrados na seção de Classificados bem no fim do jornal, e foram
veiculados pelo que a minha mãe depois disse que foi um período
irracionalmente curto e não agressivo durante o qual muitos dos habitantes
da região de Chicago saíram da cidade em férias, de qualquer maneira, de
modo que isso acabou virando ainda mais um elemento complexo e
enrolado da segunda fase do processo.
Na estação da Washington Square, a “cena do acidente” em termos
oficiais — o que, num caso fatal, é legalmente considerado como “[o] local
em que sobrevieram óbito ou ferimentos que levaram a óbito” —, foi
registrada a 59 metros da plataforma do metrô, dentro do túnel Sul
propriamente dito, um ponto em que se determinou que o trem da CTA
“Na sociedade comunista vai ser possível que eu faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de
manhã, pescar à tarde, cuidar do gado à noite, praticar a crítica depois do jantar, como eu quiser”
Para decidir sobre solicitações concernentes à classificação de uma organização como sociedade
limitada em que uma empresa é o único sócio geral, ver Proc. Rec. 72-13, 1972-1 CB 735. Ver
também Proc. Rec. 74-17, 1974-1 CB 438, e Rec. Proc. 75-16, 1975-1 CB 676. O Procedimento da
Receita 74-17 anuncia certas regras operacionais do Serviço relacionadas à emissão de cartas de
decisão avançada concernentes à classificação de organizações formadas como sociedades
limitadas. O Procedimento da Receita 75-16 estabelece uma lista de pontos que destaca
informações obrigatórias frequentemente omitidas em pedidos por decisões relacionadas à
classificação de organizações para fins de tributação federal.
(que é claro que ainda não tínhamos visto ali da Self-Storage Parkway; a
localização da entrada era deduzida com base na aparente desejabilidade
dos estacionamentos sitos atrás [do nosso ponto de vista] do prédio, dado o
número de carros que seguia naquela direção, fato este claramente ligado a
certa forma tangível de incentivo. O funcionário ao meu lado agora parecia,
perifericamente, ter sido içado mecanicamente de um curso d’água, o que
tornava minha pretensa incapacidade de perceber sua incrível sudorese algo
ainda mais medonho e falso). Outro recurso seria, claro, alargar a estrada de
acesso e transformá-la em uma via de mão dupla. É de se reconhecer que
isso poderia expor o CRA a certa inconveniência e transtorno adicionais de
curto prazo de maneira não muito diferente do que decorria da ampliação da
Self-Storage Parkway, embora fosse difícil imaginar que o alargamento da
estrada de acesso não pudesse terminar bem antes, já que não estaria sujeito
aos atrasos e aos conflitos de interesses do processo democrático. O terceiro
melhoramento poderia ser sacrificar, para o bem e a conveniência maiores
de todos à exceção talvez do empreiteiro de paisagismo do CRA, a vicejante
área da parte vazia do gramado da frente (i.e., o que revelou ser a parte dos
fundos) do terreno, e colocar ali não apenas uma calçada de facto, mas
quiçá também um acesso transversal que permitisse que veículos no trecho
da SAÍDA da estrada retornassem para o trecho de ENTRADA sem ter que fazer
assemafóricas conversões tanto pra entrar quanto pra sair de uma estrada
congestionada. Isso, claro, sem nem falar da possibilidade de alguém
simplesmente meter a porra de um semáforo em cada um dos
entroncamentos, sendo quase impossível imaginar que o IRS não tivesse
força política junto às autoridades municipais e estaduais pra poder exigir
uma coisa dessa quando lhe desse na veneta.32 Isso sem nem mencionar o
quanto era esquisito, pura e simplesmente, fazerem com que (conforme veio
à tona) fossem os gigantescos fundos do CRA que ficassem de frente pra
principal artéria orbital de Peoria. Parecia, durante a lenta aproximação,
algo tanto pusilânime quanto arrogante, como sacerdotes pré-modernos que
ficassem de costas pros fiéis durante a missa católica. Tudo, da logística ao
civismo mais elementar, pareceria determinar que uma importante autarquia
governamental devesse encarar o público a que serve. (Lembre que eu ainda
não tinha visto a fachada estilizada do CRA, que era idêntica à dos outros
seis CRAs da nação e tinha sido instalada depois que um erro tipográfico não
percebido no vitaminado orçamento de construção e tecnologia depois que
as reformas instuídas pela Comissão King tiveram o direito de virar lei, erro
aquele que determinava que as fachadas dos Centros Regionais de Serviços
e de Análise “reproduzissem formalmente”, em vez de “produzissem
formalmente” o que se descrevia como “as condições de realização dos
serviços específicos que os centros oferecem”.33)
Quanto à nossa chegada em pessoa à entrada principal do centro naquele
primeiro dia, tudo o que eu posso dizer à guisa de resumo é que há uma
indescritível empolgação em você ver seu nome impresso numa placa que
alguém levanta no meio de um ponto de desembarque lotado. Suponho que
parte dessa empolgação se deva ao fato de você se sentir escolhido e — pra
usar o termo burocrático — validado. A placa especial com o meu nome
levantada por uma mulher atraente e com cara de figura oficial com um
blazer azul brilhante foi também, obviamente, depois de todas as
ignomínias e estorvos rebaixantes, e do subsequente atraso, uma surpresa,
ainda que não uma surpresa tão grande que pudesse obrigatoriamente fazer
supor que alguém tivesse o dever de perceber prova imediata de algum erro,
ou alguma confusão — havia, afinal, a supracitada questão de fatores
nepotísticos e da carta que eu trazia na valise.
Foi também então que se revelou que os aparentes fundos do CRA eram na
verdade sua frente, e que as duas partes ortogonais do centro não eram
contíguas, e que a fachada do prédio principal era estilizada da maneira
estranha e algo intimidadora que você até aceitaria que de repente fosse
prudente não deixar de cara pra estrada aberta logo ao sul, como uma
assombração. Mesmo sem a lotação e o caos, a imensa área da entrada
principal era complexa e desorientadora. Havia bandeiras, placas
codificadas, flechas direcionais e uma espécie de pátio amplo de concreto
com o que um dia parecia ter sido uma fonte, mas que não jorrava água.34 A
sombra quadrada do prédio principal se estendia por quase todo o pátio e
até os dois estacionamentos cobiçadíssimos que ficavam logo à sua frente,
nenhum deles tão grande assim. E havia a elaborada e obviamente
dispendiosa fachada do CRA, que se estendia desde logo acima da entrada
principal até o que parecia ser o quinto andar; era uma espécie de
reprodução, feita com pastilhas ou mosaico, de uma Declaração 1040 do
IRS, em branco, para o ano de 1978, as duas páginas, com todos os detalhes,
O “Irrelevante” Chris Fogle vira uma página. Howard Cardwell vira uma
página. Ken Wax vira uma página. Matt Redgate vira uma página. Bruce
“Brasa, mora” Channing apende um formulário a um processo. Ann
Williams vira uma página. Anand Singh vira por engano duas páginas de
uma vez e vira uma de volta, o que faz um som um pouco diferente. David
Cusk vira uma página. Sandra Pounder vira uma página. Robert Atkins vira
duas páginas diferentes de dois arquivos diferentes ao mesmo tempo. Ken
Wax vira uma página. Lane Dean Jr. vira uma página. Olive Borden vira
uma página. Chris Acquistipace vira uma página. David Cusk vira uma
página. Rosellen Brown vira uma página. Matt Redgate vira uma página. R.
Jarvis Brown vira uma página. Ann Williams funga de leve e vira uma
página. Meredith Rand faz alguma coisa com uma cutícula. O “Irrelevante”
Chris Fogle vira uma página. Ken Wax vira uma página. Howard Cardwell
vira uma página. Kenneth “Meio Que Assim” Hindle destaca um
Memorando 402--C(1) de uma ficha. Bob “Segunda junta” Mckenzie
levanta brevemente os olhos enquanto vira uma página. David Cusk vira
uma página. Um bocejo desce uma das colunas do Tento por influência
inconsciente. Ryne Hobratschk vira uma página. Latrice Theakston vira
uma página. A Sala 2 do grupo moleza em silêncio e sob uma luz forte,
meio campo de futebol americano de comprimento. Howard Cardwell muda
um pouco de posição na cadeira e vira um página. Lane Dean Jr. passa o
dedo da aliança pelo contorno da mandíbula. Ed Shackleford vira uma
página. Elpidia Carter vira uma página. Ken Wax anexa um Memorando 20
a um processo. Anand Singh vira uma página. Jay Landauer e Ann
Williams viram uma página quase precisamente em sincronia, embora
estejam em colunas diferentes e não possam ver um ao outro. Boris Kratz
balança com um movimento levemente chassídico enquanto cruza os dados
de uma página com uma coluna de cifras. Ken Wax vira uma página.
Harriet Candelaria vira uma página. Matt Redgate vira uma página.
Temperatura ambiente no cômodo em 27 graus. Sandra Pounder faz uma
minúscula correção numa ficha para que a página que está olhando fique
num ângulo ligeiramente diferente em relação a ela. O “Irrelevante” Chris
Fogle vira uma página. David Cusk vira uma página. O hemisfério dos dois
andares de nichos de cada mesa. Bruce “Brasa, mora” Channing vira uma
página. Ken Wax vira uma página. Seis fraldinhas por Tento, quatro Tentos
por Equipe, seis Equipes por Grupo. Latrice Theakston vira uma página.
Olive Borden vira uma página. Fora Administração e Apoio. Bob
McKenzie vira uma página. Anand Singh vira uma página. Chris “O
maestro” Acquistipace vira uma página. David Cusk vira uma página.
Harriet Candelaria vira uma página. Boris Kratz vira uma página. Robert
Atkins vira duas páginas diferentes. Anand Singh vira uma página. R. Jarvis
Brown descruza as pernas e vira uma página. Latrice Theakston vira uma
página. O lento ranger do carrinho do menino de carga no fundo da sala.
Ken Wax coloca uma ficha no topo da pilha da caixa “Para o Carrinho” à
sua direita, acima. Jay Landauer vira uma página. Ryne Hobratschk vira
uma página e em seguida dobra uma folha impressa no computador que está
alinhada ao lado do processo original de que ele acaba de virar uma página.
Ken Wax vira uma página. Bob McKenzie vira uma página. Ellis Ross vira
uma página. Joe “Fidaputa” Biron-Maint vira uma página. Ed Shackleford
abre uma gaveta e para um minutinho pra escolher o clipe de papel perfeito.
Olive Borden vira uma página. Sandra Pounder vira uma página. Matt
Redgate vira uma página e aí quase imediatamente vira outra. Latrice
Theakston vira uma página. Paul Howe vira uma página e aí cheira de
maneira circunspecta a meiazinha de borracha que tem na ponta do
mindinho. Olive Borden vira uma página. Roselle Brown vira uma página.
Ken Wax vira uma página. Demônios na verdade são anjos. Elpidia Carter e
Harriet Candelaria estendem a mão para suas caixas “Do Carrinho”
exatamente ao mesmo tempo. R. Jarvis Brown vira uma página. Ryne
Hobratschk vira uma página. Ken “Meio Que Assim” Hindle verifica um
código de encaminhamento. Alguns com a mão no queixo. Robert Atkins
vira uma página ainda enquanto analisa algo naquela mesma página. Ann
Williams vira uma página. Ed Shackleford procura um documento
comprobatório num dos processos. Joe Biron-Maint vira uma página. Ken
Wax vira uma página. David Cusk vira uma página. Lane Dean Jr.
arredonda os lábios e respira fundo, para dentro e para fora, assim, e se
debruça sobre um novo processo. Ken Wax vira uma página. Anand Singh
fecha e abre sua mão dominante diversas vezes enquanto analisa um
músculo do braço. Sandra Pounder se endireita um pouco e balança a
cabeça num arco de alongamento de pescoço e se inclina para a frente para
analisar uma página. Howard Cardwell vira uma página. Quase todos
sentam bem retos mas se inclinam da cintura para a frente, o que reduz a
fadiga no pescoço. Boris Kratz vira uma página. Olive Borden ergue a
tampinha articulada de sua caixa de 402-C, que está vazia. Ellis Ross
começa a virar uma página e então se detém para reanalisar alguma coisa
mais no alto da página. Bob McKenzie puxa catarro sem levantar os olhos.
Bruce “Brasa, mora” Channing cutuca o lábio inferior com o clipe de bolso
de uma caneta. Ann Williams funga e vira uma página. Matt Redgate vira
uma página. Paul Howe abre uma gaveta, olha lá dentro e fecha a gaveta
sem tirar nada dali. Howard Cardwell vira uma página. O revestimento de
duas paredes pintado de rosa Baker-Miller. R. Jarvis Brown vira uma
página. Um Tento por fileira, quatro fileiras por coluna, seis colunas.
Elpidia Carter vira uma página. Os lábios de Robert Atkins se movem sem
som. Bruce “Brasa, mora” Channing vira uma página. Latrice Theakston
vira uma página com uma longa unha roxa. Ken Wax vira uma página.
Chris Fogle vira uma página. Rosellen Brown vira uma página. Chris
Acquistipace assina um memorando 20. Harriet Candelaria vira uma
página. Anand Singh vira uma página. Ed Shackleford vira uma página.
Dois relógios, dois fantasmas, um acre quadrado de espelho oculto. Ken
Wax vira uma página. Jay Landauer passa distraído a mão no rosto. Toda
história de amor é uma história de fantasmas. Ryne Hobratschk vira uma
página. Matt Redgate vira uma página. Olive Borden fica de pé e levanta a
mão com três dedos estendidos para o menino de carga. David Cusk vira
uma página. Elpidia Carter vira uma página. Temperatura/umidade exterior
35o/74%. Howard Cardwell vira uma página. Bob McKenzie ainda não
cuspiu. Lane Dean Jr. vira uma página. Chris Acquistipace vira uma página.
Ryne Hobratschk vira uma página. O carrinho vem pela direita da sala do
grupo com sua rodinha rangente. Dois outros na fileira do terceiro Chalk
também ficam de pé. Harriet Candelaria vira uma página. R. Jarvis Brown
vira uma página. Paul Howe vira uma página. Ken Wax vira uma página.
Joe Biron-Maint vira uma página. Ann Williams vira uma página.
§ 26
são, com exceção das seções do código a não ser onde seja diretamente
relevante, seções essas que vocês vão encontrar referenciadas uma a uma
nas especificações 412 do M1, (1) Excesso de depreciação acelerada em
propriedades da seção 1250 sobre depreciação linear. (2) Em consequência
do TRA 69, excesso de amortização quinquenal de certos itens associados ao
controle da poluição, a instalações de puericultura, à segurança das minas e
energia e a sítios de interesse histórico nacional sobre depreciação linear.
(3) Excesso de depleção percentual sobre a base ajustada de uma
propriedade no final do ano-base. (4) Elementos de barganha em opções
financeiras qualificadas — TRA 76. (5) Excesso de IDC sobre a renda fóssil
conforme mencionado acima.” (David Wallace não tinha tempo de
consultar suas anotações mais acima. Estava tentando circular palavras e
expressões que não conhecia, imaginando que podia procurar uma
biblioteca. Essa lista não estava no seu manual — eles não receberam
manuais. Parecia que as pessoas esperavam que eles já soubessem aquilo
tudo. Para poder lidar com suas sensações de confusão e de medo, Wallace
tinha optado por se transformar basicamente numa máquina de transcrever.)
“(6) Sendo o excesso de depreciação acelerada sobre a depreciação linear
em propriedades 1245 arrendadas a terceiros.”
O homem se mantinha totalmente imóvel enquanto falava. David Wallace
achava que nunca tinha visto alguém não se mexer nem de maneira mínima
e inconsciente quando falava em público. A imobilidade corpórea teria sido
mais intrigante se David Wallace estivesse se sentindo menos em pânico e
menos assustado, e, além de se automatizar via transcrição, David Wallace
estava realizando a principal atividade compensatória que realizava quando
estava numa sala em que todos pareciam compreender exatamente do que
se estava falando, menos ele — o que tinha acontecido em algumas
situações sociais no ensino médio, em que David Wallace não participava
de nenhuma panelinha, mas transitava pelas beiradas de vários grupos
diferentes, de atletas de segundo escalão a estudantes de centro acadêmico e
nerds de áudio e vídeo, e com frequência tinha acesso a fofocas ou
referências a situações coletivas de que não tinha conhecimento direto, mas
precisava ficar ali com um sorriso amarelo no rosto e balançando a cabeça
como se soubesse exatamente a que eles estavam se referindo. Isso sem
falar de uma situação em que num ímpeto de absurda pretensão
semiembriagada de calouro ele aceitou a tarefa gigantesca de assistir como
ouvinte uma disciplina de literatura russa existencialista e absurdista e
escrever os ensaios para o rico e atormentado filho de um juiz da Suprema
Corte Estadual de Rhode Island que de fato estava matriculado naquela
disciplina e descobriu que não apenas todas as leituras e o contexto
bibliográfico, mas também as próprias aulas, eram na verdade em russo,
língua em que David Wallace não sabia falar nem uma sílaba resmungada
que fosse, tendo então que ficar ali sentado com um enorme sorriso amarelo
e rijo no rosto, transcrevendo as versões fonéticas de tudo quanto era
barulho descabido e incrivelmente acelerado que as pessoas naquela sala
faziam todas as terças e todas as quintas-feiras das 9h às 10h30 por três
semanas antes de conseguir pensar numa desculpa plausível e encerrar o
acordo estabelecido. O que deixava o cliente — que ainda estava
matriculado — com seu próprio tipo bem especial de dilema existencial. A
questão é que era isso que David Wallace fazia nessas situações, adotar e
sustentar na base mesmo da força bruta um enorme sorriso amarelo que ele
imaginava que comunicasse tranquilidade e uma familiaridade confiante
com o que quer que estivesse rolando, mas que no fundo, sem que ele
soubesse, em sua rígida distensão e em sua falta de envolvimento ocular,
além da situação dermatológica toda, na verdade lembrava o ricto agônico
de alguém cuja pele estivesse sendo lentamente removida do rosto, o que
para a sorte dele todos os Analistas Imersivos GS-13 transferidos e
especialistas CTO em manobras fiscais eram sérios e aplicados e
comprometidos demais com os protocolos antimanobras — pois era isso
que a equipe em que David Wallace acabou identificado e equivocadamente
lotado por culpa não sua (embora essa seção de orientação pudesse ter sido
o momento de erguer a mãozinha) se revelou, análise e avaliação de
manobras fiscais de pessoas físicas e jurídicas limitadas nos ramos
imobiliário, agrícola e de leasing facilitado, o que era um componente
pequeno mas sério da Iniciativa Spackman — para perceberem de uma
forma que não fosse apenas perifericamente incomodada, além da
juventude, do terno de veludo cotelê (que no IRS equivalia a uma sunga com
sapato comprido de palhaço) e da falta de chapéu de David Wallace.
A/NA, projetado num slide todo seu, foi explicado como sendo a
motivação integral e a razão de ser das Análises de Rotina.
“Vocês são policiais?”
O assistente de RH ergueu as mãos que sacudiu no ar gritando “Nããão”.
Era a mesma imitaçãozinha de evangelista que Sylvanshine tinha visto no
CRA Filadélfia quando tinha vinte e dois anos. A coleção de moedas do
assistente de RH ficava num cofre portátil no fundo do armário da sua mãe
ou avó, a julgar pelo estilo dos vestidos e casacos no suporte dos cabides
que estava sobre ele.
“Vocês são juízes da virtude cívica?”
“Nããão.”
“Vocês são burocratas sádicos que escolhem arbitrariamente a vida de
quais contribuintes vai virar um inferno quando eles tiverem que passar pela
angústia e pela inconvêniencia da malha fina, tentando espremer cada
gotinha de sangue do pescoço onde vocês já plantaram a sola da bota?”
“Não.”
“Em essência, no IRS de hoje em dia vocês são homens de negócios.”
“E mulheres de negócios. Pessoas de negócios. Ou na verdade pessoas
que trabalham para alguma coisa que deveriam considerar um negócio.”
“Quais declarações renderão auditorias lucrativas?”
“Como determinar isso?”
“Diferentes Grupos de Análise fazem isso de formas diferentes. A
orientação do seu grupo vai passar os detalhes para vocês.”
Assistente: “Ou a sua Equipe, já que alguns gerentes de Grupo aqui têm
equipes diferentes que trabalham com critérios diferentes”.
“Quase dá para pensar nisso como um filtro — o que passa, o que leva
Memo 20 e vai transferido para o Distrital.”
“Ou marcas, bandeirinhas — pelo menos de que uma dada declaração”
merece uma análise exaustiva.”
“Vocês não vão ficar passando um microscópio em tudo que é
declaração.”
“Vocês precisam trabalhar não só de um jeito rápido, mas também de um
jeito inteligente.”
“E a rapidez significa que vocês vão saber de cara — essa auditoria aqui
não vai gerar nada.”
“O critério é esse — a auditoria em questão vai render um acréscimo
máximo quando subtraídos os custos da auditoria?”
“Então eis uma coisa a se descartar — a ideia de que vocês são guardiães
da virtude cívica.”
“Há mais uma noção equivocada que vocês devem desconsiderar.
Alguém faz alguma ideia de qual seria?”
David Cusk teve o impulso terrível, totalmente pavoroso, de erguer a
mão. Parte de sua estratégia de sobreviver à socialização cerrada do
intervalo até conseguir chegar a um banheiro tinha sido pensar
concentradamente na última imagem projetada na tela da sala, que a
Responsável pelo Treinamento nunca tinha conseguido fazer entrar
exatamente em foco, mas que era uma visão em tela dupla de duas
escrivaninhas ou mesas, uma coberta de papéis e formulários, mais uns
itens cujas cores fortes indicavam que poderiam ser embalagens de comida,
e a outra limpa e organizada com os itens em pilhas e cestinhos etiquetados.
Cusk tinha quase certeza de que a RT queria frisar a necessidade de ordem e
organização e abolir a ideia de que uma mesa zoneada era sinal de um
funcionário produtivo. Enquanto isso, ninguém tinha levantado a mão. A
ideia de levantar a mão ressurgiu e de fazer a RT apontar pra ele por cima de
todas as cabeças viradas pra trás, apresentando-se como voluntário pra
atenção concentrada de todas aquelas pessoas, inclusive da exótica
transferida ou emigrada belga, que Cusk tinha conseguido evitar durante o
intervalo, do qual voltou mais cedo, e não sabia que os óculos da mulher
eram tão grossos que se a tivesse visto ele teria sido capaz de saber que ela
era praticamente cega, ao menos para o que estivesse a mais de um metro
de distância, olhos franzidos e com covinhas estranhas nas íris, cheios de
rachaduras e fissuras como o leito seco de um rio — ela era tão exótica
quanto um hidrante, e tinha mais ou menos o mesmo formato — e ele não
estaria se preocupando com a possibilidade de ser visto por ela molhado ou
suando. De qualquer maneira, ele estava certo, como acabou se sabendo:
“O equívoco comum é de que uma mesa bagunçada é sinal de alguém
que trabalha duro ali.”
“Esqueçam a ideia de que a função de vocês aqui é coletar e processar a
maior quantidade possível de informação.”
“A bagunça e a desorganização da mesa da esquerda, na verdade, devem-
se a um excesso de informação.”
“Bagunça é informação sem valor.”
“Limpar a bagunça de uma mesa é se livrar da informação que você não
quer mais e ficar com a que ainda quer.”
“Quem se importa em saber qual papel de bala está em cima de qual
documento? Quem se importa em saber qual memorando meio amassado
está preso entre duas páginas de um Acórdão da Receita que pertencia a um
processo de três dias atrás?”
“Esqueçam a ideia de que informação é uma coisa boa.”
“Só certa informação é boa.”
“Certa no sentido de ‘determinada’, não no sentido de precisa, acurada.”
“Cada processo que vocês analisarem nas Molezas vai constituir uma
plétora de informação”, o assistente de RH disse, pronunciando a palavra
como proparoxítona de um jeito que fez estremecerem as pálpebras de
Sylvanshine.
“O trabalho de vocês, num certo sentido, em cada processo é separar a
informação que tem valor e pertinência da informação inútil.”
“E isso requer critérios.”
“Um método.”
“É um método de processamento de informação.”
“Vocês são todos, se pararem para pensar, processadores de dados.”
O próximo slide na tela era ou uma palavra estrangeira ou uma sigla
muito complicada, cada letra com negrito e também sublinhada.
“Diferentes grupos e equipes dentro desses grupos recebem critérios
ligeiramente diferentes que ajudam a estabelecer o que se está procurando.”
O assistente de RH estava folheando suas fichas plastificadas.
“Pra dizer a verdade, tem outro exemplo sobre aquilo da informação.”
“Acho que eles entenderam.” A RT tinha um jeito de virar um pé na
perpendicular de sua direção normal e bater furiosamente com ele pra
demonstrar impaciência.
“Mas está bem aqui, na coisa da mesa.”
“Você está falando do baralho?”
“Da fila da caixa.”
Eles pareciam achar que seus microfones estavam desligados.
“Jesus.”
“Quem é que quer mais um exemplo para ilustrar a ideia de coletar
informação versus processar dados?”
Cusk estava se sentindo sólido e confiante, como acontecia muitas vezes
depois que uma série de ataques tinha passado, quando seu sistema nervoso
parecia esvaziado e difícil de despertar. Sentiu que se tivesse levantado a
mão e dado uma resposta que no fim não fosse correta isso não seria assim
tão importante. “Tanto faz”, ele pensou. Esse “tanto faz” era o que ele
muitas vezes pensava quando se sentia animado e imune aos ataques. Duas
vezes tinha convidado mulheres pra sair quando estava nesse humor
arrogante, extrovertido e hidroticamente seguro, e depois não compareceu
ou não ligou na hora marcada. Chegou até a considerar a possibilidade de
virar pra trás e dizer alguma coisa animada e limitrofemente sedutora pra
belga ruidosa, modelo moda praia — refeito da crise, ele agora queria a
atenção das pessoas.
Aos oito anos, Sylvanshine tinha dados a respeito das enzimas hepáticas
do pai e de sua taxa de atrofia cortical, mas não sabia o que esses dados
significavam.
“Você está lá no supermercado enquanto os itens que comprou vão sendo
computados. Cada produto tem um preço, óbvio. Normalmente ele está bem
ali no produto, numa etiqueta adesiva, às vezes com o preço de atacado
também codificado no canto — a gente pode falar disso outra hora. Na
saída, o caixa registra o preço de cada compra, soma tudo, acrescenta os
devidos impostos de venda — não progressivos, nós estamos falando de um
exemplo atual — e chega a um total, que aí você paga. A questão: o que
contém mais informação, a quantia total ou o cálculo dos dez itens
separados? Digamos que nesse exemplo você tivesse dez itens no carrinho.
A resposta óbvia é que o conjunto de todos os preços individuais contém
muito mais informações do que o número único que é o total. Só que quase
todas essas informações são irrelevantes. Se você pagasse cada item
individualmente, seria outra história. Mas você não paga assim. A
informação individual do preço individual só tem valor no contexto do
total; o que o caixa no fundo está fazendo é descartar informação. Você
chega no caixa com um monte de informações que o caixa processa através
de determinado procedimento a fim de chegar à única informação que tem
valor — o total mais impostos.”
“Abandonem a ideia leiga de que informação é uma coisa boa. De que
quanto mais informação melhor. A lista telefônica tem montes de
informação, mas, se você está procurando um número de telefone, 99,9%
daquela informação só atrapalha.”
“Informação per se na realidade é apenas uma medida de
desorganização.” A cabeça de Sylvanshine se ergueu de súbito ao ouvir
isso.
“O sentido de se ter um procedimento é processar e reduzir a informação
do processo somente à informação que tem valor.”
“Também tem a questão de usar o tempo de vocês do modo mais
eficiente. Vocês não vão gastar o mesmo tempo com cada processo. É
melhor gastar mais tempo com os processos que parecem mais promissores
para a geração de renda líquida.”
“Renda líquida é o nosso termo para a quantia adicional gerada por uma
auditoria, subtraídos os custos da auditoria.”
“No contexto da Iniciativa, os analistas são avaliados tanto segundo a
renda líquida total produzida quanto segundo a razão entre a renda adicional
total produzida e o custo total das auditorias adicionais solicitadas. O que
for menos favorável.”
“A razão é evitar que algum coió simplesmente preencha um Memorando
20 pra cada processo que cai na sua Tingle na esperança de dar um gás na
sua rentabilidade.” Cusk refletiu: um analista que jamais preenchesse um
Memorando 20 teria uma razão de 0/0, o que corresponde ao infinito. Mas o
total de renda também, ele refletiu, seria 0.
“A questão é desenvolver e implementar procedimentos que permitam
que você defina com a maior rapidez possível se determinado processo
merece uma análise mais detida…”
“… essa análise mais detida já envolve certo tipo ou certos tipos de
procedimentos que se misturam à criatividade de cada um de vocês e aos
seus instintos para sentir o cheiro de rato no paiol…”
“… ainda que no começo das atividades, enquanto vocês vão ganhando
experiência e aprimorando sua habilidade, seja natural confiar em certos
procedimentos já testados…”
“… muitos dos quais vão variar segundo cada grupo ou equipe.”
“Incongruências nos Arquivos Máster, pra começar. Isso é bem óbvio.
Disparidade entre W-2s mais 1099s e a renda declarada. Disparidade entre a
declaração estadual e a 1040…”
“Mas de quanto? Abaixo de que piso você simplesmente deixa passar
uma incongruência?”
“É o tipo de questão para orientação de grupo.”
Sylvanshine agora sabia que dois pares separados de novos fraldinhas na
verdade eram, sem saber, parentes, um dos pares através de uma ligação de
cinco gerações atrás, em Utrecht.
David Cusk agora se sentia tão relaxado e tão destemido que estava
quase ficando sonolento. Os dois treinadores às vezes estabeleciam um
ritmo e uma harmonia que era calmante, repousante. O cóccix de Cusk
estava um nadinha amortecido pela sua posição reclinada, ele meio largado
na cadeira, apoiando os cotovelos na mesinha dobrável, com o calor da
pequena luminária não sendo motivo de preocupação maior do que a notícia
da temperatura de qualquer outra cidade.
“Quem tem uma queda anormalmente pronunciada de renda ou um
aumento incomum de deduções em relação aos anos anteriores? Só para dar
um exemplo.”
“E dos grandes — quem foi bem-sucedidamente auditado nos últimos
cinco anos? Isso aparece em alguns, mas não em todos os impressos de
Martinsburg.”
“… às vezes você precisa pedir dados específicos adicionais dos
Arquivos Máster.”
“Mas sejam disciplinados com isso. Evitem a tentação de pensar que
sempre precisam de mais informação. Vocês podem se afundar nela.”
“Fora que custa caro.”
“Conheçam o seu menino de carga. O menino de carga é o GS-7 que faz o
meio de campo entre os analistas e a Célula Técnica, onde os processadores
de dados podem conseguir informações adicionais dos Arquivos Máster
para vocês, se vocês preencherem um formulário DR-104 de requisição de
dados.”
“Nem todos eles são meninos. ‘Menino de carga’ é só uma expressão
mais histórica.”
“Além do mais, são os meninos de carga que mantêm os processos
circulando, especialmente pegando só processos que vocês encerraram e
mantendo a caixa de entrada da Tingle de vocês sempre cheia.”
“Eles não vão buscar comida nem cumprem tarefas pessoais.”
Cusk estava considerando as possíveis vantagens de ser menino de carga
caso ser analista acabasse se revelando perigoso demais em termos de
sujeitá-lo a ataques e dificultar sua saída da área. Parecia que esses meninos
de carga estavam em movimento mais ou menos constante, e movimento
constante significava oportunidades constantes de dar uma passadinha no
banheiro, analisar a situação sudorípara e enxugar o suor da testa. Por outro
lado, significaria provavelmente uma grande diminuição salarial. O
pequeno ruído como que de um gargarejo que Cusk ouvia atrás de si a
intervalos de cinco minutos era o som do autolubrificante dos óculos de
Toni Ware caindo nos olhos dela.
“Vocês vão ser apresentados ao seu menino de carga nas sessões de
orientação de Grupo e de Equipe.”
“Outros exemplos gerais: quem está num ramo que lida basicamente com
dinheiro vivo?”
“Quem tem deduções de doações para caridade anormalmente altas em
comparação às médias do seu nível de renda?”
“Quem está se divorciando? Por motivos que serão abordados se forem
considerados relevantes para o Grupo de vocês, divórcios tendem a gerar
uma renda líquida anormalmente alta nas auditorias.”
“Em parte por causa da liquidação dos bens, em parte porque o processo
todo normalmente expõe muito da situação auditável sem que a gente
precise arcar com o tempo e os gastos para descobrir coisas como rendas
ocultas.”
“Quem tem deduções de depreciação incomumente altas que deviam ser
amortizadas em vários anos? Mais de 40% da depreciação acelerada nas
1040s é ilícita ou pelo menos questionável em auditoria.”
“São só exemplos pequenos e aleatórios de alguns critérios.”
“Vocês não podem usar todos — não vai dar para manter o fluxo dos
processos.”
“Algumas equipes verificam cada processo no contexto das duas
declarações anuais anteriores. É o que se chama de termos de intervalo. A
questão é procurar grandes quedas de renda ou grandes aumentos de
deduções.”
“A intuição tem seu papel. Dá para ver quando alguma coisa está errada.
E você pode justificar usar um tempinho a mais com um processo.”
“Essa é a grande vantagem dos analistas humanos. Intuição,
criatividade.”
“Tem gente com mais talento para sentir cheiro de rato.”
“Mera adivinhação não explica a rentabilidade de alguns grandes
analistas, alguns trabalhando aqui neste mesmo Posto…”
“Um rato que valha a pena.”
§ 28
Shinn tinha o corpo esguio e um cabelo louro fino de bebê que lhe caía
numa franja que parecia a dos Beatles nos primeiros anos. O homem
sentado ao lado dele na perua do IRS tinha saído de Angler’s Cove com
vários outros enquanto estavam todos ali parados na aurora de tons pastel
esperando a perua. O doce ar úmido e pesado das auroras do verão. Os
homens com crachás do Serviço todos se conheciam e falavam entre si.
Alguns bebiam de suas canecas ou fumavam cigarros que esmagaram
contra o meio-fio quando a perua apareceu. Um tinha costeletas e um
chapéu de caubói, que agora na perua tinha tirado duas fileiras de bancos à
frente. Alguns liam jornal. Alguns homens na perua não deviam passar de
uns cinquenta anos de idade. As janelas abriam como uma tampa em vez de
descer; era um veículo estranho, parecia mais um caminhão pequeno e
quadradão com bancos soldados no chassi.
A perua parou em mais dois complexos de apartamentos ao longo da
Self-Storage Parkway; num deles ficou em ponto morto por vários minutos,
aparentemente matando tempo pra cumprir uma agenda. Shinn usava uma
camisa social azul-clara. Uma conversa atrás dele ressaltava alguém
dizendo a outro alguém que se você fizesse um cortezinho na borda da unha
do dedo pé ela não encravava mais. Alguém bocejou bem alto e estremeceu
um pouco. O homem ao lado de Shinn, eles com as coxas em contato de
pressão variada conforme a perua balançava de leve de um lado pro outro
numa suspensão macia, estava lendo um panfleto adicional do IRS cujo título
Shinn não conseguia ver porque o cara era uma dessas pessoas que dobram
os panfletos até ficarem um quadradinho pra ler. Ele tinha uma mochila
pequena no colo. Shinn considerou a possibilidade de se apresentar; não
sabia bem o que a etiqueta recomendava.
Shinn tinha ficado parado na calçada bebendo a primeira Coca-Cola do
seu primeiro dia no Posto e percebendo as roupas desamarrotarem e
afrouxarem um pouco com a umidade, sentindo os mesmos cheiros de
madressilva e de grama cortada lá dos subúrbios de Chicago, ouvindo o
canto de pássaros despertos pela aurora nas árvores que cercavam a Self-
Storage, e sua mente andava solta ali por tudo, e de repente lhe ocorreu que
os pássaros, cujos pios e cantos repetidos soavam tão lindos, como uma
afirmação tão vigorosa da natureza e do dia que se abria, podiam na
verdade, num código conhecido apenas por outros pássaros, ser pássaros
que estavam cada um deles dizendo “Vai embora” ou “Esse galho é meu!”
ou “Essa árvore é minha! Eu vou te matar! Morra, morra!”. Ou qualquer
outro tipo de coisa tenebrosa, brutal ou de autoproteção — eles podiam
estar ouvindo histórias de guerra. A ideia lhe veio do nada e fez seu estado
de espírito piorar por algum motivo.
§ 32
Lane Dean Jr. com seu mindinho verde emborrachado estava à sua mesa
Tingle na fileira do seu Tento no fraldário do seu grupo moleza e fez mais
duas declarações, depois mais uma, depois contraiu as nádegas, contou até
dez e depois imaginou uma praia linda e quente com ondas suaves
conforme tinha sido instruído a fazer na orientação no mês anterior. Em
seguida fez mais duas declarações, deu uma olhada bem rapidinha no
relógio, depois mais duas, aí mandou ver e fez três seguidas, aí contraiu e
visualizou, mandou ver e fez quatro sem levantar a cabeça uma só vez a não
ser pra colocar os processos e os memorandos encerrados nas duas bandejas
de Saída que ficavam lado a lado na camada superior de bandejas onde os
meninos de carga podiam pegar quando passassem por ali. Depois de
apenas uma hora a praia já era uma praia de inverno fria e cinza e com algas
mortas que pareciam o cabelo dos afogados, e se manteve assim apesar das
tentativas. Depois mais três, inclusive uma 1040A em que as deduções de
RBA tinham erro de soma e o impresso de Martinsburg não tinha pegado isso
e teve que ser corrigido num dos Formulários 020-C da bandeja esquerda
inferior e aí uma quantidade considerável de informação repetida teve que
ser preenchida no 20 de sempre que você ainda tinha que fazer mesmo que
fosse só uma auditoria por carta e que o processo fosse pra Joliet e não pro
Distrito, sendo que você tinha que olhar cada código de cada coisa na
prateleirinha retrátil que ele tinha que afastar a cadeira meio desajeitado pra
conseguir puxar inteira. Aí mais uma, aí um despenhadeiro dentro dele
enquanto o relógio da parede mostrava que o que ele achava que era outra
hora não tinha sido. Nem de longe. Dezessete de maio de 1985. Meu
Senhor Jesus Cristo tenha pena de mim, um pobre pecador. Conferindo as
W-2s da Linha 7 de uma declaração bem naquele ponto do impresso de
Martinsburg onde a perfuração pra se você quisesse separar as folhas do
negócio acabava passando bem em cima dos dados e você tinha que erguer
contra a luz e quase de vez em quando chutar, coisa que o seu Líder de
Tento dizia que era um problema crônico dos Sistemas, mas que mesmo
assim o fraldinha era responsável. A piada nessa semana era no que um
analista de rotina do IRS era igual a um cogumelo? Os dois viviam em
lugares escuros e se alimentavam de merda. Ele nem sabia como um
cogumelo funcionava, se era verdade que as pessoas davam excremento pra
eles comerem. A comida da Sheri não estava por assim dizer no nível de
acrescentar cogumelos. Aí outra declaração. A regra era que quanto mais
você olhasse pro relógio mais devagar o tempo passava. Nenhum fraldinha
usava relógio, só que ele viu que alguns deixavam o relógio no bolso pra
hora do intervalo. Você não podia ter um relógio de mesa na Tingle nem
café ou refri. Por mais que tentasse ele não tinha conseguido na última
semana deixar de imaginar a vida interior dos sujeitos mais velhos que
ficavam cada um de um lado da sua mesa fazendo aquilo dia após dia.
Levantando numa segunda-feira, mastigando sua torradinha e colocando o
chapéu e o casaco sabendo que iam sair pela porta pra encarar mais oito
horas. Isso era tédio além de qualquer tédio que ele já tivesse sentido. Isso
fazia a mesa de separação na UPS parecer um dia em Six Flags. Era 17 de
maio, de manhã cedo, ou quase já no meio da manhã talvez desse pra dizer
agora. Ele ouvia o rangido dos carrinhos dos meninos de carga em algum
lugar distante onde os painéis de vinil entre as Tingles do seu Tento e as do
Tento do camarada oriental louro uma fileira à frente tapavam a visão deles,
dos meninos com os carrinhos. Um dos carrinhos tinha uma roda solta que
fazia um estardalhaço quando o menino andava. Lane Dean sempre sabia
quando aquele carrinho vinha descendo pelas fileiras. Tento, Equipe,
Grupo, Célula, Posto, Divisão. Fez mais uma declaração, de novo a
matemática batia e não havia enumerações no 34A e os números de W-2 e
1099 e dos Formulários 2440 e 2441 do impresso pareciam corretos e ele
preencheu seus códigos pra bandeja 402 da linha do meio, assinou seu
nome e pôs seu número de identificação que alguma parte dele ainda se
recusava a decorar direito então tinha que abrir o clipe do crachá e verificar
toda vez e aí grampeou o 402 à declaração e colocou o processo na bandeja
mais à direita da camada de cima que era pra saída dos 402s e se recusou a
se permitir uma contagem do que ainda estava nas bandejas, e então sem
pedir licença veio a ideia de que chato também significava uma coisa
esmagada, compactada. Suas nádegas já estavam doendo de tanto se
contrair, e a mera ideia de visualizar a praia ensolarada o deixava prostrado.
Fechou os olhos mas em vez de rezar pedindo força interior agora descobriu
que estava apenas olhando pra estranha escuridão avermelhada, pros
lampejos e coisinhas que flutuavam por ali, que ficavam quase hipnóticos
se você olhasse de verdade. Aí quando abriu os olhos a pilha de processos
na bandeja de Entrada parecia estar basicamente da altura que tinha às 7h14
quando ele registrou sua entrada no caderno do Líder de Tento e começou a
trabalhar e não havia processos suficientes nas suas bandejas de Saída pra
Formulários 20 e 402 que ele pudesse ver por cima da lateral da bandeja e
ele se negou mais uma vez a levantar pra verificar quantos deles ainda
estavam ali porque sabia que só ia piorar. Teve a sensação de um grande
tipo de buraco ou de vazio caindo dentro de si, continuando a cair e jamais
chegando ao chão. Nunca antes em sua vida até ali tinha pensado em
suicídio nem por um momento. Estava fazendo uma declaração ao mesmo
tempo em que lutava com a mente, com o pecado e a afronta da mera
possibilidade daquela ideia. A sala estava em silêncio, a não ser pelas
calculadoras e pelo estardalhaço da roda do carrinho daquele menino que
tinha uma roda solta enquanto o menino de carga fazia o carrinho descer
certa fileira de mesas com mais processos, mas ele também ficava ouvindo
na sua cabeça o som que uma folha de papel faz quando você rasga a folha
ao meio várias vezes. Seu Tento de seis homens era um quarto de uma
fileira, separado pelas telas cinzentas de vinil. Uma Equipe são quatro
Tentos mais o Líder da Equipe e um menino de carga, sendo que alguns
vêm do Peoria College of Business. Os painéis podiam ser movidos pra
reconfigurar a distribuição da sala. Grupos semelhantes de Molezas
estavam nas salas dos dois lados daquela. Bem à esquerda depois das
fileiras de três outros Tentos ficava o escritório do Gerente de Grupo com o
cubiculozinho de telas do GAM logo ao lado. As borrachinhas de ponta de
dedo eram pra gerar atrito com os formulários todos pra uma velocidade
bem deliberada. Você tinha que guardar a borrachinha no fim do dia. As
lâmpadas do teto não projetavam sombras, nem da sua mão se você
estendesse o braço como quem ia mexer numa bandeja. Doug e Amber
Bellman de Elk Court, Edina MN, que enumeravam coisa pacas, decidiram
doar $1 pro Fundo da Campanha Eleitoral Presidencial. Foram vários
minutos pra analisar tudo que estava no Anexo A, mas nada ali qualificava
pros pré-requisitos de uma auditoria promissora, apesar do sr. Bellman ter a
caligrafia angulosa de um maluco. Lane Dean tinha processado bem menos
20s do que o protocolo exigia. Na sexta-feira ele foi a pessoa do Tento com
o menor número de 20s. Ninguém abriu a boca. Todos os cestos de papel
estavam cheios das tiras enroscadas de papel das calculadoras. Todo mundo
estava com o rosto cor de grafite molhado por causa da luz fria. Você podia
fazer um cubículo semiprivativo com aqueles painéis como o Líder da
Equipe tinha feito. Então ele levantou a cabeça apesar das melhores
intenções anteriores. Em quatro minutos outra hora teria passado, meia hora
depois disso vinha o intervalo de quinze minutos. Lane Dean se imaginou
correndo por ali no intervalo sacudindo os braços e gritando coisas sem
sentido com dez cigarros na boca ao mesmo tempo como uma flauta de pã.
Ano após ano, um rosto da mesma cor da sua mesa. Meu Senhor Jesus.
Café não era permitido pra não molhar os processos, mas no intervalo ele ia
pegar uma caneca grandona em cada mão enquanto se imaginava correndo
na frente do prédio e gritando. Ele sabia que o que ia fazer de verdade no
intervalo era ficar sentado olhando pro relógio da parede da salinha e apesar
das orações e do esforço ficar ali sentado contando os segundos que
passavam até ter que voltar pra fazer aquilo de novo. E de novo e de novo e
de novo. O som imaginado fez com que se lembrasse de ocasiões diferentes
em que tinha visto pessoas rasgarem folhas ao meio. Pensou num homem
forte de circo rasgando uma lista telefônica; era careca, tinha um bigodão e
usava um maiô comprido e listradinho como as pessoas usavam no passado
distante. Lane Dean juntou todas as suas forças, mandou ver e fez três
declarações em seguida e começou a imaginar diferentes lugares altos de
onde poderia pular. Sentia-se em condições de dizer que agora sabia que o
inferno não tinha a ver com fogueiras ou tropas congeladas. Tranque um
camarada numa sala sem janelas pra realizar tarefas repetitivas que tenham
apenas o grau de dificuldade necessário pra fazer ele ter que pensar, mas
ainda assim coisa de rotina, tarefas ligadas a números que não se ligavam a
nada que ele jamais fosse ver ou achar relevante, uma pilha de tarefas que
nunca diminuía, e pregue um relógio na parede bem onde ele pode ver, e só
deixe o cara ali entregue aos engenhos da sua própria mente. Diga pra ele
apertar a bundinha e pensar em praia quando começar a ficar irrequieto, e
essa seria exatamente a palavra empregada por eles, irrequieto, como a mãe
dele. Deixe que ele descubra na plenitude dos tempos a piada que era a
palavra, o quanto ela passava longe de descrever aquilo. Ele já tinha
espanado a mesa com o punho da camisa, trocado de lugar a foto do seu
filho bebê em seu pequeno porta-retrato chacoalhento com o vidro que
escorregava um pouco se você sacudisse. Já tinha tentado trocar a
borrachinha verde de mão e mexer na calculadora com a mão esquerda,
fingindo que tinha tido um derrame e prosseguia com bravura. A
borrachinha deixava a ponta do dedo toda úmida e pálida ali embaixo.
Incapaz de ficar sentado parado em casa, incapaz de ficar olhando a mesma
coisa por mais de um ou dois segundos. A praia agora tinha cimento sólido
em vez de areia e a água era cinza e quase não se mexia, só tremulava um
pouco, como gelatina quase pronta. Sem pedirem licença vieram-lhe formas
de se matar com gelatina. Lane Dean tentou controlar sua frequência
cardíaca. Ficou pensando se com prática e concentração suficientes você
podia parar o coração só com a força da mente, como fazia com a
respiração — como agora. Seus batimentos cardíacos ficaram
perigosamente lentos, ele se assustou e tentou manter a cabeça inclinada
revirando os olhos bem pra trás e comparou a velocidade com o ponteiro
dos segundos do relógio, mas o ponteiro dos segundos pareceu
impossivelmente lento. O som do papel rasgado de novo e de novo. Alguns
meninos de carga te traziam os processos com tudo que você precisava,
outros não. A campainha pra chamar um menino de carga ficava logo
abaixo da borda da mesa de ferro, com um cabo que descia por um dos
lados da mesa e por uma de suas perninhas soldadas, mas não funcionava.
Atkins disse que o fraldinha que ficava naquela mesa antes dele, que tinha
sido transferido pra algum lugar, tinha apertado tanto o botão que queimou
o circuito. Pequenas e estranhas reentrâncias na borda da frente do mata-
borrão eram, Lane percebeu, as marcas dos dentes que alguém tinha se
curvado pra pressionar com bastante cuidado na borda do mata-borrão pras
reentrâncias ficarem bem fundas e não se apagarem dali. Ele sentiu que
conseguia entender. Era difícil se impedir de ficar cheirando o dedo; em
casa ele se pegava fazendo isso, encarando o vazio quando estava à mesa. O
rosto do seu menininho funcionava melhor que a praia; ele o imaginava
fazendo tudo quanto era tipo de coisa de que ele e a sua mulher depois
poderiam falar, como pegar com a mãozinha o dedo de um deles ou sorrir
quando Sheri fazia aquela cara de espanto pra ele. Ele gostava de ficar
vendo ela com o bebê; durante meio processo foi útil ficar pensando nos
dois porque eles eram o motivo, eram eles o que fazia aquilo valer a pena e
ser a coisa certa e ele tinha que lembrar, mas isso vivia escorregando pelo
buraco que caía por dentro dele. Nenhum dos homens de um lado dele ou
do outro parecia sequer se mexer na cadeira a não ser pra estender o braço e
erguer coisas da mesa pras bandejas da Tingle, como máquinas, e eles
nunca estavam na salinha durante o intervalo. Atkins dizia que depois de
um ano conseguia analisar e conferir dois processos ao mesmo tempo, mas
ninguém via ele tentar fazer isso, embora ele soubesse assobiar uma música
e cantarolar outra. A irmã do Nugent fez o exorcista no telefone. Lane Dean
observou com o canto do olho enquanto um sujeito com cara de papagaio
logo ao lado do corredor central que dividia as Equipes puxou um processo
da bandeja, retirou a declaração, destacou o impresso e centrou os dois
documentos no seu mata-borrão. Com a sua almofadinha feita em casa e o
chapéu cinza no gancho aparafusado à bandeja dos 402. Lane Dean ficou
com os olhos fixos pra baixo sem ver seu processo aberto imaginando ser
aquele cara com a sua almofadinha deprimente e sua luminária de bancário
personalizada e ficou pensando o que podia ter ou fazer nas suas horas
vagas pra compensar essas oito horas diárias de assassinato da alma de que
ainda nem um quarto tinha passado até ele simplesmente não dar mais conta
e fazer três declarações seguidas numa espécie de frenesi em que podia ter
deixado coisas passarem e assim no processo seguinte ele foi bem devagar e
com todo o cuidado e encontrou uma discrepância entre o Formulário E da
1040 e a tabela de anuidades da RRA da pensão vagabundinha de ferroviário
do coitado do Clive R. Terry de Alton, mas uma discrepância tão pequena
que não dava pra saber se o impresso de Martinsburg tinha cometido
mesmo um erro ou simplesmente aceitado uma arredondada maior pra
economizar tempo dada a quantia envolvida, e ele teve que preencher tanto
um 020-C quanto um Memorando 402-C(1), passando a declaração pro
escritório do Gerente de Grupo pra ele decidir como classificar o erro. Os
dois tinham que ser preenchidos com dados em duplicata dos dois lados e
assinados. A questão toda era quase inacreditavelmente insignificante e
pequena. Ele pensou na palavra significado e tentou se lembrar do rosto do
filhinho sem olhar pra foto, mas só conseguiu evocar o peso de uma fralda
cheia e o móbile de plástico acima do berço girando na brisa gerada pelo
circulador de ar ali na porta. Ninguém de nenhuma congregação tinha visto
O exorcista; ia contra os dogmas católicos e era obsceno. Não era
entretenimento. Ele imaginou que o ponteiro dos segundos do relógio tinha
consciência e sabia que era um ponteiro dos segundos e que seu trabalho era
ficar ali dando voltas dentro de um círculo de números pra sempre na
mesma velocidade lenta e invariável de máquina, sem ir a qualquer lugar
onde já não tivesse estado um milhão de vezes, e imaginar o ponteiro dos
segundos era tão pavoroso que fez ele se engasgar com o ar e ele deu uma
rápida olhada em volta pra ver se algum analista em torno tinha ouvido ou
estava olhando pra ele. Quando começou a ver o rosto do bebê na foto
derretendo, se alongando e desenvolvendo um longo queixo fendido, o
rosto envelhecendo anos em poucos segundos e finalmente desmoronando
de velhice e despencando do sorridente crânio amarelado que restava por
baixo, ele soube que estava semiadormecido e sonhando, mas não soube
que estava com a cabeça nas mãos até ouvir uma voz humana e abrir os
olhos, mas não conseguir ver de quem ela era e então sentir o cheiro da
borracha do mindinho bem embaixo do nariz. Ele pode ter babado no
processo aberto.
Sentindo o gostinho da coisa, então.
Era um sujeito grande, mais velho, com um rosto vincado e dentes
espaçados. Não era de nenhuma Tingle que Lane Dean já tinha visto ali da
sua. O homem estava usando uma lâmpada presa à cabeça com uma tira
marrom de algodão como a de alguns dentistas e um tipo de marcador preto
no bolso do peito. Cheirava a óleo capilar e a algum tipo de comida. Tinha
parte da bunda na beirada da mesa de Lane, limpava a unha do polegar com
um clipe desentortado e falava baixinho. Dava pra ver uma camiseta por
baixo da camisa dele; não usava gravata. Ficava movendo o tronco no
formato de algum desenho, ou de um círculo, e os movimentos deixavam
um rastro visual. Nenhum fraldinha das fileiras adjacentes estava prestando
atenção nele. Dean verificou o rosto da foto pra ter certeza de que não
estava mais sonhando.
Mas eles nunca dizem. Já percebeu isso? Eles desconversam. É óbvio
demais. Que nem falar do ar que você respira, não é? Ia ser que nem dizer:
Estou vendo tal e tal coisa com o olho. Que sentido teria?
Tinha alguma coisa errada com um olho dele; a pupila do olho era maior
e ficava daquele jeito, fazendo o olho parecer travado. A lâmpada na cabeça
dele não estava acesa. Os movimentos lentos do tronco o traziam mais
perto, depois o levavam mais longe e o traziam de volta. Era muito de leve
e muito devagar.
É, mas agora você está sentindo o gosto, pense nisso, na palavra. Você
sabe qual. Dean teve a perturbadora sensação de que o camarada não estava
estritamente falando com ele, o que significaria que era mais um desvario
solitário do sujeito. Aquele olho olhava direto pra longe dele. Se bem que
não era verdade que ele estava agorinha mesmo pensando numa palavra?
Será que a palavra era dilatado? Será que ele tinha dito a palavra em voz
alta? Lane Dean olhou com cautela pros dois lados. A porta jateada do
Gerente de Grupo estava fechada.
A palavra aparece de repente em 1766. Sem uma etimologia conhecida.
O conde de March usa a palavra numa carta em que descreve um seu par da
corte de França. Ele não projetava sombra, mas isso não queria dizer nada.
Sem nenhum motivo, Lane Dean contraiu as nádegas. Na verdade, as três
primeiras aparições de bore com sentidos relacionados a tédio na língua
inglesa vêm ligadas ao adjetivo francês, that french bore, aquele francês
chato, não? Claro que os franceses tinham malaise, ennui. Veja a quarta
Pensée de Pascal, que Lane Dean ouviu pincê. Ele procurava alguma saliva
perdida no processo que tinha diante de si. Uma coxa dentro de uma calça
social azul-marinho estava a centímetros do seu cotovelo. O homem se
movia levemente pra frente e pra trás como se sua cintura tivesse uma
dobradiça. Parecia estar inspecionando o tronco e o rosto de Lane Dean de
modo sistemático, esquadrinhante. Suas sobrancelhas saíam pra tudo quanto
era lado. A faixa marrom estava ou empapada ou manchada. Veja as
conhecidas cartas de La Rochefoucauld ou da marquesa Du Deffand a
Horace Walpole, especificamente acredito eu a carta 96. Mas nada em
inglês antes de March, conde de. Isso significa uns bons quinhentos anos
sem uma palavra pra coisa, não? Ele rotacionou o corpo um pouco pra
longe. Nem a pau que aquilo era uma visão ou um momento. Lane Dean
tinha ouvido falar do espectro, mas nunca tinha visto. O espectro da
alucinação da concentração repetitiva sustentada por tempo excessivo,
como dizer uma palavra sem parar até ela meio que se dissolver e ficar
estranha. O cabelo alto, duro e cinza do sr. Wax mal estava visível a quatro
Tingles dali. Nenhuma palavra pro latim accidia de que tanto falavam os
monges da regra de Benedito. Pro grego ἀκηδία. E também os eremitas do
Egito do século III, o chamado daemon meridianus, quando as orações deles
eram estultificadas pela falta de sentido, pelo tédio e pelo desejo de uma
morte violenta. Agora Lane Dean estava olhando abertamente em volta de
um jeito meio quem é esse cara? Aquele olho estava fixo num ponto ainda
além da fileira de telas de vinil. O som de papel rasgado tinha desaparecido,
assim como a rodinha rangente do carrinho.
O sujeito limpou a garganta. Claro que Donne chamou o sentimento de
lethargie, e por um tempo ele parece meio fundido à melancolia, saturninia,
otiositas, tristitia — ou seja, estar desorientado pela preguiça, o torpor e a
lassidão e a eremia e a vexação e o destempero e atribuir tudo isso à bile
negra, por exemplo veja a icterícia negra de Winchilsea ou, claro, Burton.
O homem ainda estava na mesma unha do polegar. Quaker Green, acredito
que em 1750, usou o termo névoa negra. Óleo capilar fazia Lane Dean
pensar no barbeiro, no poste listradinho que parecia espiralar eternamente
pra cima, mas que você podia ver quando a barbearia fechava e ele parava
que no fundo não. O óleo capilar tinha um nome. Ninguém com menos de
sessenta usava aquilo. O sr. Wax usava um fixador masculino. O camarada
parecia inconsciente das rotações subaquáticas do seu torso. Dois fraldinhas
numa Equipe perto da porta tinham barba longa e chapéu-coco preto e
balançavam pra frente e pra trás nas Tingles enquanto verificavam as
declarações, mas a oscilação deles era rápida e unidirecional; isso aqui era
diferente. Os analistas dos dois lados não erguiam os olhos nem prestavam
atenção; seus dedos nas calculadoras nem diminuíram de velocidade. Lane
Dean não sabia dizer se isso era sinal de concentração profissional ou de
outra coisa. Alguns usavam a borrachinha na mão esquerda, quase todos na
direita. Robert Atkins era ambidestro; conseguia preencher formulários
diferentes com as duas mãos. O camarada à sua esquerda não tinha piscado
a manhã toda até onde Dean tinha podido ver. E aí de repente ela pipoca.
Bore. Como que saída da testa de Atena. Substantivo e verbo, particípio
como adjetivo, tudinho. Origem desconhecida, na verdade. A gente não
sabe. Nada no Johnson. A única entrada no Partridge é sobre bored como
predicativo do sujeito e qual preposição usar, já que bored of em oposição a
bored with é um marcador social que no fundo é a única coisa em que o
Partridge está sempre interessado. Classes classes classes. O único Partridge
que Lane Dean conhecia era o mesmo Partridge que todo mundo conhecia
da televisão. Ele não tinha a mais remota ideia do que aquele sujeito estava
falando, mas ao mesmo tempo ficava bem preocupado porque estava
pensando em bore como palavra também, a palavra, muitas declarações
atrás. Os filólogos dizem que foi um neologismo — e bem na época do
nascimento da indústria, também, não?, o homem da multidão, a turbina
automatizada e a broca e a perfuratriz, que também se chama bore, não?
Ocado? Esqueça o Friedkin, você já viu Metrópolis? Ah, tá, agora Lane
ficou arrepiado de verdade. Sua incapacidade de dizer qualquer coisa a esse
cara ou perguntar ao menos o que ele queria também parecia um pouco um
pesadelo. Na noite do seu primeiro dia ele tinha sonhado com uma vareta
que ficava se partindo sem parar, mas nunca diminuía de tamanho. O
francês empurrando aquela pedra morro acima por toda a eternidade. Veja
por exemplo o English Language de L. P. Smith, acredito que de 56, não?
Era o olho ruim, o olho parado, que parecia inspecionar o que estava diante
do seu corpo inclinado. Propõe que certos neologismos surgem de sua
própria necessidade cultural — nas palavras dele, acredito. Sim, ele disse.
Quando o tipo de experiência de que você está sentindo um belo de um
gostinho se torna possível, a palavra se inventa sozinha. O termo. Agora ele
trocou de unha. Era Vitalis que tinha encharcado a faixa da lâmpada, que
parecia cada vez mais uma bandagem. A porta do Gerente de Grupo tinha o
nome dele pintado na mesma janelinha de vidro martelado que as escolas de
segundo grau possuíam antigamente. As portas do RH eram iguais. As salas
de espera tinham portas de incêndio de metal, sem janelas, que corriam num
trilho no alto, modelo novo. Considere que os Oglok da península do
Labrador têm mais de cem termos diferentes e distintos para neve. Smith
declara que quando qualquer coisa assume relevância suficiente ela
encontra seu nome. O nome surge sob a pressão da cultura. É bem
interessante quando você reflete sobre isso. Agora pela primeira vez o
camarada na Tingle à direita se virou brevemente pra dar uma olhada pro
sujeito e se virou de volta com a mesma velocidade quando o homem fez
uma garra com as mãos e as mostrou pro outro fraldinha como um demônio
ou alguém possuído. A coisa toda foi rápida demais pra ser verdade pra
Lane Dean. O fraldinha virou uma página do processo à sua frente. Mais
alguém tinha chamado aquilo daquele jeito, assassinato da alma. Coisa que
agora você também quer fazer, não? No século XIX então de repente a
palavra está por toda parte; veja por exemplo Kierkegaard e seu Estranho
que o tédio, por si próprio tão imóvel e sólido, tenha poder de pôr em
movimento. Quando a grande coxa dele deslizou do tampo da mesa o
movimento deixou o cheiro mais forte; era Vitalis com comida chinesa, a
comida do baldinho branco com alça de arame, moo goo alguma coisa. A
luz da sala no vidro jateado era diferente porque a porta estava levemente
aberta, ainda que Lane Dean não tivesse visto a porta abrir. Ocorreu a Lane
Dean que ele podia rezar.
Era o mesmo movimento oscilatório e esquadrinhante agora de pé.
Aquele olho estava na porta do Gerente de Grupo, entreaberta. Perceba
também que interesting aparece pela primeira vez dois anos depois de bore.
1768. Note bem, dois anos depois. Como é possível? Ele já estava na
metade da fileira; agora o camarada com a almofada levantou os olhos e
baixou de novo imediatamente. Elas se inventam, não? Não tudo que
inventam. Em seguida algo que Lane Dean ouviu como bom na peti. O
sujeito tinha desaparecido quando chegou ao fim da fileira. O processo e
seus Anexos A/B e o impresso estavam bem no mesmo lugar, mas o retrato
do filho de Lane estava de cara pra baixo. Ele se permitiu levantar os olhos
e viu que tempo nenhum tinha passado, de novo.
§ 34
Fórmula IRM §781(d) TMA para Empresas: (1) Renda tributável antes de
dedução NOL, mais ou menos (2) Todas as correções de TMA à exceção da
correção ACE, mais (3) Preferências de tributação, gera (4) Mínima Renda
Tributável Alternativa antes das deduções NOL e/ou da correção de ACE, mais
ou menos (5) correção de ACE, se houver, gera (6) MRTA antes da dedução
NOL, se houver, menos (7) dedução NOL, se houver (teto de 90%), gera (8)
MRTA, menos (9) Isenções, gera (10) base de TMA, multiplicada por (11) 20%
Fatos: o estigmatista italiano Padre Pio exibiu chagas que lhe atravessam
a mão esquerda e os dois pés, centralmente, durante toda a vida. Santa
Verônica Giuliani, da Úmbria, apresentava chagas numa das mãos, assim
como em seu flanco, que se podia observar abrir, as chagas, e fechar
conforme ela ordenasse. A beata do século XVIII Giovanna Solimani
permitia que peregrinos inserissem chaves especiais nas chagas de suas
mãos e as girassem, o que segundo os relatos propiciava que aqueles
clientes se recuperassem de seu próprio desespero racionalista.
Segundo tanto são Boaventura quanto Tomás de Celano, os estigmas
manuais de são Francisco de Assis incluíam massas baculiformes do que
parecia ser carne negra endurecida em extrusão a partir dos dois planos
volares. Se e quando aplicava-se pressão a um dos supostos “cravos” nas
palmas das mãos, um pino de carne negra endurecida se projetava na hora
das costas da mão, bem exatamente como se um suposto cravo real
estivesse atravessando a mão.
E no entanto (fato): as mãos não têm a massa anatômica necessária para
sustentar o peso de um humano adulto. Tanto textos jurídicos romanos
quanto a análise contemporânea de esqueletos do século I confirmam que a
crucifixão clássica exigia que os cravos fossem pregados nos pulsos, não
nas mãos, da vítima. Donde as, entre aspas, “necessariamente simultâneas
verdade e falsidade dos estigmas” que o teólogo existencialista E. M.
Cioran explica em seu Lacrimi și Sfinți, o mesmo trabalho em que se refere
ao coração humano como “a chaga aberta de Deus”.
Pessoas que estejam gravemente doentes ou feridas sempre sentem dores intensas.
Quanto maior a dor, maior a extensão e a severidade dos danos que a geraram.
Uma dor crônica severa é sintoma de doença incurável.
Ninguém jamais perguntou a ele. Seu pai achava apenas que tinha um
filho excêntrico mas muito ágil e flexível, uma criança que tinha levado a
sério as homilias de Kathy Kessinger sobre higiene espinhal como algumas
crianças levam a sério as coisas, e agora passava muito tempo flexionando e
flexibilizando corpo, o que em termos dos estranhos caminhos dos corações
das crianças era melhor que muitas outras fixações perdidas ou danosas em
que o pai conseguia pensar. O pai, um empreendedor que vendia fitas
motivacionais por reembolso postal, trabalhava em casa mas vivia se
ausentando para seminários e misteriosas vendas noturnas. A casa da
família, que tinha face oeste, era alta, estreita e contemporânea; parecia a
metade de um sobrado geminado de que a outra metade tivesse sido
subitamente removida. Era coberta de painéis de alumínio cor de oliva e
ficava num beco sem saída em cuja extremidade norte havia uma entrada
lateral para o terceiro maior cemitério do condado, cujo nome estava
entrelaçado no ferro que cobria o portão principal, mas não aquela entrada
lateral. A palavra em que o pai pensava quando pensava no menino era:
cioso, o que surpreendia o homem, por se tratar de uma palavra algo
antiquada e por ele nem imaginar de onde ela surgia quando pensava nele
ali, quando sentava encostado na porta.
A dra. Kathy, que às vezes recebia o menino para contínuos ajustes
profiláticos de suas vértebras, facetas e rami anteriores vertebrais, e não era
doida nem nenhuma charlatã com consultório em shopping center, mas
simplesmente uma quiroprática que acreditava na interpenetrante dança de
espinha, sistema nervoso, espírito e cosmos como totalidade — no universo
como um sistema infinito de conexões neurais que tinha evoluído para
formar, em seu ponto mais alto, um organismo capaz de ter consciência ao
mesmo tempo tanto de si próprio quanto do universo, de modo que o
sistema nervoso humano se tornasse a forma que o universo tinha de ser
consciente e assim “acessível [para]” si próprio —, a dra. Kathy acreditava
que seu paciente era um menino muito calado e voltado para si próprio que
tinha respondido a uma traumática subluxação da T3 com um
comprometimento com a higiene espinhal e a integridade neuroespiritual
que podia muito bem ser sinal de um dom para a quiropraxia como carreira
um dia. Foi ela quem deu ao menino seus primeiros manuais de
alongamento, comparativamente simples, além de exemplares dos famosos
diagramas neuromusculares de B. R. Faucet (©1961, Los Angeles College
of Chiropractic) que o menino usou como fonte para sua carta de papelão de
quatro faces que ficava como guardiã de sua cama sem travesseiro enquanto
ele dormia.
ASAS — BLAKE”
“SE ABDICARMOS DE NOSSA INICIATIVA, TORNAMO-NOS PASSIVOS —
VÍTIMAS RECEPTIVAS DAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE NOS ACOMETAM —
FUNDAÇÃO BEECHER”
A mãe de Toni era meio doida, como a sua própria mãe, notória reclusa e
excêntrica que morava na Casa das Calotas de Peoria. A mãe de Toni se
juntou com uma série de sujeitos ficha-suja no Sudoeste dos EUA. O último
estava dando a elas uma carona de volta a Peoria, para onde a mãe de Toni
tinha decidido voltar depois que a relação anterior àquela tinha azedado.
Blá-blá. Nessa viagem, a mãe meio que pirou (parou de tomar os remédios)
e roubou a caminhonete do cara quando eles pararam num posto, deixando
o cara para trás.
Tanto a mãe quanto a avó eram dadas a estados catatônicos/catalépticos,
o que até onde posso dizer é sintoma de certo tipo de esquizofrenia. A
menina, desde bem novinha, se divertia tentando imitar esse estado, o que
envolvia ficar extremamente imóvel, baixar os batimentos cardíacos,
respirar de maneira a não mover o peito e manter os olhos abertos por
longos períodos, de modo a piscar só de tantos em tantos minutos. Esta
última parte é que é a mais difícil — os olhos começam a arder quando
secam. Muito, muito difícil suportar esse desconforto… mas se você
persiste, se resiste ao impulso quase involuntário de piscar que chega
quando a ardência e o ressecamento estão no pior grau possível, aí os olhos
começam a se lubrificar sem piscar. Eles vão manufaturar uma espécie de
lágrimas falsas ou vicárias, só para se salvar. Quase ninguém sabe disso,
porque o incrível desconforto de ficar com os olhos abertos sem piscar
detém a maioria das pessoas antes de elas chegarem a esse ponto crítico. E
via de regra você se machuca, de qualquer maneira. A menina chamava isso
de “fingir de morta”, já que era como sua mãe tinha tentado descrever e
contornar a coisa dos estados para a menina quando ela era bem
pequenininha, dizendo que estava apenas brincando e que a brincadeira se
chamava “fingir de morta”.
O homem abandonado alcançou as duas em algum ponto do leste do
Missouri. Elas seguiam numa estradinha asfaltada, e o primeiro sinal de que
ele estava atrás delas foi um par de faróis que surgiu bem quando estavam
numa descida que se estendia por quase dois quilômetros — elas viam os
faróis aparecerem quando o veículo que as seguia chegava ao topo e depois
perdiam o contato quando começavam a subir de novo a leve inclinação.
A história, conforme a lembrança de Toni Ware, e conforme a narrativa
que ela fez uma única vez para X numa noite que acabou revelando ser o
aniversário da ocorrência, foi de que o veículo que o sujeito tinha pego de
alguém ou alugado vinha rápido atrás delas — na verdade vinha bem mais
rápido que a caminhonete, que tinha uma cobertura na caçamba — e o
homem não estava dirigindo o veículo. Ele estava de pé no capô do que
revelou ser um gigantesco caminhão sem carreta, estourando de raiva e de
maldade até ficar com pelo menos o dobro do tamanho que tinha, de braços
erguidos e abertos num terrível gesto de vingança quase bíblica, e berrando
(no sentido rural de “berrar”, o que é quase uma forma especial de arte;
antigamente era como as pessoas que moravam totalmente isoladas em
terrenos montanhosos, longe dos olhos umas das outras, conseguiam se
comunicar — era a forma de dizer aos outros que você estava por perto,
porque senão podia parecer, nas áreas rurais montanhosas, que você era a
única pessoa em qualquer lugar, num raio de milhares de quilômetros) num
estático furor negro de ódio e satisfação que fez com que a mãe de Toni —
que, lembremos, não era um grande modelo de estabilidade — ficasse
histérica e cravasse o acelerador no chão para tentar escapar do veículo ao
mesmo tempo que tentava extrair da bolsa um frasco de comprimidos e
abrir a tampinha de segurança, coisa em que a mãe era uma catástrofe,
precisando normalmente que Toni abrisse para ela — fazendo com que o
veículo, que tinha um centro de gravidade elevado por causa da cobertura
LEER,saísse da estrada e capotasse de lado em algum tipo de campo ou área
de vegetação baixa, ferindo violentamente a mãe, a ponto de ela acabar
semiconsciente, gemendo, com sangue lhe cobrindo o rosto e com Toni
estendida contra a janela do lado do passageiro, sendo que ela ainda tem a
maçaneta da janela gravada no lado do corpo se você conseguir convencê-la
a erguer a blusa e mostrar a bizarra reprodução. O veículo acabou caído
sobre a lateral direita, e a mãe não estava de cinto de segurança, coisa que
gente como ela nunca usa, e estava parcialmente sobre Toni Ware,
prendendo a menina contra a janela de modo que ela não conseguia nem se
mexer nem saber se estava ferida. Nada além daquele terrível silêncio, e dos
zumbidos e estalidos de um veículo que acabou de sofrer um acidente, fora
o som de esporas ou talvez apenas de um monte de moedas tinindo
enquanto o homem ia descendo a encosta até chegar a elas. A janela em que
ela estava tinha se cravado no chão e a do lado do motorista apontava agora
para o céu, mas o para-brisa, apesar de entortado e meio dependurado ali,
tinha se transformado numa fenda vertical de mais de um metro através da
qual Toni Ware teve uma visão total do homem ali parado, estralando os
dedos e olhando para as ocupantes do carro. Toni ficou ali estendida de
olhos abertos, diminuiu a respiração e se fingiu de morta. Os olhos da mãe
estavam abertos, mas ela estava viva porque dava para ouvir a respiração e
as ocasionais exclamações que ela soltava no seu coma ou fosse aquilo o
que fosse. O homem olhou para Toni, bem no fundo dos olhos dela, por
muito tempo — depois ela entendeu que ele estava tentando avaliar se ela
estava viva. É inimaginavelmente difícil estar olhando direto em frente e aí
alguém olhar direto para você e mesmo assim você parecer que não está
olhando de volta. (Foi isso que começou a história; David Wallace ou outra
pessoa tinha comentado que Toni Ware era medonha porque, mesmo não
sendo tímida nem evasiva e mantivesse contato visual, ela parecia estar
olhando os seus olhos e não nos seus olhos; era mais ou menos como um
peixe de aquário que passa por você enquanto você olha pelo vidro e
aqueles olhos olham de volta — você sabe que eles estão de alguma
maneira conscientes de você ali, mas é inquietante porque não tem nada a
ver com o jeito de um ser humano parecer consciente de você quando olha
nos seus olhos.)
Os olhos de Toni estavam abertos. Era tarde demais para fechar. Se
fechasse de repente, o homem ia saber que ela estava viva. Sua única
chance era parecer tão morta que o homem não fosse ir ver seu pulso ou
segurar um espelho na frente de sua boca para verificar. O que impediria de
ele ir ver era aqueles olhos estar abertos e ficarem abertos — nenhum ser
humano vivo conseguia manter os olhos abertos por longos períodos. Não
havia ninguém por ali; o homem tinha tempo de sobra para ficar olhando
pelo para-brisa e ver se elas estavam vivas. O rosto da mãe estava
espremido contra o dela, mas por sorte o sangue escorria em alguma curva
da garganta de Toni; se estivesse pingando em seus olhos, teria feito ela
piscar involuntariamente. Ficou imóvel daquele jeito, de olhos abertos. O
homem subiu na carroceria e testou a porta do lado do motorista, mas ela
estava trancada por dentro. O homem voltou e pegou algum tipo de
ferramenta ou pé de cabra e arrancou o para-brisa, sacudindo violentamente
a caminhonete. Ele se estendeu de lado no chão e se espremeu pela fresta do
para-brisa, olhando primeiro a mãe e depois a menina. A mãe gemeu e se
mexeu de leve, e o homem a matou estendendo a mão e fechando suas
narinas com uma mão e lhe tapando a boca com um trapo sujo de óleo que
tinha na outra, que apertou firme, tão firme que a cabeça da mãe empurrou
a lateral da de Toni enquanto ela inconscientemente resistia ao
sufocamento. Toni ficou ali, respirando raso, de olhos ainda abertos e a
meros centímetros dos olhos do homem enquanto ele sufocava sua mãe, o
que levou mais de quatro minutos de pressão para o homem ter certeza
absoluta. Toni encarando sem ver e sem piscar muito embora a secura e o
desconforto devam ter sido horrendos. E de alguma maneira ela convenceu
o homem de que estava morta, porque ele não apertou as narinas dela nem
usou o trapo sujo de óleo, embora isso só fosse lhe custar quatro ou cinco
minutos a mais… mas nenhum ser humano normal consegue ficar ali
parado de olhos abertos todo aquele tempo sem piscar, isso ele sabia. Então
ele pegou uma ou duas coisas de valor no porta-luvas e ela ouviu o tilintar
de sua subida de novo pela encosta, o som tremendamente poderoso do
motor do caminhão ligando e o caminhão partindo, e aí a menina ficou ali
presa entre a porta e a mãe morta pelo que devem ter sido várias horas antes
de alguém passar por acaso, ver o desastre e chamar a polícia, e aí
provavelmente outro longo período até eles a retirarem da caminhonete,
sem ferimentos em nenhum sentido real, e a colocarem em uma espécie de
ambulância de caridade…
PQP.
Portanto não mexa com essa menina; essa menina é chave de cadeia.
§ 46
O editor
§7 Sylvanshine quer desesperadamente entrar para a DIC — é por isso que
ele quer passar na prova para COC. Os membros da DIC precisam ser COCs,
exatamente como os do FBI precisam ser advogados. Sylvanshine
representando diante do espelho — “Parado aí! É o Tesouro Federal!”.
3 figuras no topo — Glendenning, um sujeito especial do RH de que
Glendenning precisa para encontrar analistas dotados de talentos, Lehrl.
Mas nós nunca os vemos, só seus assistentes e os funcionários que
preparam o terreno para eles.
§12 Stecyk é chamado por obra de Lehrl para ajudar a deixar os analistas
malucos.
§13 Predisposto é uma das palavras do IRS para o ato de colocar os analistas
num estado em que eles prestam o máximo de atenção às declarações.
nota de rodapé 34, a imagem do dragão sempre guarda algo de valor
inestimável. Esse outro menino jamais, em toda sua instrospecção e análise
infindável, concebeu os ataques como formas de chorar com todo o corpo e
nem mesmo como tristeza — pelo fim da infância, pelo ego cindido que a
sociedade exige, por quaisquer possíveis traumas e alienações. A repulsa
dos outros era uma vil projeção de seu segredo mais íntimo, que o dragão
tanto guardava quanto representava — ele desconhecia a piedade.
§24 Richard “Dick” Tate é o Diretor de Pessoal. Ned Stecyk é seu Vice-
Diretor. Tate se opõe a Lehrl e ao SCI porque quer poder, controle — não há
poder se houver menos funcionários vivos.
Glendenning é ineficiente — perdido numa névoa de idealismo cívico —
o CRA na verdade é basicamente administrado por Tate e Stecyk e pela
pessoa dos Sistemas de Informação.
Quando DW e Stecyk cruzam olhares no momento em que Stecyk acalma
o sujeito no escritório, uma expressão de tremenda compaixão e empatia se
espalha pelo rosto de Stecyk, basicamente por causa da pele hedionda de
DW. Stecyk assim vai procurar DW e tenta ser simpático com ele, imaginando
que ele foi evitado e traumatizado a vida toda. DW não gosta disso — sua
posição é de que se as pessoas forem rasas a ponto de considerar a pele de
alguém como a definição total de seu valor e de seu caráter, então que se
fodam; ele não precisa delas — mas está disposto a explorar a bondade de
Stecyk para conseguir diversas vantagens para si próprio.
David Wallace, depois de se acomodar ali, tem essa coisa de olhar pela
janela e ver, no outro prédio, mais de elite, alguém à janela trabalhando
num computador e olhando de volta para ele. Com óculos grossos. Seus
olhares se cruzam, mas eles nunca se encontram e nunca conversam.
Pacer azul-claro com adesivo de peixe. Esse carro é de Lane Dean — que
tem que correr como um alucinado de manhã porque vai à missa (ou Sheri,
sua mulher, é quem vai) bem cedinho, e sempre está a ponto de se atrasar
(Dean foi ficando menos fervorosamente cristão desde que começou a
trabalhar no CRA, enquanto Sheri ficou mais) — que fazia essa manobra
quase toda manhã.
§43 Não existe bomba. O que se revela é que uma carga de fertilizante à
base de nitrato foi o que alguém detonou. De novo, algo grande ameaça
acontecer, mas não chega a acontecer de fato.
Isso se torna um desastre — os scanners digitais passam a ser
considerados como possível substituição dos analistas — seus empregos se
veem ameaçados: disputa entre Drinion 1 um scanner é preparada.
***
Esqueleto embriônico:
2 Grandes arcos:
1. Prestar atenção, tédio, TDA, Máquinas vs pessoas na realização de
trabalhos repetitivos.
2. Ser um indivíduo vs ser parte de coisas maiores — pagar impostos, ser
“pistoleiro solitário” no IRS vs homem de equipe.
David Wallace desaparece depois de 100 pp.
Questão Central: Realismo, monotonia. A trama é uma série de
preparações para coisas que vão acontecer, sem que nada aconteça de fato.
STECYK?
Eu sou um bandido. Nunca fui outra coisa. Isso tem que ficar claro já de
cara. O mundo é um lugar abominável, uma fogueira que se consome
sozinha, todos contra todos. Duvido que você ignore isso — já que tem
tempo livre e os recursos para ler estas memórias — que você não tenha
chegado a uma aceitação sobre os fatos brutais da vida — de que a vida se
preserva a si mesma através da consumação de outras vidas. De que ou
você come ou vira comida. É uma lei que não foi feita por nenhum de nós,
até onde eu possa determinar.
Então fique sabendo: se você quiser conhecer a história bem
impressionante do Agente da Receita Shane Drinion, GS-13, Setor de
Auditorias Técnicas do IRS 44/42/04, você depende para essa história de
uma consciência narrativa limitada, de um homem de “ação” e não de
“ideias”, de uma consciência “vai-e-faz”, “automotivada”, “focada-em-
resultados”, “pragmática”, “mão-na-massa” (todos os termos entre aspas
vêm de várias Análises Anuais de Desempenho de supervisores tanto das
Cobranças quanto dos AI) que estava determinada, em primeiro e em último
lugar, a se preparar para conseguir o que quer, a agir antes de ouvir. Eu não
reflito muito: a reflexão paralisa. Pode surpreender um civil isto dele ficar
sabendo que a Receita necessita de bandidos, de homens de ação — você
pensa que o IRS se compõe de sujeitinhos cinzentos de gravata-borboleta, de
legiões dos que sofreram bullying na escola agora armados com a lei para
praticar bullying em você com uma precisão desprovida de humor. Existem
personalidades assim, algumas, nas Análises. Mas eu era das Cobranças.
Alguém, na hora do vamos ver, quando um contribuinte simplesmente se
recusava a pagar o que a Análise tinha estabelecido que ele devia ao Estado
— alguém tinha que ir lá pegar o dinheiro. Bandidos. Homens de ação. Do
lado da lei — atrás da lei.
Eu poderia contar a minha própria história. Eu não vou fazer isso. Você
me conhece. Na infância eu tinha “cólicas”, me alimentava de maneira tão
voraz que a minha mãe me desmamou cedo para se salvar. Mais tarde tive
“déficits de controle de impulsos” e “podia melhorar” tanto em “resolução
de conflitos” quando nas minhas “capacidades de dividir coisas”. Quando
criança, eu era um valentão. Eu tinha seguidores como todo valentão tem
seguidores — mantidos pelo medo de serem o próximo, por desprezo a
mim, escravizados pela linha que eu traçava entre os de Dentro e os de
Fora, entre quem comia e quem era comida. Eu ridicularizava nomes
incomuns e infortúnios de rosto e corpo. Pequenas extorsões, humilhações
na cantina, surras no parquinho que acabavam quase ao mesmo tempo que
começavam — as lágrimas da vítima depois da primeira pancada, lágrimas
vistas e apontadas por todos, eram sua derrota, minha comida: eu entendia
isso. No primário, as avaliações dos professores me classificavam como
“perturbado” ou “com baixa autoestima” ou “com tendência a reagir”. Eu
não era nada disso. O que eu era era presciente da minha compreensão do
mundo, que não tinha nada a ver com as histórias e os gráficos que eles me
ensinavam em salas de lâmpadas fluorescentes. Eu não era desprovido de
inteligência pragmática — compreendia a economia do poder. Era um bom
atleta e não tinha piedade de quem não era.
Eu era ameaçador. Eu fui, desde o primeiro dia do ensino médio, um
bandido. Ameaçador. Alguém com quem era melhor não mexer. Os alunos
do segundo e até do terceiro ano aquiesciam aos meus desejos ou pelo
menos me evitavam; alguns bandidos de classe mais alta e eu simplesmente
nos excluíamos da nossa atenção, uma tensa neutralidade que compunha
uma espécie de tácito respeito mútuo. Eu não era um cara enorme, ou
anormalmente forte, nem um desses psicóticos que mais tarde viemos a
conhecer, que não têm nenhum senso de autoproteção e que depois de
provocados simplesmente não se detêm, absorvendo violências horrendas
sem se importar, querendo apenas causar dor, o tipo que morde ou usa um
cano de chumbo, o tipo que acaba na cadeia e não consegue lembrar direito
os detalhes do que fez quando estava enfurecido. Esses não são bandidos.
Esses são psicóticos, escravos da sua própria fúria — eles viram vítimas,
encarcerados ou desempregados, surtados, fora dos círculos do poder.
Essa não é a minha história. Eu estou te falando de mim só pra você
poder conhecer a sensibilidade através da qual se media a história do Setor
Técnico 44-04. Eu te devo isso. Eu não me importo muito se você gosta ou
não de mim — eu mesmo não gosto de narradores que se preocupam
principalmente em saber se as pessoas gostam deles ou se eles são
narradores inteligentes. A linguagem e as observações empetecadas e a
diversão à custa dos personagens da história — elas são todas
exibicionismo, a forma mais baixa de manipulação. Mas eu te devo, acho
— já que entramos nessa juntos — uma parte suficiente de mim pra você
entender com quem e com o que está falando. Se isso pode ou não
comprometer certa intensidade dramática ou certa “realidade” que algumas
histórias usam pra manter o controle do ouvinte, nada mais justo. Eu não
deixo de ter interesse em controlar. Mas existem tipos diferentes. Nada me
parece mais justo.
Todas as burocracias são microcosmos do mundo. Como tais elas se
compõem dos dois tipos que existem no mundo, os devoradores e a comida.
Pessoas abstratas vs homens de ação.
Essa história é cheia de segredos. Lá vai um. É pra meninos, portanto é
tarde demais para você usar. O segredo de ser um bandido; o segredo de ser
fisicamente ameaçador: disposição pra agir. Nada de tamanho nem de
habilidade. Disposição permanente pra agir. Alergia à abstração. Um gatilho
levíssimo e controlado logo atrás dos olhos. Toma pancada — bate de volta:
automática, imediatamente. Sem mais demora do que a que existe na mão
que se afasta do forno quente. Você não pensa. Você não fica ali tentando se
conformar com o fato de que acabou de levar uma pancada. Você bate de
volta. Ou bate primeiro. Entre o impulso e a ação há apenas nervos
espinhais e feixes musculares de resposta rápida. Não é uma vida da mente.
Esta cena com Claude Sylvanshine e Charles Lehrl morando juntos não
se alinha com os detalhes do personagem Merrill Errol Lehrl no restante do
livro. Mas sua evocação de uma infância na Peoria semirrural acrescenta
dados à imagem da cidade que se constrói em outros momentos.
Charles Lehrl cresceu não em Peoria mas em Decatur, ali pertinho, terra
da Archer Dentists Midland e segundo Lehrl uma cidade de uma miséria e
de um abandono tão desinteressantes e incessantes que os peorianos
apontam com legítimo orgulho o fracasso de sua cidade em ser tão ruim
quanto Decatur, cujo ar fede ou a processamento de carne suína ou a milho
queimado dependendo do vento, e cuja classe aristocrática se distinguia por
mascar chiclete com os dentes da frente. A narrativa de Lehrl era que ele
tinha crescido em um trailer cor de fruta podre em frente a uma vala de
drenagem ao lado da Self-Storage Parkway, uma ramificação da rodovia
interestadual que um dia construíram para uma subsidiária da A. E. Staley
que fechou quando o mercado de barriga de porco estagnou completamente
e agora era lar de mosquitos, cladóforas, sorgo selvagem e de uma
abundância de ervas daninhas hipertróficas em consequência dos
fertilizantes nitrogenados em que se dissolviam os animais domésticos do
verão. //O que impediu seu pai de se tornar um alcoólatra de fato foi que ser
um alcoólatra de fato daria muito trabalho. O sr. e a sra. Lehrl não apenas
permitiam como ainda encorajavam as crianças a brincar na estrada. Os
únicos negócios ainda abertos na vizinhança eram os 3,4 acres de unidades
de armazenamento U-Lock It e uma pequena graxaria que era de uma
grande família de albinos que parecia crescer constantemente sem nenhuma
espécie de renovação genética não albina e que mesmo sendo composta de
oitenta e sete pessoas não conseguia lidar com mais de um animal por vez.
O sr. Lehrl passou a maior parte da infância de Charles deitado no sofá com
o braço sobre os olhos. Lehrl falava de Decatur no verão como se tivesse
crescido suspenso no ar: as planícies enflaneladas e os alfabetos de canos de
irrigação instalados nos campos de soja — Peoria, Lake James e Pekin eram
milho, Decatur e Springfield, soja para os japoneses —, campos que
chiavam estrídulos, céus azuis cremosos e encobertos intocados pelas
chaminés da ADM cujo produto era invisível mas perceptível ao olfato e,
segundo os boatos, inflamável, mosquitos que surgiam como um único
corpo do sistema de valas ao pôr do sol — e detalhava o ponto alto desses
dias de verão, que consistia de Lehrl, seu irmão e sua irmãzinha bem
pequena vencendo valas e cercas e atravessando a Self-Storage Parkway
para escalar o suporte da placa de um restaurante Big Boy e espiar pelo
buraco que era o incisor esquerdo do ícone do Big Boy (um grande menino
sorridente num copo de lanchonete, segurando uma bandeja) para ficar
vendo a vaca ou o porco solitários da graxaria, ali acorrentados sobre o
capim enquanto quatro ou mais das crianças albinas ensandecidas
arremessavam pedras e cacos de vidro no bicho até que algum sistema lá
dentro estivesse preparado e o animal fosse levado para um curral que
parecia uma calha e ficava cercado pelos dois lados por diversos albinos
mais velhos trepados em blocos de concreto com martelos e rifles de
pequeno calibre, quando então Lehrl, seu irmão e sua irmã desciam e
tentavam atravessar de volta a via expressa para brincar na rua que ficava
na frente do trailer deles. Muitas vezes Lehrl, que tinha crescido não em
Decatur mas em Chadwick, uma confortável cidade-dormitório pertinho de
Springfield onde seu pai era funcionário do financeiro da Comissão de
Tráfego e Estradas de Rodagem e sua mãe estava no quinto mandato como
Notária Municipal, gostava de evocar sua infância enquanto ele e
Sylvanshine relaxavam cada um com sua lager Dorfmurderer Onion durante
a meia hora (10h40-11h10) de relaxamento de Lehrl antes dele se preparar
para ir dormir, e Sylvanshine gostava de ficar ouvindo, interrompendo
apenas para fazer pequenas perguntas ou manifestar espanto nos momentos
adequados, até porque gerava nele uma espécie de ternura o fato de algo
manifesto mas inexprimível na hidráulica do sorriso de Lehrl deixar tão
paternalmente claro quando o que ele estava dizendo não era literalmente
verdade. Havia uma imensa quantidade de pequenas variáveis e
compensações que equilibravam a dinâmica dos dois, uma espécie de
complexa congruência de caixa-e-espiga entre seus ativos e passivos
enquanto homens e faixas etárias, e, embora Sylvanshine nunca tivesse se
dado conta disso de maneira consciente, era um dos motivos deles terem se
tornado tão amigos e de preferirem tão marcadamente a companhia um do
outro à de quaisquer outras pessoas, que lá na Filadélfia tinham decidido
morar juntos, apesar das aparências e das consequências dessas aparências a
que a decisão os sujeitou. Era por Lehrl ser ambicioso mas não de maneira
convencional que ele sugeriu essa solução, e Sylvanshine seria forçado a
admitir que a inconvencionalidade da ambição de Lehrl e o estranho caráter
de autodestruição de muitas de suas decisões profissionais — malgrado seu
extraordinário talento acadêmico e suas avaliações inalteravelmente altas
por todos os DDs dos lugares em que esteve lotado, Charles Lehrl ainda era
G-2 e pra dizer a verdade subordinado em nível funcional a muitas pessoas
que ele supervisionava — eram um grande mecanismo — e uma ternura —
que nivelava as coisas, já que a carreira do próprio Sylvanshine não estava
exatamente indo rápido, se bem que quando ele passasse na prova para COC,
como com certeza passaria, também seria promovido a G-2 e poderia ao
menos pagar exatamente metade das despesas comuns dos dois, uma
igualdade com que Sylvanshine sonhava ali sentado sozinho com seu
chinelo de couro e robe xadrez, esperando que o inevitável terceiro xixi que
cada cerveja representava ganhasse corpo e fosse eliminado para ele poder
ir dormir sem se preocupar em ter que levantar de novo bem quando suas
ideias fossem ficando pictóricas e de associação mais livre e muitas vezes
matizadas de sépia ou até com uma espécie de filtro visual
salmão/amarelado, o que costumava ser sinal de que ele estava de fato
caindo no sono e não meramente se iludindo por medo da insônia e pelo
medo terrível do que a privação de sono faria com seu estado de alerta e de
concentração no dia seguinte. Há muito pouco espaço em qualquer ramo da
contabilidade para imprecisão, lentidão ou qualquer tipo de abstração de
faculdades ou no enfoque dos problemas em pauta. É a busca por uma
atenção escrupulosa e por clareza e precisão metálicas. Isso pelo menos
Sylvanshine sabia com certeza.
Esta seção, ambientada num refeitório, mostra Sylvanshine observando
vários personagens que não são vistos em lugar nenhum do romance. Sua
discussão obsessiva das minúcias de um projeto muito complexo se
interrompe de maneira abrupta, e os personagens e o projeto nunca mais
reaparecem.
§ 9
1. Fato pouco conhecido: os únicos cidadãos dos Estados Unidos cujos números de seguro social
começam com o algarismo 9 são aqueles que são, ou em algum momento foram, funcionários
contratados do Internal Revenue Service, o IRS. Através de sua relação especial com a Administração
de Seguridade Social, o IRS te emite um novo número de SS no dia em que começa o seu contrato. É
como se você nascesse de novo, SS-mente, quando entra para o Serviço. Pouquíssimos cidadãos
comuns sabem disso. Eles não têm por que saber. Mas pense no seu próprio número de Seguro Social
ou no das pessoas próximas a você a ponto de te confiarem o SS delas. Há apenas um dígito com que
esses números de SS nunca começam. O número é 9. O 9 fica reservado para o Serviço. E se você
recebe um desses ele fica com você o resto da vida, mesmo se por acaso você tiver saído do IRS há
muito tempo. Ele meio que te marca numericamente. Todo mês de abril — e trimestralmente, claro,
para os que são autônomos e pagam ESTs trimestrais — as declarações de renda e os ESTs de
declarantes cujos SSs começam com 9 são automaticamente retirados e passam por um regime
especial de processamento e análise no Centro de Computação de Martinsburg. O seu status no
sistema fica eternamente alterado. O Serviço reconhece os seus, sempre.
2. Trata-se de uma expressão convencionada juridicamente; o que de fato eu quero dizer é que tudo
que cerca este Prefácio é essencialmente verdade. O Prefácio ter sido movido 79 páginas para dentro
do texto é algo que se deve a mais um espasmo de cautela de última hora do editor, coisa que fica
mais esclarecida mais abaixo.
3. Por conselho de seu departamento jurídico, a editora declinou de ser mencionada pelo nome neste
Prefácio do Autor, apesar de que qualquer um que olhe para a lombada ou a capa do livro vá saber
imediatamente qual é a empresa. O que significa que se trata de uma restrição irracional; mas vá lá.
Como os meus próprios representantes legais observaram, advogados corporativos não são pagos
para ser totalmente racionais, mas são pagos para ser totalmente cautelosos. E não é difícil ver por
que uma empresa oficialmente registrada nos EUA como a editora deste livro fosse tomar cuidado
com a mera possibilidade de parecer estar metendo a colher nas questões do Internal Revenue System
ou (isso vem de um dos primeiros e mais histéricos memorandos do Jurídico) parecer estar
“aquiescendo” com a violação por parte de um autor do Termo de Confidencialidade que todos os
funcionários do Tesouro precisam assinar. Entretanto — como meu advogado e eu tivemos que
lembrar a eles umas 105 vezes antes que o Jurídico da empresa parecesse sacar —, a versão do
Termo de Confidencialidade que se aplica a todos os funcionários do Tesouro, e não só aos agentes
do Bureau de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo e do Serviço Secreto, como anteriormente, foi
promulgada em 1987, que por acaso foi o primeiro ano em que computadores e uma fórmula
estatística poderosíssima conhecida como Anada (para “Auditar/Não Auditar Declarações
Anexadas”) foram usados pela primeira vez para a análise de quase todas as declarações de renda de
pessoas físicas nos Estados Unidos. Sei que se trata de uma carrada de informações confusas e bem
enroladas pra eu jogar assim em cima de você num mero Prefácio, mas o cerne da questão aqui é que
é o Anada(a) e os elementos constituintes da sua fórmula para determinar quais declarações têm mais
probabilidade de gerar receita adicional quando auditadas, que o Serviço se preocupa em proteger, e
que foi por isso que o Termo de Confidencialidade foi repentinamente estendido aos funcionários do
IRS em 1987. Mas eu já tinha saído do Serviço em 1987. A pior parte de certas dificuldades pessoais
já tinha passado, e a minha transferência para outra universidade tinha sido aceita, e no outono de
1986 eu estava de volta à Costa Leste e mais uma vez ativo no setor privado, apesar é claro de ainda
estar com meu novo número de SS. Toda a minha carreira no IRS foi entre maio de 1985 e junho de
1986. Daí minha isenção do Termo. Isso sem nem mencionar que eu mal estava em posição de saber
qualquer coisa comprometedora ou específica a respeito do Anada. O meu posto de trabalho era
totalmente humilde e regional. Durante quase todo o meu tempo lá, fui analista moleza, ou seja, um
“fraldinha” na nomenclatura do Serviço. Meu nível como funcionário público contratado era GS-9, o
que na época era o nível mais baixo dos funcionários em tempo integral; havia secretárias e zeladores
que eram meus superiores hierárquicos. E fiquei lotado em Peoria IL, o que é praticamente o mais
distante que se possa imaginar do 666 e do Centro de Martinsburg. É bem verdade, ao mesmo tempo
— e isto foi o que causou mais preocupações ao Jurídico da empresa —, que Peoria era um CRA, um
dos sete eixos de organização da Divisão de Análise do IRS, que foi exatamente a divisão a ser
eliminada ou, mais precisamente (apesar de isto ser discutível), transferida do Setor de Adimplência
para o recém-expandido Setor Técnico, com o advento do Anada e de uma rede Fornix digital. Isso é
o tipo esotérico e descontextualizado de informações referentes ao Serviço que eu não esperava ter
que pedir para você engolir assim de cara, e posso te garantir que tudo isso acaba sendo explicado
e/ou glosado em termos muito mais agradáveis e dramaticamente adequados no livro de memórias
propriamente dito, assim que ele embalar. Por enquanto, só para você não ficar totalmente
assoberbado e entediado, digamos apenas que Análises é a divisão do IRS encarregada de passar um
pente-fino geral em vários tipos de declarações de renda e de classificar algumas como “20s”, que é
terminologia do Serviço para as declarações que têm de ser encaminhadas para o escritório distrital
relevante, para auditoria. As auditorias propriamente ditas são conduzidas por agentes da Receita que
são normalmente GS-9 ou 11, e funcionários da Divisão de Auditoria. É difícil expor tudo isso suave
ou agradavelmente — e por favor, saiba que nenhuma dessas informações mais abstratas é vital para
a missão desse Prefácio. Então fique à vontade para pular um trecho ou só passar os olhos pelo que
segue, se quiser. E não pense que o livro inteiro vai ser assim, porque não vai. Se você estiver
loucamente interessado, no entanto, cada declaração de renda pescada, por qual-/quaisquer razão/-ões
(algumas delas inteligentes e prescientes e outras, francamente, piradas e ocultas, dependendo do
fraldinha), por um analista de rotina e encaminhada para auditoria deveria ser acompanhada por um
Memorando Interno Série 20 do IRS, que é de onde vem o termo “20”. Como a maioria das agências
insulares e (sejamos francos) desprezadas do governo federal, o Serviço fervilha de jargões especiais
e códigos que parecem de início incompreensíveis mas que acabam sendo internalizados tão rápido e
usados com tanta frequência que quase viram um hábito. Às vezes eu ainda sonho em servicês. Para
voltar à questão central, no entanto, Análises e Auditorias eram duas das divisões principais do Setor
de Adimplência do IRS, e a preocupação do departamento Jurídico da editora era que o Jurídico do
próprio IRS viesse, caso eles ficassem suficientemente ofendidos e quisessem criar problema com
aquela coisa do Termo de Confidencialidade, a argumentar que eu e vários colegas e administradores
do Posto 047 do CRA que fazemos parte dessa história deveríamos ser incluídos retroativamente nas
provisões do Termo de Confidencialidade, porque éramos não apenas funcionários do Setor de
Adimplência mas ainda estávamos lotados no CRA que veio a ter papel de tanto destaque nos
momentos que antecederam o que ficou conhecido seja como “O Novo IRS”, seja como “a Iniciativa
Spackman”, ou simplesmente como “a Iniciativa”, que foi ostensivamente algo criado pelo Ato de
Reforma Fiscal de 1986 mas que na verdade era resultado de uma longa e complicadíssima briguinha
burocrática entre o Setor de Adimplência e o setor Técnico a respeito das Análises e da função de
análise nas operações do IRS. Fim da carrada de dados. Se você ainda está lendo, espero que pelo
menos parte significativa disso tudo tenha feito sentido para você ao menos entender por que a
questão de eu dizer explicitamente ou não o nome da editora não foi algo com que decidi gastar
muito tempo e boa vontade editorial. Você meio que tem que deixar algumas coisas passarem, nisso
de escrever não ficção.
(*) Aliás, é sério isso do nome da fórmula. Será que os estatísticos do Setor Técnico tinham
consciência de estar dando ao algoritmo um acrônimo tão pesado, de sonoridade quase tanatoide?
Parece duvidoso, na verdade. Como montes de americanos hoje em dia sabem, programas de
computador são total e enlouquecedoramente literais e não conotativos; e o pessoal do Setor
Técnico também era.
5. Este último caso é um bom exemplo do tipo de coisa que deixava o pessoal do Jurídico da editora
numa total piração obsessivo-cautelosa. Nem sempre as pessoas entendem a seriedade com que as
grandes empresas americanas recebem até mesmo a ameaça de um processo. Como acabei
percebendo, não se trata nem mesmo de uma questão de saber se a editora perderia nos tribunais; o
que realmente incomoda esse pessoal é o custo da defesa e o efeito desses custos nas franquias dos
seguros da empresa, que já são uma grande despesa operacional. Problemas jurídicos, em outras
palavras, são uma questão de lucro; e é melhor que o editor ou o departamento jurídico que acabarem
expondo uma editora a possíveis problemas legais consiga demonstrar ao presidente da empresa que
todo mínimo gesto razoável de cautela e prudência foi executado quanto ao manuscrito, para que não
acabe usando o que nós nas Análises chamávamos de “capacete marrom”. Ao mesmo tempo, não é
justo atribuir cada mudançazinha e cada desvio tático aqui ao editor. Eu (ou seja, de novo, o humano
real David Wallace) também tenho medo de tribunais. Como muitos americanos, fui processado —
duas vezes, na verdade, apesar de os dois processos terem sido ações sem mérito e de um deles ter
sido considerado de má-fé ainda antes de eu prestar depoimento — e sei o que muitos de nós
sabemos: brigar na Justiça não é divertido, e bem vale gastar tempo e se dar ao trabalho de evitar essa
possibilidade sempre que der. Fora, é claro, que pairava por todo o processo de revisão e
acautelamento de O rei pálido a sombra do Serviço, que ninguém em sua sã consciência jamais
sequer sonharia em querer irritar desnecessariamente ou até em chamar a atenção, já que o Serviço,
como os processos cíveis, pode fazer a sua vida virar uma desgraça sem nem te arrancar uma
moedinha a mais.
8. O emprego desse termo vago pretende designar a reconstrução dramatizada de uma ocorrência
empiricamente real. Trata-se de uma ferramenta moderna comum e totalmente respeitável usada tanto
no cinema (q. v. A tênue linha da morte, Forrest Gump, JFK) quanto na literatura (q. v. A sangue
frio, de Truman Capote, A nave da revolta, de Wouk, Zumbi, de Oates, O emblema rubro da
coragem, de Crane, Os eleitos, de Wolfe &c. &c.).
9. A principal forma de se perceber que os acordos são diferentes vem das reações que temos quando
eles são desrespeitados. A sensação de traição ou infidelidade que o leitor tem quando descobre que
um texto aparentemente de não ficção tem partes inventadas (como se revelou em alguns escândalos
literários recentes, e. g. O pássaro pintado, de Kosinski, ou aquele infame livro de Carcaterra) se
deve ao fato de os termos do acordo da não ficção terem sido violados. É claro que existem formas de
entre aspas enganar o leitor na ficção também, mas elas tendem a ser mais técnicas, ou seja,
pertencentes à estrutura interna das regras formais da própria história (cf., p. ex., o narrador em
primeira pessoa do romance policial que só revela que na verdade o assassino é ele na última página,
apesar de obviamente saber disso o tempo todo e ter escondido a informação só pra zoar com a
gente), e o leitor tende a se sentir mais esteticamente desiludido que pessoalmente sacaneado.
10. Mil perdões pela sentença anterior, que é resultado de muita discussão e de muitas concessões à
equipe jurídica da editora.
11. (que, caso você queira saber, não era tema de aulas formais naquela época)
13. O terceiro ano, aliás, era quando muitos dos outros, mais privilegiados, alunos da universidade,
inclusive vários que tinham sido meus clientes, estavam gozando do seu tradicional “semestre no
exterior” em lugares como Cambridge e a Sorbonne. Só pra constar. Não há nenhuma expectativa de
que você fique torcendo as mãos por causa de alguma hipocrisia ou injustiça que possa discernir
neste estado de coisas. De forma nenhuma este Prefácio é uma tentativa de conquistar a sua simpatia.
Fora que agora já são tudo águas passadas, obviamente.
14. (mas tremendamente improvável, dada a preocupação da universidade com a sua reputação e RP)
15. Desculpa essa frase. A verdade é que essa situação toda de armário-da-fraternidade-e-
necessidade-de-bode-expiatório-pra-um-escândalo-fora-de-controle ainda me deixa às vezes meio
emocionalmente acelerado. Dois fatos podem tornar mais compreensível a durabilidade dessas
emoções: (a) dos cinco alunos que o Conselho-J descobriu que ou compraram as monografias ou as
plagiaram dos que tinham comprado, dois acabaram se formando com louvor e distinção e (b) um
terceiro agora faz parte do Conselho Administrativo da universidade. Só vou deixar assim, como
fatos brutos, pra você tirar suas próprias conclusões a respeito de toda essa história mesquinha.
Mendacem memorem esse oportet. [Para ser mentiroso é preciso ter boa memória].
16. E por favor desculpe todos esses subterfúgios. Dados os possíveis constrangimentos famílio-
jurídicos detalhados logo abaixo, esse tipo de antiexplicação é a única maneira que me é permissível
de evitar que toda a coisa da minha presença em um Posto 047 do IRS vire um vazio imenso, não
explicado e não motivado, o que em certos tipos de ficção de repente tudo bem (tecnicamente), mas
num livro de memórias constituiria uma violação profunda e essencial do acordo.
19. A palavra burocracia aqui vai não obstante o fato de que parte do espírito que levou a toda aquela
coisa do “Novo IRS” era uma mentalidade cada vez mais anti ou pós-burocrática tanto da Besta
quanto do Regional. Veja, só pra dar um exemplo, este trechinho de uma entrevista com o sr. Donald
Jones, um GS-13 Líder de Equipe do grupo das Gordas do CRA Meio-Oeste entre 1984 e 1990:
Talvez fosse útil definir burocracia. O termo. O nosso assunto. Eles disseram que era pra você ir
olhar no dicionário. Administração caracterizada pela autoridade difusa e pela adesão a regras
inflexíveis de operação, fecha aspas. Regras inflexíveis de operação. Um sistema administrativo
em que a necessidade ou o desejo de seguir procedimentos complexos impede a ação efetiva, fecha
aspas. Eles tinham transparências da definição que eles projetavam na parede durante as reuniões.
Eles disseram que mandavam todo mundo recitar as definições quase como um tipo de catequese.
O que significa, em termos discursivos, que esses anos em questão aqui viram uma das maiores
burocracias de qualquer lugar passar por uma convulsão em que ela tentava se reconceber como uma
não- ou até como uma antiburocracia, o que assim de cara pode soar como só mais uma loucurinha
burocrática. A bem da verdade, foi de dar medo; era como ver uma máquina imensa ganhar
consciência e começar a pensar e sentir como um ser humano real. O terror de filmes coetâneos como
O exterminador do futuro e Blade Runner se baseava justamente nessa premissa... mas claro que no
caso do Serviço as convulsões e suas consequências, ainda que mais difusas e nada dramáticas,
tiveram um impacto efetivo na vida dos americanos.
N.B. que o “eles” do sr. Jones se refere a certas figuras alto nível que eram expoentes da assim
chamada “Iniciativa”, que seria totalmente não prático aqui tentar explicar em termos abstratos (se
bem que cf. Item 951 458 221 do §14, Documentário com Entrevistas, que consiste de uma longa e
provavelmente não idealmente centrada versão de uma explicação como essa, fornecida pelo sr.
Kenneth [“Meio que assim”] Hindle, um dos fraldinhas mais antigos do grupo moleza onde acabei
[depois de um monte de confusões e trapalhadas iniciais] sendo lotado), a não ser pra dizer que a
única figura dessas que alguém do nosso nível baixo jamais chegou a ver de perto foi M. E. Lehrl do
Setor Técnico e a sua estranha equipe de intuitivos e efebos do oculto, que tinham a tarefa (viemos a
saber) de implementar a Iniciativa em tudo que se referia às Análises. Se isso não faz o menor
sentido a esta altura, por favor nem se preocupe. Tive várias dúvidas sobre o que explicar aqui versus
o que deixar se desenrolar de forma mais natural e dramática nas memórias propriamente ditas.
Acabei decidindo oferecer certas explicações rápidas e potencialmente confusas, apostando que se
elas forem obscuras ou barrocas demais agora, você simplesmente não vai prestar muita atenção, o
que, de novo, faço questão de te garantir que súper tudo bem.
20. Caso você esteja interessado, o termo se refere a um pagamento adiantado e não reembolsável
feito com base numa projeção dos direitos autorais (numa escala progressiva que vai de 7,5% a 15%
do preço de capa) sobre as vendas de um livro. Como é difícil prever as vendas reais, é do interesse
financeiro do autor receber o maior adiantamento possível, mesmo que o pagamento de uma bolada
possa criar problemas fiscais pro ano em que a renda entrou (em grande medida pelo fato de o Ato de
Reforma Fiscal de 1986 ter eliminado o recurso à média da renda). E porque, de novo, a previsão de
vendas não é uma ciência exata, o tamanho do adiantamento imediato que uma editora se dispõe a
pagar ao autor em troca dos direitos de um livro é a melhor indicação tangível da disposição do editor
de “trabalhar” aquele livro, este último termo se referindo a tudo que vai desde o número de
exemplares impressos até o tamanho do orçamento de marketing. Esse trabalho é praticamente a
única maneira de um livro ganhar a atenção de um público massificado e garantir vendas
significativas — gostando você ou não, é essa a realidade comercial de hoje.
21. Aos quarenta anos, artista ou não, a realidade é que só um mané imprudente deixaria de começar
a poupar e investir pra uma eventual aposentadoria, especialmente nessa era de planos de previdência
tipo IRA e SEP-IRA, com desconto no Imposto de Renda e tetos de isenção anual generosos —
extraespecialmente se você pode abrir um pequeno negócio e deixar a empresa fazer uma
contribuição anual adicional, acima ainda do seu plano, como “benefício” pago ao “funcionário”,
isentando assim aquela quantia extra da sua renda tributável. As leis fiscais de hoje são praticamente
escritas nas coxas, implorando que os americanos de nível econômico mais alto tirem vantagem
dessa brecha. O truque, claro, é ganhar o bastante pra ser classificado como americano de nível
econômico mais alto — Deos fortioribus adesse [Os deuses favorecem os mais fortes].
22. (Apesar de sua celebridade e prosperidade repentinas eu ainda, quase quatro anos depois, espero
pelo pagamento do empréstimo feito a esse escritor cujo nome não será evocado e a quem me refiro
não por mimimi nem por vingança, mas meramente como uma pequena parte da minha situação
financeira enquanto motivação.)
24. (atitudes que não são de todo injustificadas, dada a hostilidade que os contribuintes nutrem pelo
Serviço, o hábito dos políticos de falar mal da agência para ganharem pontos populistas &c.)
25. Estou razoavelmente seguro de que sou o único americano vivo que de fato leu todos esses
arquivos do começo ao fim. Não sei se consigo explicar como eu fiz uma coisa dessas. O sr. Chris
Acquistipace, um dos GS-11 Líderes de Mesa no nosso grupo de Análise Moleza e pessoa de não
pouca intuição e sensibilidade, propôs uma analogia entre os registros públicos que cercam a
Iniciativa e os gigantescos budas de ouro maciço que ladeavam alguns templos no antigo Khmer.
Essas estátuas de valor inestimável, jamais vigiadas nem protegidas, estavam a salvo de roubo não
apesar de mas por causa de seu valor — eram imensas e pesadas demais para alguém removê-las dali.
Algo nisso me consolava.
2. No sentido clínico, ele estava lutando para re-reprimir uma verdade que para começo de conversa
tinha ficado reprimida demais, confinamento este que lhe havia conferido energia psíquica demais
para que, depois que o espelho tivesse estourado (por assim dizer), ela pudesse ser ativamente
empurrada para fora da consciência. A consciência das coisas simplesmente não funciona assim.
3. Principalmente não acontecia quando ele estava sozinho no banheiro do andar de cima, tentando
fazer um ataque acontecer para que pudesse se examinar diante do espelho e ver com os próprios
olhos, de modo objetivo, quanto aquilo parecia feio e óbvio visto de vários ângulos, e de que
distância era visível. Ele esperava, e em algum canto escondido acreditava que de repente aquilo não
fosse tão óbvio ou não tivesse um aspecto tão bizarro quanto ele sempre temia que tivesse durante
um ataque real, mas nunca conseguia analisar porque nunca conseguia fazer um ataque de verdade
acontecer quando queria, só quando não queria de forma alguma, de forma alguma.
4. O sobrenome desse menino, que era Cusk, o deixava bem perto da frente nas aulas que tinham
lugares marcados.
2. Naquela época, Lake James era algo entre um subúrbio e uma cidade independente da Peoria
metropolitana. O mesmo é verdade sobre outras comunidades próximas, como Peoria Heights,
Bartonville, Sicklied Ore, Eunice &c., sendo que estas duas últimas faziam fronteira com Lake James
ao longo de certas regiões não urbanizadas a leste e oeste. A coisa toda desses distritos-separados-
mas-interligados tinha a ver com a inexorável expansão da cidade e sua anexação da rica terra
agricultável à sua volta, o que com o tempo levou certas comunidades agrícolas pequenas e
anteriormente isoladas a entrarem na órbita de Peoria. Eu sei que cada uma dessas cidadezinhas-
satélites tinha sua própria estrutura de impostos territoriais e sua própria autoridade de zoneamento
urbano, mas em muitos outros campos (p. ex., proteção policial) elas funcionavam como distritos
suburbanos da Peoria propriamente dita. A coisa toda podia ser extremamente embrulhada e confusa.
Por exemplo, o endereço da fachada do Centro Regional de Análise estava registrado como Self-
Storage Parkway, 10 047, Lake James, IL, enquanto o endereço postal oficial do CRA era “Centro de
Análise do Serviço de Renda Interna, Peoria IL 67 452”. Isso pode ser porque a agência dos Correios
na região central de Peoria, na G Street, tinha toda uma área separada com três caixas postais pro
CRA, no entanto, além de um par de bitrens especiais que saíam da ruela fechada dos fundos três
vezes por dia pra ir até as docas de descarga do CRA atrás do Anexo, ou seja, pode ser que o endereço
postal fosse de Peoria simplesmente porque era pra lá que a montanha diária de correspondência ia de
fato. Ou seja, pode ter sido mais uma questão da relação entre o Serviço Postal dos Estados Unidos e
o IRS do que qualquer outra coisa. Como tantas outras características do IRS e do Serviço, a resposta
pra essa questão da incongruência de locação-física & -postal é sem sombra de dúvida incrivelmente
complicada e idiossincrática e pra ser desemaranhada e efetivamente compreendida seria preciso
mais tempo e energia do que qualquer pessoa boa da cabeça estaria disposta a gastar. Outro exemplo:
A coisa realmente relevante e representativa a respeito de Lake James enquanto cidade é que apesar
de ela ter a palavra “lago” no nome, não tem lago nenhum lá. Existe, a bem da verdade, um corpo de
água chamado lago James, mas objetivamente aquilo está mais pra uma grande poça fétida, entupida
de algas por causa do agrochorume, coisa de quase vinte quilômetros a noroeste de Lake James
propriamente dito, mais perto de Anthony Illinois, cidade que na verdade é separada de Peoria e tem
seu próprio CEP &c. &c. … Em outras palavras, incongruências como essas são complexas e
desorientadoras, mas no fundo nem são tão importantes a não ser que você esteja imerso nas
minúcias geográficas de Peoria (possibilidade que eu decidi que posso supor com segurança ser bem
remota).
3. N.B.: Não vou ser desses memorialistas que fingem que lembram tudo quanto é fato e tudo quanto
é coisa com detalhes fotorrealistas. A mente humana não funciona desse jeito, e todo mundo sabe; é
um artificialismo insultante num gênero que pretende ser 100% “realista”. Pra falar a verdade, acho
que você merece coisa melhor e que você tem inteligência suficiente pra compreender e quem sabe
até aplaudir quando o autor de suas memórias tem a integridade de admitir que não é algum monstro
eidético. Ao mesmo tempo, não vou ficar perdendo tempo me enrolando com qualquer buraquinho e
qualquer imprecisão na minha própria memória, coisa cujos riscos ficam muito bem ilustrados no
solilóquio vocacional do “Irrelevante” Chris Fogle (cf. §22 supra, que ainda foi violentamente
editado e recortado) como parte da debacle do abortivo documentário fajuto de
recrutamento/motivacional da Divisão de Pessoal em 1984, que acabou sendo uma debacle em parte
porque Fogle e outros dois ou três tagarelas mais fominhas ocuparam tanto filme e tanto tempo, e
porque o sr. Tate deixou de mandar seu representante, o sr. Stecyk, atribuir a alguém in loco a
responsabilidade de manter a resposta das pessoas à “pergunta do documentário” abaixo de um certo
teto de sanidade, o que significou que o suposto “documentarista” e sua equipe tiveram todo
incentivo do mundo para deixar Fogle & cia. mandarem ver enquanto eles ficavam lá olhando o
vazio e calculando o total atualizado das horas extras acumuladas que estavam embolsando. A coisa
toda, apesar de seu óbvio valor documental, foi evidentemente uma merdarada sem fim, uma das
muitas que o Tate provocou quando se deixou levar pelos seus surtos mentais em vez de
simplesmente deixar o Stecyk cuidar de tudo no escritório de RH como sempre.
4. Não tenho mais esse Formulário OL-141 original de duas páginas, que foi consumido pelos
sistemas de arquivamento da Resolução de Problemas dos Sistemas de Controle Interno e de
Recursos Humanos do CRA durante toda a balbúrdia e a comédia de erros que cercou a minha lotação
inicial equivocada numa Unidade de Análise Imersiva, história essa que será exposta com todos os
seus detalhes patéticos e megaburocráticos a seguir.
5. N.B.: Com a possível concorrência apenas de East Saint Louis, Peoria e Joliet são consabidamente
as duas mais horrendas, mais depauperadas e depressivas antigas cidades industriais de Illinois,*
coisa que no fundo nem é coincidência, já que gera uma economia estatisticamente verificável para o
Serviço em termos tanto de instalações quanto de mão de obra. A localização de quase todos os QGs,
CRAs e Centros de Serviço regionais em cidades depauperadas e/ou desvitalizadas, cuja origem pode
ser encontrada lá na grande reorganização do Serviço e na descentralização que se seguiu ao relatório
da Comissão King diante do Congresso em 1952, é apenas um sinal das arraigadas filosofias pró-
negócios e -resultados que começaram a ganhar força no Serviço já na administração Nixon.
* Como parte do contexto geral relevante, fique sabendo que as cinco maiores cidades e regiões
metropolitanas de Illinois em termos de população (fora Chicago, que é mais meio que uma
galáxia independente) c. 1985 eram, em ordem descendente, Rockford, Peoria, Springfield, Joliet e
Decatur.
6. Aliás, ainda estou com essa carta, que por motivos legais me disseram que não posso reproduzir, a
não ser que seja só uma sentençazinha tipo “fair use”, só pra “dar o gosto” da coisa, procedendo
então a sentença que escolhi do segundo parágrafo manuscrito, imaculadamente burocrático; a saber:
“Ele deverá receber apenas um emprego humilde no começo e caberá a ele subir na carreira via
aplicação e concentração”, sendo que na margem ao lado dela o destinatário inominado dessa carta
tinha distraidamente rabiscado ou um “HA!” ou um “HAH!”, a depender de como se tentasse
decodificar a caligrafia angulosa e quase indecifrável de alguém pra quem “um drinquezinho antes do
jantar” envolvia uma caneca e nenhum gelo.
7. Isso, não esqueça, foi nos estertores da era dos mainframes, do armazenamento de dados em fitas e
cartões &c., coisa que agora parece flintstonicamente distante.
8. Por mais que agora pareça pueril, sei que às vezes eu sentia uma angústia irracional diante da
possibilidade de que o rolo recente na universidade tivesse acabado chegando a algum sistema
misteriosamente universal de recuperação de dados a que o IRA de alguma forma estivesse ligado, e
de que algum tipo de campainha ou de sirene fosse soar de repente quando eu me apresentasse no
balcão pra pegar a identificação e o crachá, e coisa e tal… um medo irracional que eu sabia que era
irracional e assim não chegava a admitir plenamente na minha consciência, se bem que ao mesmo
tempo sei que passei pelo menos parte do interminável período ali a bordo do ônibus pra Peoria
desligadamente elaborando planos de emergência e roteiros pra como, se e quando soasse a
campainha ou sirene, eu poderia evitar voltar pra casa em Philo no mesmo dia em que tinha saído e
encarar fosse lá quem fosse abrir a porta quando eu batesse e me visse ali na varandinha imunda de
casa com as malas e a pasta de mensageiro — em alguns momentos sei que a angústia inconsciente
consistia apenas de visualizar a expressão no rosto de qualquer parente imediato que abrisse a porta,
me visse e abrisse a boca pra dizer alguma coisa, quando então eu percebia que estava elaborando
fantasias angustiadas e as afastava da mente ali no ônibus, voltando ao livro incrivelmente insípido
que me tinha sido dado de “presente”, pela minha família, a ideia que eles faziam de apoio, esse
“presente” que me foi entregue na hora do jantar na noite anterior à minha partida (jantar especial de
despedida que, aliás, consistiu de [a] sobras e [b] espigas de milho no vapor que eu tinha acabado de
ajustar o aparelho e nem podia sonhar que ia comer), depois de primeiro me dizerem para abrir o
presente com muito cuidado pro papel poder ser reutilizado.
9. (Além de, vamos admitir, certa parcela de um alívio geral diante do que parecia ser o oposto de
campainhas/sirenes e da possível rejeição por inadequação ética ou seja lá o que o meu inconsciente
tinha inventado; acho que eu estava mais apavorado que reconhecia.)
10. Esse menino também tinha passado os primeiros, vários, minutos depois que eu embarquei e me
acomodei, encarando boquiaberto a condição da lateral do meu rosto, sem fazer esforços pra
esconder ou disfarçar o interesse clínico com que as criancinhas encaram, sendo que é claro que isso
tudo eu vi (e de certa forma quase apreciei) com o canto do olho.
11. I.e.: esses homens todos de chapéu, chapéus que logo suspeitei e mais tarde soube de fato serem
marca registrada da Divisão de Análise (exatamente como coldres de ombro para a calculadora de
bolso eram o acessório típico dos auditores, tampões de ouvido e alfinetes de gravata estilizados eram
do pessoal dos Sistemas, e assim por diante) de modo que as salas coletivas do CRA, fossem as
molezas, fossem as imersivas, tinham todas pelo menos uma parede com um quadro de cabides pros
chapéus dos analistas, já que cabides individuais de chapéus ou ganchos aparafusados à borda da
Tingle da pessoa criavam obstáculos pra passagem dos carrinhos dos meninos de cargas…
12. (p.s.: fazer um dos personagens informar a outro coisas que eles de fato já sabem, apenas para
transmitir tal informação ao leitor — algo que sempre achei extremamente irritante, pra não falar do
quanto parece suspeito numa obra de “não ficção”, embora seja verdade [conquanto misterioso] que
os leitores do grande mercado parecem não se incomodar com esse tipo de enrolação.)
13. N.B.: alguns desses dados foram mais ou menos copiados direto do material de orientação do IRS
que os recém-contratados e -transferidos recebem durante o processo de Registro & Processamento;
donde seu sabor algo morto, burocrático, que decidi não empetecar nem vivificar.
14. Eu, por outro lado, acrescentei também detalhes que obviamente não se encontravam nos
materiais oficiais. A debacle de Rome não era coisa que o Serviço tivesse qualquer interesse em
divulgar, nem mesmo internamente; mas ela também teve papel de destaque em todas as escaramuças
de alta hierarquia a respeito da dita “Iniciativa” e de sua implementação. Coisas todas a respeito das
quais eu não tinha ideia nem interesse naquele primeiro dia, isso vai sem dizer.
15. Um dos trabalhos esporádicos que eu tinha concluído logo antes da estupidez toda dos arquivos
da fraternidade ter estourado bem na minha cara (e na de todo mundo) foram os primeiros dois
capítulos de um trabalho de conclusão de curso de um aluno bem simpático mas todo desorganizado
do curso de sociologia, a respeito dos shopping centers e malls como o análogo funcional moderno
das catedrais medievais (com alguns paralelos inquestionavelmente notáveis), e eu não tinha mais
estômago pra malls, mesmo que fossem muitas vezes os únicos lugares onde ainda havia cinemas, já
que os grandiosos palácios do centro das cidades agora estavam fechados ou transformados em
pornôs.
16. É bem verdade que não deixou de haver passeios em silêncio no carro da família, embora o rádio
AM nesses casos estivesse sempre tocando música ambiente num volume altíssimo, o que ajudava a
explicar-barra-mascarar a ausência de conversas.
17. O GS-9 Chris Fogle mais tarde explicaria (provavelmente enquanto eu e quem mais estivesse por
perto girávamos a mão no ar daquele jeito por-favor-anda-logo-com-isso que fazia quase todo mundo
involuntariamente começar a girar a mão sempre que o “Irrelevante” Chris estava empolgado) que a
ampliação da Self-Storage Parkway estava parada havia mais de um ano, primeiro porque uma nova
emissão de títulos tinha sido embargada pela ação de um grupo de cidadãos de Illinois dedicado a
monitorar abusos tributários, e segundo porque os invernos extremamente rigorosos da região e seus
abruptos degelos de primavera que com tanta frequência se regelavam um dia depois (o que é tudo
verdade) faziam com que toda e qualquer parte da terceira pista da SSP que não tivesse sido tratada
com um tipo especial de selante industrial acabasse inchando e rachando, e o Judiciário tinha
suspendido as obras do ano anterior bem no momento em que o tal selante seria aplicado com o
auxílio de certo maquinário pesado raro e extremamente dispendioso que tinha que ser alugado com
bastante antecedência de um único distribuidor especializado ou em Wisconsin ou em Minnesota
(ainda tenho uma memória física concreta de como a minha mão começava a girar no ar, quase
involuntariamente, quando Fogle começava a soçobrar em meio a detalhes circunvenientes — sua
impopularidade não tinha a menor proporção em relação a seu caráter, que pra dizer a verdade era
decente e irretocavelmente bem-intencionado; ele era um dos Verdadeiros Crentes dos estamentos
mais baixos de que o Serviço dependia tão centralmente pra uma parcela tão grande do trabalho
braçal e pesado de suas operações cotidianas, e o que acabou acontecendo com ele foi uma grande
injustiça, sempre achei, já que no seu caso ele precisava mesmo da medicação e tomava aquilo com
finalidades unicamente profissionais; não era “recreacional” de maneira nenhuma), com, claro,
aquela liminar e a não aplicação do selante causando então prejuízos consideráveis no inverno e na
primavera seguintes, o que quase dobrou os custos da obra em comparação com a proposta inicial da
firma de engenharia civil. O que significava que a coisa toda virou um superimbróglio de processos
judiciais e infortúnios técnicos que, como sempre, tornou-se um fardo crônico, irritante e maçante
pros usuários normais do sistema de rodovias da cidade. Aliás, acabou se sabendo que outro motivo
pro trânsito na circunveniente SSP ser tão cronicamente ruim ainda antes do caos das obras era que,
compreendida não como aglomeração de seres humanos mas como empreendimento econômico
ativo, Peoria nos anos 80 tinha adotado o mesmo formato básico de rosquinha de tantas outras
cidades outrora industriais: o centro histórico estava vazio e nu, praticamente morto, enquanto ao
mesmo tempo uma robusta coleção de shoppings, centros comerciais, franquias, empresas e parques
de indústrias leves acabou empurrando quase toda a vida da cidade pra um anel suburbano. Os
meados dos anos 90 veriam um renascimento parcial e certa gentrificação da parte do centro que
ficava às margens do rio — algumas antigas fábricas e depósitos foram convertidos em apartamentos
e restaurantes conceituais; artistas e profissionais mais jovens ocuparam outros e os dividiram em
lofts &c. —, embora boa parte desse crescimento otimista tenha sido motivada pelo estabelecimento
de cassinos em barcos bem onde antes havia sido o principal conjunto de docas industriais de
descarga, cassinos que não tinham proprietários locais e de cujos rendimentos brutos Peoria nunca
viu nem o cheiro de uma fatia, sendo todo o rejuvenescimento do centro motivado por gastos
fortuitos, insignificantes, de turistas… ou seja, das pessoas que iam até ali por causa dos cassinos,
que, como cassinos operam separando as pessoas do dinheiro que se não fosse por isso elas usariam
pra comprar coisas e se alimentar, significava que a relação de fato entre os lucros dos cassinos e os
gastos dos turistas era invertida, o que, dada a merecida reputação de extrema rentabilidade dos
cassinos, significava que qualquer pessoa com a cabeça no lugar teria sido capaz de prever a curva de
declínio agudo de renda que em pouquíssimos anos fez com que quase todo o processo de
renascimento do “Novo Centro” abrisse o bico, especialmente quando os cassinos (depois de
prudentemente esperar um intervalo decente de tempo) lançaram todos eles seus próprios restaurantes
e lojas varejistas. E assim por diante… a mesma coisa que basicamente aconteceu em cidades de todo
o Meio-Oeste.
18. (identificáveis como tais na lembrança por não serem Gremlins, Mercury Montegos ou vans Ford
Econoline. Acabou se sabendo que a frota do Serviço de Apoio do CRA se originava quase toda de
uma apreensão numa auditoria feita numa revenda multimarcas em Effingham, no sul do estado,
coisa que necessitaria de uma explicação longa e digressiva demais pra ser aqui imposta ao leitor.)
19. Breve aparte, inevitável: durante os primeiros seis trimestres de uma lotação contratada, os
analistas sem dependentes podiam usufruir de habitações especiais do Serviço num conjunto de
complexos de apartamentos e hotéis convertidos que se alinhavam à margem leste do anel
circunveniente da SSP, imóveis governamentais depois de apropriações ou vendas em acordos de
pagamento de impostos durante a recessão do começo dos anos 80. É claro que há aqui toda uma
história longa e complicada, que inclui o fato de que a situação habitacional tinha sido imensamente
complicada pela grande quantidade de transferências e reorganizações de RH pela qual tinham
passado todos os CRAs em função de (a) resultados da catástrofe do CRA meio-atlântico e de sua
dissolução em 1981 e (b) as primeiras fases da assim chamada “Iniciativa” que no fim das contas
teve impacto direto no CRA Meio-Oeste. A questão, no entanto, era que essas residências eram
oferecidas tanto pra facilitar as transferências quanto pra oferecer um atrativo financeiro, já que o
aluguel mensal (por exemplo) no complexo de Angler’s Cove era pelo menos 150 dólares menos que
os valores praticados no setor privado pra instalações equivalentes. Os meus próprios motivos pra
aceitar essa opção residencial devem estar claros… embora seja também verdade que o IRS em 1986
começou a tratar a diferença entre aluguéis subsidiados e de livre mercado como “renda implícita”,
passando então a taxá-la, o que como você pode imaginar provocou uma infinita má vontade entre os
funcionários do Serviço, que são também, claro, cidadãos e contribuintes dos EUA e cujas declarações
anuais são alvo de escrutínio especial todo ano por causa do distintivo número “9” que encabeça
nossos números de identidade &c. &c. Ou seja, pensando bem, a coisa toda das residências do
Serviço provavelmente não valia a pena, com toda a encheção e as idiotices burocráticas do processo
(cf. infra), embora a economia mensal com o aluguel fosse substancial.
20. Nós observamos que eram quase sempre os carros particulares e as picapes que travavam tudo ali
tentando de maneira egoísta cortar caminho pela pista de contenção e depois voltando. Os veículos
do Serviço, inclusive as vans do Serviço de Apoio que ficavam indo e voltando entre a residência dos
fraldinhas em Angler’s Cove, no norte de Peoria, e os Oaks, nunca desviavam da pista legal, já que
os motoristas do Serviço eram contratados por hora e não tinham incentivos para correr ou tentar
cortar caminho, o que apresentava toda uma nova série de problemas pra nós que precisávamos estar
nas nossas mesas num momento muito precisamente definido no começo de cada turno; mas do
ponto de vista de um trânsito tranquilo ainda assim era provavelmente uma boa medida
administrativa do pessoal do Serviço de Apoio, apesar de significar que os motoristas do Serviço de
Apoio, cujo emprego era quiropraticamente sádico além de tedioso e repetitivo a um ponto
inimaginável, não podiam entrar pro sindicato do Tesouro, ter direito a seguro-saúde &c.
21. Essas regulamentações ali citadas, quando de uma vista d’olhos por todo o código de
regulamentações do Manual da Receita Federal, em período de pouca atividade de análises, sem mais
literalmente nada a fazer pra ocupar o tempo, revelaram um tipo estranho de erro: os dizeres dos
avisos no interior dos carros e vans na verdade se referiam à regulamentação que exigia que os avisos
fossem “exibidos com destaque, em ponto visível” dentro de cada veículo; era na verdade uma
regulamentação duas regs. acima da reg. citada, que proibia comida, tabaco &c. dentro das viaturas
que pertencessem ao Serviço. Ou seja, a reg. citada nos avisos se referia ao próprio aviso, e não à
regulamentação que o aviso supostamente ilustrava.
23. Ainda outra ironia: durante um tornado perto de De Kalb, em 1987, uma parte arrancada de um
desses outdoors que promoviam a SEGURANÇA NAS FAZENDAS saiu voando e pra todos os efeitos
decapitou um plantador de soja — a coisa dos outdoors da 4-H meio que acabou aí.
24. (i.e. o lado que dava para o sul e para a SSP, onde nos movíamos rumo oeste literalmente na
velocidade de um bebê engatinhando)
25. De novo, quase tudo isso vem de fato do caderninho em que foram registradas tais impressões.
Tenho consciência de estar descrevendo a estrada de acesso de longe, mas atribuindo a ela qualidades
que se tornaram evidentes apenas quando muito lentamente nos aproximamos e então nos vimos de
fato nela. Parte disso é engenhosa compressão artística; parte é o fato de ser quase impossível fazer
anotações coerentes num automóvel em movimento.
26. (grafada com um lápis que desde havia muito perdera ponta e nitidez, que é algo que eu detesto;
seria necessário que houvesse considerável pressão/incentivo de ordem psíquica pra eu me ver
disposto a escrever com um lápis rombudo)
27. De novo, o “atrás” é do ponto de vista da estrada. Como nos aproximávamos dos fundos do
edifício principal, as vagas de elite ficavam na verdade na “frente” do CRA, conquanto essa “frente”
se ocultasse da Self-Storage.
28. Ibid.
29. Vamos basicamente pular a questão da disfunção e da lotação adicionais causadas pelos pedestres
provindos dos estacionamentos mais afastados em sua tentativa de trafegar pela estreita beira da
estrada de acesso junto com a constante fila de carros que lotava a estrada, problema que poderia ter
sido resolvido em grande parte pela simples construção de uma calçada ao longo do imaculado
gramado e de algum tipo de entrada pela frente (i.e., pelo que parecia ser a frente; era de fato os
fundos do prédio). Em essência, o esplendor baronial da grama do CRA era testamento da idiotice e do
estorvo que tinha sido toda a concepção daquele lugar.
30. E não podia ser diferente: ela não tinha largura suficiente nem pra sonhar em conter duas pistas,
isso pra não falar do espaço adicional ocupado pelos pedestres que tentavam seguir a pé de/para seus
veículos pela beira da estrada.
31. O que eu não sabia na época era que, como resultado de certas reorganizações do Departamento
de Adimplência, relacionadas à implementação da “Iniciativa”, o CRA Meio-Oeste tinha registrado
um ganho líquido de mais de trezentos funcionários nos dois trimestres fiscais anteriores. Uma teoria
entre os analistas moleza em Angler’s Cove era que isso ajudou a destruir algum equilíbrio muito
delicado nas condições de estacionamento do CRA, exacerbado pelas obras na Self-Storage e pela
eliminação, por motivos oficialmente ligados ao moral da equipe, de vagas reservadas àqueles cujo
nível no funcionalismo ultrapassava o de GS-11. Este último dado foi ideia do sr. Tate, Diretor de RH
do CRA, que considerava as vagas reservadas algo que corroía o moral do pessoal do CRA. A síndrome
do DRH Dick Tate instituir uma política que resultava em problemas muito maiores do que os que
resolvia era tão familiar que os fraldinhas se referiam a ela como “dicktadura”.
32. Na época eu não sabia nada a respeito das hostilidades diplomáticas entre o IRS e o estado de
Illinois, que datavam desde a já provecta apresentação, pelo governo estadual, de um imposto
progressivo sobre transações comerciais, quando funcionários de alto escalão do Três-Meias na era
Carter se juntaram a outras pessoas que escreviam os editoriais dos maiores diários financeiros para
ridicularizar, além de vilipendiar o “conselho de curadores” por trás do plano de tributação do
Estado, o que gerou um mal-estar que persistiu, sob forma de múltiplas espécies de mesquinharias e
atritos, por toda a década de 80.
33. Factoide cortesia do GS-9 Robert Atkins (sabe tudo, tudo fala).
35. Tinha havido certas alterações e modificações no 1040 desde 1978, cujos detalhes eu viria a
conhecer mais do que bem nos meses seguintes.
36. N.B. que uma detalhada foto ilustrativa da junção da face oeste do Anexo espelhado do CRA com
a fachada do prédio principal c. 1985, que eu tinha feito questão de incluir como Ilustração 1 na
lembrança original, aqui acabou eliminada pelos editores por motivos “legais” que (na minha
opinião) não fazem o menor sentido. Hiatus valde deflendus.
37. Coisa que tivemos que fazer porque vários outros veículos estavam estacionados em fila dupla e
até tripla logo à frente, e era impossível ir mais longe, e o motorista simplesmente pôs o carro em
ponto morto e ficou ali girando o pescoço travado, com as mãos ainda no volante, enquanto os
funcionários mais experientes do Serviço começaram a vazar dali.
38. Alguns homens como baratas tontas ali na área de entrada estavam em mangas de camisa, e um
vento turbilhonante provocado pelo contraste entre as temperaturas dentro e fora da sombra do
edifício soprava a gravata deles pra trás por cima do ombro ou (por um segundo ou dois) pra longe
do peito de um jeito meio flechístico, como se eles estivessem empalados pelas próprias gravatas,
que é o que explica a estranha memorabilidade desse fragmento enquanto nós estacionávamos.
39. A representante do RH, Ms. Neti-Neti, acabou revelando ser o que ela chamava de persa. Era ela
que o Bob 2K McKenzie e outros do grupo de Rotinas de Hindle tinham batizado de “a crise
iraniana.”
40. Foi na verdade o colega de quarto paquistanês quem, já na Semana de Recepção dos Calouros me
batizou com o nomezinho cruel que me acompanhou pelos três semestres seguintes, “Rapaz
Carbunculoso”.
41. Existe na verdade um terceiro tipo de pessoa reativa, cujos olhos ficavam imobilizados no meu
rosto numa espécie de fascínio indisfarçadamente horrorizado. Essas eram normalmente pessoas com
um histórico pessoal de vários tipos de problema de pele e um interesse subsequente pelos exemplos
à la casos-mais-graves de peles ruins que anula (i.e., o interesse anula) seu tato ou sua inibição
naturais. Eu cheguei mesmo a conhecer pessoas que vinham falar comigo e começavam a falar de
seus próprios problemas de pele passados ou presentes, supondo que eu não tinha como não me
importar ou não me interessar, o que eu devo admitir que achava irritante. As crianças, aliás, não são
membros dessa categoria (c) — seu olhar interessado é muito diferente, e em geral elas ficam (as
crianças) fora de toda e qualquer taxonomia de reações, já que seus instintos e inibições sociais ainda
não estão plenamente desenvolvidos e é impossível levar as reações delas ou falta de tato para o lado
pessoal — cf. e.g. aquele menino do ônibus, ainda que obviamente ele também tivesse um problema
repulsivo todo seu.
42. E ela também não me ofereceu ajuda com as minhas malas, apesar do fato de que a que eu
segurava com o mesmo braço com que tinha que meio que prensar minha valise contra o corpo batia
dolorosamente contra o mesmo joelho contra o qual vinha batendo o dia todo sempre que tive que
carregar as malas de um ponto a outro, enquanto as roupas do meu lado esquerdo faziam com que
aquele ponto das costelas começasse a coçar loucamente mais uma vez.
43. Dado o grande número tanto de novos funcionários quanto de funcionários transferidos que
chegavam com bagagem naquele dia (por motivos que eu levaria algum tempo pra entender), no
entanto, é justo observar que o escritório de RH do CRA poderia muito bem ter estabelecido algum tipo
de sistema em que as pessoas fossem primeiro conduzidas aos apartamentos, deixassem suas malas, e
apenas então fossem conduzidas ao CRA pra processamento e orientação. Por mais que pudesse ser
complexa a logística de um esquema como esse, a alternativa era um número enorme de funcionários
do IRS tendo que levar as malas pra onde fossem naquele primeiro dia no CRA, inclusive pra
elevadores lotados e escadarias, assim como pilhas de malas abandonadas no canto de quaisquer
cômodos em que se dessem as várias sessões de orientação e produção de Identidades.
44. Eram as mesas Tingle, uma convenção do pessoal da Análise com a qual acabei ficando mais do
que íntimo — ainda que ninguém com quem eu pude conversar soubesse a origem de “Tingle”, tipo
se era epônimo, sardônico ou o sei lá o quê.
45. Pra mim, apontador é coisa séria. Eu gosto de um tipo bem específico de lápis bem apontado, e
alguns apontadores são bem melhores que outros pra obter esse formato especial, que então se vê
rombudo e arruinado depois de meramente uma sentença, ou duas, o que exige grande quantidade de
lápis apontados, todos alinhados numa ordem especial de idade, estatura remanescente &c. O lado
bom é que quase todo mundo que eu conheci tinha esses seus rituaizinhos, rituais cujo sentido todo,
bem no fundo, era serem distrações.
46. Essa noção de desorganização pessoal, que obviamente é muito comum, pra mim se via ampliada
pelo fato de eu ter muito pouca dificuldade pra analisar o caráter e a motivação central de outras
pessoas, suas forças e fraquezas &c., enquanto toda e qualquer tentativa de autoanálise redundava
numa baralha de fatos e tendências contraditórios e desesperadamente complexos, impossível de
desemaranhar ou de usar como base para conclusões gerais.
47. Eu não esqueço uma observação feita durante uma das sessões de bate-papo na sala de Chris
Acquistipace, que era Líder de Mesa e um dos únicos fraldinhas do CRA acomodados no segundo
andar do complexo de Angler’s Cove a demonstrar algum sinal de simpatia ou até de mente aberta na
minha direção, apesar da caca administrativa que de início me promoveu a uma posição superior até
à dos outros GS-9s do andar. Foi ou o Acquistipace ou o Ed Shackleford, cuja ex-mulher dava aulas
no ensino médio, que observou que o que então começava a ser descrito como “ansiedade de prova”
podia muito bem ser uma ansiedade relacionada a provas com tempo, ou seja, exames e testes
padronizados, onde não há como fazer a infinidade de gestos e atividades distraídas que é parte do
trabalho mental concentrado de 99,9% das pessoas reais. Não posso dizer com toda a sinceridade que
lembro de quem veio a observação; fazia parte de uma discussão mais ampla sobre os analistas mais
jovens, a televisão e a teoria de que a América tinha algum interesse econômico velado em manter as
pessoas hiperestimuladas e desacostumadas ao silêncio e à concentração focada. Por mera
conveniência, vamos dizer que foi o Shackleford. A observação do Shackleford era que o verdadeiro
objeto motivador da ansiedade assassina envolvida na “ansiedade de prova” podia muito bem ser um
temor da imobilidade, do silêncio e da falta de tempo pra distrações que estava envolvida na situação
de prova. Sem distrações, ou até sem a possibilidade da distração, certos tipos de pessoas sentem
pavor — e é esse pavor, e não tanto a prova em si, que provoca ansiedade nas pessoas.
48. Mais uma vez, seria só mais tarde que eu viria a saber que a maioria dos fraldinhas e do pessoal
dos Serviços de Apoio do CRA se referia a todo o ritual de Processamento/Orientação como
“desorientação”, o que era mais um exemplo de piada interna meio canhestra. Por outro lado,
nenhuma autoridade possível esperava que eu estivesse tão completamente confuso e perdido quanto
estava ao chegar, já que acabou transpirando que o escritório de RH tinha me confundido com outro
David Wallace, a saber, um analista de imersivas de elite, cheio de experiência, que vinha do CRA
Nordeste da Filadélfia e tinha sido atraído para o 047 devido a um complexo sistema de trocas de
pessoal e de finas manobras burocráticas. I.e., que não havia apenas um mas sim dois David Wallaces
cujas lotações no 047 começavam naquele dia útil. O problema informático por trás desse erro está
detalhado no §38. Vai sem dizer que esses fatos todos emergiram somente depois de muito tempo, de
muita confusão e de muito atrito em cima de atrito. Eles eram a verdadeira explicação da efusão pré-
escrita e da deferência de Ms. Neti-Neti: era na verdade o nome daquele outro, GS-13, em termos
ontológicos, que estava na placa branca especial que ela segurava, ainda que não é que “David
Wallace” seja um nome tão comum nos EUA pra que alguém tivesse alguma esperança de que eu
imediatamente imaginasse ter havido alguma confusão de nomes e identidades, especialmente
durante a confusão toda e a inépcia daquela “desorientação”.
(N.B. Puramente como aparte autobiográfico, vou inserir aqui que o uso do meu nome do meio
completo no que vim a publicar na vida tem origem nessa confusão e nesse trauma originais, i.e., o
trauma da ameaça inicial de levar a culpa por toda a baderna, que, mesmo que fosse uma enorme
bobagem, ainda era compreensivelmente traumática pra um recruta imaturo de vinte anos com medo
de burocracias e com uma única violação de um suposto “código de honra”, por mais que se tratasse
de algo insidioso e hipócrita, já no seu currículo. Durante anos, depois disso, eu tive uma angústia
mórbida com a possibilidade de que houvesse sabe Deus quantos outros David Wallaces soltos por aí,
fazendo sabe Deus o quê; e eu nunca mais quis ser profissionalmente confundido ou fundido a um
outro David Wallace. E depois que você se decidiu por um certo nom de plume, você meio que fica
preso a ele, por mais que possa soar alheio ou pretensioso aos seus ouvidos na vida cotidiana.)
49. O andar subterrâneo, que tinha sido escavado e acrescido (a um custo exorbitante) ao edifício
central em 1974-5, era chamado de Nível 1, e o térreo, portanto, tecnicamente era o Nível 2, o que
era ainda mais confuso porque nem todas as placas mais antigas do CRA, pré-escavação e acréscimo,
tinham sido substituídas, e essas placas e sinalizações ainda identificavam o andar principal, térreo,
como Nível 1, o andar acima como Nível 2, e assim por diante, de modo que você só podia se
orientar com essas sinalizações antigas e esses mapas tipo “Você está aqui” se soubesse de antemão
recalibrar cada número de andar pra um dígito acima, o que era mais um dado da idiotice
institucional facilmente corrigível do qual o sr. Stecyk agradecia ter sido informado mas lamentava
não ter visto e resolvido antes, e pelo qual fundamentalmente aceitava total responsabilidade, muito
embora tecnicamente se tratasse de uma responsabilidade do sr. Lynn Hornbaker e do escritório de
Instalações Físicas, que deveriam ter visto e corrigido as placas muitos anos antes, o que é um dos
motivos pelos quais o processo de licitação pro design e a confecção das novas placas se tornaram
tão densos e inutilmente complexos — ao fazer a coisa das placas o mais difícil e complexa posível,
o pessoal da equipe do Hornbaker ajudava a suavizar e difundir a responsabilidade pelo fato das
placas não terem sido percebidas e corrigidas anos antes, de modo que, quando o escritório do
Diretor do CRA ficou sabendo daquilo, foi em meio a uma nuvem de memorandos internos e
circulares tão rebuscadas e obscuras que ninguém que não estivesse diretamente envolvido teria
prestado atenção, a não ser do jeito mais superficial e apenas nos detalhes mais gerais da baderna.
50. Essas portas duplas eram de aço cinza, e esse era o esquema cromático geral do Nível 1 —
branco estourado e cinza-fosco.
51. (com o Meio-Oeste tendo seu CRS naquela era em East St. Louis, duas horas a sudoeste dali)
52. (Só pra constar, o fim da primavera era sempre um período excepcionalmente ruim, em termos de
pele, durante aquela época; e as indelicadas lâmpadas fluorescentes do Nível 1 punham cada bolha,
cada sarna e cada lesão em impiedoso relevo.)
53. A informação logística, também, é pós-datada, pra ser bem preciso. No dia propriamente dito eu
não saberia te dizer nem onde nós estávamos no prédio àquela altura; ninguém saberia.
54. = Diretor Substituto de Recursos Humanos, que era o título oficial da posição do sr. Stecyk. Meu
contrato com o IRS, aliás, foi assinado, não pelo sr. Stecyk ou pelo DRH Richad Tate, mas pelo sr.
DeWitt Glendenning Jr., cujos títulos bivalentes eram DCRA (Diretor do Centro Regional de Análises)
e CRAA (Comissário Regional Assistente de Análises), mas que quase todo mundo chamava de
“Dwitt”.
55. Essa seria a sra. Marge van Hool, adjuvante e braço-direito do sr. Stecyk, que tinha os olhos sem
cílios, protuberantes e permanentemente abertos de um réptil ou de uma lula, algo que poderia te
matar e te comer sem que seu olhar alienígena e projetado sequer se alterasse, embora a sra. Van
Hool acabasse se provando o verdadeiro sal da terra, uma clássica manifestação da verdade de que a
aparência da maioria das pessoas tem muito pouco a ver com suas qualidades humanas intrínsecas…
verdade que me era muito preciosa naquele momento da vida.)
56. (intervalo durante o qual, por miradas momentaneamente disponíveis, eu primeiro percebi a Crise
Iraniana lendo um livro e depois, ulteriormente, cuidando da manga de seu paletó azul-chama-de-gás
com alguma espécie de implemento portátil de costura — ela era nitidamente bem preparada por
temperamento e/ou experiência pra ficar em filas longas.)
57. (i.e., nauseantemente aquecida pelo calor das costas e da bunda de um desconhecido)
58. Só bem mais tarde fiquei sabendo que o filho da sra. Sloper tinha sofrido queimaduras
gravíssimas em algum tipo de acidente automobilístico no Serviço, e que o estado da minha pele a
afetava mais que a média típica das mães por aí. Na ocasião, eu só soube que nos desprezamos à
primeira vista, como é claro que pode acontecer com certas pessoas.
59. Como normalmente cabe aos jovens de vinte anos, quando eu estava em casa, em Philo, fazia
questão de discutir com os membros da minha família sobre suas atitudes políticas, e no entanto
quando fora de casa eu muitas vezes me surpreendia sustentando por reflexo, ou ao menos
simpatizando com, as mesmas atitudes parentais. Imagino que isso tudo queria dizer que eu ainda não
tinha formado uma identidade própria estável.
60. (cujos méritos pessoais não incluíam a perceptividade — e eu estou longe de ser o único membro
da família que percebeu isso, pode apostar)
61. Eu ouvi, no entanto, uma troca oral envolvendo duas ou quem sabe três vozes invisíveis no
estreito corredor diante de cuja entrada estava minha cadeira, de dois funcionários do CRA que
deviam estar em alguma fila naquele corredor, que eu recordo (a troca) em detalhes porque a
iluminação fluorescente da sala de espera era de um branco acinzentado atordoante, e desprovida de
sombras, o tipo de luz que faz as pessoas quererem se matar, e eu não conseguia imaginar como era
passar nove horas por dia numa luz como aquela, e portanto estava emocionalmente predisposto a
perceber aquela troca em meio a todo o ruído ambiente das trocas realizadas na sala, apesar de não
conseguir enxergar os envolvidos; e cheguei até a transcrever partes da conversa em tempo real numa
espécie de estenografia particular na parte interna da capa do livro de psicologia popular, pra depois
transferir pro caderninho (o que é o motivo de eu poder narrar isso tudo com um grau de detalhe tão
de-aparência-suspeita); a saber:
“Isso que é a versão curta?”
“Bom, a questão é que o pessoal do Sistema não é incriativo. Não dá pra colocar todos eles no
mesmo saco.”
“Não incriativo? Que tipo de palavra é essa?”
“A economia imediata com as lâmpadas fluorescentes era óbvia. Era só comparar as contas de luz.
A iluminação fluorescente nos Centros de Análise já era uma questão de doutrina. Mas o Lehrl
descobriu, pelo menos em La Junta, que trocar as lâmpadas incandescentes embutidas no teto por
luminárias comuns e de mesa aumentava a eficiência.”
“Não, a única coisa que os caras dos Sistemas descobriram é que o número de declarações
processadas aumentou depois que trocaram as fluorescentes pelas luminárias.”
“De novo, não. O que a equipe do Lehrl descobriu foi que o número bruto de declarações
auditadas no CRA Oeste aumentou mensalmente, pelo menos por três trimestres depois da
instalação das incandescentes, e aumentou de maneira a tornar o custo de instalação e o valor
mensal da eletricidade por causa das incandescentes uma questão quase negligenciável, desde que
você amortizasse a despesa de tirar as fluorescentes todas e consertar o teto.”
“Mas eles nunca provaram que as incandescentes tinham uma relação causal direta com o aumento
das declarações auditadas.”
“Mas como é que você prova uma coisa dessas? A planilha geral de uma reunião são milhares de
páginas separadas. O aumento vinha de escritórios distritais espalhados por toda a região Oeste.
São variáveis demais pra você controlar — uma conexão única é improvável. Por isso precisa de
criatividade. Os caras do Lehrl sabiam que existia uma correlação. Eles só não conseguiram fazer
ninguém do Três-Meias aceitar a correlação.”
“Isso é a sua interpretação.”
“Eles querem tudo quantificado. Mas como é que você quantifica o moral?”
… transcrição esta que acabou deixando o livro algo precioso, em termos de reprodução, décadas
depois. Então ao mesmo tempo foi e não foi uma perda de tempo, dependendo do ponto de vista e
do contexto de cada um.
62. O escritório do próprio Diretor de Recursos Humanos ficava no fim de um dos corredores radiais
da sala de espera. Como eu ainda viria a saber, Mr. Tate, como muitos administradores superiores,
preferia trabalhar longe dos olhos dos outros; ele raramente interagia com qualquer um que não
estivesse acima de GS-15.
63. Eles, depois eu aprendi, eram “vira-bostas”, termo este que se referia a funcionários de apoio de
funções mais baixas ou com contratos temporários que vinham especialmente pra alimentar dados
nos sistemas informáticos do CRA. Muitos deles eram alunos ou da universidade profissionalizante
local ou do Peoria College of Business, que não era uma universidade de elite. Como muitos grupos
marginalizados ou de castas baixas, os vira-bostas acabavam sendo muito unidos e muito
excludentes, mesmo quando alguns deles eram designados pra tarefa de “menino de cargas” e como
resultado disso passavam a conhecer e a trocar gracejos com muitos fraldinhas e imersivos de maior
estatuto hierárquico cujos materiais de análise e suprimentos eles (i.e., os vira-bostas) tinham que
transportar de um lado pro outro em grandes carrinhos cheios de níveis internos, caixas e bandejas
que podiam ser expandidas como uma enorme caixa de ferramentas cheia de andares e
compartimentos diferentes, de modo que os carrinhos viravam imensas e complicadas versões de um
carrinho normal de supermercado ou de entrega de correspondência numa empresa, que mais
pareciam uma máquina de Goldberg, sendo que alguns deles (ou seja, os carrinhos) faziam um
tremendo estardalhaço ao ser empurrados, por causa daquela montoeira de partes internas, camadas e
compartimentos ajambrados ali dentro.
65. Sendo mais preciso, era alguém que eu supus ser um homem… De onde eu estava, que era
fundamentalmente atrás da pessoa agachada, ele/ela parecia estar usando um terno cujas ombreiras
estofadas, naquela época, eram unissex.
67. Pra dizer a verdade, essas pessoas estavam paradas numa espécie de fila preliminar apenas pra
poderem entrar nas filas dos três corredores a fim de falar com vários funcionários de nível médio do
RH como a sra. Van Hool, que estava bem naquele momento (extrapolando retroativamente a partir do
iminente ressurgimento de Ms. Neti-Neti com o Formulário 706-CI assinado) dando-lhe um conjunto
sucinto e decisivo de instruções quanto ao que devia ser feito com e pelo valioso, veterano,
qualificadíssimo especialista em análises imersivas que elas achavam que eu era. (N.B. Aquele
analista, transferido do CRA Nordeste, da Filadélfia, sendo não apenas chamado David Wallace mas
estando também com a chegada prevista pro dia seguinte, e que a Crise Iraniana tinha sido enviada
pra esperar e acompanhar pessoalmente, depois que os sistemas informáticos do RH cometeram um
erro de conflação que será explicado no §38 ao de fato ter fundido aquele segundo e retardado David
Wallace comigo, o que explicava tanto a identidade trocada quanto a data trocada… tudo isso sendo,
vai sem dizer, informação post facto que eu não tinha nem como saber nem como supor naquele
momento, já que David Wallace, ainda que não seja o nome mais raro dos Estados Unidos, também
não é tão comum assim. Nem eu nem qualquer outra pessoa sabia, obviamente, naquele 15 de maio
— data em que o outro, mais velho e mais “valioso” David Wallace estava liberando as bandejas de
sua mesa e ajudando um menino de carga de nível sênior a coligir e organizar os arquivos e
documentos de apoio que seriam distribuídos a outros membros de sua equipe imersiva em
preparação pra sua transferência e seu voo do dia seguinte — que quando, no dia seguinte, esse
transferido de alto nível chegasse na hora marcada e tentasse se registrar na Estação de
Processamento GS-13 do saguão do CRA Meio-Oeste, ele não conseguiria fazê-lo — se registrar e
receber permissão pra seguir até a fila onde receberia seu novo crachá do CRA — porque a Estação de
Processamento GS-13 obviamente já teria seu nome entre os das pessoas que já estavam registradas e
de posse de suas novas identidades, tendo aquele crachá GS-13 e aquele número de identidade (que
era daquele outro David Wallace; ele tinha recebido doze anos antes) já sido entregues em Peoria a
mim, o autor e “verdadeiro” (pra mim) David Wallace, que obviamente não estava em posição de
entender nem explicar (depois) que a coisa toda era uma grande cagada administrativa e não uma
tentativa intencional de suplantar ou de corporificar um GS-13 do IRS com mais de doze anos de
devotados serviços prestados num trabalho cuja dificuldade e cujas arcanas complicações eu logo
começaria a descobrir; mas de um jeito ou de outro essa baderna toda acabaria explicando não apenas
as efusivas boas-vindas e o equivocado nível de carreira de servidor com seu salário adequado (que
eu não vou fingir que não foi uma surpresa agradável pra mim, ainda que algo intrigante) como
também, em parte, o estranho e — pra mim — inédito interlúdio no escuro armário de fusíveis de um
dos corredores radiais que se estendiam do corredor central do Nível 1 com Ms. Neti-Neti logo
depois de eu ter sido conduzido até a frente da fila de identidades e recebido o novo crachá, em que
(i.e., no incidente no armário de fusíveis) ela me jogou contra uma série cálida de caixas embutidas
de circuitos e administrou o que, segundo o ex-presidente W. J. Clinton, não poderia ser
adequadamente considerado como sendo “sexo”, mas que pra mim foi disparado a coisa mais sexual
que tinha acontecido ou que ia acontecer até quase 1989, tudo isso gerado em razão tanto da
incapacidade do computador do RH de distinguir dois David Wallaces internos diferentes quanto da
aparente instrução da sra. Van Hool pra que Ms. Neti-Neti estendesse a “mim” (i.e., ao GS-13 que eles
tinham se empenhado tanto pra recrutar e convencer a se transferir da Célula Imersiva de elite do CRA
Nordeste) “toda a atenção possível”, o que acabou revelando ser uma expressão muito carregada
semântica e psicologicamente para Chahla Neti-Neti, que tinha amadurecido na cultura sibarita, mas
tremendamente rica em termos de etiqueta e de eufemismos do Irã pré-revolução (fiquei sabendo
disso depois, obviamente), e tinha, como muitas outras moças iranianas núbeis com conexões
familiares com o governo atual, sido basicamente obrigada a “trocar” ou “mercadejar” atividades
sexuais com funcionários de alto escalão a fim de conseguir tirar do Irã a si própria e a outros dois ou
três membros de sua família durante o tenso período em que a substituição do regime do xá estava
ficando cada vez mais certa, e para quem “estend[er] toda a atenção possível” portanto se traduzia
numa rodada veloz e quase percussiva de felação, sendo aparentemente esse o método preferencial de
satisfazer os funcionários do governo de quem se buscava obter algum favor mas cujo rosto você não
desejava ou não conseguia suportar olhar. Mas ainda assim foi bem excitante, malgrado tenha sido —
por motivos óbvios — extremamente breve, e também ajuda a explicar por que demorou tanto pra eu
até me dar conta de que tinha deixado uma das minhas malas na sala de espera do escritório do RH…
Contexto esse todo que também explicaria depois o apodo de “Crise Iraniana” dado a Ms. Chahla
Neti-Neti, cujo formato dos seios contra o veludo úmido das minhas coxas continua sendo uma das
mais vivas lembranças sensuais de toda aquela cagada geral que foram os meus primeiros dias como
imersivo do IRS.
2. As cotas de produtividade são uma realidade no Serviço. Não é difícil entender esse fato. Diante da
existência de numerosas e repetidas declarações públicas em sentido contrário, dadas por
funcionários de alto escalão do Três-Meias, contudo, tais cotas internas precisam ser mantidas e
registradas em código. Ao mesmo tempo, os administradores consideram o conhecimento de tais
cotas um precioso incentivo de desempenho, o que é motivo do Departamento de Adimplência
determinar e autorizar o uso de códigos internos que são ridiculamente familiares para quase todos os
auditores. O código Charleston, em que C representa o número 0 e H representa o número 1,
pontinho, pontinho, pontinho, até o N que representa o 9, é hoje em dia fundamentalmente
empregado por varejistas que usam um sistema perpétuo de inventário que precisa incluir o custo
declarado dos bens em cada registro de transação. Assim, a etiqueta com o preço no varejo de
determinado item em, digamos, um supermercado rural IGA vai incluir tanto o preço no varejo em
dígitos quanto o preço do distribuidor por unidade ou no sistema CGS em código Charleston,
normalmente na parte inferior da etiqueta. Assim, qualquer pessoa que conheça o código pode
determinar a partir, digamos, de um preço no varejo de $1,49 e de um minúsculo TE abaixo dele, que
a margem de lucro por unidade aqui é de quase 100% e que o supermercado IGA onde ele faz suas
compras ou está disposto a lhe arrancar os olhos da cara ou tem despesas de funcionamento
extraordinárias, que possivelmente envolvem dívidas mal negociadas — problema comum no
gerenciamento de cadeias de supermercados no Meio-Oeste. Por outro lado, uma vantagem do
código Charleston é que inflacionar o Custo das Mercadorias Vendidas no Anexo A é uma das
formas mais comuns e eficientes de uma franquia varejista maquiar seus números na Linha 33,
especialmente se o varejista emprega um tipo de código para o sistema CGS e seu distribuidor usa
outro para o que recebe dele — e quase todos os distribuidores usam um código PIS de base oito,
muito mais sofisticado. É por isso que tantas auditorias empresariais de grande porte se coordenam
para analisar todos os vários níveis da cadeia de fornecimento de maneira simultânea. Essas
auditorias coordenadas são conduzidas pelo Regional, normalmente empregando analistas GS-13
especialmente escolhidos no Centro Regional de Análise; nós não fazemos essas auditorias no nível
do Distrito.
3. (eu observei que uma das ribanas elásticas de seu macacão amarelo de camurça estava encharcada
de saliva e parecia, vários centímetros antebraço do bebê acima, mais escura que a do outro punho,
coisa que o bebê parecia ignorar e que eu certamente não mencionei nem considerei como um
assunto que devesse abordar)
§ 38
1. Por causa do volume pesado e basicamente ininterrupto de dados que o IRS processa, seus sistemas
computacionais tiveram que ser construídos com o bonde andando e tinham que ser mantidos e
atualizados da mesma maneira. A situação era análoga à da manutenção de uma estrada cujo alto
volume de tráfego tanto demanda quanto dificulta uma manutenção séria (i.e., não há maneira de
simplesmente fechar a estrada para consertar tudo de uma vez; não há como desviar aquele tráfego
todo). Pensando a posteriori, teria no fim sido mais barato e mais eficiente fechar o Serviço inteiro
por um breve período e transferir tudo para um sistema moderno e recém-instalado a partir de discos
em todo o país. Só que na época isso parecia inimaginável, especialmente à luz da espetacular
debacle do CRA de Rome, Nova York, em 1982, sob a pressão de um acúmulo de dados por processar.
Então muitas correções e atualizações eram temporárias e parciais e, olhando a posteriori,
insanamente ineficazes, p. ex. tentar aumentar o poder de processamento alterando equipamentos
antiquados para acomodar cartões de computador ligeiramente menos antiquados (fora que os Power
Cards tinham furos redondos em vez dos quadrados dos holerites, o que exigia tudo quanto era tipo
de alteração violenta num equipamento Fornix que já era velho e frágil).
2. O que para um leigo pode parecer um problema óbvio causado por essa correção — i.e., a perda da
capacidade do sistema de reconhecer e classificar rebaixamentos dentro do IRS — não era na verdade
um grande problema, comparativamente, para os Recursos Humanos. O fato é que menos de ,002%
dos funcionários do Internal Revenue Service acabam um dia rebaixados de nível funcional em razão
em grande medida do poder coletivo de barganha da Associação Nacional de Funcionários do
Tesouro. Com efeito, as condições e as barreiras burocráticas necessárias para um rebaixamento
foram sendo gradualmente revigoradas até que na maioria dos casos elas não eram menos duras do
que as necessárias para uma demissão por justa causa… embora essa seja em grande medida uma
questão de somenos importância, mencionada apenas para evitar algumas possíveis confusões do
leitor.
4. Provavelmente vale a pena mencionar dois outros bugs ou duas outras fraquezas sistêmicas ou seja
lá o que for que contribuiu com o banzé de cuia todo e com minha recepção inicialmente equivocada
no Posto 047. O primeiro problema era que, devido a limitações impostas pela reconfiguração de
certos programas básicos para acomodar Power Cards de noventa colunas e furos redondos, as
etiquetas de arquivo do sistema computadorizado só podiam acomodar a inicial do segundo nome de
um funcionário, o que no caso de David Francis Wallace, transferência preciosa da Filadélfia, não foi
o bastante para que ele se distinguisse no sistema de David Foster Wallace, contratado de baixo valor.
O segundo problema, bem mais sério, era que os números originais de Seguro Social do pessoal do
IRS (i.e., os números civis conferidos a eles na infância) são sempre deletados e substituídos em todo
o sistema pelo novo número gerado pelo IRS que também serve como Identidade no Serviço. O
número original de um funcionário fica “guardado” apenas na sua inscrição original com solicitação
de emprego — inscrições essas que são sempre gravadas em microfilme e armazenadas no Centro
Nacional de Registros, CNR esse que em 1981 estava espalhado por uma dúzia de anexos regionais e
armazéns diferentes e era notoriamente mal gerenciado, desorganizado e ruim de entregar registros
específicos em qualquer prazo decente. Fora que de qualquer maneira as etiquetas de arquivo do
sistema de RH só acomodam um único número de SS, e esse há de obviamente ser o novo número
iniciado por um “9” que funciona como número de Identidade dentro do Serviço. E como o 975-04-
2012 que o novo David F. Wallace, ralé, recebe quando do Processamento Expresso era também o
975-04-2012 da Identidade do Serviço do David F. Wallace mais velho, elite, GS-13, os dois
funcionários se tornaram, no que se referia ao sistema computadorizado do Serviço, a mesma pessoa.
5. Pensando bem, agora fica claro que havia na verdade um terceiro problema sistêmico ainda mais
grave, que era, antes de 1987, os sistemas computadorizados do Serviço estarem organizados no que
se conhece como um modelo de integração de rede do tipo “Roda Ruim”. De novo, há muitos
detalhes arcanos e muita explicação — quase sempre envolvendo não apenas a situação de
manutenção tentando-arrumar-uma-estrada-enquanto-ainda-se-permite-que-as-pessoas-transitem
detalhada acima, mas também a qualidade fragmentária e ajambrada dos sistemas cuja manutenção
dependia de dotações orçamentárias anuais para o Ramo Técnico, que por vários motivos
burocráticos/políticos flutuavam loucamente de um ano para outro — mas a questão dessa coisa da
Roda Ruim era que a organização de rede do Ramo Técnico em meados dos anos 80 parecia uma
roda com cubo mas sem aro. Em termos de interfaces de computador, tudo tinha que passar pelo NCC
de Martinsburg. Uma transferência de dados do Centro Regional de Análise Meio-Oeste de Peoria
para o QG Regional Meio-Oeste em Joliet, por exemplo, acarretava na verdade duas transferências
separadas de dados, a primeira de Peoria para Martinsburg e a segunda de Martinsburg para Joliet. Os
modems e as linhas reservadas de Martinsburg eram (para aquela época) de alta capacidade, em
Bauds, e eficientes, mas ainda assim vivia acontecendo um atraso no “prazo de roteamento”, termo
neutro que no fundo se referia ao fato de que os dados que chegavam ficavam ali parados nos cofres
magnéticos dos mainframes Fornix de Martinsburg até ser a sua vez na fila de roteamento. O que
significava que sempre havia um atraso. E, por motivos compreensíveis, a fila era sempre maior e o
atraso era sempre pior nas semanas que se seguiam ao tsunâmi de declarações de pessoas físicas no
dia 15 de abril. Houvesse qualquer coisa parecida com processamento lateral no sistema do IRS —
i.e., fossem os computadores do RH e dos Sistemas do CRA Meio-Oeste capazes de uma interface
direta com suas contrapartidas de RH/Sistemas no CRA Nordeste da Filadélfia, todo o banzé de cuia
sobre David F. Wallace teria sido resolvido (e toda a responsabilização indevida teria sido evitada)
com muito mais rapidez. (Isso sem falar que a coisa toda de um modelo de roda sem aro negava a tão
falada descentralização do Serviço a partir do relatório da Comissão King, em 1952, que em termos
gerais não é relevante aqui a não ser no que tenha de simples acréscimo à imbecilidade tipo máquina
de Goldberg da situação toda.)
6. (Eram os dados publicados mais recentes, e o Serviço tinha que confiar exclusivamente em dados
publicados porque o novo sistema Univac do Dep. de Comércio dos EUA era incompatível com o
hardware Fornix mais antiquado que Martinsburg ainda estava usando.)
7. (Agora você provavelmente pode ver por que essa coisa apositiva de “autor” às vezes se faz
necessária; acabou que havia dois David Wallaces separados postados no CRA Meio-Oeste, sendo que
o único deles que acabou sendo acusado de falsidade ideológica foi adivinha quem?)
§ 39
1. Aquisição Remota de Fatos.
DAVID FOSTER WALLACE nasceu em 1962, em Nova York, e faleceu em 2008. Foi
romancista, contista e ensaísta. Dele, a Companhia das Letras publicou o volume
de contos Breves entrevistas com homens hediondos, a coletânea de ensaios
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo e o romance Graça
infinita, considerado um dos melhores livros das últimas décadas.
Copyright © 2011 by David Foster Wallace Literary Trust
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Título original
The Pale King
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Preparação
Ciça Caropreso
Revisão
Ana Maria Barbosa
Aminah Haman
Versão digital
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-469-6
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.
Em prosa ágil, intensa e assertiva, Eliana Alves Cruz constrói uma miríade
de histórias que revolve o imaginário do trabalho doméstico no Brasil —
ainda tão vinculado à época escravocrata — e o relaciona a questões
contemporâneas urgentes como a pandemia, o debate sobre ações
afirmativas e a luta por direitos reprodutivos.
"Em Solitária, Eliana desponta como uma das mais importantes vozes de
nossa literatura contemporânea." — Itamar Vieira Junior