E-Book 2023 - A Pesquisa Jurídica Na Fronteira Da Paz-Final

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João Paulo Rocha de Miranda

Alessandra Marconatto
Anna Júlia S. Sperb
(ORGANIZADORES)

A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA


DA PAZ

Autores:1
Poliana François Vasques
Daiane Ferreira da Silva
Micaele Mann Saldanha
Sara Chaga Benites Coelho
Maurício Felipe de Castro Batista Fernandes
Felippe Velasques Giriboni
Maria Fernanda Corrêa Freitas
Vivian Daiane Liforma Pintos

Santana do Livramento
2023

1
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PREFÁCIO

Esta obra está sendo publicada no âmbito do 9º ano de existência do projeto de


extensão Pensar Direito, iniciado em 2014, na Universidade Federal de Mato Grosso,
sendo desenvolvido a partir de 2019 na Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA,
Campus Santana do Livramento. Este projeto tem o objetivo precípuo de fomentar e
difundir as pesquisas e/ou ações de extensão produzidas por discentes, docentes e
técnicos da Unipampa, em parceria ou não com outras instituições de ensino ou da
sociedade civil. Isto se dá com a publicação de livros, no formato de e-books, com
acesso livre e gratuito, com licenças Creative Commons, nas áreas de Ciências Jurídicas
e Ciências Sociais Aplicadas. Os livros são disponibilizados gratuitamente na página do
projeto Pensar Direito: https://www.facebook.com/projetopensardireito.
Produzido no segundo semestre de 2022 e publicado no início do ano de 2023,
este livro foi desenvolvido no âmbito de uma parceria entre o projeto Pensar Direito,
desenvolvido no âmbito do curso de Direito do campus Santana do Livramento, e os
cursos de Enologia e Gestão de Turismo, respectivamente, dos campus Dom Pedrito e
Jaguarão da UNIPAMPA. Parceria esta que inaugura uma salutar e profícua integração
entre ações de cursos e campus distintos desta instituição superior de ensino.
Escrito, em sua maioria por docentes e discentes da UNIPAMPA, mas também
por profissionais, que tiveram seus trabalhos selecionados em um edital público, este
livro traz análises multidisciplinares sobre a vitivinicultura em seus diferentes terroirs,
envolvendo percepções jurídicas, turísticas e enológicas sobre a temática. Assim, em
oito capítulos, este e-book inicia, em seus primeiros três capítulos, tratando sobre
questões relacionadas ao enoturismo, como os atrativos enoturísticos da Campanha
Gaúcha, o Festival Binacional de Enogastronomia na Fronteira da Paz e o caso da
vinícola Don Basílio. Nos dois capítulos seguintes são abordados assuntos mais
relacionados à enologia, como a harmonização de doces tradicionais de Pelotas com
vinhos e espumantes da campanha gaúcha e o perfil dos consumidores de vinhos finos
em Dom Pedrito/RS. Por fim, os três últimos capítulos focam em aspectos jurídicos,
como a relação da vitivinicultura com a função socioambiental da propriedade e
pagamento por serviços ambientais, as influências das indicações geográficas de vinhos
Sul-Rio-Grandenses no seu consumo e na proteção ambiental e o impacto da indicação
de procedência da campanha gaúcha no desenvolvimento sustentável da vitivinicultura.
Esperamos com este livro difundir as pesquisas desenvolvidas pela UNIPAMPA
sobre a vitivinicultura gaúcha, em seus diferentes terroirs, sob um prisma
multidisciplinar, contribuindo assim para o desenvolvimento regional. Destarte, com a
publicação de mais esta obra, o projeto Pensar Direito atende ao seu desiderato de
difundir e disponibilizar livremente o conhecimento gerado pela UNIPAMPA.
Boa Leitura!
SUMÁRIO

PREFÁCIO ............................................................................................................ 006

Capítulo 1 – O USO LÍCITO E ECONÔMICO DA RESERVA LEGAL


COM ATIVIDADE PASTORIL SUSTENTÁVEL NO BIOMA PAMPA –
Poliana François Vasques .............................................................................. 012

Capítulo 2 – O PANORAMA DOS CRIMES AMBIENTAIS OCORRIDOS


NA COMARCA DE URUGUAIANA E PROCESSADOS NA JUSTIÇA
FEDERAL NA SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XXI –Daiane Ferreira
da Silva .......................................................................................................... 067

Capítulo 3 – O LUGAR DE FALA DA MULHER NO CRIME DE


VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA – Micaele Mann Saldanha
............................................................................................................................. 092

Capítulo 4 – ENSINO DOMICILIAR NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA


POSSIBILIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DO HOMESCHOOLING NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO - Sara Chaga Benites Coelho
............................................................................................................... 136

Capítulo 5 – PARAÍSOS FISCAIS: OS PORQUÊS DE SUA EXISTÊNCIA


EM UM MUNDO GLOBALIZADO

Algumas Análises Acerca de Refúgios Fiscais e Seus Reflexos nos Direitos


Tributário e Internacional – Maurício Felipe de Castro Batista Fernandes
............................................................................................................................. 175

Capítulo 6 – ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE JURÍDICA DA


SUCESSÃO DE BENS DIGITAIS NO DIREITO BRASILEIRO – Felippe
Velasques Giriboni ............................................................................................... 266

Capítulo 7 – VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E VERDADE JURÍDICA:


como é construída a verdade jurídica sobre a violência psicológica contra a
mulher pelos agentes do sistema de justiça criminal – Maria Fernanda 308
Corrêa Freitas.......................................................................................................

Capítulo 8 – ACIDENTE DE TRABALHO E AS REPERCUSSÕES


ECONÔMICAS PARA O EMPREGADO, EMPREGADOR E ESTADO -
Vivian Daiane Liforma Pintos ..............................................................................
354
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 12

O USO LÍCITO E ECONÔMICO DA RESERVA LEGAL COM ATIVIDADE


PASTORIL SUSTENTÁVEL NO BIOMA PAMPA2

Poliana François Vasques


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
polianavet@hotmail.com

João Paulo Rocha de Miranda


Orientador
Docente do Curso de Direito da Unipampa
joaomiranda@unipampa.edu.br

RESUMO

O presente trabalho tem como tema a exploração lícita e econômica da Reserva Legal
com atividade pastoril mediante manejo sustentável. Sabendo-se que o uso econômico
da Reserva Legal pode variar muito de acordo com o bioma em que está inserida, a
vegetação predominante e o recurso natural a ser explorado, foi necessária uma maior
delimitação do objeto da pesquisa. Assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar a
possibilidade do uso lícito e econômico da Reserva Legal com atividade pastoril
sustentável no Bioma Pampa e para alcançar os objetivos propostos neste trabalho, foi
adotado o método dedutivo, partindo da análise geral da Reserva Legal, até chegar ao
seu uso no Bioma Pampa. Embora pertença à vertente técnico – jurídica, para alcançar
os objetivos, buscou-se o sentido, a interpretação e a aplicação da norma jurídica por
meio da avaliação de elementos técnicos, da geografia, da biologia e de matérias
correlatas ao bioma Pampa, sobretudo no âmbito do nosso estado do Rio Grande do Sul,
uma vez que é a única unidade da federação com tal bioma. Este trabalho está divido em
três capítulos, onde foram abordados a evolução da proteção do meio ambiente natural,
a natureza dos campos nativos do bioma Pampa e por fim o uso lícito da reserva legal
no bioma pampa com atividade pastoril. De modo geral, esta investigação partiu da
hipótese de que a atividade pastoril em campo nativo, praticada há séculos nos
ecossistemas campestres do bioma Pampa, é uma alternativa de utilização da Reserva
Legal que pode garantir sua conservação, se respeitada a capacidade de reprodução
natural da vegetação nativa. A discussão apresentada no decorrer da pesquisa confirmou
a hipótese inicial desse trabalho, de que é possível o uso lícito, sustentável e econômico
da atividade pastoril em área de Reserva Legal no Bioma Pampa. Foi possível concluir
que a correta interpretação e aplicação das leis de proteção ambiental no bioma Pampa e
o manejo adequado das atividades pecuárias são ações que, se realmente postas em
prática, poderão contribuir para a manutenção das áreas de campo nativo
remanescentes.
Palavras-chave: vegetação nativa; boas práticas de manejo; Reserva Legal; Bioma
Pampa.

2
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
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ABSTRACT

The theme of this work is the licit and economic exploitation of the Legal Reserve with
pastoral activities through sustainable management. Knowing that the economic use of
the Legal Reserve can vary greatly according to the biome in which it is located, the
predominant vegetation and the natural resource to be explored, a greater delineation of
the research object was necessary. Therefore, an epistemological cut was made to
investigate, economic use of the Legal Reserve thought substantinable management
based on f the Brazilian and Rio Grande do Sul legal system. Specifically, the pastoral
activity in the Pampa Biome was considered although it belongs to encompassed in the
technical - legal arena, in order to achieve the objectives, the meaning, interpretation
and application of the legal norm were sought through the evaluation of technical
elements, geography, biology and related matters to the Pampa biome, especially within
the scope of our state of Rio Grande do Sul, since it is the only unit of the federation
with such biome. Thus, this work is divided into three chapters, where the evolution of
the protection of the natural environment, the nature of the native grasslands of the
Pampa biome and finally the licit use of the legal reserve with pastoral activity were
discussed. In general, this investigation started from the hypothesis that the pastoral
activity in native grasslands, practiced for centuries in grassland ecosystems of the
Pampa biome, it is an alternative to use the Legal Reserve that can guarantee its
conservation, if the natural reproduction capacity of native vegetation is respected. The
discussion presented in the course of the research confirmed the initial hypothesis of
this work, that the legal, sustainable and economic use of pastoral activity in a Legal
Reserve area in the Pampa Biome is possible. It was possible to conclude that the
correct interpretation and application of environmental protection laws in the Pampa
biome and the proper management of livestock activities are actions that, could
contribute to the maintenance of remaining native grassland areas.
Keywords: native vegetation; good management practices; Legal Reserve; Pampa
Biome.
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1 INTRODUÇÃO

No mundo contemporâneo, torna-se a cada dia de maior relevância a proteção


dos recursos na natureza, pois a grande demanda pelos serviços ambientais tem
aumentado de forma planetária. A biodiversidade possui um papel essencial nos
mecanismos que garantem a vida no planeta, por conseguinte, a sobrevivência da
espécie humana, de menor potencial adaptativo as mudanças do meio.
No Brasil, o Direito Ambiental obteve contornos próprios em nosso
ordenamento jurídico, no processo mundial de constitucionalização do direito ao meio
ambiente, ocorrido entre as décadas de 80 e 90, após as primeiras Conferências da
ONU sobre meio ambiente. Com a Constituição Federal de 1988 o meio ambiente
recebeu um capítulo próprio na carta maior. Esta presença está expressa no Título
VIII, Capítulo VI, do texto constitucional, que trata especificamente do meio
ambiente. Embora este capítulo seja composto de um único artigo, este tem grande
complexidade e traz muitas informações e princípios, como o desenvolvimento
sustentável, a intergeracionalidade e a responsabilidade comum, entre outros. Este
dispositivo consubstancia-se no Art. 225, que dispõe, em seu caput, que “todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL,
1988).
O desenvolvimento sustentável integra um conjunto de paradigmas sobre o uso e
a preservação de recursos renováveis e não renováveis. Assim, pode ser entendido como
uma forma de desenvolvimento capaz de "satisfazer as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias
necessidades" (UNWCED 1987, p. 41). Esta conscientização levou o legislador
brasileiro à construção de mecanismos jurídicos hábeis a proteger o seu patrimônio
ambiental. Nesse sentido, tanto na Constituição, quanto no Código Florestal, há diversas
obrigações relacionadas a criação e proteção de espaços territoriais de extrema
importância ecológica. A fim de exemplificar, no inciso III, do § 1º, do Art. 225, o
legislador constituinte impôs ao Poder Público o dever de criar espaços territoriais e
seus componentes a serem especialmente protegidos (BRASIL, 1988), como as Áreas
de Preservação Permanente, as Reservas Legais e as Unidades de Conservação. Já o
Código Florestal, em seu Art. 12, dispõe que “todo imóvel rural deve manter área com
cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal [...]” (BRASIL, 2012).
A Reserva Legal tem por objetivo a manutenção dos recursos naturais, do
equilíbrio climático e ecológico, a preservação de recursos genéticos e da
biodiversidade. Em especial, ela promove a preservação da vegetação e seus atributos, o
que por consequência permite a proteção do solo, dos recursos hídricos e da fauna local
do rigor dos eventos da Natureza, caracterizando-se como um verdadeiro “testemunho
do ambiente natural”. Assim sendo, a destinação e manutenção de uma área de reserva
legal, é uma das ações mais efetivas na prevenção de impactos ambientais negativos de
empreendimentos localizados em áreas rurais. Por este motivo, todo imóvel rural deve
manter uma área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal.
(BRASIL, 2012).
Em relação ao tamanho da reserva legal, o Código Florestal definiu em seu Art.
12 parâmetros variáveis, conforme o grau de proteção que as políticas públicas almejam
para os biomas brasileiros. Em síntese, a reserva legal pode ter três dimensões,
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dependendo da região onde a propriedade ou posse rural esteja situada: 80% nas áreas
florestais da Amazônia Legal; 35% nas áreas de Cerrado localizadas na Amazônia
Legal; e 20% nos campos gerais localizados na Amazônia Legal, bem como nas demais
regiões do País (BRASIL, 2012). Sabendo-se que o uso econômico da Reserva Legal
pode variar muito de acordo com o bioma em que está inserida a vegetação
predominante e o recurso natural a ser explorado, para este trabalho se fez um recorte
epistemológico a fim de investigar, à luz do ordenamento jurídico brasileiro e sul-rio-
grandense, o uso econômico da Reserva Legal, especificamente com a atividade pastoril
no Bioma Pampa, mediante manejo sustentável.
Esta delimitação tem sentido, uma vez que a Universidade Federal do Pampa
está inserida no bioma Pampa, onde a pecuária é uma atividade econômica tradicional.
Ademais, este tema está regulamentado, tanto em legislação Federal, quanto em lei
Estadual. Dessa forma, apesar do Código Florestal brasileiro (Lei nº 12.651/12) tratar
sobre o uso da Reserva Legal, o Estado do Rio Grande do Sul, exercendo a competência
legislativa concorrente, também regulamentou esta matéria na Lei Estadual nº 15434, de
09 de janeiro de 2020, conhecida como o novo Código Estadual de Meio Ambiente.
Com isso, considerando que o Código Florestal brasileiro admite a exploração
econômica da Reserva Legal mediante manejo sustentável e que o Código de Meio
Ambiente gaúcho prevê a atividade pastoril em Reserva Legal, desde que seja adotada
boas práticas ambientais e tenha inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), o tema
desta pesquisa consubstancia-se no uso lícito, econômico e sustentável da Reserva
Legal no bioma Pampa com atividade pastoril.
O objetivo deste trabalho foi avaliar a possibilidade do uso lícito e econômico da
Reserva Legal com atividade pastoril sustentável no Bioma Pampa e para alcançar este
objetivo foi adotado o método dedutivo, partindo da análise geral da Reserva Legal, até
chegar ao seu uso no Bioma Pampa. A pesquisa é aplicada, qualitativa, exploratória,
bibliográfica e documental. Portanto, são investigadas fontes secundárias, como
materiais já publicados, constituído principalmente de livros, artigos de periódicos,
dissertações e teses, bem como fontes primárias, ou seja, dados e informações que ainda
não foram tratados científica ou analiticamente, como os instrumentos legais que
regulam a matéria, tais como o Código Florestal brasileiro (Lei nº 12.651/12), o Código
de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Lei nº 15.434/20), o Decreto Estadual
Gaúcho nº 52.431/2015, documentos públicos e decisões judiciais.
Esse trabalho teve um caráter multidisciplinar, e, embora pertença à vertente
técnico – jurídica, buscou o sentido, a interpretação e a aplicação da norma jurídica por
meio da avaliação de elementos técnicos, da geografia, da biologia e de matérias
correlatas ao bioma Pampa, sobretudo no âmbito do nosso estado. Ele foi divido em três
capítulos, onde foram abordados a evolução da proteção do meio ambiente natural, a
natureza dos campos nativos do bioma Pampa e por fim o uso lícito da reserva legal
com atividade pecuária no bioma pampa com atividade pastoril.

2 A EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE NATURAL

As preocupações com as questões ambientais ganharam notoriedade mundial a


partir das décadas de 1970 e 1980. Um dos marcos normativos, ainda que
internacionalmente, foi a Declaração de Estocolmo de 1972. No Brasil, o Direito
Ambiental obteve contornos próprios em nosso ordenamento jurídico, no processo
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mundial de constitucionalização do direito ao meio ambiente, ocorrido entre as décadas


de 80 e 90, após as primeiras Conferências da ONU sobre meio ambiente. Com a
Constituição Federal de 1988 o meio ambiente recebeu um capítulo próprio na carta
maior. Esta presença está expressa no Título VIII, Capítulo VI, do texto constitucional,
que trata especificamente do meio ambiente.
“O termo meio ambiente é um conceito jurídico indeterminado, cabendo, dessa
forma, ao intérprete o preenchimento do seu conteúdo” (FIORILLO, 2013, p. 49).
Assim a doutrina jusambiental classifica o meio ambiente em quatro aspectos que o
compõem: natural; artificial; cultural; e laboral. Embora o conceito de meio ambiente
seja unitário, sua classificação estabelece divisões que não são estanques, nem muito
menos isolantes, mas dinâmicas e com o propósito de facilitar a identificação da
atividade degradante e dos bens e valores imediatamente agredidos (FIORILLO, 2013,
p.49). Neste sentido, também aponta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
(STF), ao afirmar que o meio ambiente “[...] traduz conceito amplo e abrangente das
noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial
(espaço urbano) e de meio ambiente laboral” (BRASIL, 2006).
O meio ambiente natural é constituído pela atmosfera, pelos elementos da
biosfera, pelas águas, pelo solo, pelo subsolo, pela fauna e flora (FIORILLO;
RODRIGUES, 1997, p.54) e é tutelado pelo caput do artigo 225 da Constituição da
República e pelo seu § 1, incisos I, III e VII.
A proteção ambiental é um tema que interessa a todos, devido à sua importância
para a vida humana. Sabe-se que as consequências da degradação ambiental não
respeitam classe social ou etnia, causando uma preocupação única. O meio ambiente
ecologicamente equilibrado tanto para as gerações presentes como as futuras, segundo a
inteligência do art. 225, da Constituição da República de 1988 (CR/88) traduz essa ideia
de proteção ambiental.
Nessa perspectiva, o art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, representa o marco jurídico da democracia e da institucionalização do meio
ambiente como um direito difuso, de terceira dimensão, influenciado por valores de
solidariedade, com vistas a harmonizar a convivência dos indivíduos em sociedade. Tal
formulação trouxe grande evolução no campo da participação, bem como, no da
proteção ambiental reconhecendo sua importância para a vida digna do ser humano. O
caput do art. 225 da Constituição afirma ser o meio ambiente essencial à sadia qualidade
de vida e por este fato é dever do poder público e da coletividade defendê-lo e preservá-
lo. Com isso, o meio ambiente pode ser elevado à categoria de imprescindível para a
vida salubre do ser humano.
Corroborando, Carvalho explica (2008, p. 1267):
Verifica-se inicialmente que o direito ao meio ambiente se
relaciona com o próprio direito à vida do qual é uma
manifestação (...).
Trata-se, contudo, de direito à sadia qualidade de vida em todas
as suas formas, e não simplesmente de direito à vida.

A Constituição de 1988, além de impor de forma genérica o dever tanto da


coletividade quanto do Poder Público de preservar o meio ambiente, especificou alguns
deveres a este último. Dentre eles está o dever de definir espaços territoriais a serem
especialmente protegidos, de alteração e supressão permitidas somente por meio de lei.
É o que está disposto no artigo 225, § 1º, inciso III da Constituição:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 17

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público:
(...)
III - definir, em todas as unidades da federação, espaços
territoriais e seus componentes a serem especialmente
protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidos somente
através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a
integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
(...)
Com relação à competência legislativa, a Constituição Federal, em seu art. 24, I,
VI, VII e VIII, determina ser concorrente entre União, Estados-membros e Distrito
Federal a competência para legislar sobre matérias relativas à proteção do meio
ambiente, conservação da natureza, defesa do solo, proteção ao patrimônio paisagístico
e responsabilidade por dano ao meio ambiente. Já o art. 30, I, da Carta Federal, dispõe
serem os Municípios competentes para legislar sobre assuntos de natureza local e
respeitar o disposto nas legislações estadual e federal. A competência material
ambiental, comum à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios
vem delimitada no art. 23, III, VI e VII. É claro que o exercício da competência material
comum pelos Municípios pressupõe observância a normas editadas no âmbito do
exercício da competência legislativa concorrente, como ocorre no caso de questões
referentes à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente e ao
combate à poluição, estabelecidas nos incisos III e VI do art. 23 da Carta de 1988, como
os espaços territoriais especialmente protegidos.
Pode-se afirmar então, que partindo desse ideal constitucional de preservação
com a instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) foi que os
“territórios especialmente protegidos” passaram a ter uma denominação específica e um
amparo legal direcionado para a proteção e conservação desses espaços. Os espaços
territoriais especialmente protegidos (ETEP) podem ser definidos como qualquer área,
criada pelo Poder Público Federal, Estadual e municipal”, instituído pelo inciso VI, do
artigo 9°, da Política Nacional do Meio Ambiente, sobre a qual incida proteção jurídica
específica, integral ou parcial, de seus atributos naturais, seja ela pública, seja privada.
A Lei ° 9.985/2000 criou dois grupos de espaços ambientais especialmente protegidos,
cada um deles com diversas espécies e características próprias. São eles: unidades de
proteção integral e unidades de uso sustentável.
As Unidades de Conservação caracterizam-se, principalmente, por proteger uma
parcela representativa dos ecossistemas e foram divididas em subgrupos para determinar
como deverão ser tratadas e quais são suas respectivas prioridades. As Unidades de Uso
Sustentável representam os espaços onde serão promovidos a harmonização da
preservação da natureza. São sete categorias de Unidades de Uso Sustentável e são mais
voltadas para visitação e atividades educativas e uso sustentável de seus recursos. Já as
Unidades de Proteção Integral visam exclusivamente conservar uma determinada área,
não sendo possível serem exploradas diretamente. São subdivididas em cinco categorias
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 18

que possuem normas bastante restritas e são mais voltadas para a pesquisa e
conservação da biodiversidade.
As unidades de proteção integral são compostas pelas categorias de unidade de
conservações elencadas no artigo 8° da SNUC, sendo elas:
- Estação ecológica: regulada no art. 9°, tem por objetivo a preservação da natureza e a
realização de pesquisas científicas;
- Reserva Biológica: regulada no art. 10, destina-se à proteção integral da biota e demais
atributos existentes em seus limites, sem qualquer interferência humana ou modificação
ambiental, salvo a execução de medidas de recuperação dos ecossistemas;
- Parque Nacional: regulada no art. 11, busca proteger a preservação de ecossistemas
naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando pesquisas
científicas e interação acadêmica;
- Monumento Natural: regulado no art. 12, foi criado para preservar sítios naturais raros,
singulares ou de grande beleza cênica;
- Refúgio de vida silvestre: regulada no art. 13, destina-se à proteção de ambientes
naturais onde se possam assegurar condições de existência e de reprodução de espécies
residentes ou migratórias;
As unidades de uso sustentável, por sua vez, seguem-se no artigo 14 da Lei,
sendo elas:
- Área de proteção ambiental: regulada no art. 15, é uma área extensa, com certo grau de
ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais,
especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações
humanas. O objetivo maior é proteger a diversidade biológica.
- Área de relevante interesse ecológico: regulada no art. 16, é uma área, em geral, de
pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana, com características
naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da biota regional. O objetivo da
área é manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local.
- Floresta Nacional: regulada no art. 17, é uma área com cobertura florestal de espécies
predominantemente nativas. A proteção da área objetiva o uso sustentável de recursos
naturais e pesquisa científica.
- Reserva extrativista: regulada no art. 18, consiste em uma área utilizada por
populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e na
agropecuária de subsistência. Diferente das outras espécies, essa visa a proteger os
meios de vida e cultura das populações, assegurando o uso sustentável dos recursos.
- Reserva de fauna: regulada no art. 19, trata-se de área natural com populações animais
de espécies nativas, residentes ou migratórias, adequada para estudos científicos.
- Reserva de Desenvolvimento sustentável: regulada no art. 20, é uma área natural que
abriga populações tradicionais cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de
exploração de recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais.
- Reserva particular do patrimônio natural: regulada no art. 21, por fim, objetiva
preservar a natureza ao mesmo tempo em que assegura condições de reprodução e
melhoria da manutenção da vida por meio de exploração dos recursos naturais das
populações tradicionais.
A maior contribuição ao meio ambiente trazida pelo artigo 225, § 1º, inciso III,
da Constituição não está explícita no texto, e sim no respaldo que ele dá aos demais
textos legais, já que grande parte das restrições específicas dos espaços territoriais
especialmente protegidos ao uso dos recursos naturais está na legislação esparsa.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 19

Esta conscientização levou o legislador brasileiro à construção de mecanismos


jurídicos hábeis a proteger o seu patrimônio ambiental. Dentre estes mecanismos,
destaca-se a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998), no
âmbito criminal, bem como a instituição da responsabilidade civil objetiva (no âmbito
cível), pelos danos cometidos ao meio ambiente.
Nesse sentido, tanto na Constituição, quanto no Código Florestal, há diversas
obrigações relacionadas a criação e proteção de espaços territoriais de extrema
importância ecológica. A fim de exemplificar, no inciso III, do § 1º, do Art. 225, o
legislador constituinte impôs ao Poder Público o dever de criar espaços territoriais e
seus componentes a serem especialmente protegidos (BRASIL, 1988), como as Áreas
de Preservação Permanente, as Reservas Legais e as Unidades de Conservação.
Já o Código Florestal, desde a sua primeira edição, determina a necessidade de
ser mantida um percentual da propriedade rural com vegetação nativa. O primeiro
Código Florestal, de 1934, surge “[...] em meio à forte expansão cafeeira que ocorria à
época, principalmente na região Sudeste” (DICIONÁRIO AMBIENTAL, 2014). Assim
as florestas eram convertidas em plantações, “[...] sendo empurradas para cada vez mais
longe das cidades, o que dificultava e encarecia o transporte de lenha e carvão –
insumos energéticos de grande importância nessa época” (DICIONÁRIO
AMBIENTAL, 2014). Diante disso, o Código Florestal de 1934, Decreto nº 23.793/34,
dispunha, em seu Art. 23, que “nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá
abater mais de três quartas partes da vegetação existente [...]” (BRASIL, 1934). Embora
o Código de 1934 determinasse a manutenção de 25% da mata nativa, o que foi
chamada da “quarta parte”, ainda não havia sido criado o instituto jurídico da Reserva
Legal. No entanto, pode-se dizer que a “quarta parte” foi a precursora da Reserva Legal
no Brasil.
Isto só ocorreu no Código Florestal de 1965, que, no seu Art. 16, instituiu a
Reserva Legal no ordenamento jurídico pátrio, como sendo a “[...] área de, no mínimo,
20% (vinte por cento) de cada propriedade, onde não é permitido o corte raso [...]”
(BRASIL, 1965). Dispositivo este, que mais tarde foi alterado pela Medida Provisória
2.166-67/01, a fim de graduar o percentual da propriedade a ser mantido de Reserva
Legal, podendo ser de: oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de
floresta localizada na Amazônia Legal; trinta e cinco por cento, na propriedade rural
situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal; e vinte por cento, na
propriedade rural situada nas demais regiões do País ou em área de campos gerais,
independentemente da localização (BRASIL, 2001). Por fim, o Código Florestal de
2012, atualmente vigente, em seu Art. 12, dispõe que “todo imóvel rural deve manter
área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal [...]” (BRASIL,
2012), nos mesmos percentuais dispostos pela Medida Provisória 2.166-67/01, como
será abordado mais adiante.
A criação do primeiro parque nacional no Brasil ocorreu em junho de 1937, já
com as bases legais consolidadas através do Código Florestal Brasileiro, onde foi criado
o Parque Nacional de Itatiaia no Estado do Rio de Janeiro, sendo consagrada a primeira
unidade de conservação a ser efetivamente criada no Brasil, totalizando uma área de
11.943 hectares foi instituído nas terras da Estação Biológica de Itatiaia que era mantida
desde 1914, por parte do jardim botânico do Rio de Janeiro. (ARAÚJO, 2007). Em
1939, destaca-se a criação dos Parques de Foz do Iguaçu e da Serra dos Órgãos.
Contudo, desde o início das unidades de conservação no Brasil, estas tinham como
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 20

principais objetivos, além da proteção da biodiversidade e ecossistemas, a pesquisa


científica e a promoção de atividades de recreação/lazer para as populações urbanas.
Durante a primeira metade do século XX, além do esforço conservacionista com
a criação de unidades de conservação, o Brasil consagra a adesão à Convenção para a
Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América,
conhecida como a Convenção de Washington de 1940, que foi inspirada na Convenção
de Londres de 1933 e sinalizou para a internacionalização das políticas públicas de
conservação da natureza. Esta convenção visa à preservação em seu habitat natural das
espécies e gêneros da fauna e da flora e de áreas de beleza extraordinária mediante a
criação de áreas protegidas, estendida a preservação das espécies fora delas, e estabelece
uma lista de espécies a proteger. É complementada pela Convenção sobre o Comércio
Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção
(CITES, em inglês) de 1973. Esta foi decorrente de uma resolução de 1963 da União
Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), que prevê vários níveis de
proteção e abrange cerca de 30.000 espécies da fauna e da flora selvagens, e pela
Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992, conhecida como a Convenção da
Biodiversidade ou CDB e aberta para assinatura durante a Eco-92 no Rio de Janeiro
(aprovada no Brasil pelo DF 2.519/98 de 16-3-1998), que reconhece a conservação da
biodiversidade biológica como uma preocupação comum da humanidade e abrange
todos os ecossistemas, espécies e recursos genéticos, além de trazer aos gestores o
princípio da precaução. A Declaração do Rio de Janeiro/92, em seu Princípio 15,
determina que: De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser
amplamente observado pelos Estados de acordo com suas capacidades. A CDB inspirou
a nossa Política Nacional da Biodiversidade, objeto do DF 4.339/02 de 22.8.2002.
As áreas de preservação permanente (APP’s) e a reserva legal (RL) são dois
instrumentos contidos no Código Florestal Brasileiro que visam a proteção ambiental
sob diferentes perspectivas. As áreas de preservação permanente e as de reserva legal,
embora tenham natureza jurídica similar – espaços territoriais especialmente protegidos
–, são institutos que não se confundem, exercendo funções ecológicas absolutamente
distintas no ecossistema.
As Áreas de Preservação Permanente (APP), como dispõe o Código Florestal de
2012, são áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função
ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a
biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o
bem-estar das populações humanas. As APPs protegem áreas mais frágeis ou
estratégicas, como aquelas com maior risco de erosão de solo ou que servem para
recarga de aquífero, seja qual for a vegetação que as recobre, além de terem papel
importante de conservação da biodiversidade (SILVA, et. al, 2011, p. 48).
Por se localizarem fora dessas áreas estratégicas, que caracterizam as APPs, as
Reservas Legais são um instrumento adicional que amplia o leque de ecossistemas e
espécies nativas conservadas. São áreas complementares que devem coexistir nas
paisagens para assegurar sua sustentabilidade biológica e ecológica em longo prazo
(SILVA, ET. AL, 2011, p. 48). As áreas de Reserva Legal (RL), são encontradas
especificamente dentro dos imóveis rurais e deverão ser preservadas e utilizadas de
forma sustentável pelo dono daquele imóvel, por conterem uma grande parte do
ambiente natural de uma determinada área. Com a publicação do Novo Código
Florestal, em 2012, as áreas de Reserva Legal passaram a ter uma dupla função, quais
sejam, assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 21

rural e auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e da


biodiversidade. Assim sendo, a destinação e manutenção de uma área de reserva legal, é
uma das ações mais efetivas na prevenção de impactos ambientais negativos e na
constância dos empreendimentos localizados em áreas rurais e, portanto, o legislador
dispôs que todo imóvel rural deve manter uma área com cobertura de vegetação nativa,
a título de Reserva Legal. (BRASIL, 2012).
Dito isso, cabe ressaltar que sendo institutos diversos que exercem funções
ecológicas diferentes, ambos devem subsistir de forma autônoma em cada propriedade,
assegurando a imprescindível, insubstituível e eficaz contribuição de cada um deles para
o equilíbrio do ecossistema.
O que se verifica na legislação atual é que a vegetação da reserva legal não pode
ser suprimida, tendo o proprietário ou o possuidor a possibilidade de utilizar a área
apenas sob o regime de manejo sustentável, desde que previamente aprovado pelo órgão
competente do Sisnama conforme disposto no artigo 17, §1º (Lei 12.651/12). Assim,
ressalta-se que não se perde a posse ou a propriedade em razão da Reserva Legal, e não
se proíbe o uso da área. O propósito é que se conserve a vegetação nativa, podendo
haver a utilização da área de forma compatível com a proteção almejada. Esse novo
conceito, aliado a outros dispositivos demostram a possibilidade de exploração
econômica, desde que sustentável, e nos limites da lei da Reserva Legal dentro da
propriedade.
De qualquer forma, no artigo 17, parágrafo 1°, o Código Florestal atual deixou
clara a possibilidade de exploração econômica controlada da reserva legal ao afirmar
que:

Art. 17. A Reserva Legal deve ser conservada com cobertura de


vegetação nativa pelo proprietário do imóvel rural, possuidor ou
ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito
público ou privado. §1° Admite-se a exploração econômica da
Reserva Legal mediante manejo sustentável, previamente
aprovado pelo órgão competente do SISNAMA de acordo com
as modalidades previstas no art. 20.

Este entendimento não é novo no Código Florestal, pois já havia sido previsto
nos Código anteriores e, muito antes, o próprio Regimento do Pau-Brasil (primeira Lei
acerca da exploração florestal no país), de 1605, já previa algo neste sentido. Assim, os
primeiros dispositivos voltados à proteção de áreas ou recursos em terras brasileiras têm
seu registro ainda no período colonial. O principal objetivo era a garantia do controle
sobre o manejo de determinados recursos, como a madeira ou a água, tal e qual já se
praticava em algumas partes da Europa. Desde o século XV, vários Estados europeus
intervinham diretamente na proteção, no controle e no acesso de recursos naturais como,
por exemplo, a madeira, esta última representando um importante recurso militar
(construção de embarcações) e econômico (construção de residências e combustível
para aquecer os palácios e castelos da nobreza). É o caso das ordenações reais francesas
de Jean Colbert, durante o reinado de Luis XIV, e das ordenações portuguesas de D.
Manuel I, conhecidas como "manuelinas", que incluíam vários dispositivos de proteção
das florestas e dos recursos hídricos que, mais tarde, foram também aplicados no Brasil
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 22

(CASTRO, 2002; LARRÈRE & LARRÈRE, 1999; MEDEIROS, 2003; MIRANDA,


2004).
Dois exemplos emblemáticos dessa prática em terras brasileiras são o
"Regimento do Pau-Brasil" editado em 1605 e Carta Régia de 13 de março de 1797
(CARVALHO, 1967; MIRANDA, 2004). O primeiro, que pode ser considerado uma
das primeiras leis de proteção florestal brasileira, estabelecia rígidos limites à prática de
exploração do pau-brasil na colônia.
É fato que, ainda durante o período Imperial, muitas foram as personalidades
que se engajaram na criação de áreas protegidas no país. Os debates sobre a proteção de
espécies ameaçadas de extinção e o esgotamento dos recursos que dominavam a cena no
velho continente exerceram especial influência na emergente classe intelectual
brasileira, em boa parte formada nas tradicionais escolas européias (DEAN, 2003).
Dentre esses, um dos expoentes da chamada crítica ambiental brasileira foi, sem dúvida,
José Bonifácio de Andrada e Silva, que, no início do século XIX, demonstrava forte
motivação na defesa pela proteção dos recursos florestais. Ele tinha grande preocupação
com a destruição das florestas, pois havia estudado os efeitos do desmatamento sobre a
fertilidade dos solos em Portugal (PÁDUA, 2003). Em 1821, Bonifácio sugeriu a
criação de um setor administrativo especialmente responsável pela conservação das
florestas, uma vez que vastas porções da Mata Atlântica, sobretudo no Nordeste, tinham
sido destruídas para utilização da madeira (CABRAL, 2002; DEAN, 2003).
Outro movimento importante, foi a concretização no Brasil, em 1911, do
primeiro grande esforço em favor do já internacional movimento de criação de áreas
naturais protegidas: a publicação do "Mapa Florestal do Brasil". Esta obra, cujo
responsável foi o cientista brasileiro Luís Felipe Gonzaga de Campos, é o primeiro
estudo abrangente feito em nosso país com uma descrição detalhada dos diferentes
biomas e seus estados de conservação. Ele tinha a expressa intenção de subsidiar as
autoridades brasileiras para a criação de um conjunto de Parques Nacionais. Tal como
vinha ocorrendo em outros países, ele tinha como finalidade a conservação da beleza
natural e de bons exemplos da natureza ainda intacta, antes de sua destruição pelo
desenvolvimento humano, segundo os preceitos estabelecidos pela ideologia norte-
americana de preservação da wilderness (CASTRO JR, 2009. apud COSTA, 2003).
O início da década de 30 é marcado por importantes mudanças no cenário
político e social brasileiro pois, com a Revolução de 30, inicia-se o processo de
transição de um país até então dominado pelas elites rurais para outro que começa a se
industrializar e urbanizar, principalmente na região sudeste (CUNHA & COELHO,
2003). A consolidação das aspirações conservacionistas ficou registrada na segunda
constituição republicana brasileira, de 1934. Nela, pela primeira vez, a proteção da
natureza figurava como um princípio fundamental para o qual deveriam concorrer a
União e os Estados. Em seu texto (Capítulo I, artigo 10), ficou definida como
responsabilidade da União "proteger belezas naturais e monumentos de valor histórico e
artístico" (MEDEIROS, 2006). Proteger a natureza entra na agenda governamental
republicana, passando a configurar um objetivo em si da política desenvolvimentista
nacional. É neste cenário que os principais dispositivos legais de proteção da natureza,
que levaram à criação e consolidação das primeiras áreas protegidas, são criados
contemporaneamente no Brasil: o Código Florestal (Decreto 23793/1934), o Código de
Águas (Decreto 24643/1934), o Código de Caça e Pesca (Decreto 23672/1934) e o
decreto de proteção aos animais (Decreto 24645/1934) (MEDEIROS, 2006).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 23

O Código Florestal de 1934, ao proibir que aos proprietários de terras cobertas


de matas o abate de três quartas partes da vegetação existente, já iniciava a ideia de
reservar uma parcela da propriedade. Trazia, entretanto, algumas exceções, a exemplo
do art. 24, que limitava tal proibição à vegetação espontânea ou àquela resultante de
trabalho feito pela Administração Pública, e ainda o art. 51, que permitia
excepcionalmente o aproveitamento integral da propriedade mediante termo de
obrigação de replantio e trato cultural por prazo determinado (MILARÉ, 2007).
Anos depois, frente do cenário da época, aos 15 de setembro de 1965 foi
promulgado o Código Florestal de 1965, revogando o Decreto 23.793/34. O Código
Florestal de 1965 trazia limites mínimos, mas sua redação ainda era tímida e incompleta
no que diz respeito a Reserva Legal e sua definição legal e basicamente, seus objetivos
seguiam a mesma linha do seu antecessor. No entanto, ele extinguiu as quatro tipologias
de áreas protegidas antes previstas na versão de 34, substituindo-as por quatro outras
novas: Parque Nacional e Floresta Nacional (anteriormente categorias específicas), as
Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal (RL), na tentativa de conter
os avanços sobre a floresta.
Mais adiante, influenciado pela preocupação constitucional com o meio
ambiente, já com quase 25 (vinte e cinco) anos de vigência deste código florestal, foi
promulgada a lei 7.803/89 que apresentou mudanças significativas ao introduzir nesta
legislação a obrigação da averbação da área de reserva legal no registro imobiliário e
impedir o fracionamento das áreas de reserva legal através de sucessivos
desmembramentos. Assim, a Lei 7.803/89, ao acrescentar os parágrafos 1º e 3º, ao
artigo 16, do Código Florestal de 1.965 efetivou limites à exploração florestal e a
proteção contra o corte raso.
O ano de 2000 marcou uma importante modificação na estrutura de grande parte
das áreas protegidas brasileiras. Nele, finalmente foi concretizada a ambição surgida no
final dos anos 70 de estabelecer um sistema único - o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC) - que definiria critérios mais objetivos para a criação
e gestão de algumas tipologias e categorias de áreas protegidas que antes se
encontravam dispersas em diferentes instrumentos legais. O SNUC foi um instrumento
que não apenas incorporou de uma única vez parte das áreas protegidas prevista pela
legislação brasileira até então, como abriu espaço para que novas categorias fossem
criadas ou incorporadas a partir de experiências originais desenvolvidas no país
(MEDEIROS, 2006).
Em 2001, com a publicação da Medida Provisória n° 2.166-67/2001 o avanço da
legislação ambiental alcançou o status de proteção, pois foi houve uma alteração
significativa no Código Florestal de 1965, com a inclusão no texto da lei de uma
definição legal para Reserva Legal, além da redação do artigo 16 e todos os seus
parágrafos, onde houve o aumento da área de reserva legal para 80% e 35%,
respectivamente, nas propriedades localizadas na Amazônia Legal com área de floresta
e cerrado (artigo 16, incisos I e II), a supressão de vegetação sob regime de manejo
florestal sustentável (artigo 16, §2°), a aprovação da autoridade ambiental estadual ou
federal sobre a localização da reserva legal dentro da propriedade (artigo 16, §4°), a
extensão da obrigação de instituição de reserva legal para possuidores de áreas rurais
(artigo 16, §10) e ainda a obrigação de recomposição da área de reserva legal (artigo 44)
(BRASIL, 2001).
Apesar das significativas alterações na legislação ambiental e na proteção da
vegetação nativa, o Código Florestal de 1965 e a Medida Provisória 2.166/2001 foram
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 24

revogados pela promulgação da lei 12.651, de 28 de maio de 2012. Com a publicação


do Novo Código Florestal, as áreas de Reserva Legal passaram a ter uma dupla função,
quais sejam, assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do
imóvel rural e auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e da
biodiversidade. Esse novo conceito, aliado a outros dispositivos que serão abordados,
portanto, demostra a possibilidade de exploração econômica, desde que sustentável, e
nos limites da lei da Reserva Legal dentro da propriedade.
Em relação ao tamanho da Reserva Legal, o Código Florestal definiu parâmetros
variáveis, conforme o grau de proteção que as políticas públicas almejam para os
biomas brasileiros. Em síntese, conforme expresso no Art. 12, a Reserva Legal pode ter
três dimensões, dependendo da região onde a propriedade ou posse rural esteja situada:
80% nas áreas florestais da Amazônia Legal, 35% nas áreas de Cerrado localizadas na
Amazônia Legal e 20% nos campos gerais localizados na Amazônia Legal, bem como
nas demais regiões do País (BRASIL, 2012a).
O Brasil é formado por seis biomas de características distintas: Amazônia,
Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Cada um desses ambientes abriga
diferentes tipos de vegetação e de fauna a (BRASIL, MMA, 2018). A Constituição
Federal, em seu Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo VI, Do Meio Ambiente, Art.
225, § 4º, elevou a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o
Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira à condição de patrimônio nacional. Esse
dispositivo conferiu a esses biomas, de forma mais específica, uma maior proteção
quanto à utilização de seus recursos naturais, uma vez que exige que sua utilização se dê
dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto
ao uso dos recursos naturais.
Patrimônio, nesse contexto, exprime a ideia de um conjunto de bens naturais ou
culturais de importância reconhecida, que passam por um processo de reconhecimento
formal para que sejam protegidos e preservados, segundo Fonseca (2005, p. 58):
A ideia de posse coletiva como parte do exercício da cidadania
inspirou a utilização do termo patrimônio para designar o
conjunto de bens naturais ou culturais de importância
reconhecida, que passam por um processo de tombamento para
que sejam protegidos e preservados. A principal característica de
um patrimônio é o fato de que a sua conservação seja de
interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis
da história do lugar e de seu povo, quer por seu excepcional
valor arqueológico, etnográfico, ambiental, bibliográfico ou
artístico, que passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do
conjunto de todos os cidadãos (FONSCECA, 2005).

No entanto, apesar de não figurar como patrimônio nacional existem outras


legislações que garantem a preservação de todos os biomas brasileiros. Nesse sentido,
Machado (2004, p. 172) esclarece que:
A Constituição quis enfocar algumas partes do território, para
insistir na sua utilização dentro de condições que assegurem a
preservação do meio ambiente. Há de se reconhecer que são
áreas frágeis e que são possuidoras de expressiva diversidade
biológica, entretanto houve omissão no texto constitucional, pois
se deixou de incluir os Pampas, o Cerrado e a Caatinga, que são
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 25

importantes biomas brasileiros. O texto é pedagógico, no dizer


que essas áreas integram o “Patrimônio Nacional”, indicando
que os regionalismos não se devem sobrepor aos interesses
ambientais nacionais. O §4o, em exame, não enseja uma menor
exigência na legislação ambiental nas áreas não contempladas
no texto (MACHADO, 2004).

O Rio Grande do Sul integra dois biomas, Mata Atlântica e Pampa, que
apresentam singularidades relacionadas ao clima, solo, relevo e ecossistemas distintos,
com uma elevada biodiversidade nativa, permitindo o refúgio de inúmeras espécies
endêmicas de fauna e flora, incluindo espécies ameaçadas de extinção. O bioma Pampa
é caracterizado por um campo temperado, com grande riqueza de espécies nativas e
endêmicas, e também apresenta importante papel como produtor de alimentos,
contempla a metade sul do Estado. Delimitado à nível nacional ao Rio Grande do Sul,
ocupa aproximadamente 63% do território estadual, o que representa 2,07% do território
brasileiro (RENNER et al. 2019; LIMA et al. 2020), e é considerado o bioma menos
protegido do Brasil (LIMA et al. 2020). Os campos do Bioma Pampa estendem-se ao
sul e a oeste pela República Oriental do Uruguai e províncias argentinas de Corrientes,
Entre Rios, Santa Fé, Córdoba, Buenos Aires e La Pampa.
Proteger os recursos da natureza no mundo contemporânea tornou-se uma
realidade necessária e fundamental para a manutenção da vida em todas as suas formas,
sobretudo para a vida da espécie humana. Um dos desafios a serem concretizados
consiste em ampliar obviamente a maior proteção dos biomas brasileiros e sobretudo o
uso lícito, econômico e sustentável do ambiente natural, pois desta forma irão garantir a
manutenção da riqueza biológica que abriga o país.
Diante disso, no próximo capítulo será abordado sobre o bioma Pampa, a
natureza dos campos nativos no bioma Pampa, a classificação das suas áreas e as
questões jurídicas que envolvem a proteção e exploração do bioma Pampa.

3 A NATUREZA DOS CAMPOS NATIVOS DO BIOMA PAMPA

Para contar e compreender a história e as características geológicas e botânicas


do bioma Pampa, é prudente fazer um recuo de 20 mil anos. A região do pampa
compreende uma área de 500.000 km2, abrangendo a metade sul do Rio Grande do Sul,
o Uruguai, estendendo-se da província de Buenos Aires até Baía Blanca, em Mar del
Plata, na Argentina e parte do Paraguai (PALLARÉS et al., 2005). No Brasil, o Bioma
Pampa está restrito ao estado do Rio Grande do Sul, onde ocupa uma área de 176.496
km² (IBGE, 2004). Isto corresponde a 63% do território estadual e a 2,07% do território
brasileiro.
As paisagens naturais do Pampa são variadas, de serras a planícies, de morros
rupestres a coxilhas, de forma que bioma exibe um imenso patrimônio biocultural
imaterial. Este termo “surge da associação entre os termos patrimônio biocultural,
utilizado no Código de ética da Sociedade Internacional de Etnobiologia, e patrimônio
cultural imaterial, disposto pela Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial” (MIRANDA, 2017, p.68). Logo, o patrimônio biocultural imaterial, tem
atrelado a sua imaterialidade um componente material indissociável, a biodiversidade.
Portanto, patrimônio biocultural imaterial é um gênero, do qual compreende três
espécies: conhecimentos tradicionais; recursos da biodiversidade; e expressões culturais
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 26

tradicionais. Assim a noção de patrimônio remete aos aspectos econômicos e sociais,


enquanto a expressão biocultural imaterial, por sua vez faz referências às questões
culturais, ambientais e do patrimônio genético. (MIRANDA, 2017; RODRIGUES
JUNIOR, 2009).
Dessa forma, embora possa parecer, a um desconhecedor do bioma, que os
campos do Pampa são formações simples, dominadas por um mesmo tipo de “capim”,
trata-se, na verdade, um bioma bastante complexo, formado por várias formações
vegetacionais, cada uma delas sustentando suas peculiaridades (BOLDRINI, 2009).
Segundo Carvalho (2006, p. 126), o Pampa “é reconhecido como sendo um Bioma que
contém uma rica biodiversidade. Ele é o habitat de 3.000 plantas vasculares, 385
espécies de pássaros e 90 mamíferos terrestres”
As paisagens naturais do Pampa se caracterizam pelo predomínio dos campos
nativos, mas há também a presença de matas ciliares, matas de encosta, matas de pau-
ferro, formações arbustivas, butiazais, banhados, afloramentos rochosos, etc (BRASIL,
2018). O Pampa gaúcho é o único bioma brasileiro cuja ocorrência é restrita a somente
um estado e que ainda conserva um total de 41,13% da cobertura vegetal nativa
(original) ─ 23,03% correspondem a formações campestres, 5,19% a formações
florestais e 12,91% a formações de transição — mosaico campo-floresta. Isso quer dizer
que mais de 50% do Pampa já está alterado ou ocupado de alguma maneira, por alguma
atividade ─ pecuária ou agrícola (HASENACK, H., 2006). Hasenack et al. (2010)
caracterizaram os campos do Pampa no Brasil e Uruguai com base na vegetação
dominante e relevo, delimitando 13 sistemas ecológicos. Destes, 10 se encontram no
RS. São eles: campo litorâneo; campo arbustivo; campo misto do cristalino oriental;
campo graminoso; campo misto de andropogôneas e compostas; campo de solos rasos;
campo de areais; campo com espinilho; campo com barba de bode e; floresta estacional.
O Pampa apresenta um papel significativo na conservação da biodiversidade,
pois apresenta riqueza de flora e fauna ainda pouco pesquisadas (BINKOWSKI, 2009).
O bioma é formado por ecossistemas naturais com alta diversidade de espécies animais
e vegetais, que garantem serviços ambientais importantes, como a conservação de
recursos hídricos, a disponibilidade de polinizadores e o provimento de recursos
genéticos, além de ter grande importância no provimento de forragem para a pecuária
do sul do Brasil (PILLAR et al. 2009).
Em uma entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos - IUH, o professor Dr.
Heinrich Hasenack ao ser questionado sobre o porquê na região do pampa a vegetação
campestre predominou em relação à floresta, ele respondeu “cerca de 20 mil anos atrás,
no final do Pleistoceno, toda essa região provavelmente era campestre porque o clima
na época era mais seco e mais frio. A partir do final do Pleistoceno e início do
Holoceno, o clima se tornou mais quente e úmido, fazendo com que as formações
florestais pudessem se expandir a partir do Norte, ocupando, primeiramente, as porções
mais baixas do território ao longo da costa e do Rio Uruguai, e depois subindo os vales
pelo Rio das Antas, dos Sinos, Jacuí, Iguaçu etc. Por mais que, atualmente, tenhamos
um clima úmido e seco, não chegou o tempo em que toda essa região pudesse ser
ocupada por floresta. Nós temos esses campos e, embora o clima atual permita ter
floresta em grande parte deste território, porque temos chuvas o ano inteiro e
temperaturas suficientes para manter uma condição florestal, isso não aconteceu. Entre
o Pleistoceno e nossa época atual surgiram nós, os humanos, que contribuímos para
refrear esse avanço florestal. Essa paisagem campestre é um testemunho de um passado
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de mais de 20 mil anos em que dominava esse campo por uma área que se estendia mais
ao norte do que vemos hoje. Nós não temos apenas um tipo de campo nas áreas de
altitude como também não temos apenas um tipo de campo no pampa. Visitando os
locais, veremos ambientes diferentes. Embora os botânicos concordem com as
denominações das florestas que margeiam o pampa, os tipos de vegetação campestre
são motivo de debate e nem sempre foram unanimidade (HASENACK, 2021)”.
Essa discussão em relação a origem das características do Bioma Pampa no
Brasil saiu da esfera ecológica e ganhou importância no mundo jurídico. As questões
jurídicas que envolvem a proteção e exploração do bioma Pampa se intensificaram com
ataques recentes às salvaguardas ambientais jurídicas, como ao Código Florestal de
2012 (CF, Lei nº 12.651/2012). O Código Florestal regulamenta em seu art. 1º a
proteção e uso de todas as formas de vegetação nativa, porém é omisso em relação à
proteção e regulação do uso sustentável das vegetações não-florestais, como os campos
do Pampa. O Código é falho ao não caracterizar as formas de exploração econômica
autorizadas em RL não florestais (Art. 20 a 24 do CF) e ao não estabelecer a
necessidade de instrumentos regulatórios específicos, negligenciando, por exemplo, a
importância do manejo pastoril para a manutenção da biodiversidade e modos de vida
tradicionais do Pampa. Também, o Novo Código atrela as punições à supressão
irregular da vegetação nativa ao termo desmatamento, o que gera uma sensação de que
eliminar a vegetação nativa não florestal, como o bioma pampa, seria lícito. Essa
expressão “florestal” fortalece a percepção errônea de que o código de 2012
regulamenta apenas a proteção das vegetações florestais, quando na realidade pretende
abarcar todas as vegetações nativas.
O professor Dr. Heinrich Hasenack comenta ainda na entrevista concedida
durante a conferência do IHU ideias, que no Rio Grande do Sul existe uma transição de
ambientes tropicais para ambientes temperados e, de norte para sul, existem espécies
que estão mais adaptadas a uma condição tropical e que vão diminuindo sua presença na
mesma medida em que se dirige para a região sul do RS. Assim, os campos que temos
hoje, são o resultado do processo de evolução ao longo do tempo e mostram que a
história da ocupação da vegetação do pampa é mais antiga que a história da vegetação
florestal. Os campos estão aqui não porque a floresta foi derrubada e eles sobraram. Os
campos são áreas remanescentes de um período seco e frio anterior que não permitiu o
desenvolvimento de florestas, mas de vegetação campestre. Essa vegetação foi se
modificando ao longo do tempo e algumas espécies conseguiram se adaptar a um clima
mais úmido e mais quente, outras desapareceram porque não toleraram os ambientes,
houve espécies que conseguiram migrar. Os animais, especialmente os herbívoros,
desenvolvem um papel importante para manter a grama do campo baixa, que contribui
para a manutenção da vegetação do pampa. Dessa forma, essas afirmações podem
ajudar a fundamentar as discussões sobre a classificação dos campos nativos como áreas
remanescentes de vegetação nativa ou áreas com ocupação antrópica.
Em estudos sobre conversão e fragmentação dos campos sulinos, foram
apresentados dados de que na primeira década do século XXI restavam apenas 43% do
que havia originalmente (VÉLEZ-MARTIN et al., 2015). O que tem causado essa
dramática perda de área de campo nativo é a conversão para áreas de agricultura
(principalmente lavouras de soja, milho e arroz) ou de silvicultura (eucaliptos, pinus e
acácia), causando assim, a supressão dos campos existentes pelo uso de máquinas para
lavrar a terra e o uso de herbicidas aplicados para matar a vegetação campestre para
implantar as lavouras. A conversão acelerada das áreas de campo nativo para lavouras
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de soja e outras monoculturas anuais, configuram uma realidade preocupante para o


Pampa na atualidade (SILVEIRA et al., 2017). Conforme o relatório técnico da
cobertura vegetal do bioma Pampa (PROBIO, 2007), o estado de antropização dos
campos nativos, naquela época, era de 48,75%, No entanto, Boldrini et al. (2010)
afirmam que 51% da vegetação campestre original foi descaracterizada com a finalidade
econômica e para urbanização.
Essa progressiva conversão do uso do solo, com a expansão das monoculturas e
das pastagens com espécies exóticas, tem levado a uma rápida degradação e
descaracterização das paisagens naturais do Pampa, com a perda de biodiversidade.
Esse fenômeno compromete o potencial de desenvolvimento sustentável da região, seja
pela perda de espécies de valor forrageiro, alimentar ou pelo comprometimento dos
serviços ambientais proporcionados pela vegetação campestre, como o controle da
erosão do solo e o sequestro de carbono que atenua as mudanças climáticas, por
exemplo.
O Bioma Pampa é expressamente protegido pela Constituição do estado do Rio
Grande do Sul de 1989, no art. 251, §1º, XVI, onde consta que:

Art. 251 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e
futuras gerações, cabendo a todos exigir do Poder Público a
adoção de medidas neste sentido. Parágrafo 1º – Para assegurar
a efetividade desse direito, o Estado desenvolverá ações
permanentes de proteção, restauração e fiscalização do meio
ambiente, incumbindo-lhe, primordialmente:
[...]
XVI – valorizar e preservar o Pampa Gaúcho, sua cultura,
patrimônio genético, diversidade de fauna e vegetação nativa,
garantindo-se a denominação de origem (RIO GRANDE DO
SUL, 1989).

A inserção do Pampa Gaúcho na Constituição Estadual do Rio Grande do Sul


implicou na proibição do advento de normas ou atos administrativos que venham a
atentar contra o direito das presentes e futuras gerações de usufruírem desse importante
patrimônio ambiental e cultural. Entretanto, apesar dessa normatização de valorizar e
preservar o Pampa Gaúcho, a falta de regulamentação do art. 251, inciso XVI, tem
dificultado o controle estatal sobre as atividades econômicas que implicam em
conversão do uso do solo, o que é, em certa medida, favorecido pela insuficiência de
normas federais protetivas de ecossistemas campestres.
O Novo Código Florestal e seu Decreto regulamentador instituíram os conceitos
de área rural consolidada e de remanescente de vegetação nativa. Assim, a área rural
consolidada foi definida, no art. 3º, IV, Lei 12.651/2012, como “área de imóvel rural
com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações,
benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, nesse último caso, a adoção de
regime de pousio (BRASIL, 2012a)”. Além disso, o art. 2º, IV, Decreto Federal
7.830/2012, define área de remanescente de vegetação nativa, como “área com
vegetação nativa em estágio primário ou secundário avançado de regeneração
(BRASIL, 2012b) ”. Muito embora o Código destine-se à proteção não apenas de
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florestas, reconhecendo textualmente que essas, assim como “as demais formas de
vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse
comum a todos os habitantes do País” (BRASIL, 2012a), verificam-se lacunas
importantes quanto à proteção jurídica de campos nativos, que não receberam
tratamento compatível com suas peculiaridades biológicas. Assim, a deficiência do
Código Florestal em proteger os campos nativos do Pampa demonstra a necessidade de
normas protetivas complementares, a nível estadual.
O Código Florestal Federal previu a obrigatoriedade de todos os proprietários e
possuidores de imóveis rurais inscreverem suas respectivas áreas no Cadastro
Ambiental Rural (CAR), o qual consiste em um registro eletrônico de abrangência
nacional de todos os imóveis rurais, com natureza autodeclaratória, onde constem as
áreas rurais consolidadas, as áreas de remanescentes de vegetação nativa, as áreas de
reserva legal e as áreas de preservação permanente conforme disposto no art. 29, Lei
12.651/12 (BRASIL, 2012a). Em junho de 2015, devido à necessidade de adequação
das propriedades rurais ao novo código florestal, bem como de valorizar e preservar o
pampa gaúcho (RIO GRANDE DO SUL, 2015), foi publicado o decreto nº 52.431 (RIO
GRANDE DO SUL, 2015). Apesar desse decreto buscar elucidar algumas questões
específicas do Bioma Pampa, trouxe questionamentos quanto à consideração de
supressão de vegetação nativa, entre outros.
Com o objetivo de buscar a discussão interinstitucional das questões trazidas
pela necessidade do cadastramento para o Bioma Pampa, foi realizada, em 15 de
setembro de 2015, uma oficina intitulada “Estratégias de recomposição do Bioma
Pampa para atendimento ao CAR (Cadastro Ambiental Rural) ”. Essa oficina está
inserida em um projeto nacional da Embrapa, intitulado “Soluções tecnológicas para a
adequação da paisagem rural ao Código Florestal Brasileiro” e contou com a
participação de 37 pessoas de 13 instituições, sendo elas: Embrapa Clima Temperado,
UFPEL, Associação dos usuários da água do Rio Santa Maria (AUSM), Fundação
Zoobotânica/RS, Embrapa Meio Ambiente, IFSul campus Centro Acadêmico Visconde
da Graça (CAVG), UFRGS, Centro de apoio à promoção da agroecologia
(Capa)/Pelotas, IF Farroupilha, Fepam, ICMBio, Uergs e SEMA/RS. Essa articulação
interinstitucional se propôs a trazer diferentes visões sobre as dificuldades enfrentadas
para atendimento ao disposto no CAR e no Decreto, bem como a identificação de
inconsistências verificadas para atendimento aos objetivos dessa legislação quando da
sua transposição para um bioma diferenciado como o Bioma Pampa. As boas práticas
ambientais, colocadas como condicionante para uso de APP ou Reserva Legal, ou áreas
com remanescente de vegetação nativa, também não apresentam o conceito e limites de
práticas aceitáveis, nem indicativo de instituições habilitadas para essa definição ou
necessidade de normas de órgãos ambientais para tanto. Nesse contexto, o atendimento
dos preceitos de conservação e preservação do Bioma Pampa foi questionado pelos
pesquisadores. A possibilidade de melhorias na conservação e preservação do Pampa,
através dos instrumentos colocados pelo decreto necessitava de conferência, já que a
situação é autodeclaratória. Dito isso, se, porventura, o produtor rural entender que o
pastoreio implicou em supressão de vegetação nativa, poderá abster-se de requerer
autorização para conversão do uso do solo em lavoura de soja, por exemplo, o que se
consubstancia em um grande erro interpretativo, que representa grave risco para a
biodiversidade existente nesses campos nativos, uma vez que o pastoreio do campo
nativo não leva à supressão dessa vegetação nativa, pois o gado ao pastorear apenas
consome a parte aérea das plantas.
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Com a entrada em vigor do Código Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande


do Sul (CEMA) 9 de janeiro de 2020 ouve a revogação do Decreto Estadual nº
52.431/2015. Porém, o CEMA ao classificar como áreas consolidadas os campos
nativos utilizados como atividades agrossilvipastoris anteriormente a julho de 2008,
manteve o conceito do Decreto Estadual e tornou estas áreas aptas para aplicação dos
artigos 67 e 68 do Código Florestal, que dispensa os proprietários ou possuidores de
imóveis rurais, considerados como áreas consolidadas, de promover a recomposição,
compensação ou regeneração da vegetação nativa para os percentuais exigidos pelo
artigo 12 do Código Florestal:

Art. 67. Nos imóveis rurais que detinham, em 22 de julho de


2008, área de até 4 (quatro) módulos fiscais e que possuam
remanescente de vegetação nativa em percentuais inferiores ao
previsto no art. 12, a Reserva Legal será constituída com a área
ocupada com a vegetação nativa existente em 22 de julho de
2008, vedadas novas conversões para uso alternativo do solo.
Art. 68. Os proprietários ou possuidores de imóveis rurais que
realizaram supressão de vegetação nativa respeitando os
percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor
à época em que ocorreu a supressão são dispensados de
promover a recomposição, compensação ou regeneração para os
percentuais exigidos nesta Lei. (BRASIL, 2012a).

Assim, o Código Meio Ambiente gaúcho define em seu art. 2º, III, a área rural
consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades agrossilvipastoris como
sendo a “ [...] área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de
2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, neste
último caso, a adoção do regime de pousio; [...]” (RIO GRANDE DO SUL, 2020). Tal
dispositivo dá margem ao entendimento que a atividade pastoril em campo nativo causa,
necessariamente, a supressão da vegetação nativa, o que não é verdade. Isto porque os
bovinos comem apenas a parte aérea da gramínea, não suprimindo a vegetação nativa,
uma vez que estes não possuem dentes incisivos, nem caninos no maxilar superior. Por
isso os bovinos, principal espécie animal que pasteja os campos pampeanos, têm hábitos
seletivos de pastejo. O animal procura pelas folhas mais novas e macias, que estão no
extrato superior, então movimenta o focinho e busca as folhas com a língua, com a qual
arranca e leva o capim para a boca. Além disso se houver um manejo do gado e das
pastagens ou não ocorrer superlotação das pastagens com excesso de animais, o pasto
não é degradado. Pesquisas têm demonstrado que técnicas simples como a adaptação do
número de cabeça por hectare de acordo com a capacidade de suporte e o diferimento de
campo nativo podem dar ótimos resultados para a pecuária, além de manterem a
florística campestre (OVERBECK et al., 2009, CASTILHOS et al., 2011).
Apesar de ser notório na comunidade científica das ciências agrárias que o
pastejo não leva a supressão do campo nativo, mas a seu uso racional, o CEMA, em seu
art.2º, VII considera as áreas de remanescente de vegetação nativa como aquelas “[...]
áreas cobertas por vegetação nativa dos tipos florestal, campestre, ou qualquer outra
fisionomia vegetal, sem ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008;”. Desta
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forma, coloca a ausência de ocupação antrópica preexistente como condicionante para


considerar uma área como sendo remanescente de vegetação nativa.
Dito isto, analisando esses conceitos, percebe-se que essa aplicação literal da
legislação está equivocada. As áreas da propriedade com uso para pecuária sobre campo
nativo que mantém as características de pastagem nativa devem ser declaradas como
remanescentes de vegetação nativa e não como área rural consolidada, já que mantém a
vegetação nativa mesmo com pastejo de bovinos. Somente devem ser declaradas como
áreas rurais consolidadas as áreas em que a vegetação nativa foi suprimida e que se
mantêm com uso alternativo do solo, incluindo as áreas em regime de pousio. Usar o
conceito de Área Rural Consolidada para as áreas de produção pecuária em campo
nativo é um equívoco técnico que inviabiliza a proteção da vegetação nativa. O uso
indevido deste conceito busca equiparar as áreas com campo nativo com a condição
daquelas áreas em que houve supressão da vegetação nativa para uso alternativo do
solo. Afirmar que a presença do gado em campo nativo representa ausência da
vegetação nativa é uma tentativa explícita de burlar a legislação federal.
É como dizer, também equivocadamente, que uma área de manejo sustentável de
floresta amazônica deixa de ser floresta, não é mais vegetação nativa. Ora se é admitida
o manejo sustentável de floresta em uma área de reserva legal, justamente por não
configurar a supressão e conversão da floresta, também é necessário admitir que o
manejo sustentável de pastagem em campo nativo não acarreta a supressão e conversão
da pastagem nativa. Na verdade, o Código Florestal, em seu art. 3º, inciso VII, já admite
o manejo sustentável de qualquer forma de vegetação nativa:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por:


[...]
VII – manejo sustentável: administração da vegetação natural
para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais,
respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema
objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou
alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras
ou não, de múltiplos produtos e subprodutos da flora, bem como
a utilização de outros bens e serviços; (BRASIL, 2012a).

Ademais, considerando que a pecuária extensiva em campo nativo é uma


atividade tradicional no Pampa, considerar esta prática como supressão da vegetação
nativa, faria que uma parte dos imóveis rurais do bioma Pampa estivessem total ou
parcialmente dispensados da obrigação de manter vegetação nativa a título de Reserva
Legal. Conforme redação do art. 67 da Lei 12.651/2012, para aquelas propriedades
rurais com no máximo 4 (quatro) módulos fiscais comprovados até 22 de julho de
2008 e que possuma em seu interior atividades agrossilvopastoris, bem como possuam
um remanescente de vegetação nativa, ainda que menor que o percentual exigido para
a Reserva Legal, poderão permanecer dessa forma, não havendo necessidade de
recomposição para alcançar a área exigida pela lei.
Verifica-se, portanto, que, se a presença de animais herbívoros pastejantes fosse
considerada ocupação antrópica do campo nativo, esses proprietários poderiam declarar
suas áreas de pastejo sob campo nativo como área rural consolidada, em uma
interpretação literal e equivocada do texto legal e assim, com essa classificação, se
reduziria sensivelmente a extensão de Reserva Legal ser protegida. Com a dispensa da
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Reserva Legal surgiria a possibilidade de conversão das propriedades com pecuária


tradicional extensiva em outros usos da terra, como a sojicultora, aumentando a
degradação e descaracterização do bioma Pampa.
Diante dessa possibilidade, o Ministério Público do Rio Grande do Sul contestou
a definição de área consolidada estabelecida pelo Decreto estadual nº 52.431/2015 em
uma ação civil pública. Esse mesmo conceito foi novamente normatizado pelo Código
Estadual do Meio Ambiente em 2020. O MP/RS, apoiado por cientistas e
ambientalistas, defendeu nesta ação que a atividade pecuária sobre campos nativos não
provoca a supressão da vegetação nativa, que por sua vez é protegida pelo Código
Florestal. Ao contrário, o Pampa engloba um conjunto de ecossistemas com aptidão
natural para o pastoreio, e a pecuária extensiva deve ser considerada uma opção de uso
sustentável do solo compatível com a conservação do bioma e com as reservas legais.
Ainda, argumentaram que a definição de área consolidada do decreto de 2015 do
CEMA contraria a Constituição Rio Grandense, onde, no Art. 251, §1º, XVI, garante a
todos o direito ao meio ambiente equilibrado, e nomeia a preservação do Pampa
Gaúcho, incluindo seu patrimônio cultural e biodiversidade, como uma das condições
para assegurar esse direito. Diante disso, para que se reestabeleça a proteção jurídica ao
Pampa é necessária a revogação da definição de área consolidada oferecida pela Decreto
nº 52.431/2015 e pelo CEMA, que, erroneamente, isenta proprietários da obrigação da
RL (TREVISAN et. al, 2020).
As boas práticas ambientais, colocadas como condicionante para uso da Reserva
legal, ou áreas com remanescente de vegetação nativa, não apresentam o conceito e os
limites de práticas aceitáveis, nem indicativo de instituições habilitadas para essa
definição ou necessidade de normas de órgãos ambientais para tanto. O Código Estadual
do Meio Ambiente de 2020 definiu no Art. nº 2, XLIV, de forma geral, o bioma Pampa
como “bioma, que no Brasil ocorre exclusivamente no Estado do Rio Grande do Sul,
composto por formações campestres, arbóreo-arbustiva e florestal, com predominância
de campos nativos” e estabeleceu que uma caracterização mais detalhada e aspectos da
sua conservação serão definidos por um regulamento específico (Art. nº 203. Lei nº
15.434/2020). Assim, a regulamentação do Artigo 203 do novo Código Ambiental,
detalhará os aspectos para a conservação do Pampa, oportunizando positivar as
omissões do Código Florestal em relação a proteção das formações campestres, restando
claro que a pecuária é compatível com o regime de RL em campos nativos.
As principais transformações no solo do bioma Pampa estão ocorrendo nos
campos nativos, onde a atividade agrícola segue em curva ascendente. De outro lado, as
áreas de florestas estão estáveis. Esse panorama geral do bioma, contudo, apresenta
apenas uma visão parcial do que tem acontecido no ecossistema nos últimos anos.
Segundo Carmen de Oliveira, autora da pesquisa "Análise de mudanças da cobertura e
uso do solo no Bioma Pampa com matrizes de transição", em uma entrevista concedia
por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Carmen ao ser questionada sobre
qual a atual situação do bioma Pampa hoje, respondeu que numa sob análise detalhada
do bioma tem-se que 46% da vegetação é nativa e 44% é vegetação nativa suprimida em
uso antrópico (OLIVEIRA, 2021). Em outro ponto da entrevista, quando o IHU
pergunta “ Em seus estudos, a senhora aponta que campos nativos do Pampa do Rio
Grande do Sul “vêm, de forma consistente, sendo fragmentados e descaracterizados”.
Por que isso tem ocorrido? E como se dá essa descaracterização” a pesquisadora
responde que "a conversão dos campos por lavouras de monoculturas, principalmente
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grãos, ou silvicultura para obtenção de celulose é hoje uma das principais causas de
mudança do ecossistema” (OLIVEIRA, 2021).
Nesse sentido, diversos estudos apontam que a atividade pastoril é compatível
com a preservação do Bioma Pampa. Pillar e Lange (2015, p. 9), por exemplo, relatam
que “A vegetação campestre, com alta biodiversidade, há séculos tem sido utilizada
como pastagem para a produção pecuária na região Sul do Brasil. O uso pastoril dos
campos preserva a vegetação nativa e é essencial para manter as paisagens com muitas
espécies nativas de plantas e animais”. Assim, levando em conta que os remanescentes
de vegetação nativa campestre sustentam a atividade pecuária, pode-se dizer que o
futuro do campo nativo gaúcho depende desta atividade e que a combinação entre a
conservação e a produção econômica é uma vantagem competitiva para o bioma Pampa
na perspectiva do desenvolvimento sustentável.
Assumindo essa perspectiva, é importante ressaltar que as palavras
conservação e preservação têm sentidos distintos quando comparamos as formações
florestais e campestres. Ao conservar e/ou preservar uma floresta, muitas vezes, evitam-
se os distúrbios, inclusive com cercamento para evitar a entrada do gado. Por outro
lado, para a conservação dos campos é necessário que exista distúrbio, mas com regime
adequado, como por exemplo, o pastejo (FERREIRA, 2020). O uso dos campos para a
criação de gado tem sido uma das principais atividades econômicas do RS desde o
século XVII, e que manteve o campo nativo. De maneira geral, a pecuária é uma
atividade compatível com a conservação dos ecossistemas campestres, desde que com
carga animal adequada (NABINGER, 2009).
Nos primeiros anos de 2000 a área com floresta plantada (monoculturas) no
Pampa permaneceu na casa dos 150 mil hectares, iniciando um salto entre 2005 e 2006,
quando passou para a casa dos 175 mil hectares, chegando em 2018 a 456 mil hectares
(MAPBIOMAS, 2021). A silvicultura instaurada nos campos reduz a biodiversidade,
descaracteriza habitats para fauna, assola o banco de sementes e altera as taxas de
carbono assimiladas no solo, isto é, reduz o serviço ecossistêmico de grande relevância
exercido pelos campos (VERRASTRO, 2015). Além disso, as espécies de Pinus e
Acacia apresentam caráter invasor e estão se dispersando rapidamente para
além das áreas plantadas (GUADAGNIN, 2009). Monoculturas, de maneira geral,
reduzem a quantidade de mão de obra humana, colaborando com o êxodo rural e assim
criando não somente “desertos verdes”, mas também vazios demográficos.
Os impactos que as diferentes atividades econômicas, como monocultura,
silvicultura e a pecuária causam sobre o campo já é bastante conhecido pelos
pesquisadores. A grande questão em discussão nesta pesquisa é se a área rural com
atividade de pastoreio for considerada “consolidada” e não como “remanescente de
vegetação nativa”, quando da inscrição no CAR, o proprietário ou possuidor rural que
não havia averbado sua Reserva Legal até o dia 22 de julho de 2008, e se dedicava à
pecuária, ficará desobrigado de atender ao percentual de 20%, estabelecido no art. 12 da
Lei 12.651/12.
Como já mencionado neste capítulo, a ocupação humana nos campos nativos
do Bioma Pampa ocorre entre 300 e 400 anos, quando os colonizadores chegaram ao
Rio Grande do Sul e iniciaram a criação de gado. Ainda, as características atuais dos
campos nativos datam de muitos anos. Dessa forma, exigir de que não haja ocupação
antrópica para a caracterização dos “remanescentes de vegetação nativa” faria presumir
que todo o Bioma Pampa é antropizado e, portanto, uma grande área consolidada por
atividades pastoris. É tão lógico que o princípio fundamental da legislação ambiental é a
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preservação do meio ambiente que essa linha de entendimento não merece ser
sustentada. O pastoreio é por definição uma atividade humana e assim caracteriza
‘ocupação antrópica’, mas não causa supressão da vegetação nativa. Dessa forma, tem
se que o objetivo da inclusão do conceito de área rural consolidada na Lei 12.651,
quanto ao requisito ‘ocupação antrópica preexistente’, é contemplar situações em que a
vegetação nativa foi suprimida no passado para uso alternativo do solo e o imóvel rural,
atualmente, não dispõe de áreas de vegetação nativa para atender aos requisitos da Lei,
o que não seria o caso das propriedades em que há a vegetação nativa com uso
sustentável das atividades pastoris.
Em um discurso alusivo à comemoração do Dia Nacional do Bioma Pampa,
comemorado em 17 de dezembro, o secretário Artur Lemos Júnior, lembrou que com a
publicação da Lei 15.434 “pela primeira vez a legislação regional conceituou o bioma
Pampa e reconheceu a necessidade de definir diretrizes para sua conservação e
utilização sustentável, direcionando as ações da Sema para valorizar e preservar a
diversidade biológica nele existente” (SEMA, 2020). A legislação criou novos
dispositivos relacionados ao bioma, apresentando também uma definição legal,
conforme artigo 2º, inciso XLIV: “bioma, que no Brasil ocorre exclusivamente no
Estado do Rio Grande do Sul, composto por formações campestres, arbóreo-arbustiva e
florestal, com predominância de campos nativos;” (RIO GRANDE DO SUL, 2020).
A área do Pampa agora tem seu manejo regulamentado no código, algumas
atividades ficaram dispensadas de autorização de órgãos estaduais para serem
realizadas. Em seu artigo 203, o Código delega para “regulamento específico” a
definição das características e os aspectos da conservação (RIO GRANDE DO SUL,
2020). Porém, mesmo com a necessidade de complementação normativa, a lei também
previu aspectos importantes para a garantia da proteção da vegetação local. Segundo o
Código de meio ambiente gaúcho, em seu Art. 218, caput e § 1º, para realizar supressão
de vegetação para uso alternativo do solo, tanto nas áreas rurais consolidadas por
supressão de vegetação nativa com atividades pastoris, quanto nas áreas de
remanescente de vegetação nativa, o empreendedor deverá possuir Cadastro Ambiental
Rural – CAR e autorização ambiental prévia do órgão estadual ambiental competente
(RIO GRANDE DO SUL, 2020).
Essa supressão da vegetação campestre do Pampa ainda carece, sob o ponto de
vista legal, de medidas de proteção semelhantes às florestais, uma vez que áreas bem
conservadas ou degradadas são tratadas da mesma forma, tendo ambas a supressão
autorizada se não estiver a mesma em área de Reserva Legal. Atualmente, o técnico
ambiental apenas verifica se existem espécies ameaçadas no pedido de conversão da
vegetação campestre, e, muitas vezes, este não tem conhecimento suficiente sobre o
tema nem parâmetros legais como base. É dever, principalmente dos Estados, legislar
mais especificamente sobre as formações ecológicas únicas do seu território, com a
finalidade de proteger de maneira adequada suas peculiaridades, como consta na
Constituição Federal.
Por outro lado, no artigo 219 são apresentadas atividades que, por sua natureza,
dispensam autorização do órgão ambiental para sua instalação, operação ou realização,
entre estas, destacam-se: a atividade pastoril, em sistema extensivo, sobre área de
remanescente de vegetação nativa ou área rural consolidada por supressão de vegetação
nativa com atividades pastoris, fora de Área de Preservação Permanente e de Reserva
Legal, desde que não envolva supressão de vegetação nativa para uso alternativo do
solo; e a atividade pastoril sobre área de remanescente de vegetação nativa ou área rural
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consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris, em Áreas de


Preservação Permanente e de Reserva Legal, desde que o proprietário adote boas
práticas ambientais e tenha realizado a inscrição no CAR (RIO GRANDE DO SUL,
2020).
Em suma, na prática, a região do Pampa, na perspectiva de pensar que o manejo
pecuário é uma atividade antrópica e pastoril, entende-se que ela efetivamente promove
um processo de consolidação do solo, que acaba culminando no impacto da existência
ou não de reserva legal neste imóvel rural. Só que baseado no texto do Código de Meio
Ambiente Estadual, que previu, independentemente de ser consolidada ou ser
remanescente de vegetação nativa, a área com remanescente de vegetação nativa
campestre é caracterizada como tal, desde que a atividade antrópica se insira sobre os
campos pós 22 de julho de 2008. Porém, sabe-se, pela história do nosso estado, que isso
não existe porque os campos dependem da presença do gado ou de algum nível de
antropização, como manejo do fogo ou roçadas mecânicas para manterem suas
composições botânicas. No entanto, pela atual legislação, quando se tem atividade
pastoril antes de 22 de julho de 2008, significa que se está antropizando essa vegetação,
então antropizar, para fins de CAR, você cadastra como uso consolidado para atividades
pastoris.
Ambientalistas, pesquisadores, conservacionistas e apoiadores da preservação do
bioma Pampa tem lutado para que os incisos III e VII do art. 2º do Código do Meio
Ambiente do RS, que conceitua área rural consolidada por supressão de vegetação
nativa com atividades agrossilvipastoris e áreas de remanescente de vegetação nativa
sejam declarados inconstitucionais, pois, ao trabalharem com conceitos jurídicos
indeterminados, estabelecem conceitos que, além de não estarem previstos na Lei
Federal 12.651/12 e em seu decreto regulamentador, ou em qualquer outra norma
estadual, esvaziam a proteção jurídica sobre o Bioma Pampa, protegido pelo art. 251,
§1º, XVI, da Constituição do estado do Rio Grande do Sul, ensejando manifesto
retrocesso social. Ensina ANDREAS KRELL que “a extensão da liberdade
discricionária atribuída à Administração mediante o uso de conceitos indeterminados
depende, preponderantemente, do tipo de conceito utilizado pelo texto legal (...)”
(KRELL, 2004, p. 35). Conceitos que necessitam conhecimento técnico-científico não
podem ser dados sem estarem embasados em conhecimento técnico sobre o assunto.
Aprofundando-se nesta discussão, Valério De Patta Pillar, que é professor
titular do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS, afirma que
os conceitos do art. 2º, III e VII se confundem, pois a definição de área consolidada por
atividade “agrossilvipastoril” inclui o pastoreio, o que também consta do art. 2º, VI.
Todavia, sob o ponto de vista técnico, o pastoreio não causa supressão de vegetação,
residindo justamente nesse ponto o grave equívoco do conceito posto no art. 2º, III, do
CEMA. Pillar (2015) escreve que:

[...] a atividade agrossilvipastoril envolve lavouras, silvicultura


e/ou uso pastoril, de maneira isolada ou conjuntamente na
mesma área. Lavouras e silvicultura implicam necessariamente
na supressão da vegetação nativa, que é substituída pela cultura
de interesse. A atividade pastoril, porém, pode ser realizada
tanto em pastagens cultivadas (inciso IV do art. 2º), em que a
vegetação nativa foi suprimida para o plantio de espécies
forrageiras, como em campos nativos (inciso III do art. 2º), em
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 36

que a vegetação nativa é mantida sem necessidade de supressão.


Supressão de vegetação nativa campestre ocorre quando há a
destruição, o desenraizamento, a dessecação, a desvitalização
por qualquer meio, ou qualquer outra prática que promova a
conversão do uso do solo, desde que cause a exclusão das
espécies nativas campestres do ambiente. Note que essa
definição é praticamente a mesma do inciso IV do art. 2º, exceto
que exclui o corte, que no caso da grande maioria das plantas
campestres não causa sua supressão, apenas altera as relações de
dominância na comunidade vegetal. De maneira análoga,
portanto, o pastejo por animais pastadores, sejam nativos ou
domésticos, não causa, em situações normais, a supressão da
vegetação nativa campestre (PILLAR, 2015).

Assim, o texto legal abre margens para um interpretação equivocada ao


pressupor que a atividade pastoril leva a supressão de vegetação, o que tem sido
demostrado em muitas pesquisas acadêmicas que não é verdade, como Sichonany Neto
e Tybuch (2012) que relatam em sua pesquisa que vegetação nativa, que é a base da
alimentação dos animais não encontraria qualquer tipo de restrição ao pastoreio,
considerando que não há supressão da vegetação nativa, pelo contrário, existem
possibilidades de melhoramento, o que significaria a preservação daquela vegetação,
caracterizando o objetivo principal do instituto analisado, qual seja, a manutenção da
vegetação natural do bioma. Gonçalves et al (2012) concluíram em sua publicação que é
possível conduzir a criação de animais de forma sustentável, enriquecendo a paisagem
do bioma pampa com a biodiversidade e dando segmento as futuras gerações das
espécies. Outros pesquisadores, como Nabinger (2020) comprovam em suas
publicações que a conservação dos ecossistemas pastoris naturais é fundamental para
manter a biodiversidade, o equilíbrio das emissões gasosas, o armazenamento e
qualidade das águas, e uma série de outros serviços ecossistêmicos. Recorrendo a vasta
literatura sobre esse tema, pode-se dizer que a compatibilidade da atividade pastoril de
produção pecuária nos campos nativos com a conservação da biodiversidade
característica desses ecossistemas é fato cientificamente comprovado. Considerando-se
que os remanescentes de vegetação nativa campestre via de regra sustentam a atividade
pecuária, fica evidente que o futuro dos campos depende desta atividade e que a
combinação entre conservação e produção econômica é uma vantagem competitiva para
o bioma Pampa na perspectiva do desenvolvimento sustentável.
Dessa forma, amparados pela interpretação confusa e mal redigida do texto
legal do CEMA os remanescentes de vegetação nativa campestre utilizados na atividade
pastoril de produção pecuária estão sendo equivocadamente declarados no CAR como
áreas de uso consolidado. O entendimento de remanescente de campos nativos não se
refere à antropização da área, mas sim às fisionomias vegetais presentes na área. No
Bioma Pampa, a vegetação nativa é o campo nativo, o que pode ser considerado como
qualquer área com predomínio de espécies nativas herbáceas, sobretudo gramíneas e
arbustivas, as quais são adaptadas ao pastejo por animais pastadores e/ou queimadas, ou
seja, normalmente rebrotam após sofrerem perda de biomassa das partes aéreas
(PILLAR, 2015).
Vencidos os argumentos técnicos sobre a questão que envolve esse impasse de
classificação dos campos nativos, temos como principal argumento jurídico, que o
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 37

Código Estadual de Meio Ambiente ultrapassou sua competência concorrente ao utilizar


o critério de área não antropizada para a definição de remanescentes de vegetação
nativa, já que isso contraria a Lei Federal 12.651/12 e o Decreto 7.830, que dispõe sobre
o Sistema de Cadastro Ambiental Rural - SICAR, sobre o Cadastro Ambiental Rural -
CAR, e estabelece normas de caráter geral aos Programas de Regularização Ambiental
– PRA e define em seu art. 2º, IV, área remanescente de vegetação nativa como aquela
“[...] área com vegetação nativa em estágio primário ou secundário avançado de
regeneração” (BRASIL, 2012b). De outro lado, o CEMA traz em seu art. 2º, VII , a
definição de área de remanescente de vegetação nativa como aquela “[...] área coberta
por vegetação nativa dos tipos florestal, campestre ou qualquer outra fisionomia vegetal,
sem ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008” (RIO GRANDE DO SUL,
2020).
Percebe-se que o parâmetro utilizado na Legislação Federal diverge do
utilizado no Código Estadual, pois no âmbito federal utilizam-se os estágios
sucessionais de vegetação, e, portanto, admitindo que uma área com vegetação nativa
em estágio secundário – que já foi suprimida, mas que se regenerou – seja classificada
como remanescente de vegetação nativa. Já na esfera estadual utilizou-se a ausência de
antropização como parâmetro, o qual não tem fundamento técnico, pois sabe-se que a
existência da pecuária no Bioma Pampa ocorre desde a colonização portuguesa. Dessa
forma, a de se entender que a legislação federal permite que haja antropização em áreas
de campos nativos com estágio avançado de regeneração, sem que essas percam sua
natureza de “áreas com remanescentes de vegetação nativa”.
Diante desses argumentos, é preciso revisar as leis estaduais, em atenção
especial às disposições do novo Código Estadual do Meio Ambiente e a Lei Estadual n°
15.434/2020, que violam de forma flagrante os dispositivos de proteção da vegetação
nativa previstos na legislação federal. Deve ter atenção especial àqueles que buscam
desconstituir o enquadramento dos campos nativos com uso pecuário como
remanescentes de vegetação nativa, a exemplo do Art. 2°, inciso III, que está em
conflito com a proteção e o uso sustentável da vegetação nativa campestre, para que se
esclareça essa classificação aos produtores e técnicos da área de cadastramento. Dessa
forma, será possível que se garanta a proteção legal dos remanescentes de vegetação
nativa campestre, em conformidade com decisão liminar decorrente de Ação Civil
Pública impetrada pelo Ministério Público Estadual (MPE) em 2015 ainda em vigência.
Conclui-se, portanto, que a pecuária extensiva não descaracteriza o Bioma Pampa e,
tampouco, seus campos nativos, pois não implica em supressão de vegetação nativa, e
que os campos nativos, mesmo onde ocorre atividade pecuária, são áreas remanescentes
de vegetação nativa para os efeitos da Lei Federal 12.651/2012 e para inscrição dos
imóveis do CAR (STEIGLEDER, 2020).
Ultrapassada a discussão jurídica sobre a classificação dos campos nativos do
Rio Grande do Sul, é possível passar para uma nova etapa da discussão, tendo no
entanto algumas premissas: que o Pampa engloba um conjunto de ecossistemas com
aptidão natural para o pastoreio; que a pecuária extensiva deve ser considerada uma
opção de uso sustentável do solo compatível com a conservação do bioma e com as
reservas legais; que o Código Florestal brasileiro admite a exploração econômica da
Reserva Legal mediante manejo sustentável; e que o Código de Meio Ambiente gaúcho
prevê a atividade pastoril em Reserva Legal, desde que seja adotada boas práticas
ambientais e tenha inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Diante de tais
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 38

pressupostos, o capítulo seguinte pretende discutir o uso lícito, econômico e sustentável


da Reserva Legal no bioma Pampa com atividade pastoril.

4 O USO LÍCITO DA RESERVA LEGAL NO BIOMA PAMPA COM


ATIVIDADE PASTORIL

O Direito Ambiental busca o equilíbrio dos interesses ecológicos, econômicos e


sociais e um desenvolvimento sustentável, ou seja, um desenvolvimento capaz de suprir
as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as
necessidades das futuras gerações. Portanto, estudar a possibilidade do uso lícito,
econômico e sustentável da Reserva Legal no bioma Pampa com atividade pastoril
contribui para a preservação da biodiversidade e do ecossistema pampeano, e, por
conseguinte, para sua sustentabilidade.
A Reserva Legal é uma área coberta com vegetação nativa na qual se admite o
uso econômico sustentável dos seus recursos naturais. Nesse contexto, a Lei n°
12.651/12, popularmente conhecida como “Novo Código Florestal”, norteia e
regulamenta as atividades realizadas no interior das áreas de florestas nativas, visando a
sua conservação e preservação. A mesma permite, A mesma permite, em seu Art. 3º,
inciso X, alínea a, “abertura de pequenas vias de acesso interno e suas pontes e
pontilhões, quando necessárias à travessia de um curso d’água, ao acesso de pessoas e
animais para a obtenção de água [..]”. No entanto, isto não significa, propriamente, um
livre acesso de animais, como os bovinos, a essas áreas para a dessedentação. É
necessário que este acesso de animais seja eventual ou de baixo impacto, não ocorrendo
o comprometimento à regeneração natural e à manutenção da vegetação nativa
(BRASIL, 2012; BRANCALION et al., 2016).
No entanto, o mais importante para o objeto aqui discutido, é que o caput do Art.
17, do Código Florestal, dispõe que a vegetação da Reserva Legal não pode ser
suprimida, mas que deve ser conservada com cobertura de vegetação nativa pelo
proprietário do imóvel rural, possuidor ou ocupante do imóvel, seja este, pessoa física
ou jurídica, de direito público ou privado. Entretanto, isto não significa que a Reserva
Legal não possa ser explorada economicamente. Na verdade, o § 1º, do Art. 17, admite
“a exploração econômica da Reserva Legal mediante manejo sustentável, previamente
aprovado pelo órgão competente do Sisnama [...]” (BRASIL, 2012). Para entender o
que seja manejo sustentável, o próprio Código Florestal, no Art. 3º, VII, o define como
o manejo da vegetação nativa com propósitos econômicos, sociais e ambientais,
levando-se em conta “[...] os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do
manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas
espécies madeireiras ou não, de múltiplos produtos e subprodutos da flora, bem como a
utilização de outros bens e serviços;” (BRASIL, 2012, grifo nosso).
Assim, fica claro que a exploração econômica da Reserva Legal mediante
manejo sustentável não significa um manejo apenas de espécies florestais, mas de
qualquer vegetação nativa, uma vez que o legislador se refere a múltiplas espécies da
flora, madeireiras ou não. Ora, o pasto nativo é composto de diversas espécies, não
madeireiras, da flora nativa. Portanto, o proprietário ou possuidor tem o direito legal de
explorar economicamente a Reserva Legal, com campo nativo pampeano, sob o regime
de manejo sustentável, desde que previamente aprovado pelo órgão competente do
SISNAMA (BRASIL, 2012).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 39

No âmbito do bioma Pampa, o Código de Meio Ambiente do RS, normatiza no


art. 219, III, a dispensa de autorização do órgão estadual competente do SISNAMA para
o descapoiramento da vegetação nativa sucessora formada, quando seja realizado com o
objetivo de manutenção da vegetação campestre para a atividade pastoril (RIO
GRANDE DO SUL, 2020). Ainda, no inciso V, do art. 219, o Código de Meio
Ambiente do RS, também dispensa a autorização do órgão estadual do SISNAMA para
a atividade pastoril sobre área de remanescente de vegetação nativa ou área rural
consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris, em Áreas de
Preservação Permanente e de Reserva Legal, desde que o proprietário adote boas
práticas ambientais e tenha realizado a inscrição no CAR (RIO GRANDE DO SUL,
2020). Assim, no caso da Reserva Legal a ser delimitada sobre o campo nativo, as
atividades pastoris podem ser praticadas no seu interior desde que aplicadas técnicas de
manejo sustentável. Portanto, poder-se dizer que é possível o uso lícito e econômico da
reserva legal com atividade pastoril sustentável no bioma Pampa.
Nos últimos anos, a pecuária extensiva sobre pastagens nativas tem sido
amplamente reconhecida como uma forma de uso econômico compatível com a
conservação dos campos sulinos (PILLAR et al. 2006, CRAWSHAW et al. 2007,
OVERBECK et al. 2007). É possível associar a pecuária extensiva com o campo nativo
e com excelentes resultados, tanto para a obtenção de um produto de qualidade quanto
para a conservação do ambiente natural (NABINGER et al. 2009). Porém, em sua
publicação, de Pillar et al. (2006) comentam que a pecuária pode manter a integridade
dos ecossistemas campestres, mas o limiar entre uso sustentável e degradação é tênue
(PILLAR et al., 2006).
O uso sustentável pressupõe o uso consciente dos recursos naturais pela
humanidade, baseados no tripé da preservação ecológica, progresso social e
prosperidade econômica, para que possa suprir às necessidades desta geração atual, sem
comprometer a das gerações futuras a longo prazo. Em se tratando de atividades
econômicas sustentáveis, precisamos pensar nos produtos oriundos dessas atividades e
do retorno financeiro obtido com eles.
O manejo pecuário por vezes incorreto e excessivo tem levado a extenuação e
degradação (ANDRADE et al., 2015) desses ecossistemas, tanto na diversidade de
espécies como na sua composição e nos processos ecológicos, podendo assim afetar
funções que garantem os serviços ecossistêmicos já mencionados. Desta forma, há
necessidade de que as boas práticas de manejo pastoril para o aproveitamento do
potencial forrageiro dos campos e a conservação da sua biodiversidade sejam
aprimoradas e que sejam efetivamente adotadas nos sistemas de produção como forma
de desenvolver uma atividade econômica sustentável e competitiva neste tipo singular
de ecossistema. Além disso, o cumprimento do Código Florestal, com a delimitação da
Reserva Legal em áreas de campos nativos, demandará conhecimento adequado sobre
as melhores práticas de manejo com vistas à conservação e uso sustentável da
biodiversidade.
As propriedades rurais, em geral, têm a finalidade de gerar renda por meio da
exploração de atividades agropecuárias ou extrativistas animal, vegetal e mineral, sendo
que tais recursos naturais são extraídos do meio ambiente onde se localiza o imóvel
rural. O imóvel rural é unidade econômico-produtiva, que se destina à exploração da
atividade agrária, nos moldes do art. 4, I, do Estatuto da Terra. A função socioambiental
da propriedade rural, constante do art. 186, da CF/88, condiciona o uso do imóvel tanto
à exploração racional e adequada da terra, como à preservação dos recursos naturais,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 40

razão pela qual ambos os aspectos devem ser observados na aplicação da legislação
ambiental.
A Reserva Legal, como visto no capítulo 2, é um imperativo decorrente de lei,
concernente na obrigação do proprietário ou possuidor rural em manter área no interior
de um imóvel rural com a função assecuratória de flora e fauna nativa, em que se
permite a sua utilização sustentável, auxilia na conservação e a reabilitação da
biodiversidade local. Nesse sentido, a Reserva Legal, pode ter destinação econômica,
mas está condicionada ao atendimento e observância de vários mecanismos de
fiscalização e controle exercidos pelas autoridades competentes em matéria ambiental.
Destaca-se que no Bioma Pampa, a Reserva Legal a ser mantida é de 20% (vinte por
cento), que geralmente é delimitada sob áreas de campo nativo. Assim, por previsão
legal, não é permitido a retirada da vegetação nativa, mas é admitido o uso sustentável,
como por exemplo da pecuária extensiva do RS que se desenvolve há séculos
conservando a vegetação do pampa (WIZNIEWSKY, C.R.F; FOLETTO, E.M., 2017, p.
14).
Dessa forma, diante da obrigatoriedade de demarcação da Reserva Legal é
relevante propor alternativas desmistificando os impactos negativos e demonstrando os
aspectos positivos, por meio de alternativas viáveis economicamente à manutenção das
propriedades e demonstrar ao produtor que existem atividades que geram renda e, ao
mesmo tempo, estejam de acordo com as leis ambientais contribuindo para a
preservação do meio ambiente.
A pecuária em campo nativo tem se mostrado uma possibilidade de aliar a
produção agropecuária com a conservação da biodiversidade, mas também com a
manutenção de importantes serviços ecossistêmicos fornecidos pelos campos. A
vegetação campestre apresenta uma alta diversidade de espécies e de ecossistemas e está
em plena harmonia com o ambiente, ou seja, é adaptada aos diferentes locais. As plantas
que ali habitam apresentam na sua fisiologia e morfologia características peculiares
capazes de suportar os estresses do ambiente (BOLDRINI, I.I., 2009, p.76). A pesar de
ter uma vegetação muito mais baixa e de estrutura aparentemente mais simples quando
comparado com uma floresta, os ecossistemas campestres do sul do Brasil possuem
níveis de biodiversidade comparáveis aos de grandes florestas (MENEZES, L.
S.; SILVEIRA, F. F.; OVERBECK, G. E., 2021).
A maior parte dos remanescentes dos Campos Sulinos está sob manejo pastoril e
muitas pesquisas comprovam que o partejo com o gado, quando bem manejado,
contribui para a conservação dos campos nativos (NABINGER, 2009). Por isso, pode-
se considerar que o gado doméstico - bovinos e ovinos - exercem com o pastejo a
desfolha, que reduz a competição por espécies de crescimento mais alto e assim permite
a manutenção da grande diversidade de plantas bem como a heterogeneidade do habitat
para muitos grupos de animais. Além disso, transporta sementes, contribuindo, desta
maneira, para a regeneração de populações de plantas. Em suma, é o gado que mantém
as principais características dos ecossistemas campestres e a sua biodiversidade
(MENEZES, L. S.; SILVEIRA, F. F.; OVERBECK, G. E., 2021). Em muitos lugares,
tem sido observado que, na ausência de perturbação periódica, os campos sofrem a
invasão e o adensamento de plantas lenhosas e tendem a ser substituídos por outros
tipos de vegetação (BUGALHO e ABREU, 2008).
A ausência de manejo nos campos resulta no aumento da biomassa das plantas
dominantes, principalmente das gramíneas mais altas, que acabam competindo com
espécies de crescimento próximo ao solo. Essas espécies terão maior dificuldade de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 41

obter recursos, como água e nutrientes, e perderão espaço no ambiente para as robustas
touceiras. Além disso, terá acúmulo de biomassa seca, o que também contribui para a
perda de diversidade de plantas (MENEZES, L. S.; SILVEIRA, F. F.; OVERBECK, G.
E., 2021). Nos ecossistemas campestres da zona subtropical/temperada da América do
Sul, a exclusão dos herbívoros freqüentemente leva ao “engrossamento” dos campos
(aumento na cobertura de gramíneas cespitosas altas) e à redução da diversidade
florística em razão da dominância de algumas poucas espécies competitivamente
superiores que normalmente são controladas pelo pastejo (NABINGER, 2006;
OVERBECK et al. 2007). Portanto, realizar manejo algum não contribui para a
conservação dos campos nativos, já que as espécies típicas dos mesmos, plantas e
animais, não encontrarão mais um habitat adequado. Nos Campos Sulinos, o gado é um
aliado da conservação, desde que em carga animal adequada (MENEZES, L.
S.; SILVEIRA, F. F.; OVERBECK, G. E., 2021).
A Resolução CONSEMA nº 360/2017 que estabelece diretrizes ambientais para
a prática da atividade pastoril sustentável sobre remanescentes de vegetação nativa
campestre em Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal no Bioma Pampa,
traz que:

Art. 1° - Esta Resolução destina-se ao estabelecimento de


diretrizes ambientais para a prática da atividade pastoril
sustentável sobre remanescentes de vegetação nativa campestre
em Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal no
Bioma Pampa. Parágrafo único. É recomendável observar os
seguintes princípios gerais para exercer a prática da atividade
pastoril sustentável sobre remanescentes de vegetação nativa
campestre em Áreas de Preservação Permanente e de Reserva
Legal no Bioma Pampa:
I - Na atividade pastoril, evitar o sobrepastejo e desajustes na
capacidade de suporte por períodos prolongados.
II - Para a atividade pastoril nas áreas campestres de Reserva
Legal e Áreas de Preservação Permanente é recomendável
observar os princípios do bem estar animal e das boas práticas
de manejo com os animais e com as pastagens, tais como o
ajuste de carga animal, o diferimento estratégico, a modulação
da estrutura do pasto e o uso de subdivisões das áreas (RIO
GRANDE DO SUL, 2017).

Essa resolução representou um avanço no regramento de uso da Reserva Legal


de ecossistemas abertos - no caso, os campos nativos do bioma Pampa – porém é
preciso que haja um monitoramento do uso e revisão de intervenções autorizadas na
Reserva Legal, como adubação, introdução de exóticas, irrigação e outras, que podem
trazer alterações ecológicas indesejáveis nesta porção da propriedade rural. Porém, um
grande desafio aos órgãos ambientais nas ações de fiscalização é que as áreas de
Reserva Legal das propriedades não são delimitadas, dificultando a percepção se estão
sendo submetidas a um manejo diferenciado com vistas a sua conservação.
A biomassa da vegetação campestre é diretamente influenciada pelas diferentes
formas de manejo pastoril às quais é submetida, sendo de grande importância avaliar,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 42

quantificar e monitorar os processos envolvidos e seus efeitos na vegetação, que


também terão efeito nas taxas de produção pecuária. Imagens e dados obtidos por
sensoriamento remoto são ferramentas essenciais para a caracterização de ambientes
naturais ou manejados. Além das imagens de sensoriamento remoto cobrirem extensas
áreas na superfície terrestre e tornar possíveis mapeamentos de grande escala, existe a
possibilidade de extrapolar relações obtidas em regiões específicas, dependendo da
consistência e estabilidade da variável ecossistêmica estudada (KUPLICH et al., 2016).
A detecção remota da biomassa campestre gera informações espectrais, temporais e
espaciais, possibilitando medições de extensas áreas simultaneamente, minimizando os
esforços com procedimentos laboratoriais e de coletas de campo. Essa tecnologia tem
sido introduzida no monitoramento da vegetação campestre, com vistas à otimização
das pesquisas relacionadas a ecologia dos campos nativos, estimativas de produtividade
e para auxílio no monitoramento dos manejos pastoris e nas fiscalizações.
Pesquisas que avaliaram o balanço entre produção e diversidade florística
apontam que ele é alcançado quando a oferta de forragem é mantida em torno de 12%
de matéria seca em relação ao peso vivo do animal (NABINGER, 2006). Segundo
Pedreira (2002) forragem é a parte comestível da relva, exceto os grãos, contudo, não
configura comida para humanos, pois nossos estômagos simplesmente não a processam.
O “(...) gado transforma em alimento humano recursos que não nos são diretamente
acessíveis. Nós humanos não comemos pasto”, dizia Lutzemberguer (1997). Portanto, a
melhor, e mais sustentável forma de manter as características botânicas originárias das
pastagens nativas, paralelamente produzindo alimento, é através dos ruminantes, que as
convertem em proteína, assim “jocosamente, a melhor forma de colher o pasto é o boi
(SELISTRE, 2021, p 61). ”
A lei estadual n. 15.434 de 09 de janeiro de 2020 que instituiu o novo arcabouço
legal sobre meio ambiente no Estado do Rio Grande do Sul colaborou para que se
avance na conservação do Pampa, já que instituiu, no seu art. 218, a obrigação de
autorização prévia para supressão dos campos nativos, bem como de qualquer vegetação
nativa, para uso alternativo. Isto evita, por exemplo, que um campo nativo seja
convertido em lavoura, sem que o órgão estadual do SISNAMA autorize. Além disso, o
art. 203, do mesmo dispositivo legal, impôs a obrigação de que o Bioma Pampa tenha
“[...] suas características definidas em regulamento específico, o qual detalhará aspectos
de conservação” (RIO GRANDE DO SUL, 2020). Enquanto não ocorre essa
regulamentação, o produtor rural tem no art. 3º da Resolução CONSEMA nº 360/2017
algumas diretrizes e condicionantes sobre o que seria autorizado nas áreas de Reserva
Legal na elaboração de um plano de Manejo Sustentável. Embora o exercício da
atividade pastoril em áreas de Reserva Legal no Bioma Pampa não exija a apresentação
deste plano de Manejo Sustentável é necessário que o produtor adote boas práticas
ambientais, aplicando técnicas de manejo sustentável.
Assim, é importante observar o art. 3 º da Resolução CONSEMA nº 360/2017
para avançar essa discussão:

Art. 3º - Serão passíveis de autorização nas áreas de Reserva


Legal os Planos de Manejo Sustentáveis que atendam as
seguintes diretrizes:
I - Impossibilidade de qualquer tipo de conversão de uso do
solo, tais como lavração, gradagem, drenagem ou outros
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 43

métodos que promovam o desenraizamento, sendo permitida


apenas capina local e seletiva de espécies exóticas invasoras.
II - A roçada da vegetação deve ser realizada como prática de
manejo, incluindo o aproveitamento de sua biomassa, sendo
vedada a supressão da vegetação nativa.
III - A previsão do corte seletivo de vegetação arbustiva ou
arbórea nativa sucessora poderá ser autorizada quando:
a) A Reserva Legal tenha sido localizada sobre área de
matriz campestre, e;
b) A prática se dê como técnica pontual de manejo, afim de
recuperar a fisionomia predominantemente campestre da
área;
IV - O manejo a ser adotado deve garantir a manutenção e a
conservação de espécies vegetais nativas ameaçadas e/ou
imunes ao corte constantes em listas oficiais da flora ameaçada
de extinção ou outros instrumentos legais.
V - A introdução de espécies forrageiras nativas do bioma
Pampa poderá ocorrer pelo método de sobressemeadura ou outro
qualquer que não envolva revolvimento do solo e/ou o
desenraizamento vegetação local.
VI - A Introdução de espécies forrageiras exóticas somente
poderá ocorrer pelo método de sobressemeadura, restringindo-se
ao uso das espécies forrageiras autorizadas pelo órgão ambiental
competente no Plano de Manejo Sustentável.
VII - Impossibilidade de introdução de qualquer espécie exótica
invasora constante em lista oficial.
VIII - O uso de herbicidas somente será possível através de
capina local e seletiva e desde que se destine ao controle de
espécies exóticas invasoras de ocorrência espontânea.
IX - O uso de fertilização e/ou irrigação deverá estar limitado às
disposições dos incisos anteriores, bem como à legislação
vigente (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Essas exigências visam basicamente manter as características da pastagem


nativa. Dessa forma, entendeu o legislador, que as atividades pastoris seriam possíveis
de serem realizadas em área de Reserva Legal pois são compatíveis com a manutenção
do campo nativo. O manejo do pastejo bem-sucedido promove os serviços
ecossistêmicos por meio do uso eficiente e sustentável dos recursos solo, água e planta e
o manejo com essas características combina princípios científicos e conhecimento local
para encontrar estratégias que intensificam os quatros principais processos
ecossistêmicos: conversão eficiente da energia solar pelas plantas, interceptação e
retenção da água da chuva pelo solo, otimização da ciclagem de nutrientes e aumento da
biodiversidade (CHIAVEGATO, 2018, p. 27-28). Savory (1999), um ambientalista
fanático, após muitos estudos, reconheceu que a criação de animais é a única ferramenta
que, se manejada adequadamente, pode reverter a desertificação, a perda de
biodiversidade e as mudanças climáticas em escala global. Para ele, a desertificação não
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 44

é consequência da superpopulação de gado, mas da maneira como ele é manejado


(SAVORY, 1999).
Estratégias de manejo do pastejo que otimizem a utilização de forragem pelos
animais e aumentem a digestibilidade da matéria seca permitem a intensificação
sustentável em sistemas de produção baseados em pastagens. Cientistas preocupados
com os impactos da pecuária sobre o meio ambiente, decidiram unir esforços na rede de
pesquisa PECUS com a finalidade de esclarecer qual a verdadeira contribuição da
pecuária brasileira nas questões ambientais e iniciaram estudos sobre o balanço de
carbono nos principais sistemas de produção pecuários com o objetivo de garantir a
sustentabilidade da pecuária brasileira. Como resultado desses estudos, verificou-se que
a degradação das pastagens é o principal problema da pecuária de corte brasileira, mas
por outro lado verificou-se que é possível produzir carne de forma sustentável, a carne
carbono neutro (OLIVEIRA et al., 2017).
Em recente publicação, Alexandre Valente Selistre, advogado, pecuarista e
doutorando NESPro/CEPAN/UFRGS, publicou em um artigo na Revista Campo Nativo
& Pastagens Nº 3 que diante da leitura de diversos trabalhos desenvolvidos por
pesquisadores gaúchos é possível afirmar de forma categórica que a “pecuária foi um
fator preponderante de preservação do Bioma Pampa” (SELISTRE, 2021, p.62).
Também, Seliestre coloca em seu artigo que “ousa-se alegar isto baseado nas
conclusões de Lutzemberguer (1999), ao citar que (...) a pecuária é a vocação do campo
gaúcho e uma das responsáveis pela sua manutenção.; Carvalho (2006) concorda “(...) A
atividade pecuária desenvolvida no Rio Grande do Sul não é um agente degradante, pelo
contrário, é capaz de preservar o meio ambiente, ou seja, preservar o Bioma Pampa
(...)”; Jacques (1999) assevera “(...) as pastagens representam para o Rio Grande do Sul
uma excelente alternativa na intensificação da atividade pecuária – do ponto de vista
ecológico, energético e econômico.” Malvezzi (2010) leciona que o “Pampa Gaúcho é
bastante diferente dos demais biomas brasileiros. Dominado por gramíneas, com poucas
árvores, sempre foi considerado mais apropriado para a criação do gado.”. Sichonany
Neto e Tybusch (2012), tratando especificamente sobre o tema, concluíram que: “(...) ao
se realizar o manejo de campos para o desenvolvimento da pecuária extensiva, ou seja,
ao se preparar o campo nativo para a pecuária, estar-se-á tomando uma medida de
preservação do bioma, e não de degradação”” (SELISTRE, 2021, p. 62).
Diante de tantas evidências sobre os efeitos da atividade pastoril sobre os
campos nativos, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, do
Estado do Rio Grande do Sul, emitiu um parecer no Projeto de incentivo ao manejo
conservacionista em campo nativo no bioma Pampa, afirmando que a “[...] a criação do
gado em campo nativo contribui historicamente para a conservação de seus
ecossistemas e do patrimônio sociocultural associado, protegendo espécies da fauna e
flora e caracterizando, também, um dos marcos culturais do sul do Brasil” (RIO
GRANDE DO SUL, 2017, p.3).
Ademais, diante dessas informações, tem-se que em regiões de pastagens
naturais, como no Pampa e no Pantanal, o pastoreio de gado é permitido nas Reservas
Legais e quando bem administradas, essas áreas podem fornecer retorno econômico
competitivo para os agricultores, ao mesmo tempo em que conservam os recursos
naturais (OVERBECK et al., 2015). A especificação do manejo (por exemplo,
densidade de rebanho, rotação, uso de queimadas prescritas) também devem considerar
a diversidade de campos nativos presente no Pampa e de seu estado de conservação.
Nabinger (2006) demonstra que os índices produtivos da bovinocultura podem ser
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 45

incrementados se houver melhor planejamento da atividade, com a adoção das práticas


de manejo, como ajuste carga animal, rotação, uso de queimadas, e assim gerando maior
retorno econômico ao produtor e disponibilizando aos consumidores produtos de
melhor qualidade, além de promover a conservação do bioma.
Sichonany Neto e Tybuch (2012) relatam em sua pesquisa que vegetação nativa
é a base da alimentação dos animais criados no pampa, representando 69% da pastagem
nas áreas onde se desenvolve a pecuária. Assim, a instituição da Reserva Legal em áreas
onde a pecuária é desenvolvida com base na pastagem nativa não encontraria qualquer
tipo de restrição, considerando que não há supressão da vegetação nativa, pelo
contrário, existem possibilidades de melhoramento, o que significaria a preservação
daquela vegetação, caracterizando o objetivo principal do instituto analisado, qual seja,
a manutenção da vegetação natural do bioma (SICHONANY NETO; TYBUCH, 2012).
Para os referidos autores e também de acordo com a legislação, o melhoramento
dos campos nativos seria uma forma de aumentar a produtividade das pastagens
naturais. Para os pesquisadores, existem métodos de melhoria dos campos nativos que
podem ser realizados nas áreas de Reserva Legal, inclusive o cultivo de pastagens de
estação fria, uma vez que estas forrageiras não substituem a pastagem nativa e conforme
o art. 3 º, inc. VI da Resolução CONSEMA nº 360/2017 que diz que “ a introdução de
espécies forrageiras exóticas poderá ocorrer pelo método de sobressemeadura, desde
que a espécies forrageiras autorizadas pelo órgão ambiental competente no Plano de
Manejo Sustentável” (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Essas pastagens, em geral, são
cultivadas no inverno para que a produtividade não diminua na estação do ano em que
as pastagens naturais têm seu potencial reduzido. Considera-se uma complementação da
pastagem nativa durante o inverno, sendo que sempre existirá o campo natural.
Portanto, desde que permaneça o campo nativo, afirmam Sichonany Neto e Tybuch
(2012) existe a possibilidade de desenvolvimento da atividade pecuária em áreas de
Reserva Legal.
Revisando as literaturas publicadas, pode-se considerar que em propriedades
rurais onde os pecuaristas desenvolvem sua atividade com base em pastagens perenes,
anuais de verão e anuais de inverno, a instituição da Reserva Legal também não acarreta
prejuízos para a produção, uma vez que na área reservada a atividade pecuária poderá
ser desenvolvida igualmente, no entanto, a alimentação dos animais deverá basear-se na
utilização de pastagens nativas.
Nesse sentido, Sichonany Neto e Tybuch (2012) ao analisar a pecuária no
bioma Pampa e a Reserva Legal destacam as possibilidades de obtenção de bons
resultados com a utilização da vegetação nativa do bioma Pampa, e verificam que a
criação de gado é uma das formas de uso lícito da área em que se instituiu a
Reserva Legal, desde que não se suprima a vegetação nativa, sejam as gramíneas
ou as poucas árvores encontradas, para a introdução de vegetação alienígena, e que
sigam as demais regras previstas no Código Florestal, como a não alteração da
finalidade ou modificação da área, por exemplo. Assim, de acordo com a conclusão
desses autores, no caso do bioma Pampa, não existe empecilho para a exploração da
pecuária baseada nas pastagens nativas dentro das Reservas Legais, uma vez que
mesmo havendo o melhoramento destas pastagens, não há a supressão da vegetação.
Afirmam ainda, que puderam verificar no decorrer da sua pesquisa, que a atividade
pecuária desenvolvida no Pampa, desde que tenha como fonte de alimentação a
pastagem natural, é um dos elementos de preservação da biodiversidade encontrada
nesta região.
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Portanto, para que seja considerado sustentável, o foco das estratégias de


conservação tem que estar no manejo adequado dos animais e das pastagens nativas nas
áreas de Reserva Legal, com envolvimento e ativa participação do setor produtivo. Os
potenciais benefícios dessa relação para a preservação dos campos nativos passam pelo
o ajuste da carga animal, que pode ser realizado por meio da subdivisão dos campos e
do diferimento das pastagens como uma ferramenta de manejo que concilia os interesses
da produção e da conservação da biodiversidade, inclusive propondo a sua incorporação
na legislação e nas políticas agroambientais aplicáveis aos campos (NABINGER,
2006). Incorporar práticas e ajustes de baixo custo ao manejo realizado pelos
fazendeiros locais, para beneficiar as aves e, ao mesmo tempo, aumentar o valor de
mercado da carne produzida na região, por sua condição de produto “ecologicamente
correto” (DEVELEY et al., 2008).
Cumpre destacar ainda, que a Reserva Legal é um instituto que limita o uso
indiscriminado da propriedade privada rural, na medida em que proíbe qualquer
atividade que venha a suprimir a vegetação natural das diversas regiões do país, com o
intuito de preservar a flora. Assim, por ser uma limitação ao uso da propriedade, o
proprietário ou possuidor tem a obrigação legal de manter a vegetação nativa da área de
Reserva Legal. Contudo, no caso do bioma Pampa, não existe empecilho para a
exploração da pecuária baseada nas pastagens nativas dentro das Reservas Legais, uma
vez que mesmo havendo o melhoramento destas pastagens, não há a supressão da
vegetação.
Finalizando essa discussão sobre o uso lícito, sustentável e econômico da
atividade pastoril nas áreas de Reserva Legal no bioma Pampa, nas palavras de
Overbeck et al. (2009) para haver a sustentabilidade econômica e a preservação dos
campos nativos é necessário alcançar um balanço entre produção forrageira,
diversidade de espécies e preservação do solo. Controlar o pastejo significa manter as
características vegetais dos campos. Para os autores, o pastejo excessivo resulta na
diminuição da cobertura do solo e, consequentemente, na erosão do solo,
oportunizando a substituição de espécies forrageiras produtivas por espécies que são
menos produtivas e de menor qualidade, ou na perda total das espécies forrageiras de
boa qualidade. Caso ocorra o contrário, ou seja, a baixa pressão de pastejo,
predominarão as gramíneas de baixo valor nutritivo ou arbustos e outras espécies
de baixa qualidade forrageira, sendo o manejo essencial para a conservação dos
campos. Ou seja, pode-se extrais dessas informações que o correto manejo dos
animais, através do controle da carga animal sob o campo nativo é decisivo para a
manutenção do equilibrio ambiental. Para Valls et al. (2009) os campos naturais que
ainda existem são o resultado dos cuidados e usos dos proprietários rurais,
considerando-os guardiões deste ecossistema.
Compreendido esse debate e após a apresentação de vários estudos que
avaliaram o impacto da atividade pastoril sobre a biodiversidade e a manutenção das
características dos campos nativos no bioma Pampa neste capítulo, tem-se que é
possível o uso lícito da atividade pastoril nas áreas de Reseva Legal com pecuária no
bioma Pampa, de maneira racional e equilibrada, e também pode-se afirmar ser essa é
uma forma sustentável de exploração de um recurso natural, sendo que seu manejo
deve adotar boas práticas que mantenham os processos ecológicos essenciais. No
entanto, em relação as questões econômicas, alguns trabalhos demostram ser rentável
a criação de bovinos com baixas lotações e também muitos trabalhos sugerem outras
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prática de manejo compensatórias, como fertilização de campos, potreiros


rotacionados, selos de qualidade dos produtos obtidos nessas áreas, que poderão ser
tema para outras pesquisas. Importa considera, como comentário final que na região
do Pampa, tem-se um ativo muito importante, que é a criação pecuária sobre o campo
nativo, que o mantém e permite que as espécies desse habitat campestre convivam
com o gado bovino e ovino, enquanto soja, arroz e eucalipto não o permitem porque
eles eliminam as espécies nativas e colocam as cultiváveis e é por isso que devemos
lutar!

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De modo geral, tem-se que a atividade pastoril em campo nativo praticada há


séculos nos ecossistemas campestres do bioma Pampa é uma alternativa de utilização da
Reserva Legal que pode garantir sua conservação, se respeitada a capacidade de
reprodução natural da vegetação nativa. Tal fato, presente em estudos mencionados ao
longo deste texto, dão conta de que a atividade pastoril possui menor efeito negativo
sobre o bioma Pampa, uma vez que não há conversão do campo nativo em vegetação
exótica, e dessa forma atende as condicionantes da legislação Federal bem como da
legislação Estadual. A produção animal sobre o Bioma Pampa não deve ser entendida
como uma intervenção antrópica extrativista, mas como um processo produtivo
potencialmente eficiente e alinhado com a sustentabilidade do sistema.
Em relação a discussão sobre a classificação dos remanescentes de vegetação
nativa campestre utilizados na atividade pastoril de produção pecuária tem-se que estão
sendo equivocadamente declarados pelos produtores rurais no Cadastro Ambiental
Rural como áreas de uso consolidado e dessa forma tem havido o sistemático
descumprimento da exigência de Reserva Legal por esses proprietários rurais, fazendo-
se necessário esclarecer e exigir o seu cumprimento. Embora o Código Estadual de
Meio Ambiente deixou margens para essa discussão, há de se entender que a legislação
Federal permite que haja antropização em áreas de campos nativos com estágio
avançado de regeneração, sem que essas percam sua natureza de áreas com
remanescentes de vegetação nativa.
Dessa forma, a discussão apresentada no decorrer da pesquisa confirmou a
hipótese inicial desse trabalho, de que é possível o uso lícito, sustentável e econômico
da atividade pastoril em área de Reserva Legal no Bioma Pampa. Contudo, a atividade
deve ser implementada com cautela, pois uma alta densidade de gado também pode ser
prejudicial ao solo e a biodiversidade.
Finalizando, pode afirmar que a correta interpretação e aplicação das leis de
proteção ambiental no bioma Pampa e o manejo adequado das atividades agropecuárias
são ações que, se realmente postas em prática, poderão contribuir para a manutenção
das áreas de campo nativo remanescentes. Portanto, através do entendimento das
características do Bioma Pampa, do conhecimento e respeito da legislação ambiental e
das boas práticas de manejo ter-se-á ao mesmo tempo rentabilidade econômica e a
conservação dos recursos naturais do Pampa para as presentes e futuras gerações.
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O PANORAMA DOS CRIMES AMBIENTAIS OCORRIDOS NA COMARCA


DE URUGUAIANA E PROCESSADOS NA JUSTIÇA FEDERAL NA SEGUNDA
DÉCADA DO SÉCULO XXI3

Daiane Ferreira da Silva


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
daianelala12@gmail.com

João Paulo Rocha de Miranda


Orientador
Docente do Curso de Direito da Unipampa
joaomiranda@unipampa.edu.br

RESUMO

O presente trabalho tem como temática o panorama dos crimes ambientais ocorridos na
comarca de Uruguaiana e processados na Justiça Federal (TRF4) na segunda década do
século XXI, entre os anos de 2010 à 2021. O objetivo geral é analisar os crimes
ambientais ocorridos na comarca de Uruguaiana, verificando onde e quais os delitos
cometidos, de modo a definir quais os crimes ambientais mais recorrentes durante o
período delimitado. Para tanto, o método utilizado nesta pesquisa é o dedutivo,
iniciando pelo conceito de meio ambiente e direito ambiental, passando pela criação da
legislação sobre crimes ambientais, até chegar às decisões que mais ocorreram na
comarca de Uruguaiana na segunda década do século XXI. Do ponto de vista dos
procedimentos técnicos, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais
relacionadas ao tema em questão. Na abordagem bibliográfica foram utilizados livros,
artigos científicos, publicações, que sustentou o embasamento teórico-jurídico. Na
pesquisa documental foram utilizadas fontes primárias, como as decisões do TRF4 e
documentos públicos que regulam a matéria. Deste modo, foram encontradas 55
decisões no âmbito da Justiça Federal de Uruguaiana entre os anos de 2010 a 2021. De
acordo com a pesquisa realizada, os crimes ambientais ocorreram em cerca de 74,55%
dos casos no município de Uruguaiana. No que tange aos crimes, 45,45% dizem
respeito a importação, armazenagem e transporte ilegal de agrotóxicos e 16,36 a pesca
ilegal às margens do rio Uruguai. E no que diz respeito às sanções aplicadas, a maioria é
pena restritiva de direitos e multa, ambas sanções são aplicadas em cerca de 27,27% das
decisões. Por conseguinte, a presente pesquisa demonstra que nos anos de 2010 a 2021,
os crimes ambientais que mais ocorreram em Uruguaiana são os que envolvem tráfico
de agrotóxicos e pesca ilegal as margens do rio Uruguai, o que se justifica em razão da
localização territorial do município.
Palavras-chave: meio ambiente; Direito Ambiental; Uruguaiana; crime ambiental.

3
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 58

ABSTRACT

The present work has as its theme the panorama of environmental crimes that occurred
in the region of Uruguaiana and processed in the Federal Court (TRF4) in the second
decade of the 21st century, between the years 2010 to 2021. The general objective is to
analyze the environmental crimes that occurred in the region of Uruguaiana, verifying
where and which crimes were committed, in order to define the most recurrent
environmental crimes during the delimited period. Therefore, the method used in this
research is deductive, starting with the concept of environment and environmental law,
passing through the creation of legislation on environmental crimes, until reaching the
decisions that most occurred in the region of Uruguaiana in the second decade of the
21st century.From the point of view of technical procedures, bibliographic and
documental research related to the topic in question was carried out. In the bibliographic
approach, books, scientific articles and publications were used, which supported the
theoretical and legal basis. In the documentary research, primary sources were used,
such as TRF4 decisions and public documents that regulate the matter. Thus, 55
decisions were found within the Federal Court of Uruguaiana between the years 2010 to
2021. According to the research carried out, environmental crimes occurred in about
74.55% of cases in the municipality of Uruguaiana. With regard to crimes, 45.45%
concern the illegal import, storage and transport of pesticides and 16.36 illegal fishing
on the banks of the Uruguay River. And with regard to sanctions applied, most are
penalties restricting rights and fines, both sanctions are applied in about 27.27% of
decisions. Therefore, the present research demonstrates that in the years 2010 to 2021,
the most common environmental crimes in Uruguaiana are those involving pesticide
trafficking and illegal fishing on the banks of the Uruguay River, which is justified by
the territorial location of the municipality.

Keywords: environment; Environmental Law; Uruguaiana; environmental crime.


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 59

1 INTRODUÇÃO

O meio ambiente é um conceito amplo, definido como um conjunto jurídico,


indeterminado, composto de condições, leis e interações. Portanto, um conceito
autônomo e também indeterminado. Deste modo, o Direito Ambiental surge como um
ramo jurídico que dispõe sobre normativas que possuem o intuito de preservar e manter
o meio equilibrado e harmônico de forma correta e intergeracional (FIORILLO, 2015).
Deste modo, de acordo com o art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo este um bem de uso
comum e essencial para que o povo tenha uma vida sadia e de qualidade, onde concerne
ao Poder Público e aos demais cidadãos o dever de preservá-lo, restaurá-lo para as
presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).
Ademais, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, o legislador constituinte, no § 1º do art. 225, incumbiu ao Poder Público os
seguintes deveres: preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas; preservar a diversidade e a integridade
do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético.
Além de definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão
permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a
integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; exigir, na forma da lei, para
instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.
Ainda, controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio
ambiente;promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente; proteger a fauna e a flora,
vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade e manter regime
fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final.
Neste sentido, para garantir o direito ao ambiente sadio e equilibrado, o §3º, do art. 225,
do texto constitucional, dispõe que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao
meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”
(BRASIL, 1988).
No Brasil a lei de Crimes Ambientais foi implementada através da Lei nº 9.605 de 12 de
fevereiro de 1998, tipificando sanções penais e administrativas derivadas de ações
lesivas contra o meio ambiente, tendo como principal objetivo a prevenção de ações
lesivas e reparação de danos ambientais, com penas restritivas de direitos e multa, assim
como também prevê a prestação de serviços à comunidade.
Com o passar dos anos a situação ambiental no Brasil é frequentemente uma pauta
importante em reuniões internacionais, pois o equilíbrio global ambiental está
enfrentando dificuldades. Tais ameaças ao provêm, principalmente, das mudanças
climaticas, do estilo de vida da sociedade de consumo que predomina nos países
ocidentais e do desmatamento ilegal das florestas localizadas na Amazônia Legal, que
aumentou cerca de 22% de 2020 para 2021, segundo o Relatório Anual das Nações
Unidas do Brasil de 2021.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 60

O desmatamento ilegal, assim como os demais crimes ambientais, são praticados por
agentes que em alguns casos não são devidamente punidos. Isto porque não são
identificados ou, quando são, a punição não tem a efetividade necessária, em função de
diversos fatores, como a morosidade da justiça, as baixas penas, as dificuldades em
responsabilizar a pessoa jurídica, entre outros. No caso da dificuldade de identificação,
isto ocorre em razão do anonimato do ato ilícito, o que dificulta a aplicação das sanções
previstas em lei.
Diante disso tudo, a fim de examinar o panorama dos crimes ambientais no município
de Uruguaiana, esta pesquisa visa analisar os crimes ambientais ocorridos na Comarca
de Uruguaiana e processados na Justiça Federal, desde o ano de 2010 até o ano de 2021,
em razão da insuficiência de registros na Justiça Estadual. Para tanto, o método adotado
nesta investigação é o dedutivo, partindo da análise geral do meio ambiente e de sua
jusfundamentalidade, passando para a legislação ambiental e a Lei de Crimes
Ambientais (lei nº 9.605/98) até chegar à análise específica dos crimes ambientais
ocorridos na Comarca de Uruguaiana no Estado do Rio Grande do Sul.
Para atender este desiderato, a estrutura deste trabalho consiste em apresentar a pesquisa
na introdução, para depois tratar sobre o meio ambiente como direito fundamental, na
sequência abordar a legislação ambiental e os crimes ambientais, para, por fim, analisar
os dados obtidos.
Neste sentido, esta pesquisa é aplicada, objetivando gerar conhecimentos para aplicação
em políticas criminais, além disso sua abordagem é qualitativa e exploratória. Do ponto
de vista dos procedimentos técnicos, esta pesquisa é bibliográfica e documental. Na
pesquisa bibliográfica são utilizados materiais já elaborados, constituído por livros
técnicos, artigos científicos, publicações e outros materiais informativos relacionados à
pesquisa.
No que tange a pesquisa documental, são utilizadas fontes primárias, ou seja, dados e
informações que ainda não foram tratados cientificamente ou analiticamente, como os
instrumentos legais que regulam a matéria, relatórios, documentos públicos e processos
de crimes ambientais que constam na Justiça Federal da 4ª Região, que ocorreram na
comarca de Uruguaiana.
No caso específico, é feita a pesquisa documental às decisões da Justiça Federal da 4ª
Região (TRF 4) nos processos de crimes ambientais que ocorreram na comarca de
Uruguaiana entre os anos de 2010 a 2021. Para tanto, no site de pesquisa de
jurisprudências do TRF4 – https://jurisprudencia.trf4.jus.br /pesquisa/pesquisa - é
realizada a busca com os seguintes parâmetros palavras da busca: crimes e ambientais e
Uruguaiana; período da pesquisa: entre 01 de janeiro de 2010 e 31 de dezembro de
2021; e filtro da pesquisa: acórdãos
Nesta pesquisa são encontradas 55 decisões envolvendo crimes ambientais na comarca
de Uruguaiana no período analisado. A hipótese da pesquisa é que os principais crimes
ambientais ocorridos na Comarca de Uruguaiana dizem respeito a importação,
armazenagem e transporte ilegal de agrotóxicos e a pesca ilegal, devido a localização do
município às margens do rio Uruguai, que faz fronteira com a Argentina.
Hipótese esta confirmada pelos dados, que demonstraram que a prática desses delitos, se
deram em mais de 74% na cidade de Uruguaiana. Sendo que, desses crimes, 45,45% são
referentes a importação, armazenagem e transporte ilegal de agrotóxicos e 16,36%
dizem respeito a pesca ilegal no rio Uruguai
Com isso, é possível evidenciar que o município se tornou uma porta de entrada para
agrotóxicos e substâncias perigosas, assim como também é um local propicio para o
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 61

crime de pesca ilegal e para outros crimes envolvendo áreas de preservação permanente
ao longo de cursos d`água, como a construção de obra de caráter potencialmente
poluidor em área de preservação permanente, em razão da sua localização geográfica,
que tem o rio Uruguai como fronteira com a Argentina.

2 MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

A Constituição Federal de 1988, dispõe em seu art. 225 sobre o reconhecimento do


direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio, sendo assim, tem sua
independência positivada na Carta Magna, do qual cabe ao Poder Público e a
população atuarem com tutela de proteção ambiental para com o Meio Ambiente,
sendo este um Direito Fundamental.
Neste capítulo, será referido o conceito de meio ambiente de acordo com a
Constituição Federal e demais doutrinadores ambientalistas que serão citados ao longo
do trabalho, ainda, será conceituado o Direito Ambiental e por conseguinte a exposição
sobre os aspectos geográficos e históricos do município de Uruguaiana, enquanto
ambiente a ser investigado.

2.1 O meio ambiente e o direito ambiental

O meio ambiente é um conceito amplo, definido como um conceito jurídico


indeterminado. Pode ser definido como um “[...] conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e
rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981), de acordo com o artigo 3º
inciso I, da Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
com finalidades e mecanismos de formulação e aplicação, e que tem como objetivo a
preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental, dispondo de fins e
mecanismos de formulação e aplicação
Segundo Fiorillo (2015, p. 61), “a definição de meio ambiente é ampla, devendo se
observar que o legislador optou por trazer um conceito jurídico indeterminado, a fim
de criar um espaço positivo de incidência da norma”. Ainda, segundo o autor
supracitado, o Direito Ambiental embora seja uma nova ciência, é um direito
autônomo, positivado no texto constitucional vigente. (FIORILLO, 2015).
Ademais, o legislador ao conceituar o meio ambiente, no artigo 3º, inciso I da Política
Nacional do Meio Ambiente no Brasil, adota uma visão biocêntrica e ecocêntrica, pois
considera que o homem não é indiferente do meio em que vive, deste modo, a visão de
distinção total entre homem e natureza não é adotada quando o legislador conceitua o
meio ambiente na Lei nº 6.937/81.

Figura 1 – Modelo de fatores e conjuntos:meio ambiente


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Fonte: Rodrigues (2021, p. 40)

Ainda, o meio ambiente não tange só a natureza, mas também sobre a atividade
humana e suas modificações produzidas pelo ser humano, no ambiente natural e meio
físico do qual vive. Portanto, o meio ambiente abrange diversos conceitos,
compreendendo o humano como parte do conjunto de relações econômicas, sociais e
políticas. (ANTUNES, 2021).
Neste sentido, Prado complementa que:

O meio ambiente trata-se de um interesse metaindividual, difuso que se direciona ao


coletivo ou social, apresentando-se de modo informal em certos setores sociais, com
sujeitos indeterminados e cuja lesão tem natureza extensiva ou disseminada (PRADO,
1992, p. 29).

Além disso, sob um aspecto jurídico no que tange ao conceito de meio ambiente e sobre
o próprio ambiente, o autor Mukai (2016, p. 02) expõe sobre três formas em que
possivelmente possa ser divida a expressão “ambiente”, que parte da ideia de Giannini:

[...] a)o ambiente como modo de ser global da realidade natural, baseada num dado
equilíbrio dos seus elementos – equilíbrio ecológico, que se retém necessário e
indispensável em relação à fruição da parte do homem, em particular à saúde e ao bem-
estar físico; o ambiente como ponto de referência objetivo dos interesses e do direito
respeitante à repressão e prevenção de atividades humanas dirigidas a perturbar o
equilíbrio ecológico, convertendo-se o dano ao ambiente em dano do próprio homem;
b)o ambiente como uma ou mais zonas circunscritas do território, consideradas pelo seu
peculiar modo de ser e beleza, dignas de conservação em função do seu gozo estético,
da sua importância para a investigação científica, ou ainda pela sua relevância histórica:
isto é, o ambiente como soma de bens culturais, como ponto de referência objeto dos
interesses e do direito à cultura;
c)o ambiente como objeto de um dado território em relação aos empreendimentos
industriais, agrícolas e dos serviços: isto é, o ambiente como ponto de referência objeto
dos interesses e do Direito Urbanístico respeitantes ao território como espaço, no qual
se desenvolve a existência e a atividade do homem na sua dimensão social (GIANNINI,
1973, p. 15 apud MUKAI, 2016, p. 02).

Em suma, o meio ambiente é conceituado de diversas formas, não existindo apenas


uma noção unitária sobre, assim é possível dizer que o meio ambiente é um conceito
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diversificado que abrange diversas formas e conceitos, desde o conceito natural no que
tange a natureza, ao conceito humano e do conjunto de relações que estes dispõem ao
se tornarem conectados um com o outro.
O Direito Ambiental nasce com a função principal de organizar e gerenciar os atos da
vida humana com a natureza, a forma como a sociedade utiliza os recursos naturais.
Deste modo, estabelece e determina criteriosamente o que pode ou não ser apropriado
economicamente e ambientalmente, ao regularizar as atividades econômicas
(ANTUNES, 2021).
Neste sentido Antunes esclarece que:

O fato que se encontra à base do Direito Ambiental é a própria vida humana, que
necessita de recursos ambientais para a sua reprodução, a excessiva utilização dos
recursos naturais, o agravamento da poluição de origem industrial e tantas outras
mazelas causadas pelo crescimento econômico desordenado, que fizeram com que tal
realidade ganhasse uma repercussão extraordinária no mundo normativo do dever ser,
refletindo-se na norma elaborada com a necessidade de estabelecer novos comandos e
regras aptos a dar, de forma sistemática e orgânica, um novo e adequado tratamento ao
fenômeno da deterioração do meio ambiente. O valor que sustenta a norma ambiental é
o reflexo no mundo ético das preocupações com a própria necessidade de sobrevivência
do Ser Humano e da manutenção das qualidades de salubridade do meio ambiente, com
a conservação das espécies, a proteção das águas, do solo, das florestas, do ar e, enfim,
de tudo aquilo que é essencial para a vida, isto para não se falar da crescente valorização
da vida de animais selvagens e domésticos (ANTUNES, 2021, p. 02).

Segundo Paulo de Bessa Antunes (2021), a doutrina é baseada em subdivisão e em


classificação do Direito, neste sentido expõe “como entender o componente ambiental
do Direito Ambiental? O Direito Ambiental é um direito da natureza? Esta é uma
questão importante e que merece alguma reflexão preliminar (ANTUNES, 2015)”;
Esclarece ainda que a natureza é a parte mais importante do meio ambiente, mas que o
meio ambiente não trata apenas da natureza, sendo esta mais atividade antrópica
(ANTUNES, 2021).
Na doutrina, Toshio Mukai (2016), descreve que existem diversos conceitos técnicos e
científicos de meio ambiente, e o Direito Ambiental não pode ser conceituado como um
ramo singular do direito, pois este integra um conjunto de institutos jurídicos e normas,
que reunidos integram diversos ramos do Direito, tendo como característica o estudo
das relações do homem com a natureza propriamente dita (MUKAI, 2016).
Além disso, o Direito Ambiental é definido como um direito que tem por finalidade
regulamentar a apropriação econômica dos bens materiais, ele se desdobra em três
vertentes que segundo Antunes são fundamentais:

(i) direito ao meio ambiente, (ii) direito sobre o meio ambiente e (iii) direito do meio
ambiente. Tais vertentes existem, na medida em que o direito ao meio ambiente é um
direito humano fundamental que cumpre a função de integrar os direitos à saudável
qualidade de vida, ao desenvolvimento econômico e à proteção dos recursos naturais.
Mais do que um ramo autônomo do Direito, o Direito Ambiental é uma concepção de
aplicação da ordem jurídica que penetra, transversalmente, em todos os ramos do
Direito. O Direito Ambiental tem uma dimensão humana, uma dimensão ecológica e
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uma dimensão econômica que devem ser compreendidas harmonicamente (ANTUNES,


2021, p. 07).

Neste sentido, embora o direito ao meio ambiente “[...] não esteja disposto no Título II
da Carta Magna, que trata dos direitos e garantias fundamentais, este também é
considerado um direito fundamental, através da via interpretativa, justamente por ser
essencial à sadia qualidade de vida, e, portanto, imprescindível à vida digna.”
(MIRANDA; XAVIER, 2013, p. 13). Assim, “não é possível haver vida digna, sem
saúde; nem, tão pouco, saúde, sem meio ambiente ecologicamente equilibrado. Assim, a
saúde liga o bem ambiental aos direitos fundamentais, como característica de sua
natureza jurídica binária.” (MIRANDA; XAVIER, 2013, p. 09).
A doutrina lusitana, também aborda a jusfundamentalidade do direito ambiental, como
se constata na argumentação de Vasco Pereira da Silva (2000, p. 17), ao comentar que o
texto constitucional ligou a proteção ecológica à dignidade humana e “ao radicar a
protecção da ecologia na dignidade da pessoa humana, mediante a consagração de
direitos fundamentais, é devidamente reconhecida a dimensão ético jurídica das
questões ambientais”.
Ademais, afirmou que a opção adotada pelo legislador constituinte implicou no “[...]
afastamento de visões ambientalistas `totalitárias´, viradas para a proteção maximalista
do ambiente mesmo à custa do sacrifício de outros direitos fundamentais” (SILVA,
2000, p. 17). Por fim Vasco Pereira da Silva também relaciona os direitos fundamentais
ao meio ambiente, ao afirmar que “[...] verdes são também os direitos do Homem, pois
eles constituem o fundamento de uma protecção adequada e completa do ambiente,
respondendo aos `novos desafios´ [...] em busca da realização da dignidade da pessoa
humana” (SILVA, 2000, p. 22).
Por sua vez, José Joaquim Gomes Canotilho, também na doutrina portuguesa, reconhece
o direito ao ambiente como um direito fundamental, ao afirmar que “[...] o direito ao
ambiente será um direito subjectivo nos ordenamentos constitucionais da Espanha e de
Portugal.(CANOTILHO; LEITE, 2008, p.184-185).
A doutrina alemã afirma que o “[...] direito fundamental ao meio ambiente corresponde
mais àquilo que acima se denominou de direito fundamental completo” (ALEXY, 2008,
p.443):

Assim, aquele que propõe a introdução de um direito fundamental ao meio ambiente, ou


que pretende atribuí-lo por meio de interpretação a um dispositivo de direito
fundamental existente, pode incorporar a esse feixe, dentre outros, um direito a que o
Estado se abstenha de determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa),
um direito a que o Estado proteja o titular do direito fundamental contra intervenções de
terceiros que sejam lesivas ao meio ambiente (direito à proteção), um direito a que o
Estado inclua o titular do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio
ambiente (direito a procedimentos) e um direito a que o próprio Estado tome medidas
fáticas benéficas ao meio ambiente (direito à prestação fática) (ALEXY, 2008, p.443).

Portanto, pode se dizer que o Direito Ambiental é uma norma que surge com a
finalidade de regulamentar as atividades humanas com a natureza, enquanto um direito
fundamental completo, de modo que determina restrições e também punições para
aqueles que agirem de forma indisciplinar ao que as normas ambientais estabelecem.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 65

Ainda que a sua base seja a própria vida humana, esta não se exime de consequências
devido a utilização excessiva ou irregular de recursos naturais.
Na esfera infraconstitucional, o marco legal de proteção ambiental se deu com a Lei nº
6.938/1981, pela qual foi instituída a Política Nacional do Meio Ambiente, que tem
como finalidade regulamentar e fiscalizar as atividades que envolvam o meio ambiente,
como por exemplo as atividades econômicas que utilizam recursos naturais. Deste
modo, a lei foi instaurada com o objetivo de preservar, melhorar e recuperar a natureza,
prezando pela qualidade ambiental.
A proteção ambiental na esfera penal brasileira encontra-se regulamentada pela Lei nº
9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre sanções no âmbito penal e
administrativo, para condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
A lei supracitada, prevê o que é considerado irregular e quais atos são criminosos contra
a flora e a fauna, além de crimes de caráter poluitivo contra o meio ambiente, meio
urbano e também contra patrimônio público e contra a administração ambiental. Sendo
assim, trata-se de uma fonte de caráter ambiental formal, que é a principal fonte do
Direito Ambiental.
Das fontes formais do direito ambiental estão a Constituição Federal de 1988, as
Convenções Internacionais, as Leis, as Normas Administrativas e as Jurisprudências. O
Direito Ambiental tem seus princípios implícitos na Constituição, sendo eles
positivados no texto legal.
Portanto, o meio ambiente se tornou um direito fundamental no Brasil com a
constitucionalização do direito humano ao meio ambiente, que emergiu no cenário
internacional a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e
Meio Ambiente Humano de 1972, em Estocolmo. Assim, a inserção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado no art. 225, caput, da Carta Magna de 1988 foi o marco
para o Direito Ambiental brasileiro. Deste modo, o meio ambiente e o Direito
Ambiental são um conjunto tutelado juridicamente.
Ainda, segundo Celso Fiorillo (2021, p. 28) “o bem ambiental, fundamental, como
declara a Carta Constitucional, e porquanto vinculado a aspectos de evidente
importância à vida, merece tutela tanto do Poder Público como de toda a coletividade,
tutela essa consistente num dever, e não somente em mera norma moral de conduta”, ou
seja, não tange somente aos poderes protegerem o bem ambiental, mas a sociedade em
um todo deve preservar o ambiente natural.
Neste mesmo sentido, o direito ambiental detém de uma visão antropocêntrica, onde a
racionalidade cabe ao homem e também lhe cabe a preservação do ambiente em que
vive, sobrevive, ao utilizar dos bens naturais para sua própria sobrevivência. Sendo este
direito uma nova ciência, classificada como autônoma, por possuir seus próprios
princípios norteadores. (FIORILLO, 2021).
Assim, “[...] não é possível uma visão totalmente afastada do antropocentrismo, uma
vez que a tutela jurídica do meio ambiente é uma ação humana” (MIRANDA, 2016, p.
149). No entanto, o texto constitucional brasileiro adotou o antropocentrismo mitigado
intergeracional, que é fruto de um processo de mitigação do antropocentrismo puro.
Este processo surge “[...] pela cruel necessidade de sobrevivência do planeta, que sofre
com o aquecimento global, com a elevação dos níveis dos oceanos, com o aquecimento
do Atlântico, com os tsunamis, furacões e demais catástrofes ambientais”. (MIRANDA,
2009, p. 25).
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Uma vez definida a jusfundamentalidade do direito ao meio ambiente, no próximo


tópico será examinado o ambiente de Uruguaiana, RS, uma vez que esta investigação
procura traçar um panorama dos crimes ambientais na comarca de Uruguaiana.

2.2 O ambiente de Uruguaiana-RS como objeto de estudo

Uruguaiana foi originada por um grupo de indígenas, que eram nômades, e


posteriormente colonizada por espanhóis, portugueses e africanos, e suas correntes
migratórias são descendentes de italianos, alemães, espanhóis, franceses e árabes.
Ainda, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2021) o
município em meados do século XVI, as terras do município ainda eram pertencentes à
Capitania de São Paulo.
Então, no ano de 1735, o brigadeiro José da Silva Pais assumiu como comandante da
província do Rio Grande de São Pedro, diante desta mudança, ordenou a construção de
uma nova entrada do canal que ligava a Lagoa dos Patos ao Atlântico, que em 1738
resultou no desligamento da província da capitania de São Paulo. Assim, a jurisdição do
governo passou a ser constituída em Santa Catarina, que representava os atuais
territórios da Região Sul, sob dependência da capitania do Rio de Janeiro.(IBGE, 2021)
Em 1760, ocorreu então a nomeação do coronel Inácio Eloi de Madureira, como
governador do Rio Grande de São Pedro, diante disso, as terras até então sob jurisdição
de Santa Catarina, foram desligadas desta e passaram a formar a província autônoma no
período do Brasil colônia. Ainda, as terras que pertenciam ao município de Alegrete,
constituíram o surgimento do novo município independente. (IBGE, 2021)
Ainda, no ano de 1814, D. Diogo de Souza Silveira de Souza, realizou a concessão de
mais terras para a paróquia de Uruguaiana, terras localizadas entre Ibicuí e Ibirocai.
Outras terras da região foram também concedidas e compradas para constituir o
município, e em 1835, na Revolução Farroupilha o governo republicano havia
dominado a margem do Ibicuí, fazendo surgir a necessidade de fundar uma povoação às
margens do Uruguai. (IBGE, 2021).

Figura 2 – Vista Parcial de Uruguaiana-RS (1959)

Fonte: IBGE (2021).


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Logo, no início do século XIX, em meados de 1846, mais precisamente no dia 29 de


maio deste ano, ocorreu a emancipação de Uruguaiana, quando houve a quebra do
vínculo com a cidade de Alegrete, criou-se assim um município independente. Sua
emancipação incentivou do outro lado que o município de Paso de Los Libres se
emancipasse, município localizado na província de Corrientes no país vizinho,
Argentina.
Neste sentido, Uruguaiana nasceu às margens do Uruguai, sendo conveniente por se
tratar de uma necessidade do ponto de vista militar, para uma fiscalização às margens da
fronteira, ideia que partiu de Domingos José de Almeida, que era um político militar,
considerado o fundador do Município de Uruguaiana, embora a escolha do local
definitivo para o município tenha sido de Davi Canabarro, que atuava como comandante
militar na fronteira. (IBGE, 2021)
A localização do município é na fronteira com a Argentina e o Uruguai, possui uma área
territorial de 5.702,098 km², posicionado na fronteira oeste do estado do Rio Grande do
Sul, abrigando um dos rios mais importantes da hidrografia brasileira, o Rio Uruguai,
tem sua nascente no Rio Pelotas, cerca de 65 quilômetros a oeste da costa do Oceano
Atlântico. Este embora seja drenado por águas puras, encontra-se em estado de
degradação, pela falta de fiscalização ambiental. (IBGE, 2021).

Figura 3 – Mapa de localização do município de Uruguaiana-RS

Fonte: IBGE (2021).

Por conseguinte, Uruguaiana é a terceira maior cidade da região oeste do Rio Grande
do Sul em população e em área territorial, em razão da sua vasta extensão de terras;
Ainda, abriga o maior porto seco da América Latina. Sua zona urbana é interligada à
cidade argentina de Paso de Los Libres, que tem sua divisão através da Ponte
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Internacional - possui duas nomenclaturas, do lado brasileiro Getúlio Vargas e do lado


argentino Agustin Justo - que liga os dois países, Brasil e Argentina.

3 LEGISLAÇÃO AMBIENTAL E OS CRIMES AMBIENTAIS

No Brasil a lei de Crimes Ambientais foi implementada através da lei nº 9.605 de 12 de


fevereiro de 1998, tipificando sanções penais e administrativas derivadas de ações
lesivas contra o meio ambiente, tendo como principal objetivo a prevenção de ações
lesivas e reparação de danos ambientais.
O presente capítulo objetiva apresentar como se dá a legislação ambiental no brasil e
também na esfera penal. Em razão do trabalho se tratar de crimes ambientais ocorridos
no município de Uruguaiana-RS, é indispensável a exposição acerca da legislação
ambiental, com o intuito de identificar os tipos de crimes e suas sanções segundo a Lei
n.º 9.605 de 1998.

3.1 A legislação ambiental no BRASIL

A Constituição Federal de 1988 trouxe ao Brasil a questão ambiental, com um texto que
prevê responsabilização para infrações de normas ambientais, no âmbito civil,
administrativo e penal. As consequências previstas no âmbito penal são em razão do
Direito Penal ser um dos ramos do Direito. (BRASIL, 1988).
No art. 225 do texto constitucional, este prevê que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico
das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes
a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente
através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos
que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto
ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização
pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em
risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais
a crueldade.
VIII - manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo
final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 69

incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em


relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam a alínea "b" do
inciso I e o inciso IV do caput do art. 195 e o art. 239 e ao imposto a que se refere o
inciso II do caput do art. 155 desta Constituição.
§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente
degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na
forma da lei.
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal
Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na
forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,
inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações
discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em
lei federal, sem que não possam ser instaladas.
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se
consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam
manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 nesta Constituição Federal,
registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro,
devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais
envolvidos. (BRASIL, 1988).

Diante do exposto, a Constituição de 1988, dispõe de aplicação de sanções para quem


infringir normativas ambientais, além da incumbencia do Poder Público de preservar e
restaurar, manter e fiscalizar quaisquer atos que possam afetar o meio ambiente de
forma direta e indireta.
Ainda, os doutrinadores Prado e Ferreira (2015) expõem que a constitucionalização da
proteção ambiental desemboca uma sustentabilidade socioambiental, neste sentido:

[...] reverberam tentativas de superar a crise ambiental de nossa época. Na verdade, a


demanda por uma proteção do ambiente desdobra-se de uma crise global e
multifacetária. A empreitada encetada em Estocolmo promoveu, em vários países, uma
onda de constitucionalização do bem jurídico ambiental. Embora, por vezes, a
introdução das normas constitucionais ambientais foi meramente simbólica, não
provocando mais do que uma reordenação estética no texto constitucional. (PRADO;
FERREIRA, 2015, p. 196).

Após o advento do texto constitucional, o poder legislativo apresentou a Lei nº nº 9.605


de 12 de fevereiro de 1998, que prescreve sanções no âmbito administrativo, civil e
penal, no que tange a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, além de prevê
penas pecuniárias e apreensões no texto legislativo.
A lei possui um texto que tipifica crimes ambientais, sanções e penas que podem ser
aplicadas para cada agente infrator da norma legislativa. A lei de Crimes Ambientais
sanciona atos contra a flora, fauna, poluição, ordenamento urbano, patrimônio cultural e
crimes contra a administração ambiental.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 70

3.2 Dos crimes ambientais e as sanções da Lei n.º 9.605/98

A Lei n.º 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 dispõe sobre as sanções penais e


administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras
providências. No primeiro capítulo a lei específica que pessoa física e pessoa jurídica
são responsabilizadas no âmbito administrativo, civil e penal conforme as disposições
da referida lei.
No que tange às aplicações de penas, a lei específica que se deve observar a gravidade
do fato, os motivos da infração além de suas consequências ambientais e também para a
saúde pública. Também deve-se observar antecedentes e situações econômicas do
agente. As penas restritivas de direito são tipificadas a partir do art. 7 da legislação
ambiental:

Art. 7º As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de


liberdade quando:
I - tratar-se de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior a
quatro anos;
II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado,
bem como os motivos e as circunstâncias do crime indicarem que a substituição seja
suficiente para efeitos de reprovação e prevenção do crime.
Parágrafo único. As penas restritivas de direitos a que se refere este artigo terão a
mesma duração da pena privativa de liberdade substituída.
Art. 8º As penas restritivas de direito são:
I - prestação de serviços à comunidade;
II - interdição temporária de direitos;
III - suspensão parcial ou total de atividades;
IV - prestação pecuniária;
V - recolhimento domiciliar.
Art. 9º A prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição ao condenado de
tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso
de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível.
(BRASIL, 1998).

Segundo o texto legislativo, as penas ainda podem ser de interdição temporária, onde o
agente fica proibido de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros benefícios de
cunho fiscal. Além disso, dentre as penas ainda existe a possibilidade da suspensão das
atividades, prestação pecuniária e recolhimento domiciliar.
De acordo com o art. 14 da lei 9.605/98, são circunstâncias que atenuam a pena; o baixo
grau de escolaridade ou instrução do agente, arrependimento, ou comunicação prévia
pelo agente, além da colaboração com os agentes encarregados da vigilância e do
controle ambiental (BRASIL, 1988). Ainda, a lei estabelece circunstâncias que agravam
a pena em casos em que o crime é qualificado, ou seja, o crime foi cometido em
circunstâncias que o tornam mais grave, neste sentido o art. 15 dispõe que:
:

Art. 15 São circunstâncias que agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o
crime:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 71

I - reincidência nos crimes de natureza ambiental;


II - ter o agente cometido a infração:
a) para obter vantagem pecuniária;
b) coagindo outrem para a execução material da infração;
c) afetando ou expondo a perigo, de maneira grave, a saúde pública ou o meio ambiente;
d) concorrendo para danos à propriedade alheia;
e) atingindo áreas de unidades de conservação ou áreas sujeitas, por ato do Poder
Público, a regime especial de uso;
f) atingindo áreas urbanas ou quaisquer assentamentos humanos;
g) em período de defeso à fauna;
h) em domingos ou feriados;
i) à noite;
j) em épocas de seca ou inundações;
l) no interior do espaço territorial especialmente protegido;
m) com o emprego de métodos cruéis para abate ou captura de animais;
n) mediante fraude ou abuso de confiança;
o) mediante abuso do direito de licença, permissão ou autorização ambiental;
p) no interesse de pessoa jurídica mantida, total ou parcialmente, por verbas públicas ou
beneficiada por incentivos fiscais;
q) atingindo espécies ameaçadas, listadas em relatórios oficiais das autoridades
competentes;
r) facilitada por funcionário público no exercício de suas funções. (BRASIL, 1998).

Do mesmo modo, os crimes previstos nesta Lei, tem a previsão de penas privativas de
liberdade não superior a três anos, reparação ambiental, além de multa seguindo os
critérios do Código Penal. A condição de penas aplicáveis isoladamente,
cumulativamente ou alternativamente, sendo elas multa, restritivas de direitos e
prestação de serviços à comunidade, e as penas restritivas para pessoas jurídicas são a
suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária de estabelecimento,
atividade ou obra.
Além disso, a pessoa jurídica nos termos do art. 23 da referida lei, pode ser condenada a
prestação de serviços à comunidade, custeando programas ou projetos ambientais,
realizando a manutenção de espaços públicos, executando obras para a recuperação de
áreas degradadas, e realizando contribuições a entidades de cunho ambiental e cultural.
A lei ainda estabelece que a pessoa jurídica que facilitar ou ocultar a prática de crime
definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será
considerado instrumento do crime, nos termos do art. 24 da Lei de Crimes
Ambientais.(BRASIL,1988).
A legislação ambiental tem a previsão de apreensão do produto e do instrumento de
infração, de forma administrativa ou de crime. A lei dispõe que ao ser verificada a
infração, os produtos, instrumentos e automóveis serão apreendidos. No que diz respeito
aos animais e demais apreensões na infração:

Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos,


lavrando-se os respectivos autos.
§ 1o Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida
inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 72

fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de


técnicos habilitados.
§ 2o Até que os animais sejam entregues às instituições mencionadas no § 1o deste
artigo, o órgão autuante zelará para que eles sejam mantidos em condições adequadas de
acondicionamento e transporte que garantam o seu bem-estar físico.
§ 3º Tratando-se de produtos perecíveis ou madeiras, serão estes avaliados e doados a
instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes.
§ 4° Os produtos e subprodutos da fauna não perecíveis serão destruídos ou doados a
instituições científicas, culturais ou educacionais.
§ 5º Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos, garantida a sua
descaracterização por meio da reciclagem. (BRASIL, 1998).

A partir do art. 29 ao art. 37 a lei dispõe sobre os crimes contra a fauna, sendo estes
contra animais, os animais silvestres, nativos ou em rota migratória, a caça, a pesca,
maus-tratos, dentre outras ações tipificadas contra a fauna:

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos
ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade
competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas:
I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a
obtida;
II - quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural;
III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou
depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou
em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de
criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da
autoridade competente.
§ 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de
extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
§ 3° São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas,
migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu
ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas
jurisdicionais brasileiras.
§ 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado:
I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local
da infração;
II - em período proibido à caça;
III - durante a noite;
IV - com abuso de licença;
V - em unidade de conservação;
VI - com emprego de métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em
massa.
§ 5º A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça
profissional.
§ 6º As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca. (BRASIL, 1998).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 73

No que se refere a pesca ilegal, a lei dispõe em seu art. 34 pena de “detenção de um ano
a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”, para quem pesca em pesca
em período em que é proibida a pesca ou em locais interditados, pesca de espécies que
devem ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos, pesca de
quantidades superiores as permitidas, ou utilizando aparelhos, tecnicas, metodos ou
petrechos que são proibidos.(BRASIL, 1988).
Os crimes contra a flora, são os que causam danos à vegetação, conservação ambiental,
como incêndios e desmatamento, dentre outros que estão tipificados entre os art. 38 e
art. 53 da lei ambiental. Já do art. 54 ao art. 61 estão os crimes de poluição e outros
crimes ambientais, como a extração de recursos minerais. A extração de recursos
minerais está tipificada especificamente no art. 55, que diz que “executar pesquisa, lavra
ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão
ou licença, ou em desacordo com a obtida” (BRASIL, 1988).
O art. 54 da referida lei é o que tem a maior previsão de punição para crimes
ambientais, isto porque prevê uma pena de 1 a 5 anos em seu parágrafo 2º, neste sentido
o artigo prevê que:

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam
resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a
destruição significativa da flora:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
§ 2º Se o crime:
I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;
II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos
habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;
III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público
de água de uma comunidade;
IV - dificultar ou impedir o uso público das praias;
V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos
ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou
regulamentos:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar,
quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco
de dano ambiental grave ou irreversível. (BRASIL, 1998).

A partir do art. 62 ao art. 65 os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio


cultural, que tange a destruição, inutilização ou deterioração de bens protegidos por lei,
ato administrativo ou decisão judicial, além de arquivos, registros, museus, bibliotecas,
pinacotecas, instalações científicas ou similares que sejam protegidos por lei, ato
administrativo ou decisão judicial. Além de alterar estruturas de edificação ou local
protegido por lei e demais atos contra patrimônio público.(BRASIL,1988).
Os crimes contra a administração ambiental estão tipificados na lei a partir do art. 66,
onde a pena máxima para crimes administrativos ambientais é de 3 anos e multa,
conforme determina o art. 66 da referida lei. As infrações administrativas são definidas
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 74

a partir do art. 70 e se estendem até o art. 76, onde tipifica ações e atos e omissões de
cunho administrativo ambiental que violem as regras jurídicas, de uso, gozo, promoção,
proteção e recuperação do meio ambiente (BRASIL,1988).. Diante da exposição o
referido artigo:

Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole
as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.
§ 1º São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar
processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema
Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA, designados para as atividades de fiscalização,
bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha.
§ 2º Qualquer pessoa, constatando infração ambiental, poderá dirigir representação às
autoridades relacionadas no parágrafo anterior, para efeito do exercício do seu poder de
polícia.
§ 3º A autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a
promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena
de co-responsabilidade.
§ 4º As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio,
assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta
Lei. (BRASIL, 1998).

Por conseguinte, as penas previstas na Lei dos Crimes Ambientais são determinadas
conforme o teor de gravidade do ato praticado, os antecedentes do agente infrator e
também de acordo com a situação econômica. Ainda, de acordo com o exposto, é
possível entender que, dentre os crimes previstos na lei referida, os crimes de poluição
são os que preveem uma sanção maior com relação aos demais crimes ambientais.

4 CRIMES AMBIENTAIS EM URUGUAIANA-RS

Neste capítulo são analisados os dados encontrados no site da Justiça Federal da 4ª


Região, referente aos acórdãos que envolvem crimes ambientais, na comarca de
Uruguaiana, entre os anos de 2010 e 2021. O referido órgão jurisdicional integra o
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que detém competência para julgar ações em
que a União, empresas públicas e autarquias sejam interessadas.
Assim, de acordo com a pesquisa realizada, neste capítulo serão exibidos os resultados
referentes aos dados que foram encontrados, de acordo com o recorte epistemológico
definido. Deste modo, os crimes ambientais e suas sanções serão o ponto principal da
presente sessão.

4.1 Dos crimes ocorridos na comarca entre 2010 e 2021

Ao todo foram encontrados 55 processos, envolvendo crimes ambientais na comarca de


Uruguaiana, dos quais tiveram suas decisões proferidas pela na Justiça Federal da 4ª
Região entre os anos de 2010 e 2021. De acordo com o levantamento realizado, em 2019
aconteceram 9 decisões, cerca de 16,36% do total dos processos encontrados foram
decididos neste ano, ou seja, o ano de 2019 é o primeiro destaque da pesquisa em razão da
quantidade de processos encontrados.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 75

Assim como no ano de 2021, também houve um número significativo de decisões


encontradas, cerca de 14,55%, totalizando 9 decisões no total no respectivo ano. Contudo,
os anos que menos apresentaram decisões deste Tribunal foram os anos de 2013 e 2018,
com cerca de 1,82% de decisões ocorridas no ano.

Tabela 1 – Quantidade de decisões encontradas entre 2010 e 2021


QUANTIDADE DE PORCENTAGE
ANO DECISÕES M
TOTAL 2010-2021
2010 6 10,91% 55
2011 4 7,27% 55
2012 3 5,44% 55
2013 1 1,82% 55
2014 2 3,64% 55
2015 2 3,64% 55
2016 6 10,91% 55
2017 6 10,91% 55
2018 1 1,82% 55
2019 9 16,36% 55
2020 7 12,73% 55
2021 8 14,55% 55
Fonte: A autora, 2022

De acordo com os dados apresentados na tabela 1, é possível indicar que nos anos de
2016, 2017, 2019, 2020 e 2021, houve uma crescente na tomada de decisões do
respectivo tribunal acerca de Crimes Ambientais que ocorreram, ou em Uruguaiana ou
na Comarca que esta abrange.
Ainda, ao analisar os dados dos 55 processos, é possível identificar que, a maioria dos
delitos ambientais ocorreram na cidade de Uruguaiana, em mais de 74% dos casos
encontrados. Logo, seguido por Alegrete com 3,64% e São Borja e Quaraí, com cerca
de 3,64% cada uma. Ainda, foram identificadas duas decisões pelo TRF4 sobre crimes
que ocorreram no estado de Santa Catarina e Minas Gerais, conforme consta na tabela
2.

Tabela 2 – Cidades encontradas nas decisões


CIDADE/ESTADO QUANTIDADE PORCENTAGEM
ALEGRETE 5 3,64%
BAGÉ 1 1,82%
DOUTOR MAURÍCIO CARDOSO 1 1,82%
ELDORADO DO SUL 1 1,82%
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ITAQUI 1 1,82%
MINAS GERAIS 1 1,82%
PELOTAS 1 1,82%
QUARAÍ 2 3,64%
SANTIAGO 1 1,82%
SÃO BORJA 2 3,64%
URUGUAIANA 41 74,55%
SANTA CATARINA 3 5,45%
Fonte: A autora, 2022

Destarte, de acordo com a tabela 2, os demais municípios e estados que representam


cerca de 5,45% e 1,82% dos 55 processos encontrados na pesquisa. Ainda, verifica-se
que os delitos em sua maioria prevalecem sobre os municípios de Uruguaiana e
Alegrete, e que os demais municípios do estado do Rio Grande do Sul não apresentam
número significativo com relação ao município de Uruguaiana.
Além de apresentar um número pouco expressivo nos estados de Santa Catarina e Minas
Gerais, com pouco menos de 1,82%, sobre o total de 55 decisões, ambos estados com 2
crimes ambientais encontrados. Estes crimes foram encontrados nas decisões proferidas
no âmbito da Justiça Federal da 4ª Região do Brasil.
No que tange a classe processual das decisões, mais de 60% dos 55 processos são da
classe Apelação Criminal - ACR, totalizando 33 decisões. Além disso, constam as
classes de Apelação Cível - AC em 9,09% dos casos, Recurso Criminal em Sentido
Estrito - RCSE com 9,09%, Recurso em Sentido Estrito - RSE em 7,27%, Habeas
Corpus em 7,27% e Embargos Infringentes e de Nulidade - ENUL em 3,64%.

Figura 4 – Classes processuais encontradas nas decisões de 2010-2021


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 77

Fonte: A autora, 2022

De acordo com a figura 4, a classe processual predominante entre os anos de 2010 e


2021 é a ACR, com mais de 30 processos encontrados e cerca de 60% dos 55 resultados
constam desse tipo processual. E a classe que teve o menor número de constatações foi
Procedimento Investigatório do MP - PIMP, com apenas um caso, seguido do Agravo
de Instrumento - AG, ambos em 1,82% dos 55 casos encontrados.
Conforme a tabela 3, os delitos encontrados em sua maioria são crimes ambientais, mas
também constam crimes na esfera civil e penal. O crime de importação, armazenamento
e transporte de substâncias perigosas e agrotóxicos foi o mais encontrado, cerca de
45.45% do total das decisões apresentaram o delito, seguido do crime de pesca ilegal,
que apareceu em 16,36% das decisões.

Tabela 3 – Crimes encontrados


QUANTIDAD
CRIME ARTIGO E PORCENTAGEM
APREENSÃO DO
INSTRUMENTO DE art. 25 3 5,45%
INFRAÇÃO
CORTAR ÁRVORES EM
FLORESTA DE
art. 39 1 1,82%
PRESERVAÇÃO
PERMANENTE
CONTRA A
ADMINISTRAÇÃO art. 68 1 1,82%
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AMBIENTAL

art. 32 2 3,64%
CONTRA A FAUNA

CONTRA A FLORA art. 38 2 3,64%

art. 15 da Lei nº
CONTRABANDO DE 1 1,82%
7.802/89
AGROTÓXICOS

DANO À
art.325, §2º CP 1 1,82%
ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
DANO MORAL E
CF/88 1 1,82%
INDENIZAÇÃO

INFRAÇÃO
art. 70 1 1,82%
ADMINISTRATIVA

PESCA ILEGAL art. 34 9 16,36%

EXTRAÇÃO DE
RECURSOS MINERAIS
art. 54 e 55 1 1,82%
SEM AUTORIZAÇÃO
OU PERMISSÃO

IMPORTAÇÃO,
ARMAZENAGEM E
art. 56 25 45,45%
TRANSPORTE ILEGAL
DE AGROTÓXICOS
CONSTRUÇÃO DE
OBRA DE CARÁTER
POTENCIALMENTE
art. 60 6 10,91%
POLUIDOR EM ÁREA
DE PRESERVAÇÃO
PERMANENTE

Lei nº 11.343/06 2 3,64%


TRÁFICO DE DROGAS

Fonte: A autora, 2022


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 79

Ao analisar a tabela 3, é possível constatar que crimes com potencial poluidor foram
encontrados em 10% das 55 decisões, práticas como a supressão de vegetação nativa e
construção de obra de caráter potencialmente poluidor em área de preservação permanente
e destruição e dano florestal de potencial poluidor.
Ainda, o crime de importar, armazenar e transportar substâncias perigosas é tipificado no
art, 56 da Lei nº 9.605/98, prevê pena de reclusão de um a quatro anos e multa e em se
tratando de crime culposo a pena é de detenção de seis meses a um ano e multa. E o crime
de pesca ilegal está previsto no art. 34 da referida lei, que prevê pena de detenção de um a
três anos ou multa, ou ambas cumultivamente.
Ainda, os crimes contra a flora e contra a fauna correspondem a 3,64% das decisões,
ambos com dois casos, previstos nos art. 32 e art. 35 da lei de crimes ambientais, que prevê
penas de detenção de três meses a um ano e multa, e pena de reclusão de um a cinco anos
respectivamente.
Do crime contra a fauna:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal
vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos
alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste
artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorrer morte do animal. (BRASIL,
1998).

Do crime contra a flora:


Art. 35. Pescar mediante a utilização de:
I - explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante;
II - substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente:
Pena - reclusão de um ano a cinco anos. (BRASIL, 1998).

Ao analisar a tabela 3, é possível verificar que, um dos delitos que menos ocorreram
durante os anos de 2010 a 2021 foram os crimes contra a flora, no caso o corte de
árvores em floresta de preservação permanente, neste foi constatada apenas uma
decisão, cerca de 1,82% das 55 decisões encontradas.
Ainda, do total de decisões encontradas, três foram apreensão de veículo utilizado para
a prática do ato ilegal conforme previsto no art. 25 da lei de crimes ambientais:
Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos,
lavrando-se os respectivos autos.
§ 1o Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida
inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos,
fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de
técnicos habilitados.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 80

§ 2o Até que os animais sejam entregues às instituições mencionadas no § 1o deste


artigo, o órgão autuante zelará para que eles sejam mantidos em condições adequadas de
acondicionamento e transporte que garantam o seu bem-estar físico.
§ 3º Tratando-se de produtos perecíveis ou madeiras, serão estes avaliados e doados a
instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes.
§ 4° Os produtos e subprodutos da fauna não perecíveis serão destruídos ou doados a
instituições científicas, culturais ou educacionais.
§ 5º Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos, garantida a sua
descaracterização por meio da reciclagem. (BRASIL, 1998).

Conforme exposto pela tabela 3, as decisões encontradas também revelam crimes


ambientais como o de extração de recursos minerais sem autorização ou permissão,
tipificado nos art. 54 e art. 55 da Lei de crimes ambientais. Crime contra a
administração ambiental, conforme previsto no art. 68 da referida lei, além da infração
administrativa prevista no art. 70 da lei supracitada.
Ao analisarmos a tabela 3, encontramos ainda o crime de contrabando de agrotóxico,
tráfico de drogas, dano à administração pública, dano moral e sonegação fiscal, delitos
que não são tipificados pela Lei nº 9.605/98. O crime de contrabando de agrotóxico tem
sua previsão no art. 15 da Lei nº 7.802/89, que prevê que:
Art. 15. Aquele que produzir, comercializar, transportar, aplicar, prestar serviço, der
destinação a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, em
descumprimento às exigências estabelecidas na legislação pertinente estará sujeito à
pena de reclusão, de dois a quatro anos, além de multa. (BRASIL, 1989).

Por fim, foi constatado que o crime de tráfico de drogas também aparece nos resultados
da pesquisa, o delito tem sua previsão legal na Lei nº 11.343/06, que trata sobre a
política pública sobre drogas. O crime contra a administração pública é previsto no art.
325, §2º do Código Penal de 1940, e o dano moral e indenizatório é encontrado nos
termos do Código Civil de 2002, ou seja, não configura crime ambiental.

4.2 Das sanções aplicadas - TRF4

Ao todo foram identificadas 55 decisões no período delimitado, dos crimes encontrados


o que mais ocorreu em mais de 45% dos casos foi o de importação, armazenagem e
transporte ilegal de agrotóxicos, que tem a previsão legal no art. 56 da Lei de Crimes
Ambientais. A pena prevista neste delito é de reclusão de um a quatro anos e multa,
porém ao analisar os dados encontrados foi possível identificar que em 22 decisões das
25 encontradas, a pena foi restritiva de direitos.
Neste sentido a Lei nº 9.605/98 prevê que:

Art. 7º As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de


liberdade quando:
I - tratar-se de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior
a quatro anos;
II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado,
bem como os motivos e as circunstâncias do crime indicarem que a substituição seja
suficiente para efeitos de reprovação e prevenção do crime.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 81

Parágrafo único. As penas restritivas de direitos a que se refere este artigo terão a
mesma duração da pena privativa de liberdade substituída.
Art. 8º As penas restritivas de direito são:
I - prestação de serviços à comunidade;
II - interdição temporária de direitos;
III - suspensão parcial ou total de atividades;
IV - prestação pecuniária;
V - recolhimento domiciliar.

Em razão do art. 7º da referida lei, quando se trata de crime culposo ou pena privativa
de liberdade inferior a quatro anos, esta pode ser substituída por privativa de liberdade.
Deste modo, na maior parte destes casos, a pena privativa de liberdade foi substituída
por uma restritiva de direitos, onde o agente ficou condicionado à prestação de serviços
à comunidade, conforme o art. 9º da Lei de Crimes Ambientais.

Figura 5 – Penas aplicadas

Fonte: A autora, 2022

Ao analisar a figura 5, é possível identificar que 27,27% das sanções são as penas
restritivas de direitos, seguida de aplicação de multa, também em 27,27% das sanções
aplicadas. As penas de multas foram aplicadas em casos como o da pesca ilegal,
infração administrativa, dano a administração pública e transporte ilegal de agrotóxicos.
A pena de multa é prevista na Lei nº 9.605/98, sanção que pode ser aplicada de forma
isolada, cumulativa ou alternativamente a pessoa física ou pessoa jurídica, de acordo
com o art. 3º e art. 21 da referida lei. A aplicação da multa nos casos foi cumulativa
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 82

com restritivas de direitos, e também a sanção de prestação pecuniária foi aplicada


cumulativamente em 18,18% dos casos, fixada entre 10 a 20 salários mínimos.
Ainda, no crime de potencial poluidor e extração de recursos minerais sem autorização e
ou permissão, a Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio
Ambiente, no art. 9º define que:

Art 9º - São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:


I - o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental;
II - o zoneamento ambiental;
III - a avaliação de impactos ambientais;
IV - o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;
V - os incentivos à produção e instalação de equipamentos e a criação ou absorção de
tecnologia, voltados para a melhoria da qualidade ambiental;
VI - a criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público
federal, estadual e municipal, tais como áreas de proteção ambiental, de relevante
interesse ecológico e reservas extrativistas;
VII - o sistema nacional de informações sobre o meio ambiente;
VIII - o Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental;
IX - as penalidades disciplinares ou compensatórias ao não cumprimento das medidas
necessárias à preservação ou correção da degradação ambiental.
X - a instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser divulgado
anualmente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
- IBAMA;
XI - a garantia da prestação de informações relativas ao Meio Ambiente, obrigando-se o
Poder Público a produzí-las, quando inexistentes;
XII - o Cadastro Técnico Federal de atividades potencialmente poluidoras e/ou
utilizadoras dos recursos ambientais.
XIII - instrumentos econômicos, como concessão florestal, servidão ambiental, seguro
ambiental e outros. (BRASIL, 1981).

Conforme dados da figura 5, a pena de reclusão foi aplicada em 10,91% das decisões,
ou seja, em 6 dos 55 casos encontrados na Justiça Federal. A pena de reclusão foi
aplicada em casos do art. 56 da Lei de Crimes Ambientais, em que ocorreu a importação
e transporte de combustível e agrotóxicos de origem estrangeira.
O art. 56 da Lei nº 9.605/98 dispõe que:

Art. 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer,


transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica,
perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as
exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
[...] II - manipula, acondiciona, armazena, coleta, transporta, reutiliza, recicla ou dá
destinação final a resíduos perigosos de forma diversa da estabelecida em lei ou
regulamento. (BRASIL, 1998).

Ainda, de acordo com a figura 5, a pena de detenção foi a menos aplicada aos casos,
apenas duas decisões apresentaram a sanção, ou seja, presente em cerca de 3,64% dos
casos. A pena de detenção foi aplicada nos termos do art. 34 da Lei nº 9.605/98, que
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 83

dispõe sobre a pesca ilegal, mais especificamente nos casos do parágrafo único, incisos
I e II, que se refere, respectivamente, a pesca de espécies que devem ser preservadas ou
de espécimes em tamanhos inferiores ao permitido e pesca em quantidades superiores às
permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não
permitidos:

O texto da lei dispõe que:

Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por
órgão competente:
Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas
cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem:
I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos
permitidos;
II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos,
petrechos, técnicas e métodos não permitidos [..]. (BRASIL,1998).

Diante do exposto, as sanções mais aplicadas foram as restritivas de direitos e multa, de


forma isolada e ou cumulativamente, a depender do crime ambiental ocorrido.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados da pesquisa demonstram que, na segunda década do século XXI,


na comarca de Uruguaiana entre os anos de 2010 a 2021, ocorreram 55 decisões no
âmbito da Justiça Federal sobre crimes ambientais conforme previsto na Lei nº
9.605/98. De acordo com os resultados, o município em que mais ocorreram os delitos
foi Uruguaiana, com 41 ocorrências, seguido por Alegrete que apareceu em 5 dos casos.
Ao analisar os dados obtidos a partir dos anos delimitados, verificou-se que o
crime ambiental que mais ocorreu foi a importação, armazenagem e transporte ilegal de
agrotóxicos e substâncias perigosas, com um número expressivo de mais de 45% das
decisões analisadas. Este crime está descrito no art. 56 da Lei nº 9.605/98, na Seção III,
que trata da poluição e outros crimes.
Além disso, o crime de pesca ilegal tipificado no art. 34 da referida lei, também
demonstrou um número significativo com relação aos demais crimes encontrados, em
16,36% das decisões analisadas. Seguido do crime de supressão de vegetação nativa e
construção de obra de caráter potencialmente poluidor em área de preservação
permanente junto a destruição e dano florestal de potencial poluidor, crime tipificado
pelo art. 60 da referida lei, presente em 10,91% das decisões.
Ademais, verificou-se a presença de crimes contra flora e fauna, ambos com 2
casos, presentes em 3,64% das 55 decisões que foram analisadas pela pesquisa. Além de
crimes contra a administração pública, poluição, extração de recursos minerais sem
autorização ou permissão, infração administrativa, contrabando de agrotóxicos,
apreensão do produto e do instrumento de infração e sonegação fiscal.
Ainda, a análise dos dados permitiu concluir que, durante o ano de 2019
ocorreram os maiores números de decisões, cerca de 9 decisões proferidas, ou seja,
16,36% das 55 decisões encontradas foram proferidas no ano de 2019.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 84

No que tange às sanções aplicadas, a pena restritiva de direitos prevaleceu em


mais de 27,27% das decisões, seguida da pena de multa também aplicada em 27,27%
dos casos. Ambas as penas foram aplicadas de forma isolada e ou cumulativamente, a
variar de acordo com o delito cometido e como foi cometido pelo agente infrator,
seguindo as disposições de sanções da Lei de Crimes Ambientais.
A pena de prestação pecuniária foi aplicada em 18,18% dos casos, de modo
isolado e ou cumulativamente em alguns casos, sendo uma pena fixada em torno de 10 a
20 salários mínimos, de acordo com a legislação ambiental. Por fim, a pena de reclusão
e detenção, ambas aplicadas em 6 e 2 casos respectivamente, aplicadas nos delitos do
art. 34 e do art. 56 da legislação ambiental de 1998.
Ademais, no período delimitado pela pesquisa, nos anos de 2010 a 2021, as
decisões apontaram que os crimes de pesca ilegal e transporte, armazenagem e
importação de agrotóxicos e substâncias perigosas ocorreram em mais de 60% das
decisões, apontando que o município de Uruguaiana em razão da sua localização
territorial se tornou um local propicio para a prática de crimes ambientais, devido ao
espaço geográfico que ocupa as margens do Rio Uruguai.
Dessa maneira, o método utilizado na pesquisa, permitiu concluir que, embora a
legislação penal tipifique os crimes ambientais contra a fauna e flora, crime de
importação, armazenamento e transporte de agrotóxicos, eles continuam sendo matéria
jurisdicional frequente na região. Indicando também que, as sanções previstas podem
não ser tão eficientes mesmo em delitos culposos ou dolosos, isto porque a pena
máxima prevista no corpo da lei é de reclusão de até cinco anos.
Destarte, o objetivo proposto foi atingido a partir do método utilizado na
pesquisa, que se mostrou eficaz, demonstrando dados pertinentes sobre os crimes
ambientais que mais ocorreram na segunda década do século XXI na comarca de
Uruguaiana.
Por conseguinte, de acordo com os dados obtidos com o trabalho realizado, se
sugere que este material seja disponibilizado para fins de estudos diversos sobre crimes
ambientais, e também como um auxílio para pesquisas e para que programas
governamentais e não governamentais, utilizem como fonte de informação para
conscientização ambiental da população, assim como empenhar ações de ensino sobre o
meio ambiente, direito ambiental e as normas e sanções tipificadas na Lei de Crimes
Ambiental do Brasil.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 85

REFERÊNCIAS

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A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 87

APÊNDICE - TABELA COM OS PROCESSOS UTILIZADOS PARA


REALIZAÇÃO DA PESQUISA

NÚMER Nº DO DATA MUNICÍPI CRIMES


O PROCESSO DA O
DECISÃ
O

1 5003133- 26/10/202 Alegrete e ART. 56 DA LEI N° 9.605/98.


47.2014.4.04.7106 1 Uruguaiana IMPORTAÇÃO IRREGULAR DE
AGROTÓXICOS. ART. 288 DO CP.

2 000786- 06/07/202 Uruguaiana ART..60 DA LEI Nº 9.605/1998 c/c


94.2021.4.04.7106 1 ART.. 39 DA LEI Nº 9.605/1998 .
SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO
NATIVA E CONSTRUÇÃO DE
OBRA DE CARÁTER
POTENCIALMENTE POLUIDOR
EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO
PERMANENTE JUNTO A BEM DA
UNIÃO.

3 5003078- 12/05/202 Aceguá/RS e ART. 15 DA LEI Nº 7.802/89


18.2018.4.04.7119 1 Cachoeira CONTRABANDO DE
do Sul/RS AGROTÓXICOS

4 5000093- 27/04/202 Alegrete e ART. 56 DA LEI N° 9.605/1998 -


18.2018.4.04.7106 1 Uruguaiana IMPORTAÇÃO IRREGULAR DE
AGROTÓXICOS

5 5002755- 30/03/202 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/1998 -


91.2014.4.04.7106 1 IMPORTAÇÃO IRREGULAR DE
AGROTÓXICOS art. 288 do CP

6 5029258- 17/03/202 Uruguaiana INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA art.


94.2019.4.04.7100 1 70 DA LEI N° 9.605/1998

7 5000097- 16/03/202 Itaqui e ART. 56 DA LEI N° 9.605/1998 -


55.2018.4.04.7106 1 Uruguaiana IMPORTAÇÃO IRREGULAR E
TRANSPORTE DE AGROTÓXICOS
art. 288 do CP

8 5002357- 23/02/202 Alegrete e TRÁFICO DE DROGAS LEI Nº


22.2015.4.04.7103 1 Uruguaiana 11.343/06

9 5002362- 28/10/202 Barra do ART. 34 INCISOS I E II DA LEI Nº


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 88

59.2020.4.04.7106 0 Quaraí 9.605/98 PESCA ILEGAL

10 5003158- 30/06/202 Uruguaiana PESCA ILEGAL - ART. 34 INCISOS


84.2019.4.04.7106 0 I E II DA LEI 9.605/98

11 5002585- 02/06/202 Uruguaiana ART. 34 P.UI E III DA LEI 9.605/98


46.2019.4.04.7106 0 PESCA ILEGAL E TRANSPORTE
DE ESPÉCIMES PROVENIENTES

12 5001664- 11/03/202 Uruguaiana ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, I E


33.2018.4.04.7103 0 II, DA LEI N. 9.605/98 PESCA
ILEGAL

13 5002481- 10/03/202 Uruguaiana ART. 25 §5º DA LEI N. 9.605/98


97.2018.4.04.7103 0 TRANSPORTE ILEGAL DE
MERCADORIAS ESTRANGEIRAS,
APREENSÃO DO AUTOMÓVE

14 5002043- 18/02/202 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/1998 -


71.2018.4.04.7103 0 IMPORTAÇÃO IRREGULAR DE
AGROTÓXICOS C/C APREENSÃO
DO AUTOMÓVEL ART. 25, §5 DA
LEI 9.605/98

15 5003492- 04/12/201 São Borja ART. 38 DA LEI N° 9.605/98 -


11.2011.4.04.7103 9 UTILIZAÇÃO DE ÁREA DE
PRESERVAÇÃO PERMANENTE
COM INFRINGÊNCIA DE NORMAS
DE PROTEÇÃO

16 5005460- 23/10/202 Doutor ART. 48 DA LEI N° 9.605/98 -


35.2014.4.04.7115 0 Maurício DANO A FLORESTA DE
Cardoso PRESERVAÇÃO PERMANENTE

17 5001129- 09/10/201 Uruguaiana ART. 44 DA LEI Nº 9.532/97


12.2015.4.04.7103 9 COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE
CIGARROS

18 5001602- 02/10/201 Santiago ART. 334-A CP TRANSPORTE


73.2017.4.04.7120 9 ILEGAL DE MERCADORIAS

19 5029559- 10/09/201 Eldorado do ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


12.2017.4.04.7100 9 Sul TRANSPORTE DE PRODUTOS
AGROTÓXICOS

20 5002714- 15/08/201 Quaraí e ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


02.2015.4.04.7103 9 Uruguaiana TRANSPORTE DE PRODUTOS
AGROTÓXICOS
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 89

21 5000170- 31/07/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


36.2018.4.04.7103 9 TRANSPORTE DE PRODUTOS
AGROTÓXICOS

22 5021170- 09/07/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98 E ART.


61.2018.4.04.0000 9 25 TRANSPORTE DE PRODUTOS
AGROTÓXICOS

23 5002714- 27/03/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98 -


02.2015.4.04.7103 9 TRANSPORTE DE PRODUTOS
AGROTÓXICOS

24 5002292- 19/02/201 Alegrete e TRÁFICO DE DROGAS 11.343/06


27.2015.4.04.7103 9 Uruguaiana

25 5002003- 28/11/201 Bagé e DANO AMBIENTAL.


76.2015.4.04.7109 8 Uruguaiana AGROTÓXICOS LEI Nº 6.938/1981

26 5003623- 26/09/201 Barra do ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


49.2012.4.04.7103 7 Quaraí e IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
Uruguaiana ILEGAL DE AGROTÓXICOS

27 5003621- 15/08/201 Uruguaiana ART. 38 DA LEI N° 9.605/98 C/C


40.2016.4.04.7103 7 ART. 60 - DESTRUIÇÃO E DANO
FLORESTAL. POTENCIAL
POLUIDOR

28 0000713- 20/06/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


42.2009.4.04.7103 7 IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
ILEGAL DE AGROTÓXICOS

29 5003555- 06/06/201 Barra do ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


02.2012.4.04.7103 7 Quaraí e IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
Uruguaiana ILEGAL DE AGROTÓXICOS

30 5002855- 14/02/201 Barra do ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO E II,


55.2014.4.04.7103 7 Quaraí DA LEI N. 9.605/98 PESCA ILEGAL

31 5001065- 01/02/201 Barragem ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


07.2012.4.04.7103 7 Sanchuri, IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
distrito de ILEGAL DE AGROTÓXICOS
Uruguaiana

32 5000793- 13/12/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


76.2013.4.04.7103 6 IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
ILEGAL DE AGROTÓXICOS

33 5001790- 30/11/201 Barra do ART. 34, I, DA LEI N. 9.605/98


25.2014.4.04.7103 6 Quaraí PESCA ILEGAL - ESPECIES EM
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 90

EXTINÇÃO

34 5001764- 27/09/201 Barra do ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO E I,


27.2014.4.04.7103 6 Quaraí DA LEI N. 9.605/98 PESCA ILEGAL

35 5003067- 24/05/201 Pelotas e DANO À ADMINISTRAÇÃO


94.2010.4.04.7110 6 Piratini PÚBLICA 325 §2º CP

36 5001902- 18/02/201 Balneário DANOS AO MEIO AMBIENTE


09.2010.4.04.7208 6 Camboriú/S
C

37 5042301- 26/01/201 Alegrete EXTRAÇÃO DE BASALTO ART. 55


97.2015.4.04.0000 6 DA LEI Nº 9.605/98 CRIME
CONTRA O PATRIMÔNIO ART. 2
DA LEI Nº 8.176/91

38 5001902- 28/01/201 Balneário DANO AMBIENTAL


09.2010.4.04.7208 5 Camboriú/S CONSTRUÇÃO EM ÁREA DE
C RESTINGA

39 5001902- 28/01/201 SC DANO AMBIENTAL


09.2010.4.04.7208 5 CONSTRUÇÃO EM ÁREA DE
RESTINGA

40 5000309- 17/12/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


32.2011.4.04.7103 4 IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
ILEGAL DE AGROTÓXICOS

41 5002247- 11/03/201 Uruguaiana ART. 34 LEI N° 9.605/98 PESCA


26.2014.4.04.0000 4 ILEGAL

42 0005733- 25/09/201 Três ART. 34 E P.U DA LEI Nº 9.605/98


41.2013.4.04.0000 3 Corações - PESCA ILEGAL - ESPECIES EM
MG EXTINÇÃO

43 5000041- 28/11/201 Uruguaiana TRÁFICO DE ANIMAIS


09.2010.4.04.7104 2 SILVESTRES E CRIME DE MAUS
TRATOS AOS ANIMAIS ART. 29 E
32 DA LEI N° 9.605/98

44 5004091- 03/04/201 Quaraí ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


79.2012.4.04.0000 2 IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE
ILEGAL DE AGROTÓXICOS -
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA ART
288 CP

45 5001287- 29/02/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


09.2011.4.04.7103 2 IMPORTAÇÃO, ARMAZENAGEM E
TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIA
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 91

PERIGOSA

46** 0003933- 13/09/201 Uruguaiana SONEGAÇÃO FISCAL - TRIBUTO


24.2004.4.04.7103 1

47 0001690- 03/08/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


34.2009.4.04.7103 1 IMPORTAÇÃO ILEGAL DE
GASOLINA

48 2009.04.00.002578- 21/07/201 Uruguaiana ARTS. 54, CAPUT E § 3º, E 68,


4 1 CAPUT, DA LEI Nº 9.605/98
POLUIÇÃO

49 0000181- 02/05/201 —---- DANO MORAL E INDENIZAÇÃO


68.2009.4.04.7103 1

50 2008.71.03.001722- 26/10/201 Uruguaiana ART. 56 IMPORTAÇÃO DE


4 0 SUBSTÂNCIA PERIGOSA OU
NOCIVA DA LEI Nº 9.605/98

51 0003135- 08/09/201 São Borja ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


92.2006.4.04.7103 0 IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE DE
COMBUSTÍVEL

52 0001952- 21/07/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


81.2009.4.04.7103 0 IMPORTAÇÃO, ARMAZENAGEM E
TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIA
PERIGOSA

53 2005.71.03.003340- 16/06/201 Uruguaiana ART. 56 DA LEI N° 9.605/98


0 0 IMPORTAÇÃO, ARMAZENAGEM E
TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIA
PERIGOSA

54 2005.71.03.004529- 27/04/201 Alegrete ART. 56 DA LEI 9.605/98


2 0 AGROTÓXICOS DE ORIGEM
ESTRANGEIRA

55 2008.71.03.001373- 17/02/201 Uruguaiana ARTIGO 56. IMPORTAÇÃO E


5 0 TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIA
PERIGOSA OU NOCIVA AO MEIO
AMBIENTE. GASOLINA
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 92

O LUGAR DE FALA DA MULHER NO CRIME DE VIOLÊNCIA


PSICOLÓGICA4

Micaele Mann Saldanha


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
micaelesaldanha.aluno@unipampa.edu.br

Vanessa Dorneles Schinke


Orientadora
Docente do Curso de Direito da Unipampa
vanessaschinke@unipampa.edu.br

RESUMO

A presente pesquisa versa sobre o crime de violência psicológica contra a mulher,


tipificado pela nova Lei 14.188 de 28 de julho de 2021, a qual alterou o Código Penal
incluindo o artigo 147-B. Mais especificamente, será observado o valor probatório da
palavra da vítima referente a essa nova conduta delituosa. O objetivo do trabalho é
verificar qual lugar a palavra da mulher tem assumido, no contexto probatório, no que
diz respeito ao crime de violência psicológica. Através da pesquisa bibliográfica
baseada em teses, artigos científicos e demais informações em sites de órgãos oficiais,
bem como, dando a devida ênfase a criminologia crítica feminista. Ademais, também se
deu por meio do método indutivo, utilizando a pesquisa documental, a qual possibilitou
a análise de apelações judiciais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Preliminarmente, analisou-se aspectos gerais sobre a construção teórica e histórica de
gênero, objetivando compreender o papel exercido pela mulher na sociedade.
Adentrando a questão da violência de gênero e traçando um caminho até ao que se foi
alcançando atualmente, referente às políticas públicas que defendem os direitos das
mulheres. Posteriormente, verificou-se o desenvolvimento do Direito Penal e Processual
Penal, em vista da criminologia crítica feminista, apontando uma análise sobre a
influência do patriarcado no instituto penal. Ademais, abordou-se os meios de provas
admitidos nessa esfera, mais especificamente, focando na palavra da vítima como meio
de prova em crimes que se configuram em um ambiente íntimo e privado. Por fim, foi
observado através de apelações do TJRS, casos específicos que envolvam o crime de
violência psicológica, nessa situação, objetivando o resultado de uma pesquisa
qualitativa, foram observadas expressões associadas a violência psicológica e a palavra
da vítima como meio de prova,a fim de que se pudesse se compreender na prática
processual qual o lugar a palavra da mulher tem assumido no contexto probatório. Após
a análise realizada em Apelações do TJRS, pode-se concluir através dos dados coletados
que a palavra da mulher tem assumido um lugar de destaque como meio de prova,
referente ao crime de violência psicológica. Tendo em vista o fato da conduta delituosa
ser majoritariamente praticada no âmbito íntimo e privado, de modo que, dificilmente
haverá um terceiro que poderá ter visto, e assim, testemunhar o ato praticado.
4
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 93

Palavras-Chaves: Violência psicológica; gênero; palavra da vítima; meios de prova.

ABSTRACT

The present research deals with the crime of psychological violence against women,
typified by the new Law 14.188 of July 28, 2021, which amended the Penal Code by
including article 147-B. More specifically, the evidential value of the victim's word
regarding this new criminal conduct will be observed. The objective of the work is to
verify what place the woman's word has assumed, in the evidential context, with regard
to the crime of psychological violence. Through bibliographic research based on theses,
scientific articles and other information in official organs sites, as well as, giving due
emphasis to the feminist critical criminology. Moreover, it was also done through the
inductive method, using the documental research, which made possible the analysis of
judicial appeals of the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul. Preliminarily,
general aspects about the theoretical and historical construction of gender were
analyzed, aiming to understand the role played by women in society. Entering the issue
of gender violence and tracing a path until what has been reached today, referring to
public policies that defend women's rights. Subsequently, the development of Criminal
Law and Criminal Procedural Law was verified, in view of the feminist critical
criminology, pointing out an analysis of the influence of patriarchy in the criminal
institute. Furthermore, the means of evidence admitted in this sphere were approached,
more specifically focusing on the word of the victim as a means of proof in crimes that
take place in an intimate and private environment. Finally, it was observed through
appeals from the TJRS, specific cases that involve the crime of psychological violence,
in this situation, aiming at the result of a qualitative research, expressions associated
with psychological violence and the word of the victim as a means of proof were
observed, so that one could understand in the procedural practice what place the word of
the woman has assumed in the evidential context. After the analysis of the appeals from
the TJRS, we can conclude through the data collected that the word of the woman has
assumed a prominent place as a means of proof regarding the crime of psychological
violence. In view of the fact that the criminal conduct is mostly practiced in the intimate
and private sphere, it is difficult for a third party to have seen and witness the act
committed.

Key-words: Psychological violence; gender; word of the victim; means of proof.


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 94

1 INTRODUÇÃO

A sociedade em sua essência é estruturalmente patriarcal, dessa forma,


determina-se desde a mais tenra idade dos indivíduos que homens e mulheres devem
ocupar locais distintos. Enquanto o homem deve assumir um lugar de destaque,
ascendendo socialmente, a mulher por outro lado assume uma posição à sombra do
homem, de modo que sua vida deverá ser pautada através das necessidades masculinas e
familiares. A partir desse contexto, compreende-se que as mulheres foram socialmente
marginalizadas, oprimidas em seus próprios corpos e vontades, de modo que, ao invés
de lutar pelos direitos humanos, necessitavam pautar suas lutas preliminarmente na
igualdade de gênero, para que lhes fossem concedidas garantias a fim de viver uma vida
digna, bem como, proteção perante a misoginia decretada pelo patriarcado.
Nesse sentido, assim como a origem da sociedade é um resultado da instituição
patriarcal, o Direito também é inerente a esse sistema, representando um instituto feito
por homens e para homens. Por muito tempo a mulher foi vista como um bem,
primordialmente a posse era do pai e posteriormente tornava-se do marido, de diversas
formas eram discriminadas, seja por não possuírem direitos individuais, políticos,
trabalhistas ou até quando eram culpadas pelos crimes dos quais eram vítimas, a tese da
legítima defesa da honra5 no crime de feminicídio, comprova literalmente este
paradigma.
No entanto, a partir do reconhecimento dessa realidade e da luta advinda dos
movimentos feministas, as mulheres passaram a ser detentoras de direitos, garantindo
aos poucos a tão almejada liberdade individual. Conseguiram, dessa maneira, conquistar
locais de destaque socialmente. Porém, mesmo com tantos direitos adquiridos as
mulheres não deixaram de ser alvo do maior ato de desigualdade existente, a violência
de gênero.
A violência cometida contra a mulher em função do gênero, pode ocorrer de
diversas maneiras, porém em seu âmago sempre terá como essência a discriminação e a
aversão ao gênero feminino, baseado no ideal de que existe um ditame determinado pelo
mandato da masculinidade, onde os homens são detentores do poder, cabendo as
mulheres obedecer seus preceitos e suas vontades, para que não venham sofrer as
consequências de sua ira.
Atualmente, tem-se inúmeras Leis que buscam coibir essas condutas delituosas,
em vista da grande incidência com que ainda se perpetuam. Uma das espécies mais
comuns de violência cometidas contra o gênero feminino, é a violência psicológica,
onde o indivíduo pretende incidir dor emocional na vítima, a partir da humilhação e
constrangimento. No Brasil, o conceito de violência psicológica foi inicialmente
previsto na Lei Maria da Penha, contudo, foi a partir da Lei 14.188 de 28 de julho de

5
A tese de legítima defesa da honra é um recurso argumentativo, comumente utilizado pelos advogados
dos réus, principalmente em julgamentos referentes ao crime de feminicídio. Nesse sentido, através dessa
abordagem, o advogado pretende provar a inocência do réu, demonstrando que a conduta só foi
promovida devido a uma atitude anterior da vítima. Logo, subentende-se que o sujeito ativo só teria
cometido a prática delituosa para proteger a sua honra que teria sido abalada por uma conduta promovida
pela da vítima. Contudo, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, a partir da ADPF 779 a
tese foi considerada inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana (ADPF 779 MC-Ref, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Plenário, julgado em 15/03/2021, DJe de
20/05/2021).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 95

2021, que a conduta passou a ser vista como crime em espécie e, portanto, passou a
receber uma penalidade específica.
O crime de violência psicológica contra a mulher, assegurado no artigo 147-B
do Código Penal, tem como característica marcante o fato de que em grande medida
ocorre no âmbito doméstico. Desse modo, trata-se de uma conduta com singularidades
que devem ser observadas.
Dessa forma, surge o seguinte problema de pesquisa: qual o lugar da palavra da
mulher no contexto probatório no que se refere ao crime de violência psicológica? O
objetivo desta pesquisa é, portanto, verificar qual o lugar a palavra da mulher tem
assumido no contexto probatório, no que tange ao crime de violência psicológica.
A luz dessa perspectiva, elaborou-se a seguinte hipótese: as características do
crime de violência psicológica, em grande medida acontecem no âmbito íntimo e
privado. Desse modo, trata-se de uma conduta típica de difícil comprovação, nesse
sentido, é necessário a adaptação do sistema processual penal às particularidades desse
tipo penal. Portanto, a palavra da mulher no contexto probatório deve assumir um lugar
de maior relevância, para que possa alcançar um desfecho coerente na esfera processual.
Além disso, tendo em vista a estrutura histórica do processo penal, a partir da visão da
criminologia feminista, sabe-se que, desde seu âmago a estruturalização da esfera
processual deu-se através de um sistema patriarcal, no qual as mulheres ocupavam e
ocupam um lugar ínfimo, quando comparado aos homens. Logo, é perceptível que em
tipificações tão específicas, que são criadas com o objetivo de garantir direitos e
proteção para as mulheres, existe uma necessidade de adaptação de um sistema
processual, de certa forma ultrapassado, para que durante o procedimento processual
sejam respeitadas as particularidades desses crimes, buscando garantir que o direito seja
aplicado de forma coerente, demonstrando que na prática as garantias são eficazes para
as mulheres.
Para que a hipótese ora apresentada pudesse ser testada, o trabalho teve como
base a pesquisa bibliográfica, a qual ocorreu através de análises em livros, teses, artigos
científicos e demais informações em sites de órgãos oficiais. Desse modo,
possibilitando um estudo voltado ao sistema processual penal e seu funcionamento, com
ênfase a criminologia feminista. Outrossim, também foi realizada uma pesquisa, através
de dados coletados a partir de apelações judiciais do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, objetivando o resultado de uma pesquisa qualitativa, foram
observadas expressões associadas a violência psicológica e a palavra da vítima como
meio de prova, estruturando-se o trabalho em três capítulos.
No primeiro capítulo, inicialmente, foram estabelecidos aspectos gerais sobre a
construção teórica e histórica de gênero, tendo como objetivo primordial realizar uma
análise crítica sobre o papel exercido pela mulher na sociedade. Desde a compreensão
do cerne que envolve a questão de gênero até a violência e ao que se foi alcançado até o
presente momento, referente às políticas públicas que defendem os direitos das
mulheres.
Por outro lado, o segundo capítulo é dedicado, em um primeiro momento, a
analisar a influência do patriarcado no instituto penal, com a formação do mandato da
masculinidade. Ademais, ainda que brevemente, abordou-se os meios de provas
admitidos no processo penal, mais especificamente observando como ocorre a produção
de provas em crimes que ocorrem em um ambiente íntimo e privado, onde geralmente
se perpetuam sem a presença de testemunhas.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 96

Por fim, no terceiro capítulo será observado através de apelações do Tribunal de


Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, casos específicos que envolvam o crime de
violência psicológica, para que se possa compreender na prática processual qual o lugar
a palavra da mulher tem assumido no contexto probatório, referente ao crime de
violência psicológica.

2 O GÊNERO PERANTE A SOCIEDADE PATRIARCAL

Nos dias atuais sabe-se que a mulher tem ocupado um lugar secundário na
estrutura social, consequência das construções sociais inerentes ao gênero feminino,
advindas de uma cultura patriarcal na qual o gênero masculino ocupa lugares
dominantes e o gênero feminino torna-se oprimido.
Em vista disso, percebe-se que para uma análise aprofundada sobre o papel da
mulher perante a sociedade se faz necessário compreender a construção teórica de
gênero, bem como, o contexto histórico que permeia essa temática.
Logo, este primeiro capítulo tem como objetivo realizar uma análise crítica
sobre o papel da mulher perante a sociedade. Desde a compreensão do cerne que
envolve a questão de gênero até a violência e ao que se foi alcançado até o presente
momento, no que diz respeito a políticas públicas que defendem os direitos das
mulheres. De modo que, será utilizado como base a teoria crítica feminista, através de
conceituações basilares.

2.1 A Construção teórica e histórica de gênero

Conforme ensinado por Joan Scott, na gramática, gênero é compreendido como


um meio de classificar fenômenos, de modo a sugerir uma relação entre categorias,
permitindo distinções ou agrupamentos separados. Em outro sentido, foi a partir dos
movimentos feministas que o termo gênero passou a ser utilizado mais seriamente, em
seu sentido mais literal, representa um modo de referir-se à organização social da
relação entre os sexos.
Em vista disso, entende-se que foi só no século XX, a partir da década de 70
que a sociedade passou a conhecer o termo “gênero”, para fazer referência à construção
social do feminino e do masculino através de processos de socialização que formam o
sujeito desde a mais tenra idade (MENDES, 2017, p.82).
Mais especificamente, a luz da criminologia feminista entende-se que o gênero
representa uma construção social. Conforme escreveu Simone de Beauvoir “não se
nasce mulher, torna-se”(BEAUVOIR,1980,p.9), valendo se do mesmo ensinamento ao
gênero masculino. Sendo de suma importância a conscientização da divergência entre o
termo sexo que remete ao biológico e gênero que emerge do social.
Ante o exposto, Mendes (2017), explica que o gênero enquanto elemento
constitutivo admite:
[...] o gênero pressupõe a construção social dos indivíduos
que se relaciona à ideia de mulher e de homem. Nessa
construção, é de vital importância a difusão de símbolos
culturalmente disponíveis que agregam representações
múltiplas sobre o feminino e o masculino. Os símbolos,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 97

dotados de uma ideia de permanência intertemporal, são


interpretados e introduzidos através de conceitos
normativos, tais como os encontrados nas doutrinas
religiosas, nas práticas educacionais e nas leis[...]
(MENDES, 2017, p.82).

Assim, entende-se que o ponto de partida para a análise crítica da divisão social
entre homens e mulheres perante a sociedade, deve surgir a partir da ideia de construção
social de gênero, pois mesmo quando fala-se da diferença através da percepção
biológica e de cunho científico, ainda sim depende, essencialmente, das qualidades que
em uma determinada cultura e sociedade são atribuídas aos dois gêneros e não o
contrário (BARATTA, 1999, p.21).
Além disso, através do entendimento de gênero ser uma construção social, torna-
se evidente que a distinção entre homens e mulheres não ocorre devido a fatores
biológicos, como por exemplo a reprodução ser uma característica feminina ou a força
física uma qualidade remetente ao masculino, a partir do estudo do gênero resta claro
que a subjugação feminina ocorre devido aos aspectos sociais. De modo que, o gênero
pode ser observado como uma imposição a um corpo sexuado (CAMPOS, 2020, p.
126).
Nesse sentido, conforme ensina (BARATTA, 1999), é possível compreender que
as pessoas do sexo feminino tornaram-se membros de um gênero subordinado, na
medida em que, em uma sociedade e cultura determinadas, a posse de certas qualidades
e o acesso a certos papéis vêm percebidos como naturalmente ligados somente a um
sexo biológico, e não a outro. Desse modo, esta conexão que é de cunho ideológico e
não natural entre os dois sexos, traz como consequência a repartição dos recursos e a
posição vantajosa de um dos dois gêneros.
Logo, quando fala-se nas problemáticas inerentes aos gêneros perante a
sociedade, colhe-se que o ideal seria uma desconstrução da conexão ideológica, a partir
de uma construção social de gênero, deixando de lado preliminarmente a busca por uma
repartição igualitária entre os dois sexos, devido ao fato da subordinação do gênero
feminino estar arraigado na base da estrutura social, sendo necessário desconstruir para
na sequência reconstruir de uma forma coerente e correta.
Ademais,por outro lado, conforme foi ensinado por Joan Scott, entende-se que
como forma primária de relações de poder, por sua vez, o gênero é um campo primário
no qual, ou mediante o qual, se articula o poder. Ou seja, o gênero tem sido uma forma
habitual de facilitar a significação do poder. O gênero se dissolve na conceitualização e
constituição do próprio poder (MENDES, 2017, p.83).
Portanto, Joan Scott revolucionou o próprio conceito de gênero, ao apresentar
uma de suas mais conhecidas e utilizadas definições. Segundo a historiadora, o gênero
seria tanto o elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas distinções que
diferenciam os sexos, como também, uma forma primária de relações significantes de
poder.
Posterior a compreensão da construção teórica de gênero, é de suma importância
compreender de que modo as mulheres garantiram seu espaço na sociedade, a partir do
contexto histórico. Nesse sentido, Michelle Perrot argumenta que a história das
mulheres é uma conquista recente:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 98

Até o século XIX, faz-se pouca questão das mulheres no


relato histórico, o qual na verdade, ainda está pouco
constituído. As que aparecem no relato dos cronistas são
quase sempre excepcionais por sua beleza, virtude,
heroísmo ou, pelo contrário, por suas intervenções
tenebrosas e nocivas, suas vidas escandalosas. A noção de
excepcionalidade indica que o estatuto vigente das
mulheres é o do silêncio que consente com a ordem
(PERROT, 2008).

Outrossim, sabe-se que a historiografia que privilegia as mulheres como sujeito


e objeto da história remete dos anos de 1960 a 1970, momento no qual as feministas
passaram a compor os quadros da academia, tornando uma realidade os debates
relacionados às relações entre os sexos. Como bem assinalou a historiadora Joan Scott,
a conexão entre a história das mulheres e a política é ao mesmo tempo óbvia e
complexa. Em uma das narrativas convencionais das origens deste campo, a política
feminista é o ponto de partida. Esses relatos situam a origem do campo na década de 60,
quando as ativistas feministas reivindicaram uma história que estabelecesse heroínas,
prova da atuação das mulheres, e também explicações sobre a opressão e inspiração
para a ação (Sant’anna e Silva, 2016, p.14).
No que diz respeito ao fatores de transformação que propiciaram este
acontecimento, Michelle Perrot (2008), observa que outras disciplinas, mais sensíveis
em relação à diferença entre os sexos em virtude dos seus próprios procedimentos, tais
como a sociologia e a antropologia, contribuíram para que o ideal de gênero se tornasse
conhecido:
A sociologia foi pioneira graças aos trabalhos de Evelyne
Sullerot, Madeleine Guilbert e Andrée Michel, ainda que
muito diferentes entre si. Deve-se, à primeira, pesquisas
inovadoras acerca da imprensa feminina. Próxima do
marxismo, a segunda se interessou pelas desigualdades
das mulheres no trabalho e no movimento operário.
Ligada a Simone de Beauvoir, Andrée Michel era a mais
radical, apoiando Christine Delphy na sua crítica ao
patriarcado “O principal inimigo''. Muito importante para
as mulheres historiadoras, essas pesquisas pouco
repercutiram entre os historiadores, que foram muito mais
atenciosos com a Antropologia [...] Ora, a Antropologia
colocava em primeiro plano suas preocupações com o
estudo da família como grupo humano fundamental e,
conseqüentemente, a formação do casal as relações pais-
filhos ,o parentesco [...] (PERROT, 2008).

Desse modo, Sant’anna e Silva (2016), assegura que foi neste contexto
envolvendo os encontros entre política e academia que ocorreram as primeiras incursões
históricas da História das mulheres em meio a História social:
Neste momento, a perspectiva acadêmica foi a de suprir a
lacuna na “História Geral”, a História do homem e para o
homem, ao dar visibilidade para as mulheres “na
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 99

História”. O movimento historiográfico foi, portanto, o de


preencher a “História dos homens” com a História das
mulheres, impossibilitando qualquer movimento de
mudança epistemológica mais profunda. Em resumo os
sentidos históricos captados e construídos teriam sido
domesticados dentro da monofonia da linguagem
masculina, isto é, dentro do que Elaine Showalter chamou
de “ditadura do discurso patriarcal (SANT’ANNA E
SILVA, 2016, p.14).

Logo, consoante ao que explica Michelle Perrot (2008), pode-se concluir que o fator
decisivo para que ocorresse a inclusão da história das mulheres na história social,
desenvolveu-se a partir dos movimentos das mulheres. Na França esse movimento se
desenvolveu através da fundação do Mouvement de Libération des Femmes (MLF).
Portanto, ao invés de “inscrever” as mulheres em uma história totalizante e pré-
construída do masculino, entende-se que melhor caminho foi a “desconstrução da
história geral” e “reconstrução de novas narrativas”, marcadas, sobretudo pela
emergência do pós-modernismo, pela “virada linguística” e pelos desafios do
feminismo, os quais remodelaram a forma de se pensar a construção de uma história
cujo sujeitos são mulheres e homens. Foi a partir desse movimento de desconstruir que
tornou-se possível preterir o mecanismo impositivo da linguagem patriarcal, de modo a
construir o lugar do feminino na experiência histórica (Sant’anna e Silva, 2016, p.15).

2.2 A violência de gênero e os movimentos feministas

Ao adentrar nas construções sociais que determinam as diferenças existentes


entre os gêneros, é possível perceber que existem grandes problemáticas a serem
desenvolvidas, principalmente no que tange a desigualdade.
Uma das principais autoras a tratar sobre o tema da desigualdade de gênero,
Segato (2018), assevera que foi construído historicamente uma sociedade baseada no
sistema patriarcal “A história do estado é a história do patriarcado e o DNA do estado é
patriarcal” (SEGATO, 2018, p.23)6 . Por esse motivo a desigualdade de gênero é uma
realidade inerente ao Estado, na qual tem-se a existência do mandato de masculinidade,
onde o homem precisa a todo tempo provar ser homem, para que possa gozar de uma
posição hierárquica superior à da mulher “porque a masculinidade, se diferencia da
feminilidade, é um status, uma hierarquia de prestígio, se adquire como um título que
deve se renovar e comprovar sua vigência como tal” (SEGATO, 2018, p.40)7.
Nesse sentido, Severi (2017), assegura que para Saffioti esse sistema de
exploração-dominação baseado no gênero é compreendido como algo que permeia
todos os níveis institucionais, de modo a estar relacionado com outros sistemas, como o
capitalismo e o racismo, fundindo-se em um único sistema de dominação-exploração.
Logo, é possível declarar que existe uma simbiose entre o patriarcado, racismo e
capitalismo, no entanto isso não significa dizer que esta relação seja harmônica, mas
trata-se de uma unidade contraditória.

6
“A historia del estado es la historia del patriarcado y el ADN del estado es patriarcal”
7
“Porque la masculinidad, a diferencia de la feminidad, es un status, una jerarquia de prestigio, se
adquirie como un título y se debe renovar y comprobar su vigencia como tal”.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 100

Em razão ao exposto, passaram a ser utilizadas frequentemente as expressões


violência de gênero e violência contra a mulher como sinônimos. De modo que, para
Grossi, o termo violência contra a mulher passou a fazer parte do senso comum a partir
de movimentos feministas no período da década de 70, relacionados aos assassinatos
violentos cometidos contra mulheres no Brasil. Ademais, já na década de 90, a partir
dos impulsos relacionados aos estudos sobre gênero no país, a categoria de gênero
passou a ser utilizada para designar a violência contra a mulher praticada pelo homem
(ARAÚJO e MATTIOLI, 2004, p.18).
Contudo, Araújo e Mattioli (2004), explicam que na percepção de Saffioti a
violência de gênero tem outro sentido:

[...] violência de gênero é um conceito mais amplo que o


de violência contra a mulher, abrange não apenas as
mulheres, mas também crianças e adolescentes objetos da
violência masculina, que, no Brasil, é constitutiva da
relação de gênero. A violência de gênero produz-se e
reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as
categorias de gênero, classe, raça/etnia. Expressa uma
forma particular da violência global mediatizada pela
ordem patriarcal que dá aos homens o direito de dominar
e controlar suas mulheres, podendo para isso usar a
violência[...] (ARAÚJO e MATTIOLI, 2004, p.18).

Em suma, a violência de gênero consiste em uma maneira de manifestação da


desigualdade de gênero, que não ocorre de forma aleatória, pois é decorrente de uma
organização social que privilegia o masculino em função do feminino, tanto no âmbito
público como no privado (CHAI, 2018, p.644).
Nesse contexto, entende-se que a responsabilidade pela desigualdade de gênero
estaria ligada diretamente a dominância patriarcal do Estado e da sociedade. Onde a
dominação masculina tornou-se algo comum e aceitável. Para Bourdie, a dominação
masculina exerce uma “dominação simbólica” sobre todo o tecido social, corpos e
mentes, discursos e práticas sociais e institucionais, de modo que não segue a
perspectiva histórica sobre as diferenças, mas naturaliza a desigualdade entre homens e
mulhere (ARAÚJO e MATTIOLI, 2004, p.19).
Destarte, Severi (2017), observa que em várias vertentes feministas o conceito
do termo “colonialidade” tem sido utilizado como estrutura de dominação e de
exploração das mulheres, em suas formulações analíticas e em suas práticas políticas a
partir do chamado Sul Global, questionando as heranças de dominação e subalternidade.
Essa categoria, colonialidade (e decolonial), não emerge
do próprio campo de estudos feminista, mas de teorias
pós-coloniais, dos estudos da subalternidade e, um pouco
antes, das teorias da dependência na América Latina e dos
projetos de libertação independentistas que surgem em
diversas regiões colonizadas no mundo (SEVERI, 2017,
p. 31).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 101

Assim, para Karina Bidaseca, a partir da utilização da categoria colonialidade os


feminismos latino-americanos passaram a objetivar a elaboração de um conhecimento
baseado a vida das outras, ou seja do feminismo hegemônico: indígenas, campesinas,
afrodescendentes, lésbicas, trabalhadoras operárias, trans, dentre outras (SEVERI, 2017,
p.32).
O termo “Outras” utilizado por Severi (2017), é empregado com o intuito de
introduzir na temática da violência de gênero todas as mulheres em suas
particularidades. Desse modo, a autora pretende demonstrar que a realidade das
mulheres não é a mesma. Tendo como partida o racismo atuante no Brasil, o feminismo
negro tem utilizado o conceito de racismo patriarcal e heteronormativo, para referir-se a
hierirquização de gênero através da raça.
O conceito racismo patriarcal e heteronormativo permite
entender, por exemplo, como qualquer dinâmica na
pirâmide social tende a favorecer a maior mobilidade
social às mulheres brancas, sobretudo as heterossexuais,
situando-as em uma posição de superioridade em relação
aos homens negros e às mulheres negras [...] (SEVERI,
2017, p.28).

Portanto, a partir dessa percepção surge um novo modo de interpretar a categoria


mulheres na frase violência contra as mulheres. Não fala-se mais em uma categoria
homogênea, mas agora passam a ser observadas as assimetrias, pois é necessário
entender as particularidades envolvendo a suposta superioridade de algumas mulheres
em detrimento da inferioridade de outras, para que seja possível compreender a
construção social (SEVERI, 2017, p.33). Além disso, os feminismos latino-americanos
passaram a propiciar um meio de reverter as condições históricas baseadas na
colonialidade. Tendo como objetivo retirar o gênero feminino deste lugar secundário e,
por vezes, subordinado.

2.3 A história dos direitos das mulheres e a inserção na área jurídica

A formação do Estado com a origem e desenvolvimento da sociedade, se deu


através de um sistema patriarcal. Assim sendo, entende-se que a desigualdade de gênero
é intrínseca ao Estado, representando um problema estrutural. Nesse mesmo sentido,
tendo em vista o fato de que o Direito também é uma criação advinda do Estado, é
perceptível que assim como as demais criações, em um primeiro momento representa
um sistema criado por homens e feito para homens.
No que se refere aos direitos das mulheres, entende-se que essas garantias foram
conquistadas aos poucos, sendo sinônimo de inúmeras lutas que perduraram durante
vários séculos. Ainda na Antiguidade, tem-se que emerge da sociedade grega o primeiro
discurso a ser utilizado para a designação dos papéis sociais femininos. Nesse contexto
social, a mulher não podia ler ou até mesmo receber educação, ademais, os assuntos
políticos eram voltados exclusivamente para os homens, de modo que deviam
concentrar suas funções nos trabalhos domésticos (TEDESCHI, 2012, p.7).
A cultura grega argumentava que o corpo físico da
mulher, sua menstruação, seu útero, sua capacidade para a
reprodução eram características que a excluíram da lei, do
governo, da guerra e também da religião [...]. A teoria
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 102

Aristotélica matriz desse discurso insistia que a distinção


da masculinidade estava pautada no imaterial; como
naturalista, acabou com as distinções orgânicas entre os
sexos, e o que restou foi à idéia de um corpo que podia ser
classificado, ordenado e diferenciado. O que para nós,
hoje, seria uma construção discursiva, uma representação
sobre a diferença de gênero, era, para Aristóteles, um
conjunto de fatos inquestionáveis, verdades “naturais”. O
sexo, para Aristóteles, existia com a necessidade de
geração. O macho representava a causa eficiente e a
fêmea a causa material. (TEDESCHI, 2012, p.52).

Por conseguinte, já na Idade Média, as mulheres continuavam sem obter direitos


políticos, e ainda não possuíam independência perante a sociedade. Ademais, pode-se
dizer que o período medieval foi marcado pela perseguição direta contra as mulheres, a
partir do movimento da Inquisição (MENDES, 2017, p. 153).

A inquisição, de fato, é de suma relevância para que se


compreenda a mulher como uma “classe perigosa” a ser
reprimida. Todavia, a herança do período medieval é
ainda mais profunda do que o número de mortas nas
fogueiras. Para as mulheres, no que concerne aos
processos de criminalização e de vitimização, o ideário
medieval inquisitorial ainda persiste. Creio que, a partir
desta constatação, seja possível compreender como o
poder punitivo se consolidou ao longo dos tempos, sob as
bases de um amplo esquema de sujeição (MENDES,
2017, p. 153).

Dessa maneira, consta como um marco importante no que tange os direitos das
mulheres, a Revolução Francesa, pois entende-se que foi a partir do ano de 1789 que os
primeiros fundamentos dos direitos das mulheres surgiram, devido ao fato da
insatisfação das mulheres em relação a falta de acesso aos direitos básicos (TEDESCHI,
2012, p.101).
[...] o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa
uma “igualdade de direitos”, tal como a prometia a forma
universal da economia monetária moderna. Desse ponto
de vista, a redução masculina do lema “liberdade,
igualdade, fraternidade” era um puro arbítrio da
dominação masculina herdada do passado, devendo ser
ampliada para abarcar não só uma fraternidade entre
“irmãos”, mas também entre “irmãs” (TEDESCHI, 2012,
p.101).
Nas últimas décadas, as mais diversas vertentes feministas passaram a
contemplar e problematizar o direito. Nesse sentido, observa-se que os primeiros relatos
sobre os estudos feministas no direito foram feitos nos Estados Unidos, lugar no qual a
academia jurídica norte-americana propiciava como objetivo subsidiar os debates sobre
reformas legais, se concentrando também em temáticas jurídicas específicas, como
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 103

família, divórcio e casamento. Logo, a interação entre o pensamento feminista e o


direito ganhou uma maior proeminência, dessa maneira, as doutrinas jurídicas e os
discursos proferidos em tribunais tornaram-se pautas da temática sexo-gênero
(SEVERI, 2017, p.46).
Por outro lado, tem-se relatado, que no Brasil, já no século XX, as feministas se
uniram a Vargas na Revolução de 30, para discutir o anteprojeto da Constituição de
1932, onde objetivavam que fosse garantido o direito ao voto às mulheres (FONSECA-
SILVA, 2012, p.9).
Houve então uma manobra para retirar do anteprojeto o
direito de voto às mulheres, mas o presidente antecipou a
divulgação do documento e fez publicar o Código
Eleitoral Provisório, instituído pelo Decreto N.° 21.076,
de 24 de fevereiro de 1932, (FONSECASILVA, 2007a, p.
22), o qual garantia o voto a mulheres casadas com
autorização do marido e a viúvas e solteiras que tivessem
renda (FONSECA-SILVA, 2012, p.9)

No ano de 1985 a partir da obra, A mulher e a Constituinte, Silvia Pimentel,


apresentou um estudo sobre os direitos das mulheres na legislação constitucional
brasileira, comparando-a com as Constituições de outros países. A autora fez referência
ao princípio da igualdade de direitos, ao problematizar que era insuficiente o artigo 153
da Constituição da época, definir que todos eram iguais perante a lei sem distinção, sem
que deixasse expresso que a mulher e o homem deveriam ter os mesmos direitos no que
diz respeito à sua vida familiar, social, econômica, política e cultural (SEVERI e
CAMPOS, 2019, p.8).
Em vista disso, tornou-se visível que a simples declaração de igualdade não seria
o suficiente para que os direitos das mulheres fossem efetivamente garantidos, sendo
necessário que essas garantias fossem viáveis e acessadas pelas mulheres, e o poder
público deveria ser o responsável por assegurar determinadas garantias.
Nesse sentido, Elena Larrauri, em sua obra A Mulher Perante o Direito Penal8,
objetiva justamente compreender de que modo o Direito lida com essas diferenças que
foram construídas através do gênero. Desse modo, Larrauri apresenta um
questionamento antigo nas pautas dos movimentos feministas, a política de igualdade
deve ser predominante no sistema penal ou seria importante
implementar um sistema de diferenças “Devem ser exigidos os mesmo direitos e
serem tratadas iguais aos homens (política de igualdade) ou deve precisamente existir
um reconhecimento da diferença (política da diferença)?(LARRAURI, 1992, p.5”9
Outrossim, conforme elucidado por Florisa Verucci e Ediva Marino em Os
Direitos da Mulher (1985), no Brasil o que ganhou maior visibilidade no período foi a
promulgação da Lei do Divórcio e o projeto do Estatuto da Mulher Casada, integrado ao
projeto do Código Civil. Nesse contexto, entre as pautas das propostas feministas
recebeu destaque a necessidade de tornar o crime de estupro um crime contra a pessoa e
não mais um crime contra os costumes, o objetivo seria não permitir que a tese de que a
mulher teria provocado o crime ainda fosse utilizada. Ademais, ainda nessa perspectiva

8
La Mujer Ante El Derecho Penal
9
¿Deben exigirse los mismos derechos y ser tratadas iguales que los hombres (política de la igualdad) o
debe precisamente existir un reconocimiento de la diferencia (política de la diferencia)?”
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 104

o homicídio como crime passional também recebe ênfase, sendo criticado pelas autoras,
especialmente pelo uso da tese de legítima defesa da honra (SEVERI e CAMPOS, 2019,
p.9).
Foram a partir dos movimentos feministas, que se tornou possível a
disseminação desses novos ideais, os quais representavam lutas sociais que objetivavam
a redemocratização do país. Severi e Campos (2019), contextualizam que nesse cenário
de debate pelas liberdades democráticas, as feministas criaram jornais para divulgar
suas ideias, em São Paulo, constam dois importantes jornais Brasil Mulher e o Nós
mulheres, os quais divulgavam uma nova concepção política, voltada para temáticas
como amor, sexo, dor, frustrações, maternidade, reprodução, creches, saúde, buscando
tornar político o que anteriormente eram apenas relações pessoais.
Não obstante, Carol Smart, umas das autoras que estuda sobre a temática desde
os anos de 1970, esclarece que o ingresso das feministas no campo do direito tem
servido para desenvolver um conjunto muito amplo de teorias sociojurídicas e para
ampliar o número de advogadas e profissionais na área, convertendo o direito em “lugar
de luta, ao invés de um instrumento de luta” (SEVERI, 2017, p.51).
Logo, Severi (2017), observa a influência dos ensinamentos de Smart, inclusive
na América Latina, do seguinte modo:

As afirmações de Smart que tiveram maior ressonância,


inclusive na América Latina, foram relativas às indicações
para que as feministas apostassem mais no uso de
estratégias não legais (descentramento do direito), ao
invés de centrarem seus esforços em buscar reformas
legislativas ou mudanças jurisprudenciais em nome dos
direitos das mulheres. Isso porque o direito enquanto
estratégia criadora de gênero, pode ser, ao invés de
instrumento de reforma social, uma força que contribui
para a manutenção das mulheres em seu lugar de
subalternidade. Isso não é resultado só da lei, pois ela não
vive de seu próprio texto ou retórica, nem cumpre com
suas próprias exigências de consistência e racionalidade.
Há um campo amplo de valores, ideologias e práticas
profissionais que atualizam, cotidianamente, o lugar
social da mulher e que, assim, impede os avanços
previstos na lei (SEVERI, 2017, p.52).

Destarte, entende-se que ao longo de muitos anos as mulheres buscam um lugar de


destaque na esfera jurídica. Em suma, tornou-se perceptível que para esse objetivo ser
alcançado, as mulheres deveriam ultrapassar inúmeras barreiras resultantes de uma
estrutura social baseada na misoginia.
Assim, tem-se que a primeira conquista histórica nacional das mulheres na área
jurídica ocorreu com a formação da primeira mulher advogada no ano de 1898, contudo,
a mesma só conseguiu exercer efetivamente a advocacia 8 anos depois, quando recorreu
à Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência a fim de solicitar autorização para
sua candidatura no então Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil ( DA SILVA e
SANTOS, 2021, p.5).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 105

A inserção da mulher na área jurídica se deu através de inúmeras lutas, nas


quais, o principal desafio esteve interligado a necessidade da mulher se adequar a um
sistema universalmente criado para homens.
Proteano (2013) ressalta que a participação feminina no
âmbito jurídico como operadoras do direito teve início
quando Myrthes Gomes atuou como defensora em seu
primeiro caso no Tribunal do Júri, mudando a estatística
de atuação das mulheres no cenário jurídico , de acordo
com informações do Centro Brasileiro de Estudos e
Pesquisas Judiciais, de 0% durante a primeira década do
século 20,aumentando gradativamente para 2,3%, nos
anos de 1960,atingindo 11%, nos anos 90 e culminando a
30%, no fim da primeira década do século XXI. Em mais
de um século de existência, o Supremo Tribunal Federal
causou comoção social ao empossar, em 12 de setembro
de 2016, a segunda mulher na presidência da Suprema
Corte, a ministra Cármen Lúcia [...] (DA SILVA e
SANTOS, 2021, p.6).

Além disso, Severi e Campos (2019), asseguram que até meados dos anos 2000
a produção no meio jurídico acadêmico foi ínfima, no entanto, mais recentemente, essa
temática tem ganhado imensa visibilidade, impactando diretamente no meio jurídico.
Outrossim, ainda pode ser acrescentado que a produção teórica feminista, contribuiu
memoravelmente para o desenvolvimento de estratégias e criação de novos contornos
jurídicos, no que se refere a violência contra a mulher.
Portanto, compreende-se que foram a partir de conquistas como essas em
conjunto a grandes produções bibliográficas na área do direito relacionadas aos ideais
feministas, que atualmente as mulheres podem ocupar cargos superiores na esfera
jurídica. Entretanto, entende-se que ainda não pode-se falar em um ambiente de
igualdade, nesta área, visto os relatos que ainda existem de assédio, diferenças salariais,
é nítido que a discriminação continua existindo, resultando assim, em um longo
caminho que ainda necessita ser trilhado.

2.4 Análise de Leis e Convenções destinadas a proteção das mulheres em relação a


violência de gênero

O artigo 5° da Constituição Federal de 1988 define como garantia fundamental


que todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, ainda,
assegurando em seu inciso primeiro que homens e mulheres são iguais, no que tange os
direitos e obrigações.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 106

propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres


são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição (BRASIL, 1988, Art.5).

Contudo, sabe-se que esta conquista é recente, historicamente tem-se que foi a
partir da fundação da Organização das Nações Unidas, no ano de 1945, que de uma
forma inicial, os direitos das mulheres passaram a ser reconhecidos. Após a Segunda
Guerra Mundial, a ONU elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com
base no princípio da igualdade, tinha como objetivo proteger a dignidade de todos
(MARTINS,2018, p.5).
A partir deste momento, as necessidades das categorias mais vulneráveis, como
as mulheres, passaram a ser mais expostas. No ano de 1975, a ONU organizou a 1ª
Conferência Mundial Sobre a Mulher, a partir da criação deste primeiro instrumento
ficou clara a necessidade da criação de projetos que assegurassem os direitos das
mulheres em nível internacional (BARROSO, 1989, p.185)
Mas foi só nos anos 70 que as mudanças nas condições
sociais em todo o mundo levaram os órgãos da ONU a
uma definição mais ampla dos direitos da mulher e a
tentativa de traduzir os princípios em políticas. Nas
décadas anteriores a “igualdade” significara
principalmente direitos políticos e civis; nos anos 70
reconheceu-se o papel econômico da mulher e
questionou-se a divisão sexual do trabalho; a preocupação
anterior com igualdade legal cedeu lugar a uma nova
senha: a integração da mulher ao processo de
desenvolvimento (BARROSO, 1989, p.185).

Em vista disso, Prá e Epping (2012), asseveram que no ano de 1979 foi criada a
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contras as
Mulheres (CEDAW). O documento tinha como objetivo geral o enfrentamento da
desigualdade de gênero e as práticas discriminatórias contra as mulheres, definindo que:
[...] “discriminação contra a mulher” signficará toda a
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que
tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o
reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, sobre a base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e
das liberdades fundamentais das esferas política,
econômica, social, cultural e civil ou em qualquer outra
esfera (CEDAW, 1999, Art.1°).

Destarte, tem-se que este é um dos documentos de maior alcance entre os


produzidos no âmbito internacional. A Convenção fornece fundamentos para
estabelecer a igualdade entre homens e mulheres, tendo como objetivo garantir que as
mulheres possam ter igual acesso às oportunidades na vida política, pública, acesso à
saúde e emprego. Tendo em vista o fato de se tratar de um Tratado Internacional, com a
ratificação ou aceite dos termos presentes na convenção, os países passam a se obrigar
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 107

legalmente à execução do conteúdo exposto no documento, resultando como um


compromisso a necessidade de apresentar relatórios nacionais, pelo menos a cada quatro
anos, comprovando se houve o avanço das medidas implantadas (PRÁ e EPPING, 2012,
p.39).
Ademais, com a publicação da Convenção, novos direitos passaram a ser
reconhecidos internacionalmente às mulheres, como a autonomia sobre o corpo, bem
como, o direito de expressar livremente a sua orientação sexual e os direitos referentes à
reprodução (GOMES, 2021, p.3).
Os Direitos sexuais e reprodutivos, em síntese dizem respeito a sexualidade e
reprodução, tendo como objetivo garantir a todos o direito de decidir livremente sobre
essas questões. Para as mulheres, esses direitos representam o livre exercício da
cidadania. Através da declaração da IPPF, pode-se entender que:
[...] os direitos sexuais são compreendidos por um
conjunto de direitos relacionados à sexualidade que
emanam dos direitos à liberdade, igualdade, privacidade,
autonomia, integridade e dignidade de todas as pessoas”.
A conhecida definição de trabalho da Organização
Mundial da Saúde (OMS), de 2002, prevê, por sua vez,
que “Os direitos sexuais abarcam certos direitos humanos
que já estão reconhecidos em tratados de direitos
humanos internacionais e regionais, baseados em
documentos de consenso e encontrados no direito
doméstico (GOMES, 2021, p.4).

Posteriormente, conforme assegurado por Bandeira e Almeida (2015), após uma


análise realizada pelo órgão especializado da Organização dos Estados Americanos,
CIM, na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher (Cedaw),foi identificada a presença de uma lacuna jurídico-legislativa, no que
diz respeito a violência contra a mulher. Tendo em vista o fato do órgão ser o
responsável por velar os direitos e interesses das mulheres, no ano de 1994, durante a 6ª
Assembleia Extraordinária de Delegadas da CIM, foi aprovado um projeto que
objetivava a criação de uma nova convenção. Logo, em junho do mesmo ano, durante as
sessões da Assembleia Geral da OEA, em Belém do Pará, a CIM apresentou o projeto,
denominado como “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará)”. O projeto foi um sucesso, e
a nova convenção foi promulgada em 9 de junho de 1994, entrando em vigor no dia 5
de março de 1995, tornando-se referência mundial ao enfrentamento à violência contra a
mulher.

A Convenção de Belém do Pará estabeleceu, pela


primeira vez, o direito das mulheres viverem uma vida
livre de violência, ao tratar a violência contra elas como
uma violação aos direitos humanos. Nesse sentido, adotou
um novo paradigma na luta internacional da concepção e
de direitos humanos, considerando que o privado é
público e, por consequência, cabe aos Estados assumirem
a responsabilidade e o dever indelegável de erradicar e
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 108

sancionar as situações de violência contra as mulheres


(BANDEIRA e ALMEIDA, 2015, p.506).

Em âmbito nacional, surgiu como consequência de uma forte influência da


Convenção de Belém do Pará, a Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
Para Vieira e Charf (2012),a Lei que foi sancionada no dia 07 de agosto de 2006,
representa um marco importante na história das conquistas das mulheres, afinal a
violência contra a mulher é a expressão maior da discriminação de gênero por meio da
qual a população feminina é alvo de práticas violentas simplesmente por serem
mulheres.
A lei abrange uma das modalidades mais invisíveis da
violência contra as mulheres: a violência doméstica e
familiar. É extremamente complexo denunciar o homem
com o qual se vive ou viveu de forma amorosa, seja
marido, companheiro, namorado ou ex-. Outros homens
podem ser incluídos, como irmãos, o pai ou mesmo o
filho, pois esses também praticam a violência doméstica e
familiar.A Lei Maria da Penha também define a violência
como crime e estabelece as suas várias formas: física,
sexual, psicológica, verbal, moral e patrimonial.
Reconhece, de forma pioneira, o relacionamento entre
lésbicas e a união homoafetiva e considera, para efeitos de
um atendimento, que as relações violentas independem da
orientação sexual (VIEIRA e CHARF, 2012, p.259).

Além disso, ainda nesse sentido, a Lei Maria da Penha conceitua como violência
doméstica:

[...]violência doméstica e familiar é qualquer ação ou


omissão baseada no gênero que cause à mulher morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano
moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, no
âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto,
na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação (SEVERI,
2017, p.42).

A Lei supracitada, recebeu esta nomenclatura devido a um caso de violência


doméstica que ocorreu no Brasil, onde Maria da Penha Maia Fernandes, foi vítima das
mais variadas formas de violência e discriminação, por seu companheiro, devido a sua
condição de mulher. Tendo em vista, o fato da Lei ser baseada em uma realidade, a
garantia desde sua criação demonstrou a necessidade de medidas públicas que
assegurem às mulheres uma vida digna.
Por conseguinte, tendo em vista as estatísticas sobre a violência de gênero, tem-
se o Brasil é considerado um dos países com maiores índices de homicídio de mulheres,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 109

tanto que foi considerado pela Organização das Nações Unidas, o quinto maior do
mundo, referente às taxas de assassinatos (JUNG e CAMPOS, 2019, p.8).
Em vista disso, no ano de 2015 a partir da entrada em vigor da Lei 13.104, o
Código Penal foi alterado, passando a ser incluída mais uma qualificadora no crime de
homicídio (artigo 121). A nova qualificadora, intitulada como feminicídio, também
passou a fazer parte do rol dos crimes hediondos10. O intuito desta nova garantia, seria
coibir e diminuir os índices de feminicídio no país, garantindo que essa expressão da
violência de gênero fosse combatida.

A expressão femicídio (femicide) é atribuída a Diana


Russel, que a teria utilizado pela primeira vez em 1976,
durante depoimento perante o Tribunal Internacional de
Crimes Contra Mulheres, em Bruxelas (PASINATO,
2011). O termo designa os assassinatos de mulheres
que teriam sido provocados pelo fato de serem
mulheres, ou seja, mortes resultantes de uma
discriminação baseada no gênero. Na América Latina, o
termo feminicídio foi introduzido pela mexicana
Marcela Lagarde, com base no termo femicídio, para
abordar as mortes de mulheres ocorridas em um contexto
de impunidade e conivência do Estado (CAMPOS,
2015). A partir desse entendimento, o crime estaria
associado à impunidade, omissão e negligência das
autoridades,responsabilizando o Estado pela produção
dessas mortes (JUNG e CAMPOS, 2019, p.8).

Já no Brasil, sob a percepção de Campos, entende-se que a proposta de


criminalização do feminicídio emergiu da tendência observada na América Latina, a
partir dos anos de 1990, de reconhecer a violência contra a mulher como um crime
específico (JUNG e CAMPOS, 2019, p.9).
Outrossim, tendo em vista as legislações que asseguram direitos às mulheres,
ainda no ano de 2021 a partir da Lei 14.132/21, foi inserido no Código Penal o artigo
147-A, denominado “crime de perseguição” Essa “perseguição” também conhecida, em
inglês, como stalking, significa perseguição contumaz e obsessiva (VIEIRA, 2021,
p.118).

No Brasil o novo tipo penal não restringiu a sua aplicação


ao ambiente doméstico e familiar, ou seja, os sujeitos do
crime podem ser quaisquer pessoas, não se exigindo do
sujeito ativo qualquer característica especial e do sujeito
passivo determinou que se a vítima é criança, adolescente,
idoso ou mulher perseguida por razão da condição do
sexo feminino, a pena é aumentada de metade, trata-se de

10
Para Monteiro (2002), hediondo é aquele que manifesta extrema abjeção ou depravação nos seus atos;
que inspira pelos seus vícios ou crimes repulsa e horror.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 110

uma majorante, prevista no art. 147-A, § 1º do Código


Penal. Para a configuração do tipo penal de perseguição o
agente tem que perseguir alguém, reiteradamente e por
qualquer meio [...] (VIEIRA, 2021, p.120)

Em vista disso, Vieira (2021), explica que a conduta perseguir tem uma
conotação ampla, de modo que que pode ser entendida como importunar, transtornar,
provocar incômodo e tormento que atinja a vítima de três formas: a) ameaçando a
integridade física ou psicológica; b) restringindo a capacidade de locomoção; c)
invadindo ou perturbando a esfera de liberdade ou privacidade.
Por fim, desde os projetos primordiais, a violência psicológica contra a mulher
consta como um dos possíveis modos pelo qual a violência contra o gênero feminino
pode ocorrer. Severi (2017), explica que a violência psicológica representa qualquer
conduta que cause a mulher:

[...]dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe


prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e
vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e autodeterminação (SEVERI, 2017, p.42).

No que tange a tipificação da conduta de violência psicológica contra a mulher,


observa-se que foi através do projeto de lei 741/202, que ocorreu a criação da Lei n°
14.188 de 28 de julho de 2021, a qual definiu o programa de cooperação Sinal
Vermelho contra a violência doméstica, com o intuito de coibir práticas violentas contra
o gênero feminino. Conforme o exposto no projeto de lei, devido ao fato do aumento
dos índices da prática de crimes relacionados a violência psicológica contra a mulher,
tornou-se necessário reprimir determinadas condutas.
Desse modo, a nova Lei modificou o Código Penal, incluindo duas mudanças, a
primeira alterou a pena do crime de Lesão Corporal simples quando for cometida contra
mulher por razões do sexo feminino, já a segunda modificação foi responsável pela
criação de um novo tipo penal, a violência psicológica contra a mulher (artigo 147-B).
Conforme ensinado por Gonçalves e Lenza (2022), o crime de violência
psicológica contra a mulher abarca nove formas pelas quais o agente pode provocar
dano emocional ao sujeito passivo. Dessa maneira o crime pode ser cometido mediante
o emprego de: ameaça; constrangimento; humilhação; manipulação; isolamento;
chantagem; ridicularização; limitação do direito de ir e vir; qualquer outro meio que
cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. Logo, trata-se de tipo misto-
alternativo, ou seja, a realização de mais de uma das condutas supracitadas em relação à
mesma vítima configura crime único. Nesse sentido, é válido salientar que o elemento
subjetivo deste tipo penal é o dolo de realizar uma das condutas típicas, ainda que o
agente não tenha a específica intenção de provocar dano emocional. Ademais,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 111

compreende-se que o sujeito ativo nesta conduta poderá ser qualquer pessoa, por outro
lado, o sujeito passivo deverá ser a mulher que teve a saúde afetada. A consumação do
fato delituoso ocorrerá com a provocação do dano emocional, desde que presentes os
demais requisitos do tipo penal, por tratar-se de crime material, deve haver efetiva
comprovação de dano emocional considerável no caso concreto. Necessária, por óbvio,
a existência de nexo causal entre a conduta e o resultado, sendo possível a tentativa, em
tese.
Portanto, entende-se que essas Convenções e Legislações, representam
simbolicamente as conquistas das mulheres na luta contra a discriminação e a violência
de gênero. Ademais, mais do que uma conquista, essas normativas garantem às
mulheres uma vida digna, tendo como objetivo principal, tornar o passado de
impunidade e opressão, uma realidade cada vez mais distante.

3 A ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA PENAL E


PROCESSUAL PENAL A PARTIR DA PERCEPÇÃO DA CRIMINOLOGIA
CRÍTICA FEMINISTA

Com o surgimento do Estado e o desenvolvimento da sociedade, tornou-se


perceptível que estaria intrinsecamente ligada à natureza do homem o convívio com
outros seres humanos. Ainda na Grécia antiga, Aristóteles, descreveu que o homem é
um ser social, tendo em vista a necessidade de formar laços, determinada qualidade,
propiciou o próprio surgimento das cidades, representando um processo natural
realizado a partir do desenvolvimento do homem, enquanto ser e animal diferente
dos demais animais (DUARTE, 2017, p.7).
Contudo, a necessidade de convívio dos homens não é sinônimo de harmonia, a
partir do desenvolvimento das cidades e do estabelecimento dos laços entre os
indivíduos, surgiram as mais diversas adversidades causadas pelos conflitos de
interesses, dessa maneira, sobreveio a necessidade de um regramento que estabelecesse
parâmetros básicos para uma convivência harmoniosa. Logo, o Direito, bem como, suas
ramificações acompanham o surgimento dos primeiros grupos sociais, de modo que sua
manifestação era condizente ao desenvolvimento social, cultural e moral daqueles povos
(FABRETTI, 2019, p.1).
Portanto, neste capítulo será observada a origem e o desenvolvimento do
Direito Penal e do Sistema Processual Penal, a partir de teorias criminológicas
feministas. Nesse sentido, será analisada a influência do patriarcado no instituto penal,
com a formação do mandato da masculinidade, bem como, uma reflexão a partir dos
meios de provas admitidos neste sistema, mais especificamente observando como
ocorre a produção de provas em crimes que ocorrem em um ambiente íntimo e privado,
onde geralmente se perpetuam sem a presença de testemunhas.

3.1 O surgimento do mandato da masculinidade no sistema penal

A criminologia tradicional adotava o entendimento de buscar no próprio


criminoso as causas supostamente naturais para o seu comportamento, o objetivo
primordial desta corrente era de identificar as características dominantes deste tipo de
conduta para que pudessem forjar mecanismos específicos destinados a anular ou
modificar a delinquência. Lombroso, conhecido como o pai da criminologia tradicional,
objetivava através de suas pesquisas comprovar que os comportamentos criminosos
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 112

eram diretamente vinculados aos atributos físicos e psicológicos do indivíduo. Nesse


período, após identificar o homem delinquente, Lombroso pode concluir que os baixos
índices da criminalidade feminina, estariam supostamente ligados a maternidade, e que,
por outro lado a criminalidade inata feminina estaria ligada diretamente à prostituição,
sendo a mulher prostituta o equivalente ao homem delinquente (BUENO, 2011, p.26).
Assim, neste período a partir da consolidação de seus estudos, Lombroso, criou a
teoria atávica, a qual defendia que a mulher seria fisiologicamente inerte e passiva,
portanto, seria mais adaptável e mais obediente à lei que o homem. Contudo,
estabeleceu que o grave problema das mulheres estaria ligado a amoralidade, o autor
defendia essa tese a partir da caracterização das mulheres como frias, engenhosas,
sedutoras, fazendo-as desse modo recair a prostituição (MENDES, 2012, p.46).
Como já havia feito com os homens Lombroso classifica
as delinquentes em categorias. Assim elas seriam
criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras
histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres
criminosas lunáticas, epilépticas e moralmente insanas.
Suas pesquisas foram realizadas em penitenciárias
femininas italianas, onde examinando as presas
identificou sinais característicos que variavam de acordo
com crime cometido. Também da mesma maneira com
que estudou os homens criminosos, Lombroso realizou
medições de crânios, estudou traços faciais e os cérebros
de mulheres consideradas criminosas (MENDES, 2012,
p.47).

As teorias desenvolvidas nesta época, com o intuito de explicar a criminalidade


refletem o surgimento de um sistema penal baseado nas diferenças entre homens e
mulheres. Restando evidente que a mulher foi caracterizada como um ser imoral e
impuro, de modo que ainda nos dias de hoje existem resquícios desse pensamento,
exemplo disso seria a tese de legítima defesa da honra, onde a mulher mesmo sendo a
vítima da situação é vista, por vezes, como a responsável pela conduta que levou ao
crime, devido a sua imoralidade em atentar o responsável. A supracitada tese que já está
defasada, por vezes é suscitada, causando repúdio, mas de certa forma relembrando um
passado não tão distante.
Posteriormente, com a superação do paradigma etiológico da criminologia
crítica, Bueno (2011), afirmou que ocorreram reformulações no pensamento
criminológico.
A criminologia crítica reformulou as questões que
envolvem o comportamento delinquente: deixou de
investigar as causas ontológicas para a prática do crime e
passou a questionar como se desenvolvem os processos
sociais que levam determinadas pessoas e não outras, a
serem tratadas como criminosas (BUENO, 2011,p.27).

Destarte, entende-se que mesmo com a evolução do estudo da criminologia a


mulher ainda assumia um papel diverso do homem para o Direito Penal.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 113

Historicamente, o Direito Penal apenas se preocupou com


a mulher para categorizá-la, na condição de sujeito
passivo dos crimes sexuais, como “virgem”, “honesta”,
“prostituta” ou “pública”, e, ainda, a “simplesmente
mulher”. Com relação ao pólo ativo, em tese, a mulher
sempre pôde cometer qualquer crime, sem nenhum tipo de
redução de pena, mesmo quando a legislação civil a
considerava um ser humano de menor capacidade e
apresentava inúmeras restrições aos seus direitos (DE
MELLO, 2010, p.2).

Para Mendes (2012), às divergências entre os juristas somente eram encontradas


no que se refere aos fundamentos da pena que seria judicialmente aplicada às mulheres.
Neste período, para alguns como Tiraqueau, a mulher era vista como um ser de razão
insuficiente, tomadas pela imbecilidade, determinadas características representavam
atenuantes aos crimes cometidos por mulheres.

O homem que comete a fornicação ou o adultério peca


mais gravemente que a mulher, tendo em vista o fato de
que o homem possui mais razão que a mulher
[...]Portanto, minha opinião e esta: tendo os homens mais
razão que as mulheres, graças à qual podem mais
vigorosamente que elas resistir às incitações do vício e,
como dizem os teólogos, às tentações, é justo que as
mulheres sejam punidas com mais clemência. O que não
significa não as punir absolutamente como se fossem
animais brutos totalmente privados de razão. Pois as
mulheres possuem um certo grau de razão [...]
(DELUMEAU, 1989, p.337).

Conforme assegurado por Bueno (2011), o local assumido pela mulher na esfera
penal reflete a existência de diversas forças complexas e restritivas que buscam limitar
suas condutas às colocando em um espaço próprio diverso dos homens. A primeira
dessas forças consiste no controle doméstico, o qual se verifica desde cedo, seja na
diferença de educação concedida, ou até mesmo no controle mais rígido no tocante aos
horários, atividades, companhias e experiências sexuais. Posteriormente, já na fase
adulta, a mulher passa a experimentar o controle exercido pelo marido, onde é privada
da independência econômica e continua sendo privada de sua liberdade individual.
Além do controle doméstico, as mulheres são limitadas no ambiente laboral, visto que
enfrentam maior dificuldade para obter vagas e quando conseguem recebem salários
mais baixos que os dos homens, enfrentando de certa forma uma dupla jornada de
trabalho, também pelo trabalho doméstico.
Conseguinte, ainda é relevante analisar o discurso médico referente a imagem da
mulher, através dessa percepção a mulher foi limitada ao estudo da anatomia feminina,
a qual serviu somente para o desprezo, reafirmando a ideia expressa pelos teólogos, de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 114

que a mulher seria um produto secundário e consequentemente inferior ao homem


(MENDES, 2012, p.157).
Por fim, Bueno (2011), analisa o controle público difuso, nesta espécie de
controle observa-se todos os obstáculos impostos às mulheres para dificultar o acesso ao
domínio público. Ou seja, sempre que a mulher objetivar e tentar ocupar um espaço
diverso do doméstico, haverá sempre quem lhe acuse de estar invadindo um lugar que
não é próprio e a mande de volta para casa.
Em vista disso, conforme o assegurado por Saffioti (1987), “a identidade
social da mulher, assim como a do homem, é considerada através da atribuição de
distintos papéis, que a sociedade espera ver cumprindo pelas diferentes categorias de
sexo” (SAFFIOTI, 1987, p.8). Nesse contexto, é visível a existência do mandato da
masculinidade, onde na construção do sistema penal patriarcal o homem assumiu um
papel dominador e de controle em relação às mulheres.
O termo mandato da masculinidade surgiu sob a percepção da autora Rita
Segato, em relação à análise da origem do Estado e a dominância do patriarcado. Em
sua obra, Contra as Pedagogias da Crueldade 11, Segato (2018), define que o Estado está
intrinsecamente ligado ao sistema patriarcal, dessa maneira, o homem exerce um papel
dominante na sociedade, o movimento representa a opressão do gênero masculino em
relação ao feminino, direcionando os homens a uma obediência a crueldade.
O estado, com esse DNA patriarcal, torna a masculinidade
mais disponível para a crueldade, pois a socialização e o
treinamento para a vida do sujeito que deverá carregar o
fardo da masculinidade obriga-lhe a desenvolver uma
afinidade significativa entre masculinidade e guerra, entre
masculinidade e crueldade, entre masculinidade e
distanciamento, e entre masculinidade e baixa empatia.
Dessa forma, a organização corporativa da masculinidade
conduz aos homens à obediência incondicional de uma
crueldade (DELAJUSTINE e NIELSSON, 2019, p.6).

Dessa maneira, foi só a partir dos anos setenta que a posição desigual da mulher
no direito penal passou a ser uma questão relevante. Nesse sentido, a partir do foco
nesta temática, em poucos anos as criminologistas feministas produziram vastas obras
literárias, direcionando o estudo criminológico para a análise e desenvolvimento da
vitimologia. Através do foco nesta temática, a falta de proteção das mulheres dentro do
sistema de justiça penal frente à violência masculina, as baixas taxas de incriminação
feminina, bem como suas formas específicas de criminalidade, conseguiram destacar-se
da marginalidade acadêmica (CAMPOS, 2020, p.19).
O objetivo primordial da criminologia feminista estava pautada na necessidade
de uma constituição que consagrasse a igualdade formal entre homens e mulheres, de
modo que as mudanças ocorressem através do direito.

A proposta de mudanças através do direito é evidente. O


direito seria instrumento de mudança concreta, de garantia
e ampliação de direitos, de combate às discriminações e

11
Contra-Pedagogías de la crueldad
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 115

de punição às violações. O feminismo jurídico no país


assume a proposta de reforma legal em todos os campos.
É necessária uma Constituição que consagre a igualdade
formal entre homens e mulheres e que esta igualdade se
reflita em outros ramos do direito, como no direito civil,
no direito de família e no direito penal. Assim,
paralelamente à luta por uma inscrição normativa
constitucional de igualdade, as feministas do direito
buscam a reforma, sobretudo, da legislação civil e penal
como uma das estratégias para o enfrentamento à
violência contra as mulheres” (SEVERI e CAMPOS,
2019, p.10).

De acordo com o exposto por Martins e Gauer (2020), a criminologia pode ser
compreendida como o conjunto de conhecimentos de diversas áreas do saber, aplicados
à análise e crítica do exercício do poder punitivo. Nesse contexto, a criminologia crítica
feminista surge com o objetivo de unir seus saberes como elemento central para
identificar as nuances do que pode ser reconhecido no Brasil como criminologia
feminista.
Nesse contexto, o poder punitivo passa a ser reconhecido sob uma percepção de
que não será simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo pelo que se luta, poder do qual querem se apoderar. Logo, tem-se que é através
da cooptação das mulheres como duplamente criminosas, ou seja, sempre na dupla
exceção, que o direito penal sustenta sua ordem patriarcal, seja operando sobre o
feminino sua perpetuação como vítima, suplicante de amparo, ou ainda, como
transgressora, fora da lei masculina e das expectativas de gênero (MARTINS e
GAUER, 2020, p.6).

3.2 Os meios de prova no processo penal

O processo penal é um instrumento de retrospecção, através do qual se busca


compreender um determinado fato histórico. Em síntese, tem como objetivo instruir o
julgador por meio da reconstrução histórica de um fato. Desse modo, as provas
representam o meio pelo qual ocorrerá essa reconstrução do passado, possibilitando ao
julgador exercer a atividade recognitiva (LOPES, 2020, p.556).
Dessa maneira, conforme assegura Guilherme de Souza Nucci, o termo prova
deriva do latim probatio, que significa ensaio, verificação, inspeção, razão ou
confirmação. Neste mesmo sentido, Mirabete compreende que a prova representa a
produção de um estado de certeza, na consciência e mente do juiz, para sua convicção, a
respeito da existência ou inexistência de um fato, ou da verdade ou falsidade de uma
afirmação sobre uma situação que de fato se considere de interesse para uma decisão
judicial ou a solução de um processo (AVENA, 2018, p.537).
Assim, Gomes Filho (2005), expõe os possíveis significados que o termo prova
poderá apresentar no processo.

[...] a palavra prova serve também para indicar cada um


dos dados objetivos que confirmam ou negam uma
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 116

asserção a respeito de um fato que interessa à decisão da


causa. É o que se denomina elemento de prova [...].
Constituem elementos de prova, por exemplo, a
declaração de uma testemunha sobre determinado fato, a
opinião de um perito sobre a matéria de sua especialidade,
o conteúdo de um documento etc. [...] Sob outro aspecto,
a palavra prova pode significar a própria conclusão que se
extrai dos diversos 12 elementos de prova existentes, a
propósito de um determinado fato: é o resultado da prova,
[...] que é obtido não apenas pela soma daqueles
elementos, mas sobretudo por meio de um procedimento
intelectual feito pelo juiz, que permite estabelecer se a
afirmação ou negação do fato é verdadeira ou não. [...]
Fala-se em fonte de prova para designar as pessoas ou
coisas das quais pode-se conseguir a prova (rectius, o
elemento de prova), resultando disso a sua usual
classificação em fontes pessoais (testemunhas, vítima,
acusado, peritos) e fontes reais (documentos, em sentido
amplo). [...] os meios de prova referem-se a uma atividade
endoprocessual que se desenvolve perante o juiz, com o
conhecimento e participação das partes, visando a
introdução e a fixação de dados probatórios no processo.
Os meios de pesquisa ou investigação dizem respeito a
certos procedimentos (em geral, extraprocessuais)
regulados pela lei, com o objetivo de conseguir provas
materiais, e que podem ser realizados por outros
funcionários (policiais, por exemplo) (2005, p. 307, 308 e
309).

Por conseguinte, o processo penal possui inúmeras temáticas que ganham


destaque, dentre essas, a luta pelo controle do poder punitivo, a qual manifesta na
decisão judicial a valoração da prova produzida. Logo, resta claro que a interação entre
a prova e a decisão é de suma importância, pois se faz necessário analisar e estabelecer
regras de admissão e produção da prova que defina o que é necessário em termos de
prova para que se possa proferir uma sentença condenatória ou absolutória. Assim como
no direito material, no direito processual existe uma grande diferença entre o instituto
penal e os demais ramos do direito, uma questão variável importante: qual é o lugar da
verdade no processo penal. Sob a percepção da teoria geral do processo, acaba partindo-
se de uma concepção civilista, de modo que, por vezes, desconsidera-se a especificidade
e complexidade do objeto do processo penal (LOPES, 2020, p.562).

Nesta perspectiva – do erro da TGP –, é comum lermos


autores afirmando que “a averiguação da verdade (ou a
busca da) é o objeto fundamental do processo”. O erro
está na centralidade da verdade, como objetivo e fator de
legitimação do processo penal. Aplicável aqui a célebre
frase de JOSEPH GOEBBELS, ministro de propaganda
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 117

nazista de Hitler: uma boa mentira, repetida centenas de


vezes, acaba se tornando uma verdade e, no caso do
processo penal, uma verdade real ou substancial.
Impressionante a crença nesse mito, ardilosamente
construído pelo substancialismo inquisitório e,
posteriormente, repetido por muitos incautos (e por outros
nem tanto). Quando se trata da prova no processo penal,
culminamos por discutir também “que verdade” foi
buscada no processo. Isso porque, como explicamos
anteriormente, o processo penal é um “modo de
construção do convencimento do juiz”, fazendo com que
as limitações imanentes à prova afetem a construção e os
próprios limites desse convencimento (LOPES, 2020,
p.563).

Em vista disso, os meios probatórios do sistema penal possibilitam a produção


da verdade judicial. Portanto, nesse contexto do instituto penal existe uma verdade
específica, ainda que prévia e sabidamente imperfeita, permite que se possa chegar a
uma decisão final, onde a partir deste processo será produzida uma certeza do tipo
jurídica, que pode ou não corresponder à verdade da realidade histórica (PACELLI,
2020, p.417).
Destarte, conforme assegura Lopes (2020), ao longo da história foram admitidos
diferentes modos de construção do convencimento do juiz no Direito Penal. Em vista
disso, o modo de construção do convencimento pode variar conforme o sistema que se
adote. Existem dois sistemas de grande relevância, o acusatório e o inquisitório, no
primeiro as partes produzem a prova em busca da formação do convencimento do juiz,
já no segundo caso, o juiz vai de ofício atrás da prova, ou seja, o magistrado decide
primeiro e vai atrás de provas que possam justificar sua decisão. Nesse sentido, o
sistema inquisitório representa a admissão de um substancialismo e uma relativização
da garantia da forma em nome de uma verdade real, já o modelo acusatório se direciona
a um formalismo protetor respeitando a forma enquanto valor, esse sistema recebe
destaque devido ao seu conteúdo ético de respeito às regras do jogo, não existindo como
objeto primordial a necessidade de buscar uma condenação.
No âmbito constitucional, dentro da sistemática do artigo 5.° da Constituição
Federal, a vedação da obtenção de provas obtidas por meios ilícitos surge como uma
garantia fundamental. Objetivando em relação aos direitos individuais a proteção do
direito à intimidade, à privacidade, à imagem, e à inviolabilidade do domicílio. O
reconhecimento da ilicitude da prova impede o aproveitamento de métodos cujo
idoneidade probatória seja previamente questionada, exemplo disso, a confissão
mediante tortura, ou mediante hipnose. Além disso, essa garantia possibilita a
repercussão no âmbito da igualdade processual, no momento em que impede a produção
de prova irregular pelos agentes do Estado, assim equilibrando a relação entre as forças
relativa à atividade instrutória que será desenvolvida pela defesa (PACELLI,2020,
p.437). A teoria dos frutos da árvore envenenada reflete a principiologia da vedação de
provas obtidas através de meios ilícitos, relembrando que as provas derivadas de provas
ilícitas são, verdadeiramente, contaminadas.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 118

A denominação de teoria ou doutrina “do fruto da árvore


envenenada” – também utilizada no singular, “fruto da
árvore envenenada” –, literal tradução do inglês (fruit of
the poisonous tree doctrine), diz respeito a um conjunto
de regras jurisprudenciais nascidas na Suprema Corte
norte--americana 484 , segundo as quais as provas obtidas
licitamente, mas que sejam derivadas ou sejam
consequência do aproveitamento de informação contida
em material probatório obtido com violação dos direitos
constitucionais do acusado, estão igualmente viciadas e
não podem ser admitidas na fase decisória do processo
penal. Vale dizer: tal teoria sustenta que as provas ilícitas
por derivação devem igualmente ser desprezadas, pois
“contaminadas” pelo vício (veneno) da ilicitude do meio
usado para obtê-las (BONFIM, 2019, p.482).

Logo, conforme ao que foi citado anteriormente, o sistema probatório possibilita


que o julgador possa formar sua convicção e assim tomar uma decisão. Ocorre que essas
provas podem ser admitidas de diversas maneiras, o Código de Processo Penal
estabelece em seus artigos os meios legais de prova, contudo, não se trata de uma
enumeração taxativa, podendo ser aceitos outros meios de prova, desde que respeitem a
principiologia constitucional.
O Código de Processo Penal é responsável por expor os meios de prova
admitidos no instituto penal, preliminarmente, salienta-se a existência da prova pericial.
Conforme ensinado por Bonfim (2019), a prova pericial passou a ser incorporada aos
sistemas processuais no final do século XIX, inspirando legislações processuais latino-
americanas que passaram a utilizá-la.

Perícia é o exame de algo ou de alguém realizado por


técnicos ou especialistas em determinados assuntos,
podendo fazer afirmações ou extrair conclusões
pertinentes ao processo penal. Trata-se de um meio de
prova. Quando ocorre uma infração penal que deixa
vestígios materiais, deve a autoridade policial, tão logo
tenha conhecimento da sua prática, determinar a
realização do exame de corpo de delito (art. 6.º, VII,
CPP), que é essencialmente prova pericial. Não sendo
feito, por qualquer razão, nessa fase, pode ser ordenado
pelo juiz (art. 156, II, CPP). Além de meio de prova, a
perícia pode constituir-se, também, em meio de valoração
da prova (NUCCI, 2020, p.705).

Nesse sentido, Nucci (2020), insere o termo corpo de delito em sua abordagem
teórica, fundamentando que o corpo de delito representa a existência da materialidade
do crime. A partir do exame de corpo de delito é possível realizar a verificação da prova
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 119

da existência do crime, que será feito por peritos, diretamente, ou por intermédio de
outras evidências caso os vestígios materiais possam desaparecer. Destarte,
compreende-se que o exame de corpo de delito é a mais importante das perícias,
consiste no ato de examinar tecnicamente a coisa ou pessoa que constitui a própria
materialidade do crime. No caso do homicídio o cadáver que comprova a materialidade;
no caso de lesão corporal as lesões deixadas no corpo da vítima e assim por diante
(LOPES, 2020, p.685).
Outro meio de prova assegurado no código processual penal é o interrogatório, o
qual somente será realizado após a apresentação escrita da defesa e na audiência una de
instrução, após todos os outros procedimentos probatórios serem realizados e
apresentados perante o juízo (PACELLI, 2020, 477). Outrossim, assevera Lopes (2020),
que o interrogatório é o momento em que será exercida a defesa pessoal, logo o
indivíduo poderá apresentar uma manifestação positiva, ou seja, falar perante ao juízo
ou negativa, mantendo-se em silêncio sem que isso possa prejudicá-lo posteriormente.
Ademais, a confissão também é considerada um meio de prova, importante
salientar que conforme o exposto por Lopes (2020), a própria confissão não constitui
prova plena de sua culpabilidade. Visto que todas as provas são relativas, por isso,
nenhuma delas terá um valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra.
A confissão deve ser analisada no contexto probatório,
não de forma isolada, mas sim em conjunto com a prova
colhida, de modo que, sozinha, não justifica um juízo
condenatório 460 , mas, por outro lado, quando situada na
mesma linha da prova produzida, em conformidade e
harmonia, poderá ser valorada pelo juiz na sentença
(LOPES, 2020, p.724).

Por fim, a prova testemunhal é considerada como o meio de prova mais utilizado
no processo penal, nesse contexto, uma pessoa declara ter tomado conhecimento de
algo, podendo confirmar a veracidade do fato ocorrido, agindo sob o compromisso de
ser imparcial e dizer a verdade. Sob a percepção de Oliveira e Silva, não se pretende que
a testemunha reproduza os fatos mecanicamente, o que não se pode perdoar é exagerar
cientemente a situação, aumentando assim a responsabilidade para o autor (NUCCI,
2020, p.789).

3.3 A Soberania patriarcal: palavra da vítima como um meio de prova

Na sistemática adotada pelo Código de Processo Penal, a vítima não é


considerada testemunha, portanto recebe tratamento diferenciado. Primordialmente, é
relevante mencionar que as declarações do ofendido constituem meio de prova, tanto
quanto o interrogatório do réu, quando este manifestar-se perante ao juiz. No entanto,
ocorre que esse meio de prova não possui o mesmo valor probatório como o
depoimento testemunhal, em vista da imparcialidade inerente à situação. Ocorre que
existem aspectos ligados ao sofrimento pelo qual passou a vítima, quando da prática do
delito, que podem influenciar diretamente em seu depoimento (NUCCI, 2020, p.783).
Por outro lado, é importante destacar que a prática forense
nos mostra haver vítimas muito mais desprendidas e
imparciais do que as próprias testemunhas, de forma que
suas declarações podem se tornar fontes valorosas de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 120

prova. Assim, cumpre apenas destacar alguns pontos de


cautela para o juiz analisar a fala do ofendido (NUCCI,
2020, p.783).

Para Nucci (2020), “outro fato curioso referente à psicologia humana é a


tendência natural que algumas pessoas violentadas e agredidas por entes queridos têm
de amenizar ou desculpar, totalmente o ataque sofrido” (NUCCI, 2020, p.784). Existe
uma ânsia em permanecer com os seres amados, de modo que, por vezes, preferem
esquecer o passado e focar no futuro, buscando a absolvição do culpado. Essa é a
situação enfrentada, muitas vezes, por mulheres que sofrem agressões de seus
companheiros, ou filhos violentados por seus pais.
No que tange o papel da vítima perante a execução dos meios probatórios,
compreende-se que a vítima não pode invocar o silêncio, bem como, negar-se a parecer
para depor, contudo, poderá solicitar que o réu seja retirado da sala de audiência no
momento em que for realizar seu depoimento, se a presença daquele puder influir no seu
estado de ânimo. Ainda, é válido ressaltar que em seu depoimento a vítima, através de
seu advogado, poderá fazer perguntas tanto ao acusador quanto aos réus (LOPES, 2020,
p.726).
Assim, torna-se perceptível que o papel da vítima no processo penal ainda é uma
temática delicada e que envolve muitos aspectos a serem analisados, em vista de sua
contaminação pelo caso penal, tendo como ponto mais problemático, o valor probatório
da palavra da vítima. Contudo, a jurisprudência brasileira tem feito uma grande ressalva
aos crimes sexuais e aos praticados na ambiência doméstica. Nesses casos, levando em
consideração a particularidade em que são praticados, ocorrendo majoritariamente às
escondidas, tem-se que pouco se resta em termos de prova, sendo necessário que a
palavra da vítima, eventualmente tenha uma valoração distinta, atribuindo-se um valor
maior e as vezes decisivo (LOPES, 2020, p.729).
[...] ESPÍNOLA FILHO alerta que “quando não há
interesse, costuma-se dar muito apreço à imputação da
vítima, apontando o autor do crime, que a feriu; e,
argumenta se, seria inconcebível a falsa acusação de um
inocente, com o efeito mediato de firmar a impunidade do
agente culpado. É razoável a orientação, na generalidade
dos casos. Mas, não fica excluída a hipótese, já ventilada,
de atuar o ofendido sob o impulso do medo, ou de
sentimentos que causem um desvirtuamento da
consciência moral, como a afeição cega ao criminoso ou o
ódio ao caluniado (NUCCI, 2020, p.784).

No entanto, conforme assegura Lopes (2020), perante ao fato de os tribunais


brasileiros estarem adotando essa perspectiva, surgiram duras críticas de que não se
pode haver o endeusamento da palavra da vítima, principalmente nos crimes sexuais,
devendo haver o devido cuidado para que ambos os direitos sejam tutelados. Sob essa
percepção, é levantado o argumento de que a palavra da vítima configura uma prova
bastante sensível, em que devem ser acusados os dois extremos: não se pode endeusar,
mas também não se pode demonizar e desprezar. O principal argumento utilizado para
reafirmar o cuidado com o endeusamento da palavra da vítima, seriam as falas
memórias:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 121

[...] é possível a implantação de falsas memórias em


adultos e, especialmente, em crianças. O procedimento de
sugestão de falsa informação pode gerar uma falsa
recordação, na qual a testemunha/vítima acredita,
honestamente, que tal fato tenha ocorrido, sem que isso
corresponda à realidade. Isso pode acontecer por
autossugestão ou por fator externo (indução). Existe um
alerta geral sobre o depoimento infantil, pois as crianças
não estão acostumadas a fornecer narrativas sobre suas
experiências; a passagem do tempo dificulta a recordação;
há dificuldade de se reportar a eventos que causem dor,
estresse ou vergonha; a criança raramente responde que
não sabe e muda de resposta para corresponder à
expectativa criada pelo entrevistador (LOPES, 2020,
p.832).

Por fim, Lopes (2020), esclarece que a palavra da vítima representa um


fator humanizante no processo, a qual não pode ser abandonada, no entanto
compreende-se que em casos específicos como estes, onde o psicológico pode ser um
grande influenciador de alterações da realidade, se faz necessário a inserção de novas
tecnologias, desde interrogatórios com técnicas próprias até gravações de áudio e vídeo
de todos os depoimentos prestados, para o controle de tipo de interrogatório prestado.
Logo, resta claro que tem se tentando alcançar no sistema penal um
distanciamento do sistema originário pautado no patriarcado. Tendo em vista o fato da
busca pelo reconhecimento das particularidades que necessitam ser reconhecidas nos
crimes relacionados a violência sexual e no âmbito doméstico. Se faz necessário que
seja difundido o ideal da equidade também na esfera penal, para que haja a
compreensão de que esses tipos penais divergem dos demais e, portanto, devem ser
observados sob a percepção de suas singularidades. Assim, fala-se em um avanço do
instituto penal, ao promover o lugar de fala da vítima em crimes tão específicos.

4. A PALAVRA DA VÍTIMA COMO MEIO PROBATÓRIO NO CRIME DE


VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

A tipificação da conduta de violência psicológica contra a mulher, a qual é


assegurada no artigo 147-B do Código Penal, é vista como uma inovação no que tange
às políticas públicas que tentam coibir qualquer tipo de violência contra a mulher. Pois,
embora o conceito de violência psicológica já fosse previsto na Lei Maria da Penha, foi
a partir da Lei 14.188 de 28 de julho de 2021, que a conduta passou a ser vista como
crime em espécie e, portanto, passou a receber uma penalidade específica.
Nesse sentido, em relação às características do crime de violência psicológica
compreende-se que, em grande medida, acontecem no âmbito íntimo e privado. Desse
modo, trata-se de uma conduta típica de difícil comprovação, onde por vezes, se faz
necessário que ocorra a adaptação do sistema processual penal às particularidades desse
tipo penal. Em vista disso, a palavra da mulher no contexto probatório assume um lugar
de maior relevância, para que possa alcançar um desfecho coerente na esfera processual.
Logo, neste capítulo será observado através de apelações do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul, casos específicos que envolvam o crime de violência
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 122

psicológica, para que se possa compreender na prática processual qual o lugar que a
palavra da mulher tem assumido no contexto probatório, referente a essa conduta
delituosa.

4.1 Análise de apelações do TJRS: que lugar a palavra da vítima tem assumido no
contexto probatório?

No que tange os meios de provas admitidos no sistema processual penal


brasileiro, sabe-se que a palavra da vítima é considerada como importante meio de
prova, principalmente nos crimes cometidos no âmbito doméstico, os quais em sua
maioria, ocorrem sem a presença de testemunhas. Em vista disso, com o objetivo de
descobrir que lugar a palavra da vítima tem assumido na prática processual, foi
realizada uma pesquisa documental através de quarenta acórdãos do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul, nessa situação, objetivando o resultado de uma
pesquisa qualitativa, foram observadas expressões associadas a violência psicológica e a
palavra da vítima como meio de prova.
Durante a pesquisa, com o intuito de compilar informações para que se tivesse
um melhor entendimento sobre a temática, foram pontuados critérios que deveriam ser
analisados durante a coleta de dados. Foi utilizado como instrumento de pesquisa uma
tabela que dispunha os seguintes tópicos: número do processo; comarca; resumo do
fato imputado; tipificação penal exposta na denúncia; relação entre denunciado e a
vítima; informações sobre o réu; decisão exposta na sentença; pena da sentença e data;
argumento utilizado para apelar da sentença; decisão prevista no acórdão; pena do
acórdão e data; o fato ocorreu antes da entrada em vigor do artigo 174-B do Código
Penal? Foi utilizado?; a palavra da vítima foi utilizada como fundamentação na
sentença? Destaque para a apreciação no acórdão.
Preliminarmente, a partir dos dados coletados, tornou-se possível perceber que o
crime de violência psicológica é cometido em toda a extensão territorial do estado,
abrangendo desde municípios mais extensos populacionalmente até municípios
menores. Contudo, é válido salientar que dos quarenta acórdãos analisados, a região
leste recebeu destaque, em contraponto a região oeste que nenhum município foi
suscitado no acórdãos, ademais, os municípios de Santa Maria/RS e Pelotas/RS,
registraram três incidências cada, como localidade onde ocorreu o fato delituoso, em
sequência Bento Gonçalves/RS, Júlio de Castilhos/RS e Rio Grande/RS apareceram
duas vezes cada. Logo, pode-se concluir que a região leste destacou-se pela grande
incidência de crimes a contraponto da região oeste que não constava nenhum caso,
referente aos municípios, tem-se que não existe em específico uma cidade que mereça
receber um destaque maior perante aos demais, pois mesmo os municípios que
apresentam mais de uma incidência, ainda sim, ostentam de uma diferença ínfima.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 123

Figura 1 - Municípios do Rio Grande do Sul com maior incidência do crime de


violência psicológica.

Destarte, em relação às informações coletadas sobre os réus, cabe inicialmente


destacar os resultados referentes aos antecedentes criminais. Dos quarenta casos
analisados, tem-se que: em seis acórdãos não constava essa informação; em dez casos o
réu possuía antecedentes criminais; e em vinte e quatro casos não havia registros de
antecedentes. Em vista disso, entende-se que existem indícios de que pode existir um
padrão, já que a maior parte dos acusados não apresentava antecedentes, sendo réus
primários até o momento do cometimento do fato delituoso.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 124

Figura 2 - Antecedentes Criminais dos Réus.

No que se refere às idades dos denunciados na época do fato, concluiu-se que


não existe um padrão referente a esse aspecto, pois as idades dos indivíduos que
cometeram as condutas delituosas variam dos vinte e um anos até os cinquenta e nove
anos de idade. Mais especificamente, dos casos analisados, foram obtidos como
resultados: em dez acórdãos não continham informações sobre a idade do indivíduo; de
vinte a trinta anos constavam dez denunciados; de trinta e um a quarenta anos foram
apresentados onze denunciados; e com mais de 40 anos surgiram nos acórdãos nove
réus.
Portanto, da análise dos dados, tem-se que o crime de violência psicológica é
cometido por sujeitos ativos das mais variadas idades, desse modo, resta claro que a
idade do sujeito ativo não poderá ser levada em consideração como um aspecto
determinante para compreender se algum indivíduo estará mais propenso para cometer o
delito do que outro.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 125

Por conseguinte, ainda é válido salientar que dos quarenta acórdãos analisados, em
quatro deles foram relatados que os réus seriam usuários de drogas. De modo que,
nestes casos o momento em que se consumou o fato delituoso os sujeitos ativos
estariam sob efeito de substâncias ilícitas, ou em abstinência exigindo dinheiro das
vítimas para voltarem a consumir. Outrossim, em outros três casos foram assegurados
que os réus eram alcoólatras. Nos demais casos, não continha nenhuma afirmação
relativa a esse fator.
Posteriormente, sob a perspectiva da relação entre a vítima e o réu, dos casos em
espécies analisados colheu-se os seguintes produtos: trinta e um casos ocorreram a partir
da existência de uma relação afetiva amorosa, seja de uma findada ou uma que ainda
estivesse ocorrendo, desde cônjuges até namorados; oito casos refletem relações de
parentesco; e um caso aponta que a vítima e acusado eram vizinhos no momento da
incidência do fato delituoso. Nesse sentido, resta claro que existe um padrão dominante,
a maior parte dos casos de violência psicológica ocorreram entre companheiros ou ex-
companheiros em ambiente íntimo e privado, pelos mais diversos motivos, mas
envolvendo principalmente a violência contra o gênero feminino, demonstrada através
da necessidade da posse sob a mulher, tendo como principal resultado o fato de não
aceitar a rejeição e o desrespeito a vontade do outro, que se torna parte hipossuficiente
na relação.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 126

Figura 4 - Relação entre a vítima e o réu na época do fato.

Por outro lado, no que diz respeito a utilização da palavra da vítima como meio
de prova na sentença, tem-se que dos quarenta acórdãos analisados, em todos, a palavra
da vítima foi utilizada como meio de prova e recebeu uma maior relevância, devido às
circunstâncias e especificidades que envolvem o crime de violência psicológica. No
entanto, do mesmo modo em todos os quarenta acórdãos a defesa utilizou a tese de
insuficiência probatória na apelação, com o intuito de absolver o réu, alegando em
suma, que a palavra da vítima como pessoa interessada e envolvida na ação não poderia
ostentar de determinada relevância a fim de condenar o réu. Contudo, nos acórdãos em
consonância ao exposto nas sentenças, a tese de insuficiência probatória em nenhum
momento foi provida, sendo sempre suscitada a importância da palavra da vítima como
meio de prova em crimes cometidos no ambiente doméstico.
Ademais, tem-se que apenas em um caso específico foi utilizado o artigo 147-B
do Código Penal, a fim de criminalizar a conduta de violência psicológica. Isso se deve
ao fato de que a incidência do crime ocorreu anteriormente à entrada em vigor da Lei
14.188 de 28 de julho de 2021, incidindo neste caso o princípio da irretroatividade da lei
penal12. Posto isso, em sua maioria foi utilizado o artigo 147 caput, do Código Penal,
em consonância com a Lei Maria da Penha 11.340/2006.

12
É natural que, havendo anterioridade obrigatória para a lei penal incriminadora, não se pode permitir a
retroatividade de leis, especificamente as prejudiciais ao acusado. Logo, quando novas leis entram em
vigor, devem envolver somente fatos concretizados sob a sua égide. Abre-se exceção à vedação à
irretroatividade quando se trata de lei penal benéfica. Esta pode voltar no tempo para favorecer o agente,
ainda que o fato tenha sido decidido por sentença condenatória com trânsito em julgado (art. 5.º, XL, CF;
art. 2.º, parágrafo único, CP). É o que estudaremos no capítulo referente à lei penal no tempo. Pode-se
denominá-lo, também, como princípio da irretroatividade da lei penal, adotando como regra que a lei
penal não poderá retroagir, mas, como exceção, a retroatividade da lei benéfica ao réu ou condenado
(NUCCI, 2014, p.63).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 127

Desse modo, com base nos dados expostos compreende-se que a palavra da
vítima está recebendo um local de destaque como meio de prova, no que tange o crime
de violência psicológica, perante ao judiciário, demonstrando assim, um grande avanço
social, que não diz respeito apenas a essa conduta delituosa, mas a todo um contexto
histórico e social de opressão e sofrimento que deve ser cessado.
Logo, resta claro que o crime de violência psicológica contra a mulher envolve
principalmente uma questão atinente a discriminação e ao desrespeito perante ao gênero
feminino. Demonstrando nitidamente, que a mulher é diversas vezes vista como um ser
inferior, seja perante ao companheiro, filho ou a sociedade em geral, tendo suas
decisões desrespeitadas e anuladas por atitudes advindas do sentimento patriarcal da
necessidade de dominação do gênero masculino sob o feminino. Nesse sentido, através
da análise realizada é possível perceber que essa conduta tende a ocorrer
majoritariamente no ambiente íntimo, tendo como resultado um grande dano emocional
à vítima que é ameaçada e constrangida por uma pessoa que possuiu ou possui uma
relação direta de afeto. Sendo assim, nessa situação a vítima em busca de proteção
recorre às autoridades competentes a fim de ter seus direitos tutelados pelo Estado,
desse modo, demonstrando que mesmo como parte diretamente envolvida na situação a
vítima não tem nada a ganhar, só objetiva não perder mais nada e consequentemente
livrar-se do sofrimento que lhe é imposto.

4.2 Aspectos jurisprudenciais sobre a palavra da vítima

Sabe-se que para alguns autores a vítima é vista como agente contaminado pelo
processo, de modo que a valoração de sua palavra como meio de prova é uma temática
complexa e que causa dúvidas. No entanto, os tribunais superiores do Brasil, têm
entendido pacificamente que em crimes praticados no âmbito íntimo e doméstico, a
palavra da vítima necessita receber maior relevância, em vista das circunstâncias
específicas que envolvem casos dessa natureza.
Nesse sentido, pode ser citado o Protocolo para Julgamento com perspectiva de
gênero, instituído pela Portaria CNJ n° 27, de 02/02/2021, o qual determina que, as
palavras da vítima se consubstanciam em meio de prova de inquestionável importância,
tendo em vista a hipossuficiência processual que ocupa a ofendida perante a conduta
delitiva, a qual se vê silenciada diante da dificuldade, ou até mesmo tem sua palavra
vista com pouca credibilidade, tendo dificuldade de expressar sua não compactuação
com a conduta (PORTARIA CNJ n° 27, 2021, p.85).

Diante disso, nos julgamentos com perspectiva de gênero,


deve-se conferir um peso probatório diferenciado e
superior às declarações da mulher vítima da violência, não
se cogitando de desequilíbrio processual (PORTARIA
CNJ nº 27, de 2/2/2021, p. 85).

Destarte, ainda é importante salientar o entendimento que compôs a edição n° 41


da Jurisprudência em Teses da Corte de Cidadania, publicada em 16/09/2015:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 128

13) Nos crimes praticados no âmbito doméstico e


familiar, a palavra da vítima tem especial relevância para
fundamentar o recebimento da denúncia ou a condenação,
pois normalmente são cometidos sem testemunhas.
Precedentes: HC 318976/RS, Rel. Ministro LEOPOLDO
DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado
em 06/08/2015, DJe 18/08/2015; RHC 51145/DF, Rel.
Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA,
julgado em 11/11/2014, DJe 01/12/2014; AgRg no
AREsp 423707/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO,
SEXTA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe
21/10/2014; HC 263690/RJ, Rel. Ministro MOURA
RIBEIRO, QUINTA TURMA, julgado em 17/10/2013,
DJe 24/10/2013; AgRg no AREsp 213796/DF, Rel.
Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/PR), QUINTA TURMA, julgado
em 19/02/2013, DJe 22/02/2013; HC 151204/RJ, Rel.
Ministra MARILZA MAYNARD
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE),
QUINTA TURMA, julgado em 23/10/2012, DJe
26/10/2012; HC 179364/DF, Rel. Ministro MARCO
AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em
07/08/2012, DJe 16/08/2012; AREsp 547181/DF (decisão
monocrática), Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI
CRUZ, julgado em 25/05/2015, DJe 03/06/2015; AREsp
574212/DF (decisão monocrática), Rel. Ministro JORGE
MUSSI, julgado em 25/11/2014, DJe 28/11/2014; AREsp
329687/DF (decisão monocrática), Rel. Ministra
LAURITA VAZ, julgado em 05/06/2013, DJe
12/06/2013.

Logo, entende-se que a palavra da vítima, sem testemunhas que possam


confirmá-la, poderá dar margem a condenação do réu, desde que resistente, firme e
harmônica com as demais circunstâncias colhidas ao longo da instrução processual
(NUCCI, 2020, p.784).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 129

5. CONCLUSÃO

Primordialmente, em vista ao que foi exposto, a partir da criminologia crítica


feminista foi possível compreender que o gênero representa uma construção social, o
qual tornou-se um fator determinante para classificar os indivíduos socialmente. Nesse
contexto, foi construída uma realidade severa na qual o gênero masculino passou a ser
visto socialmente como o gênero mais forte e dominante, gerando portanto, um ideal de
que os homens deveriam ser os detentores da maior fonte de poder, e assim, assumir os
locais de destaque na sociedade, em contrapartida, o gênero feminino passou a ocupar à
sombra do masculino, sendo diversas vezes oprimido e discriminado. Em vista disso,
surgiu a violência de gênero, representando o maior ato de crueldade resultante da
desigualdade entre os gêneros.
Dessa forma, em meio a tanta opressão e garantias cessadas, as mulheres
precisaram lutar objetivando uma nova realidade social, na qual fossem inseridas como
seres detentores de direitos e não apenas objetos da vontade masculina. Logo, a partir
dos movimentos feministas, aos poucos as mulheres foram garantindo sua liberdade de
expressão, individualidade e tornando-se donas de si.
Destarte, no que diz respeito às garantias conquistadas pelas mulheres na área
penal, compreende-se que muito se foi alcançado em face ao direito material, em vista
do reconhecimento da necessidade da implementação de uma equidade social entre os
gêneros. Contudo, apesar da existência de projetos e da entrada em vigor de inúmeras
Leis, as quais pretendem coibir a violência contra a mulher, ainda assim, o sistema
processual penal tem se mostrado limitado ao utilizar ferramentas genéricas, resultantes
de um instituto que construía seus ditames através de uma ideologia ultrapassada,
necessitando evoluir conforme as necessidades expostas.
Exemplo disso, são os meios de prova admitidos no processo penal, de acordo
com o entendimento doutrinário, existe uma regra geral que estabelece que a palavra da
vítima não deve receber o mesmo valor probatório que o depoimento testemunhal, em
vista da imparcialidade inerente à situação. Dessa maneira, resta claro que ao idealizar
esta regra parte-se de um pressuposto generalista, o qual conclui que em todas as
situações a vítima por estar contaminada com o processo terá algum ganho através da
condenação do acusado.
No entanto, este paradigma rapidamente pode ser rompido ao analisar o crime
de violência psicológica contra a mulher, tipificado no artigo 147-B do Código Penal.
Nessa tipificação, a conduta costuma ocorrer, majoritariamente, em ambientes íntimos e
privados, sem que terceiros possam presenciar, assim, não havendo testemunhas, de
modo que, a palavra da vítima torna-se o principal meio para compreender o fato
ocorrido. Portanto, vislumbra-se que existem casos específicos nos quais se faz
necessário a adaptação do sistema, para que a vítima tenha seu direito efetivamente
tutelado pelo Estado.
A partir da análise de apelações criminais do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, envolvendo o crime de violência psicológica, foi possível
compreender que se tem como pacifico perante a jurisprudência pátria, o fato de que
crimes cometidos no ambiente doméstico devem ser analisados conforme suas
singularidades. Logo, no crime de violência psicológica a palavra da mulher tem sido
utilizada como importante meio de prova, assumindo um lugar de destaque e servindo
como embasamento para a sentença condenatória.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 130

No entanto, hegemonicamente, tem-se utilizado a tese de insuficiência


probatória pela defesa dos acusados, em caso de apelações. Sendo das mais diversas
formas argumentado que a palavra da vítima seria insuficiente para embasar uma
decisão condenatória, baseando-se sob a perspectiva do processo penal generalista. Em
contraponto, nos acórdãos, por unanimidade, essa natureza de argumento não tem
recebido provimento, sob a alegação de que o relato da vítima se mostrou coerente em
todas as etapas processuais, outrossim, reafirmando ainda, o previsto na jurisprudência,
referente a singularidade que esses delitos configuram-se.
Logo, tornou-se perceptível que nos dias atuais as demandas levadas até o
judiciário envolvem diferentes realidades sociais, necessitando o Estado adaptar-se às
particularidades existentes a cada caso específico, para que possa ocorrer um
julgamento correto e efetivo. Conclui-se, portanto, que apesar das lacunas existentes no
instituto penal, decorrentes de sua origem, tem-se que aos poucos a inclusão das
minorias está ocorrendo. De modo que, efetivamente o Estado através do Direito tem
buscado tutelar os direitos de todos os indivíduos, através da equidade.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 131

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A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 136

ENSINO DOMICILIAR NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE


IMPLEMENTAÇÃO DO HOMESCHOOLING NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO13

Sara Chaga Benites Coelho


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
polianavet@hotmail.com

Júlia Bagatini
Orientadora
Docente do Curso de Direito da Unipampa
joaomiranda@unipampa.edu.br

RESUMO

O presente trabalho trata sobre a possibilidade de regulamentação do ensino domiciliar


no ordenamento jurídico brasileiro. O objetivo do trabalho é analisar se a
implementação do ensino domiciliar viola a Constituição Federal de 1988 e as demais
leis infraconstitucionais, sobretudo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para tal, foi
utilizada pesquisa bibliográfica, tendo como base, primeiramente, a legislação e
eventuais julgados acerca do tema, bem como artigos e livros relacionados ao assunto.
Quanto ao método, foi utilizado o dedutivo e como método de procedimento, a
monografia. Inicialmente, buscou-se entender o histórico do direito à educação até
tornar-se direito fundamental na Constituição de 1988. Posteriormente, discorreu-se
sobre os conceitos do ensino domiciliar, bem como sobre o atual posicionamento do
Judiciário e do Legislativo sobre o tema, pontuando algumas especificidades do
julgamento do Recurso Extraordinário nº 888.815/RS e do Projeto de Lei 3179/12. Por
fim, analisou-se sobre os possíveis prejuízos e inconstitucionalidades da
regulamentação do ensino domiciliar no Brasil, considerando a Doutrina da Proteção
Integral, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o entendimento
do ensino domiciliar à luz do neoconstitucionalismo. Por conseguinte, verificou-se que
o ensino domiciliar impede que a criança e o adolescente tenham acesso à educação em
seu sentido amplo, pois essa modalidade de ensino limita o desenvolvimento de
habilidades como a tolerância à diversidade, o trabalho em grupo e, sobretudo, a
consciência acerca de sua cidadania e do Estado Democrático de Direito. Além disso,
são alarmantes os índices de evasão escolar no Brasil, de maneira que o ensino
domiciliar atuaria como um fator catalizador dessa condição na educação brasileira,
uma vez que casos de evasão escolar poderiam ser facilmente mascarados como ensino
domiciliar. Percebeu-se, ainda, que a escola oferece proteção à integridade da criança e
do adolescente, pois é um lugar onde o aluno tem contato com pessoas além do seu
círculo familiar, de modo que os discentes têm a possibilidade de acionar os órgãos
competentes caso verifiquem sinais de maus-tratos nos alunos. Ademais, o ECA prevê a
Doutrina da Proteção Integral que, em consonância ao princípio do melhor interesse da
criança e do adolescente, defende que esses tenham acesso prioritário à educação e,
especialmente, tenham acesso à educação em seu sentido integral. Logo, constata-se a

13
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 137

impossibilidade da regulamentação do ensino domiciliar no ordenamento jurídico


brasileiro, pois esse formato educacional afronta à Constituição Federal de 1988, bem
como ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Palavras-chave: Ensino domiciliar; Constituição; Brasil; Criança; Adolescente.

RESUMEN

El presente estudio trata acerca de la posibilidad de reglamentación de la enseñanza


domiciliar en el ordenamiento jurídico brasilero. El objetivo del estudio es analizar si la
implementación de la enseñanza domiciliar viola la Constitución Federal de 1988 y las
demás leyes infraconstitucionales, sobre todo el Estatuto del Niño y del Adolescente.
Para eso, se utilizó el método de estudio bibliográfico, con base, inicialmente, en la
legislación y eventuales casos juzgados sobre el tema, incluyendo artículos y libros
relacionados al asunto. Acerca del método, se utilizó el deductivo y como método
procedimental, la monografía. Inicialmente, se buscó un entendimiento histórico del
derecho a la educación hasta transformarse en derecho fundamental en la Constitución
de 1988. Luego, se realiza una análisis sobre la enseñanza domiciliar, junto al actual
entendimiento del sistema jurídico y legislativo sobre el tema, resaltando algunos
puntos específicos del juicio del Recurso Extraordinario nº 888.815/RS y del Proyecto
de Ley 3179/12. Al fin, se realizó una análisis acerca de posibles errores* e
inconstitucionalidades de la reglamentación de la enseñanza domiciliar en Brasil,
considerando la Doctrina de Protección Integral, el principio del mejor interés para el
niño y el adolescente y el entendimiento de la enseñanza domiciliar con análisis del neo
constitucionalismo. Por consecuencia, se constató que la enseñanza domiciliar impide
que el niño y el adolescente accedan a la educación en pleno sentido, pues tal modalidad
de educación limita el desenvolvimiento de habilidades como la tolerancia y diversidad,
el trabajo en grupo y, sobre todo, la consciencia acerca de la ciudadanía y el Estado
Democrático de Derecho. Además, son alarmantes los números de evasión escolar en
Brasil, de forma que la enseñanza domiciliar actuaría como factor agravante* de tal
condición en la educación brasilera, ya que casos de evasión podrían ser fácilmente
encubiertos por la enseñanza domiciliar. Se constató todavía, que la escuela ofrece
protección a la integridad del niño y adolescente, pues es un lugar donde el alumno
mantiene contacto con personas fuera de su entorno familiar, posibilitando que los
docentes accionen los órganos competentes en caso de constatar señales de malos tratos
de alumnos. Además, el ECA prevé la Doctrina de Protección Integral, que en conjunto
con el principio del mejor interés del niño y adolescente, asegura que tengan acceso
prioritario a la educación, y especialmente, tengan acceso a la educación en sentido
integral. Por fin, se constató la imposibilidad de la reglamentación de la enseñanza
domiciliar en el ordenamiento jurídico brasilero, pues tal modelo educacional va en
contra de la Constitución Federal de 1988, así como del Estatuto del Niño y del
Adolescente.
Palabras llave: Enseñanza domiciliar; Constitución; Brasil; Niño; Adolescente.
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1 INTRODUÇÃO

No presente trabalho de conclusão será analisada a possibilidade da


regulamentação do ensino domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro, considerando
o aumento pela busca dessa modalidade de ensino devido a pandemia do COVID-19,
bem como os projetos de lei em trâmite no Legislativo como, por exemplo, o Projeto de
Lei 3179/12.
O conceito de educação perpassa o âmbito intelectual, sendo ferramenta
responsável pela consolidação da cidadania, da democracia, da tolerância à diversidade
e desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Nesse sentido, a Constituição
Federal de 1988 consagrou o dever da educação à família e ao Estado, em uma
responsabilidade solidária. Entende-se a motivação do Constituinte ao destinar tamanha
função a um dever solidário, trata-se da efetivação de um direito fundamental, de suma
importância para a formação cidadã da criança e do adolescente.
Consoante a isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente surge indo ao
encontro da Constituição Federal de 1988, porque passa a enxergar a criança e o
adolescente como indivíduos de direito, não só isso, mas também traz a necessidade de
priorizar a criança e o adolescente devido sua condição especial de desenvolvimento.
Por conseguinte, o ECA e a CF defendem a doutrina da proteção integral, em que
garantem a criança e ao adolescente a prioridade absoluta na garantia e efetivação de
seus direitos.
Percebe-se que o direito à educação em seu sentido amplo percorreu uma longa
trajetória histórico-constitucional para que fosse solidificado no ordenamento jurídico
brasileiro, sendo uma questão ainda mais delicada ao tratar-se sobre a criança e do
adolescente como destinatários de tal direito. A fim de reafirmar e garantir a sua
efetivação, a legislação infraconstitucional, sobretudo a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, prevê alguns mecanismos referentes à educação, por exemplo, a
matrícula obrigatória a partir dos 4 (quatro) anos de idade.
Entretanto, existe uma demanda em busca da regulamentação do ensino
domiciliar no Brasil, que recebeu ainda mais força devido à pandemia oriunda do
COVID-19, pois muitas crianças e adolescentes estudaram de forma remota nesse
período. Somado a isso, recentemente o Supremo Tribunal Federal posicionou-se sobre
a temática no julgamento do Recurso Extraordinário nº 888.815/RS, fortalecendo a
discussão da regulamentação desse modelo educacional.
Em síntese, o STF alegou que, a teor do artigo 22, inciso XXIV da CF, é
delegada à União a competência privativa para legislar sobre as diretrizes e bases da
educação nacional. Por conseguinte, os Ministros posicionaram-se no sentido do
desprovimento do RE, afirmando que a educação domiciliar não é um direito subjetivo,
sendo facultativa a regulamentação da matéria. Além disso, reconheceu-se a existência
de repercussão geral, sendo fixada a tese de que “não existe direito público subjetivo do
aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”.
Ante o exposto, faz-se de extrema importância verificar a possibilidade de
regulamentação do ensino domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que
os casos de famílias adeptas ao ensino domiciliar são cada vez mais recorrentes, bem
como a temática encontra-se em diversos projetos de lei em tramitação no Legislativo,
que estão na eminência de serem vetados ou sancionados pelo presidente.
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Portanto, o objetivo central do trabalho é analisar o ensino domiciliar e


eventual violação das normas jurídicas brasileiras. Logo, para a realização do presente
estudo será utilizada a pesquisa bibliográfica, tendo como base, primeiramente, a
legislação e eventuais julgados acerca do tema, bem como artigos e livros relacionados
ao assunto. O método de abordagem será o dedutivo, utilizando-se a monografia como
método de procedimento.
Assim sendo, o trabalho será dividido em três capítulos, além das
considerações finais, quais sejam, 1) Direito Fundamental à educação nas Constituições
brasileiras; 2) A atual situação do ensino domiciliar na legislação e no judiciário
brasileiro; 3) Reflexões sobre possíveis prejuízos e inconstitucionalidades do ensino
domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro.
Por conseguinte, no primeiro capítulo será explanado acerca do conceito de
educação, percorrendo uma trajetória histórica das Constituições brasileiras, pontuando
a relevância da educação em cada uma delas, bem como considerando o contexto
histórico de cada época.
No segundo capítulo, será abordado sobre o posicionamento do Supremo
Tribunal Federal no RE 888.815/RS bem como sobre os projetos de lei sobre a temática
que atualmente tramitam no legislativo, sobretudo, o PL 3179/12, que há pouco recebeu
o status para tramitação prioritária. Além disso, será estudado sobre as leis estaduais
vigentes que, embora formalmente inconstitucionais, buscam regulamentar o ensino
domiciliar.
Já no terceiro capítulo, será discorrido sobre os possíveis danos que o ensino
domiciliar pode causar à criança e ao adolescente, verificando sua constitucionalidade à
luz do neoconstitucionalismo, bem como analisando se sua regulamentação vai ao
encontro da doutrina da proteção integral, como também do princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente.
Por fim, a conclusão consistirá na retomada de todo o exposto no trabalho,
buscando evidenciar a possibilidade ou não da regulamentação do ensino domiciliar no
ordenamento jurídico brasileiro, bem como indicar os prejuízos que o ensino domiciliar
pode ensejar ou não.

2 Direito fundamental à educação: um breve histórico nas Constituições


brasileiras

Ao analisar-se os possíveis conceitos para explicar o significado da palavra


“educação”, é possível perceber que não se trata de algo simples, mas de complexos
significados, pois representa a forma em que os cidadãos irão exercer seus direitos e
deveres, bem como consolidarão a manutenção da democracia. Nesse sentido:

[...] quando são necessários guerreiros ou burocratas, a


educação é um dos meios de que os homens lançam mão
para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar
tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los,
fazendo passar de uns para os outros o saber que os
constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do
processo de produção de crenças e ideias, de
qualificações e especialidades que envolvem as trocas de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 140

símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem


tipos de sociedades. E esta é a sua força (BRANDÃO,
2007, p. 11).

Verifica-se, pois, que a educação não apenas enriquece o ser humano na


esfera cognitiva, mas também influencia na formação de sua cidadania. Além disso, a
forma em que é manejada reflete-se nos resultados que os governos desejam reproduzir
na sociedade. Ou seja, a educação e o acesso a ela ditam a estrutura organizacional
social.
Desse modo, torna-se impossível pensar em educação no cenário
brasileiro sem analisar o Direito ou, mais precisamente, as Constituições do Brasil. Os
textos constitucionais sempre estiveram fortemente arraigados ao cenário político e
econômico dos respectivos períodos, sendo que tal dinâmica influenciou diretamente a
maneira que as Constituições abordaram a temática educacional, conforme será
explanado a seguir.

3 A temática educacional na Constituição Imperial e na primeira


Constituição do Brasil República

Historicamente, a temática acerca da educação está presente em todos os textos


constitucionais, obtendo espaço de forma contínua e progressiva. Na Constituição de
1824, conhecida como Constituição Imperial, já era previsto o direito à educação
gratuita a todos os cidadãos, além disso, essa Constituição regulamentou a criação de
colégios e universidades (CAMARA, 2013).
Destaca-se ainda que na abertura da Assembleia Constituinte, o Imperador, em
seu discurso inaugural, afirmou a necessidade de uma legislação especial para
regulamentar a educação, entretanto, devido diversas temáticas que se sobressaíram às
discussões, não foi possível unificar e fixar diretrizes fundamentais para a educação
(VIEIRA, 2007).
Nesse sentido, após a dissolução da Assembleia Constituinte e nomeação de
uma comissão especial para redigir o texto constitucional, a educação foi regulamentada
no artigo 179, incisos XXXII e XXXIII, onde foi garantido o ensino primário a todos os
cidadãos, sendo dever da família e da Igreja fornecer os meios para a consolidação de
tal direito. Desse modo, o texto constitucional caracterizou-se pela descentralização da
competência do Estado em relação a educação (TEIXEIRA, 2008).
Como consequência, a principal problemática acerca da educação detinha-se à
distribuição das competências entre as pessoas políticas. Por não haver um texto que
fornecesse um direcionamento claro sobre o assunto, interpretava-se que a competência
era concorrente, pautados em tal argumento, os entes administrativos muitas vezes
eximiam-se de suas responsabilidades (CAMARA, 2013).
Conforme explanado, foi previsto na Constituição de 1824 que a concretização
do direito à educação acontecesse por intermédio da família e da Igreja, dessa forma, a
educação dos filhos das classes com mais recursos financeiros acontecia em suas casas,
através de pessoas especializadas nas matérias a serem lecionadas.
Em contraponto, os cidadãos com baixa renda recebiam o ensino das escolas
disponibilizadas ao povo, as quais, ressalta-se, encontravam-se sem a devida fixação de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 141

diretrizes e arrecadamento de verba necessária para sua manutenção. Logo, o acesso às


Universidades da época tornou-se realidade apenas para as famílias da elite, pois
recebiam educação com melhor qualidade, consequência da falta de organização
legislativa e detenção monetária irregular da população (TEIXEIRA, 2008).
Destaca-se ainda que anterior ao texto constitucional de 1891, alguns atos
normativos versaram acerca da educação como, por exemplo, o Decreto nº 6, de
19/11/1889, o qual impôs a alfabetização como condição para o exercício da cidadania;
e o Aviso nº 17, de 24/04/1890, cujo determinou a laicidade do currículo do Instituto
Nacional (TEIXEIRA, 2008). Ademais, a educação tornou-se, gradativamente, objeto
de diversos debates, tendo como foco pautas sobre a organização do ensino, a laicidade
e a obrigatoriedade e gratuidade da instrução pública primária (CURY, 2001).
O texto constitucional de 1891, Constituição promulgada no contexto do Brasil
República, estabeleceu a competência da União e dos Estado para legislar sobre as
matérias referentes à educação (CAMARA, 2013). O direito à educação foi tratado nos
artigos 35 e 72 dessa Constituição, sendo estabelecida a competência, não exclusiva, do
Congresso para legislar sobre o desenvolvimento das letras, artes e ciências.
Além disso, foi atribuída ao Congresso a competência para a criação de
estabelecimentos de ensino superior, bem como secundário, nos estados e Distrito
Federal. Outrossim, o texto constitucional instituiu a separação entre a Igreja e o Estado,
pois era previsto que a educação nos estabelecimentos oficiais deveria ser laica
(TEIXEIRA, 2008).
Conforme exposto, a competência atribuída ao Congresso não era exclusiva,
desse modo a União, voluntariamente, oferecia ensino médio vocacional,
predominantemente voltado à formação técnica do aluno, enquanto os estados
ministravam ensino acadêmico secundário e superior. Assim, havia uma dualidade dos
sistemas de educação, motivo que impediu a consolidação de maiores avanços no
campo educacional através da Constituição (TEIXEIRA, 2008).
Nesse sentido, segundo ensina Anísio Teixeira:

A dualidade refletia a organização real da sociedade


brasileira, e representava um dos mais ricos exemplos da
tese de que a educação não é problema abstrato, cujos
fins e objetivos se discutem abstratamente, mas problema
concreto de manifesta intencionalidade, sendo sua
distribuição em quantidade e seu conteúdo em qualidade
determinador pela estrutura e organização da sociedade
(TEIXEIRA, 1969, p. 296).

Portanto, percebe-se que a Constituição de 1891 contribuiu, ainda que de forma


rasa, para o avanço e consolidação da estrutura educacional no país, uma vez que se
destacou por atribuir competência às pessoas políticas.

4 A educação nas Constituições da Era Vargas

Ao proceder-se à análise da Constituição de 1934, é possível perceber que ela


se destaca por ser o primeiro texto constitucional programático, passando a prever não
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 142

somente direitos individuais, mas, também, direitos sociais (CAMARA, 2013).


Inspirando-se nas Constituições Mexicana, 1917, e Alemã, 1919, pautou-se nos direitos
sociais, trazendo não só direitos, mas também as garantias fundamentais, ou seja, os
meios para que tais direitos fossem efetivados. O direito à educação foi disciplinado no
artigo 5º, inciso XVI e no artigo 148 ao 158 (TEIXEIRA, 2008).
Imperioso destacar que, em seu artigo 149, o texto constitucional de 1934
trouxe o dever solidário do Estado e da família ministrarem a educação, visando
consolidar ideais de desenvolvimento moral e econômico para o país (CURY, 2013),
além disso, tal direito foi classificado como um direito subjetivo público. Desse modo, a
educação foi regulamentada como um direito de todos, e um dever da família e do
Estado.
Outrossim, verifica-se que, na Constituição de 1934, passou a ser exercida pelo
Governo Federal a competência de fixar diretrizes para a educação nacional. Além
disso, o amplo acesso à educação pública passou a ser de responsabilidade solidária da
União e dos Estados (CAMARA, 2013).
Dessa forma, o ensino primário era ministrado não somente nos centros
escolares, mas também em empresas industriais ou agrícolas que tivessem, pelo menos,
cinquenta trabalhadores, devendo ser respeitado o requisito de ter ao menos dez
analfabetos (TEIXEIRA, 2008).
A fim de efetivar o amplo acesso à educação, fixou-se, pela primeira vez,
orçamentos oriundos de cada ente da Federação, inclusive dos Municípios. Ademais, a
Constituição também previu a consolidação de fundos monetários destinados à
educação, para que fossem efetivadas obras educativas nos termos da lei, bem como
para auxiliar alunos necessitados (TEIXEIRA, 2008).
Percebe-se, pois, que a Constituição de 1934 foi palco para grandes avanços no
campo educacional, uma vez que regulamentou acerca dos fundos destinados à
consolidação do ensino, fixou competências e buscou efetivar o amplo acesso à
educação.
Com o golpe de Estado e a instauração do Estado Novo, em 1937, promulgou-
se um texto constitucional marcado por retrocessos na temática educacional como, por
exemplo, a centralização de competência na União para legislar sobre demandas da
educação. Assim, o ensino passou a ser fortemente vinculado a valores cívicos e
econômicos, característicos do regime ditatorial vigente na época (CAMARA, 2013).
Consoante o contexto histórico obscuro em que a Constituição de 1937 foi
outorgada, verifica-se reflexos no campo educacional, em que a livre iniciativa, vulgo
liberdade de ensino, a teor do texto constitucional, tornou-se prioritária, de maneira que
o dever do Estado com a educação ficou em segundo plano (VIEIRA, 2007).
Nesse sentido, menciona-se o artigo 128 da referida Constituição: “a arte, a
ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e à de associações e pessoas
coletivas públicas e particulares” (TEIXEIRA, 2008). Ou seja, o texto constitucional
deixa de atentar-se à democratização do acesso ao ensino, privilegiando os cidadãos
com melhores condições financeiras, os quais poderiam arcar com uma educação de
qualidade (VIEIRA, 2007).
Nessa senda, destaca-se o artigo 129, da Constituição de 1937:

À infância e à juventude, a que faltarem os recursos


necessários à educação em instituições particulares, é
dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 143

pela fundação de instituições públicas de ensino em todos


os seus graus, a possibilidade de receber uma educação
adequada às suas faculdades, aptidões e tendências
vocacionais. O ensino pré-vocacional profissional
destinado às classes menos favorecidas é em matéria de
educação o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar
execução a esse dever, fundando institutos de ensino
profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados,
dos Municípios e dos indivíduos ou associações
particulares e profissionais (BRASIL, 1937).

Percebe-se certa distinção entre as escolas voltadas às camadas da elite e às


destinadas aos menos favorecidos, consolidando a ideia de que a educação pública é
disponibilizada à classe marginalizada, a qual não logrou êxito em arcar com os
dispêndios de uma educação particular (TEIXEIRA, 2008).
Outrossim, verifica-se um preconceito em relação ao ensino público, algo
facilmente observado até mesmo nos posicionamentos sociais de hoje em dia, discurso
que vem se consolidando há muito tempo, como depreende-se da leitura do artigo 129
(VIEIRA, 2007).
Além das características acima expostas, o texto constitucional de 1937,
mesmo afirmando expressamente a obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário,
não ofereceu os meios para que este se concretizasse exigindo, por exemplo, que os
alunos entregassem “uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar”,
ressaltando a qualidade educacional reservada aos menos favorecidos (VIEIRA, 2007).
Ademais, cabe mencionar que na Constituição de 1937, a educação física se
tornou obrigatória, assim como o ensino cívico e os trabalhos manuais, além disso,
tornou-se facultativo o ensino religioso (VIEIRA, 2007).

5 A educação na Constituição de 1946 e 1964: autoritarismo disfarçado de


democracia

Embora o texto constitucional do período ditatorial tenha ensejado grande


retrocesso, a Constituição de 1946 buscou a redemocratização, refletindo de forma
positiva na educação (RAPOSO, 2005). Considerando que os textos constitucionais
estão fortemente ligados com o cenário político e econômico de sua respectiva época, a
instabilidade mundial vivenciada, como também as incertezas na política interna do
Brasil, refletiram certa insegurança no campo educacional.
No plano internacional, vivenciava-se o fim da Segunda Guerra Mundial, bem
como os julgamentos de Nuremberg e, por fim, as delimitações da influência norte-
americana e soviética (RAPOSO, 2015). A nível nacional, Getúlio Vargas afastava-se
do poder em 1945 e, em 1946, o general Eurico Gaspar Dutra é eleito a presidente.
Destaca-se que, inicialmente, o ex-presidente Eurico Gaspar Dutra assume o
poder de forma moderada, promulgando a Constituição de 1946 pautada em princípios
liberais e democráticos (VIEIRA, 2007). Entretanto, é possível observar que atos
característicos de governos autoritaristas foram tomando espaço e concretizando
verdadeira ditadura.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 144

Nesse sentido, verifica-se que em 1947 há forte intervenção estatal em centenas


de sindicatos, além disso foi decretada a ilegalidade do Partido Comunista do Brasil
(PCB), fatos que ensejaram um grande número de greves de diversas categorias como,
por exemplo, bancários e portuários (TEIXEIRA, 2008). Outrossim, no âmbito
econômico, o Brasil viveu um expressivo crescimento industrial, oriundo de estímulos
por restrições às importações e um ambiente de regime cambial desfavorável às
exportações (VIEIRA, 2007).
Tal contexto é de considerável importância haja vista que foi palco para a
vigência e consolidação do Decreto – Lei nº 4.048/42, criando o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai), bem como para os Decretos – Lei nº 8.621/46 e
8.622/46, os quais efetivaram a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (Senac) (TEIXEIRA, 2008).
Com o perfil muito semelhante à Constituição de 1934, embora os empecilhos
colocados para a efetiva democracia, o texto constitucional de 1946 estabeleceu de
forma clara a competência da União para legislar acerca da educação, delimitando tal
competência, que se encontrava com uma escrita e significados mais amplos nos demais
textos constitucionais como, por exemplo, “traçar diretrizes” (Constituição de 1934) ou,
também, “fixar as bases” (Constituição de 1937) (VIEIRA, 2007).
Nos debates da Constituinte acerca da educação, a principal pauta versava
sobre o ensino religioso e a matrícula facultativa nessa disciplina. Além disso, a
titularidade do dever de educar também foi tema de grande polêmica, pois com a
manutenção do dever solidário da família e do Estado, o legislativo debatia se a correta
localização da temática no texto constitucional seria no capítulo destinado à família, ou
no destinado à educação (CAMARA, 2013).
Semelhante à Constituição de 1934, o texto constitucional de 1946 previu a
educação obrigatória gratuita, entretanto, para gozar da gratuidade era necessário provar
a insuficiência de recursos (TEIXEIRA, 2008). Assim, acompanhando a dinâmica
constitucional de uma democracia limitada, a educação refletiu essas incertezas e
inseguranças na seara educacional, principalmente no que diz respeito à qualidade
educacional para as diferentes classes sociais (VIEIRA, 2007).
Embora o texto constitucional não oferecesse um vínculo direto e um dever
expressamente imposto, foi retomada a temática da educação como direito de todos,
juntamente com a lenta e discreta retomada do governo democrático (VIEIRA, 2007).
Conclui-se, pois, que essa Constituição declarava a educação como um direito
de todos, bem como o ensino primário sendo obrigatório e gratuito, indicando que a
cidadania e a educação não são temáticas distantes, ao contrário, complementam-se
(RAPOSO, 2005).
Deflagrado o Golpe de 1964, outorgou-se novo texto constitucional em 1967, o
qual, sem suprimir formalmente as garantias individuais, violou o Estado democrático e
social de direito (RAPOSO, 2005). Formalmente, o texto constitucional da ditadura
militar não alterou a estrutura da organização educacional no país, mantendo a
competência dos entes estatais, uma vez que foi outorgada antes da vigência das
medidas que instauraram o Estado de exceção, desse modo, formalmente os impactos
do autoritarismo não são facilmente visíveis no texto constitucional (VIEIRA, 2007).
Ademais, de suma importância explanar acerca do contexto econômico da
época, pois houve o aumento da população urbana e a indústria passa a compor grande
parte do Produto Interno Bruto, esse crescimento populacional e industrial tem suas
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origens no governo de Juscelino Kubitschek, nos anos trinta, efetivando-se na década de


sessenta.
Nessa fase, o Brasil passa pelo chamado “milagre econômico”, em que foram
concebidos projetos que demandaram grandes recursos e mão-de-obra. Este contexto
narrado influenciou diretamente a educação, porque aumentou a demanda por mão-de-
obra especializada e qualificada (VIEIRA, 2007).
Na Constituição de 1967, portanto, menciona-se apenas a alteração no ensino
privado, em que foi instituída a possibilidade de bolsas de estudo para cidadãos de baixa
renda (TEIXEIRA, 2008). Entretanto, importante frisar que significativas reformas
foram propostas após a vigência da Constituição de 1967, de modo que se torna
imperioso citá-las, ainda que de forma breve.
Primeiramente, ocorreu a reforma do ensino superior, através da Lei nº
5.540/68, a qual tinha por objetivo atender à crescente demanda por profissionais
especializados, devido ao “milagre econômico” e, posteriormente, a reforma da
educação básica, sendo fixadas as diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, por
intermédio da Lei nº 5.692/71, cuja tinha por objetivo conter a demanda pelo ensino
superior e gerar mão-de-obra profissionalizada de nível médio (VIEIRA, 2007).
Outrossim, as competências para legislar acerca da educação voltaram-se para
a centralização, de forma que os Estados e Municípios tinham papel secundário,
diferentemente das demais constituições. Além disso, marcando grande retrocesso, não
foram fixados percentuais da receita tributária para a efetivação do acesso à educação,
sendo que a gratuidade do ensino ficou vinculada à comprovação da escassez de
recursos, bem como as bolsas fornecidas pelo Governo eram, na verdade, empréstimos,
pois os alunos deveriam reembolsar o Estado pela educação primária prestada
(TEIXEIRA, 2008).

6 A educação como Direito Fundamental na Constituição Federal de 1988

Percebe-se que a educação sempre foi uma ferramenta manuseada a partir dos
interesses políticos e econômicos do Estado, refletindo fortemente o contexto histórico e
social da época em que as Constituições foram promulgadas ou outorgadas (CAMARA,
2013). Com a promulgação da Constituição de 1988 não foi diferente, os ideais
democráticos foram impressos no texto constitucional.
Em breve análise acerca do contexto histórico da época da promulgação da
CF/88, verifica-se que já em 1984 houve o movimento conhecido como “Diretas Já”, o
qual anunciava o fim do regime militar e o anseio pelo Estado Democrático de Direito
(VIEIRA, 2007).
O direito à educação garante o acesso ao conhecimento e instrução, mas muito
além disso, também consolida diversos aspectos da personalidade do educando, como a
socialização, cooperação e, sobretudo, a cidadania, tornando-se importante ferramenta
para a efetivação da democracia.
Nesse sentido, entende-se que o conceito de educação não se limita a mera
instrução, pois além de objetivar a qualificação do educando para o trabalho, visa
ensiná-lo acerca do exercício consciente da cidadania (STF, 2019).
Considerando que o presidente eleito à época, José Sarney, acabara de
revogar as leis autoritárias oriundas do antigo regime, e elegera uma Assembleia
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Nacional Constituinte, entende-se por que, inicialmente, a educação não foi o centro de
debates (VIEIRA, 2007).
A chamada Constituição Cidadã abordou a temática da educação de forma
minuciosa, sendo o texto constitucional mais extenso acerca do tema. A educação é
abordada em dez artigo específicos, quais seja, arts. 205 a 214 e, de forma secundária
nos artigos 22, XXIV; 23, V; 30, VI e arts 60 e 61 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) (BRASIL, 1988).
Dessa forma, a Constituição Federal de 1988, diferentemente das demais, após
seu Preâmbulo, prevê os direitos fundamentais e, posteriormente, a organização do
Estado. Tal configuração simboliza a ordem de prioridade do Constituinte Originário,
bem como justifica a famosa alcunha de Constituição Cidadã auferida à Constituição de
1988 (CURY, 2013), pois se optou por elencar os direitos fundamentais em detrimento
das disposições acerca do Estado.
Ademais, o direito à educação é o primeiro listado no rol de direitos
fundamentais do art. 6º da Constituição, indo ao encontro da consolidação do Estado
Democrático de Direito, pois, nas palavras de Bobbio (1986), “a educação para a
cidadania é o único modo de fazer com que um súdito se transforme em cidadão”.
Assim, conforme ensina Caggiano:
[...] é direito fundamental porque, de uma banda,
consubstancia-se em prerrogativa própria à qualidade
humana, em razão da exigência de dignidade, e de outra,
porque é reconhecido e consagrado por instrumentos
internacionais e pelas Constituições que o garantem
(2009, p. 22).

Ressalta-se, ainda, que o direito à instrução não se refere apenas ao


desenvolvimento individual, mas, de igual modo, à política educacional, a qual objetiva
propiciar e consolidar uma série de intervenções propostas em âmbito jurídico para que,
através de sua execução, os cidadãos recebam a formação e instrução necessária, a fim
de que se alcance os fins desejáveis, consolidando o Estado Democrático de Direito.
Logo, considerando que na Constituição de 1988 a educação está presente
como um direito fundamental, sendo de 2ª geração, deve ser garantida pelo Estado
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013). Desse modo, ao Estado é exigido a prestação
de políticas públicas que propiciem o acesso à educação gratuita e com qualidade, sendo
expressamente prevista nos artigos 6º e 7º, inciso IV da CF:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a


alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,


além de outros que visem à melhoria de sua condição
social:
[…]
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 147

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente


unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais
básicas e às de sua família com moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua
vinculação para qualquer fim (BRASIL, 1988).

O artigo 205 da Constituição impõe, expressamente, o dever da educação ao


Estado e à família, de maneira que se trata de uma responsabilidade solidária. Assim,
não basta o Estado oferecer educação gratuita, é necessário o engajamento da família
para que os objetivos, elencados no art. 206, consolidem-se. Outrossim, de extrema
importância frisar que a família, sem o apoio estatal, não possui a estrutura necessária
para que a criança e o adolesce possa se beneficiar de todos os aspectos proporcionados
pela educação em seu sentido amplo (PAIXÃO, 2019).
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 consolidou a temática da
educação sob a égide de princípios que, juntamente com os fundamentos do art. 1º e os
objetivos do art. 3º, exaltam a educação como direito fundamental dos cidadãos
brasileiros, de modo que prevê, igualmente, garantias para a concretização de tal direito.
Dentre as garantias para a sua efetivação cita-se, por exemplo, o ensino
fundamental obrigatório e gratuito, atendimento especializado aos portadores de
deficiências etc., a teor do art. 208 da Constituição (TEIXEIRA, 2008).

7 A regulamentação da educação na Constituição Federal de 1988

Em breve análise, importa salientar algumas características da Constituição de


1988 referentes à regulamentação da educação. Considerando a notável significância da
educação para o desenvolvimento dos cidadãos, bem como para a capacitação das
pessoas para exercerem os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, a
Constituição prevê encargos e competências para o sistema da União, dos Estados e dos
Municípios, segundo art. 211, Constituição Federal (VIEIRA, 2007).
Por intermédio de competências genéricas comuns, a Constituição buscou
atribuir atuações prioritárias, porém não exclusivas para as esferas governamentais.
Assim, é de competência municipal a atuação prioritária na educação infantil e no
ensino fundamental.
Já aos Estados e ao Distrito Federal foi fixado o dever de desempenhar suas
atribuições no ensino fundamental e médio e à União, atuar supletivamente para
promover a equalização de oportunidade e padrão mínimo de qualidade educacional,
inclusive promovendo, em termos de competência residual, o oferecimento de ensino
superior, conforme prevê o art. 211, § 1º da Constituição (VIEIRA, 2007).
No âmbito das competências legislativas, destinou-se à União legislar,
privativamente, sobre diretrizes e bases da educação nacional, bem como sobre o plano
nacional de educação (arts. 22, inciso XXIV e 214, CF)14.

14
Art. 22, inciso XXIV: Compete privativamente à União legislar sobre: [...] diretrizes e bases da
educação nacional;”. Art. 214, CF: A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal,
com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 148

Ademais, a de forma concorrente à competência dos estados e do Distrito


Federal, compete à União legislar sobre normas gerais da educação (art. 24, inciso IX,
CF). Aos estados e municípios, compete legislar normas complementares às da União
(VIEIRA, 2007).
Outrossim, a Constituição de 1988 fixou recursos orçamentários para a
manutenção da educação. Desse modo, além da destinação da receita de impostos para a
conservação, constância e desenvolvimento do ensino prevista no art. 167, inciso IV da
CF, estabeleceu-se a distribuição de recursos públicos através do Fundef (Fundo de
Desenvolvimento do Ensino Básico), o qual baseia-se no número de matriculados em
educação básica, tanto nas redes estaduais, quanto do Distrito Federal e municipais, para
distribuir os recursos públicos (VIEIRA, 2007).
Verifica-se, pois, que o texto constitucional de 1988 viabilizou significativos
avanços na matéria referente à educação. Isso porque, conforme explanado, o
Constituinte estabeleceu princípios norteadores para as atividades dos entes federativos,
além de fixar recursos orçamentários direcionados ao avanço e manutenção da educação
e do acesso ao ensino (TEIXEIRA, 2008).
Nessa senda, ressalta-se a importância da consolidação da educação
institucionalizada, pois se trata de uma ferramenta garantidora de direitos. No entanto, é
cada vez maior o número de famílias e de projetos de leis que visam maneiras
alternativas de ensino, as quais não estão expressamente previstas no texto
constitucional, como também não se encontram regulamentadas em nenhuma lei
infraconstitucional. Desse modo, o assunto torna-se verdadeiro celeuma jurídico,
requerendo maior atenção às possibilidades de implantação de outras modalidades
educacionais no ordenamento jurídico brasileiro.

8 A atual situação do ensino domiciliar na legislação e no Judiciário


brasileiro

O direito à educação garante o acesso ao conhecimento e instrução, mas muito


além disso, também consolida diversos aspectos da personalidade do educando, como a
socialização, cooperação e, sobretudo, a cidadania, tornando-se importante ferramenta
para a efetivação da democracia. Nesse sentido, entende-se que o conceito de educação
não se limita à mera instrução, pois além de objetivar a qualificação do educando para o
trabalho, visa ensiná-lo acerca do exercício consciente da cidadania (BRASL, 2018).
O artigo 205 da Constituição Federal impõe, expressamente, o dever da
educação ao Estado e à família, de maneira que se trata de uma responsabilidade
solidária. Assim, não basta o Estado oferecer educação gratuita, é necessário o
engajamento da família para que os objetivos, elencados no art. 206, consolidem-se.

diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e


desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas
dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 59, de 2009) I - erradicação do analfabetismo; II - universalização do atendimento
escolar; III - melhoria da qualidade do ensino; IV - formação para o trabalho; V - promoção
humanística, científica e tecnológica do País. VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos
públicos em educação como proporção do produto interno bruto. (Incluído pela Emenda Constitucional
nº 59, de 2009) (BRASIL, [1988]).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 149

Outrossim, de extrema importância frisar que a família, sem o apoio estatal, não possui
a estrutura necessária para que a criança e o adolesce possa se beneficiar de todos os
aspectos proporcionados pela educação em seu sentido amplo e democrático (PAIXÃO,
2019).

9 Conceito e classificações do ensino domiciliar

O ensino domiciliar surge como uma demanda dos pais/responsáveis que


buscam assumir a responsabilidade de educar o estudante, deixando de delegar tal
função às instituições oficiais de ensino (PAIXÃO, 2019). Objetivando, pois, forçar
uma atitude abstencionista do Estado, característica dos direitos individuais de primeira
geração (RANIERI, 2017). Conforme a Associação Nacional de Ensino Domiciliar
(2017, n. p.):

A educação domiciliar ocorre quando os pais assumem


por completo o controle do processo global de educação
dos filhos. Portanto, a Educação Domiciliar é uma
modalidade de educação, na qual os principais
direcionadores e responsáveis pelo processo de ensino-
aprendizagem são os pais do educando (aluno).

Menciona-se, ainda, que o ensino domiciliar, originalmente chamado de


homeschooling, é oriundo dos Estados Unidos, sendo que neste país não há previsão
constitucional acerca do ensino domiciliar, permitindo que os Estados legislem
livremente acerca da temática (FREITAS, 2020). Considerando tal cenário, entende-se
que o ensino domiciliar não é uma temática que gere impasse nos Estados Unidos, bem
como em diversos países que permitem tal modalidade.
Entretanto, cabe ressaltar que estudos indicam a importância da análise acerca
do poder aquisitivo, bem como da qualidade de vida dos norte-americanos. O
homeschooling necessita, pois, de um contexto socioeconômico desenvolvido e
complexo para que possa ser exercido sem gerar grandes danos ao aprendizado da
criança e do adolescente (FREITAS, 2020).
Nesse sentido, imperioso destacar que há quatro modalidades de ensino
domiciliar, as quais caracterizam-se desde a desescolarização radical aos mais flexíveis,
que permitem a participação estatal no processo de ensino-aprendizagem. As
modalidades recebem as seguintes nomenclaturas: desescolarização radical,
desescolarização moderada, ensino domiciliar puro e, por fim, homeschooling
(BRASIL, 2018).
A desescolarização radical, também chamada de unschooling radical, percebe
de forma prejudicial a institucionalização do ensino, não concordando com a
intervenção estatal na educação da criança e do adolescente. Assim, não admite nenhum
tipo de fiscalização do Poder Público no processo de ensino e aprendizagem do
estudante (SALES, 2021). Ou seja:

No unschooling radical (desescolarização radical), parte-


se da premissa de que a institucionalização da educação é
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 150

prejudicial e somente aos pais é consagrado o direito de


educar os filhos, sendo vedada ao Estado a instituição de
escolas e currículos. Essa modalidade é contrária,
inclusive, à existência de uma lei de diretrizes e bases
educacionais, ou de qualquer fiscalização do Poder
Público (BRASIL, 2018, n. p.).

Já a desescolarização moderada é uma corrente que consente com a


intervenção estatal no sentido de que este ofereça a educação escolar, entretanto,
defende que cabe somente aos pais decidir se a educação da criança e do adolescente
será institucional ou domiciliar (FREITAS, 2020). Nessa corrente, portanto, entende-se
que:

[...] a institucionalização deve ser evitada, porém não se


proíbe ao Poder Público o oferecimento de educação
escolar. Entretanto, exclusivamente, aos pais compete
escolher pela educação institucionalizada ou pelo ensino
domiciliar com plena liberdade de conteúdo e método,
sem qualquer interferência estatal, vedando-se inclusive, a
supervisão estatal (BRASIL, 2018, n. p.).

Por sua vez, a corrente do ensino domiciliar puro entende que à família cabe o
encargo e a responsabilidade de educar a criança e o adolescente. Devem, porém, seguir
diretrizes de educação formal, de modo que se aceita a intervenção estatal apenas
subsidiariamente. Ao Estado, pois, é permitido oferecer a educação institucionalizada,
mas essa só será recorrida caso os pais não eduquem a criança e ao adolescente nos
termos propostos pelas diretrizes fixadas.
E, por fim, menciona-se o ensino domiciliar utilitarista, ou também
chamado de homeschooling, que recebe a nomenclatura de “utilitarista”, já que não se
opõe à educação institucionalizada, entendendo que esta contribui de forma eficiente
para o ensino da criança e do adolescente. Cabe ressaltar que para os defensores dessa
modalidade de ensino domiciliar, os genitores devem respeitar a grade programática da
educação pública e privada, além de se submeterem a avaliações periódicas elaboradas
pelo Estado.
Entende-se, portanto, que a diferença entre o ensino domiciliar utilitarista
e os demais encontra-se no nível de intervenção estatal permitido. Ou seja, o ensino
domiciliar utilitarista é a única modalidade que prevê a responsabilidade solidária com o
Estado para a educação da criança e do adolescente. Importante frisar que no
entendimento do STF, mesmo aqueles Ministros que acreditam ser possível a educação
domiciliar na legislação brasileira, ressaltam que somente seria viável o ensino
domiciliar na modalidade utilitarista, conforme a Constituição Federal (BRASIL, 2018)
15
.

15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 888815 de 6 de setembro de 2018.
Não existe direito público subjetivo do aluno do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar. Disponível
em:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.aspincidente=4774632&n
umeroProcesso=888815&classeProcesso=RE&numeroTema=822. Acesso em: 25 fev. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 151

Ou seja, para estes Ministros, seria concedido o direito de os pais ou


responsáveis educarem as crianças e os adolescentes em suas casas, entretanto, a
fiscalização estatal não poderia ser afastada em hipótese alguma. Ademais, apontam, de
igual modo, que tal fiscalização representaria grandes custos aos cofres estatais,
agravando ainda mais as condições da educação pública, a qual recebe poucos recursos
frente a demanda que possui (STF, 2018).

10 Atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal

Embora a Constituição de 1988 não vede o ensino domiciliar como uma


possível modalidade de ensino, ainda não há regulamentação acerca do tema, situação
que gerou o Recurso Extraordinário (RE) 888.815/RS, originário em um mandado de
segurança impetrado contra ato da secretaria de Educação do Município de Canela - RS,
em que os pais do educando buscavam regularizar a realidade fática que vivenciavam
em relação ao ensino domiciliar. Urge, pois, a necessidade de analisar o posicionamento
dos Ministros no julgamento do RE citado, a fim de entender os argumentos utilizados e
seus possíveis impactos na legalização, ou não, do ensino domiciliar no Brasil. O
recurso extraordinário (RE) 888.815/RS originou a seguinte ementa:

CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO


FUNDAMENTAL RELACIONADO À DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E À EFETIVIDADE DA
CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA
FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO
FUNDAMENTAL. NECESSIDADE DE LEI FORMAL,
EDITADA PELO CONGRESSO NACIONAL, PARA
REGULAMENTAR O ENSINO DOMICILIAR. RECURSO
DESPROVIDO. 1. A educação é um direito fundamental
relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria
cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica
a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida,
politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro,
dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito
subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA). [...] 2. É dever da família, sociedade e Estado
assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal
consagrou o dever de solidariedade entre a família e o
Estado como núcleo principal à formação educacional
das crianças, jovens e adolescentes com a dupla
finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e
dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que
o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação
melhor para as novas gerações, imprescindível para os
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 152

países que se querem ver desenvolvidos. 3.[...] São


inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling
radical (desescolarização radical), unschooling
moderado (desescolarização moderada) e homeschooling
puro, em qualquer de suas variações. 4. O ensino
domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno
ou de sua família, porém não é vedada
constitucionalmente sua criação por meio de lei federal,
editada pelo Congresso Nacional, na modalidade
“utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”,
desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e
se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo
básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e
fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais
previsões impostas diretamente pelo texto constitucional,
inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino;
em especial, evitar a evasão escolar e garantir a
socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência
familiar e comunitária ( CF, art. 227). 5. Recurso
extraordinário desprovido, com a fixação da seguinte
tese (TEMA 822): “Não existe direito público subjetivo
do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar,
inexistente na legislação brasileira”. (STF - RE: 888815
RS, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento:
12/09/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação:
21/03/2019)

Percebe-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal optou por aguardar o trâmite
dos atuais projetos de lei, porque entendeu que a temática é de competência legislativa
privativa da União, ensejando, portanto, a criação de uma lei federal para regulamentar
a temática, posicionamento que vai ao encontro do art. 22, inciso. XXIV da
Constituição Federal.
Importante ressaltar que não se trata de inércia do Judiciário, uma vez que a
competência para legislar acerca do assunto, conforme a Constituição Federal, é da
União, ou seja, do Congresso Nacional. Frisa-se, ainda, que por tratar-se de
competência privativa, é permito à União, por meio de lei complementar, possibilitar
que outro ente administrativo legisle acerca do assunto. Compreende-se então que tal
faculdade não é estendida ao Poder Judiciário, justificando a abstenção deste em
posicionar-se acerca do tema (LENZA, 2018).
Nesta senda, analisando os votos dos Ministros no referido recurso
extraordinário, percebe-se que foram construídas três compreensões distintas sobre a
eficácia e aplicabilidade do texto constitucional acerca do ensino domiciliar, quais
sejam, a constitucionalidade do ensino domiciliar, a constitucionalidade
‘condicionada’16 e a inconstitucionalidade/incompatibilidade dessa modalidade com o
ordenamento jurídico brasileiro (SALES, 2021).

16
Termo utilizado pelo Ministro Alexandre de Moraes para referir-se ao instituto da constitucionalidade
limitada (SALES, 2021).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 153

Desse modo, os ministros Barroso e Fachin defenderam que o pleito advinha


de uma demanda constitucional, entendendo que a prática do ensino domiciliar
utilitarista vai ao encontro dos objetivos e valores educacionais da Constituição
(BRASIL, 2018). De maneira tal que, embora o recurso tenha sido desprovido, os
ministros fundamentaram seus votos sustentando que se deve interpretar o texto
constitucional sob o prisma de valores como o desenvolvimento da criança e do
adolescente (SALES, 2021).
Quanto à inconstitucionalidade do ensino domiciliar, posicionamento dos
Ministros Fux, Mendes, Lewandowski e Aurélio, alegou-se que o ensino domiciliar não
é um direito, pois não é compossível com a Constituição, sendo que, na visão dos
referidos ministros, as exigências constitucionais de frequência e matrícula são os
principais empecilhos para a efetivação do ensino domiciliar como direito (BRASIL,
2018).
Ademais, sustentaram suas argumentações enfatizando que o Constituinte
Originário, ao redigir a temática educacional, vislumbrou um modelo de ensino
complexo, integrando a família, a sociedade e o Estado na sua execução, a fim de que se
lograsse êxito em seus objetivos (BRASIL, 2018).
No que tange à alegação de constitucionalidade condicionada, por assim dizer
constitucionalidade limitada, os Ministros Alexandre de Moraes, José Antônio Dias
Toffoli Goma, Rosa Maria Pires Weber e Cármen Lúcia Antunes Rocha, entenderam
que o ensino domiciliar “não constitui um direito, mas uma opção legislativa ainda não
existente” (SALES, 2021), portanto sustentaram que a Constituição Federal de 1988 não
veda o ensino domiciliar, mas esse constitui-se como uma opção legislativa, sendo
facultado ao Poder Legislativo regulamentar a matéria. Logo, posicionaram-se no
sentido de que, por não se tratar de direito, mas sim de uma opção legislativa, tal
modalidade não é permitida no atual cenário legislativo do país (SALES, 2021).
Ademais, os Ministros ponderaram que a regulamentação do ensino domiciliar
somente seria possível observando a modalidade utilitarista, devendo-se respeitar a
obrigatoriedade do ensino dos 4 aos 17 anos de idade, o núcleo básico curricular, bem
como a supervisão, avaliação e fiscalização pelo poder público. Ressalta-se, ainda, que
a constitucionalidade limitada se refere, nas palavras de Lenza:

[...] aquelas normas que, de imediato, no momento em que


a Constituição é promulgada, ou entra em vigor, não têm
o condão de produzir todos os seus efeitos, precisando de
norma regulamentadora infraconstitucional a ser editada
pelo Poder, órgão ou autoridade competente (2018, p.
239).

Diante disso, os Ministros ratificaram seus posicionamentos de que a exigência


da participação da família, do Estado, bem como a obrigatoriedade da matrícula em
instituição de ensino regular, tópicos expressamente previstos na Constituição, não
permitem a instauração do ensino domiciliar na legislação brasileira (SALES, 2021).
Destaca-se, ainda, o posicionamento do Ministro Alexandre de Moraes, em que apontou
uma preocupação com índices referentes à evasão escolar, nesse sentido o Ministro
(BRASIL, 2018, n. p.) expõe:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 154

Recentemente, foi noticiado que o Brasil tem a terceira


maior taxa de evasão escolar entre cem países; o PNUD 3
trouxe esse problema. Se nós não aguardarmos uma
regulamentação congressual discutida e detalhada,
inclusive obrigando, a partir daí, o Executivo a
estabelecer todo um cadastro, fiscalização, avaliações
pedagógicas e avaliações de socialização, nós certamente
teremos, lamentavelmente, evasões escolares disfarçadas
de ensino domiciliar. Não havendo controle de frequência
e avaliações pedagógicas e de socialização, haverá a
possibilidade de transformarmos pseudoensino domiciliar
em fraude para ocorrência de evasão escolar.

Desse modo, no julgamento do recurso extraordinário (RE) 888.815/RS, o


Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral, sendo fixada a
tese de que “não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino
domiciliar, inexistente na legislação brasileira” (BRASIL, 2018). Em outras palavras, o
Supremo Tribunal Federal entendeu que, diferentemente do direito à educação, o qual é
subjetivo, devendo tão logo ser efetivado, o direito ao ensino domiciliar deve ser regido
e executado através de lei federal, de forma que sem essa legislação regulamentadora
não é possível aceitar a modalidade de educação domiciliar atualmente no Brasil
(SALES, 2021).
Ademais, devido a competência privativa da União para legislar acerca da
matéria, a Corte optou por aguardar o posicionamento do Poder Legislativo sobre a
temática, haja vista a existência de diversos projetos de lei acerca desse tema, os quais
encontram-se em trâmite no Legislativo.

11 Projetos de lei acerca do tema no Congresso Nacional

Conforme explanado anteriormente, a competência para legislar acerca da


matéria é privativa da União, entretanto, alguns Estados têm projetos de lei para
regulamentar o ensino domiciliar. Menciona-se, por exemplo, o projeto de lei do Estado
de Santa Catarina, o qual foi aprovado na Assembleia Legislativa e sancionado pelo
Governador, encontrando-se atualmente suspenso, assunto a ser explorado no próximo
tópico.
Já no âmbito federal, apontam-se projetos de lei que podem ser sancionados,
mudando radicalmente a realidade do ensino domiciliar no país, uma vez que se trata da
esfera administrativa autorizada pelo texto constitucional a legislar sobre o assunto.
Ressalta-se que desde o ano de 1994 existem propostas de projetos de lei acerca do
tema, entretanto muitos foram arquivados, de maneira que serão mencionados os
projetos de lei atualmente em trâmite no Congresso Nacional. Por conseguinte, tratar-
se-á acerca do Projeto de Lei n. 3179/12 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2012), do
Projeto de Lei do Senado nº 490/17 e do Projeto de Lei do Senado nº 28/18.
Nesse sentido, o Projeto de Lei do Senado nº 490/17, proposto pelo senador
Fernando Bezerra Coelho, prevê a seguinte ementa:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 155

Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que


estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente, para prever a
modalidade da educação domiciliar no âmbito da
educação básica (SENADO, 2017, n. p.).

Ou seja, busca-se legalizar a situação de famílias que praticam o ensino


domiciliar, sem, contudo, demonstrar, de forma minuciosa, como efetivamente garantir
os direitos das crianças e dos adolescentes e proporcionar a legalização de tal
modalidade de ensino. Haja vista, pois, a proposta de alteração na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional limitar-se, por exemplo, a regulamentar que o ensino
domiciliar deverá observar o “respeito integral aos direitos da criança e do adolescente”
(art. 2º, § 4º, inciso I do PL nº 390/17), sem apresentar os meios, os mecanismos
práticos, para a sua aplicação.
Logo, não basta uma regulamentação genérica acerca do assunto, visando a
mera legalização do tema, pois na prática existem incontáveis implicações negativas à
criança e ao adolescente (PAIXÃO, 2018). Nessa senda, cabe ressaltar que a Lei de
Diretrizes e Bases, Lei 9.394/96, prevê, em seus artigos 4º, inciso I, e 6º a educação
básica obrigatória dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos e o dever da família de
matricular o aluno na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.
Nesse diapasão, importante mencionar o art. 246 do Código Penal, o qual prevê
o crime de abandono intelectual nos casos de omissão da família em efetuar a matrícula
da criança e do adolescente. Partindo dessas premissas, o Projeto de Lei n. 28/18,
também de autoria do Senador Fernando Bezerra Coelho, visando complementar o PL
nº 390/17, prevê a alteração do Código Penal para que a prática do ensino domiciliar
deixe de ser tipificada como abandono intelectual (SENADO, 2018). O PL 28/18
contém a seguinte explicação da Ementa:

Altera o Código Penal, para estabelecer que o crime de


deixar de prover à instrução primária de filho em idade
escolar não ocorrerá se os pais ou responsáveis ofertarem
aos filhos educação domiciliar (SENADO, 2018, n. p.).

Quanto ao trâmite dos projetos de leis propostos pelo Senador Fernando


Bezerra Coelho, cabe mencionar que o PL nº 390/17 aguarda análise por parte da
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sendo que a última
movimentação ocorreu em 06 de agosto de 2021. Já o PL nº 28/18, será analisado pela
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo ocorrido a última movimentação
em 03 de setembro de 2019 (SENADO, 2018).
Dentre os projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, destaca-se o PL
n. 3179/12, o qual, com a aprovação do REQ 1952/202017, recebeu o status de Regime

17
“Ementa: ‘Requer, nos termos do artigo 155 do Regimento Interno, tramitação sob o regime urgência
do Projeto de Lei nº. 2401/2019’”. Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br).
Acesso em 1 de jun de 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 156

de Tramitação de Urgência, a teor do art. 155 da RICD18, sendo aprovado pela Câmara
dos Deputados, no dia 19 de maio de 2022, seguindo para o Senado e, se não forem
propostas alterações, com a respectiva aprovação do Poder Legislativo, seguirá para
análise do Presidente da República (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).
O PL 3179/12, proposto pelo deputado Lincoln Portela (PL-MG), propõe que
a educação básica seja ofertada em casa, sendo administrada pelos pais ou responsáveis,
visando, assim, minimizar a participação do Estado na oferta da educação, de maneira
que esse atue através de supervisões e avaliações periódicas de aprendizagem
(SENADO, 2012).

12 O Projeto de Lei 3179/12

Inicialmente, o Projeto de Lei 3.179/12 propôs uma alteração pontual na


redação do art. 23, § 3º da Lei 9.394/97, Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, a fim de permitir a prática do ensino domiciliar no ordenamento jurídico
brasileiro. Atualmente, o PL visa modificar os artigos 1º, 5º, 23, 24, 32, bem como
inserir os artigos 81-A e 89-A na LDB, além disso, visa modificar o art. 129, inciso V
da Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda nesse sentido, o art. 3º do
PL 3.179/12 prevê que a prática do ensino domiciliar não seja considerada conduta
típica para concretização do crime de abandono material19 (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2021).
Visando regulamentar a matéria, o PL 3.179/12 exige uma série de critérios e
documentações dos pais ou responsáveis, bem como a fiscalização estatal. No que tange
às exigências, cabe mencionar que, sendo sancionada a lei, os responsáveis legais das
crianças e dos adolescentes deverão formalizar a sua opção junto a escolas
credenciadas, fazendo a respectiva matrícula do estudante. Além disso, é necessário que
pelo menos um dos responsáveis seja formado em curso superior, ou em educação
profissional tecnológica (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).
Em relação à fiscalização estatal, o projeto propõe que sejam realizados
relatórios trimestrais indicando a relação de atividades pedagógicas efetivadas no
período, bem como avaliações semestrais para a verificação do progresso de estudante
com deficiência ou transtorno de desenvolvimento. Ademais, estabelece que devem ser
realizadas avaliações anuais de todos os alunos, a fim de verificar o progresso e nível de
conhecimento destes (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).
Nesse sentido, é proposto também o acompanhamento da criança com
um docente tutor na instituição de ensino em que o aluno estiver matriculado, para que
se procedam a encontros semestrais com os estudantes e os responsáveis. Nesse
diapasão, o PL exige algumas documentações dos pais ou responsáveis legais como, por
18
“Art. 155. Poderá ser incluída automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação imediata,
ainda que iniciada a sessão em que for apresentada, proposição que verse sobre matéria de relevante e
inadiável interesse nacional, a requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes
que representem esse número, aprovado pela maioria absoluta dos Deputados, sem a restrição contida no
§ 2º do artigo antecedente. Parágrafo único. A aprovação da urgência, nos termos deste artigo: I - impede
a apresentação, na mesma sessão, de requerimento de retirada de pauta; II - impede a apresentação ou
implica a prejudicialidade de requerimento de adiamento de discussão, se a matéria estiver instruída com
todos os pareceres. (Parágrafo único acrescido pela Resolução nº 21, de 2021)” Disponível em: RICD
atualizado até RCD 21-2021 (camara.leg.br). Acesso em 1 de jun de 2022.
19
Art. 244 do Decreto-Lei Nº 2.848, Código Penal.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 157

exemplo, as certidões criminais da Justiça Federal e Estadual ou Distrital (CÂMARA


DOS DEPUTADOS, 2021).
Importante salientar que o projeto de lei em análise visa regulamentar o
ensino domiciliar, de modo que alteração do Código Penal para que o ensino domiciliar
não seja considerado crime de abandono material deixa de ser objeto de análise no PL
3179/12. Assim, este PL tramita por Comissões diferentes, recebendo tratamento
previsto para matérias de tal natureza, não se procedendo, pois, à análise da esfera
penal. Por isso, houve a desapensação do PL 3262/2019 e do PL 2401/2019, projetos de
lei que visam modificar o Código Penal, por “não guardarem vínculo de identidade ou
correlação entre si” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).

13 Leis estaduais acerca da temática

A competência para legislar sobre o assunto, conforme acima explanado, é


privativamente da União, de modo que somente uma lei federal é capaz de regulamentar
a temática do ensino domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, os
estados de Santa Catarina e do Distrito Federal possuem legislação acerca do tema.
Nesse contexto, mostra-se de suma importância ressaltar que embora tais
estados tenham uma legislação estadual sobre o assunto, estas estão eivadas de vício
formal, porque não foi observado o art. 22, inciso XXIV da Constituição Federal.
Sendo, logo, inconstitucionais, apesar de atualmente vigentes.
A lei estadual vigente no Distrito Federal, qual seja, a Lei Nº 6.759/20, foi
muito criticada pelos apoiadores da causa, pois regulamenta o ensino domiciliar
propondo diversas restrições (ANED, 2017). Ainda nesse sentido, cabe destacar que o
Sindicato dos Professores do Distrito Federal (RICARDO, 2020) ajuizou uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade (Adin), nº 0752639-84.2020.8.07.0000, ratificando o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal, qual seja de que a matéria é de
competência da União (RICARDO, 2020). Atualmente, a lei estadual está em vigência e
a Adin tramita no TJDFT.
Outrossim, o Estado de Santa Catarina também teve um projeto de lei
complementar aprovado na pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina em outubro
de 2021, sendo sancionada a Lei Complementar nº 775/21 pelo Governador, em
novembro do mesmo ano. Entretanto, o Ministério Público de Santa Catarina alegou a
inconstitucionalidade da lei estadual por vício formal, já que se trata de competência
privativa da União, bem como por vício material, uma vez que fere o princípio do
melhor interessa da criança e do adolescente. No momento, a referida lei encontra-se
suspensa por cautelar deferida em decisão monocrática na ADI nº 5061030-
73.2021.8.24.0000, como também aguarda o trâmite da ADI nº 5062023-
19.2021.8.24.0000 (SANTA CATARINA, 2021).
Nesse contexto, menciona-se ainda a lei do Estado do Paraná, Lei Ordinária nº
20739/21, que entrou em vigência em quatro de outubro de 2021 (Diário Oficial Paraná,
on-line), que foi considerada inconstitucional no julgamento da ADI nº 0065253-
79.2021.8.16.0000, com o argumento unânime de que a matéria é de competência
federal (PARANÁ, 2022). Por oportuno, colaciona-se a seguinte ementa:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 158

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI


ESTADUAL Nº 20.739/2021, QUE INSTITUI AS
DIRETRIZES DO ENSINO DOMICILIAR
(HOMESCHOOLING) NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO
BÁSICA DO ESTADO DO PARANÁ. VÍCIO FORMAL.
OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA
UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIRETRIZES E BASES
DA EDUCAÇÃO NACIONAL NÃO OBSERVADA.
AFRONTA AO ART. 22, XXIV, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. REGRA DE OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA.
PEDIDO PROCEDENTE. a) Por afronta ao art. 22,
XXIV, da Constituição Federal, é de se declarar a
inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 20.739/2021,
que institui as diretrizes do ensino domiciliar
(homeschooling) no âmbito da educação do Estado do
Paraná. [...] (TJ-PR - ADI: 00652537920218160000 *
Não definida 0065253-79.2021.8.16.0000 (Acórdão),
Relator: Rogério Luis Nielsen Kanayama, Data de
Julgamento: 21/03/2022, Órgão Especial, Data de
Publicação: 22/03/2022) (grifo nosso).

Observa-se que os projetos de leis estaduais, embora sancionados pelos


governadores, não possuem o condão de regulamentar o ensino domiciliar, uma vez que
não contemplam os requisitos constitucionais necessários. Verifica-se prova disso ao
analisar as ementas citadas, bem como o atual posicionamento do STF.
Diante disso, urge a necessidade de se analisar as possíveis ameaças ao
direito à educação oriundas da regulamentação do ensino domiciliar no Brasil.
Conforme explanado, entende-se a educação como direito fundamental, além disso, à
luz do fenômeno da constitucionalização, todo o ordenamento jurídico deve ser
interpretado respeitando os princípios constitucionais como, por exemplo, o princípio da
dignidade da pessoa humana, sendo a educação um dos pilares para a consolidação
desse. Portanto, passar-se-á à uma análise aprofundada sobre esse aspecto, considerando
a doutrina da proteção integral, o fenômeno da constitucionalização e princípios
relacionados à temática, como o princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente.

14 Reflexões sobre possíveis prejuízos e inconstitucionalidades do ensino


domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro

Em breve análise acerca do histórico das constituições que precederam à


Constituição Federal de 1988, percebe-se que a criança e o adolescente não eram
titulares de direitos como à educação e os demais direitos fundamentais. Há apenas
menções à criança e ao adolescente em algumas constituições como, por exemplo, na
constituição de 1934, que prevê proteção aos menores de 18 anos (MOREIRA;
SALLES, 2015):
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 159

[...] proibição de trabalho a menores de 14 anos; de


trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias
insalubres, a menores de 18 anos [...] (artigo 121, § 1º,
‘d’); [...]os serviços de amparo à maternidade e à infância
[...] serão incumbidos de preferência a mulheres
habilitadas (artigo, 121, ‘j’, § 3º);[...] Incumbe à União,
aos Estados e aos Municípios[...] c)amparar a
maternidade e a infância; d) socorrer as famílias de prole
numerosa; e) proteger a juventude contra toda
exploração, bem como contra o abandono físico, moral e
intelectual; f) adotar medidas legislativas e
administrativas tendentes a restringir a moralidade e a
morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a
propagação das doenças transmissíveis (artigo 138).
(BRASIL, 1934, n. p.).

Verifica-se que a criança e o adolescente eram vistos como objetos de cuidados


e garantias, não recebendo a característica de sujeito de direito e, consequentemente,
não sendo protegidos como tal. A partir dessa premissa, menciona-se ainda a
Constituição de 1937, que versa acerca de proteções destinadas aos menores de dezoito
anos, mencionando, por exemplo, a proibição da exposição de menores de 18 anos a
trabalhos insalubres. Ou seja, embora as constituições anteriores mencionarem a criança
e o adolescente em algum artigo específico, esses, diferentemente dos adultos, não eram
titulares de direitos (MOREIRA; SALLES, 2015).

15 Códigos anteriores ao Estatuto da Criança e do Adolescente e a


consolidação da educação como direito fundamental da criança e do adolescente

Consoante às características constitucionais mencionadas, três códigos de


menores antecederam o Estatuto da Criança e do Adolescente, quais sejam, o Decreto nº
5.083, de 1 de dezembro de 1926, o Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927
(Código Mello Matos), e a Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. De forma geral, tais
códigos possuem duas características predominantes, porque eram direcionados apenas
às crianças e aos adolescentes considerados delinquentes, libertinos ou em situação
irregular, e, considerando que a criança e o adolescente eram vistos como objetos
passíveis de medidas judiciais, os códigos limitavam-se a regulamentar situações como
o afastamento familiar e a colocação em instituição (MOREIRA; SALLES, 2015).
Nesse sentido, somente com a Constituição de 1988 houve a consolidação dos
direitos das crianças e dos adolescentes, haja vista o artigo 24, inciso XV da CF ter
ensejado a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ROSSATO; LÉPORE,
2020). Assim, percebe-se o tratamento destinado à criança e ao adolescente até a
Constituição de 1988, ou seja, essas tinham, dentre os outros direitos fundamentais, o
direito à educação cerceado. Conforme ensinam Rossato e Lépore:

a evolução do tratamento da criança e do adolescente,


pelo mundo jurídico, pode ser resumida em quatro fases
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 160

ou sistemas:2 a) fase da absoluta indiferença, em que não


existiam normas relacionadas a essas pessoas; b) fase da
mera imputação criminal, em que as leis tinham o único
propósito de coibir a prática de ilícitos por aquelas
pessoas (Ordenações Afonsinas e Filipinas, Código
Criminal do Império de 1830, Código Penal de 1890); c)
fase tutelar, conferindo-se ao mundo adulto poderes para
promover a integração sociofamiliar da criança, com
tutela reflexa de seus interesses pessoais (Código Mello
Mattos de 1927 e Código de Menores de 1979); e d) fase
da proteção integral, em que as leis reconhecem direitos e
garantias às crianças, considerando-a como uma pessoa
em desenvolvimento. É, pois, na quarta fase que se insere
a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente
de 1990) (ROSSATO; LÉPORE, 2020, p. 61).

Nessa senda, com o intuito de reconhecer crianças e adolescentes como


pessoas em formação, as quais possuem diferentes direitos, que devem ser oferecidos de
forma prioritária pelo Estado, o artigo 1º 20do ECA adota expressamente a doutrina da
proteção integral, indo ao encontro desse, assinala-se o artigo 4º21, caput, do referido
diploma, que utiliza a expressão “absoluta prioridade” para se dirigir às condições
objetivas que devem ser garantidas à criança e ao adolescente (ROSSATO; LÉPORE,
2020).
Nesse aspecto, relevante salientar que a escolha do legislador se
fundamentou em uma interpretação sistemática da Constituição, de modo que as normas
referentes às crianças e aos adolescentes são consideradas em seu máximo potencial de
validade e eficácia. Ademais, as normas constitucionais, bem como o ECA, inspiraram-
se em normas internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos da Criança e a Convenção sobre
os Direitos da Criança. Notório, portanto, que as regulamentações acerca da criança e do
adolescente no Brasil ocorreram no prisma da positivação dos direitos humanos, logo,
fundamentais (ROSSATO. LÉPORE, 2020).
Nesse diapasão, entende-se que a proteção à criança e ao adolescente, em
seu sentido amplo, é direito social amparado tanto no artigo 6º, como no artigo 227 da
Constituição Federal, sendo que o direito à educação é, portanto, destinado a criança e
ao adolescente por serem titulares de direito fundamentais, determinando que o Estado o
promova e incentive por meio de políticas públicas (MOREIRA; SALLES, 2015).
Entende-se a lógica constitucional ao destinar o dever da educação à
família e ao Estado, visto que foi percorrido um trajeto cheio de percalços até que a
criança e o adolescente fossem reconhecidos como titulares de direitos fundamentais, de
tal modo que o direito à educação passa a ser entendido como “um direito fundamental,
como condição indissociável para uma vida digna” (CAMARA, 2013).

20
Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
21
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 161

16 O ensino domiciliar e o ECA à luz do neoconstitucionalismo

Nessa linha de pensamento, essencial falar acerca do constitucionalismo, ou, na


sua mais específica nomenclatura, neoconstitucionalismo22. Trata-se de uma nova
perspectiva desenvolvida pela doutrina, a partir do século XXI, que entende que o
constitucionalismo23 não mais caracteriza-se apenas pela ideia de limitação do poder
político, mas também busca a concretização dos direitos fundamentais (LENZA, 2018).
Nesse sentido, a doutrina entende que há três marcos fundamentais que
culminaram no neoconstitucionalismo. Desse modo, na perspectiva histórica destacam-
se as Constituições do pós-guerra como, por exemplo, a Constituição da Alemanha de
1949, com enfoque na redemocratização e na consolidação do Estado Democrático de
Direito. No Brasil, tal aspecto manifesta-se através da Constituição Federal de 1988
(LENZA, 2018).
Já na perspectiva filosófica, o neoconstitucionalismo encontrou guarida
no pós-positivismo, haja vista o contexto histórico da época, qual seja, o fascismo na
Itália e o nazismo na Alemanha, os quais promoveram a barbárie sob a proteção da
legalidade. De modo que surge o pós-positivismo buscando uma leitura moral do
Direito, sem desprezar o direito positivado, mas observando os Direitos Fundamentais,
bem como a relação entre o Direito e a Ética (BARROSO, 2006).
E, por fim, menciona-se o marco teórico do neoconstitucionalismo, que
se caracteriza pela força normativa da Constituição, ou seja, a norma constitucional é
dotada de imperatividade; pela expansão da jurisdição constitucional, que consistiu em
um novo modelo constitucional, onde houve a constitucionalização dos direitos
fundamentais e pela nova dogmática da interpretação constitucional (LENZA, 2018).
Dessa maneira, quanto à nova dogmática de interpretação:

[...] as especificidades das normas constitucionais (...)


levaram a doutrina e a jurisprudência, já de muitos anos,
a desenvolver ou sistematizar um elenco próprio de
princípios aplicáveis à interpretação constitucional. Tais
princípios, de natureza instrumental, e não material, são
pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos da
aplicação das normas constitucionais. São eles (...): o da
supremacia da Constituição, o da presunção de
constitucionalidade das normas e atos do poder público, o
da interpretação conforme a Constituição, o da unidade,
o da razoabilidade e o da efetividade (BARROSO, 2006, n.
p.) (grifo nosso).

Em vista disso, a dignidade da pessoa humana passou a ser um dos fundamentos


da República, bem como um princípio norteador das demais normas constitucionais e

22
Também nomeado como constitucionalismo pós-moderno ou como pós-positivismo. (LENZA, 2018).
23
A doutrina estabelece diversas fases do constitucionalismo, sendo que inicialmente o movimento tem o
intuito de positivar direitos e limitar o poder estatal. (LENZA, 2018).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 162

infraconstitucionais. E, por conseguinte, para a consolidação e aplicação constitucional


do princípio da dignidade humana é necessário que sejam assegurados os direitos
sociais já previstos na Constituição, tais como o direito à educação, à saúde, ao trabalho,
ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção etc. (XAVIER, 2011).
Dessa forma, o artigo 277 da Constituição Federal traz o princípio da proteção
integral, princípio norteador do ECA e demais normas infraconstitucionais referentes à
criança e ao adolescente. Além disso, a proteção integral mostra-se como corolário do
princípio do melhor interesse da criança, que, segundo a doutrina, garante a seus
titulares direitos mínimos, ou seja, todos os direitos destinados aos adultos como o
direito à educação, por exemplo, sejam cumpridos. Ademais, outro aspecto relevante
oriundo da proteção integral é referente a quem tem o dever de efetivar os direitos
fundamentais destinados a criança e ao adolescente, e, nesse sentido, a Constituição
destina à família, ao Estado e à sociedade o dever solidário (XAVIER, 2011).
Assim sendo, muitos doutrinadores passaram a entender o princípio da proteção
integral e do melhor interesse da criança como uma projeção direta do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. De maneira tal que o constitucionalismo
atua na interpretação do ECA e demais normas para que os direitos fundamentais da
criança e do adolescente sejam garantidos e efetivados (XAVIER, 2011). Percebe-se,
pois, que a educação em seu sentido amplo, formando não só a perspectiva intelectual,
mas também cidadã, deve ser prioridade e dever do Estado e da família (CAMARA,
2013).
Nas palavras de Camara (2013), “a constitucionalização do direito a educação
vem preservar e resguardar a democracia esculpida pela Carta Magna, e, por
conseguinte, propiciar a garantia ao acesso a todo cidadão a esse direito”. Destaca-se,
ainda, a impossibilidade da família, como agente isolado, proporcionar a educação
cidadã, intelectual e moral abolindo a formação institucionalizada e privando o Estado
de cumprir com seu dever constitucional, de modo que o ensino domiciliar, por sua
natureza, mostra-se inconstitucional, uma vez que vai de encontro a princípios
norteadores da Constituição Federal (ALMEIDA; MORAES, 2021).
Além disso, analisando a possibilidade da regulamentação do ensino domiciliar a
partir de uma perspectiva social e do acesso amplo à educação, nota-se um cenário de
sérios riscos, determinado pela evasão escolar, aumento do índice de maus-tratos, bem
como a formação limitada da consciência cidadã da criança e do adolescente
(MOREIRA; SALLES, 2015), aspectos que serão abordados adiante.

17 A regulamentação do ensino domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro


e seus possíveis prejuízos

Conforme Maria Alice Setúbal24, o ensino domiciliar mostra-se prejudicial ao


desenvolvimento da criança e do adolescente. A socióloga enfatiza que o Brasil não
possui estrutura adequada para a regulamentação do ensino domiciliar, fato que

24
Graduada em ciências sociais pela USP, mestre em ciência política e doutora em psicologia pela PUC,
Maria Alice Setúbal, conhecida como Neca Setubal, é presidente do Conselho Consultivo da Fundação
Tide Setubal, uma ONG que oferece cursos e projetos culturais em São Miguel Paulista, na cidade de São
Paulo.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 163

acentuaria a desigualdade social. Além disso, mencionou que pesquisas realizadas pelo
Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo indicaram que as
crianças educadas em casa no período da pandemia do COVID-19 apresentam queda de
aprendizagem em língua portuguesa, matemática e habilidades socioemocionais.
Ademais, a socióloga enfatiza que as crianças afastadas da escola se tornam mais
vulneráveis aos maus-tratos e violência doméstica (CNN BRASIL, 2022).

18 O ensino domiciliar e a evasão escolar

Conforme dados extraídos pelo IBGE, em 2017, há um alarmante número de


casos de evasão escolar, apontando que, embora os avanços trazidos pela Constituição
Federal de 1988, o país ainda precisa aprimorar muito suas políticas públicas a fim de
que a educação receba, de fato, o amplo acesso que a foi direcionado. Diante de tal
cenário torna-se preocupante a regulamentação do ensino domiciliar, uma vez que os
atuais índices de evasão escolar já são preocupantes, mesmo com as especificidades
legais acerca da educação, tais como o ensino obrigatório e a responsabilidade solidária
da família e Estado quanto ao planejamento, execução e fiscalização do ensino
(PESSOA; SEPTIMIO, 2020).
Consoante ao exposto, frisa-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal
no recurso extraordinário (RE) 888.815/RS, em que um dos argumentos mencionado
pelos Ministros foi em relação à preocupação quanto ao aumento do índice de evasão
escolar, aduzindo que a regulamentação do ensino domiciliar ensejaria situações
propícias para a evasão escolar (STF, 2018).
Nesse sentido, pensar em uma escola justa e de amplo acesso no Brasil significa
ir além da garantia de ingresso, mas, sim, oferecer meios para que o direito à educação
se concretize, assegurando a possibilidade de permanência dos alunos nas instituições.
Entretanto, percebe-se que a regulamentação do ensino domiciliar não só aumentaria os
índices de evasão escolar, como também dificultaria o mapeamento dos alunos que
percorrem percalços para a permanência na escola (MORAES, 2021).
Ademais, dados da PNAD indicam que a necessidade de trabalhar, bem como a
falta de interesse são os principais motivos que levam à evasão escolar no ensino médio.
A implementação do ensino domiciliar diante do cenário supracitado, mostra-se de
grande risco, pois dificultaria a universalização do ensino, além de que a alegação da
prática do ensino domiciliar pode mascarar a evasão escolar (TREZZI, 2021).

19 O aumento das desigualdades sociais

Considerando a grande extensão territorial e diversidade cultural presentes no


Brasil, sabe-se que as diferenças econômicas são gravíssimas, de maneira que se
refletem no acesso e na qualidade da educação. Dirigindo uma análise minuciosa para a
situação do ensino no país, vê-se a falta de sensibilidade estatal ao tratar os estudantes
como uma estatística, deixando de avaliar as dificuldades e complexidades de cada
indivíduo (TREZZI, 2021).
Diferentemente de países como os Estados Unidos, em que há um padrão de
vida predominantemente elevado, o Brasil, além de ser um país territorialmente extenso,
é marcado por regiões com condições desiguais, famílias muito diferentes, não sendo
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 164

viável utilizar modelos de outros países para implementar o ensino domiciliar no


ordenamento jurídico brasileiro. Ainda nesse sentido, entende-se que a regulamentação
do ensino domiciliar ocasionaria dificuldades para a fiscalização da qualidade
educacional recebida pelos adeptos a tal modelo, pois, como mencionado, trata-se de
um país extenso e com acentuadas desigualdades sociais (CNN BRASIL, 2022).
A regulamentação do ensino domiciliar no Brasil, sobretudo, significa um
enfraquecimento das escolas, especificamente das públicas, as quais já se encontram em
piores condições do que as escolas particulares, de maneira que essa modalidade de
ensino se revela como uma política pública excludente, elitista e que vai contra às
diretrizes da educação prevista na legislação infraconstitucional (PESSOA; SEPTIMIO,
2020).
Inegavelmente, pois, o ensino domiciliar acentuaria as diferenças sociais,
reforçando o sistema de classes fortemente arraigado na sociedade, culminado no
fortalecimento da desigualdade educacional. Isso porque poucas famílias teriam
condições de arcar com os custos necessários para a educação domiciliar fornecer, pelo
menos, um ensino de qualidade no âmbito intelectual (TREZZI, 2021).

20 O ensino domiciliar e os maus-tratos à criança e ao adolescente

Conforme dados divulgados pela CNN Brasil (2022), as crianças afastadas das
escolas sofrem maior incidência de maus-tratos e violência doméstica. Nesse sentido, as
escolas públicas brasileiras são parte da rede de proteção dos direitos e da integridade
física e emocional da criança e do adolescente. Trata-se, pois, de um dos principais
locais onde ocorre a identificação e comunicação às autoridades responsáveis sobre os
casos de maus-tratos que ocorrem nas famílias (PICOLI, 2020).
Menciona-se, ainda, um dos deveres designados às unidades de ensino pelo
ECA, que se encontra no artigo 56, o qual consiste na obrigação de comunicar ao
Conselho Tutelar os casos de maus-tratos envolvendo os alunos. Desse modo, a
regulamentação do ensino domiciliar pode acarretar danos ao bem-estar dos estudantes
diante da falta de supervisão diária da escola (MOREIRA; SALLES, 2015). Assim, com
a ausência da instituição escolar:
[...] os dispositivos de proteção da integridade física e
emocional de crianças e adolescentes ficam severamente
comprometidos, pois desobriga o poder público do zelo,
da segurança e da integridade de grupos vulneráveis por
sua condição de não adulto (WENDER; FLACH, 2020, p.
10).

Portanto, a regulamentação do ensino domiciliar aumentaria as chances de


passarem despercebidos casos de violência doméstica, abuso sexual e demais situações
de vulnerabilidade que a criança e o adolescente podem estar expostos. Isso ocorre,
porque, além do contato diário do estudante com o professor(a), no qual é possível
perceber eventuais escoriações e lesões na criança, na escola é formado um ambiente
acolhedor, no qual o estudante sente-se encorajado a compartilhar suas dores e pedir
ajuda. Somado a isso, o aluno em processo de educação domiciliar, com o convívio
social mais restrito, encontrará maior dificuldade em procurar auxílio fora da família
(WENDER; FLACH, 2020).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 165

21 O ensino domiciliar e as supostas ideologias predominantes no sistema


institucionalizado

A corrente que defende o ensino domiciliar utiliza, predominantemente,


argumentos que, em seu cerne, visam passar a direção da educação e da vida da criança
e do adolescente ao poder dos pais, a fim de moldar a visão dos estudantes em prol de
suas crenças e valores morais. Dessa maneira, a criança e o adolescente são impedidos
de conviver com a diversidade social, cultural e de crenças presente no ambiente escolar
(WENDLER; FLACH, 2020).
Nesse diapasão, uma parcela considerável de pais alega que o ensino domiciliar
é a única maneira de proteger seus filhos de ideologias disseminadas na escola
institucionalizada, argumentando que os professores objetivam fazer com que os alunos
reproduzam discursos políticos e ideológicos. Há também a parcela de pais que
defendem suas crenças religiosas de maneira tal, que enxergam a escola como um lugar
inapropriado para a criação de seus filhos, buscando o ensino domiciliar a fim de que o
caráter da criança e do adolescente seja integralmente esculpido conforme suas crenças
(TREZZI, 2021).
Entretanto, esses argumentos ignoram a existência de instituições não
confessionais, como também das que defendem determinadas linhas de pensamento
sociológicos e morais específicos atendendo a mais diversa demanda de critérios
exigidos pelos genitores, de maneira que se mostram frágeis as justificativas
empregadas pelos genitores (TREZZI, 2021).
Além disso, outra questão recorrentemente levantada pelos pais são as falhas
presentes na educação do país, sobretudo, relacionados à qualidade do ensino
ministrado, mas entende-se que a formação de um hiato no formato educacional não se
apresenta como solução diante desse cenário, cabendo à família e ao Estado, cumprindo
seus deveres solidários, buscarem meios para a efetivação do direito à educação sem
promover uma modalidade elitista e excludente de ensino (PICOLI, 2020).
Ademais, cabe destacar que a escola é o local em que se desenvolve e
consolida a tolerância à diversidade, o respeito ao próximo, as habilidades
socioemocionais do indivíduo em fase de desenvolvimento e a consciência acerca do
Estado Democrático de Direito em que o aluno está inserido. Assim, independente do
argumento utilizado, privar a criança e o adolescente do acesso à educação em seu
sentido amplo é impedir a consolidação de um direito fundamental (PICOLI, 2020).
Portanto, considerando todos os prejuízos demonstrados, os quais afetam
diretamente o desenvolvimento da criança e do adolescente, infringindo não só o ECA,
mas também a Constituição Federal, conclui-se que não é possível a regulamentação do
ensino domiciliar no ordenamento jurídico brasileiro. De modo que tal regulamentação
representaria graves danos ao princípio da dignidade da pessoa humana, bem como ao
princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, retomando um pensamento
retrógrado acerca dos direitos fundamentais, impedindo sua efetivação e a manutenção
do Estado Democrático de Direito.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 166

22 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do trabalho, foi possível observar que o conceito de educação vai


muito além de mera instrução técnica, mas alcança patamares de extrema relevância,
considerando que constrói a consciência do aluno acerca de sua cidadania e do Estado
Democrático de Direito. Além disso, ao analisar o histórico do direito à educação nas
Constituições anteriores à Constituição Federal de 1988, verificou-se que a maneira com
que o Governo a maneja, reflete-se diretamente na sociedade.
Nesse sentido, é notável o avanço no tratamento que a educação recebe na atual
Constituição do Brasil, visto que é tratada como direito fundamental, sendo dever do
Estado proporcionar os mecanismos necessários para garantir seu amplo acesso a todas
as pessoas. Não só o direito à educação recebeu atenção especial na CF/88, como
também a criança e o adolescente, que tiveram a positivação e consolidação de seus
direitos através do texto constitucional e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nesse diapasão, inegável os ganhos relativos à criança e ao adolescente, haja
vista agora serem considerados indivíduos destinatários de direitos, recebendo proteção
especial do ordenamento jurídico brasileiro, conforme vê-se com adoção da Doutrina da
Proteção Integral e do princípio do melhor interesse como norteadores da legislação
relacionada a tais indivíduos.
Com o advento da pandemia do COVID-19, houve uma drástica mudança na
forma do ensino, que na maioria das escolas passou a ser na modalidade remota, o que
ocasionou um aumento no número de famílias interessadas no ensino domiciliar. Além
disso, em 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE888.815/RS, entendendo não
possuir competência para legislar sobre o assunto, a teor do artigo 22, inciso XXIV da
CF. Ademais, foi reconhecida a existência de repercussão geral, fixando-se a tese de que
não existe direito público subjetivo do aluno, ou de sua família, em relação ao ensino
domiciliar, uma vez que esse formato educacional não possui previsão na legislação
brasileira.
Importante ressaltar que existem diversos tipos de homeschooling, sendo que,
conforme mencionado pelo STF, somente a modalidade utilitarista seria eventualmente
possível no ordenamento jurídico brasileiro, pois é a única modalidade que permite que
a educação seja ministrada pela família sem excluir a fiscalização estatal.
Nesse sentido, frisa-se que há projetos de lei tramitando no Congresso,
destacando-se o PL 3179/12, o qual recentemente passou a tramitar de forma prioritária
e visa regulamentar o ensino domiciliar alterando o ECA, bem como a LDB. Outrossim,
alguns estados brasileiros criaram leis para tratar sobre a matéria, entretanto constatou-
se que todas elas possuem gravíssimo vício material, pois a matéria em pauta é de
competência da União.
Diante disso, buscou-se analisar se a regulamentação do ensino domiciliar
ensejaria prejuízos às crianças e aos adolescentes, verificando-se também a
possibilidade de sua interpretação sob o prisma do neoconstitucionalismo. Dessa forma,
ao percorrer o histórico dos três Códigos anteriores ao ECA, percebeu-se que a criança e
o adolescente não eram destinatários de direitos fundamentais, sendo que somente com
a CF/88, eles passaram a ser tratados sob o manto do princípio da dignidade da pessoa
humana.
Assim, o neoconstituciolismo, atual fase do movimento denominado
constitucionalismo, visa não só estabelecer limites ao Estado, mas também, exigir que
esse proporcione políticas públicas para que os direitos fundamentais sejam efetivados.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 167

Por isso, o Estado é responsável, juntamente com a família, por promover o acesso à
educação em seu sentido integral, ou seja, não só oferecer um ensino que consolide a
formação intelectual da criança e do adolescente, mas que permita seu desenvolvimento
como cidadão.
Entendeu-se que um dos desdobramentos do neoconsitucionalismo é a
interpretação do ordenamento jurídico através do princípio da dignidade da pessoa
humana, de maneira que no ECA esse traduz-se por meio do princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente. Outrossim, a efetivação do princípio da dignidade
da pessoa humana ocorre com a concretização dos direitos fundamentais, inclusive o
direito à educação. Considerando o narrado, tem-se que somente a educação
institucionalizada é capaz de proporcionar e efetivar o direito a educação à criança e ao
adolescente, pois é capaz de proporcionar uma formação integral.
Ademais, o ensino domiciliar representa um potencial risco ao aumento da
evasão escolar, que já possui indicativos alarmantes sobre o número de evasões no
contexto educacional do Brasil. Isso porque o ensino domiciliar poderia ocultar os casos
de evasão escolar, além de dificultar o mapeamento de alunos que evadem. Nesse
sentido, menciona-se o impacto do ensino domiciliar nas desigualdades sociais do
Brasil, pois essa modalidade educacional somente é viável para famílias que possam
arcar com as despesas oriundas da educação em casa, haja vista a necessidade de
materiais e atividades complementares.
Em um país com marcantes desigualdades sociais e uma grande variedade
cultural, não se mostra prudente permitir que os pais eduquem seus filhos em casa,
porque mesmo que no âmbito intelectual não apresente omissões, tornar-se-ia uma
educação elitista e excludente, fugindo dos pilares constitucionais da educação como
direito de todos.
Somado a isso, as crianças e os adolescentes matriculados na modalidade de
ensino domiciliar, enfrentariam maiores dificuldades em pedir ajuda caso fossem
vítimas de maus-tratos, pois seu vínculo social seria predominantemente ligado à
família. Indo ao encontro disso, o ECA coloca como responsabilidade do educador
comunicar aos órgãos competentes sinais de maus-tratos verificados nos alunos, de
modo que a escola, atualmente, posiciona-se como um fator importante de proteção da
criança e do adolescente.
Embora muitas famílias utilizem argumentos de que nas escolas há
disseminação de ideologias e crenças contrárias a seus valores, deve-se ponderar e
confrontar tais alegações considerando a existência de diversas escolas confessionais,
não-confessionais, que defendem ou não determinadas ideologias.
Existem ainda os que alegam que a educação nos moldes atuais é insuficiente
no quesito qualidade, mas, com certeza, buscar a regulamentação de uma modalidade
elitista não aponta para a solução do problema, uma vez que se faz necessária a união e
empenho da sociedade para que obstáculos possam ser solucionados no sistema
educacional. Desse modo, nenhum dos discursos predominantemente utilizados pelos
genitores possui o condão de justificar a regulamentação do ensino domiciliar no
ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, conclui-se que a regulamentação do ensino domiciliar no Brasil vai
de encontro à Constituição Federal, pois fere princípios norteadores do ordenamento
jurídico como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso,
fere o ECA, por conseguinte, a Doutrina da Proteção Integral e o princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente, haja vista o cerceamento do direito à educação
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 168

oriundo dessa modalidade. Ademais, a educação atua como uma ferramenta


conscientizadora da criança e do adolescente quanto à sua cidadania, seus direitos e do
Estado Democrático de Direito, de maneira que impedir que esses aspectos sejam
incentivados e trabalhados se mostra como um passo para o retrocesso, fazendo com
que a educação perca sua qualidade e importância, assim como foi feito nas
Constituições anteriores à Constituição Federal de 1988.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 169

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PARAÍSOS FISCAIS: OS PORQUÊS DE SUA EXISTÊNCIA EM UM MUNDO


GLOBALIZADO25
Algumas Análises Acerca de Refúgios Fiscais e Seus Reflexos nos Direitos
Tributário e Internacional

Maurício Felipe de Castro Batista Fernandes


Egresso do Curso de Direito da Unipampa
@hotmail.com

Prof. Me. Rodrigo Alexandre Benetti


Orientador
Docente do Curso de Direito da Unipampa
rodrigobenetti@unipampa.edu.br

RESUMO

O que são paraísos fiscais? De onde vieram? Como afetam o mundo? Estas são
apenas algumas perguntas que o presente trabalho enfrenta. O mesmo examina os
paraísos fiscais de forma neutra, imparcial, com intuito de compactar conhecimentos
comuns e utilizá-los para realização de estudos futuros. Alguns dos objetivos
manifestam-se por meio do desejo de desvendar e desmascarar equívocos comumente
associados aos paraísos fiscais, por meio de extensiva análise da historicidade,
concepção, desenvolvimento, aplicação, presença e impacto dos mesmos no mundo
contemporâneo. Portanto, o presente trabalho visa a síntese dos principais pontos
sobre a importante discussão acerca dos refúgios fiscais, mostrando explicitamente
como tais territórios não são uma inovação recente. A estrutura deste trabalho segue,
respectivamente: análise das origens e historicidade dos refúgios fiscais;
funcionamento dos refúgios fiscais e tributação; análise das vantagens dos refúgios
fiscais e empresas offshore; análise dos problemas criados pelos refúgios, e as
práticas imorais e criminosas que ocorrem neles; adentramento no cenário tributário
internacional e suas legislações; análise de propostas, materiais ou não, e como
afetariam os refúgios fiscais e a economia mundial; conclui-se com uma apresentação
das principais implicações e compilados deste trabalho. A metodologia do trabalho é
majoritariamente feita por meio de minuciosas pesquisas bibliográficas, visando
acumular dados para fundamentar o trabalho e formar espécie de acervo acadêmico
para futuras pesquisas. Há intuito de apresentar a temática proposta e os problemas
encontrados, afim de averiguar cabíveis soluções, tal como a permanência dos
refúgios fiscais no cenário econômico mundial e como acaba lhe afetando, por
exemplo. O método utilizado é principalmente dedutivo, uma vez que utiliza-se
premissas e estudos pré-existentes. No decorrer deste trabalho, descobre-se como os
paraísos fiscais vem se enraizando na economia internacional desde sua concepção,
como atuam no ambiente internacional, os benefícios que trazem (muitas vezes
omitidos dos olhos do mundo), os prejuízos que acarretam (tanto à pessoas quanto
países), e as tentativas de países e organizações internacionais (dando foco à OCDE e

25
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 176

ICRICT) de controlar estes locais por meio de medidas e tratados fiscais


internacionais, eventualmente concluindo que, por enquanto, não há solução
definitiva à estes espaços privilegiados, mas que deve haver renovado interesse na
temática para que isto possa eventualmente deixar de ser verdade.

Palavras-chave: Paraísos fiscais. Tributação. Direito internacional. Globalização.

ABSTRACT

What are tax havens? Where did they come from? How do they affect the world?
These are just some of the questions that this study tackles. Through examination of
tax havens in an impartial way, it seeks to compact common knowledge and offer it
for future studies. The objectives are clear: summarize the main elements of the
important discussion about tax havens and show how such territories are not a recent
innovation. The structure of this study is as follows, from beginning to end:
overview of the origins and history of tax havens; functioning of tax shelters and
taxation; analysis of the advantages of tax shelters and offshore companies; analysis of
the problems created by the refuges, and the immoral and criminal practices that
occur in them; entry into the international tax scenario and its legislation; analysis of
proposals, material or otherwise, and how they would affect tax havens and the world
economy; concluding with a presentation of the main implications and compilations
of this work. This study is mostly done through detailed bibliographic research,
reaffirming its goal to accumulate data and form a sort of useful collection. The study
also seeks to find out appropriate solutions to certain problems related to tax havens,
such as their presence and influence world, for example. The method used is mainly
deductive, utilizing pre-existing premises and studies; in the course of this study, it is
discovered how tax havens have been taking root in the international economy since
their conception, how they act in the international environment, the benefits they
bring, the financial losses they cause, and the attempts by countries and international
organizations to control these places through international tax measures and treaties,
eventually concluding that, for the time being, there is no definitive solution to these
privileged spaces, but that there must be a renewed interest in the subject so that this
may eventually cease to be true.

Keywords: Tax havens. Taxation. International law. Globalization


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 177

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca compreender e analisar os motivos da existência dos


chamados paraísos fiscais, além de investigar algumas das maneiras que
impactam o direito tributário em escala internacional. O paraíso fiscal, traduzido
do termo em inglês “tax haven”, é um termo aderido à Estados cujas leis
favorecem a injeção de capital estrangeiro por intermédio de empresas ou pessoas
físicas em seu meio através de alíquotas de tributação baixíssimas, senão
totalmente nulas ou inexistentes. Interessante estudar estes espaços por serem
fenômenos antigos que tem aumentado no âmbito atual, se tornando um assunto
contemporâneo importante, e há de mencionar desde já o objetivo de desmistificar
certas erroneidades acerca de comportamentos fiscais que são vistos
negativamente devido à notoriedade dos paraísos, mas são totalmente lícitos
(planejamento e elisão, por exemplo).
De imediato, salienta-se o uso de inflexões do termo, a fim de diversificar
o vocabulário deste trabalho, além de englobar, mais precisamente as variadas
facetas do assunto em mente (uma vez que diferentes autores utilizam diferentes
termos para referenciar os paraísos fiscais ou certos elementos dos mesmos),
capturando a essência deste conceito e mantendo o tom acadêmico. Ainda, o
termo “paraíso fiscal”, mesmo apresentando-se como maneira mais comum de
referenciar estes espaços privilegiados, possui uma conotação negativa que evoca
imediata aversão de muitos leitores, dada a reputação negativa que possuem,
elemento que também será mencionado neste trabalho; portanto, importante
pontuar que referências a estas jurisdições será feita por meio do termo “refúgios
fiscais”, que é devidamente intercambiável com “paraísos fiscais” e não prejudica
o trabalho de forma alguma26.

A origem destes territórios serve como o primeiro sedimento para que haja
compreensão acerca dos refúgios fiscais no mundo atual. No presente cenário
global, suas existências e utilidades não só se tornaram comuns, mas integram
importantes práticas econômicas modernas. Essas mesmas práticas têm, nos
últimos anos, acumulado atenção considerável da mídia e público internacional,
porém, remanesce o fato incontestável de que existem líderes (corporativos e
governamentais) que demonstram indiferença e até mesmo orgulho da existência
desses espaços privilegiados. Esses mesmos líderes acreditam que, contanto que
tais territórios e suas práticas não sejam expressamente ilegais não é, de maneira
alguma, errôneo usufruir dos mesmos para obtenção de benefício e lucro
próprio; ainda, na visão de alguns, sobre a questão empresarial por exemplo, é
responsabilidade da corporação para com seus acionistas fazer uso dessas práticas
para promover seu sucesso e garantir sua longevidade no mercado econômico.
Fundamentalmente, há concordância que os refúgios fiscais se tornaram
uma questão relevante em diversos espaços, sejam eles: econômico, social,
político, etc.; também vale mencionar sua presença na questão de gerenciamento
financeiro público, uma vez que alguns governos se beneficiam tremendamente da
existência dos refúgios, enquanto outros experienciam perdas econômicas

26
REIS, Arthur Harder; LOEBENS, João Carlos. A omissão das nomenclaturas tributárias: um breve
estudosobre os “paraísos fiscais”. Brasil: Instituto de Justiça Fiscal, 2019.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 178

significantes, o suficiente para exigir investigação e até mesmo policiamento.


Devido à importância crítica da emergência de sistemas de falência criados em
resposta às crescentes práticas capitalistas europeias e americanas, além do
aumento de grandes fluxos monetários adentrando os refúgios fiscais, fica
provável que a renovação dos conhecimentos acerca destes territórios é
imperativa, uma vez que reflete a nova realidade que vem revolucionando os
paradigmas organizacionais financeiros dos Estados em um mundo globalizado.
Portanto, este trabalho visa sintetizar os principais pontos sobre a
importante discussão acerca dos refúgios fiscais, mostrando explicitamente como
tais territórios não são uma inovação recente - pelo contrário, existem registros e
exemplos históricos com certa abundância e disponibilidade que indicam que os
refúgios fiscais são instrumentos desenvolvidos com a intenção de fomentar o
comércio, aumentar a mobilidade do capital e garantir lucros. Porém, a maioria
desses ganhos correlacionam-se diretamente com as perdas eprejuízos sofridos por
outros investidores. Ainda, denota-se as tentativas incessantes de instaurar
controle sobre as atividades e fluxos monetários dos refúgios fiscais, das quais
serão condensadas neste estudo para melhor compreensão e comparação, afim de
medir a eficiência destas medidas. Dada a força dos fluxos de capitais reais e as
graves consequências que a mobilidade destes tem para muitos investidores e
cidadãos em todo o mundo.

A estrutura deste trabalho apresenta-se da seguinte maneira: na primeira


seção, haverá análise das origens e historicidade dos refúgios fiscais; a segunda
seção adentra no funcionamento dos mesmos e um breve olhar no conceito de
tributação, por fins de melhor esclarecimento, entre outros informes; na terceira
seção, serão analisados os prós dos refúgios fiscais, além das empresas offshore,
que existem exclusivamente devido à estes Estados; na quarta seção, serão
analisados os problemas criados pelos refúgios, com foco importante nas práticas
imorais e criminosas que ocorrem por meio destes locais, agindo então como
antônimo da seção anterior; na quinta seção, se adentrará nas legislações vigentes
pertinentes ao assunto, buscando também uma espécie de introspecção do cenário
tributário internacional; a sexta seção intenciona análise de proposições existentes,
materiais ou não, afim de selecionar exemplos que possuem potencial de melhor
equilibrar os elementos inerentes dos refúgios fiscais que afetam a economia em
escala mundial; conclui-se com uma apresentação das principais implicações e
compilados deste trabalho.
Na parte teórica, a metodologia do trabalho será realizada através de
minuciosas pesquisas, de natureza documental, acadêmica e bibliográfica, entre
outros, com propósito de acumular dados suficientes para fundamentar
efetivamente o tema em questão. Do lado crítico, preza sempre a inserção de
diversas fontes acadêmicas, assim como artigos científicos e livros relevantes,
necessitando-se nesse caso um compilado mais internacional, assim como exame
da forma de acordos e tratados internacionais firmados em matéria tributária, das
quais serão devidamente especificadas ao longo do trabalho. Há intuito de
apresentar a temática proposta e os problemas encontrados, afim de averiguar
cabíveis soluções, tal como a permanência dos refúgios fiscais no cenário
econômico mundial e como acaba lhe afetando, por exemplo. O método utilizado
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 179

é principalmente dedutivo, haja vista que o trabalho baseia- se em premissas e


estudos pré-existentes, a análise e aplicação destes dando origem às respostas das
perguntas alavancadas ao longo deste estudo.
Tais conhecimentos adicionalmente irão atenuar a complexidade da
pesquisa, tornando-a mais digerível ao acadêmico interessado; além disso,
auxiliará na obtenção de dados de países relevantes ao assunto e como são
afetados pelos refúgios fiscais, ou como tornaram-se refúgios fiscais. Portanto,
insere-se o tema na imediata atualidade, apresentando ao restante do mundo uma
realidade diferente acerca dos refúgios fiscais e, em certo momento, como o
Brasil é afetado pelos mesmos, bem como a relevância das informações
apresentadas para que haja sucesso definitivo na tentativa de se desemaranhar,
mesmo se apenas parcialmente, a ininteligibilidade que é inerente ao tópico de
refúgios fiscais, devendo assim haver certa condensação da matéria em mãos sem
que se perca excessivo valimento.

Menciona-se o desejo desta pesquisa em abrir os olhos dos leitores, para


que estes possam enxergar mais claramente a realidade dos refúgios fiscais,
focando na imparcialidade e fugindo das conceituações e ideias genérica
comumente atribuídos a estes locais, necessitando compreender que há falta de
interesse do cidadão em buscar e questionar estes posicionamentos ferozmente
contrários à existência dos refúgios fiscais, uma vez que a reprovação pública
destes locais é majoritariamente ditada por mídias populares que tecem narrativas
específicas com intuito de cimentar estas noções exageradas sobre os refúgios
fiscais. Necessário, portanto, o leitor poder apurar suas próprias conclusões sobre
a temática, sem necessidade de sua curiosidade ser alimentada por instrumentos
governamentais e personalidades privadas que propositalmente difundem
informes imprecisos como forma de propagar ignorância ou omitir valiosos dados
por motivos de má-fé.
Por fim, vale frisar a importância de certa iniciativas internacionais,
manifestadas em forma de organizações e tratados internacionais (principalmente)
que visam utilizar do meio jurídico para buscar aplicar alguma forma de
regulamento dos refúgios fiscais, por motivos diversos; há necessidade de
mediação das ilicitudes ocorridas por meio destas jurisdições, porém possível que
possa ser feita sem ocasionar uma abolição dos refúgios fiscais, ocorrência que
certamente poderia resultar em radicais mudanças para o cenário econômico
mundial, para melhor ou pior.

1. ANÁLISE GERAL DOS REFÚGIOS FISCAIS


Em primeiro momento, cabe aprofundar acerca da origem dos espaços
privilegiados que vem tornando-se cada vez mais populares no ambiente
econômico mundial, servindo como importante alicerce para compreensão da
temática abordada. Em geral, os refúgios fiscais tornaram-se instrumentos
poderosos na economia contemporânea, integrando práticas econômicas e até
mesmo inspirando novas, para melhor ou pior. A simples existência destes
territórios tem moldado o mercado internacional e alterado, em algum grau, o
progresso deste mesmo. Portanto, cabe devida análise e estudo do tema.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 180

1.1 História e Origens


Como constado previamente, o “paraíso fiscal” é uma ocorrência
recorrente na história, com primórdios nos anos a.C. As fontes de tal manifestam-
se através de comportamentos anti-tributários, tais quais manifestam-se de formas
tão variadas quanto a imaginação humana lhe permitem. Ou seja, aparentemente
nada pode impedir o ser humano em sua tentativa de evitar taxação. Neste sentido,
utiliza-se das palavras de Ricardo Jorge Rocha da Silva27, para melhor esclarecer e
suportar este ponto:
Efetivamente, não se estaria a exagerar se se dissesse que os
paraísos fiscais surgiram praticamente com o imposto. O
ser humano sempre teve a necessidade e a habilidade de
encontrar um ‘antídoto’ para cada problema. Assim, se por
um lado existe a necessidade económico- social de pagar os
impostos, por outro lado procurou-se quase de imediato
formas de fugir a tais responsabilidades.

Pois bem, há dificuldade em determinar precisamente as origens do refúgio


fiscal, Alguns historiadores desvendaram o conceito no leito da civilização
europeia, a antiga Grécia, uma vez que registros históricos denotam as práticas de
mercadores para evitar tributação por meio do armazenamento de suas
mercadorias em territórios vizinhos de Atenas, especificamente pequenas ilhas,
efetivamente enganando os coletores de impostos atenienses e assegurando lucro
maior aos mercadores que teriam evadido os impostos de importações e
exportações.
Existe apoio maior à essa teoria por meio dos acervos da associação
“Plate-forme Paradis Fiscaux et Judiciaires”, notando que as primeiras instâncias
oficiais aconteceram com a Ilha de Delos por volta do ano 166 a.C.; ocorre que a
ilha praticava uma forma de comércio que era livre de impostos e taxas. Devido à
sua localização geográfica, tornou-se centro importante para a troca e venda de
marfim, vinhos, especiarias e trigo.
Importante notar a existência, desde esta época, do desejo de preservação
e/ou maximização dos lucros pessoais, haja vista que toda sociedade com um
sistema monetário usualmente possui impostos, e estes impostos acabam por criar
o desejo de manter suas riquezas intactas, intocadas pelas mãos governamentais.
Adiante, durante a Idade Média, o mesmo princípio de liberdade do pagamento de
qualquer espécie de imposto aplicava-se à certas cidades, conhecidas
popularmente como “cidades livres”, além de portos e feiras específicas; essas

27
SILVA, Ricardo Jorge Rocha da. PARAÍSOS FISCAIS. Portugal: Instituto Superior de Contabilidade
e Administração de Lisboa, 2012.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 181

práticas comerciais limitavam-se apenas aos limites geográficos dos territórios em


questão e a duração das feiras28.
Outros fatos históricos e localidades de significância seriam os Países
Baixos (que ainda eram apenas uma província da Espanha na época) durante os
séculos XVI à XVIII, pela taxa de impostos mínima que possuíam em comparação
aos outros Estados europeus da época. Também, a utilização da América Latina
como refúgio fiscal pelos colonizadores americanos por volta de 1721, que
buscavam maneira de evitar o pagamento de tributos à Inglaterra, taxas das quais
cresciam de maneira incessante, tomando caráter abusivo e servindo como motivo
de insatisfação e rebelião dos americanos. Por fim, ainda nos EUA, década de 10,
o termo “paraíso fiscal” era utilizado em referência às práticas de lavagem de
dinheiro; por fim, por volta da década de 20, uma nova geração de refúgios fiscais
surgiu em regiões como o Bahamas, Suíça e Luxemburgo, permitindo à
estrangeiros uma escapatória da tributação por meio do depósito de seus capitais
nestes territórios.
Com isso, estabelece-se que a história dos refúgios fiscais, especialmente
recentemente, não possui uma trajetória linear ou contínua, mas sim constrói-se
em rupturas e mutações econômicas em diferentes locais e épocas; grandes
desenvolvimentos destes territórios ocorrem durante dois momentos
importantíssimos na história da globalização (conhecido como mundialização
pelos franceses) econômica moderna: a primeira no século XIX, com a expansão
do capitalismo, e a segunda no século XX, após a Segunda Guerra Mundial. Nos
últimos 30 anos, os refúgios fiscais tem crescido exponencialmente, tanto em
quantidade quanto em importância, tal crescimento ocorrendo como consequência
direta da liberalização e desregulamento a esfera financeira que iniciou na década
de 8029.

No presente momento, para muitos, o termo “paraíso fiscal” evoca uma


visão de ilhas tropicais nos fins do mundo, onde apenas os ricos tem domínio;
porém, considerando o fato de que o capital encaminhado e acumulado nestes
territórios tem sido cada vez mais importante, esta noção tornou-se um
estereótipo incoerente e desalinhado com a realidade. Segundo os dados providos
pelo Banco de Compensações Internacionais, os valores presentes nos refúgios
fiscais em qualquer dado momento representam cerca de 50% do fluxo financeiro
internacional, suas origens cada vez mais diversas, levando a consequências
dramáticas em diversas perspectivas e setores do mundo30. Em suma, os refúgios
fiscais possuem história que excede a suposição de muitos, expondo desde já uma
precariedade ou brecha no conhecimento comum acerca destas regiões do mundo.

28
Exemplos proeminentes seriam Saint-Denis, Lyons, Brie-Comte-Robert, e outras regiões
europeias. Enfim,entre os séculos VII à XIV, estas noções perduram fortemente na sociedade
medieval da época.
29
PALAN, R.; CHAVAGNEUX, C. Les Paradis Fiscaux. France: La Découverte, 2007, p. 28-43.

30
LITWAK, Martin. Paraísos fiscales e infiernos tributarios: una mirada diferente sobre las
jurisdicciones offshore y la competencia fiscal. United States: Independently Published, 2020.
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Porém, um fato irrefutável, indubitável, sobre esses refúgios é a sua existência,


que perdurou, perdura e perdurará ainda por um tempo imensurável, mesmo se a
oposição a eles cresce a cada dia que passa.

1.2 Os porquês de sua existência


Necessariamente, deve-se aprofundar um pouco mais nas causas que
permitem os refúgios fiscais existirem, tal relato sendo feito de forma sumária
neste trabalho; onde pode ser atribuída tal responsabilidade, de maneira
generalizada, a um culpado primordial: a lei da oferta e demanda. Elabora-se, uma
vez que esta lei engloba uma série de elementos, fatores, correntes de pensamento
e filosofias que não necessitam de citação, uma vez que não interessam o assunto;
simplesmente, deve-se olhar ao conceito mais básico capitalista, que nada mais é a
obtenção de lucro e acumulação de riquezas.
Ocorre que, no caso dos refúgios fiscais, sua existência é consequência do
desejo de facilitar o acúmulo de capital por qualquer meio necessário, o que inclui
a infração de leis e normativas previamente estabelecida. Por meio desta
conceituação, identifica-se práticas e manobras que encaixam-se nesta mesma
categoria, ou seja, que visam a proteção de capital de agentes governamentais, tais
como: elisão e evasão fiscal, competição tributária, entre outros. Portanto,
corretíssimo afirmar que estas ideias foram semeadas no momento em que o
conceito de imposto foi elaborado e introduzido à sociedade; segue entendimento
de Adam H. Rozenweig31, professor e especialista em questões de comércio e
taxação internacional, acerca de alguns porquês da existência destes refúgios
fiscais:
A princípio, esta parece ser uma pergunta extremamente
óbvia – impostos. Paraísos fiscais existem porque os países
usam suas leis tributárias para atrair negócios, seja como um
meio de aumentar o crescimento econômico ou maximizar a
receita tributária, ou ambos. O problema com esta resposta é
que a literatura estabeleceu razoavelmente bem que ela deve
estar incorreta ou irracional: primeiro, usando os impostos
como meio de competir com outros países sobre o
investimento empresarial geralmente não beneficia um
crescimento econômico de longo prazo do país, e segundo,
paraísos fiscais geralmente não tem adotado taxas de
maximização de receita ou ficaram engajados em um
comportamento teórico de maximização de receita. Então,
os paraísos fiscais tem meramente agido irracionalmente e
contrariamente aos seus próprios interesses econômicos e
fiscais de longo prazo, talvez capturados por grupos de
interesse indiferentes aos danos que estão impondo à
mundo, ou há algum outro fenômeno subjacente em jogo?

31
ROSENZWEIG, Adam H. Why are there tax havens? United States: William & Mary
Law Review 923,2010, p. 929-930.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 183

Inúmeros são os motivos e causas da existência dos refúgios fiscais, porém


a partir desses conhecimentos acadêmicos, é possível enxergar uma condensação
destes em uma proposição mais simplificada: os refúgios fiscais existem
paralelamente ao sistema tributário internacional devido à demanda de agentes
que visam defender seus capitais da aparente moléstia causada por impostos, além
da necessidade de geração de fluxo monetário de certos países que não possuem
recursos ou estruturas suficientes para sustentarem-se sem desempenhar o papel
de refúgio, gerando oferta à intermitente demanda.
Atualmente, cerca de 15% de todos os Estados existentes podem ser
caracterizados como refúgios fiscais não-cooperativos, isto é, recusam aderir às
iniciativas internacional que confrontam suas atividades e funcionamento32. Por
meio de observação minuciosa, nota-se que esses Estados tendem a ser pequenos e
afluentes. Ainda, identifica-se regularidade empírica e robusta, isto é, o fato de
que países com governos de melhor qualidade e estrutura possuem maior
probabilidade de tornarem-se refúgios fiscais, esta chance estatisticamente
aumentando até 50% dependendo da qualidade do governo, o que diretamente
impacta a legislação tributária do país e aumentando o alcance de políticas
taxativas, contribuindo ainda à transformação do território em refúgio fiscal33.

2. COMO (E QUAIS) PAÍSES SE TORNARAM REFÚGIOS FISCAIS?


A partir da compreensão de algumas das causas de existência dos territórios
privilegiados, inexcusável omitir a realidade destes mesmos Estados que se
tornaram refúgios de forma progressiva e deliberada. A realidade em questão
manifesta-se em análise de Ricardo Jorge Rocha da Silva34, o mesmo deixa claro
que “A verdade é que muitos países ou territórios devido às suas condições
geográficas ou climatéricas só conseguem sobreviver, isto é, atrair investimento,
desta forma.” Logo, muitos destes países são forçados a tornarem-se refúgios
fiscais, uma vez que são impedidos por suas condições geoclimáticas, suas
localizações ou simplesmente não possuem recursos (naturais ou não) para
sustentarem si próprios e suas populações; então, por questão de sobrevivência,
são forçados a atrair investimento estrangeiro, custe o que custar.
Continua seguindo linha de raciocínio semelhante, apontando35:
[...]o território das Bahamas sofre de intempéries. Quando o
território é assomado por um ciclone, o que acontece amiúde,
provoca grandes e graves estragos. Assim, este território “precisa”
ser um paraíso fiscal, visto que é a única forma de atrair algum
investimento. Se este território não oferecesse taxas reduzidas e

32
OCDE. Towards Global Tax Cooperation: Progress in Identifying and Eliminating Harmful Tax
Practices. France: OECD Publishing, 2000, p. 17.
33
DHARMAPALA, Dhammika; HINES JR., James R. Which Countries Become Tax Havens? United
States: NBER Working Paper Series, 2006, p. 1-3.
34
SILVA, Ricardo Jorge Rocha da. PARAÍSOS FISCAIS. Portugal: Instituto Superior de
Contabilidade e Administração de Lisboa, 2012, p. 9.
35
Idem, 2012, p. 9.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 184

outras vantagens fiscais, provavelmente não teria qualquer tipo de


investimento. Como o território das Bahamas, existem muitos
outros territórios que se encontram na mesma situação.

Ainda, alavanca-se a necessidade de acatar as condições sociopolíticas e


geoclimáticas da região em que se encontra os territórios fiscais analisados; o mero
dispensar das possíveis tribulações experienciadas pelos Estados em questão acaba
por transmitir uma ignorância de tópico que possui peso próprio na discussão
sobre refúgios fiscais, por mais que seja percebido como menor ou até mesmo
insignificante no cenário acadêmico maior. Portanto, estabelecido um dos
indispensáveis motivos pelo qual certos países optam por adquirir e manter o
status de refúgio fiscal; porém, ainda existem mais camadas intrigantes a serem
investigadas, por exemplo, os paralelos entre a qualidade da governança de um
país e suas chances de sucesso no papel de paraíso fiscal.
Anteriormente mencionados, Dhammika Dharmapala, economista e
professor de Direito na Escola de Direito da Universidade de Chicago, e James R.
Hines Jr., economista e fundador da pesquisa acadêmica em refúgios fiscais
focados nas empresas, relatam importantes etapas acerca da deliberação e
transformação de um país em território fiscal privilegiado, entre outros assuntos
pertinentes. Os mesmos relatam36:
Por que os países mais bem governados são mais propensos
do que outros a se tornarem paraísos fiscais? Uma
possibilidade é que os retornos adquiridos ao se tornar um
paraíso fiscal sejam maiores para países bem governados,
uma vez que os fluxos de investimento estrangeiro mais
elevados, e os benefícios económicos que os acompanham,
tendem a acompanhar mais as reduções de impostos em
países bem governados do que as reduções de impostos em
países mal governados. Nesta interpretação, os países mal
governados não renunciariam potenciais benefícios
econômicos ao decidirem por não se tornarem paraísos
fiscais, uma vez que poucos ou nenhum dos benefícios
fluiriam para eles neste caso.
Neste sentido, possível compreender que a quantia de fluxo de
investimento estrangeiro seria diretamente afetada pela qualidade do governo de
um país, algo melhor averiguado pelos autores quando analisado o cenário
econômico estadunidense:
Esta possibilidade é melhor sedimentada devido à evidência
do comportamento das empresas americanas, que é
consistente com esta explicação, em que as diferenças de
alíquotas de impostos entre países bem governados estão
associadas a muito efeitos maiores sobre os níveis de

36
DHARMAPALA, Dhammika; HINES JR., James R. Which Countries Become Tax Havens?
United States: NBER Working Paper Series, 2006. p. 1-2.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 185

investimento nos Estados Unidos do que as diferenças de


alíquotas de impostos entre países mal governados. Existe
uma literatura teórica substancial sobre os fatores que
influenciam o desejo de tornar-se um paraíso fiscal (por
exemplo, Slemrod e Wilson, 2006)37.
Dá-se ênfase especial à menção de Slemrod e Wilson, autores cuja obra38
também auxilia na construção desta seção do trabalho; a obra em questão detalha
minuciosamente pesquisas realizadas com objetivo de justificar a eliminação
parcial ou total dos refúgios fiscais, argumentando que isto iria melhorar o bem-
estar em países que não se enquadram na categoria de paraíso fiscal. Mesmo se
parcial, o estudo oferece uma estrutura desenvolvida para analisar a quantia de
recursos gastos pelos refúgios e pelos Estados, que se encontram “travados em
combate” para assegurar lucro e minimizar conflito e prejuízo. Logo, útil frisar
que a literatura teórica acerca do nascimento e trajetória de refúgios fiscais existe
em abundância; por fim, os autores concluem com novos elementos pertinentes:
A evidência empírica apresentada neste artigo sugere que as
escolhas de política fiscal são implicitamente limitadas pela
qualidade da governança. A análise complementar
[...]identifica um grande efeito negativo da qualidade da
governança nas alíquotas do imposto corporativo,
acrescentando assim a uma literatura crescente sobre os
determinantes dessas taxas. [...] A análise do investimento
por empresas americanas [...]sugere que a qualidade da
governança é um determinante importante, e até agora
amplamente negligenciado, da elasticidade do investimento
estrangeiro. Assim, parece que as políticas fiscais podem
ser adicionadas à crescente lista de políticas económicas
susceptíveis de serem influenciadas pelas instituições de
governação39.
Assim, estabelecida outra razão que melhor esclarece a automodificação de
um país em refúgio fiscal, adentra-se a outro ponto que merece atenção: a
competição incessante entre Estados para assegurar investimento de empresas
multinacionais ou, em outras palavras, a necessidade de otimização da situação
fiscal para atrair investimento estrangeiro. Esta matéria é, discutivelmente, a mais
importante, uma vez que não só serve como baluarte argumentativo, pois é
informação empírica colhida repetidamente desde a década de 60 até o presente,

37
Idem, 2006, p. 2-3.
38
SLEMROD, J.; WILSON, J. D. Tax Competition with Parasitic Tax Havens. United States: NBER
Working Paper 1222, 2006, p. 4.
39
DHARMAPALA, Dhammika; HINES JR., James R. Which Countries Become Tax Havens?
United States: NBER Working Paper Series, 2006, p. 3-4.
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mas também contextualiza a transformação e subsequente categorização de um


país em refúgio fiscal40.
Este fenômeno corre da seguinte maneira: nas últimas décadas, em
decorrência da crescente demanda e importância de interesse e investimento de
empresas multinacionais, que são vistas pelas jurisdições do mundo como
oportunidades de obtenção de capital líquido em troca de seus recursos. Pois o
benefício do valor injetado é, para alguns Estados, indispensável, pois tratam-se
potencialmente de bilhões de dólares que circulariam o mercado interno do país.
Exemplos desses recursos variam, desde naturais como petróleo e gás natural, à
simplesmente terrenos disponíveis. Esta competitividade então surge para
beneficiar estas empresas, que simplesmente visam investir na região com tributos
mais baixos, uma das principais motivações que possibilitam o maior lucro
possível.41
Em contraste, os países são postos em uma espécie de dilema: se
diminuírem seus tributos demais, sua infraestrutura e logística irão se tornar
dependentes de constantes investimento, o que progressivamente lhe moldaria em
um tipo de refúgio fiscal; por outro lado, se manterem os tributos altos demais,
arriscam o desinteresse e perda dos investimentos estrangeiros, tais como os
trazidos pelas mencionadas empresas multinacionais. Para melhor perspectiva,
segundo as estatísticas disponibilizadas pela revista Fortune Global 500, as cinco
empresas mais lucrativas do mundo possuem rendimento consolidado total de
cerca de 1,9 bilhões de dólares. Nesta mesma vertente, as dez maiores, juntas,
possuem total de 3,2 bilhões, e as 50 maiores, juntas, possuem total superior à 6
trilhões42.
Logo, indiscutível é o interesse de todos os Estados no investimento de
multinacionais, e se a transição à refúgio fiscal acrescentaria às chances de sucesso
deste empreendimento, sendo um caso onde a potencial recompensa supera os
riscos. Para concluir, Frederick Mario Mason comenta sobre a OCDE e suas
denominações de “concorrências fiscais prejudiciais”, em seu artigo científico43:
A OCDE elaborou uma lista indicativa do que considera
atos de concorrência fiscal prejudicial. Na maioria das
questões econômicas, a OCDE é plenamente favorável a
concorrência, mas quando o assunto é tributação, a sua linha
muda. De qualquer modo, devem ser levadas em conta as
seguintes características, segundo a OCDE, a fim de
perquirir se há concorrência fiscal prejudicial: 1) Se as
vantagens são concedidas exclusivamente a não residentes

40
PALAN, R.; MURPHY, R.; CHAVAGNEUX, C. Tax Havens: How Globalization Really
Works. UnitedStates: Cornell University Press, 2010, p. 26-27.
41
SINGH, Tarlok. Does International Trade Cause Economic Growth? A Survey. United Kingdom:
TheWorld Economy, 2010, p. 1532-1536.
42
Dados disponíveis no site https://fortune.com/global500.

43
MASON, Frederick Mario. CONCORRÊNCIA FISCAL INTERNACIONAL E PARAÍSOS
FISCAIS. Brasil: Revista do Mestrado em Direito, 2008, p. 139.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 187

ou para transações realizadas com não- residentes; ou 2) Se


as vantagens são totalmente isoladas da economia interna,
sem incidência na base fiscal nacional; ou 3) Se as
vantagens são concedidas mesmo que não exista qualquer
atividade econômica real nem qualquer presença econômica
substancial no Estado- membro que proporciona essas
vantagens fiscais; ou 4) Se o método de determinação dos
lucros resultantes das atividades internas de um grupo
multinacional afasta-se dos princípios geralmente aceitos
internacionalmente, em particular, as regras aprovadas pela
OCDE; ou 5) Se as medidas fiscais carecem de
transparência, principalmente quando as disposições legais
forem aplicadas de forma menos rigorosa e não transparente
em nível administrativo.
Por tal informação exposta, os países que tornam-se refúgios fiscais são
aqueles depravados de recursos naturais (ou sofrem, de alguma maneira, devido à
suas condições geoclimáticas que são naturalmente inalteráveis), com exemplos
nas Ilhas Cayman, nos Bahamas e nas Bermudas, todos situados no Caribe;
aqueles que possuem governos de maior qualidade e delimitações territoriais
menores, com exemplos em Luxemburgo, nos Países Baixos e na Suíça, todos
situados na Europa; e finalmente, aqueles que participam ativamente da
concorrência tributária internacional, buscando investimento estrangeiro através
da diminuição ou erradicação de taxas tributárias em seus meios, com exemplos
na Singapura e Hong Kong, ambos situados no sudeste da Ásia. Existem,
claramente, outras circunstâncias que expõe um quadro diferenciado de países que
atualmente são refúgios fiscais, porém a grande maioria tende a enquadrar-se em
ao menos uma das distinções relatadas acima.
2.1 Funcionamento e tipos

Como já estabelecido, os refúgios fiscais possuem papel essencial na


economia mundial, atuando para o benefício ou detrimento de qualquer e todo
agente, privado ou público, que toma parte no mercado contemporâneo. Tal
análise muitas vezes levanta a questão, “como funcionam esses espaços?” Da
maneira mais simples possível, os refúgios fiscais permitem que pessoas físicas
(empresários, por exemplo) e jurídicas façam transações bancárias com as
instituições locais do país para evitar, totalmente ou parcialmente, o pagamento de
impostos do país de origem sobre ganhos ou lucros obtidos. Porém, a prática
também se estende a pessoas jurídicas, na forma de empresas offshore, que serão
analisados ainda neste estudo.
Diante disto, é factual que os refúgios fiscais oferecem benefício de pouca
ou nenhuma responsabilidade fiscal e os proprietários de empresas ou
consumidores que possuem capital considerável geralmente não precisam ser
cidadãos para aproveitar esse tipo de brecha fiscal. Como resultado dessa
estrutura, estes indivíduos mais fortunosos pagam pouco ou até nenhum imposto
sobre seus lucros ou finanças pessoais. Para descrever melhor como os refúgios
fiscais funcionam, vamos considerar a taxa de imposto corporativo atual dos EUA,
que é de 21%, conforme prescrito pela Lei de Cortes de Impostos e Empregos de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 188

2017. As organizações que estão sediadas ou geram lucros nos EUA são obrigadas
a pagar o imposto 21% sobre seus lucros. No entanto, usando um paraíso fiscal, as
empresas podem transferir lucros para subsidiárias em países de refúgios fiscais
identificados e aproveitar essa brecha para reduzir ou até eliminar sua
responsabilidade fiscal e evitar ter que pagar a alíquota de imposto corporativo de
21% sobre alguns ou todos os seus lucros. Além disso, muitos territórios fiscais
não fornecem detalhes financeiros às autoridades fiscais fora de suas fronteiras44.
O CTHI (Índice de Paraísos Fiscais Corporativos) inclui um ranking dos
principais refúgios fiscais usados por corporações multinacionais na atualidade.
Esses países têm o tipo de jurisdições fiscais atraentes que limitam a
responsabilidade fiscal e permitem que as empresas paguem pouco ou nenhum
imposto sobre seus lucros offshore. De acordo com o IPFC, os principais refúgios
fiscais incluem: Ilhas Virgens Britânicas; Bermudas; Ilhas Cayman; Países
Baixos; Suíça; Luxemburgo; Jersey, uma dependência do Reino Unido nas Ilhas
do Canal; Singapura; Bahamas; Hong Kong; muitas destas, aliás, já foram
mencionadas anteriormente no presente trabalho.45
Com esta noção de funcionamento saciada, brevemente deve ser explanada
acerca de certas personalidades que usufruem dos refúgios fiscais, pois a noção
comum é que apenas grandes corporações fazem uso destes territórios, porém
existe abundante evidência do investimento de pessoas que são ricas, mas em
qualquer outra faceta são “normais”; isso inclui até mesmo dentistas e pelo
menos um verdureiro do Alabama. Estes utilizam empresas de fachada, por
motivos que podem incluir tornar mais difícil para potenciais credores – incluindo
ex-cônjuges, parceiros de negócios descontentes ou inspetores fiscais – identificar
e recuperar dinheiros supostamente devidos. Políticos, celebridades e CEOs
compõem parte da lista de nomes em negrito que o ICIJ vinculou a empresas de
fachada. Quando notificados, alguns destes dizem que nem sabem que investiram
no exterior46.
Agora, importante discorrer sobre os tipos de refúgios fiscais presentes;
podemos agrupar as várias formas de refúgios fiscais em quatro grupos principais:
possessões historicamente ocidentais, nações soberanas, países controlados por
cartéis e Estados emergentes. As principais razões pelas quais os países podem ser
rotulados de refúgios fiscais também podem variar. Como Smith argumenta, esses
países muitas vezes sofrem de um caso de “reminiscência mercantilista” – seus
governos acreditam que é melhor ter grandes quantias de dinheiro depósitos em
bancos locais; portanto, esses governos iniciam uma corrida fiscal competitiva que
podem gerar alíquotas 'negativas', que, na prática, se traduzem em uma propensão
de pagar para receber investimentos.47

44
GRAVELLE, Jane G. Tax Havens: International Tax Avoidance and Evasion. United States:
University ofChicago Press, 2010, p. 11.
45
Informação disponível no site https://cthi.taxjustice.net/pt/
46
Informação relatada nos “Paradise Papers”, conjunto de 13,4 milhões de documentos eletrônicos
confidenciais de natureza fiscal que foram enviados ao, e distribuídos pelo, jornal alemão Süddeutsche
Zeitung,que compartilharam com o ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) para
publicação. Desde 2016 até o presente, detalhes e histórias tem sido divulgados ao mundo.
47
SMITH, J. Economic Democracy: The Political Struggle of the Twenty- First Century.
Slovenia: TheInstitute for Economic Democracy, 2005, p. 12-14.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 189

Embora esta abordagem seja mais frequentemente expressa nas duas


primeiras variedades de territórios fiscais (historicamente possessões ocidentais e
nações soberanas), as outras também podem apresentar tendências pró-
mercantilistas. Nas nações soberanas, além da reminiscência mercantilista, a
necessidade de financiar sistemas financeiros ou requisitos para recursos
financeiros também parece influenciar as decisões de reduzir os impostos sobre o
capital para atrair dinheiro de agentes no exterior.

A terceira variedade de refúgios fiscais, países controlados por cartéis, existe


para servir a uma função diferente. Como sugerido por Killebrew e Bernal48, esses
países tendem aser usados para lavagem de dinheiro; os processos pelos quais isso
ocorre são muito complexos e difíceis de sistematizar, porém, em sua forma mais
simples, esses tipos de refúgios fiscais recebem moeda impressa de mercados negros ou
economias paralelas (drogas, armas, prostituição, etc.) e injetam este dinheiro no sistema
financeiro nacional por meio de depósitos locais. Finalmente, os membros do quarto
grupo, economias em desenvolvimento, se beneficiam de diferentes vantagens
relacionadas a serem caracterizadas como refúgiosfiscais.
‘O dinheiro que elas recebem tendem a ser desviados pelos titulares na forma de
rendas políticas, mas há também externalidades positivas para a população em
geral. Rikowski49 mesmo sugere que a opção de paraíso fiscal leva a efeitos
positivos na educação local; e Maurer50 observou que os refúgios fiscais criam, de
fato, empregos locais e aumentam as receitas públicas. Os sistemas financeiros
provenientes das economias de refúgios fiscais tendem a ser mais sólidos.
Adiante, colhe-se compreendimento diferenciado, a partir da tipificação elaborada
e disponibilizada pela OCDE; um grupo de 37 países desenvolvidos com sede em
Paris, a OCDE usa três atributos principais para identificar se uma jurisdição é um
refúgio fiscal, delimitadas abaixo.
Acerca da categoria de “nenhum imposto ou apenas impostos nominais”,
deve-se dizer em primeiro lugar que os refúgios fiscais optam por imposição de
nenhum imposto ou apenas de impostos nominais. A estrutura tributária varia de
país para país, mas todos os territórios fiscais se oferecem como um lugar onde os
não residentes podem escapar de altos impostos colocando seus ativos ou negócios
nessa jurisdição. Diferentes refúgios fiscais são populares para descontos em
diferentes tipos de impostos51. Mas esse atributo por si só é insuficiente para
identificar um paraíso fiscal. Muitos países bem regulamentados oferecem

48
KILLEBREW, B.; BERNAL, J. Crime Wars - Gangs, Cartels and U.S. National Security.
United States:Center for a New American Security, 2010, p. 40-41; p. 44-45.
49
RIKOWSKI, G. Globalisation and Education. London: House of Lords Select
Committee on EconomicAffairs Inquiry into the Global Economy, 2002.
50
MAURER, B. Creolization Redux: The Plural Society Thesis and Offshore Financial
Services in theBritish Caribbean. Caribbean: New West Indian Guide, 1997, p. 249-264.
51
OCDE. Towards Global Tax Cooperation: Progress in Identifying and Eliminating
Harmful TaxPractices. France: OECD Publishing, 2000. Pág. 10.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 190

incentivos fiscais para atrair investimentos externos, mas não são classificados
como refúgios fiscais.52
Depois, temos a categoria de “falta de troca efetiva de informações”,
reforçando que os refúgios fiscais protegem zelosamente as informações
financeiras pessoais. A maioria dos refúgios fiscais tem leis formais ou práticas
administrativas que impedem o escrutínio das autoridades fiscais estrangeiras.
Não há, ou há um compartilhamento mínimo, de informações com autoridades
fiscais estrangeiras53. A terceira e última categoria seria a “falta de transparência”.
Em um paraíso fiscal, existe sempre mais do que se aparenta. A máquina
legislativa, jurídica e administrativa de um paraíso fiscal é opaca. Sempre há
chances de decisões secretas a portas fechadas ou alíquotas de impostos
negociadas que falham no testede transparência54.
Mas isso não é tudo, pois além dos três atributos mencionados, o United
StatesGovernment Accountability Office (GAO) listou dois atributos adicionais de
um refúgio fiscal55 da seguinte maneira: a “presença local não necessária” dita que
os refúgios fiscais normalmente não exigem que entidades externas tenham uma
presença local substancial 56. Tal concessão pode levar a situações interessantes;
por exemplo, um relatório do GAO, em 2008, descobriu que um prédio nas Ilhas
Cayman abrigava 18.857 empresas, a maioria internacionais. Isso sugere que você
pode reivindicar benefícios fiscais simplesmente pendurando sua placa de
identificação em um refúgio fiscal. Não há necessidade de realmente produzir bens
ou serviços ou realizar comércio ou comércio dentro dos limites do país. Para
todos os efeitos práticos, os sonegadores de impostos podem continuar seus
negócios na Flórida enquanto afirmam ser residentes das Bahamas quando se trata
de pagar impostos. Por último, temos os “refúgios fiscais de marketing”. No final
das contas, os refúgios fiscais têm tudo a ver com marketing, uma vez que eles se
promovem como centros financeiros offshore. Muitos também são considerados
importantes centros financeiros internacionais.
Agora, adentramos em fatores socioeconômicos que distinguem os
refúgios fiscais, alguns das quais já citamos e aprofundamos, mas serão inclusos
para fins de simples colocação. Além de impostos mais baixos e sigilo
operacional, vários outros fatores socioeconômicos fazem de um determinado país
ser um refúgio fiscal popular, tal como a estabilidade política e econômica, como
já visto, pois sem esta estabilidade, nenhuma quantidade de incentivo fiscal pode

52
FMI. Offshore Finance and Offshore Financial Centers: What It Is and Where It Is Done.
United States:International Monetary Fund, 2000.
53
OCDE. Harmful Tax Competition: An Emerging Global Issue. France: OECD Publishing,
1998, Pág. 29-30.
54
OCDE. Harmful Tax Competition: An Emerging Global Issue. France: OECD Publishing, 1998,
Pág. 28-33.
55
United States Accountability Office International Taxation: Large U.S. Corporations and
Federal Contractors with Subsidiaries in Jurisdictions Listed as Tax Havens or Financial
Privacy Jurisdictions. United States: U.S. Government Accountability Office, 2008, p. 9-10.
56
Idem, 2008, p. 10-11.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 191

trazer investidores externos. A Suíça, por exemplo, tornou-se famosa por sua
estabilidade política e econômica57.
Em outro ponto, existe a falta de controles de câmbio; simplesmente,
colocar ativos em um país sujeito a controles cambiais pode ser perigoso para
investidores externos, tornando a utilidade de territórios fiscais mais atraente58.
Já, em outro momento, quando falamos de tratados, muitos refúgios fiscais
como as Ilhas Maurício tornaram-se populares devido a brechas em vários
tratados de evasão fiscal assinados com diferentes jurisdições.59 Em contraste,
alguns estão se tornando menos populares devido a vários tratados de
compartilhamento de informações assinados com diferentes governos.60
Penultimamente, há de se falar sobre o serviço bancário, profissional e de
suporte; neste ponto, investidores bancários buscam territórios com serviços
confiáveis, seguros, para minimizar quaisquer problemas que podem surgir
durante a transferência dos valores. Destinos como Suíça e Áustria, embora não
sejam refúgios fiscais num sentido mais estrito, são populares para serviços
bancários offshore e um destino seguro para ativos.61 Por fim, outro ponto já
ditado: a localização, que é sempre um fator importante na popularidade de certos
destinos. Por exemplo, as Bahamas têm sido um destino offshore popular para
corporações dos EUA devido à sua proximidade com a Flórida.62
Conclusa a distinção do funcionamento e tipificação dos refúgios fiscais,
válido resumir que o funcionamento envolve logísticas econômicas, dados e
estatísticas das quais não são enfoque deste estudo, porém, possuem mérito
irrenunciável, já que o delineamento de uma simplificação do estudo dos refúgios
fiscais torna-se ainda mais válido e possível; já a tipificação permite o encaixe de
certos territórios fiscais em categorias distintas, facilitando um ambiente de
estudo mais isolado e minucioso de um tipo específico de refúgio, além de
consequentemente agrupar territórios em condições específicas similares,
permitindo verossimilhança entre pontos, fatos e tópicos empíricos, além da
realização de referências cruzadas entre estudos acadêmicos que abordem o
mesmo espécie de refúgio fiscal.
2.2 Um Breve Sumário sobre Tributação
Primeiramente, deve-se distinguir os dois tipos de impostos que existem,
sendo estes diretos ou indiretos; simplesmente, um imposto direto incide
diretamente sobre a renda de uma pessoa física ou jurídica, enquanto um

57
CIA. The World Factbook. Switzerland: Economy. United States, 2020.
58
OCDE. Glossary of Tax Terms. France: OECD Publishing
.(https://www.oecd.org/ctp/glossaryoftaxterms.htm#c).
59
FMI. IMF Country Report 17/363: Mauritius. United States: International Monetary Fund, 2017, p.
9.
60
OCDE, Tax Information Exchange Agreements. France: OECD Publishing. (https://www.oecd.org).
61
FMI. IMF Working Paper 99/5. Offshore Banking: An Analysis of Micro- and Macro-Prudential
Issues. United States: International Monetary Fund, 1999, p. 11.
62
SALANIÉ, Bernard. The Economics of Taxation. United States: Massachusetts Institute
of Technology,2003, p. 1-6.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 192

imposto indireto incide apenas sobre o consumo da mesma, não afetando sua
renda. Agora, pode-se discorrer sobre um pouco da historicidade.

Até onde sabemos, os impostos surgiram concomitantemente à


civilização em Mesopotâmia e no Egito, como pode ser visto nas tabuinhas
sumérias datado de 3.500 a.C. Nesses regimes despóticos, os recursos próprios
do rei não eram suficientes para sustentar seus sacerdotes, sua corte e seus
exércitos, então ele teve que recorrer a impostos. Como o uso do dinheiro ainda
era raro, a maioria desses impostos era paga em espécie. Assim, os camponeses
que a maioria da população deve trazer ao rei uma proporção de suas colheitas
(por exemplo, um quinto no Egito e um décimo na Suméria). Além disso, tiveram
que fornecer mão de obra para manter equipamentos, mas também para construir
pirâmides e templos ou para trabalhar os campos do rei.
Atenas e Roma foram mais longe ao tributar as vendas de terras e escravos
e aumento dos direitos de importação. Eles também tentaram (e na maioria
falharam) tributar capitais e propriedades. Por muitos séculos ainda, os impostos
cairiam principalmente sobre os camponeses. A queda do Império Romano trouxe
seu sistema tributário para baixo com isso. Durante muito tempo, cada autarquia
local viveu principalmente a produção de sua própria terra. O surgimento do
sistema feudal impôs o princípio de que todos, do camponês ao Duque, deve
prestar serviço militar ou trabalho em troca do direito para cultivar sua terra. Os
impostos monetários agora vinham além do trabalho e impostos em espécie;
podem ser impostos indiretos (pagos em transações de bens) ou impostos diretos
(pagos sobre o patrimônio ou sobre a renda).
Os sistemas tributários não mudaram muito até a Revolução Industrial;
para obter maiores receitas, os governos multiplicaram principalmente os
impostos sobre mercadorias específicas (chamadas de impostos especiais de
consumo) e direitos aduaneiros, internos (por entre províncias), bem como
externos. A Revolução Francesa teve consequências importantes, pois na Inglaterra
e em outros países europeus, a necessidade de financiar as guerras napoleônicas
levou os governos para criar os primeiros impostos de renda modernos. No
entanto, esses impostos foram abolidos quando a paz voltou. Os estudos de Adam
Smith e sua teoria da “mão invisível” serviram como baluarte na esfera
acadêmica econômica, influenciando e remodelando muitos pensamentos por
meio de sua visão contrária ao intervencionismo estatal, entre outras ideias. A
crescente influência do liberalismo ideias sobre as virtudes do livre comércio
traduzidas no século XIX uma notável diminuição dos direitos aduaneiros, o que
reduziu os impostos receita.
Antes de continuar, dá-se um enfoque especial no período entre o século
XIX até o presente, cabendo realçar a importância de diversos elementos
pertinentes e impactantes deste momento. Entre eles, há de se comentar da
relevância do cientificismo (que surgiu no início do século citado), corrente de
pensamento na qual a ciência é considerada superior a qualquer outra forma de
compreensão humana, inevitavelmente levando à tropeços na área tributária, uma
vez que a inflexibilidade desta forma de pensamento manifestou certas
contrariedades, havendo inúmeros estudos da época voltados à crítica das
tentativas positivistas de desenvolver novas leis econômicas fundadas em
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 193

estatísticas. De certa forma, o cientificismo acabou sendo raiz de muitos erros


propagados por diferentes economistas nos séculos XIX e XX.63
Ainda, impossível deixar de falar da Crise de 1929, também conhecida
como a Grande Depressão, que até hoje é a maior crise financeira que já ocorreu
no mundo, ocasionada pela superprodução, falta de regulação da economia,
excesso de crédito e pela bolha de especulação. Diante deste cenário crítico,
muitos países reavaliaram seus modelos econômicos e tomaram medidas cabíveis
para minimizar a possibilidade de algo similar ocorrer novamente em seus meios.
A Crise persistiu durante uma década inteira, culminando na concepção e
estabelecimento do Welfare State, o chamado estado de bem-estar social, pelo
presidente da época Franklin D. Roosevelt. Tal iniciativa reorganizou o Estado
para que este tornasse-se comprometido em fornecer segurança econômica básica
para seus cidadãos, protegendo-os dos riscos de mercado associados à velhice,
desemprego, acidentes e doenças. Este modelo serviu para auxiliar a recuperação
econômica dos EUA, injetando dinheiro federal nos estados para pagar projetos de
obras públicas, gerando trabalho para as vastas quantias de cidadãos
desempregados e reanimando o fluxo econômico interno, eventualmente retirando
o país da recessão que lhe arrasou.64
Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com os refúgios fiscais? Ora, ocorre
que neste período, o Estado americano acabou por sobretaxar as atividades
econômicas viáveis, aumentando os impostos65; tal sobrecarga tributária,
discutivelmente, torna os refúgios fiscais mais atraentes, uma vez que serviriam
papel de porto seguro para preservarem os capitais de interessados. Logo, diante a
evidência histórica combinada com exemplos da atualidade, não seria um absurdo
considerar a possibilidade de que aqueles capazes de enviar suas riquezas ao
offshore teriam usufruído de refúgios fiscais para ao menos suavizar o golpe de
alíquotas de impostos elevadas pela circunstância da crise. Porém, tal especulação
e dedução, mesmo se possui validação considerável, merece estudo próprio.

Com todos estes informes em mente, difícil discordar que os sistemas


tributários atuais são os produtos de uma longa evolução marcada por acidentes
históricos; não surpreendentemente, eles variam muito entre os países.
Curiosamente, Steinmo66 mostra claramente, nos exemplos dos Estados Unidos,
Reino Unido, e Suécia, como os sistemas políticos condicionam a política fiscal
dos Estados. Qualquer Estado necessita encontrar os meios de pagar por sua
própria existência e pelos serviços que providencia para seus cidadãos. Tributação,
portanto, é uma atividade essencial para que haja um Estado, mas sua necessidade

63
TARASCIO, Vincent J. The problem of progress in economic science. United States:
Atlantic EconomicJournal, 1983, p. 29-34.
64
SMILEY, Gene. The Great Depression - Federal Reserve History. United States: Econlib,
2018. Disponívelem https://www.econlib.org/library/Enc/GreatDepression.html.
65
REYNOLDS, Alan. The Economic Impact of Tax Changes, 1920–1939. United States: Cato Journal,
2021, p. 162-168. (https://www.cato.org/cato-journal/winter-2021/economic-impact-tax-changes-1920-
1939#)
66
STEINMO, S. Taxation and Democracy. United States: Yale University Press, 1993, p. 1-13.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 194

não tornam os impostos mais populares. Cidadãos geralmente possuem um


desgosto pelo pagamento de impostos, o que subsequentemente afeta o cenário
sociopolítico do país e o relacionamento do cidadão com seu governo.
A palavra “tributação” pode ter significados diferentes. No mais rigoroso
sentido, a tributação é o conjunto de impostos que os agentes econômicos pagam.
No sentido mais amplo, diz respeito a toda a política fiscal dos governos. Afim de
manter grau de imparcialidade, utiliza-se um sentido intermediário: a tributação
refere-se tanto aos impostos e às transferências para as famílias. Essas
transferências são geralmente classificadas em duas categorias: a) seguro social,
que está ligado às contribuições (dependendo dos países: pensões, saúde, família
e/ou benefícios de desemprego); e b) previdência social, que paga benefícios que
não dependem de contribuições (por exemplo, benefícios de renda mínima ou
subsídios de habitação).67
A tributação é diferenciada de outras formas de pagamento, como bolsas
de mercado, na medida em que a tributação não requer consentimento e não está
diretamente vinculada a quaisquer serviços prestados. O governo obriga a
tributação por meio da lei, utilizando-se do poder coercivo do Estado que, em
última análise constitui-se de uma ameaça implícita ou explícita de força. A
tributação é legalmente diferente de extorsão ou esquema de proteção porque a
instituição que impõe é um governo, não atores privados.68 Esta distinção é um
tanto artificial, pois o seguro também implicitamente redistribui entre as classes
sociais. Assim, as contribuições para a saúde muitas vezes dependem da renda,
enquanto os riscos à saúde são apenas fracamente correlacionados com renda.
Mesmo quando os benefícios estão vinculados a contribuições (como
frequentemente o caso de sistemas de pensões por repartição), o risco pode ser
fortemente correlacionado com a renda (assim, os ricos geralmente vivem mais
que os pobres). Portanto, incluso na tributação estão também todos os impostos e
benefícios que têm como base exações que situam-se entre a renda bruta de um
indivíduo e seu poder de compra.69

Na maioria dos sistemas modernos, a tributação ocorre tanto em ativos


físicos, como imóveis, quanto em eventos específicos, como uma transação de
venda. A formulação de políticas fiscais é uma das questões mais críticas e
controversas da política moderna. Existem, no entanto, características que são
comuns a grandes grupos de países, como os de Estados desenvolvidos da
atualidade; mesmo dentro destes agrupamentos, existem grandes detalhes que
claramente diferenciam até mesmo países no mesmo grupo, como os Estados
Unidos e o Japão, que se inserem em um grupo de baixa tributação, e a França,
um país de impostos altos. Além disso, essas diferenças internacionais tendem a
persistir ao longo do tempo.

67
SALANIÉ, Bernard. The Economics of Taxation. United States: Massachusetts Institute
of Technology,2003, p. 3-8.
68
STEINMO, S. Taxation and Democracy. United States: Yale University Press, 1993, p. 1-13.
69
Idem, 2003, p. 1-13.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 195

Nota-se que a arrecadação de impostos é pró-cíclica, isto é, possuem


variáveis que flutuam de maneira positiva correlacionada com as flutuações do
ciclo de negócios no produto interno bruto dentro do contexto de teoria
macroeconômica e o da formulação de políticas tributárias econômicas.
Considerando este fato, não é necessário dar muita consideração ao seu valor
preciso da referida arrecadação em anos individuais, visto que sua natureza
positivae pouco oscilada permite esta abordagem.
Outros contribuintes para a redução dos valores constados nesta receita
tributária manifestam-se por meio das diferenças na composição dos domicílios.
Ocorre que, dependendo de como o país tributa os membros de uma família ou até
mesmo um casal (em conjunto ou individualmente), os valores mudam de forma
notável. Exemplo disto é suportado por uma grande quantidade de países
tributam os dois membros de um casal separadamente, como no Reino Unido
por exemplo, o que resulta em valor maior do que se fossem tributados
conjuntamente, como ocorre na França. Existem também casos onde o casal pode
escolher se serão tributados individualmente ou juntos, notadamente nos Estados
Unidos, Brasil e Alemanha.
2.2.1 Entendimento e Iniciativas Brasileiras sobre o tema

Segundo dados publicados pela União, estima-se que a soma dos tributos e
encargos cobrados das atividades econômicas represente aproximadamente 35%
do PIB no Brasil, ou seja, de cada R$ 1,00 produzidos, R$ 0,35 são destinados, na
forma de tributos, para o governo federal, os governos estaduais e os governos
municipais.70 A tributação no Brasil é classificada como progressiva, uma vez que
apesar de todos os indivíduos pagarem a mesma quantidade de tributos em cima
de um determinado produto ou serviço, essa porcentagempossui pesos
diferentes dependendo da renda de cada um, respeitando o princípio da
capacidade contributiva.
Importante ressaltar que cargas tributárias excessivamente onerosas para a
renda das pessoas físicas e jurídicas estimulam o planejamento tributário até o
limite de suas viabilidades econômicas, muitas vezes utilizando-se dos refúgios
fiscais que estendem a amplitude das suas atividades aos espaços estrangeiros.
Ocorre que, comumente, no espaço empresarial, por exemplo, este comportamento
encontra um ambiente convidativo para os contribuintes verterem ao ilícito por
meio das elisões fiscais como uma maneira de permanecerem competitivos no
mercado, aumentarem seus lucros, protegerem a estrutura patrimonial contra a
corrosão inflacionária, entre outros motivos.
Apresenta-se, celeremente, uma análise dos argumentos contra e a favor da
tributação brasileira, além dos principais posicionamentos governamentais sobre o
tema. Acerca do sistema tributário nacional em si, os raciocínios podem ser
resumidos de tal forma: aqueles que manifestam-se contrariamente tendem à citar
a onerosidade do sistema, que envolve tamanha burocracia muitas vezes
considerada excessiva, argumentando que estes fatores geram altos valores de
tributação e insegurança jurídica em geral, reduzindo a competitividade das
empresas e desestimulando investimentos no país, de forma que há prejuízo à
70
Informação extraída do site “Portal Tributário” (http://www.portaltributario.com.br).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 196

integração internacional da economia brasileira, culminando na exigência de uma


reforma tributária nacional7172; já aqueles que manifestam-se favoravelmente
reforçam que a finalidade da tributação em seu financiamento do Estado permite a
contínua prestação de serviços do mesmo para com seus cidadãos contribuintes.
Além disso, defendem o uso inteligente da tributação, pois “a tributação exerce
influência direta e indireta sobre a alocação de recursos na economia, podendo ser
importante instrumento incentivador do crescimento econômico, caso utilizado
corretamente”.73
Por fim, diante da crescente notoriedade dos refúgios fiscais no cenário
internacional, implora-se a pergunta: “Como que o Brasil se encaixa nesta
temática?”. Ora, uma simples e breve pesquisa sacia tal curiosidade, pois é fato
que o Brasil perde cerca de 8 bilhões de dólares todo ano em impostos evadidos
por pessoas físicas e jurídicas que fazem uso de refúgios fiscais.74
Carga inflacionária, crises econômicas e especulação cambial são apenas
alguns dos contribuintes à motivação de práticas evasivas para realocação de
recursos monetários por parte de pessoas físicas e jurídicas presentes no Brasil aos
refúgios fiscais.
O posicionamento do governo tem mudado em anos recentes, com duas
propostas de reforma tributária atualmente sendo discutidas na Câmara dos
Deputados (PEC 45/2019) e no Senado Federal (PEC 110/2019); diante certa
análise, são abrangentes e bem estruturadas, mas priorizam basicamente a
harmonização e eficiência do sistema tributário como forma a incentivar o
investimento e o desenvolvimento econômico, não endereçando os refúgiosfiscais
como potencial ofensor e omitindo o papel destes mesmos em certos prejuízos
econômicos do país. Diante das comparações com outros países (realizadas pela
OCDE), nota-se que o Brasil excede expectativas e status quo de outros países
latino-americanos, porém ainda encontra-se um pouco abaixo das estimativas de
países desenvolvidos, o que fere suas chances em estabelecer e manter certo poder
e influência econômica no cenário internacional.75 Assim, numa tentativa de
proteger os interesses de pessoas jurídicas e físicas que compõem uma elite
socioeconômica no país, o governo do Brasil, inadvertidamente ou não, omite os
territórios fiscais como uma das causas do declínio da efetividade do sistema
tributário brasileiro, por mais que veementemente se oponha e condene estes
locais à sua população.
Compreende-se, portanto, que a tributação é um termo para quando uma
autoridade tributária, geralmente um governo, cobra ou impõe uma obrigação
financeira a seus cidadãos ou residentes. O pagamento de impostos a governos ou

71
PAES, Nelson Leitão. O custo da ineficiência da tributação indireta brasileira. Brasil: Revista
Brasileirade Economia de Empresas, 2012.
72
GASSEN, et al. Tributação sobre Consumo: o esforço em onerar mais quem ganha
menos. Brasil: Sequência (Florianópolis), 2013.
73
LEMGRUBER, Viol Andréa. A Finalidade da Tributação e sua Difusão na Sociedade.
Brasil: Semináriode Políticas Tributárias, v. 2, 2005, p. 16.
74
REDE DE JUSTIÇA FISCAL. O Estado Atual da Justiça Fiscal 2021: Novembro 2021.
United Kingdom:Tax Justice Network, 2021.
75
OCDE. Latin American Economic Outlook 2021. France: OCDE Publishing, 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 197

funcionários tem sido um dos pilares da civilização desde os tempos antigos. O


termo "tributação" aplica-se a todos os tipos de impostos involuntários, de renda a
ganhos de capital e impostos sobre herança. Embora a tributação possa ser um
substantivo ou verbo, geralmente é referida como um ato; a receita resultante é
geralmente chamada no cenário internacional de "impostos". Quando se vêm à
sua aplicação, a tributação ocorre quando um governo ou outra autoridade exige
que um tributo (que pode ser tipificado dependendo da legislação do país, como
visto no exemplo do Brasil) seja pago por cidadãos e empresas a essa autoridade.

Quando se vêm a seus propósitos e justificativas, entende-se que a função


mais básica da tributação é financiar as despesas do governo. Diversas
justificativas e explicações para os impostos foram oferecidas ao longo da
história. Os primeiros impostos foram usados para apoiar as classes dominantes,
levantar exércitos e construir defesas. Muitas vezes, a autoridade para tributar
provinha de direitos divinos ou supranacionais. Justificações posteriores foram
oferecidas através de considerações utilitárias, econômicas ou morais. Os
defensores de níveis progressivos de tributação sobre as pessoas de alta renda
argumentam que os impostos incentivam uma sociedade mais equitativa. Impostos
mais altos sobre produtos e serviços específicos, como tabaco ou gasolina, têm
sido justificados como dissuasores do consumo. Os defensores da teoria dos bens
públicos argumentam que os impostos podem ser necessários nos casos em que a
provisão privada de bens públicos é considerada abaixo do ideal, como faróis ou
defesa nacional.
E, quando se vêm à sua tipificação, a tributação pode ser simplificada de
tal maneira que permite compreensão sem perda de seu valor, aplicando-se,
independente do Estado, a todos os diferentes tipos de tributos, que podem incluir,
mas não estão limitados a: imposto de renda (os governos impõem impostos de
renda sobre a receita financeira gerada por todas as entidades dentro de sua
jurisdição, incluindo pessoas físicas e jurídicas); imposto corporativo (este tipo de
imposto incide sobre o lucro de uma empresa); ganhos de capital (em termos
generalizados, aplicáveis na maioria dos países, este imposto incide sobre o lucro
realizado na venda de um ativo não-estoque, ou seja, ganhos de capital. Os
exemplos mais comuns seriam aqueles realizados com a venda de ações, títulos,
metais preciosos, imóveis e propriedades); imposto sobre as propriedades rurais e
urbanas (um imposto sobre a propriedade é cobrado por um governo local e pago
pelo proprietário de uma propriedade. Este imposto é calculado com base nos
valores da propriedade e da terra); imposto sobre transmissão "causa mortis" ou
graciosa de bens (um tipo de imposto cobrado sobre os indivíduos que herdam os
bens de umapessoa falecida ou transmitem a propriedade por doação); e o imposto
sobre vendas (um imposto sobre o consumo imposto por um governo sobre a
venda de bens e serviços. Isso pode assumir a forma de um imposto sobre valor
agregado (IVA), um imposto sobre bens e serviços [IBS], um imposto estadual ou
provincial sobre vendas ou um imposto especial de consumo).
Por fim, traduz-se um velho ditado do inglês, que diz que "as únicas coisas
certas na vida são a morte e os impostos". A tributação tem sido uma característica
da sociedade desde os tempos antigos. O papel dos tributos é ajudar os governos a
financiar vários empreendimentos, como obras públicas, infraestrutura e guerras.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 198

Hoje, a moeda dos contribuintes ainda é usada para uma variedade de propósitos
semelhantes.
2.3 Efeitos Colaterais dos Refúgios Fiscais
Nesta seção, há de se falar, antes do devido esquadrinhamento de cada, “do
bom, do ruim e do feio”76 que acompanham a contínua existência dos refúgios
fiscais; importante denotar que serão abordados apenas alguns elementos
expressivos, afim de pincelar a trajetória do presente trabalho em direção ao
aprofundamento minucioso dos prós e contras dos refúgios fiscais.
Uma das vantagens destes territórios é a ausência da verificação comercial,
tanto para não residentes quanto para transações em moedas estrangeiras também.
Esses países veem na atividade financeira uma fonte de renda relativamente
estável e buscam para promovê-lo. Uma campanha promocional para o refúgio é
alcançada através da progressão linear, que significa a adaptação do quadro legal
para atrair recursos financeiros.77 Os refúgios fiscais operam sob a proteção de
jurisdições benéficas pertencentes a alguns Estados politicamente protegidos no
mundo todo. Para que estes países sejam capazes de funcionamento e
autossuficiência, foram criados especiais condições para atrair investidores.
Devido ao grande número de obrigações fiscais e impostos aos contribuintes, eles
estão tentando encontrar formas de evitar ou reduzir as obrigações fiscais; a
principal preocupação das empresas é mitigar impacto de altos impostos e
controles, e isso justifica o uso de refúgios fiscais como refúgio dos impostos cada
vez mais altos. o objetivo de utilização de refúgios fiscais é óbvio, a ganho
máximo com o estado mínimo pagamentos.78
Como relatado por BOTIS79:
Qualquer pessoa vai procurar países onde o imposto é
mínimo. O desenvolvimento de empresas offshore está
crescendo cada vez mais e isso se deve ao desenvolvimento
de paraísos fiscais. O fenômeno offshore se generaliza no
nível internacional, e o acesso a eles é mais facilmente
alcançado. O estabelecimento de empresas offshore está em
constante desenvolvimento. A importância do mundo
offshore se destaca pelo fato de que a maioria principais
bancos internacionais e agências bancárias foram criados e
estão presentes no offshore centros financeiros, o maior
investimento fundações do mundo e empresas de confiança
também operam através do offshore subsidiárias. A nível

76
Do inglês, “The Good, the Bad and the Ugly”, filme de 1966, e referência às várias possíveis
interpretações de um único tema, como o deste trabalho.
77
IRISH, Charles R. TAX HAVENS. United States: Vanderbilt Journal of Transnational
Law - Volume 15, Issue 3, 1982, p. 490-494.
78
SILVA, Antônio Fernando Correia. Paraísos Fiscais: Prejuízos e Benefícios. Portugal:
Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, 2014, p. 37-42.
79
BOTIS, Sorina. FEATURES AND ADVANTAGES OF USING TAX HAVENS. Romania:
Bulletin of theTransilvania University of Braşov Series V: Economic Sciences, Vol. 7, No. 2,
2014, p. 187.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 199

internacional há é uma luta contra o desenvolvimento dos


paraísos fiscais, promovido em particular pelos países
desenvolvidos países.

Logo, deveras o fato de que manifestam-se aspectos positivos a partir dos


refúgios fiscais, porém sempre em atrito com questões de moralidade e justiça na
competição incessante do cenário econômico internacional. Adiante, alavancados
pontos de contenção acerca dos refúgios, ou seja, apenas alguns dos negativos que
acompanham a atuação destes locais na economia; a primeira grande
consequência lesiva dos refúgios fiscais é a crescente desigualdade de renda
redistribuição.80 Normalmente, as rendas mais altas são as mais móveis.
Consequentemente, os refúgios fiscais não abrigam os de menor renda de uma
população, mas sim o mais alto. Enquanto esses contribuintes ricos recebem
rendimentos líquidos mais altos (porque podem usar refúgios fiscais para diminuir
suas bases tributárias), os contribuintes mais pobres tendem a pagar impostos cada
vez mais altos porque podem ser chamados de forma mais confiável pagar suas
alíquotas do que seus colegas ricos.
A segunda consequência negativa dos refúgios fiscais é o crescimento da
desigualdade a distribuição dos direitos sociais.81 Como os pequenos e médios
produtores enfrentam uma maior tributação sobre sua renda, eles precisam
trabalhar mais e aceitar piores condições de trabalho. A terceira consequência é a
acumulação de desequilíbrios na balança de pagamentos, especialmente na conta
de capital. Vez após vez, a produção nacional diverge da renda nacional e os
déficits se acumulam na conta de capital. Estes défices geram um risco acrescido
de endividamento, que é essencialmente pago para aqueles que não podem
transferir seus rendimentos para refúgios fiscais.

Impossível deixar de mencionar a evasão fiscal, que foi, é e será um


fenômeno presente em todos os lugares da sociedade e área econômica também.
Seu desenvolvimento é alarmante devido à ausência de medidas de controle, que
podem afetar a estabilidade da economia mundial, já globalizada. Para muitos, a
luta contra a evasão é especialmente necessária, em primeiro lugar podendo ser
adotada um sistema efetivo e depois disso, um rigoroso controle fiscal e uma
educação fiscal da cidadãos ao mesmo tempo. Porém, mesmo com declarações
oficiais promulgadas por líderes políticos prometendo um combate impiedoso
dessas ilegalidades, os refúgios fiscais continuam possuindo credibilidade e força
do atração, dada pela fato de que nessas áreas existem filiais da grande maioria
das empresas europeias e bancos americanos grandes, além do fato de que os
maiores escritórios de advocacia estão cientes de cada dólar ou euro passando
pelas contas de seus clientes, e grandes empresas e firmas de auditoria controlam

80
TORVIK, Ragnar. Why do some resource-abundant countries succeed while others
do not? UnitedKingdom: Oxford Review of Economic Policy - Volume 25, Issue 2, 2009,
p. 15-16.

81
Idem, 2009, p. 16-17.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 200

o realização de tais operações, das quais consideram perfeitamente legal, mas se


recusam a comentar sobre o questionável negócio das grandes corporações globais
por medo de repercussão, entre outros potenciais prejuízos.
Por fim, cabe discorrer em relação à atitude das organizações
internacionais (como a G20, UE, OCDE, etc.) e as economias desenvolvidas
contra a proposta recomendada pela organização Transparência Internacional e
aprovada pela OCDE, que busca a suspensão de todas as transações financeiras
em centros offshore não cooperativos, tanto os da União Europeia quanto os dos
Estados Unidos, que estão menos que dispostos a implementar e cumprir esta
recomendação. Estes são apenas alguns dos benefícios e prejuízos decorrentes da
constante presença dos refúgios fiscais no mundo, necessitando-se, portanto,
explanar com maior afinco e minúcia acerca de diversos elementos e fatores nesta
esfera do assunto, ação que se realizará imediatamente.

3. VANTAGENS E INTERESSES
Uma das maiores e mais problemáticas noções acerca dos refúgios fiscais
é a constante propaganda que, em sua grandíssima maioria, constroem uma
imagem extremamente negativa dos seletos países em questão, que acabam sendo
alvejados por um público menos versado e guiado por estes informes parciais. De
fato, existem complicações e obstáculos gerados pelos refúgios fiscais, porém
importante desconstruir o conceito já sabido pelo público geral pois se trata de
uma demonização incabível à circunstância factual da economia mundial; poucos
realmente compreendem que há sim vantagens e benefícios fornecidos pelos
refúgios fiscais. De maior proeminência, a multinacionalização do investimento
corporativo nos últimos anos deu origem a uma série de esquemas internacionais
de evasão fiscal que podem estar corroendo as receitas fiscais nos países
industrializados, mas que também podem reduzir a carga tributária sobre o capital
móvel e, assim, facilitar o investimento. Tanto os efeitos de bem-estar quanto a
resposta ótima ao planejamento tributário internacional são, portanto, ambíguos.
Avaliando esses fatores em um modelo simples de equilíbrio geral,
descobrimos que os cidadãos de países com impostos altos se beneficiam de
(algum) planejamento tributário. Paradoxalmente, se as alíquotas de impostos não
forem muito altas, um aumento na atividade de planejamento tributário causa um
aumento nas taxas ótimas de impostos corporativos e um declínio no investimento
multinacional. Assim, os temores de uma “corrida para o fundo” nas alíquotas de
impostos corporativos podem ser equivocados.82 Porém, considerando o desejo
do mantimento da natureza imparcial deste estudo, pode-se confirmar que há
verdades (mesmo se fragmentadas ou exageradas) nos estereótipos formados
acerca de refúgios fiscais.
A negatividade acerca dos refúgios surge por causa da apresentação de
muitos dos mesmos como plataformas privilegiadas entre o mundo de legítimas

82
DHARMAPALA, Dhammika. What problems and opportunities are created by tax
havens? UnitedStates: Oxford Review of Economic Policy, 2008, p. 6-10.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 201

transações financeiras e dinheiro ilícito, estas atividades muitas vezes mascaradas


pela própria legislação dos refúgios que ocultam as origens destas ilegalidades e
recusam cooperação com agentes jurídicos internacionais que visam capturar e
punir os transgressores. Ainda, considerando isso e a própria natureza destes
Estados, há evidência de que a contínua existência dos refúgios fiscais contribui à
redução cada vez maior das receitas fiscais de inúmeros países; por isso, estes
mesmos países são obrigados a multiplicar as isenções de impostos para as
empresas e para os particulares ricos, a fim de incentivar as empresas a
permanecerem em território nacional, de modo a não agravar ainda mais à redução
das suas receitas fiscais.

Desde já, resume-se a maioria das vantagens dos refúgios fiscais em


algumas palavras chaves: impostos reduzidos ou nulos, privacidade, conveniência
e proteção de ativos; já para as desvantagens, temos: escrutínio adicional,
dificuldades na atração de investidores estrangeiros, dificuldades na abertura de
contas bancárias corporativas, consequências legais, incentivo de práticas ilícitas,
desigualdade legislativa (lei do refúgio fiscal pode ser aplicada diferentemente
dependendo de seu status). Com isso, mergulha-se na análise dos mais
significantes efeitos dos refúgios fiscais, tanto positivos quanto negativos.
3.1 A Demanda dos Refúgios Fiscais
Como estabelecido anteriormente neste trabalho, a demanda por refúgios
fiscais é constante e irrefutável, haja vista que sempre haverá motivação alheia
para evadir de tributação, seja de forma parcial ou total, por pessoas físicas e
jurídicas que tem quantidade significativa de capital acumulado. Tal demanda se
manifesta através da tomada de riscos e tentativas de geração de lucro por parte,
principalmente, de empresas que agem no cenário internacional, haja vista que
estes visam proteger seus interesses e ativos mais que qualquer coisa. Porém, por
motivos de esclarecimento e condensação, a demanda pelos refúgios fiscais pode
ser descrita da seguinte forma, relatado precisamente por HINES JR.83:
O investimento estrangeiro é atraído aos
refúgios fiscais por razões além da declaração
de impostos para as atividades locais, porque
as empresas multinacionais podem usar
operações de refúgios fiscais para facilitar a
evasão de impostos que, caso contrário, seriam
devidos a governos de outros países.
Afiliadas estrangeiras das empresas
multinacionais normalmente têm várias
transações comerciais entre si e com suas
matrizes, proporcionando oportunidades para
realocação do lucro tributável.

83
HINES JR., James R. Do Tax Havens Flourish? United States: NBER Working Paper Series, 2004, p.
4.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 202

Isto, por sua vez, fez com que as empresas descobrissem que as transações
com filiais de refúgios fiscais podem ser usadas para realocar renda de locais de
alta tributação para as estas mesmas filiais ou então para outros locais estrangeiros
com impostos baixos. Isso, por sua vez, aumenta a apelo da localização de
investimentos em refúgios fiscais estrangeiros. Ainda, possível compactar à mais
simples declaração, porém sacrificando importantes detalhes e contextualização:
os refúgios fiscais existem porque há demanda, e tal demanda origina-se no desejo
de obtenção e preservação de lucros adquiridos por meio de atividades
econômicas. Com isso, não há “espírito desportivo” na competição econômica
internacional por muitos, mas existe a necessidade de analisar e reanalisar leis e
territórios com intuito de desvendar qualquer brecha que possibilite e facilite uma
fuga do sistema tributário que assolaa pessoa jurídica ou física em questão.84
3.1.1 O Fenômeno Offshore
Dentre todas as vantagens geradas pelos refúgios fiscais, aqueles que mais
demandam sua existência e prolongam suas vivências são as corporações e
empresas multinacionais, que distinguem-se de outros que usufruem dos refúgios
fiscais devido à imensidade de suas transações e natureza transnacional.
Considerando as características das matrizes multinacionais com operações, estas
se tornaram as mais propensas a operar em refúgios fiscais, sugerindo que há
economias de escala no uso de refúgios fiscais para evitar impostos. Além disso,
as matrizes multinacionais em indústrias nas quais as empresas normalmente
enfrentam baixas alíquotas de impostos estrangeiros, aquelas que são intensivas
em tecnologia e aquelas em indústrias caracterizadas por comércio intrafirma
extensivo, são mais propensas do que outros a operar em refúgios fiscais.
Enquanto isso, evidências são consistentes com a intuição de que as
multinacionais empregam afiliadas em refúgios para realocar rendimentos
tributáveis de jurisdições com impostos elevados para jurisdições com impostos
baixos através de comércio intrafirma e transferências de propriedade intangível, o
fato de que as multinacionais em indústrias com baixas alíquotas de imposto
estrangeiro são mais probabilidade de operar em refúgios fiscais indica que as
afiliadas de paraísos não servem apenas para realocar lucros longe de locais de
alta tributação. Em vez disso, essa evidência sugere que empresas com baixas
alíquotas de impostos estrangeiros se beneficiam do uso de refúgios fiscais para
adiar, ou evitar, tributação dos seus rendimentos estrangeiros.85 Com isso em
mente, cabe discutir sobre o elefante na sala, o fenômeno contínuo que são as
empresas offshore.

O termo vem do inglês e, traduzido literalmente, significa “fora da costa”


ou “no mar”; tal termo é comumente visto junto com as palavras “empresa” ou
“sociedade”, assim como “centro” “investimento”. Mas afinal, o que é? Pois,
primeiramente, o termo é atribuído a qualquer negócio que ocorre em outro país,

84
HONG, Qing; SMART, Michael. In praise of tax havens: International tax planning and foreign
directinvestment. Germany: CESifo Working Paper No. 1942, 2009, p. 82-95.
85
HAMPTON, Mark P. The Offshore Interface. Tax Havens in the Global Economy. United
States: Capital& Class, 1998, p. 1-11.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 203

necessitando-se “sair da costa” ou “ir ao mar” para chegar ao mesmo. Offshore


pode se referir a uma variedade de entidades, contas ou outros serviços
financeiros sediados no exterior. Para se qualificar como offshore, a atividade que
está ocorrendo deve estar sediada em um país diferente do país de origem da
empresa ou do investidor. Assim, enquanto a sede de uma pessoa ou empresa
pode estar em um país, a atividade empresarial ocorre em outro.
O investimento offshore, por exemplo, pode envolver qualquer situação em
que os investidores offshore residam fora do país em que investem. Essa prática é
usada principalmente por investidores de alto patrimônio líquido, pois a operação
de contas offshore pode ser particularmente alta. Muitas vezes requer a abertura de
contas no país em que o investidor deseja investir. Algumas das vantagens de
manter contas offshore incluem benefícios fiscais, proteção de ativos e
privacidade.86 As contas de investimento offshore geralmente são abertas em
nome de uma corporação, como uma holding ou uma sociedade de
responsabilidade limitada (LLC), em vez de um indivíduo. Isso abre os
investimentos para umtratamento fiscal mais favorável.
As principais desvantagens do investimento offshore são os altos custos e
o aumento do escrutínio regulatório em todo o mundo que as jurisdições e contas
offshore enfrentam. Tal escrutínio surge, dentre vários motivos, devido à
escândalos relacionados à divulgação internacional de documentos vazados que
possuem detalhamentos acerca de práticas econômicas suspeitas nos refúgios
fiscais, assim como um senso de insegurança econômica generalizada, haja vista
que muitos que participam do mercado internacional temem sofrer prejuízos
ocasionados pela existência contínua dos refúgios fiscais, sentindo-se
inferiorizados no ambiente de competição financeira global.
Possível também enxergar traços de preocupação acerca de questões de
segurança internacional que foram expostas após os atentados de 11 de setembro;
acontece que, como consequência direta destes ataques terroristas nos EUA, foi
descoberto que os recursos financeiros de grupos terroristas atuantes eram
movimentados de forma sigilosa e quase indetectável por meio dos refúgios
fiscais, cujas leis e normas internas efetivamente escondiam as fontes de
financiamento destas atividades terroristas. Desde já, reforça-se a importância
deste fato, pois a partir dele o controle e monitoramento sobre operações
financeiras se intensificou no âmbito da ONU e o financiamento ao terrorismo foi
incluído como uma das atribuições do GAFI órgão internacional ligado a ONU,
responsável pela identificação e neutralização de ações de lavagem de dinheiro
além da fiscalização do fiel cumprimento, pelos Estados-membros, das 40
recomendações elaboradas pelo GAFI e das nove Recomendações Especiais
criadas em 2004.

Isso torna o investimento offshore além dos meios da maioria dos


investidores. Os investidores offshore também podem ser examinados por

86
MOTA, J.; ANTUNES, M.; LOPES, L. P. Paraísos Fiscais: Mercadorização Onshore e
Offshore. Portugal: Universidade de Coimbra, 2009, p. 9-16.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 204

reguladores e autoridades fiscais para garantir que os impostos sejam pagos.87 Já o


banco offshore envolve a garantia de ativos em instituições financeiras em países
estrangeiros, que podem ser limitados pelas leis do país de origem do cliente -
assim como o investimento offshore. Pessoas e empresas podem usar contas
offshore para evitar as circunstâncias desfavoráveis associadas à manutenção de
dinheiro em um banco em seu país de origem. A maioria das entidades faz isso
para evitar obrigações fiscais. A manutenção de contas bancárias offshore também
torna mais difícil sua apreensão pelas autoridades.
Para aqueles que trabalham internacionalmente, a capacidade de
economizar e usar fundos em moeda estrangeira para transações internacionais
pode ser um benefício. Isso geralmente fornece uma maneira mais simples de
acessar fundos na moeda necessária sem a necessidade de contabilizar as taxas de
câmbio que mudam rapidamente. Simplificando, ir offshore significa fornecer
serviços para não residentes do país. Existem vários conceitos intrigantes e
relevantes, porém é de interesse deste trabalho focar-se em três: empresas,
sociedades e centros, todos offshore.
Um centro financeiro offshore (OFC) nada mais é que qualquer centro de
atividade econômica (normalmente um país ou jurisdição) onde ocorram
atividades offshore, incluindo todos os principais centros financeiros do mundo
(como Nova Iorque, Tóquio, Londres, etc.); importante notar que nesses centros
pode haver pouca distinção entre negócios onshore e offshore, ou seja, um
empréstimo a um não residente pode ser financiado no próprio mercado do centro,
onde os fornecedores de fundos podem ser residentes ou não residentes.
Já as sociedades offshore tratam-se de sociedades ou contas bancárias
abertas em países ou territórios do exterior, ou seja, fora do local de domicílio dos
proprietários. São entidades sujeitas a um regime tributário diferenciado e muitas
vezes favorecido, com matriz estabelecida em outro país. Enfim, as empresas
offshore são discutivelmente a seção mais importante das três: são qualquer
companhia que está incorporada em uma jurisdição diferente da qual encontra-se
o dono beneficiário; ou seja, toda empresa que age em país diferente de onde está
registrada.

O motivo da qual possui imensa importância é mais por ter gerado uma
subespécie de empresa como consequência direta de sua existência, isto é, as
“shell companies” ou, traduzido literalmente do inglês, “empresas de concha”,
por causa de sua característica como“conchas vazias”. Melhor conhecidas como
empresas de fachada, são pessoas jurídicas sem operações comerciais ativas ou
ativos significativos, que existem quase exclusivamente para usufruir de um
refúgio fiscal no exterior. São normalmente utilizadas por grandes corporações que
decidem transferir empregos e lucros para o exterior, afim de aproveitar de
códigos fiscais mais flexíveis. Este é o processo de "offshoring" ou "terceirização"
do trabalho que antes era realizado internamente.

87
MOTA, J.; ANTUNES, M.; LOPES, L. P. Paraísos Fiscais: Mercadorização Onshore e
Offshore. Portugal: Universidade de Coimbra, 2009, p. 9-16.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 205

Um exemplo de como as empresas de fachada ajudam com os impostos


envolve a necessidade de as instituições financeiras realizarem atividades
financeiras em mercados estrangeiros. Isso permite que eles invistam em mercados
de capitais fora das fronteiras domésticas e potencialmente poupam grande soma
de seus lucros. Esses tipos de corporações não são necessariamente ilegais, mas às
vezes são usados de forma ilegítima, como para disfarçar a propriedade da
empresa da aplicação da lei ou do público. Razões legítimas para uma corporação
de fachada incluem coisas como uma startup usando a entidade comercial como
um veículo para angariar fundos, conduzir uma aquisição hostil ou abrir o capital.
Em conclusão, confirma-se que optar pelo offshore geralmente é uma
opção destinada apenas a corporações ou pessoas com alto patrimônio líquido, o
que significa que a maioria da população não colherá os benefícios associados a
isso. Aqueles que vão para o exterior fazem negócios, abrem contas bancárias ou
mantêm investimentos em qualquer lugar no exterior. Por mais que ir offshore
não seja ilegal, coloca a entidade sob maior escrutínio. Isso porque as pessoas
costumam usá-lo como uma forma de praticar ilegalidades como lavagem de
dinheiro ou sonegação de impostos. Porém, considerando a constante e crescente
pressão das autoridades fiscais globais sobre estes centros financeiros e suas
políticas de transparência, o cenário das atividades offshore pode mudar no futuro.
3.2 Contribuições à Economia Mundial
Os refúgios fiscais, acidentalmente ou intencionalmente, acabaram por
afetar o cenário econômico mundial de maneira positiva, de forma em que mantém
a abusividade de tributação de sob controle. Isto ocorre porque se um país, por
qualquer motivo que seja, decide aumentar as taxas de seus impostos de maneira
esporádica e insuportável para economias menores em seu interior, estes podem
simplesmente buscar os refúgios fiscais paraproteger seus patrimônios.
Segundo Jamie Whyte, ex-professor de filosofia, comerciante e consultor
de gestão e atualmente acadêmico clássico-liberal e político, esta dinâmica
“mantém os governos honestos”, porque um refúgio fiscal basicamente explora
o fato de que muitas pessoas em outros países querem pagar menos impostos. E
se isso não fosse possível, e se não houvesse refúgios fiscais, haveria muito menos
restrições sobre o quanto os governos tradicionais poderiam tributar sua
população.88 Portanto, o prejuízo alavancado pelo uso de refúgios fiscais por
potenciais empresas que perdem interesse de investimento em seus países de
origem age como uma espécie de “espada de Dâmocles”, isto é, o medo,
insegurança e risco de perder investimentos paira sobre os governos do país,
compelindo o mesmo à manter a taxa de seus tributos em um nível tolerável para
garantir sua autossuficiência. Cita-se novamente dado que apoia a noção da
importância dos refúgios fiscais no cenário mundial atual, segundo as palavras de
Iuliana Radu89:
Os refúgios fiscais desempenham um papel
importante nas finanças internacionais no

88
Relatado em entrevista com a BBC (https://www.bbc.co.uk/news/business-33628020).
89
RADU, Daniela Iuliana. Tax havens impact on the world economy. Romania: Elsevier Ltd.
Selection, 2012,p. 399.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 206

contexto da atual. 50% do comércio


internacional transitando por eles, esses
territórios são estão em segundo lugar acerca
de obrigação estatal. Por exemplo, as Ilhas
Cayman ocupam o quinto lugar nas finanças
mundiais, detendo 80% dos fundos de
investimento de todo o mundo, que administra
ativos de mais de 1 trilhão de dólares.

De resto, valioso notar que ao contrário de muitas preocupações políticas e


das suposições de grande parte da concorrência fiscal presentes em literatura
acadêmica, os custos reduzidos do uso de refúgios fiscais não parecem desviar a
atividade econômica de países que não são refúgios. A evidência empírica indica
que as empresas que enfrentam custos reduzidos de estabelecimento de refúgios
fiscais as operações respondem, em parte, expandindo suas atividades no exterior
em países próximos com altos impostos. Portanto, parece que o uso cuidadoso de
filiais em refúgios fiscais permite que investidores estrangeirosevitem algumas das
cargas tributárias impostas pelas autoridades nacionais e estrangeiras, mantendo
investimentos em níveis superiores aos que persistiriam se os refúgios fiscais
fossem mais caros.
Segundo Desai, as evidências macroeconômicas disponíveis indicam que
os países não reduziram suas tributações do investimento estrangeiro, ou do
rendimento do capital, a qualquer coisa que se aproxime do grau implícito em
muitos modelos de competição fiscal de capital. Portanto, nem é necessário que os
países com impostos altos estejam cientes da importância dos refúgios fiscais na
preservação de sua capacidade de atrair investimentos estrangeiros. Uma outra
implicação desta análise é que a harmonização fiscal dentro das federações pode
realmente fomentar, em vez de restringir, a concorrência fiscal.90 Algumas
iniciativas para harmonizar as alíquotas de imposto aumentaria efetivamente os
custos que os investidores enfrentam para obter a benefícios do uso de refúgios
fiscais, reduzindo assim o investimento estrangeiro na região. Pressão
descensional sobre as alíquotas nacionais pode muito bem seguir em um esforço
para atrair investimentos, um processo que poderia ter sido menos provável com a
diversidade proporcionada pela permissão de refúgios dentro de uma região.91
3.3 A Indestrutibilidade dos Refúgios Fiscais
Enfim, quando se fala de refúgios fiscais como um todo, sempre cabe
discursar sobre o caráter aparentemente invencível dos mesmos, haja vista que
nunca foram efetivamente erradicados do mundo, desde suas formas mais antigas
à suas formas mais modernas que o mundo vivencia atualmente. Uma estimativa

90
DESAI, M. A. et al. Do tax havens divert economic activity? United States: Ross School of Business
Paper -No. 1024, 2005, p. 223-224.
91
RADU, Daniela Iuliana. Tax havens impact on the world economy. Romania: Elsevier Ltd.
Selection, 2012,p. 399-400.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 207

interessante feita por Juan Serrato na esfera estadunidense revela uma projeção
temerosa (traduzido do inglês)92:
A eliminação do acesso das empresas a
refúgios fiscais pode gerar consequências não
intencionais para o crescimento econômico.
Analisamos uma mudança de política que
limitou a transferência de lucros para as
multinacionais americanas e mostramos que a
reforma elevou o custo efetivo do investimento
nos EUA. As empresas expostas respondem
reduzindo o investimento global e transferindo
o investimento para o exterior – o que reduziu
seu investimento doméstico em 38% – e
reduzindo o emprego doméstico em 1,0 milhão
de empregos. Em seguida, mostramos que os
custos da eliminação dos paraísos fiscais são
persistentes e geograficamente concentrados,
pois os mercados de trabalho locais mais
expostos experimentam declínios no
crescimento do emprego e da renda por mais
de 15 anos.

Tal análise pode ser aplicada em um cenário mundial, haja vista que os
refúgios fiscais inadvertidamente geram empregos e sustentam empresas
multinacionais, assim como governos que dependem de seu status próprio como
refúgios para gerarem capital o suficiente para continuarem funcionando
efetivamente.

4. ILEGABILIDADE E OBSTÁCULOS
Como já visto, mesmo consideradas as vantagens econômicas e importância
existencial das atividades de refúgios fiscais, errôneo seria a ofuscação dos
elementos negativos afetam significativamente a grande maioria dos países do
mundo contemporâneo, sejam eles países industrializados, países em
desenvolvimento, os próprios refúgios fiscais, as pessoas físicas e jurídicas
envolvidas em negócios internacionais, e quaisquer atividades de investimento e
pessoas que usam refúgios para sonegar impostos e evadir outras leis. Nesta parte,
os prejuízos aos interesses de todos são discutidas.
Dos países existentes, há, por maioria, um consenso de hostilização da
perpetuação e expansão dos refúgios fiscais e suas atividades, pois estes sabem
que refúgios fiscais facilitam o fluxo de entrada de investimento estrangeiro, vide
acesso fácil ao mercado de Eurobonds para empresas residentes em alguns países

92
SERRATO, Juan Carlos Suaréz. Unintended Consequences of Eliminating Tax Havens.
United States: NBER Working Paper Series, 2018, p. 1.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 208

industrializados, e que as atividades de refúgios fiscais criam para si mesmos uma


medida de autossuficiência econômica que eles poderiam não atingir de outra
forma. Os países modernos estão preocupados, no entanto, sobre as perdas de
receita causadas por atividades de refúgios fiscais e, mais importante, eles estão
preocupados com o impacto atividades de paraíso fiscal tanto no patrimônio do
contribuinte quanto na disposição dos residentes para cumprir as leis fiscais e
outras leis regulatórias.
A preocupação óbvia dos Estados é a receita perdida por causa de atividades
de refúgios. Atualmente, as estimativas em relação às perdas de receita por causa
das atividades de refúgios fiscais são abundantemente claras, estabelecendo que
tratam-se de centenas de milhões de dólares que estão constantemente evadindo
das leis tributárias, contrariando a noção passada de que as perdas provavelmente
não eram tão grandes, mas nem tão pequenos a ponto de serem insignificantes.
Não há dúvida, por exemplo, que a existência de refúgios fiscais torna a elisão e
evasão fiscais nacionais mais fácil para o público contribuinte. Além disso, o
enorme crescimento das atividades destes territórios sugere que cada vez mais
contribuintes aproveitem destas oportunidades de burlar a lei. Vale salientar, por
outro lado, que as legislações “anti-refúgios fiscais” introduzida em vários países
nos últimos anos provavelmente tem contido as perdas de receita por conta das
atividades desses refúgios. Importante, portanto, compreender como estas
atividades ilícitas se desenvolveram e como continuam existindo apesar de todas
as tentativas de sufocamento delas.
4.1 Planejamento Fiscal e Elisão Fiscal
Antes de adentrar o lado ilícito, importante denotar que existem
mecanismos legais que permitem certa redução do pagamento de tributos
aplicados à certos bens. A elisão fiscal, que se consubstancia em essência no
planejamento fiscal, ou planejamento tributário, é exatamente isto, respeitando
que o contribuinte tem o direito de estruturar o seu negócio da maneira que melhor
lhe pareça, procurando a diminuição dos custos de seu empreendimento, inclusive
dos impostos. Se a forma celebrada é jurídica e lícita, a fazenda pública deve
respeitá-la.93
É sabido que os tributos (impostos, taxas e contribuições) representam um
importante (se não a mais importante) parcela dos custos das empresas; devido à
globalização que afeta a economia em escala global, a administração eficiente do
ônus tributário é imperativa para garantir a sobrevivência empresarial. A
instauração constitucional mantém indubitável que, porquanto dentro da lei,
qualquer contribuinte pode agir no seu interesse; portanto, o planejamento fiscal é
efetivamente um direito tão importante quanto o planejamento do fluxo de caixa, a
realização de investimentos, entre outros.
Com apropriado planejamento fiscal, o próximo passo tomado pelas
empresas seria a realização desta chamada elisão fiscal, que nada mais é que uma
forma de legítima e lícita de abater taxas e impostos das quais seus bens e

93
FISHER, Jasmine M. Fairer Shores: Tax Havens, Tax Avoidance, and Corporate Social
Responsibility.United States: Boston University Law Review 94, 2014, p. 483-485.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 209

mercadorias seriam submetidos, sendo alcançada através de escolhas realizadas


em concordância com o ordenamento jurídico. Pois, novamente, não se pode
negar à empresa o direito de maximizar os resultados de suas organizações e
esforços, e evitar perdas é o dever de um bom gestor.
Pois bem, a elisão fiscal pode originar de duas fontes: pode ser decorrente
da própria lei ou pode ser concebida a partir de brechas existentes nas leis. No
caso da elisão decorrente da lei, o próprio dispositivo legal permite (ou até
mesmo induz) a economia de tributos. Existe uma vontade clara e consciente do
legislador de dar ao contribuinte determinados benefícios fiscais. Os incentivos
fiscais são exemplos típicos de elisão induzida por lei, uma vez que o próprio
texto legal dá aos seus destinatários determinados benefícios. É o caso, num
contexto brasileiro, dos Incentivos à Inovação Tecnológica (Lei 11.196/2005).
Já a segunda espécie, contempla hipóteses em que o contribuinte opta por
configurar seus negócios de tal forma que se harmonizem com um menor ônus
tributário, utilizando-se de elementos que a lei não proíbe ou que possibilitem
evitar o fato gerador de determinado tributo com elementos da própria lei. É a
circunstância, por exemplo, de uma empresa de serviços que decide mudar sua
sede para determinado município, visando pagar o ISS com uma alíquota mais
baixa. A lei não proíbe que os estabelecimentos escolham o lugar onde exercerão
atividades, pois os contribuintes possuem liberdade de optar por aqueles mais
convenientes a si, mesmo se a definição do local for exclusivamente com
objetivos deplanejamento fiscal.94
Deve-se compreender que em refúgios fiscais, a flexibilidade e
aproveitamento é muito superior, permitindo uma elisão mais eficiente e atraindo
investidores estrangeiros constantemente. Dois dos principais modos que os
refúgios fiscais podem ser utilizados para praticar elisão fiscal são registrando os
lucros no refúgio fiscal de forma que eles não estejam sujeitos à tributação no
local em que efetivamente ocorreram ou postergando o reconhecimento dos lucros
no Estado em que ocorreram, ao manter tais lucros nos paraísos fiscais (muitas
vezes definitivamente).95
A elisão fiscal internacional parte do pressuposto de que a operação
planejada pelo contribuinte atinge mais de um ordenamento jurídico nacional,
sendo que um, dentre eles, apresenta-se mais favorável ao indivíduo sob a
perspectiva tributária. Busca-se a aplicação do regime tributário menos oneroso
do que aquele que se aplicaria sem que tal ato ou do conjunto de atos tivesse
sido praticado. O objetivo é atrair ou desviar o ato imponível para o regime fiscal
que lhe seja mais favorável, representada por uma carga tributária menor ou
inexistente.96

94
INTUIT TURBO TAX. Tax Avoidance, Tax Evasion and Tax Sheltering: How They Differ.
United States:TurboTax, 2021. (https://turbotax.intuit.com/tax-tips/tax-payments/tax-avoidance-
tax-evasion-and-tax- sheltering-how-they-differ/L0C16irkA)
95
MURPHY, Kevin E.; HIGGINS, Mark. Concepts in Federal Taxation. Cengage Learning, 2017, p.
61.
96
HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e Elisão: rotas nacionais e internacionais do planejamento
tributário.São Paulo. Saraiva, 1997, p. 234-237.
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Porém, a realização da elisão fiscal, em muitos casos, acaba por influenciar


empresas a tomarem um passo a mais, seguindo pensamento parecido com, “se
posso reduzir a tributação assim, porque não anular ela de uma vez por todas?”, o
que leva estes a ignorarem os riscos e potenciais repercussões legais para optarem
por realizarem práticas ilícitas como a evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Tendo
em mente a elisão fiscal, obrigatoriamente deve-se falar da evasão fiscal, que
notadamente são mencionados juntos e muitas vezes confundidos entre si. Pois
bem, em termos simplificados, a elisão visa evitar ou selecionar imposto menos
oneroso - já a evasão tem o condão de ocultar uma tributação já ocorrida que, por
conseguinte, implica em não reconhecer a obrigação tributária nos moldes legais,
comoveremos a seguir.
4.2 Evasão Fiscal
Também conhecido como a sonegação de impostos, é discutivelmente o
motivo principal pela vilificação dos refúgios fiscais, haja vista que o
descumprimento no pagamento de impostos é um processo tão arriscado e
perigoso que comumente é realizado por pessoas jurídicas ou físicas que possuem
capital grande o suficiente para arcar com os custos do procedimento ilegal e que
compense resguardar de deduções vindas de taxas, impostos ou contribuições.
A forma mais popular de evasão fiscal consiste de sonegar impostos sobre
renda passiva, caracterizados como tais, os juros, dividendos e ganhos de capital.
Além disso, como os juros pagos a destinatários estrangeiros não são tributados,
os indivíduos podem evadir-se impostos sobre a fonte de renda dos através da
criação de corporações de fachada e fundos em refúgios fiscais para canalizar
fundos para jurisdições estrangeiras. A evasão fiscal envolve atos ilícitos
praticados por pessoas físicas ou pelas empresas, como uso de contabilidade falsa,
omissão de lucros, construção de esquemas elaborados para disfarçar a posse de
ativos no país ou no exterior.97 É, portanto, um comportamento intencionalmente
ilegal, uma violação direta da lei tributária.98
Tais evasões são facilitadas pela crescente globalização financeira
internacional e facilidade de fazer transações na Internet. Indivíduos podem
comprar investimentos estrangeiros diretamente (fora do país em que se
encontram), como ações e títulos, ou depositar dinheiro em contas bancárias
estrangeiras e simplesmente não declarar a renda (embora esteja sujeita a imposto
de acordo com a lei tributária do país). Houve pouca ou nenhuma informação
retida na fonte sobre indivíduos contribuintes para este tipo de ação. Eles também
podem usar estruturas como trusts ou empresas de fachada para evadir impostos
sobre investimentos.99

97
PLATT, S. Capitalismo Criminoso: como as instituições financeiras facilitam o crime. São
Paulo: EditoraCultrix, 2015, p. 241.
98
AVI-YONAH, Reuven; SARTORI, Nicola; MARIAN, Omri. Global Perspectives on
Income TaxationLaw. United Kingdom: Oxford Scholarship Online, 2011, p. 101.
99
GRAVELLE, Jane G. Tax Havens: International Tax Avoidance and Evasion. United
States: University of Chicago Press, 2010, p. 1.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 211

Ainda, as pessoas, nestes momentos sobrecarregadas pelos informes acerca


dos refúgios fiscais, tendem a esquecer que a sonegação de impostos é crime. Ao
fraudar impostos ou esconder ativos ou dinheiro em jurisdições estrangeiras, as
consequências são sérias. A evasão fiscal tem um custo financeiro. Ser condenado
por evasão fiscal também pode levar a impressões digitais, multas impostas pelo
tribunal, prisão e antecedentes criminais. Quando os contribuintes são condenados
por evasão fiscal, eles ainda podem ter que restituir o valor total dos impostos
devidos, acrescidos de juros e quaisquer penalidades civis e penais aplicadas
pela devida legislação aplicável.100 Notadamente, ocorreram proeminentes
vazamentos de milhões de documentos confidenciais de diversas regiões e
refúgios fiscais no mundo, expondo o abuso desenfreado destes locais para
realização de ilegalidades tributárias. Em dois exemplos, temos o Panama Papers
e o Paradise Papers.
Panama Papers foi um vazamento gigante de mais de 11,5 milhões
de registros financeiros e legais expõe um sistema que permite crime, corrupção e
irregularidades, escondidos por empresas offshore secretas, ocorrido em 2016.
Entre os documentos, foram expostos as propriedades e atividades offshore de
mais de 128 políticos e oficiais públicos em todo o mundo, incluindo 12 líderes e
ex-líderes mundiais, que secretamente evadiram até US$ 2 bilhões por meio de
bancos e empresas paralelas. Este ocorrido teve repercussão global, levando à
resignação de muitos políticos e CEOs que foram descobertos cientemente
envolvidos em práticas de evasão fiscal, mas ainda mais importante foi a reação
da população em geral, que não só manifestaram indignidade com os envolvidos,
como também acabaram por acreditar nas mídias populares que utilizaram do
momento para propagar terrores e equívocos sobre os refúgios fiscais.
Subsequentemente, enorme foi o apoio às restrições e policiamento destas práticas
e dos refúgios fiscais onde popularmente ocorriam, servindo como importante
munição para organizações como a OCDE, que visam frear a ocorrência e
proeminência destas ilicitudes.

Paradise Papers ocorreu pouco mais de um ano após o Panama Papers, e


similarmente foi um conjunto de mais de 13,4 milhões de documentos eletrônicos
confidenciais relacionados a investimentos offshore que vazaram para os
repórteres alemães Frederik Obermaier e Bastian Obermayer, do jornal
Süddeutsche Zeitung. O jornal os compartilhou com o ICIJ. Alguns dos detalhes
foram divulgados em 5 de novembro de 2017 e as histórias ainda estão sendo
divulgadas. Os documentos são originários da firma jurídica Appleby, dos
provedores de serviços corporativos Estera e Asiaciti Trust e de registros de
empresas em 19 jurisdições fiscais. Eles contêm os nomes de mais de 120.000
pessoas físicas e empresas. Entre aqueles cujos assuntos financeiros são
mencionados estão, separadamente, a AIG, o príncipe Charles e a rainha Elizabeth
II, o presidente da Colômbia Juan Manuel Santos e o secretário de Comércio dos
EUA Wilbur Ross. As informações divulgadas resultaram em escândalo, litígio e

100
MASCARENHAS, Ronaldo Silva. PARAÍSOS FISCAIS, EVASÃO FISCAL E O SISTEMA DE
GOVERNANÇA GLOBAL: RESPOSTAS À CRISE FINANCEIRA. Brasil: Universidade Federal de
Bahia,2018, p. 44-51.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 212

perda de posição para alguns dos citados, bem como litígios contra a mídia e os
jornalistas que publicaram os jornais. Para concluir, importante condensar estes
informes para responder à pergunta: “quais as reais consequências negativas da
evasão fiscal em um nível do investimento público e privado, uma vez que ambos
estão diretamente entrelaçados ao crescimento econômico?”
Responde-se da seguinte forma: A evasão fiscal gera impactos negativos
na economia e no bem-estar da sociedade, pois causa a queda significante da
receita do governo que pode levar a alíquotas de impostos mais altas, e tal perda
de receita afeta a comunidade como um todo negativamente, pois poderia ser
usada para financiar melhorias na saúde, educação e outros programas
governamentais. A evasão fiscal também permite que algumas empresas
obtenham uma vantagem injusta em um mercado competitivo e que alguns
indivíduos não cumpram suas obrigações fiscais, efetivamente invalidando a lei e
incentivando a contínua prática de atividades tributárias ilícitas.
4.3 Lavagem de Dinheiro
A lavagem de dinheiro (ou branqueamento de capital) é o processo ilegal
de fazer comque grandes quantias de dinheiro geradas por atividades criminosas,
como tráfico de drogasou financiamento de terrorismo, pareçam ter vindo de uma
fonte legítima. O dinheiro da atividade criminosa é considerado sujo, e o processo
o “lava” para que pareça limpo. A lavagem de dinheiro é um crime financeiro
grave que é empregado por criminosos de colarinho branco e de rua. Atualmente,
a maioria das empresas financeiras possui políticas de combate à lavagem de
dinheiro (AML) para detectar e prevenir essa atividade.
Os criminosos usam uma ampla variedade de técnicas de lavagem de
dinheiro para fazer com que os fundos obtidos ilegalmente pareçam limpos. Os
bancos on-line e as criptomoedas tornaram mais fácil para os criminosos transferir
e sacar dinheiro sem detecção. A prevenção da lavagem de dinheiro tornou-se um
esforço internacional e agora inclui o financiamento do terrorismo entre seus
alvos. O setor financeiro também possui seu próprio conjunto de medidas rígidas
de combate à lavagem de dinheiro (AML).
Como funciona a lavagem de dinheiro? Simplesmente, este processo é
essencial para organizações criminosas que desejam usar dinheiro obtido
ilegalmente de forma eficaz. Lidar com grandes quantidades de dinheiro ilegal é
ineficiente e perigoso. Os criminosos precisam de uma maneira de depositar o
dinheiro em instituições financeiras legítimas, mas só podem fazê-lo se parecer vir
de fontes legítimas. O processo de lavagem de dinheiro normalmente envolve três
etapas: colocação, camadas e integração. A colocação injeta sub-repticiamente
o“dinheiro sujo” no sistema financeiro legítimo. As camadas ocultam a origem do
dinheiro por meio de uma série de transações e truques de contabilidade.101
Na etapa final conhecido como a integração, o dinheiro (agora lavado) é
retirado da conta legítima para ser usado para quaisquer fins que os criminosos
tenham em mente para isso. Observe que em situações da vida real, esse modelo

101
FINRA. Frequently Asked Questions (FAQ) Regarding Anti-Money Laundering
(AML). United States:Financial Industry Regulatory Authority, 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 213

pode ser diferente. A lavagem de dinheiro pode não envolver todas as três etapas,
ou algumas etapas podem ser combinadas ou repetidas várias vezes.102 Há muitas
maneiras de lavar dinheiro, das mais simples às mais complexas. Uma das
técnicas mais comuns é usar um negócio legítimo, baseado em dinheiro, de
propriedade de uma organização criminosa. Por exemplo, se a organização possui
um restaurante, pode inflar os recebimentos diários de dinheiro para canalizar
dinheiro ilegal através do restaurante e para a conta bancária do restaurante.
Depois disso, os fundos podem ser retirados conforme necessário. Esses tipos de
negócios são frequentemente chamados de “frentes”.103
Existem outras maneiras, como a exploração astuta de uma teia complexa
e entrelaçada de jurisdições secretas e/ou refúgios fiscais, a manipulação do
conceito de pessoas jurídicas e arranjos jurídicos para inventar 'empresas de
fachada' que podem funcionar como coberturas para indivíduos corruptos, o abuso
de brechas na legislação existente contra o branqueamento de capitais, a fraca
implementação destas regras, a corrupção das autoridades; tudo combinado com a
cultura de lucro de várias instituições financeiras estabelecidas e especialistas de
mercado em economias desenvolvidas, como por exemplo na União Europeia.
Independentemente da origem do dinheiro, se foi adquirido por meio de uma
atividade criminosa ou de uma infração punível, as finalidades da lavagem de
dinheiro efetivamente são as mesmas.
Os países que são refúgios fiscais acabam sendo os mais vulneráveis às
atividades de lavagem de dinheiro. Os criminosos são atraídos por refúgios porque
esses países oferecem uma ampla variedade de facilidades para investidores que
não estão dispostos a divulgar a origem de seus ativos. Oferece aos criminosos a
oportunidade de ocultar suas fontes de fundos do controle de suas autoridades
reguladoras domésticas. Esses refúgios impõem sigilo financeiro muito rigoroso,
protegendo efetivamente os investidores de investigações e processos judiciais de
seus países de origem. Também os criminosos são atraídos para países e/ou
locais que oferecem altos níveis de sigilo, variedade de mecanismos financeiros e
fornecem anonimato para os beneficiários efetivos por uma ampla variedade de
razões, incluindo a cobertura e proteção potencial que oferecem para lavagem de
dinheiro e vários exercícios de fraude financeira. Simplesmente, jurisdições com
práticas de negócios menos transparentes atraem criminosos para investir seu
dinheiro sujo.104
Acerca da prevenção da lavagem de dinheiro, governos de todo o mundo
intensificaram seus esforços para combater este crime nas últimas décadas, com
regulamentações que exigem que as instituições financeiras implementem
sistemas para detectar e relatar atividades suspeitas. A quantidade de dinheiro

102
UNODC. Money Laundering. United States: United Nations – Office on Drugs and Crime, 2022.
103
DIREITO, Ana Sofia da Costa. Territórios Fiscais Privilegiados: os “Paraísos
Fiscais”. Portugal:Universidade do Minho, 2019, p. 21-26.

104
GIAMPIETRO, Adrienne Fiuza. A UTILIZAÇÃO DOS PARAÍSOS FISCAIS
ATRAVÉS DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL E A
CONEXÃO COM A LAVAGEM DE
DINHEIRO. Brasil: Faculdade Sete de Setembro, 2010, p. 34-37.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 214

envolvida é substancial, porém impossível de quantificar no total devido às


limitações de acesso à dados transacionais em refúgios fiscais, mas estima-se que
a lavagem de dinheiro pode representar até 5% da economia mundial. De acordo
com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, as transações globais
de lavagem de dinheiro respondem por cerca de US$ 800 bilhões a US$ 2 trilhões
anualmente, ou cerca de 2% a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) global, embora
seja difícil estimar o total. montante devido à natureza clandestina da lavagem de
dinheiro.105 Em 1989, o Grupo dos Sete (G-7) formou um comitê internacional
chamado Força- Tarefa de Ação Financeira (GAFI) na tentativa de combater a
lavagem de dinheiro em escala internacional. No início dos anos 2000, sua área de
atuação foi ampliada para o combate ao financiamento do terrorismo.106 Seguindo
este trajeto paralelamente, os Estados Unidos aprovaram a Lei de Sigilo Bancário
em 1970, exigindo que as instituições financeiras relatassem certas transações,
como transações em dinheiro acima de US$ 10.000 ou quaisquer outras que
considerem suspeitas, em um relatório de atividades suspeitas (SAR) ao
Departamento do Tesouro. as informações que os bancos fornecem ao
Departamento do Tesouro são usadas pela Financial Crimes Enforcement
Network (FinCEN), que pode compartilhá-las com investigadores criminais
nacionais, órgãos internacionais ou unidades de inteligência financeira
estrangeiras.107
Embora essas leis tenham sido úteis no rastreamento de atividades
criminosas, a lavagem de dinheiro em si não foi considerada ilegal nos Estados
Unidos até 1986, com a aprovação da Lei de Controle de Lavagem de
Dinheiro.108 Pouco depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, os
EUA, por meio do Patriot Act expandiu os esforços de lavagem de dinheiro,
permitindo que ferramentas de investigação projetadas para a prevenção do crime
organizado e do tráfico de drogas fossem usadas em investigações terroristas. A
Association of Certified Anti-Money Laundering Specialists (ACAMS) oferece
uma designação profissional conhecida como Certified Anti-Money Laundering
Specialist (CAMS). Os indivíduos que obtêm a certificação CAMS podem
trabalhar como gerentes de conformidade de corretagem, funcionários da Lei de
Sigilo Bancário, gerentes de unidades de inteligência financeira, analistas de
vigilância e analistas investigativos de crimes financeiros.109
O combate da lavagem de dinheiro visa privar os criminosos dos lucros de
seus empreendimentos ilegais, eliminando assim a principal motivação para que
eles se envolvam em tais atividades nefastas, ressaltando a importância e
necessidade deste combate. Atividades ilegais e perigosas, como tráfico de
drogas, contrabando de pessoas, financiamento de terrorismo, contrabando,
extorsão e fraude, colocam em risco milhões de pessoas em todo o mundo e

105
UNODC. Money Laundering. United States: United Nations – Office on Drugs and Crime, 2022.
106
Retirado do site do GAFI. History of the FATF. 2021. (https://www.fatf-gafi.org/)
107
Retirado do site da FinCEN. (https://www.fincen.gov/)
108
100 STAT. 3207, Public Law 99-570, Congresso dos Estados
Unidos da América. (https://www.govinfo.gov/app/details/STATUTE
100/STATUTE-100-Pg3207)
109
Retirado do site da ACAMS. (https://www.acams.org/pt-br)
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impõem enormes custos sociais e econômicos à sociedade. Como os rendimentos


dessas atividades são legitimados pela lavagem de dinheiro, o combate à lavagem
de dinheiro pode resultar na redução da atividade criminosa e, portanto, em um
benefício significativopara a sociedade.
Atualmente, existe uma grave falta de cumprimento das obrigações
existentes sobre os bancos e outras entidades obrigadas quando se trata de
combater a lavagem de dinheiro. Além disso, a cooperação entre as autoridades
responsáveis pela aplicação da lei (polícia, procuradores, juízes), administrações
fiscais e organismos de luta contra o branqueamento de capitais não é
obviamente eficiente. Isso cria brechas para os sonegadores de impostos e
lavadores de dinheiro explorarem. O sigilo é um elemento fundamental para
fomentar a lavagem de dinheiro, a criminalidade financeira e o financiamento do
terrorismo. Sugere-se a criação de leis e coordenação internacional, que garantam
transparência no futuro – podendo assim proteger os denunciantes, quando eles
expõem as ações erradas no presente e no futuro.

Indivíduos e empresas que operam e fazem negócios em um país ou local


de paraíso fiscal podem ser classificados como de alto risco e colocados sob o
microscópio ao lidar com eles. A devida diligência aprimorada adequada
precisa ser conduzida ao lidar com essas pessoas e negócios; também, as
transações financeiras provenientes de refúgios fiscais devem ser devidamente
documentadas e revisadas. Caso a instituição financeira suspeite que a operação
financeira seja suspeita de lavagem de dinheiro, o relatório deve ser arquivado nas
Unidades/Centro de Inteligência Financeira do Estado para investigações
adicionais.
As Instituições Financeiras, que lidam com clientes que operam e investem
em localização de refúgios fiscais, poderiam instituir sistemas que lhes permitam
obter as documentações necessárias para identificação de clientes e transações
processadas e armazenar bem esses documentos para referência futura e permitir
que as autoridades reguladoras possam realizar suas funções de supervisão. Além
disso, a proteção de dados relacionados a cada transação processada facilita a
investigação de atividades suspeitas. Todos os países do mundo fazem o
possível para atrair potenciais investidores para o país para impulsionar as
atividades econômicas instituindo uma política favorável ou outra, mas medidas
precisam ser postas em prática para que o país não se torne vulnerável a
criminosos ou a um hub para fundos criminais.
4.4 Desvios da Atividade Econômica Mundial
A globalização da economia mundial, bem como a brecha criada no
sistema tributário internacional e o refinamento estratégias financeiras, criaram
um clima propício ao desenvolvimento de forte refúgios fiscais, que, devido à
legislação fiscal e regime liberal muito brandas, são, por um lado, uma série de
vantagens da localização. A pressão da Tax Justice Network estimou que as
perdas decorrentes do sistema global de tributação através de refúgios fiscais
numeram até 255 bilhões de dólares por ano, mas esses números não são aceitos
por unanimidade. A OCDE estimou que o capital colocado em 2007 através
de empresas offshore em refúgios fiscais atingiu um valor entre 5 e 7 trilhões de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 216

dólares. O impacto mais significativo em termos de evasão fiscal ocorre nos


refúgios fiscais que são países emergentes que não possuem as ferramentas
necessárias para forçar a troca de informações.110
Um estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) reafirmou
que os investimentos estrangeiros diretos são afetados pelo nível de tributação;
por exemplo, medidas adotadas pela Romênia terão um efeito positivo sobre
médio e longo prazo, pois as leis tributárias internas têm o potencial de influenciar
o comportamento das empresas e empreendedores individuais, resultando na
localização mais direta de seus negócios e internacionalização das atividades
econômicas.111 Se os fluxos internacionais de capitais estão se tornando mais
sensíveis às diferenças entre os níveis de tributação, estímulos de redução de
impostos seguem na mesma direção. Países que persistem na intenção de tributar
lucros auferidos por investidores estrangeiros terão rendimentos de impostos
inferiores aos que não ofizerem.112
Os refúgios fiscais desempenham um papel importante nas finanças
internacionais no contexto da mundial atual. Com cerca de 50% do comércio
internacional transitando por eles, esses centros offshore são inegáveis para a
perpetuação do status quo econômico. Em questão de evidência disto, basta olhar
as Ilhas Cayman, que ocupam o quinto lugar como centro offshore para finanças
mundiais, detendo cerca de 80% dos fundos de investimento de todo o mundo,
equivalente a ativos que no total valem mais de 1 trilhão de dólares. Em virtude
disso, os governos não podem mais fechar os olhos diante da capital drenante
organizadas pelas áreas "cooperativas" onde o sigilo bancário e a impunidade são
lei tributária.113
Mas não deve ser esquecido que os governos que agora atacam com
veemência estes refúgios fiscais são os mesmos que no passado agiram de forma
descuidada e trataram muitos aspectos da regulação do setor financeiro com um
olho cego em frente às práticas de bancos de investimento. Os refúgios fiscais
oferecem o que um observador chamou de "liberdades, serviços e oportunidades".
Entre as "liberdades" são livres de controle cambial, liberdade para construir
reservas, liberdade para não divulgar informação, a liberdade de não pagar uma
sériede pesados impostos e taxas.
"Serviços" engloba as ofertas do banco para pessoas físicas ou jurídicas,
custódia global, gestão de fundos de investimento, administração de empresas
offshore e trusts, serviços jurídicos e contábeis e transações de ações. A noção de

110
SUSS, Esther; MENDIS, Chandima; WILLIAMS, Oral. Caribbean Offshore Financial
Centers: Past,Present, and Possibilities for the Future. United States: IMF Working
Papers, 2002, p. 249-264.
111
FMI. Offshore Finance and Offshore Financial Centers: What It Is and Where It Is
Done. United States: International Monetary Fund, 2000, p. 1-4.
112
HINES JR., James R. Do Tax Havens Flourish? United States: NBER Working Paper Series, 2004,
p. 31.
113
DESAI, M. A.; FOLEY, C. F.; HINES JR., J. R.; Do tax havens divert economic
activity? United States:Ross School of Business Paper No. 1024, 2005, p. 5-13.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 217

"liberdades" mostra muito claramente que os bancos usam centros financeiros


offshore e onshore para evitar as regulamentações às vezes onerosas do onshore.
Segundo entendimento da OMC, estes serviços podem ser caracterizados como:
serviços comerciais privados, que são os serviços financeiros, de
telecomunicações e outros; ou serviços comerciais públicos são os serviços
públicos que englobam as atividades de interesse geral assumidas de uma forma
ou de outra pela sociedade. Ainda, a OMC deixa claro que estes serviços
representam atualmente 60% da produção global e 20% do comércio mundial.114
Os refúgios fiscais são, por outro lado, um problema continuado, que afeta
negativamente as receitas orçamentais dos países com tributação mais elevada e,
assim, conduzir ao crescimento, elisão fiscal, particularmente a de migração para a
capital, causando instabilidade financeira, e por evasão do controle financeiro,
crises financeiras. No atual ambiente econômico, níveis mais altos de tributação
são mais difíceis de manter porque, enquanto a economia está em constante
desenvolvimento, existem indivíduos e empresas que estão ganhando maior
liberdade para aproveitar as oportunidades econômicas fora de seus países. Altos
níveis de tributação causam grandes perdas econômicas sob a mobilidade de
capital e impostos internacionais a concorrência está se tornando cada vez mais
acirrada à medida que você aumenta a mobilidade do trabalho e do capital. Para
muitos, os refúgios fiscais representam uma tribulação que prejudica as receitas
orçamentais dos países com maior tributação e, assim, leva ao crescimento das
práticas de migração e ilegal do capital, causando instabilidade financeira, e pela
evasão do controle financeiro, crises financeiras.115
4.5 Opacidade de Dados Transnacionais
Finalmente, cabe falar da complexa problemática que é inerente à
opacidade dos dados transacionais em refúgios fiscais; em palavras simples, a
legislação interna destes países acaba sendo moldada para garantir sigilos e
omissão de dados relevantes, como a declaração de renda, balanço patrimonial,
demonstrativo de fluxo de caixa, demonstração do patrimônio líquido e
demonstração do resultado abrangente, entre outros exemplos.
Inadvertidamente, esta opacidade acaba facilitando e ocultando as práticas ilícitas
que acontecem em seus meios, dificultando de modo significante a detecção e
impedimento dos infratores.
Por estes motivos, não existem dados concretos e confiáveis sobre as
práticas econômicas de diversas empresas e corporações, o que causa certo caos
no âmbito econômicos, haja vista que as projeções e previsões acerca de certos
investimentos e planos financeiros são fundadas em incerteza, culminando em
potencial prejuízo imenso e, naturalmente, a criação de uma vantagem indevida e
imoral. Em meio ao escândalo dos Panama Papers, Pascal Saint-Amans, Diretor
do Centro de Política e Administração Tributária, destacou que a transparência era

114
ABREU, Paula Santos de. GATS – O ACORDO SOBRE SERVIÇOS DA OMC.
Brasil: Revista doPrograma de Mestrado em Direito do UniCEUB, 2005, p. 1-2; p. 508.
115
PALAN, R.; MURPHY, R.; CHAVAGNEUX, C. Tax Havens: How Globalization Really
Works. UnitedStates: Cornell University Press, 2010, p. 753-756.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 218

um dos três principais pilares da agenda tributária internacional; de fato, a


natureza opaca dos veículos corporativos, habitualmente associados aos refúgios
fiscais, tem sido apontada como o principal contribuinte para o aumento da evasão
fiscal. Ou seja, a opacidade sobre a identidade dos investidores no regime serve
principalmente para promoção da evasão fiscal, crime na maioria dos países
modernos.116
Em essência, a opacidade dos refúgios fiscais tem muitos efeitos. Em um
nível, os impostos mais baixos ou nenhum imposto em um país pressionam outros
países a manter seus impostos baixos. Isso é bom para os contribuintes no curto
prazo, mas o sigilo e a opacidade associados a alguns dos refúgios podem
incentivar a lavagem de dinheiro ou outras atividades ilegais que podem
prejudicar a economia mundial no longo prazo. A repressão aos sonegadores de
impostos em alguns países mostra que os contribuintes precisam agir com
cautela.117 Ao permitir que haja sigilo e opacidade sobre a origem e as atividades
das empresas, os refúgios fiscais facilitam o financiamento de atividades ilegais
ao redor do mundo; ainda, ao concentrarem grande volume de recursos líquidos e
manterem ampla flexibilidade e regulação relaxada sobre as transações, acabam
sendo propiciados ataques especulativos que elevam a instabilidade financeira
global, o que atinge em especial as economias em desenvolvimento. A opacidade
dos refúgios fiscais é, assim, fortemente prejudicial ao desenvolvimento
econômico mundial.

5. DIREITO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL E SOLUÇÕES


JURÍDICAS
Estabelecidas as vantagens e desvantagens dos refúgios fiscais com maior
minúcia, compreende-se que a demanda da existência destes territórios não é mera
coincidência, o que determina a necessidade de equilíbrio no gerenciamento destas
regiões. Explica-se da seguinte forma: para resguardar a maior quantidade de
vantagens de plena erradicação, deve-se averiguar os possíveis métodos de
policiar as práticas ilícitas facilitadas pelos refúgios fiscais, aplicando-as
concomitantemente à preservação dos elementos positivos provenientes destes
mesmos locais. Portanto, a completa abolição destes territórios é desafio colossal,
haja vista que tecnicamente existem a milênios, sem sinais aparentes de
deterioração ou extinção em um futuro próximo. Logo, poderia ser elaborado
sofisticado e efetivo regime que balanceie ambos estes desejos, sucessivamente
evitando a concepção de novos problemas, que poderiam surgir a partir da
inexistência dos refúgios fiscais, e atuais pontos de contenção que afligem a
economia mundial.
Para considerar a política de combate aos abusos fiscais é necessário
primeiro estabelecer os objetivos subjacentes. Os formuladores de políticas não
podem ser motivados por uma simples posição moral (por exemplo, que

116
HENRY, James S. Taxing Tax Havens. United States: Foreign Affairs, 2016.
(https://www.foreignaffairs.com/articles/belize/2016-04-12/taxing-tax-havens)
117
Idem, 2016.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 219

determinado comportamento é “ruim”) sem explorar as implicações mais


completamente; imperativo, portanto, que a direção destas políticas conserve os
interesses estatais e privados, respeitando os direitos das pessoas físicas e
jurídicas envolvidas no comércio internacional enquanto suprime qualquer forma
de tributação abusiva e injusta por parte estatal.118 Capta-se que a tributação é
importante para muitos aspectos do crescimento: as receitas fiscais financiam
infraestrutura pública, educação, sistemas legais, etc. Quando há corrupção, má
alocação de recursos ou precariedade na prestação de serviços públicos, o cidadão
muitas vezes não consegue ver por que deve pagar os impostos e acatar a lei. No
caso das empresas, um ambiente econômico instável favorece evasão e a elisão
fiscais.119120
Ao longo dos últimos anos, a luta contra os abusos fiscais (corrupção,
evasão fiscal, lavagem de dinheiro, etc.), nomeadamente nos países em
desenvolvimento, tornou-se uma prioridade na agenda de várias organizações
internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Este tem motivado por uma crença cada vez mais profunda de que uma
governança de boa qualidade é essencial para a desenvolvimento econômico
sustentado.121 Assim, as autoridades fiscais vêm lutando para desenvolver
mecanismos que desencorajem e reduzam os abusos fiscais. Para resolver
problemas como déficits orçamentários elevados que podem causar instabilidade,
os órgãos públicos têm utilizado ferramentas para aumentar a detecção e punição
destas práticas. Este procedimento visa evitar a perda de receitas do Estado de
forma a proporcionar bens e serviços de qualidade para a população.122
Com isso, há de se falar do direito tributário internacional; o direito
tributário é ramo do direito público que visa o regulamento da cobrança de
tributos de pessoas físicas e jurídicas pelo Estado, agindo como importante
baluarte para garantir uma das mais vitais rendas de um Estado. Seu aspecto
internacional possui objetivo similar, porém aplica-se à todas as jurisdições
cabíveis do mundo contemporâneo.123 O direito internacional tributário não é
apenas um campo técnico, alheio às complexidades das relações internacionais,
restringindo-se meramente à procedimentos e trâmites na esfera do Direito; muito
pelo contrário, é um campo de estudo onde os interesses econômicos (e as
projeções políticas destes) geram impactos relevantes.

118
NABAIS, Casalta. Direito Fiscal. Portugal: Almedina, 2007, p. 1-2.
119
AGHION et al. Carbon Taxes, Path Dependency and Directed Technical Change: Evidence from
the Auto Industry. United States: SSRN Electronic Journal. 2016, p. 1-3.
120
LITINA, Anastasia; PALIVOS, Theodore. Corruption, tax evasion and social values.
Netherlands: Journalof Economic Behavior & Organization, 2016, p. 2-3.
121
ROSE-ACKERMAN, Susan. Political Corruption and Democracy. United States:
Connecticut Journal of International Law, 1999, p.1.
122
CLEMENTE, F. Ensaios Sobre Sonegação Fiscal: Evidências Internacionais e Para
o Brasil. Brasil:Universidade Federal de Viçosa, 2016, p. 17.
123
DALMOLIN, Luís Carlos. A exploração tributária intermediada pelo Estado: dos
mecanismos tributários anestesiantes à fictio juris. Brasil: Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2016, p. 51.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 220

Assim, pode-se compreender de maneira mais simples que a política fiscal


internacional de um país é perquirir de maneira mais ampla sobre sua política
econômica e seu papel no cenário político internacional; um dos temas mais
relevantes da tributação internacional, nas últimas décadas, tem sido a
concorrência fiscal entre os países, a qual transforma a tributação em instrumento
da concorrência pela atração de investimentos e capitais por meio de refúgios
fiscais e outras práticas, lícitas ou não, que já foram detalhadas neste trabalho.124
Por isso, o direito tributário internacional sempre estará entrelaçado com
quaisquer questões sobre refúgios fiscais, servindo como sedimento para
potenciais políticas fiscais e regramentos tributários que buscam ser legitimadas e
aplicadas de formal internacional.

Por fim, preza-se o combinado esforço das dezenas de países que


elaboraram a OCDE, organização intergovernamental que promete alterar a esfera
financeira por meio da implementação políticas e regramentos fiscais ordenados
por forças jurídicas internacionais legítimas, afim de realizar a aspiração de um
dia estabelecer uma porcentagem tributária global mínima, que atualmente foi
proposta em 15%. Porém, antes de haver foco no papel e desempenho desta
organização, explana-se por motivos de melhor esclarecimento, e difusão de
conhecimento, sobre certas configurações do direito internacional tributário.
5.1 A Disparidade Legislativa no Âmbito Internacinal
Um dos motivos que dificultam o uso de instrumentos jurídicos no âmbito
tributário internacional é a liberdade e diversidade legislativa que existe no
mundo contemporâneo; cada Estado, cada jurisdição, possui (em tese) o direito de
elaborar quaisquer leis que visam necessários para o contínuo funcionamento e
evolução do governo, além da garantia dos direitos e deveres de seus cidadãos,
aspecto da soberania estatal.125 O problema que se encontra ao tentar elaborar uma
política fiscal internacional é o conflito de interesses entre os países: uns preferem
continuar como refúgios fiscais; outros necessitam de refúgios fiscais para garantir
sua relevância, status ou poderio econômico; e outros visam esmagar os refúgios
fiscais, seja pela ameaça ou realização de que há desvantagens que prejudicam ou
comprometem suas participações na competição econômica mundial. Não
obstante, o âmbito privado também tem a dizer nisto, haja vista que as
corporações que fazem uso das legislações tributárias estrangeiras mais relaxadas
para maximizar seus capitais e proteger seus bens e ativos.

O direito de tributar é, em sua essência, um poder soberano dos países, o


que significa que a intervenção internacional diretamente confronta o conceito da
tributação como conhecemos atualmente em sua tentativa de estabelecer uma
forma de taxação igual e global. Por estes motivos, coordenar e concordar em uma
política fiscal ou tributo que seja aplicado a todos os países posa como um desafio

124
BARRETO, Paulo Ayres; TAKANO, Caio Augusto. Os desafios do planejamento
tributário internacional na era pós-BEPS. In XIII Congresso – 50 anos do código tributário
nacional. Brasil: Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET, 2016, p. 1026-1028.
125
YANG, James; METALLO, Victor. The Emerging International Taxation
Problems. Switzerland: International Journal of Financial Studies, 2018, p. 1-10.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 221

sem precedente.126 Isso porque a ideia (ênfase em ideia, pois nunca veio à fruição)
de tributação global ou internacional já existe e foi proposta no passado, nunca
materializando-se devido ao conflito de interesses e certa hesitação e medo de
alguns países; ora, se todos os países conseguem concordar em uma legislação
global, para que serve a soberania destes mesmos? De fato, a OMC surgiria como
foro multilateral responsabilizada pela regulamentação do comércio e certos
aspectos tributários (na forma de descumprimento de acordos internacionais,
por exemplo) em escala internacional, porém apenas décadas após a concepção
da ideia mencionada, firmando ainda mais a dificuldade de estabelecimento de
instrumento regulatório internacional na esfera econômica.
Desde o fim da Guerra Fria, as relações econômicas internacionais se
tornaram cada vez mais proeminentes, exacerbando-se com revolução
tecnológica e a Internet. A partir disso, a economia internacional conseguiu
desconsiderar os limites territoriais e geográficos nacionais em favor do acréscimo
do comércio e produção, que possibilitam o desenvolvimento dos países.
Atualmente, existe certa exigência acerca da possível reformulação de aspectos e
elementos fundamentais que compõem um Estado, visando integrá-los à economia
internacional de maneira mais fluída, além de possibilitar o melhor combate dos
abusos fiscais que ocorrem e regulamentação dos refúgios fiscais que os facilitam.
Tal reformulação atingiria o Direito também, de forma internacional, adaptando-o
para ser mais adequado nesta nova ordem mundial especulada.
Porém, no presente momento, não existem indicativos concretos que
sustentem a possibilidade da ocorrência deste cenário em um futuro previsível;
logo, a soberania estatal continua como certo impeditivo à instauração de
legislação tributária internacional. No Brasil, assim como em muitos outros países,
a soberania é inerente ao Direito Internacional, pois no mesmo momento em que
um Estado nasce, já é soberano, algo que é reafirmado como princípio
fundamental na Constituição, conferindo ao mesmo o poder de decisão,
acompanhado sempre por seu povo e território. Assim, compreende-se que um
obstáculo ao estabelecimento de política fiscal global seria o aspecto da soberania
das nações, que por si só representa um embate ideológico que persiste desde a
concepção da ideia de uma comunidade internacional que age sob as mesmas
jurisdições que qualquer outro país. Tal problemática merece análise especial, pois
aglomera quantidade significativa de conhecimento acadêmico que pode ser
devidamente estudado.
5.2 As Medidas e Tentativas de Policiamento
Consideradas as informações relatadas até o presente momento, pode-se
afirmar que há uma forte vontade de policiamento dos refúgios fiscais, um dos
motivos sendo as atividades ilegais que ocorrem em seus meios; nesta seção,
revela-se algumas das reações regulatórias arguidas contra os refúgios fiscais.
Estas reações manifestaram regulamentos afim de mitigar problemas existentes ou
potenciais dos refúgios, podendo ser distinguidos por suas naturezas, unilateral ou
multilateral.

126
Idem, 2018, p. 1-10.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 222

Medidas unilaterais ocorrem quando apenas um Estado está envolvido, o


que facilita sua implementação. Em questão dos refúgios fiscais, as mais
importantes medidas unilaterais são o levantamento do sigilo bancário, a gestão da
transparência fiscal das sociedades do exterior, a prevalência da substância sobre a
forma, a inversão do ônus de prova e os requisitos de declaração. Sob melhor
análise temos127, primeiramente, o levantamento do sigilo bancário; consiste de lei
que efetivamente forçaria os bancos e outras instituições financeiras de um país a
fornecerem documentação bancária, como relatórios de transações de moeda, aos
reguladores, podendo ser exigida dos bancos sempre que seus clientes lidam com
transações em dinheiro suspeitas (normalmente categorizadas por envolverem
quantias superiores a US$10.000,00). Esta medida efetivamente concederia às
autoridades a capacidade de reconstruir mais facilmente a natureza das transações
e traçar a origem das mesmas. Além disso, esta medida demarca grande avanço
em termos de transparência, porém não obteve sucesso acerca das inconsistências
sistêmicas mais amplas que respondem por grandes disparidades na distribuição
da riqueza. Esta medida ajuda na luta contra a lavagem de dinheiro, além de
impedir a internacionalização do dinheiro outras economias paralelas, como
crimes de tráfico de pessoas ou drogas. Um exemplo interessante da realização
desta medida foi quando o ex-presidente americano Barack Obama, por vontade
política própria, trabalhou para levantar o sigilo bancário para aproximadamente
300 contas bancárias do Union Bank of Switzerland (UBS), apesar da falta de
cooperação das partes envolvidas.128 Avante, trata-se de transparência fiscal das
sociedades do exterior; a transparência fiscal das empresas no exterior refere-se à
demonstração de vontade para relatar e fornecer contas e registros para qualquer
transação comercial conduzida por pessoa jurídica registrada no exterior.129 Esta
medida é destinam-se a tributar os lucros não devolvidos de empresas
estabelecidas em paraísos. Em Portugal, por exemplo, economias fiscais
superiores a € 100.000,00 devem ser reportadas às autoridades fiscais. Esta
obrigação consta do decreto-lei n. 29/2008, que foi aprovada em 29 de outubro de
2008, e tenta impedir o planejamento tributário abusivo. Porém, esta medida
baseia-se em autorrelato. Como as empresas usam a lei dessas jurisdições
autônomas (refúgios fiscais e centros offshore), o pedido de mais transparência de
uma empresa pelo governo de outra jurisdição é muito difícil. Assim, a OCDE
adotou a cooperação com assinatura de acordos de prestação de
informações(relevantes à tributação e transações bancárias, principalmente) como
critério para o reconhecimento de refúgio fiscal.
Também há a prevalência da substância sobre a forma; a prevalência da
substância sobre a forma refere-se à provisão de dispositivos legais obrigatórios
ou estabelecimento em lei da composição de uma atividade, econômica ou de

127
TOUMI, Marika. Anti-Avoidance and Harmful Tax Competition: From Unilateral to
Multilateral Strategies? New Zealand: Political Science, 2002, p. 88-93.
128
OCDE. United Nations Model Double Taxation Convention between Developed and
DevelopingCountries. France: OECD Publishing, 2014.
129
DUMLUDAG, D. An analysis of the determinants of foreign direct investment in
Turkey: The role ofthe institutional context. Lithuania: Journal of Business Economics and
Management, 2011.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 223

outro tipo, afim de deixar seu conceito menos vago, impedindo potencial
exploração de brecha. Esta medida unilateral confere à autoridade fiscal o poder
de rejeitar atos ou estruturas simuladas ou artificiais e que ocultam a substância de
suas atividades. vínculos com o único objetivo de obter vantagens fiscais. 130
Ainda, curiosamente, identifica-se o emprego da inversão do ônus da
prova, que nada mais é que uma norma legal que estabelece que o acusador não é
responsável para provar as ações do acusado, forçando o acusado a comprovar sua
inocência por meio de provas verídicas; neste cenário, aquele acusado deverá se
inocentar de estar promovendo ou agindo de alguma forma uma evasão fiscal.
Essa medida é controversa, uma vez que os dados colhidos pelos países que
utilizaram dela retornaram informações que constariam a margem de erro
significativa, o que simplesmente enquadrava pessoas físicas e jurídicas como
potenciais evasores quando não eram.131
Depois, existem os requisitos de declaração, que obrigam os contribuintes
a declarar periodicamente quaisquer valores pagos ou devidos a entidades
estrangeiras às autoridades fiscais; nota-se que uma medida como esta apenas
funciona se a medida anterior for acatada. E, finalmente, além das já mencionadas,
há de se mencionar a existência de certas medidas unilaterais adicionais: a recusa
de participação em convenções internacionais com refúgios fiscais (agindo como
forma de protesto e demonstrando irresignação do país); a recusa de acesso ao
sistema judiciário para certas entidades típicas dos refúgios fiscais; e a
criminalização de alguns tipos de fraude envolvendo a utilização de refúgios
fiscais.132

Em uma visão importante sobre a discussão sobre atividades offshore, cita-


se Ginevicius e Tvaronaviciene133, que enfatizaram que “quaisquer tentativas do
governo de restringir as atividades offshore de empresas locais não poderia ser
suficientemente eficaz se, como no caso da Lituânia, as outras jurisdições
(como a Rússia) deixam oportunidade parausufruir dos refúgios fiscais
legalmente. Assim, a melhoria do clima de negócios no próprio país pode ser
enfatizada devido à atração restrita de empresas offshore.”
Dando seguimento, as medidas multilaterais implicam o envolvimento de
vários Estados e a cooperação de várias partes, tornando sua implementação
complexa à ponto de frustração, por motivos já averiguados (soberania, por
exemplo). Assim como as medidas unilaterais, reserva-se o seguinte momento
para discorrer sobre elas134.

130
LODIN, S. International Tax Issues in a Rapidly Changing World. Netherlands: Bulletin for
InternationalFiscal Documentation - Vol. 55, 2001.
131
PLATEFORME PARADIS FISCAUX ET JUDICIAIRES. Paradis Fiscaux et Judiciaires
Cessons lescandale! France: Secours Catholique, 2007, p. 9-10.
132
Idem, 2007, p. 9-10.
133
GINEVICIUS, R.; TVARONAVIČIENE, M. Tax evasion through offshore companies:
How importantthe phenomenon is? Lithuania: Journal of Business Economics and
Management, 2010, p. 25-30.
134
LITWAK, Martin. Paraísos fiscales e infiernos tributarios: una mirada diferente sobre las
jurisdicciones
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 224

A harmonização fiscal é medida envolve a prática de buscar alinhar


alíquotas de impostos diretos em todos os espaços judiciários com o objetivo de
prevenir fuga de capitais para centros financeiros offshore e refúgios fiscais.
Segundo Bernard Bouzon135, a tributaçãoé a principal ferramenta à disposição dos
Estados para compensar as disparidades na distribuição de renda, e conclui que a
viabilidade da criação de um sistema de tributação internacional dependeria
principalmente de vontade política. O exemplo mais conhecido desta medida
limita-se à tributação indireta, na forma do sistema comum do IVA no União
Europeia.
Já a solicitação de informações consiste de medida consiste essencialmente
em fornecer ou estar disposto a fornecer informações no momento em que são
solicitadas. Esta foi a medida foi utilizada pela OCDE em uma tentativa de obter
mais transparência com diversos refúgios fiscais. Por último, a medida de controle
de mensagens eletrônicas interbancárias apresenta-se como ímpar para a
supervisão multilateral. Assim como existe uma Sociedade para
Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (SWIFT Worldwide) cujo
objetivo é facilitar o processamento automático de mensagens comunicadas
eletronicamente entre bancos, poderia haver também uma autoridade supervisora,
na forma deum órgão ou extensão de organização internacional cabível (como, por
exemplo, o Conselho Econômico e Social da ONU), que controlaria e filtraria
todas essas mensagens para identificar cada operação incluindo trocas com
centros financeiros offshore, que então seriam objeto de investigação no momento
em que houver suspeita de fraude ou evasão fiscal. No entanto, a implementação
desta medida, como as já mencionadas medidas acima, envolveria enorme
complexidade devido à falta de consenso entre os Estados.
Enfim, tendo visto o montante de medidas e tentativas de policiamento dos
refúgios fiscais, cabe comentar sobre o G20 e a União Europeia. Acontece que o
Fórum Global sobre Tributação (GFT), guiado pelo trabalho do Comitê da
OCDE Comissão de Assuntos Fiscais, desenvolveu uma norma que foi aprovada
pelo G20 e Comitê de Especialistas das Nações Unidas sobre Cooperação
Internacional em Matérias Fiscais, e agora serve de base para a maioria dos
acordos fiscais bilaterais e como uma norma internacionalmente acordada sobre
troca de informações.136
O método apropriado para distinguir entre jurisdições que aplicam a norma
daqueles que não têm foi avaliado em vários países. Embora não seja rigoroso
medida de progresso, a assinatura dos 12 acordos de intercâmbio de informações
foi considerada um indicador de progresso por uma jurisdição. Note-se que a
retirada de todos os 70 membros da lista negra de impostos refúgios fiscais só
podem ser atribuídos a uma mudança de critério, que passa a incluir acordos
bilaterais entre os Estados. Em 2005, a chamada “Diretiva de Poupança”
(European Union Savings Directive - EUSD) foi elaborada pela União Europeia

offshore y la competencia fiscal. United States: Independently Published, 2020.


135
BOUZON, Bernard. Hypocrisie et Paradis. Portugal: Exposé Coimbra ATTAC - Délinquance
FinanciéreStop, 2009, p. 1-7.
136
PALAN, R.; CHAVAGNEUX, C. Les Paradis Fiscaux. France: La Découverte, 2007.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 225

para combater a evasão fiscal, que vem assolando seus Estados-membros; se


aplicada, obrigaria estes a fornecerem todas as informações sobre os rendimentos
de capital de seus residentes. No entanto, não houve apoio pela diretiva, e a
mesma foi repelida; seria este fato uma prova de algum conflito de interesses
entre os Estados-membros? Cabe análise mais profunda em estudo separado.
Apesar de todos os esforços, toda evidência aponta que é muito provável
que seja menos eficaz concentrar-se nos refúgios fiscais ao invés das disposições
legislativas que os protegem. Estados, em cooperação, pode recusar-se a
reconhecer a legalidade dos presentes estatutos de tais entidades. Como visto,
existem medidas que visam restringir as práticas ilegais exuberantes que ocorrem
por meio dos refúgios fiscais, porém dependem de uma quantidade de cooperação
inaudita, e envolve complexas questões que envolvem a esfera social, política,
legal e econômica; considerando ainda que os frutos destas medidas tem sido
relativamente desapontantes, uma vez que ainda não há uma medida que se
destaca como umasolução ideal, mesmo se temporária.
5.3 A Necessidade de Transparência de Dados
Nos últimos anos, dada a proeminência dos refúgios fiscais e atividades
que ocorrem em seus territórios, há grande clamor popular acerca da transparência
de dados. Transparência é a medida em que os investidores têm acesso imediato às
informações financeiras necessárias sobre uma empresa, como níveis de preços,
profundidade de mercado e relatórios financeiros auditados. Os investidores
também exigem transparência com as empresas e fundos de investimento em
torno das várias taxas que serão cobradas deles. Por exemplo, a transparência trata
da clareza para os consumidores sobre as taxas que o banco cobra ou a taxa que os
consumidores pagarão à operadora de cartão de crédito. A transparência ajuda a
reduzir a incerteza e as flutuações descontroladas dos preços das ações porque
todos os participantes do mercado podem basear decisões de valor nos mesmos
dados. As empresas também têm uma forte motivação para fornecer divulgação
porque a transparência é recompensada pelo desempenho das ações. 137
Um forte indicador de crescimento futuro é como uma empresa investe seu
dinheiro. Quando um investidor não consegue encontrar informações informando
onde uma empresa investe, é menos provável que o investidor invista no negócio.
Demonstrações financeiras opacas podem ocultar o nível de endividamento de
uma empresa, por exemplo, enquanto a empresa está lutando contra a
insolvência.138 Os investidores devem estar cientes dos investimentos subjacentes
que compõem suas carteiras. Em novo exemplo, possuir uma única ação significa
investir em uma empresa, enquanto possuir um fundo mútuo significa investir em
uma cesta de títulos ou empresas. A transparência ajuda a mostrar aos investidores
quanto risco está envolvido na compra de ações, o que pode ajudar a tomar
decisões de investimento mais informadas.

137
BENNEDSEN, Morten; ZEUME, Stefan. Corporate Tax Havens and Transparency.
United Kingdom:Review of Financial Studies, 2018, p. 1222-1227.

138
BENNEDSEN, Morten; ZEUME, Stefan. Corporate Tax Havens and Transparency.
United Kingdom:Review of Financial Studies. 2018, p. 1222-1227.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 226

Os investidores devem comparar seus retornos de investimento com os de


títulos relacionados, benchmarks e outras classes de ativos para ajudar a
determinar o desempenho de seu investimento. Se uma ação, por exemplo, está
com baixo desempenho enquanto o setor está indo bem, pode ser uma bandeira
vermelha. Em outras palavras, os participantes do mercado podem estar
preocupados com a situação financeira da empresa, as perspectivas de receita, a
carga da dívida ou a capacidade da administração de administrar a empresa de
forma eficaz. Limitações de investimento, como restrições de liquidez – o que
significa que é difícil comprar e vender ações prontamente – bem como a estrutura
de taxas para fundos e investimentos, devem ser disponibilizadas.
Os investidores baseiam suas decisões de investimento em grande parte
nas demonstrações financeiras que cada empresa fornece; portanto, é crucial
manter as empresas que são transparentes sobre seus relatórios financeiros e evitar
aquelas que ofuscam os números. Se a gestão não for transparente, é praticamente
impossível para os investidores ter certeza sobre a relação risco/recompensa real
dessa empresa. 139 Utiliza-se das palavras de Ana Raposo Ferreira140 para reforçar a
necessidade da transparência de dados transacionais em refúgios fiscais:
[...]por fim, uma das consequências mais
importantes da existência dos PF, é que eles,
dada a sua opacidade, pervertem todo o
sistema económico, criando fortes e
incomportáveis assimetrias fiscais, sendo um
dos carburantes para a formação de bolhas
especulativas e, por essa via, a correrem o risco
de dinamizar crises económicas. As jurisdições
opacas contribuem para a criação de uma
extrema concentração de riqueza, o que pode
provocar a instabilidade económica e recessões
longas. A evasão corrompe os sistemas fiscais
dos Estados modernos e a capacidade do Esta-
do em disponibilizar os serviços exigidos pela
cidadania. Além disso, representa a mais alta
forma de corrupção, porque priva a sociedade
de recursos públicos legítimos. De igual forma,
se poderá dizer que os Estados, a partir do
momento que sabem, reconhecem e
inclusivamente criam e abrigam a existência de
zonas de benefícios jurídicos e fiscais, têm
consciência de que isso irá privar o Estado de
receitas fiscais, privando por consequência os
cidadãos de ter acesso a serviços considerados
mínimos numa sociedade que se pretende

139
ELLUL et al. Transparency, Tax Pressure, and Access to Finance. United Kingdom:
Review of Finance, 2015, p. 7-10.
140
FERREIRA, Ana Margarida Raposo. Paraísos Fiscais – Novos Desafios e Ameaças.
Portugal: Revista daAssociação Portuguesa de Sociologia, 2011, p. 308.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 227

autossuficiente na saúde, na educação, na


justiça, na defesa.

Para realçar alguns dos efeitos positivos da transparência de dados, dá se o


seguinte exemplo: Desai, Dyck e Zingales mostram que na Rússia, uma política
fiscal mais forte reduz o desvio de renda por parte de pessoas de dentro. Assim, a
petrolífera russa Sibneft obtém retornos anormais positivos em torno de cinco
eventos de execução fiscal na Rússia, indicando que a execução fiscal tem um
impacto positivo no valor da empresa.141 Mironov fornece suporte para estes
resultados: na Rússia, a aplicação de impostos correlaciona-se positivamente com
a atuação. Nossos achados apoiam essas interpretações em um contexto empírico
mais amplo. contexto. Especificamente, a expropriação se estende muito além de
países com fraca governança, é facilitada por operações opacas nos refúgios
fiscais e éreduzida através de melhorias na transparência.142

Segundo Azevedo, transparência traz clareza, uma vez que há "necessidade


de haver clara publicação das regras aplicáveis pela Administração Fiscal para
poderem ser invocadas pelos contribuintes, por exemplo, em sede de reclamações
e recursos, e também na necessidade de disponibilidade por parte de outras
jurisdições dos detalhes de aplicação prática dessas mesmas regras". 143 O objetivo
da transparência é, simplesmente, introduzir uma certa simplicidade para o
sistema tributário internacional, para que as leis que impactem esta esfera sejam as
mais claras e objetivas possíveis, reduzindo a possibilidade de circunstâncias
excepcionais, de isenção ou de benefício fiscal, para um mínimo aceitável, uma
vez que a permissão constante destas peculiaridades apenas semeia incerteza e
insegurança a todosistema fiscal.

6. INSTRUMENTOS JURÍDICOS E A OCDE


Diante todos os dados e informações analisados neste trabalho, resta
averiguar aquestão: “Existem instrumentos jurídicos que podem agir e amparar, de
forma igual e única, todo o mundo?” Ocorre que existem, porém sua presença no
ambiente tributário internacional é certamente diferenciada; mesmo assim,
importante citar e aprofundar sobre tais, para melhor compreender se há ou não
possibilidade de acionar instrumentos jurídicos existentes ou criar novo para atuar
numa tentativa de resolução dos problemas que nascem dos refúgios fiscais.
Desde já, merece menção os tratados internacionais fiscais já existentes e vigentes
entre certos países, assim como determinadas organizações internacionais que

141
DESAI, Mihir; DYCK, Alexander; ZINGALES, Luigi. Theft and Taxes. Netherlands:
SSRN ElectronicJournal, 2007, p. 32-33.
142
MIRONOV, M. Taxes, Theft, and Firm Performance. United States: The Journal of
Finance, 2013, p. 1470-1471.
143
AZEVEDO, P. A. O Princípio da Transparência: entraves e algumas manifestações e
soluções práticas. Portugal: Centro de Investigação Jurídico-Econômica, 2010, p. 146-157.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 228

buscam regulamento do cenário tributário de forma internacional (OCDE e


ICRICT, principalmente).
6.1 Tratados Internacionais no Âmbito Tributário
Hoje em dia, os tratados internacionais tornaram-se a principal fonte de
obrigações do direito internacional; como afirma Valério de Oliveira Mazzuoli144:
Os tratados são, incontestavelmente, a
principal fonte do direito internacional, não
apenas em relação à segurança e estabilidade
que trazem nas relações internacionais, mas
também porque tornam o direito das gentes
mais representativo e autêntico, na medida em
que se consubstanciam na vontade livre e
conjugada das nações, sem a qual não
subsistiriam.
Tratados internacionais foram elaborados ao longo da História para
defender os interesses comuns de mais de um Estado; estes Estados, por livre
e espontânea vontade, podem optar por concordar, ratificar e obedecer aos
critérios do documento jurídico elaborado. Já os tratados internacionais em
matéria tributária (chamados de tratados fiscais), quando falamos de refúgios
fiscais, costumam versar sobre formas de evitar ou de reduzir práticas criminosas
como a evasão fiscal por meio da troca de informações, assistência mútua, e
cooperação aduaneira, além da complementação econômica. Ou seja, facilitar o
comércio transfronteiriço e investimento, eliminando os impedimentos fiscais a
estes fluxos transfronteiriços. Este objetivo amplo é complementado por vários
objetivos operacionais mais específicos de um devido Estado. A grande maioria
dos tratados fiscais são acordos bilaterais entre dois Estados soberanos.145

O maior objetivo dos tratados fiscais bilaterais é a eliminação da dupla


tributação. Se os rendimentos do comércio e do investimento transfronteiriços
forem tributados por dois ou mais países ao mesmo tempo sem qualquer alívio,
tal dupla tributação obviamente desencorajaria tal comércio e investimento; logo,
muitas das disposições substantivas de um tratado bilateral tributário são
direcionadas a consecução deste objetivo.146 As soluções criadas por meio de
tratados para os principais problemas de dupla tributação foram elaboradas nos
meados do século XX, no entanto, e agora são rotineiramente aceitos pelos
Estados quando entram em tratados fiscais. A única exceção importante é o
problema da dupla tributação decorrente de aplicações por países do método de
plena concorrência para estabelecer preços de transferência em transações entre
pessoas relacionadas.

144
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Tratados internacionais (com comentários à
Convenção de Viena de1969). São Paulo: Saraiva, 2004, p. 114.
145
ARNOLD, Brian. An introduction to tax treaties. United States: United Nations Publications, 2013,
p. 1-16.
146
ARNOLD, Brian. An introduction to tax treaties. United States: United Nations Publications, 2013,
p. 1-16.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 229

A ênfase na dupla tributação, porém, não justifica a omissão de outro


problema que os tratados tributários buscam solucionar - a prevenção de evasão
fiscal, objetivo reconhecido tanto pelas ONU quanto pela OCDE. Um
exemplo de tratados internacionais tributários recentes é a proliferação dos
Acordos de Troca de Informações Tributárias (TIEAs). Normalmente, esses
acordos são celebrados por países com impostos elevados com países com
impostos baixos ou isentos de impostos com os quais, de outra forma, não teriam
um tratado tributário. Em geral, esses TIEAs exigem que os países com impostos
baixos ou sem impostos troquem informações da mesma forma que previsto no
Artigo 26 das Convenções Modelo das Nações Unidas e da OCDE. Adiante,
possível compreender que a relação entre os tratados fiscais e a legislação
tributária nacional é complexa em muitos países. O princípio básico é que o
tratado deve prevalecer em caso de conflito entre as disposições do direito interno
e um tratado. Em alguns países, este princípio tem estatuto constitucional; já
em outros países, o governo tem claramente a autoridade sob a lei nacional para
anular asdisposições de um tratado tributário.
Por exemplo, o legislativo à supremacia é um estado de direito
fundamental em muitas democracias parlamentares. Como resultado, fica claro
nesses países que a legislação tributária doméstica pode anular seus tratados
tributários. No entanto, os tribunais nesses países podem exigir que a legislatura
indique explicitamente sua intenção de anular umtratado antes de dar efeito a uma
lei interna conflitante. Os tribunais também podem se esforçar para encontrar
algum fundamento para conciliar um aparente conflito entre um tratado e a
legislação nacional.147
Até o presente momento, inexistem tratados fiscais que imponham
impostos, pois o entendimento legal é que o imposto é estabelecido por lei
nacional; portanto, tratados fiscais somente poderiam limitar certos aspectos dos
impostos de um Estado. Muitas das disposições dos tratados fiscais não operam
independentemente da lei nacional porque incluem referências explícitas ao
significado dos termos no direito interno. Por outro lado, em alguns países onde a
legislação nacional usa termos que também são usados no tratado, o significado
desses termos para fins de direito interno pode ser interpretado de acordo com o
significado dos termos para os fins do tratado.148
No entanto, se os tratados fiscais um dia regerão o direito de tributar sem
depender da lei nacional, isto é uma questão de direito interno. A legislação
interna de alguns países prevê que têm o direito de tributar, nos termos do direito
interno, qualquer quantia de que não estejam impedidos tributação nos termos do
tratado. Reforça-se que as disposições dos tratados fiscais não substituem
inteiramente as disposições do direito interno de um Estado.149 Agora, no que

147
HAMPTON, M. A Preliminary Analysis of the Offshore Interface Between Tax Havens,
Tax Evasion, Corruption and Economic Development. United Kingdom: University of
Portsmouth, 1995.
148
OGLEY, A. Principles of International Tax - A Multinational Perspective. United
Kingdom: Interfisc Publishing, 1993.
149
OWENS, J. Towards World Tax Co-operation. France: OECD Observer, 2000.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 230

tange os refúgios fiscais e tributação igualitária global, atualmente existe uma


iniciativa que visa a reforma das regras tributárias internacionais para assegurar o
pagamento de uma quantia justa de impostos por parte de empresas
multinacionais, onde quer queoperem.
Tal iniciativa é liderada pela OCDE em conjunto com o G20, que
elaboraram o projeto BEPS com intuito de implementar ações em todos os países
estão aderidos (por enquanto, são mais de 135 países) que iriam não só
combater a transferência indevida de lucros para refúgios fiscais como também
agiria para evitar a possibilidade da Erosão de Base Tributária e Desvio de
Lucros. Com isso, vê se que os tratados internacionais possuem uma atuação
significativa na esfera tributária, uma vez que servem para evitar a dupla
tributação e diminuir encargos tributários no comércio internacional. Importante
notar que, inerente à natureza dos tratados internacionais, estes não revogam, nem
modificam, a legislação interna de um Estado, apenas limitam a eficácia da lei
interna que é incompatível com eles, respeitando a soberania e os regramentos
internos de uma nação.
6.2 A OCDE e suas funções
A OCDE é uma organização internacional que trabalha para construir
melhores políticas para uma vida melhor, com o objetivo de moldar políticas que
promovam prosperidade, igualdade, oportunidade e bem-estar para todos. Baseia-
se em 60 anos de experiência e insights para preparar e estabelecer, juntamente
com governos, formuladores de políticas e cidadãos, padrões internacionais
baseados em evidências e encontrar soluções para uma série de desafios sociais,
econômicos e ambientais. Desde melhorar o desempenho econômico e criar
empregos até promover uma educação sólida e combater a evasão fiscal
internacional, fornecemos um fórum único e um centro de conhecimento para
dados e análises, troca de experiências, compartilhamento de melhores práticas e
aconselhamento sobre políticas públicas e definição de padrões internacionais.150
A OCDE tem ganhado grande destaque no cenário global devido a seus
esforços acerca de programas de planejamento fiscal internacional; simplesmente,
ela tem desenvolvido projetos que equipariam governos com uma base tributária,
tanto doméstica quanto internacional, e instrumentos jurídicos capazes de repelir
evasões fiscais, garantindo a devida tributação dos lucros gerados pelas atividades
econômicas ocorridas, não importando onde são concebidos e para onde vão. Tal
ambição tem visto bons frutos, havendo apoio do G20 e dezenas de países, o que
firmou a organização como a principal normatizadora quando se vêm à matéria
tributária internacional; atualmente, a OCDE possui dois grandes projetos: o
Modelo para Troca de Informações Tributárias, ou Padrão Comum de Relatório
(Common Reporting Standard - CRS); e a Erosão de Base e Transferência de
Lucros (Base Erosion and Profit Shifting – BEPS).151
O CRS se destaca como regime de troca de informações financeiras
automática através das fronteiras para ajudar as autoridades fiscais a rastrear as

150
Retirado do site da OCDE (https://www.oecd.org/about/).
151
NUNES et al. A redução da evasão fiscal com a adoção do BEPS – Base Erosion and
Profit Shifting. Venezuela: Revista Espacios, 2016, p. 1-12.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 231

participações offshore de seus contribuintes. Infelizmente, o CRS contém muitas


brechas, como, por exemplo, a possibilidade de reivindicação de residência em
refúgios fiscais por pessoas estrangeiras, o que possibilitaria transgressores de
evasão fiscal de simplesmente alegarem que moram nos refúgios que exploram
sem investigação adicional. Mesmo assim, o CRS trouxe resultados, com a OCDE
publicando estimativa em julho de 2019 que afirma que 90 países compartilharam
informações sobre 47 milhões de contas no valor de € 4,9 trilhões; mais
importante, os depósitos bancários em refúgios fiscais foram reduzidos em 20% a
25%.
Em outro lado, temos o BEPS, projeto que alveja corporações
multinacionais especificamente; por meio deste projeto, a OCDE buscou
“realinhar a tributação com a substância econômica” sem interrupção do consenso
internacional de longa data que apoia o princípio de plena concorrência, algo que
foi reforçado por multinacionais que escapam de impostos e seus aliados.
Embora o BEPS tenha melhorado a transparência para as multinacionais,
acabou sendo visto como um fracasso pela OCDE, especialmente para a ascensão
de uma economia digitalizada na forma de criptomoedas, blockchains e NFTs..152
Segundo as informações providas, os fluxos financeiros que buscam sigilo
ou fuga de impostos corporativos parecem ser exatamente a causa da exacerbação
da maldição das finanças, agravando a desigualdade socioeconômica, aumentando
a vulnerabilidade estatal (e até mesmo mundial) a crises e causando danos
políticos inquantificáveis à medida que o capital envolto em sigilo se infiltra nos
sistemas políticos de todo o mundo.153 A causa da OCDE é nobre, porém seus
compromissos de cooperação não demonstram a capacidade de “dar um fim” a
ocorrência de evasões fiscais. Felizmente, não é porque a cooperação fiscal
internacional é inerentemente ineficaz, pois os tratados fiscais sobre dupla
tributação oferecem provas de que essa cooperação pode funcionar em cenários
apropriados.
6.3 Alternativas às Medidas da OCDE
Avi-Yonah, em seu influente artigo, “Globalization, Tax Competition, and
the Fiscal Crisis Wellfare State”, sugere a adoção de um imposto retido na fonte
uniforme sobre investimento em carteira por nações desenvolvidas. Essa proposta
é construída sobre a importante percepção de que, embora "[...]as economias do
mundo podem ser estacionadas em refúgios fiscais tradicionais", essas economias
acabam sendo investidas em países desenvolvidos.”154 Em essência, Avi-Yonah
observa que o mundo desenvolvido poderia resolver o problema dos refúgios
fiscais essencialmente através da reintrodução da retenção de imposto. Tal
proposta aproveita a observação de que, mesmo se ativos "escondidos" em

152
NUNES et al. A redução da evasão fiscal com a adoção do BEPS – Base Erosion and
Profit Shifting. Venezuela: Revista Espacios, 2016, p. 1-12.

153
HETHERINGTON-GORE, J. The Future of Offshore as a Business Location
Following theEU/OECD/FATF/FSF Initiatives. France: OECD Publishing, 2001.
154
AVI-YONAH, R. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the
Welfare State. United States: Harvard Law Review - Vol. 113. 2000, p. 1632-1648.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 232

refúgios fiscais são investidos em países desenvolvidos, estas mesmas


jurisdições (que não são refúgios) irão impor um imposto sobre qualquer
rendimento de investimento no momento em que os pagamentos dessa renda
são feitos. Ao permitir o reembolso desses impostos retidos mediante
apresentação de prova de que os rendimentos foram reportados às autoridades
fiscais da jurisdição de residência do investidor, o regime de impossibilitaria a
evasão fiscal. Possíveis fraudes fiscais seriam forçadas a escolher entre pagar uma
retenção de impostos na jurisdição de origem ou pagar impostos em sua jurisdição
de residência.155
É importante notar que Avi-Yonah vincula explicitamente sua proposta de
retenção de impostos à "crise fiscal do estado de bem-estar social". Alguns dos
problemas com este modelo, porém, seriam a quantidade absurda de burocracia
que teria que ser acatada e inserida em todas as partes que agem na economia
mundial de alguma forma; não é do interesse de bancos ou até mesmo Estados
acatar este modelo, porém ainda apresenta-se como possível alternativa
dependendo do cenário econômico mundial do futuro.156
Enfim, algumas medidas alternativas às da OCDE se manifestam por meio
de outra organização: a Comissão Independente para a Reforma da Tributação
Corporativa Internacional (ICRICT); consiste de um grupo de líderes de todo o
mundo que acreditam que, neste momento da história, há uma necessidade urgente
e uma oportunidade sem precedentes de realizar uma reforma significativa do
sistema internacional sistema de tributação das empresas. A Comissão pretende
promover o debate sobre a reforma através de uma discussão mais ampla e
inclusiva das regras fiscais internacionais do que é possível através de qualquer
outro fórum existente; considerar as reformas de uma perspectiva de interesse
público global em vez de vantagem nacional; e buscar soluções fiscais justas,
eficazes e sustentáveis para o desenvolvimento.157 A ICRICT possui objetivos
similares à OCDE, porém acreditam que os resultados às tentativas de combate
aos abusos fiscais pela OCDE não foram satisfatórios o suficiente, optando por
proporem si mesmos alternativas ao modelo da OCDE, prometendo mudanças
mais explícitas e resultados mais promissores. Argumentam que o aumento real da
transparência de dados deveria agir como impulso para abolir todas as limitações
existentes acerca do acesso destes dados transacionais para que qualquer Estado
possa consultá-los, a qualquer momento.158
O ICRICT faz também outras propostas, tal como a necessidade de corrigir
distorções nas regras da tributação internacional a partir da introdução de novo
modelo de taxação das corporações multinacionais, que estatisticamente são os
que mais se envolvem em evasão fiscal. Para batalhar contra estas evasões que
ocorrem com auxílio dos refúgios fiscais, a comissão elaborou seu próprio
documento, que propõe uma resolução aparentemente simples, porém com grandes

155
Idem, 2000, p. 1632-1648.
156
DEAN, Steven. Philosopher Kings and International Tax: A New Approach to Tax
Havens, Tax Flight,and International Tax Cooperation. United States: The Hastings Law
Journal, 2007, p. 962-965.
157
Retirado do site da ICRICT (https://www.icrict.com/about-icrict).
158
IJF. Declaração da ICRICT. Brasil: Instituto Justiça Fiscal, 2016.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 233

perspectivas de transformação: reconhecer as multinacionais como entidades


únicas. Tal mudança significaria o fim desse tipo de prática, e pouco importando
se a companhia possui negócios de fachada em refúgios fiscais, já que os lucros da
empresa passariam a ser calculados globalmente.159
Após constante análise e minucioso estudo, válido dizer que não há
medidas existentes atualmente que caberiam perfeitamente e eliminariam a evasão
fiscal e a popularidade dos refúgios fiscais; porém, saber que existem alternativas
aos modelos da OCDE já geram certo alívio, uma vez que demonstra
permissibilidade na matéria tributária internacional, esta não sendo sequestrada
por idealistas, podendo qualquer acadêmico dedicado propor seus métodos e
modelos sem temer repercussão tenebrosa, firmando a noção de que estes
problemas afetam o mundo todo e necessitam de devida atenção e dedicação para
sua resolução.

159
IJF. ICRICT demanda medidas tributárias internacionais para uma recuperação
econômicasustentável. Brasil: Instituto Justiça Fiscal, 2020.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 234

CONCLUSÃO

A demonização dos refúgios fiscais diante dos olhos da maioria da


população mundial serve apenas para difundir erroneidades e preocupações acerca
de suas existências; o fato é que real mudança não só vem dos líderes mundiais,
como também da população global. É imperativo utilizar de todos os métodos,
programas e instrumentos em nossa disposição para mobilizar e conscientizar as
pessoas sobre a necessidade de uma fiscalização mais justa. A percepção da
comunidade acadêmica sobre este assunto é muito importante e é só por meio de
uma mobilização crítica que essa batalha continuará avançando e obrigando os
governos a atuarem contra a iniquidade fiscal que existe em muitos países.
O objetivo deste trabalho não é meramente fornecer um relato sobre
refúgios fiscais e sua complexidade, visando digerir para o leitor diversos
conceitos econômicos afim de tornar o assunto mais palatável; este trabalho visa
incentivar acadêmicos e formuladores de políticas a lidar com os refúgios fiscais
de uma maneira imparcial, respeitando estes mesmos e seus papéis na economia
mundial, desenvolvendo uma compreensão mais completa do que faz com que
os refúgios fiscais continuem prosperando e influenciando o âmbito internacional.
Enquanto é tentador imaginar que os governos nacionais agem de forma confiável
para beneficiar suas nações, como uma teoria nacional de interesse público da
legislação sugeriria, não é mais razoável confiar em tal suposição considerada a
inadimplência de muitos países para com os abusos fiscais que continuam
desaforados e intocados pelas regras fiscais domésticas.
Vemos que os tratados fiscais internacionais não são uma solução mágica
para o problema da fuga de impostos, pois há impeditivos como a soberania
estatal e a falta de cooperação por motivos diversificados, para nomear alguns já
vistos neste trabalho. Neste viés, pelo menos no presente momento, identifica-se
que as chamadas “soluções dos refúgios fiscais” majoritariamente acabam sendo
propostas que alvejam apenas os sintomas causados por estas localidades, e não os
paraísos em si. Mas há evidências acerca das vantagens significativas que eles
oferecem, juntamente com as propostas de compromissos de cooperação e
transparência de dados e a retenção de impostos. Porém, estes dispositivos
somente funcionarão se os governos dos refúgios fiscais mostrarem disposição em
confrontar as fraudes fiscais que ocorrem em seus espaços e, de certo modo,
afetam suas imagens e reputações. Até agora, estes territórios mostraram pouca
inclinação para responder às potenciais consequências colaterais transnacionais de
não satisfazer plenamente suas obrigações de acordo com seus compromissos de
cooperação da OCDE.

Buscou-se analisar os refúgios fiscais em todas as facetas disponíveis,


tanto como “inimigo” quanto como “aliado”, e os impactos destes no
planejamento tributário internacional, tentando expor, juridicamente, que a visão
negativa dos refúgios fiscais é relativa, principalmente, quando a elisão fiscal
apresenta-se como possibilidade legal do contribuinte se proteger de onerosa e
excessiva carga tributária, desvirtuada dos princípios fiscais e, ainda, sem as
contraprestações do Estado quando este opta pela má escolha dos interesses
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 235

públicos primários, quebrando a teoria do consentimento e do princípio da


confiança.
Tendo discutido as principais razões para a existência, aparência e
consequências dos refúgios fiscais, é verídico afirmar que os refúgios fiscais
necessitam de controles mais fortes ordenados e gerenciados por reguladores
internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial. No entanto, o Estado
aparentemente saudável e rico de muitos refúgios fiscais, combinado com o
número crescente de países desenvolvendo novas formas de tributação, permite a
chegada da conclusão desta discussão, apontando as principais razões para o
crescente interesse pelos refúgios fiscais e a contínua sobrevivência destes
mesmos.
Primeiramente, os regulamentos atuais (apesar de Basileia I e II160) são
suficientemente elásticos, o que significa que a circulação monetária internacional
não pode ser significativamente diminuída em termos de volume ou velocidade.
Segundamente, o desenvolvimento de refúgios fiscais resulta da circulação
relativamente livre de dinheiro ao redor do mundo; por este motivo, investidores
estão interessados em escolher os melhores lugares para seus investimentos.
Portanto, eles apoiam a capacidade de movimentar seu dinheiro livremente, sem
restrições de distância, valor ou tipo de produto de investimento, efetivamente
resguardando os seus direitos no grande esquema das coisas.

Por fim, a criação de refúgios fiscais é utilizada como um método rápido


para dinamizar e impulsionar pequenas economias com o espírito subjacente da lei
que cria este tipo de jurisdição. Essas economias pequenas, desregulamentadas e
de fácil acesso, geralmente aproveitam dos refúgios fiscais, usando-os como
fontes de investimento estrangeiro direto e aumento da robustez de seus sistemas
bancários. Assim, mesmo se os refúgios fiscais possam reduzir os montantes de
dinheiro disponíveis e os rendimentos tributáveis de alguns países, eles podem,
também, estimular o crescimento econômico de países pequenos. As liberdades
que existem na economia mundial atual têm um custo, que se manifesta na forma
do poder de circulação livre do dinheiro em todo o mundo; este custo
consequentemente gera e nutre os refúgios fiscais.
Porém, a eliminação dos refúgios fiscais não irá contrariar o crescimento
destes. Por exemplo, se uma moeda importante fosse proibida de forma abrupta,
outras moedas (mesmo as não oficiais) surgirão para perpetuar, mesmo se de
forma diferente, a função da moeda banida; ou seja, se os refúgios fiscais
simplesmente desaparecerem, outros tipos e formas de refúgios fiscais, com
características novas e atraentes, aparecerão instantaneamente para preencher o

160
Também conhecidos como International Convergence of Capital Measurement and Capital
Standards, tratam-se de Acordos de Capital firmados em 1988 e 2004, respectivamente, surgindo
como forma de regulamentação bancária internacional. O Acordo de Basileia I criou exigências
mínimas de capital para bancos comerciais como precaução contra o risco de crédito, entre outras
regras e obrigações. Já o Acordo de Basileia IIincorpora os preceitos do primeiro acordo e lhe
substitui, fixando três pilares (Capital, Supervisão e Transparência e Disciplina de Mercado), além
de 29 princípios básicos sobre contabilidade e supervisão bancária. Para um breve sumário, vide
Anexo I, na pág. 83 deste trabalho.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 236

vácuo gerado. Em geral, a mais aceitável solução para obtenção de certo


equilíbrio e justiça no comércio mundial aparenta ser o aumento da transparência
dos dados transacionais e relatórios oficiais de impostos dos refúgios fiscais (tanto
de seus governos quanto das entidades financeiras que lhes utilizam), tal medida
ajudaria imensamente com o policiamento contra os crimes de evasão fiscal,
lavagem de dinheiro e qualquer outro abuso fiscal que ocorrer em todo o mundo.
Em uma maneira de dizer, se você e seu Estado sabem onde seu vizinho
esconde o dinheiro dele, sua autoridade fiscal pode diminuir seus benefícios
quando ele não contribui para as despesas comuns. Os refúgios fiscais podem não
receber tanto dinheiro de alguns contribuintes se o transporte a frequência dos
relatórios oficiais aumenta, mas haverá uma melhoria geral quando impostos
locais diminuírem e o equilíbrio e estabilidade financeira melhorarão. Os bancos
locais também serão beneficiados, assim como empresas de consultoria e
auditoria, e talvez assim os refúgios fiscais deixarão de ser purgatórios sociais.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 237

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ANEXOS
ANEXO I – FLUXOGRAMA
DOS ACORDOS DE BASILEIA

Fonte:
Banco Central do Brasil

(https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/recomendacoesbasilei)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 247

ADOÇÃO E RESPONSABILIDADE CIVIL: (IM) POSSIBILIDADE DE


RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS ADOTANTES EM CASO DE
DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E DE ADOLESCENTES DURANTE O
ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA161

Luana Aline Beling


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
@hotmail.com

Profa. Draª Júlia Bagatini,


Orientadora
Docente do Curso de Direito da Unipampa
juliabagatini@unipampa.edu.br

RESUMO

A presente pesquisa versa sobre a possibilidade de responsabilização civil dos adotantes


em caso de devolução de crianças e/ou de adolescentes durante o estágio de
convivência. Para que isso seja aferido, serão empregados o método dedutivo e a técnica
da pesquisa bibliográfica, de modo que será necessário realizar breves considerações
acerca do instituto jurídico da adoção e da responsabilidade civil, para só então verificar
especificamente a possibilidade de responsabilização civil ou não dos adotantes em caso
de devolução de crianças e de adolescentes durante o estágio de convivência. A adoção
constitui um forma de filiação que leva em consideração a afetividade. A convivência
entre adotante e adotado, antes de a adoção ser efetivamente concedida, apenas passa a
acontecer com o deferimento do estágio de convivência. Apesar de ele ser breve,
expectativas são criadas nos adotandos e a posterior devolução pode gerar inúmeros
danos, tanto psicológicos como físicos, passíveis, inclusive, de serem indenizados.

PALAVRAS-CHAVE: adoção; estágio de convivência; responsabilidade civil; abuso


de direito.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa sobre a possibilidade de responsabilização civil dos


adotantes em caso de devolução de crianças e de adolescentes durante o estágio de
convivência. A adoção consiste em um ato jurídico de filiação e não meramente em uma
atitude caridosa proveniente dos que demonstram interesse em adotar. É um
procedimento complexo, decorrente de um processo judicial, cujos efeitos, em regra,
produzem-se apenas com o trânsito em julgado da sentença. Ademais, no decorrer do
processo, várias etapas devem ser cumpridas pelos adotantes, dentre elas, o estágio de
convivência.
Embora a adoção seja uma medida excepcional, a partir do momento em que o adotando
passa a conviver, mesmo que brevemente, com sua nova família, expectativas e

161
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 248

vínculos afetivos são criados. Caso ele seja devolvido à instituição acolhedora, danos
são provocados e ocorrerá uma dupla rejeição: primeiramente pela família biológica e,
em seguida, pela família adotiva.
A partir disso, a exploração do tema deste trabalho é extremamente pertinente, uma vez
que a problemática de devolver crianças e adolescentes, durante o estágio de
convivência, encontra-se presente na sociedade e está cada vez mais a desafiar os
Tribunais brasileiros. Como não existe uma vedação expressa no ordenamento jurídico
brasileiro acerca da prática da devolução durante o estágio de convivência, é necessário
encontrar uma possibilidade que desencoraje tal atitude e que, ao mesmo tempo, além
de compensar os infantes e adolescentes pelos danos neles provocados, estimule uma
adoção consciente, a fim de preservar os seus direitos.
Desse modo, o objetivo central do presente estudo é verificar a possibilidade de
responsabilização civil dos adotantes que devolvem as crianças e/ou os adolescentes
durante o estágio de convivência. Isso será desenvolvido a partir do emprego do método
dedutivo, com o emprego da pesquisa técnica documental bibliográfica. Assim, o
trabalho será dividido em três capítulos, mais a conclusão: 1) Noções básicas sobre o
instituto jurídico da adoção no Brasil; 2) A responsabilidade civil no ordenamento
jurídico brasileiro; 3) A possibilidade de responsabilização civil dos adotantes em caso
de devolução da criança ou do adolescente durante o estágio de convivência.
Portanto, ainda que não exista uma vedação expressa para aqueles que desejam
devolver o adotando durante o estágio de convivência, tal prática não pode se tornar de
praxe no processo de adoção. Ademais, tal conduta não pode se configurar como um
meio legítimo de provocar danos em crianças e adolescentes. Caso continuar inexistindo
consequências práticas para quem adota tal postura, a doutrina da proteção integral e o
princípio da dignidade humana serão inobservados e a população infantojuvenil estará
em uma posição vulnerável.

2. NOÇÕES BÁSICAS SOBRE O INSTITUTO JURÍDICO DA ADOÇÃO


NO BRASIL

Para aferir a possibilidade de responsabilização civil dos adotantes em caso de


devolução de crianças e de adolescentes durante o estágio de convivência, é necessário
tecer algumas breves considerações sobre o instituto jurídico da adoção.
O Direito de Família, ao longo dos anos, sofreu inúmeras transformações e, a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988, ele passou a valorizar a afetividade nas
relações familiares (DIAS, 2016), conjuntamente com os vínculos biológicos. A partir
disso, não há mais a necessidade de existir uma relação consanguínea entre indivíduos
para que eles se considerem pais ou parentes entre si, sendo que a filiação “não é um
dado da natureza, mas uma construção cultural, fortificada na convivência, no
entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem” (DIAS, 2016, p.793).
Dessa forma, a adoção é um bom exemplo para ilustrar a afetividade como
fundamento das relações familiares. A partir da sua regulamentação no ordenamento
jurídico, a sociedade brasileira deu um grande passo, estabelecendo que a relação
paterno-filial é muito mais profunda do que um mero vínculo sanguíneo ou uma marca
genética. A adoção consiste em uma forma de estabelecer com a criança e/ou com o
adolescente uma relação de filiação, fruto de um fator sociológico baseado no afeto e na
afinidade. Com a sua concessão, o adotado se torna filho, não sendo permitida qualquer
forma de distinção entre ele e os filhos biológicos para efeitos pessoais e patrimoniais.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 249

Apesar de atualmente os direitos das crianças e dos adolescentes estarem


amplamente consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, nem sempre foi assim. Até
o advento da Constituição Federal de 1988, as crianças e os adolescentes eram meros
objetos, sujeitos ao amparo do Estado apenas em situações específicas (KIRCH;
COPATTI, 2014). Tal situação era fruto da vigência da doutrina do menor em situação
irregular. Não era toda a população infantojuvenil que recebia atenção estatal, mas
apenas aqueles que se encontravam em situação irregular ou que cometeram algum ato
infracional (KIRCH; COPATTI, 2014). Assim, presumia-se que as crianças e/ou os
adolescentes que não estavam em situação irregular estavam protegidos e amparados
por sua família.
Após as duas grandes guerras mundiais, a busca pela preservação do princípio da
dignidade da pessoa humana foi ganhando cada vez mais espaço e, como consequência,
passou a existir uma maior preocupação com os direitos das crianças e dos adolescentes.
No Brasil, o acolhimento dessa nova concepção veio com a promulgação da
Constituição Federal de 1988. Já a regulamentação específica voltada aos direitos das
crianças e dos adolescentes adveio em 1990, com a edição do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Assim, a partir desses marcos legislativos foi superada a doutrina do
menor em situação irregular, a qual deu espaço para a doutrina da proteção integral.
Com o advento dessa nova concepção, houve uma completa mudança de
paradigma no tratamento dado às crianças e aos adolescentes, não se tratando de uma
mera substituição terminológica. Dessa maneira, em todos aqueles direitos que são
assegurados aos adultos:

[...] as crianças e os adolescentes disporarão de um plus,


simbolizado pela completa e indisponível tutela estatal para lhes
afirmar a vida digna e próspera, ao menos durante a fase de seu
amadurecimento. [...] possuem as crianças e adolescentes uma
hiperdignificação da sua vida, superando quaisquer obstáculos
eventualmente encontrados na legislação ordinária para regrar
ou limitar o gozo de bens e direitos (NUCCI, 2020, p. 25).

Diante disso, a adoção, enquanto modalidade de filiação socioafetiva protetiva,


consubstancia-se com a doutrina da proteção integral. Isso porque a consequência do
deferimento do processo adotivo é inserir a criança ou o adolescente em um ambiente
familiar com afetividade, a fim de que possam se desenvolver de forma sadia. A partir
dessa integração, os seus direitos fundamentais estão sendo resguardados, existindo,
portanto, respeito à doutrina da proteção integral.
Assim como o Direito de Família e a preservação dos direitos da população
infantojuvenil, a adoção também passou por profundas alterações, sendo considerado o
instituto do Direito de Família que mais passou por alterações estruturais e funcionais
ao longo do tempo (TARTUCE, 2021a). No Brasil, embora se faça presente desde a
época do período colonial, a adoção e seu procedimento, tal como são conhecidos
atualmente, apenas foram reconhecidos após a edição do Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990, e, principalmente, após a elaboração da Lei Federal nº
12.010/09, denominada de Lei Nacional da Adoção.
Além disso, houve uma mudança de perspectiva da adoção ao longo dos anos.
Por muito tempo, o instituto era visto como uma forma de dar filhos a quem não poderia
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 250

tê-los naturalmente, ficando a proteção e o bem-estar das crianças e dos adolescentes em


um segundo plano. Todavia, em virtude da instituição da doutrina da proteção integral,
a mudança de paradigma daí decorrente e as significativas alterações legislativas, a
adoção passou a ter um caráter voltado à consagração dos direitos infantojuvenis. Com
isso, o intuito do instituto jurídico não é mais a procura de um filho para adultos, mas
sim a busca de uma família àquelas crianças e adolescentes que não estão inseridos em
um ambiente familiar.
Como as crianças e os adolescentes serão destituídos do poder familiar da sua
família biológica para serem inseridos em um novo núcleo familiar, é necessária a
participação ativa do Poder Judiciário. Isso se faz por meio do processo judicial de
adoção, em que é necessário o perpasse de algumas etapas por parte dos adotantes.
Além dos estágios obrigatórios que a legislação prevê, é necessário o preenchimento de
alguns requisitos, dentre eles (BORDALLO, 2019): idade mínima de dezoito anos,
independentemente do estado civil; diferença de idade de dezesseis anos entre adotante
e adotado; estabilidade da família – a qual não se confunde com estabilidade financeira;
e consentimento dos pais biológicos. Além disso, mas não menos importante, a adoção
deve apresentar reais vantagens para o adotando, bem como se fundar em motivos
legítimos.
Percebe-se que não existem muitos requisitos a serem preenchidos pelos
adotantes. Tal fato abre margem para a habilitação de muitos pretendentes incapacitados
(NUCCI, 2020). A decisão de adotar, antes mesmo de iniciar o processo judicial, deve
ser muito bem pensada, uma vez que os adotantes estão lidando com expectativas
legítimas de crianças e de adolescentes que, infelizmente, já foram rejeitados por sua
família biológica.
De maneira acertada, Nucci (2020, p.239) explica que as pessoas que pretendem
adotar devem “demonstrar a sua aptidão para tanto, pois o ato é definitivo e irrevogável,
não podendo basear-se em impulsos momentâneos, nem em desculpas para satisfazer
determinados instantes difíceis da vida [...]”. Assim, caso os pretendentes não
apresentem um bom ambiente familiar, o processo de adoção não prosseguirá.
Após os pretendentes protocolarem a petição inicial referente à adoção, antes de
perpassarem pelo estágio de convivência, o juiz deferirá a sua habilitação. A partir desse
momento, eles serão inscritos no Sistema Nacional de Adoção, devendo seguir o
procedimento estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990,
Art. 197-A). Nesse cadastro devem constar, dentre outros, a especificação da criança ou
do adolescente a ser adotado, sua idade mínima, cor da pele, se aceita irmãos e/ou
portadores de necessidades especiais.
Quando surge uma criança ou um adolescente que se encaixa no perfil
pretendido, os adotantes são avisados e devem manifestar seu interesse em prosseguir
com o processo. Caso concordem, o juiz autorizará o estágio de convivência, durante
noventa dias, prorrogável uma única vez, com a expedição de um termo de guarda
provisório. É uma etapa muito importante, pois é um período de convivência prévia
entre os adotantes e o adotando, em que serão analisadas as condições apresentadas pela
família, a adaptação da criança ou do adolescente, além de ser uma forma de
estreitamento de laços afetivos a fim de ser confirmada a filiação.
Ao final do estágio de convivência, caso a adoção atenda ao melhor interesse do
adotando e constitua um real benefício a ele, a sentença deferirá o pedido e constituirá a
filiação entre os envolvidos. A partir do trânsito em julgado da sentença concessiva, os
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 251

vínculos biológicos são rompidos e uma nova família será formada legalmente,
inclusive com a possibilidade de alteração do nome do adotado.
Apesar de haver inúmeros efeitos após o trânsito em julgado, sejam patrimoniais
ou pessoais, o principal deles é a irrevogabilidade da adoção. Tal ideia advém do fato de
tal modalidade de filiação imitar a vida (DIAS, 2016) e tem como finalidade estabilizar
os laços afetivos, fazendo com que a criança e/ou o adolescente se sinta realmente
inserido em um núcleo familiar. Desse modo, como na filiação biológica não há como
“devolver” o filho (GAGLIANO; BARRETO, 2020), a mesma lógica é aplicada à
adoção após o trânsito em julgado da sentença concessiva.
A partir do exposto, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro passou a
valorizar a afetividade no âmbito do direito de Família e aproximou os efeitos jurídicos
decorrentes da filiação biológica e da filiação civil. Portanto, é notório que a valorização
dos vínculos afetivos e a equiparação do filho adotivo ao biológico é um reflexo do
prestígio ao princípio da dignidade da pessoa humana.

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

A fim de atender ao objetivo proposto nesse trabalho, ao lado das breves


considerações acerca da adoção, é imprescindível que uma análise sobre o instituto da
responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro seja realizada. Apesar de
existirem inúmeros conceitos distintos de responsabilidade civil, ela pode ser
caracterizada como uma obrigação gerada a alguém toda vez que uma conduta danosa a
outrem é praticada.
Para verificar se existe responsabilidade civil diante de um caso concreto, é
imperioso verificar o preenchimento dos requisitos que estão dispostos no artigo
considerado como fundamento da responsabilidade civil: “Art. 186. Aquele que por
ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2022). A partir
desse dispositivo, é possível vislumbrar os elementos configuradores da
responsabilidade civil, quais sejam: a conduta humana, o dano ou prejuízo e o nexo de
causalidade (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2021).
Convém ressaltar que a respeito dos pressupostos configuradores do instituto em
análise, não há uma posição unânime. A divergência encontra-se na consideração ou
não da culpa como um requisito principal do dever de indenizar. Existem duas posições.
A primeira – que é, por enquanto, o entendimento majoritário – é a de que a
responsabilidade civil surge da conjugação de quatro elementos: conduta, culpa, nexo
de causalidade e dano.
Cavalieri Filho (2012, p.19), filiando-se a essa teoria, dispõe que:

Há primeiramente um elemento formal, que é a violação de um


dever jurídico mediante conduta voluntária; um elemento
subjetivo, que pode ser o dolo ou a culpa; e, ainda, um elemento
causal-material, que é o dano e a respectiva relação de
causalidade. [...] Portanto, a partir do momento em que alguém,
mediante conduta culposa, viola direito de outrem e causa-lhe
dano, está-se diante de um ato ilícito, e deste ato deflui o
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inexorável dever de indenizar, consoante o art. 927 do Código


Civil.

Por outro lado, a segunda posição relativa aos elementos da responsabilidade


civil consiste na prescindibilidade do elemento culpa para fins de configuração do dever
de indenizar. Assim, para que haja a responsabilização civil de alguém, basta a
combinação do dano, da conduta e do nexo causal. Filiados a esse entendimento,
Gagliano e Pamplona Filho (2021, p.22) lecionam da seguinte forma:

Embora mencionada no referido dispositivo de lei por meio das


expressões “ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência”, a culpa (em sentido lato, abrangente do dolo) não
é, em nosso entendimento, pressuposto geral da
responsabilidade civil, sobretudo no novo Código, considerando
a existência de outra espécie de responsabilidade, que prescinde
desse elemento subjetivo para a sua configuração (a
responsabilidade objetiva). A culpa, portanto, não é um
elemento essencial, mas sim acidental, pelo que reiteramos
nosso entendimento de que os elementos básicos ou
pressupostos gerais da responsabilidade civil são apenas três: a
conduta humana (positiva ou negativa), o dano ou prejuízo, e o
nexo de causalidade, todos eles desenvolvidos cuidadosamente
nos próximos capítulos.

Não obstante ambas as correntes estarem corretas, adotar-se-á, na presente


pesquisa, por critérios metodológicos, a segunda posição. Isso porque a expressão
“elementos da responsabilidade civil” denota uma ideia de que sem algum deles, não
existirá o dever de indenizar. Diante disso, de acordo com a análise que será feita mais
adiante, a responsabilidade civil pode existir sem haver culpa na conduta do agente.
O primeiro elemento configurador da responsabilidade civil é a conduta. De
início, é válido mencionar que a comportamento de alguém, apto a ensejar a
responsabilidade civil, deve ter como consequência a geração de um dano ao outro, não
sendo qualquer atitude passível de responsabilização. Segundo Cavalieri Filho (2012, p.
25), a conduta pode ser conceituada como “[...] o comportamento humano voluntário
que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências
jurídicas”.
O segundo elemento é o nexo de causalidade, o qual consiste no elo entre a
conduta do agente e o prejuízo produzido, sendo uma condição necessária para fins de
incidência do dever de indenizar. Assim, a responsabilidade civil apenas surgirá se for
possível realizar uma relação de logicidade entre um determinado comportamento e um
certo dano, pois, caso contrário, não há como a vítima ser ressarcida.
Oportuno mencionar que, à primeira vista, a tarefa de identificar a relação de
causalidade entre uma conduta humana e um prejuízo parece ser simples. Entretanto,
nem sempre, no caso concreto, a relação está tão óbvia, fato que embaraça
completamente a identificação do nexo causal (VENOSA, 2021). A dificuldade
encontra-se justamente quando aparecem as chamadas concausas sucessivas, ou seja,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 253

quando há uma cadeia de causas e efeitos, surgindo a dificuldade de escolher qual delas
será escolhida como a responsável pelos danos (GONÇALVES, 2021).
No que tange a essas concausas sucessivas, a doutrina, no intuito de facilitar a
identificação da causa geradora do dano, elaborou algumas teorias, ainda que nenhuma
delas ofereça soluções concretas. Dentre elas estão: a teoria da equivalência dos
antecedentes, a teoria da causalidade adequada e a teoria dos danos diretos e imediatos.
Embora não haja consenso e o mais adequado, frente a um caso concreto, é verificar
qual delas é a mais justa para o entendimento da situação, na presente pesquisa, para
fins metodológicos, adotar-se-á a teoria dos danos diretos e imediatos. Esta requer que,
entre a conduta humana e o prejuízo, exista uma relação de causa e efeito de forma
direta e imediata. Assim, caso várias pessoas estejam envolvidas no ilícito, cada uma
delas responsabiliza-se, unicamente, pelos danos que proximamente resultem da
conduta lesiva.
Ademais, há casos em que, embora exista o liame entre a conduta de um agente
e o dano provocado, o seu comportamento não será passível de responsabilização civil.
Isso porque existem as chamadas excludentes do nexo causal que rompem o elo entre a
conduta e o dano. Nesse sentido, Cavalieri Filho (2012) enumera quatro casos de
exclusão do nexo causal: caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou de
terceiros.
O terceiro pressuposto necessário ao dever de indenizar é o dano, uma vez que
não há responsabilidade civil se não houver prejuízo a ser reparado ou compensado.
Caso ele não exista, estar-se-á frente a um caso de enriquecimento sem causa por parte
da vítima. Outrossim, ressalta-se a necessidade do elemento dano à configuração da
responsabilidade civil com as palavras de Cavalieri Filho (2012, p. 77):

[...] o ato ilícito nunca será aquilo que os penalistas chamam de


crime de mera conduta; sempre será um delito material, com
resultado de dano. Sem dano pode haver responsabilidade penal,
mas não há responsabilidade civil. [...] Daí a afirmação, comum
praticamente a todos os autores, de que o dano é não somente o
fato constitutivo, mas, também, determinante do dever de
indenizar.

Nessa toada, o prejuízo pode ser conceituado como a subtração de um bem


jurídico do indivíduo, integrante tanto do seu patrimônio econômico como pertencente a
sua personalidade, tal como a honra, a imagem e a liberdade (CAVALIERI FILHO,
2012). Por essas razões é que o dano pode ser classificado como patrimonial ou material
e extrapatrimonial ou moral. A primeira espécie de dano, como o próprio nome induz,
atinge os bens pertencentes ao patrimônio econômico da vítima. Por sua vez, os danos
extrapatrimoniais atingem os direitos de personalidade, que não são passíveis de serem
mensurados economicamente e conferem ao lesado sentimentos de dor, sofrimento,
frustração e humilhação.
A responsabilidade civil, mesmo que seu conceito denote unicidade, também
comporta diferentes classificações, a depender do critério a ser adotado. Assim, por
exemplo, a responsabilidade civil, a partir do critério de origem, pode ser contratual ou
extracontratual. Ou, levando em consideração o seu fundamento, ela pode ser subjetiva
ou objetiva. Esta classificação é imprescindível para esta pesquisa, devendo serem
explanadas algumas considerações.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 254

A principal diferença entre a responsabilidade civil subjetiva e objetiva consiste


na presença ou ausência do elemento culpa. A primeira, por sua vez, é uma obrigação
consequente de uma atitude permeada de culpa que gerou danos a alguém. Nessa
modalidade, para que a vítima consiga obter a sua reparação, deve comprovar no
processo que o agente agiu com culpa ao provocar o dano.
Por outro lado, em consonância à ampliação do conceito de responsabilidade
civil, o Código Civil de 2002 passou a disciplinar a possibilidade de haver
responsabilidade do agente, independentemente da presença de culpa em seu
comportamento. Assim, ao contrário da subjetiva, na responsabilidade civil objetiva,
mesmo que a atitude seja lícita e de acordo com as disposições legais, ainda poderá
incidir o dever de indenizar.
Dentro da responsabilidade civil objetiva está inserido o abuso de direito, o qual
merece atenção especial em decorrência da problemática do cabimento ou não de
responsabilização civil dos adotantes em caso de devolução de crianças e de
adolescentes durante o estágio de convivência.
Dessa maneira, o abuso de direito é, originariamente, um ato lícito, mas que se
transforma em ilícito à medida em que é exercido fora dos limites impostos pelo fim
econômico e social, pela boa-fé objetiva ou pelos bons costumes (CAVALIERI FILHO,
2012). Por conta disso é que, por vezes, embora alguém esteja exercendo seu direito
legalmente amparado, a sua conduta poderá gerar a obrigação de indenizar, justamente
pelo fato de a utilização da prerrogativa ter extrapolado os limites objetivos impostos ao
seu exercício.
De maneira acertada, o próprio Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002, p. 187)
conceituou o abuso de direito da seguinte forma: “Também comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Independentemente da classificação adotada, a responsabilidade civil possui
como principal intuito a reparação do dano, provocado injustamente por alguém a seu
semelhante. Além disso, mesmo que indiretamente, o dever de indenizar possui como
finalidade a punição do agente causador do prejuízo, bem como uma função educativa
para a sociedade, de modo a desestimular a prática de determinada conduta e evitar que
mais danos sejam provocados a terceiros.
Embora existam diversos entendimentos relativos às funções desempenhadas
pela responsabilidade civil, ela exerce, incontestavelmente, um papel social. Nessa
perspectiva, se os indivíduos passam a perceber que determinadas condutas são punidas
civilmente, significa que ela não deve ser praticada, gerando, assim, uma consciência
social.
Por fim, importante asseverar que cada vez mais a responsabilidade civil amplia
o seu campo de incidência, a fim de que restem poucos danos não ressarcidos na ordem
jurídica. Desse modo, não poderia ser diferente com relação a sua aplicação ao âmbito
do Direito de Família, tendo em vista que danos nessa seara podem ser praticados.
Tartuce (2021b) preceitua que as regras da responsabilidade civil podem ser
empregadas no Direito de Família, tendo em vista que no atual estágio de evolução do
instituto familiar, “não se pode mais admitir a antiga separação entre os direitos
patrimoniais – caso dos temas de Direito das Obrigações – e os direitos existenciais –
como é propriamente o Direito de Família” (2021b, p. 899).
Ainda sobre o assunto, leciona Medina (2002, p. 21, tradução nossa):
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A evolução do Direito de Família conduziu à supremacia da


personalidade e à autonomia da pessoa diante de seu grupo
familiar, não existindo qualquer prerrogativa doméstica a
permitir que possa um membro de uma família causar dano
doloso ou culposo a outro membro da família e se eximir de
responder em virtude do vínculo familiar, até porque a pessoa
não responde em razão do liame familiar, mas em função do
dano, também passível de ter sido causado por um parente e,
muito especialmente, no âmbito das relações conjugais e
afetivas.

Nessa ordem de ideias, a adoção, como forma de constituição de filiação civil,


baseada na afetividade, é integrante do Direito de Família. Portanto, caso preenchidos
os três pressupostos da responsabilidade civil perante alguma situação que envolva a
adoção, é perfeitamente possível a incidência do dever de indenizar.

4. A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS


ADOTANTES EM CASO DE DEVOLUÇÃO DA CRIANÇA OU DO
ADOLESCENTE DURANTE O ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

Neste capítulo, analisar-se-á, especificamente, o cabimento dos pressupostos da


responsabilidade civil nos casos de devolução de crianças e/ou de adolescentes durante
o estágio de convivência. Para tanto, far-se-á necessário verificar se a conduta dos
adotantes em devolver a criança e/ou o adolescente, durante o estágio de convivência,
configura-se um ato ilícito, causador de um dano e, consequentemente, gerador de um
dever de indenizar.
A família que demonstra interesse em adotar uma criança ou um adolescente,
sem dúvidas, enfrentará grandes desafios, já que receberá, possivelmente, em seu seio,
um indivíduo permeado de medos, traumas e inseguranças. Caso inexistir uma reflexão
profunda acerca da decisão de adotar e faltar a adequada preparação dos adotantes, há
grande chance de ocorrer a desistência da adoção e o consequente retorno do adotando
às instituições acolhedoras.
Antes de ultimada a adoção, as partes envolvidas no processo apenas passarão a
conviver diretamente quando for deferido o estágio de convivência, a fim de ser
constatada a adaptação ou não da criança e/ou do adolescente à sua nova família. É
justamente nessa fase de convívio direto que as chances de desistência surgem. Isso
porque o adotando passará a se mostrar tal como ele é, não sendo o ser humano que os
adotantes criaram no seu imaginário. Assim, quando estes se deparam com a realidade e
veem que não é o indivíduo que pensaram ser, há a quebra de expectativa e o
surgimento do sentimento de frustração.

Nessa senda, quando surge o interesse em adotar por parte de


um adulto ou de um casal, esses devem ter a consciência de que
a criança ou o adolescente institucionalizado: [...] nem sempre
tem comportamentos compatíveis com os da nova família, seu
potencial afetivo não é desenvolvido, mas tendo condições
favoráveis irá desabrochar. Basta entender e ajudar. Afinal de
contas uma criança não é feita numa forma com pré-requisitos
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 256

desejados pelos pais (nem o consanguíneo é!) (SOUZA, 2012, p.


65).

As razões que levam à desistência e à devolução somente aparecem depois de o


adotando estar inserido no núcleo familiar, de modo a apresentar verdadeiramente a sua
personalidade aos pais. Entretanto, embora haja diferentes motivos ensejadores da
devolução, dentre eles, a falta de compreensão dos postulantes com relação aos
comportamentos dos adotandos, o principal deles é a quebra de expectativas por parte
dos adotantes com a chegada do “filho real”.
Convém mencionar que, embora exista a possibilidade de devolução de crianças
e de adolescentes durante o estágio de convivência, essa atitude apenas deve ser tomada
quando constatada, por meio de profissionais específicos do juízo, a não adaptação do
adotando à nova família. Ademais, o processo de adoção é totalmente voluntário,
partindo de uma vontade livre, expressa e exclusiva dos adotantes. Mas, a ilicitude da
conduta surge justamente quando os postulantes participam de todas as etapas, aceitam
o adotando em seu lar e quando estão no final do procedimento, passando a conviver
diretamente com ele, veem que não é o que esperavam e desejam devolvê-lo.
É inegável que a devolução provoca traumas irreparáveis nas crianças e nos
adolescentes devolvidos, os quais após serem inseridos em um núcleo familiar, por
meio do estágio de convivência, são retirados daquele local e realocados à instituição
acolhedora. A partir do momento em que o adotando e os adotantes passam a conviver
diretamente, surge para o primeiro uma certeza de que o procedimento concretizar-se-á
em breve, já que, no seu imaginário, o estágio de convivência não passa de uma fase
burocrática (FELIPE, 2016). Ainda, não raras as vezes, quando é deferida a guarda
provisória, os pretendentes são chamados de “pai” e/ou de “mãe”, como se a adoção já
tivesse sido concretizada.
Nessa toada, a devolução do adotando à instituição acolhedora é uma
experiência extremamente dolorosa. Ainda que existam situações nas quais os adotantes
se entristeçam com o indeferimento da adoção, quem mais sente os efeitos disso tudo é,
de fato, a criança e/ou o adolescente. Esses, em decorrência de estarem em uma fase de
desenvolvimento, sofrem de forma mais intensa com as mudanças repentinas em suas
vidas, como é o caso de uma devolução à instituição.
Bertoncini e Campidelli (2018, p. 88) compartilham desse mesmo entendimento
ao preceituarem que a criança e o adolescente são o polo mais vulnerável. Portanto, não
deve“[...] o Direito resguardar o mais forte (os pais), e sim o menor, já abandonado uma
vez, dependente do Estado e com seu futuro ameaçado pela conduta daqueles que
diziam que seriam seus maiores protetores, seus pais”.
A partir disso, as crianças e os adolescentes que foram devolvidos por seus
adotantes, sem dúvidas, sofrem uma dupla rejeição. Primeiramente, os adotandos foram
abandonados pela sua família biológica, pois, caso contrário, não haveria razões para
estarem sob a proteção direta do Estado. Em segundo lugar, são rejeitados pela família
adotiva, que, em grande parte por sua falta de preparação, desiste do procedimento e
devolve o indivíduo como se fosse um objeto. Por conseguinte, as crianças e os
adolescentes devolvidos retornam à casa acolhedora e passam a desacreditar em sua
adoção.
Outrossim, infelizmente, os reflexos dos danos provocados nos adotados não se
restringem à fase de desenvolvimento. Eles mostrar-se-ão presentes em toda a vida
desses indivíduos, uma vez que estes tornar-se-ão adultos desconfiados e inseguros.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 257

Ainda, consequências desses abandonos poderão ser sentidos na forma como esses
futuros adultos criarão seus próprios filhos, já que não tiveram modelos de identificação
com seus genitores (SOUZA, 2012).
Após serem devolvidos, esses infantes e/ou adolescentes passam a duvidar de si
próprios, imaginando que não são capazes ou, até mesmo, que não são merecedores de
uma família, tendo em vista que novamente foram abandonados. Não raras as vezes, o
trauma é tanto que eles passam a demonstrar total desinteresse de serem inseridos em
um novo ambiente familiar.
Ainda, faz-se imperioso vislumbrar que os danos provocados nos adotandos
devolvidos não se restringem aos danos psicológicos e emocionais. Embora seja mais
recorrente o surgimento de comportamentos antissociais e de isolamento, bem como
sentimentos de tristeza e ansiedade, danos físicos também podem ocorrer. Nesse
sentido, segundo Vargas (2020), é comum que em crianças e adolescentes
traumatizados por algum acontecimento ocorrido em suas vidas, tal como uma
devolução, surjam problemas relacionados ao seu corpo. Normalmente, esses
indivíduos, em relação a outros que se desenvolveram em um ambiente familiar
saudável, apresentam desenvolvimento lento, disfunções digestivas, alterações no sono
e até mesmo falta de equilíbrio e coordenação.
Por conta disso, como já mencionado, mesmo que a conduta de devolver o
adotando durante o estágio de convivência não seja vedada pelo ordenamento jurídico e
até possível em hipóteses excepcionais, é inegável que inúmeros danos, tanto
emocionais como físicos, são provocados nas crianças e nos adolescentes. É de se
observar que a prerrogativa dos indivíduos em constituírem uma família por meio da
adoção, partindo da habilitação voluntária, livre e expressa, deve ser sempre exercida
dentro dos limites legais, balizados, especialmente, pela boa-fé e pelo fim social. Não
obstante a conduta de devolver a criança e/ou o adolescente durante o estágio de
convivência não ser vedada legalmente, ela extrapola os balizadores mencionados,
configurando um ato ilícito por abuso de direito. Ademais, a partir do comportamento
devolutivo, inúmeros danos são provocados nos infantes e juvenis, tal como já
explicitado, corroborando a hipótese de responsabilização civil por abuso de direito.
Acerca disso, Bordallo (2019, p. 405-406) entende que:

Quando ocorre a devolução do adotando, após longo decurso de


tempo, sem motivo justo, está sendo cometida grande violência
contra aquele, que está sendo rejeitado mais uma vez (sendo a
primeira por sua família natural), ocorrendo abuso do direito por
parte dos adotantes, que não estão lidando com uma coisa que
não tem mais utilidade, mas com uma pessoa, detentora de
sentimentos e expectativas. [...] Não se pode aceitar que haja a
devolução ao juízo da infância do adotando, nestas situações, de
modo impune, pois este ato violou o direito fundamental do
adotante à convivência familiar, bem como foi desrespeitado o
princípio da responsabilidade parental (art. 100, parágrafo único,
IX, do ECA). [...] A devolução do adotando no curso do estágio
de convivência, por si só, já é uma violência para com este.
Ficando demonstrado que os adotantes agiram com abuso de
direito, está caracterizada a prática de ato ilícito, podendo e
devendo haver a responsabilização civil destes.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 258

Outrossim, o comportamento dos adotantes em devolver a criança e/ou o


adolescente durante o estágio de convivência pode ser configurada uma violação ao
limite da boa-fé objetiva. Essa, por sua vez, consiste no padrão de comportamento
esperado em uma relação jurídica, sendo pautada na confiança e na lealdade entre as
partes. O desrespeito a esse preceito ocorre justamente quando alguém não cumpre com
o devido e não considera a confiança depositada nele pela outra parte.
Desse modo, quando ocorre a devolução durante o interim de convivência, há
uma quebra de confiança por parte das crianças e dos adolescentes sobre os adotantes,
uma vez que foram levados a crer que já estavam inseridos definitivamente na família.
Além do mais, acreditaram que os adotantes levariam a cabo a adoção em decorrência
de terem iniciado o estágio de convivência, criando expectativas totalmente legítimas
sobre a adoção. Logo, quando retornam para a instituição acolhedora, por ato voluntário
dos pretendentes, há a violação ao limite objetivo da boa-fé e, consequentemente, a
incidência do abuso de direito.
Há ainda que se observar que a boa-fé objetiva também está intrinsicamente
relacionada com a expressão venire contra factum proprium, que veda o agir do
indivíduo de forma contrária ao que incialmente propôs. Relacionando tal conceito ao
tema deste trabalho, a sua violação pode ser configurada quando há a devolução da
criança ou do adolescente durante o estágio de convivência. Essa afronta decorre
justamente do fato de que os adotantes praticam, surpreendentemente, um
comportamento diferente do esperado pelos adotandos. Portanto, frente aos casos
devolutivos, é evidente que a boa-fé não foi observada pelos pretendentes, provocando
sérios danos aos indivíduos devolvidos.
Além do mais, o ato voluntário de devolver as crianças e os adolescentes fere os
próprios fins sociais a que se destina o estágio de convivência e a adoção em si. A fase
de convivência se dirige à população infantojuvenil envolvida no processo adotivo e não
aos adotantes. Assim, a partir do momento que estes se utilizam dessa etapa como
fundamento da devolução, ocorre o abuso de direito. Logo, não há como os pretendentes
utilizarem de uma prerrogativa estabelecida em prol das crianças e dos adolescentes
para praticarem uma conduta que afronta diametralmente os interesses e direitos da
parte mais vulnerável envolvida no processo.
Por conseguinte, como a devolução pode provocar danos irreversíveis aos
adotandos e consistir em uma forma de violência, a qual atenta contra direitos
fundamentais, não há que se olvidar que a conduta deve ser punida legalmente.
Portanto, frente à inexistência de dispositivo legal que verse especificamente sobre a
problemática, a responsabilidade civil é o instituto jurídico adequado para coibir a
prática de tais condutas irresponsáveis.
Assevera-se que a responsabilização civil dos adotantes, caso devolvam a
criança ou o adolescente durante o estágio de convivência, ao contrário do que se faz
crer, não é uma providência que desincentiva futuras adoções. Muito pelo contrário.
Isso porque o que se busca com a imposição do dever de indenizar é justamente o
incentivo a adoções mais responsáveis e conscientes, evidenciando, de certo modo, a
seriedade do procedimento. Similarmente, as chances de devoluções diminuirão de
maneira considerável. A partir disso, os pretendentes, antes de iniciarem o estágio de
convivência e até mesmo de se habilitarem, já estarão cientes e preparados dos desafios
que certamente surgirão no decorrer da adoção.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 259

Cabe destacar que o debate em torno da problemática é relativamente novo e


suscita muitas discussões. Acerca da posição jurisprudencial em torno disso, faz-se
necessário aludir que não há um entendimento unívoco por parte do Poder Judiciário.
Embora o reconhecimento dos danos morais seja mais recorrente quando a adoção já foi
concretizada (FELIPE, 2016), não há que se olvidar que os Tribunais, ainda que
timidamente, já começaram a se manifestar sobre a possibilidade em casos de adoção
ainda não efetivada.
Como forma de demonstrar o exposto acima, é importante colacionar duas
ementas com posições distintas. A primeira, cujo entendimento é de reconhecimento à
possibilidade de responsabilização civil dos adotantes em caso de devolução de crianças
e de adolescentes durante o estágio de convivência, foi julgada pelo Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro/RJ (Décima Primeira Câmara Cível, Apelação Cível nº
0001435-17.2013.8.19.0206, Rel. Des. Cláudio de Mello Tavares, Rio de Janeiro, 30
mar. 2016, grifo nosso):

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


ADOÇÃO. DESISTÊNCIA NO CURSO DO ESTÁGIO DE
CONVIVÊNCIA. PERÍODO PREVISTO NO ART. 46 DO
ECA QUE TEM COMO FINALIDADE AVALIAR A
ADEQUAÇÃO DA CRIANÇA À FAMÍLIA SUBSTITUTA
PARA FINS DE ADOÇÃO. DEVOLUÇÃO IMOTIVADA
QUE GERA, INQUESTIONAVELMENTE,
TRANSTORNOS QUE ULTRAPASSAM O MERO
DISSABOR, JÁ QUE FRUSTRAM O SONHO DA
CRIANÇA EM FAZER PARTE DE UM LAR. O estágio de
convivência não pode servir de justificativa legítima para a
causação, voluntária ou negligente, de prejuízo emocional ou
psicológico a criança ou adolescente entregue para fins de
adoção. Após alimentar as esperanças de uma criança com
um verdadeiro lar, fazer com que o menor volte ao
acolhimento institucional refletindo o motivo pelo qual foi
rejeitado novamente, configura inquestionável dano moral, e
sem dúvida acarreta o dever de indenizar daqueles que deram
causa de forma imotivada a tal situação. Sentença mantida.
Recurso desprovido.

A segunda ementa, ao contrário da primeira, possui um entendimento diferente.


No momento do julgamento da Apelação Cível nº 70080332737, a Desembargadora
Relatora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul/RS (Oitava Câmara
Cível, Apelação Cível nº 70080332737, Rel. Des. Liselena Schifino Robles Ribeiro,
Porto Alegre, 28 fev. 2019, grifo nosso) entendeu que não há que se falar em
responsabilização civil dos adotantes, uma vez que não há vedação legal para que eles
desistam da adoção quando estiverem apenas com a guarda dos adotados, ou seja,
enquanto perpassam pelo estágio de convivência, conforme pode ser abaixo verificado:

Ementa: APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MENORES


EM ESTÁGIO DE CONVIVENCIA COM CASAL
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 260

ADOTANTE. DEVOLUÇÃO DAS CRIANÇAS.


INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. O Estatuto da Criança
e do Adolescente, em seu art. 46, prevê que a adoção será
precedida de estágio de convivência, que, nada mais é do que
um período de adaptação da criança com a nova família e dessa
família com a criança. No caso, o estágio de convivência restou
frustrado, seja pelo comportamento das crianças, entendido
como inadequado pelos adotantes, ou mesmo por estes não
estarem realmente preparados para receber novos membros na
família. Contudo, não há vedação legal para que os futuros
pais, ora recorridos, desistam da adoção quando estiverem
apenas com a guarda dos menores. E a própria lei prevê a
possibilidade de desistência, no decorrer do processo de
adoção, ao criar a figura do estágio de convivência.
RECURSO DESPROVIDO.

Ainda, no decorrer do voto, a relatora reconheceu que, de fato, a devolução pode


ocasionar danos às crianças e aos adolescentes, mas não é passível de gerar a
responsabilização civil dos adotantes, já que a adoção apenas constitui vínculos após o
trânsito em julgado da sentença.
Salienta-se que o procedimento adotivo deve ser permeado de muita
responsabilidade e consciência dos obstáculos que serão enfrentados ao longo do
caminho. Ademais, deve ser levado em conta pelos adotantes que as crianças e os
adolescentes disponíveis para adoção possuem um histórico de abandono e que, caso
ocorrer uma devolução, todos os sentimentos de rejeição e sofrimento virão à tona
novamente.
Sendo assim, em que pese a devolução de crianças e de adolescentes durante o
estágio de convivência não ser vedada pelo ordenamento jurídico, ela pode provocar
consequências irreparáveis nos adotandos. Dessa maneira, ante a ausência de uma
sanção aos indivíduos que adotam tal conduta, a responsabilidade civil é uma forma de
suprir as lacunas legislativas e proteger a integridade, dignidade e desenvolvimento das
crianças e dos adolescentes.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 261

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do trabalho pôde-se perceber que o Direito de Família sofreu


profundas transformações no decorrer do tempo, passando a afetividade, ao lado da
consanguinidade, ser valorizada no âmbito das relações familiares. Nesse contexto, a
adoção é um dos institutos no qual a valorização da afetividade fica ainda mais
evidente, posto que esta é o lastro para o estabelecimento da relação de filiação. Apesar
disso, antes de a relação civil ser concretizada, é imprescindível que os adotantes
passem por um processo judicial, permeado de várias etapas que necessitam respeitar a
doutrina da proteção integral.
Dentre os diferentes passos do processo adotivo, destaca-se o estágio de
convivência, haja vista que ele possui o papel fundamental de aferir a adaptação do
adotando à sua nova família. Dessa forma, ele consiste em um período prévio à
sentença, em que os adotantes e o adotando passam a conviver diretamente. Caso o
período de convivência tenha sido positivo para os melhores interesses da criança e/ou
do adolescente, o juiz deferirá a adoção, passando a ser constituída uma nova família de
forma irrevogável.
Destaca-se que, durante essa etapa, cresce no adotando a expectativa de que a
adoção será ultimada, uma vez que já se encontra inserido no seu novo seio familiar, de
modo a pensar que o estágio de convivência é uma mera etapa burocrática que precisa
ser cumprida. Diante disso, a posterior devolução torna-se problemática e causadora de
inúmeros danos emocionais, psicológicos e até mesmo prejuízos físicos às crianças e
aos adolescentes.
É indubitável que existem
situações nas quais a permanência da criança ou do adolescente em determinada família
não atende aos seus melhores interesses. Entretanto, o que se discutiu no presente
trabalho são as devoluções que partem voluntariamente dos adotantes, durante o estágio
de convivência. Essas atitudes acontecem por vários motivos, já que é na etapa de
convívio direto que os futuros pais e filhos conhecer-se-ão de fato. Nessa fase, as
crianças e os adolescentes passam a se mostrar tal como são e, por certo, não são os
filhos exemplares que os adotantes criaram em seu imaginário.
O ato de adotar, além de consistir
em um comportamento totalmente voluntário, é uma faculdade autorizada pelo
legislador para aqueles que apresentam interesse em constituir uma família socioafetiva.
Nesse sentido, os adotantes devem usufruir de seu direito observando sempre os limites
da boa-fé e do fim social a que se destina a norma. Desse modo, mesmo que a conduta
de devolver não seja vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, é passível de ser
responsabilizada civilmente, uma vez que o abuso de direito resta configurado.
Nessa esteira, a incidência do
dever de indenizar, por abuso de direito, é perfeitamente possível justamente pelo fato
de que a conduta de devolver ultrapassa os limites do fim social a que se destina a
adoção e, principalmente, ultrapassa os limites da boa-fé objetiva. É evidente que, com
o deferimento do estágio de convivência, as crianças e os adolescentes criam
expectativas legítimas de que finalmente serão inseridos em uma nova família e que os
adotantes estão de acordo com isso. Dessa maneira, os adotados confiaram e foram
levados a crer que a adoção iria se concretizar. Logo, com a devolução, a quebra de
confiança das crianças e dos adolescentes sobre os adotantes é certa e muitos danos daí
decorrem, os quais não estavam presentes anteriormente.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 262

Além do mais, com a devolução,


há a violação ao venire contra factum proprium, uma vez que os adotantes praticam, de
forma abrupta e surpreendente, um comportamento totalmente contraditório ao esperado
pelos adotados. Dessa maneira, como a devolução pode ser configurada como um ato
ilícito por abuso de direito, decorrente de uma conduta voluntária dos adotantes, e estão
presentes o nexo de causalidade e o dano, há a configuração da responsabilidade civil.
O ordenamento jurídico brasileiro
não prevê qualquer sanção para os adotantes que devolvem a criança e/ou o adolescente
durante o estágio de convivência. Por isso, os pressupostos da responsabilidade civil
surgem como uma forma de compensar as crianças e os adolescentes pelos danos
provocados, além de consistirem em uma sanção aos pretendentes por cometerem
comportamentos desmedidos e ilícitos. Ainda, a responsabilização dos adotantes
desempenha uma função coletiva de provocar uma consciência social de que o
cometimento de tal atitude será punida e responsabilizada judicialmente.
A adoção não pode ser vista pelos
pretendentes como uma aventura que, caso não se materialize da forma idealizada ou
romantizada, pode ser cancelada sem qualquer consequência ou sanção a quem lhe deu
causa. A vida real nem sempre se apresenta da maneira idealizada concebida, muitas
vezes, pelos adotantes, de modo que a resiliência, empatia, paciência e compreensão são
habilidades importantes a serem cultivadas pelos adotantes, sob pena de o processo todo
ser frustrado.
Ante ao exposto, em caso de
devolução de crianças e adolescentes durante o estágio de convivência, pode-se concluir
que, apesar de não apagar os traumas enfrentados pelos adotandos, a responsabilização
civil dos adotantes, no caso concreto, é uma forma de preservação dos seus melhores
interesses, o que se coaduna com a doutrina da proteção integral e, consequentemente,
tenta assegurar a observância do princípio máximo da dignidade humana. Logo, mais
adoções conscientes e responsáveis poderão ser estimuladas, a fim de que mais crianças
e adolescentes possam se desenvolver sadiamente em suas novas famílias.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 263

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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33 do ECA - Revitimização da criança - Rejeição - Segregação - Danos morais
constatados - Art. 186 c/c Art. 927 do Código Civil – Reparação devida - Ação
procedente - II. Quantum indenizatório - Recursos parcos dos requeridos - Condenação
inexequível - Minoração - Sentença Parcialmente reformada. Recorrente: D.A.S. e
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no curso do estágio de convivência. Período previsto no art. 46 do ECA que tem como
finalidade avaliar a adequação da criança à família substituta para fins de adoção.
Devolução imotivada que gera, inquestionavelmente, transtornos que ultrapassam o
mero dissabor, já que frustram o sonho da criança em fazer parte de um lar. Recorrente:
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A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 266

ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE JURÍDICA DA SUCESSÃO DE BENS


DIGITAIS NO DIREITO BRASILEIRO 162

Felippe Velasques Giriboni,


Egresso do Curso de Direito da Unipampa
@hotmail.com

Profa. Draª Alessandra Marconatto,


Orientadora
Docente do Curso de Direito da Unipampa
alessandramarconatto@unipampa.edu.br

RESUMO

O avanço da tecnologia trouxe, evidentemente, a migração do registro dos dados da


forma analógica para a digital, o que trouxe notórios desdobramentos para o âmbito
social e, consequentemente, ao Direito, em especial o Direito das Sucessões. O presente
trabalho de conclusão de curso objetiva verificar a possibilidade jurídica da sucessão de
bens digitais no direito brasileiro. Defende-se que a relevância do tema está interligada
diretamente ao aspecto social do assunto, que pende de regulamentação jurídica. Para
tanto, buscou-se demonstrar as noções gerais de Direito Sucessório, abordando sobre o
instituto da herança e as modalidades sucessórias. Na sequência, explanou-se acerca da
evolução da internet e objeto do Direito Digital, bem como os bens de natureza digital e
sua classificação. Posteriormente, cuidou-se demonstrar as ferramentas já disponíveis
para legar terceiros para acessar os dados das contas, os projetos de lei sobre o tema que
estão em tramitação no país, e uma rápida abordagem sobre direito comparado. Com
efeito, o que se observa até o presente momento, em que ainda não há uma
regulamentação legal sobre o tema, é de que é possível a sucessão de alguns bens de
natureza digital, a depender de sua classificação. No entanto, cabe ao Poder Judiciário
decidir acerca da possibilidade ou não da transmissão dos demais bens de natureza
digital, que não encontram resguardo à lei vigente no país, a qual elaborada em um
período em que não se pensava sobre tais hipóteses sucessórias. O que se constata, é a
necessidade de regularização urgente da questão pelo ordenamento jurídico interno, vez
que de grande importância e contemporaneidade.

Palavras-chave: Direito das Sucessões. Direito Digital. Bens Digitais. Herança Digital.

ABSTRACT

The advancement of technology has evidently brought the migration of data recording
from analog to digital form, which has brought remarkable developments to the social
sphere and, consequently, to Law, in particular the Law of Succession. This course
conclusion work aims to verify the legal possibility of the succession of digital assets in
Brazilian law. It is argued that the relevance of the theme is directly linked to the social
aspect of the subject, which depends on legal regulation. In order to do so, we sought to

162
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 267

demonstrate the general notions of Succession Law, addressing the institute of


inheritance and the succession modalities. Next, it was explained about the evolution of
the internet and the object of Digital Law, as well as the goods of a digital nature and
their classification. Subsequently, we took care to demonstrate the tools already
available to bequeath third parties to access account data, the bills on the subject that are
being processed in the country, and a quick approach to comparative law. In fact, what
has been observed so far, in which there is still no legal regulation on the subject, is that
the succession of some assets of a digital nature is possible, depending on their
classification. However, it is up to the Judiciary to decide on the possibility or not of the
transmission of other assets of a digital nature, which are not protected by the law in
force in the country, which was elaborated in a period when such succession hypotheses
were not thought about. What is seen is the need for urgent regularization of the issue
by the domestic legal system, since it is of great importance and contemporaneity.

Key words: Succession Law. Digital Law. Digital Goods. Digital Heritage.

INTRODUÇÃO

Com o avanço da tecnologia, é notória a migração do registro de dados da forma


analógica para a digital. O que antes era guardado fisicamente e repassado entre
gerações, como fotografias, vídeos, agendas pessoais, dentre outros, passou a ser
comumente armazenado em bases de dados eletrônicas, sendo facilmente suscetível de
perda quanto do falecimento do indivíduo que detém a conta de usuário vinculada, em
decorrência das restrições de acesso inerentes, sobretudo, à segurança dos dados
armazenados digitalmente.
A relevância da pesquisa está diretamente atrelada ao aspecto social do assunto,
resultando disso a necessidade de regulamentação jurídica, porquanto não se pode negar
que determinada fração do patrimônio do indivíduo moderno passou a ser armazenada
de forma digital, especialmente no que tange ao acervo familiar de memórias, como
agendas pessoais, álbum de fotografias, etc, e é digna de transmissão, assim como já
ocorre com o patrimônio material.
Apesar de não consistir novidade a possibilidade de armazenamento digital de
dados, apenas recentemente os debates acerca da transmissão de bens armazenados
digitalmente vem ganhando espaço. Assim, exsurge-se a necessidade de análise sobre a
possibilidade jurídica da sucessão de bens digitais no Direito Brasileiro.
Ocorre que ainda hoje o ordenamento jurídico pátrio e, até mesmo na ótica
internacional, não dispõe sobre o assunto, não havendo entendimento jurídico legal,
doutrinário ou jurisprudencial, consolidado, decorrendo disso insegurança jurídica
quando se trata da possibilidade de sucessão de bens digitais.
No que tange o objeto do estudo, busca-se analisar a possibilidade jurídica de
sucessão de bens digitais no direito brasileiro. Para tanto, explora-se a definição de
patrimônio, bens e Direito das Sucessões, Direito Digital, bens digitais, bem como
explana-se acerca das decisões já proferidas sobre o tema estudado.
Quanto à metodologia, utiliza-se o método de abordagem dedutivo, a fim de se
partir de regras genéricas para encontrar a problemática do estudo, com estudo da
legislação local, casos jurisprudenciais e direito comparado. O método de procedimento
adotado é o monográfico. A técnica de pesquisa será a bibliográfica analítica, dando-se
através de livros, periódicos, sites e demais meios necessários ao desenvolvimento da
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 268

pesquisa. A bibliografia constituirá doutrinadores que abordam o tema do Direito das


Sucessões, Direito Digital e Herança Digital, assim como o entendimento dos Tribunais
de Justiça brasileiros e, em sede comparativa, Tribunais internacionais.
No primeiro capítulo, a abordagem será sobre patrimônio, bens e Direito das
Sucessões, trazendo-se, inicialmente e de forma geral, a conceituação de patrimônio,
com sua nova perspectiva à luz do Direito Constitucional, bem como noções gerais
acerca da definição de coisas e bens.
Na sequência, será explanado acerca do Direito Sucessório, sendo sua breve
explanação de máxima importância para o desenvolvimento do estudo. Após, traz-se o
instituto da herança e modalidades sucessórias.
O segundo capítulo objetiva demonstrar o avanço da tecnologia que possibilitou
a criação da internet como conhecemos hoje, com a migração dos dados da forma
analógica para a digital. Aborda-se também acerca da mudança social ocasionada pela
internet, que tornou necessário a “criação” do Direito Digital.
Por fim, o terceiro capítulo abordará o objeto da presente pesquisa,
demonstrando os atuais métodos do usuário dispor de sua última vontade acerca de
algumas redes sociais e empresas de armazenamento de dados, Projetos de Lei em
andamento sobre a sucessão de bens digitais, as decisões jurisprudenciais proferidas em
âmbito nacional, e direito comparado, que trará casos jurisprudenciais e legislações
internacionais.

1. PATRIMÔNIO, BENS E DIREITO DAS SUCESSÕES

1.1 Patrimônio e bens


No âmbito legislativo brasileiro, as relações particulares são regidas pelo Direito
Civil, o qual disciplina a vida das pessoas desde a concepção (CC, art. 2º), ou até
mesmo antes dela, permitindo a contemplação de eventual prole (CC, art. 1.799, I) e
dando relevância ao embrião excedentário (CC, art. 1.597, IV), ordenando também a
vida post mortem, como no caso do testamento (CC, art. 1.857) e determinando respeito
à memória dos mortos (CC, art. 12, parágrafo único) (GONÇALVES, 2017, p.32).
Diz-se que o Código Civil regula as ocorrências do dia a dia e, portanto, toda a vida
social, sendo possível chamá-lo de Constituição do homem comum, uma vez que trata
de assuntos puramente pessoais, a teor da relação na qualidade de esposo ou esposa, pai
e filho, dentre outras inerentes do poder familiar, além de questões patrimoniais,
caracterizadas como todas aquelas que apresentam interesse econômico e visam a
utilização de determinados bens (GONÇALVES, 2017, p.33).
No que tange sua estrutura e princípios básicos, destaca Flávio Tartuce (2021,
p.106), que Miguel Reale, coordenador do codex, “não se cansava em apontar os
princípios ou regramentos básicos que sustentam a atual codificação privada: eticidade,
socialidade e operabilidade”.
Tartuce (2021, p.106) ainda declara que “o estudo de tais princípios é fundamental
para que se possam entender os novos institutos que surgiram com a nossa nova lei
privada”.
Sobre o princípio da eticidade, destaca-se a possibilidade de maior interpretação da
lei, que deverá ser aplicada em observação aos princípios éticos dos operadores do
direito. Explica Flávio Tartuce (2021, p. 107):
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 269

O Código Civil de 2002 distancia-se do tecnicismo institucional


advindo da experiência do Direito Romano, procurando, em vez
de valorizar formalidades, reconhecer a participação dos valores
éticos em todo o Direito Privado. Por isso muitas vezes se percebe
a previsão de preceitos genéricos e cláusulas gerais, sem a
preocupação do encaixe perfeito entre normas e fatos.
No que concerne ao princípio da eticidade, adotado pela
codificação emergente, cumpre transcrever as palavras do
Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, no
sentido de que “o tipo de Ética buscado pelo novo Código Civil
é o defendido pela corrente kantiana: é o comportamento que
confia no homem como um ser composto por valores que o
elevam ao patamar de respeito pelo semelhante e de reflexo de
um estado de confiança nas relações desenvolvidas, quer
negociais, quer não negociais. É, na expressão kantiana, a
certeza do dever cumprido, a tranquilidade da boa consciência”
(A ética..., Questões controvertidas..., 2003, p. 177).
(...)
Os juízes passam a ter, assim, uma amplitude maior de
interpretação. Muitas vezes, será o aplicador da norma chamado
para preencher as lacunas fáticas e as margens de interpretação
deixadas pelas cláusulas gerais, sempre lembrando da proteção
da boa-fé, da tutela da confiança, da moral, da ética e dos bons
costumes.
Acerca do princípio da socialidade, assevera (2021, p. 109):
Por esse princípio, o Código Civil de 2002 procura superar o
caráter individualista e egoísta que imperava na codificação
anterior, valorizando a palavra nós em detrimento da palavra eu.
Os grandes ícones do Direito Privado recebem uma denotação
social: a família, o contrato, a propriedade, a posse, a
responsabilidade civil, a empresa, o testamento.
Isso diante das inúmeras modificações pelas quais passou a
sociedade. Houve o incremento dos meios de comunicação, a
valorização da dignidade humana e da igualdade entre as
pessoas, a supremacia do afeto na família, a estandardização ou
padronização dos negócios e o surgimento da sociedade de
consumo em massa, trazendo uma nova realidade que atingiu os
alicerces de praticamente todos os institutos privados. Desse
modo, deverá prevalecer o social sobre o individual, o coletivo
sobre o particular.
Já sobre o princípio da operabilidade, ensina (2021, p.111):
O Código Civil de 2002 segue tendência de facilitar a
interpretação e a aplicação dos institutos nele previstos.
Procurou-se assim eliminar as dúvidas que imperavam na
codificação anterior, fundada em exagerado tecnicismo jurídico.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 270

Nesse ponto, visando à facilitação, a operabilidade é denotada


com o intuito de simplicidade.
Como exemplo, pode ser citada a distinção que agora consta em
relação aos institutos da prescrição e da decadência, matéria que
antes trazia grandes dúvidas pela lei anterior, que era
demasiadamente confusa. Facilitadas as previsões legais desses
institutos pelo Código Civil de 2002, poderá o estudioso do
direito entender muito bem as distinções existentes e identificar
com facilidade se determinado prazo é de prescrição ou de
decadência (arts. 189 a 211 do CC/2002).
(...)
Interessante frisar, outrossim, que a intenção de manter um
Código Civil dividido em uma Parte Geral e uma Parte Especial
mantém relação com a operabilidade, no sentido de
simplicidade, uma vez que tal organização facilita e muito o
estudo dos institutos jurídicos, do ponto de vista metodológico.
Finalizando, deve ficar claro que a operabilidade pode ser
concebida por dois prismas, o relacionado com a simplicidade e
o concebido dentro da efetividade/concretude.
Conforme se observa, com o novo Código Civil, sobrevieram novos institutos,
os quais surgiram para o fim de atualizar a normativa privada, diante da evolução das
relações sociais.
Dentre esses institutos, está a mudança no direito de propriedade, que somada
aos princípios elencados acima, passou a ter um viés social, para além do unicamente
patrimonial do Código Civil de 1916.
Sobre a evolução da propriedade no âmbito privado, ensinam Farias e Rosenvald
(2019, p.105):
Sob inspiração individualística, a liberdade se afirmou, nos
códigos civis, sob a forma da propriedade (simbolizada pela
autonomia para celebrar pactos vinculantes). Havia um respeito
religioso à propriedade e aos contratos, considerados invioláveis
em seu conteúdo. A liberdade então exercida era uma liberdade
de proprietários. Os códigos civis regiam relações entre pessoas
dotadas de patrimônio. Os códigos civis clássicos, que se
propunham a ser a "Constituição do direito privado, não
atingiam as pessoas sem patrimônio, e já aí se vê que quão
pobres eram tais "Constituições"? Pontes de Miranda - com a
antevisão que o distinguia - já nas primeiras décadas do século
passado já alertava para o regressivo erro de tratar outros
direitos menos favoravelmente que o direito de propriedade.
O direito civil, nesse sentido, se renovou, está se renovando. Há
um choque entre velhas estruturas e novas funções. Aliás, não é
novidade que o direito civil sempre foi visto como o espaço
jurídico do tradicionalismo. Os civilistas, com seu
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 271

conservadorismo inteligente, hesitam muito em abandonar


antigos esquemas ou classificações ou renovar velhas pautas
temáticas. Para abraçar o novo é preciso, muitas vezes,
abandonar o antigo, e é esse abandono - mais do que a aceitação
do novo - que parece incomodar.
Na atualidade, a função social da propriedade vem tomando um papel
importante. O proprietário não pode mais dispor acerca da utilização do bem de forma
absoluta e arbitrária, devendo respeitar o coletivo, em especial a proteção do meio
ambiente. Ademais, o conceito de bem está evoluindo, ganhando dimensões existenciais
que vão além da forma patrimonial (FARIAS E ROSENVALD, 2019, p. 107).
Apresentada a noção geral, é de se explicar a conceituação de patrimônio e sua
leitura sob a ordem constitucional.
1.1.1 Patrimônio
Para Venosa, (2021, p. 277) patrimônio é “o conjunto de direitos reais e
obrigacionais de uma pessoa que sempre deverão ser passíveis de avaliação
econômica”.
Já para Gonçalves (2021, p. 111), patrimônio é, em sentido amplo, o conjunto de
bens, de qualquer ordem, pertencentes a um titular. Já em sentido estrito, considera-se
patrimônio apenas as relações jurídicas ativas e passivas de que a pessoa é titular,
aferíveis economicamente. Ainda, cita Clóvis Beviláqua:
Patrimônio, segundo a doutrina, é o complexo das relações
jurídicas de uma pessoa, que tiverem valor econômico. Clóvis,
acolhendo essa noção, comenta: “Assim, compreendem-se no
patrimônio tanto os elementos ativos quanto os passivos, isto é,
os direitos de ordem privada economicamente apreciáveis e as
dívidas. É a atividade econômica de uma pessoa, sob o seu
aspecto jurídico, ou a projeção econômica da personalidade
civil”
No entanto, com a nova perspectiva de leitura do Código Civil à luz do Direito
Constitucional, o direito patrimonial passa a ter uma nova ótica.
Conceitua Flávio Tartuce (2021, p. 377), citando Gustavo Tepedino, que a nova
dimensão da ideia de patrimônio está ligada à concepção do direito civil-constitucional,
colocando os direitos de personalidade e os direitos patrimoniais no mesmo plano:

O Código Civil de 2002 traz um capítulo específico a tratar dos


direitos da personalidade, o que não constitui novidade no
sistema jurídico nacional. Na verdade, o previsto entre os arts.
11 a 21 da atual codificação apenas reafirma a proteção da
pessoa natural e dos direitos fundamentais consolidada na
Constituição Federal, particularmente entre os seus arts. 1.º a 5.º,
que consagram, respectivamente, os princípios da dignidade da
pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade lato
sensu, também denominado princípio da isonomia ou igualdade
substancial. Esses são, conforme ensina Gustavo Tepedino, os
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 272

princípios do Direito Civil Constitucional, a tríade fundamental


da tendência de constitucionalização e personalização do Direito
Civil – dignidade-solidariedade--igualdade (TEPEDINO,
Gustavo. Premissas metodológicas..., Temas de direito civil...,
2004).
Ainda sobre o tema, citando o Ministro Fachin, Tartuce aborda a aplicação do
princípio da dignidade da pessoa humana em todo o ordenamento jurídico nacional
(2021, p. 378):
A dignidade da pessoa é princípio fundamental da República
Federativa do Brasil. É o que chama de princípio estruturante,
constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda a
ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por
meio de outros princípios e regras constitucionais formando um
sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a ideia de
predomínio do individualismo atomista no Direito. Aplica-se
como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-
lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo
preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório
que se trata” (Estatuto jurídico..., 2001, p. 190).

Aduz que a tendência do Direito Civil Contemporâneo emerge a partir da


tendência de constitucionalização do Direito Privado, trazendo uma nova dimensão à
ideia de patrimônio, com vistas à proteção da pessoa (TARTUCE, 2021, p. 380).
Nessa toada, descreve Flávio Tartuce (2021, p. 380) que “a ideia de patrimônio
vem recebendo um novo dimensionamento pela atual geração de civilistas, além de
meros interesses econômicos”. Declara que há uma tendência de personalização do
Direito Civil, levando como principal ponto a valorização da pessoa humana.

1.1.2 Coisas e Bens


Segundo Flávio Tartuce (2021, p.355) “os conceitos de bens e coisas, como
objeto do direito, sempre dividiram a doutrina moderna brasileira”.
Para o doutrinador (2021, p.355), a conceituação trazida por Silvio Rodrigues, se
encaixa perfeitamente ao seu entendimento, a saber: “coisa é tudo que existe
objetivamente, com exclusão do homem”. Já “bens são coisas que, por serem úteis e
raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico”.
Outrossim, conceitua Venosa acerca do tema (2021, p. 278):
Entende-se por bens tudo o que pode proporcionar utilidade aos
homens. Não deve o termo ser confundido com coisas, embora a
doutrina longe está de ser uníssona. Bem, numa concepção ampla,
é tudo que corresponde a nossos desejos, nosso afeto em uma
visão não jurídica. No campo jurídico, bem deve ser considerado
aquilo que tem valor, abstraindo-se daí a noção pecuniária do
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 273

termo. Para o direito, bem é uma utilidade econômica ou não


econômica. Existe conteúdo axiológico nesse vocábulo.
Ainda, preleciona Venosa (2021, p. 278) que nossos Códigos não definem o
conceito de coisa e bem, citando a conceituação trazida no Código português e italiano:
“O Código português, no art. 202, diz: “Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de
relações jurídicas.” O Código italiano, no art. 810, diz que são bens as coisas que podem
formar objetos de direitos”.
Com efeito, Venosa (2021, p.278) ainda traz exemplos entre a diferenciação de
bem e coisa:

Assim, todos os bens são coisas, mas nem todas as coisas


merecem ser denominadas bens. O sol, o mar, a lua são coisas,
mas não são bens, porque não podem ser apropriados pelo
homem. As pessoas amadas, os entes queridos ou nossas
recordações serão sempre um bem. O amor é o bem maior do
homem. Essa acepção do termo somente interessa indiretamente
ao Direito. A palavra bem deriva de bonum, felicidade, bem-
estar. A palavra coisa, tal como os estudos jurídicos a
consagram, possui sentido mais extenso no campo do Direito,
compreendendo tanto os bens que podem ser apropriados, como
aqueles objetos que não podem.
Para Gagliano (2021, p. 60), bem significa toda utilidade em favor do ser
humano, conceito que não interessa diretamente ao Direito. Já em sentido jurídico, lato
sensu, bem jurídico é a utilidade, física ou imaterial, objeto de uma relação jurídica, seja
pessoal ou real.
Schreiber, ensina que (2021, p.74):

Bem, em sentido amplo, é tudo aquilo que é desejado pelo


homem a fim de atender a seus interesses. Quando tais interesses
são amparados pelo ordenamento jurídico, o bem se qualifica,
tornando-se bem jurídico. Como já destacava Clóvis Beviláqua,
“para o direito, o bem é uma utilidade, porém, com extensão
maior do que a utilidade econômica, porque a economia gira
dentro de um círculo determinado por estes três pontos: o
trabalho, a terra e o valor; ao passo que o direito tem por objeto
interesses, que se realizam dentro desse círculo, e interesses
outros, tanto do indivíduo quanto da família e da sociedade”.
Assim, segundo Donizeti (2021, p.106), o Código Civil segue a orientação
doutrinária, classificando os bens com relação à sua essência, ou, como normalmente
dito, considerados em si mesmos. Por fim, são classificados como móveis ou imóveis,
fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou inconsumíveis, divisíveis ou indivisíveis, e
singulares ou coletivos, públicos ou particulares.

1.2 Direito das Sucessões


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 274

A existência do ser humano para fins jurídicos no Brasil é tratada pelo Código
Civil, que estabelece o início e fim da sua personalidade, vale dizer, da sua qualidade de
pessoa, que se inicia com o nascimento com vida (CC, art. 2º) e termina com a morte
(CC, art. 6º) (TEIXEIRA e LEAL, 2021, p. 18).
O brasileiro, em geral, não costuma falar da morte. Muitos dizem que isso traz
mau agouro ou pode, até mesmo, propiciar a sua chegada mais precoce, o que ninguém
quer. Mas o fato é que a morte faz parte da vida, sendo a única certeza de toda a nossa
trajetória, independentemente de credo ou filosofia. (GAGLIANO, 2021, p. 609).
Com a causa mortis, sobrevém o fenômeno sucessório, o qual não é
característico somente dos casos de falecimento, conceituando Farias (2019, p. 1.967)
que:

O fenômeno sucessório é extremamente corriqueiro nas relações


jurídicas e transcende o campo do Direito das Sucessões. O
vocábulo sucessão é uma expressão plurívoca, não unívoca,
comportando diferentes significados e não se restringindo à
esfera da transmissão de herança. Vem do latim sucessio, do
verbo succedere (sub+cedere), significando substituição, com a
ideia subjacente de uma coisa ou de uma pessoa que vem depois
de outra.
Logo, para José Fernando Simão (2021, p 1.546), suceder é vir após, entrar no
lugar de outrem. O vocábulo sucessão tem uma pluralidade de significados para o
Direito, já que qualquer transmissão de bens importa em sucessão. Desse modo,
podemos dizer que há dois tipos de sucessão: a sucessão por ato entre vivos (inter vivos)
e aquela por força da morte (causa mortis).
Quanto à sucessão originária da causa mortis, conceitua Flávio Tartuce (2020,
p. 2.170), que o Direito Sucessório está baseado no direito de propriedade e na sua
função social (art. 5.º, incs. XXII e XXIII, da CF/1988). Porém, mais do que isso, a
sucessão mortis causa tem esteio na valorização constante da dignidade humana, seja do
ponto de vista individual ou coletivo, conforme o art. 1.º, inc. III, e o art. 3.º, inc. I, da
Constituição Federal de 1988.
Como ensina José Fernando Simão, se suceder é vir após, entrar no lugar de
outrem, tem-se que o Direito Sucessório também deva dar continuidade a memória do
de cujus, em latu sensu, e não somente na ordem patrimonial.
Ressalta-se que o principal objeto do Direito Sucessório é a sucessão
patrimonial. Nas palavra de Maria Helena Diniz (2014, p. 22) “o fundamento do direito
sucessório, devido à sua importante função social, é a propriedade, conjugada ou não
com o direito de família”.
Porém, o Direito Sucessório também tem como objetivo a continuidade da
pessoa humana, estando ligado, além do princípio da função social da propriedade, ao
princípio da dignidade humana, uma vez que a memória do de cujus deve ser preservada
(e continuada) através do ato sucessório.
Sobre o tema, ensina Flávio Tartuce citando José de Oliveira Ascensão (2021,
v6, p.18):
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 275

Partindo para a razão de ser dos institutos sucessórios, como


leciona José de Oliveira Ascensão, um dos fundamentos da
sucessão mortis causa é a exigência da continuidade da pessoa
humana, sendo pertinente transcrever suas lições:
“O Direito das Sucessões realiza a finalidade institucional de dar
a continuidade possível ao descontínuo causado pela morte.
A continuidade a que tende o Direito das Sucessões manifesta-se
por uma pluralidade de pontos de vista.
No plano individual, ele procura assegurar finalidades próprias
do autor da sucessão, mesmo para além do desaparecimento
deste. Basta pensar na relevância do testamento.
A continuidade deixa marca forte na figura do herdeiro.
Veremos que este é concebido ainda hoje como um continuador
pessoal do autor da herança, ou de cujus. Este aspecto tem a sua
manifestação mais alta na figura do herdeiro legitimário.
Mas tão importante como estas é a continuidade na vida social.
O falecido participou desta, fez contratos, contraiu dívidas...
Não seria razoável que tudo se quebrasse com a morte,
frustrando os contraentes. É necessário, para evitar sobressaltos
na vida social, assegurar que os centros de interesses criados à
volta do autor da sucessão prossigam quanto possível sem
fracturas para além da morte deste” (ASCENSÃO, José de
Oliveira. Direito..., 2000, p. 13).
Com isso, é necessário explorar o conceito de herança, para fins de entender
melhor o que é transmitido aos herdeiros quando do falecimento, bem como as formas
de modalidade sucessória.
1.2.1 Herança
A herança pode ser conceituada como o conjunto de bens, positivos e negativos,
formado com o falecimento do de cujus (TARTUCE, 2021, p. 56).
Farias e Rosenvald (2019, p. 1.969), por sua vez:

Diferentemente, a outro giro, quando se tratar de uma relação


jurídica patrimonial, a morte do sujeito (ativo ou passivo)
implicará na transmissão dos direitos e/ou obrigações respectivas
do falecido aos seus sucessores. Esse conjunto de relações
jurídicas patrimoniais que eram titularizadas pelo falecido é que
se transmite aos seus sucessores é o que se denomina herança - e
que serve de objeto para o Direito das Sucessões.
Ainda sobre o conceito de herança, para Madaleno (2020, p. 47-48):

Herança é o patrimônio deixado pelo falecido e representado pelo


conjunto de seus bens materiais e imateriais, direitos e obrigações,
ou, como institui o art. 91 do Código Civil, o complexo de
relações jurídicas de uma pessoa, dotadas de valor econômico e
que se constitui em uma universalidade.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 276

O direito à herança, na ordem jurídica brasileira, é amparado pela Constituição


Federal, a qual atribuiu ao mesmo a garantia de direito fundamental, estando previsto no
art. 5º, XXX, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXX - é garantido o direito de herança.
Em relação à proteção constitucional do direito à herança, ensinam Farias e
Rosenvald (2019, p. 1.969):

Trata-se, por conseguinte, de cláusula pétrea que não pode ser


afrontada, sequer, pelo poder constituinte derivado.
Efetivamente, o direito de herança é o desdobramento natural do
direito à propriedade privada, que será transmitida com a morte
do respectivo titular. Confirma-se, pois, a transmissibilidade das
relações jurídicas de conteúdo econômico.
Farias e Rosenvald (2019, p. 1.969) ainda destacam que:

(...) a herança é um bem jurídico imóvel, universal e indivisível.


Formada a herança, com a transmissão do conjunto de relações
patrimoniais pertencentes ao falecido, atribui-se a esse bem uma
natureza imóvel, universal e indivisível, mesmo que formada
somente por bens móveis, singulares e divisíveis. Com isso, a
herança estabelece um condomínio e uma composse dos bens
integrantes do patrimônio transmitido, que somente serão
dissolvidos com a partilha do patrimônio.
Na normativa brasileira, o artigo 1.784 do Código Civil, declara aberta a
sucessão, dispondo que, na sequência, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros
legítimos e testamentários.
Esse é o princípio da saisine, um dos mais importantes do Direito Civil. Vem da
frase le mort saisit le vif, ou seja, o morto prende o vivo, pois, com a morte, a herança
transmite-se imediatamente aos sucessores, independentemente de qualquer ato do
herdeiro. (SCHREIBER, 2021, p 1.546)
Essa transferência imediata importa na criação do espólio, que, segundo
Anderson Schreiber (2021, p. 1.546), “trata-se de uma ficção jurídica de grande
utilidade ao sistema, pois os bens da herança não ficam, em momento algum, acéfalos,
sem titularidade”.
Flávio Tartuce (2020, p. 2.179) ensina sobre o instituto do espólio, explicando
que:
Conforme o entendimento majoritário da doutrina, a herança
forma o espólio, que constitui um ente despersonalizado ou
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 277

despersonificado e não de uma pessoa jurídica, havendo uma


universalidade jurídica, criada por ficção legal. A norma
processual reconhece legitimidade ativa ao espólio, devidamente
representado pelo inventariante (art. 75, inc. VII, do CPC/2015,
correspondente ao art. 12, inc. V, do CPC/1973). Não se pode
esquecer que o direito à sucessão aberta e o direito à herança
constituem bens imóveis por determinação legal, como consta
do art. 80, inc. II, do CC/2002. Isso ocorre mesmo se a herança
for composta apenas por bens móveis, caso de dinheiro e
veículos.
Nessa senda, verifica-se que, com a morte, a sucessão dos bens do espólio
automaticamente são transmitidos aos seus herdeiros, estando compreendidos pelo
espólio os bens móveis e imóveis do de cujus. No entanto, é de se declarar que quando
do falecimento, somente os bens de natureza econômica são transmitidos aos herdeiros.
Isso porque somente as relações jurídicas patrimoniais (de natureza econômica)
admitem a substituição do sujeito da relação jurídica quando da morte do seu titular.
Naturalmente, as relações jurídicas personalíssimas serão extintas quando do
falecimento do seu titular, em face de seu caráter intuito personae. É o exemplo dos
direitos da personalidade, afinal de contas a morte do titular põe fim, seguramente, ao
exercício da titularidade do direito de imagem, da integridade física ou da vida privada.
Igualmente, o estado familiar se extingue com a morte do titular. Também é o exemplo
dos direitos políticos e das obrigações de fazer personalíssimas (CC, art. 247) (FARIAS,
2019, p. 1.969).

1.2.2 Modalidades sucessivas


As fontes sucessórias do Direito brasileiro estão estabelecidas no artigo 1.786 do
Código Civil, o qual dispõe que, aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo,
aos herdeiros legítimos e testamentários. Assim, o dispositivo legal divide a modalidade
sucessória em dois, podendo esta decorrer da própria lei, no caso da legítima, ou da
manifestação de última vontade, no testamento e codicilo, sendo possível a coexistência
das modalidades em uma única sucessão.
Quanto às espécies de sucessão, explica Scheiber (2021, p. 432):
A doutrina classifica a sucessão em várias espécies. (...) No
âmbito da sucessão causa mortis, distingue-se, ainda, (a) a
sucessão legítima, que se verifica por força da lei, e (b) a
sucessão testamentária, que decorre da prévia manifestação de
vontade do sucedido, a produzir efeitos com a sua morte.
Quando a pessoa sucumbe sem deixar testamento, diz-se que
falece ab intestato, transmitindo-se seu patrimônio
integralmente aos herdeiros apontados na lei. Quando, porém, o
falecido tiver deixado testamento, opera a sucessão
testamentária, favorecendo as pessoas indicadas no testamento.
Se o testador tiver herdeiros necessários, a sucessão
testamentária operará ao lado da sucessão legítima, pois, como
se verá, a liberdade de testar não é plena no direito brasileiro,
pois nossa legislação somente permite que o falecido (de cujus)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 278

disponha em testamento de metade do seu patrimônio


hereditário, destinando-se a outra metade, chamada herança
legítima, aos herdeiros necessários, se houver.
A modalidade de sucessão legítima está prevista entre os artigos 1.829 a 1.856
do Código Civil, restando a transmissão da herança regrada pela própria lei, inclusive
quanto à ordem de chamamento dos sucessores. Sobre tal modalidade, explica o
doutrinador Flávio Tartuce (2020, p.1.444) que é “aquela que decorre da lei, que
enuncia a ordem de vocação hereditária, presumindo a vontade do autor da herança. É
também denominada sucessão ab intestato justamente por inexistir testamento”.
Diz-se que a vontade do autor da herança é presumida, pois é a própria lei que
estabelece a preferência a suceder entre os sucessores do falecido. Tal disposição é
regrada no artigo 1.788 do Código Civil, in verbis:

Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a


herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos
bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a
sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.
A ordem de preferência entre os herdeiros legítimos está disposta no artigo
1.829 do Código Civil, que preleciona:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:


(Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso
Extraordinário nº 878.694)
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da
comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens
(art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão
parcial, o autor da herança não houver deixado bens
particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
Nesse sentido, esclarece Gonçalves (2012, p. 40) “que a sucessão legítima
representa a vontade presumida do de cujus de transmitir o seu patrimônio para as
pessoas indicadas na lei, pois teria deixado testamento se fosse outra a intenção”.
Tal modalidade sucessória é a mais comum no Brasil, pois, conforme Gagliano
(2021, p. 611), “não é típica da cultura brasileira a preocupação com o destino do nosso
patrimônio após a morte, como se dá em países europeus”.
Por outro lado, havendo manifestação de última vontade do de cujus, por meio
de testamento ou codicilo, a sucessão será regrada pelos artigos 1.857 a 1.990 do
Código Civil. Sobre a sucessão testamentária, conceitua Carlos Roberto Gonçalves
(2021, p. 91):
É ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável,
pelo qual alguém, segundo as prescrições da lei, dispõe, total ou
parcialmente, do seu patrimônio para depois de morrer; ou
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 279

nomeia tutores para seus filhos menores, ou reconhece filhos, ou


faz outras declarações de última vontade.
Gagliano discorre que tal modalidade sucessória está ligada ao princípio da
autonomia, na qual o testador tem a liberdade de escolher quem beneficiar, dentro das
normativas legais (2021, p. 611):
Observa-se, pois, aqui, um espaço de incidência do princípio da
autonomia privada, na medida em que o testador, respeitados
determinados parâmetros normativos de ordem pública, tem a
liberdade de escolher, dentre os seus sucessores, aquele(s) a
quem beneficiar e, ainda, de determinar quanto do seu
patrimônio será transferido após a sua morte.
Como posto acima, o ato de testar deve ser realizado de forma solene, estando
previsto nos artigos 1.860 e 1861 do Código Civil, quem possui capacidade para efetuar
tal ação, in verbis:
Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato
de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.
Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.
Art. 1.861. A incapacidade superveniente do testador não
invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida
com a superveniência da capacidade.
Com efeito, o Código Civil divide as formas de testar em ordinárias e
especiais, sendo os testamentos ordinários, conforme artigo 1.862 do referido codex, o
público; o cerrado; e o particular. Já o artigo 1.886 da mesma normativa legal,
estabelece as espécies de testamento especial, sendo o marítimo; o aeronáutico; e o
militar.
Ademais, as espécies de testamento descritas no Código Civil são taxativas e
não exemplificativas. Tal disposição está prevista no art. 1.887 do CC, o qual dispõe
que “Não se admitem outros testamentos especiais além dos contemplados neste
Código”.
Em complemento, o Doutrinador Flávio Tartuce (2021, p. 433) ensina que as
formas especiais “quase ou nenhuma aplicação prática têm, até porque encerram tipos
bem específicos, de difícil concreção no mundo real contemporâneo.” Ainda elenca que
“se no Brasil já não são comuns os testamentos ordinários ou comuns, imagine-se a
pouca incidência das formas emergenciais”.
Qualquer seja a modalidade testamentária, esta deve ser feita de forma
personalíssima e unilateral, uma vez que o artigo 1.863 do Código Civil estabelece que
“é proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo”.
Flávio Tartuce explica acerca do testamento coletivo, trazendo as seguintes
definições (2021, p. 434):

a)Testamento simultâneo – dois testadores, no mesmo negócio,


beneficiam terceira pessoa.
b)Testamento recíproco – realizado por duas pessoas que se
beneficiam reciprocamente, no mesmo ato.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 280

c)Testamento correspectivo – os testadores fazem em um


mesmo instrumento disposições de retribuição um ao outro, na
mesma proporção.
Passando-se às espécies de testamentos ordinários ou comuns, temos
primeiramente o testamento público (art. 1.862, I, CC), previsto nos artigos 1.864 a
1.867 do Código Civil. Nesta modalidade testamentária, as declarações do testador são
lavradas pelo Tabelião de Notas ou seu substituto legal (art. 1.864, I, CC), trazendo uma
maior segurança jurídica às partes envolvidas, uma vez que o tabelião é pessoa dotada
de fé pública, conforme art. 3º da Lei 8.935/94.
Na sequência vem o testamento cerrado (art. 1.862, II, CC), podendo também
ser denominado como místico ou secreto, previsto nos artigos 1.868 a 1.875 do Código
Civil. Sua elaboração é realizada diretamente pelo testador, o qual manifesta sua
vontade de forma escrita, de forma pessoal ou por pessoa ordenada, assinando o
documento, o qual permanece em sigilo até seu falecimento. O registro também é
realizado pelo Tabelião de Notas, como na modalidade anterior, porém, o mesmo
apenas certifica sua existência, não conhecendo o teor do documento.
Esta espécie de testamento é a que apresenta maiores riscos à validade do
testamento. Segundo explica Flávio Tartuce (2021, p. 455):

Como principal desvantagem, se a integralidade do documento


for atingida de alguma forma, o testamento pode não gerar
efeitos, por revogação tácita, como se verá. Cite-se,
inicialmente, a possibilidade de deterioração do documento pela
umidade, pelo calor excessivo ou por mudanças abruptas de
temperatura. Ou, ainda, a viabilidade de alguém, que não
conhece a sua finalidade, jogar no lixo o documento
testamentário ou abri-lo. Nota-se, assim, que a cédula
testamentária deve ser cuidada e vigiada por aquele que pretende
dar aplicabilidade ao seu objeto no futuro.
Por último temos o testamento particular (art. 1.862, III, CC), previsto nos
artigos 1.876 a 1.880 do Código Civil. Nesta espécie, o testamento pode ser escrito de
próprio punho ou mediante processo mecânico. Se escrito de próprio punho, sua
validade se dará através da leitura e assinatura do testador, na presença de no mínimo
três testemunhas, que também deverão assinar o documento. No caso de processo
mecânico, não deverá conter rasuras ou espaços em branco, devendo seguir o mesmo
requisito do testamento escrito para que seja válido, ou seja, assinatura e leitura perante
as testemunhas.
Explica Schreiber (2021, p. 1.641) que na modalidade do testamento particular,
sua validade não está interligada ao registro, já que pode ser redigido pelo próprio
testador, sem a participação de tabelião ou funcionário do Estado. Ademais, o
testamento só pode ser redigido pelo próprio testador, já que o testamento particular
escrito a rogo, a pedido, é nulo de pleno direito por desrespeito à forma.
Não se enquadrando nas hipóteses de testamento ordinário, ou especial, temos
o codicilo, previsto nos artigos 1.881 a 1.885 do Código Civil, o qual, segundo conceito
de Flávio Tartuce (2021, p. 487):
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 281

o codicilo é um ato particular de última vontade simplificado e


de expressão não considerável, para o qual a lei não exige
maiores solenidades, em razão de ser o seu objeto de menor
importância tanto para o falecido quanto para os seus herdeiros.
Segundo preleciona o art. 1.881 do Código Civil, tal ato serve para fazer
disposições especiais sobre o enterro do testador, esmolas de pouca monta a certas e
determinadas pessoas ou pobres de certo lugar, bem como legar móveis, roupas ou
jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal.
A conceituação acerca dos testamentos especiais não será abordada na presente
pesquisa, pois, como posto pelo doutrinador Flávio Tartuce, tais modalidades possuem
aplicabilidade reduzida, por se tratarem de casos de difícil concreção no mundo
contemporâneo, e tampouco seriam aplicadas ao tema estudado.
Assim, após explorados os conceitos de patrimônio, bens e direito sucessório,
estabelecendo-se que são fundamentais em razão da garantia mínima da dignidade,
estabelecida por lei, passa-se ao tópico em que serão apresentados as noções gerais do
Direito Digital; noções jurídicas digitais de bens e patrimônio; e bens digitais
patrimoniais.

2. DIREITO DIGITAL E HERANÇA DIGITAL

2.1 Noções Gerais do Direito Digital e sua Abrangência


A informática nasceu tendo como objetivo principal auxiliar a sociedade nas
tarefas do cotidiano, em especial aquelas realizadas de forma repetitiva. Patrícia Peck
(2016, p.59), em sua obra intitulada “Direito Digital”, citando João Carlos Kanaan,
conceitua informática como “a ciência que estuda o tratamento automático e racional da
informação”.
Elenca a autora (2016, p.59) que como funções da informática, encontram-se “o
desenvolvimento de novas máquinas, a criação de novos métodos de trabalho, a
construção de aplicações automáticas e a melhoria dos métodos e aplicações existentes”.
Tais instrumentos, que possuem como objetivo auxiliar o homem no
processamento de informações, em conjunto com suas funções mentais naturais, não são
recentes. Segundo narra Patrícia Peck (2016, p.59), “pode-se dizer que remonta aos
antigos pastores que utilizavam pedras para contabilizar seu rebanho — seria esta a
figura representativa dos primórdios do processamento de dados”.
Dentre as primeiras criações com o objetivo de auxiliar o homem no
processamento de dados, temos o ábaco, utilizado por mercadores, há aproximadamente
2.000 anos, onde utilizavam pedrinhas para efetuar cálculos e tarefas de contabilidade
que demandariam maior tempo (PECK, 2016, p.60)
Na sequência, já no século XVII, há a criação do mecanismo chamado “ossos de
Napier” pelo escocês John Napier, que permitia a execução de operações matemáticas
mais complexas, sendo a principal ideia das réguas de cálculo (PECK, 2016, p. 60).
Com efeito, a utilização de máquinas calculadoras se proliferaram no início do
século XX. Explica Peck (2026, p. 60 e ss) que:

Nos anos 30, essas máquinas começaram a ser construídas com


relés eletromagnéticos, porém somente em 1946 estaria finalizado
o engenho que claramente se reputaria um passo além das
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 282

calculadoras. Seu nome era ENIAC — Eletric Numeric Integrator


and Calculator —, um computador baseado em circuitos
eletrônicos. Operava com lógica binária, composto de 18.000
válvulas, e ocupava diversas salas da Universidade de
Pensilvânia, onde foi concebido.
A ideia estava maturada e era viável. Em 1951 foi lançado o
UNIVAC I, o primeiro computador a ser vendido
comercialmente. Daí em diante a microeletrônica passa a balizar
os avanços na área. O advento do transistor nos anos 60,
substituindo a válvula, diminui o tamanho, o consumo de energia
e aumenta a potência dos computadores. Ainda nos anos 70
surgem os circuitos integrados, que têm esse nome por reunirem
grande número de transistores em uma única peça.
Assim, com a redução do tamanho dos transmissores e criação do
microprocessador, nos anos 70, que possibilitaram a redução do tamanho dos
computadores, começaram a ser produzidos os primeiros computadores pessoais.
(PECK, 2016, p. 61).
Além disso, Peck (2016, p.62) destaca que os sistemas de informática passaram
a serem utilizados para fins civis, inicialmente em universidades, como forma de
divulgação, troca e propagação do conhecimento acadêmico-científico, possibilitando o
desenvolvimento da internet nos moldes que atualmente conhecemos, que teve seu
avanço na década de 90, conforme explica a autora:

Entretanto, o grande marco dessa tecnologia se deu em 1987,


quando foi convencionada a possibilidade de sua utilização para
fins comerciais, passando- -se a denominar, então, “Internet”.
Na década de 90, a Internet passou por um processo de expansão
sem precedentes. Seu rápido crescimento deve-se a vários de
seus recursos e facilidades de acesso e transmissão, que vão
desde o correio eletrônico (e-mail) até o acesso a banco de dados
e informações disponíveis na World Wide Web (WWW), seu
espaço multimídia.
Com a evolução e avanço da internet na década de 90, Peck (2016, p.61)
exemplifica diversos fatos que contribuíram com a mudança na realidade social:
Em 1964, Gordon Moore cria a Lei de Moore e revoluciona a
produção dos chips. O primeiro computador com mouse e
interface gráfica é lançado pela Xerox, em 1981; já no ano
seguinte, a Intel produz o primeiro computador pessoal 286. Tim
Bernes Lee, físico inglês, inventa a linguagem HTML (HyperText
Markup Language ou, em português, Linguagem de Marcação de
Hipertexto), criando seu pequeno projeto de World Wide Web
(WWW), em 1989; Marc Andreessen cria o browser Mosaic, que
permite fácil navegação na Internet, em 1993. Em 1996, Steve
Jobs lança o iMac. No mesmo ano, dois estudantes americanos,
Larry Page e Sergey Brin, em um projeto de doutorado da
Universidade Stanford, criam o maior site de buscas da internet, o
“Goo- gle”. Em 1999, um ataque de hackers tira do ar websites
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 283

como Yahoo e Amazon, entre outros. Em 15 de janeiro de 2001 é


criada a “Wikipedia”, a primeira enciclopédia online multilíngue
livre colaborativa do mundo, que pode ser escrita por qualquer
pessoa, de qualquer parte do globo, de forma voluntária. Em 23
de outubro de 2001, cerca de um mês depois dos atentados de 11
de setem- bro, é lançada pela Apple a primeira versão do iPod, de
5GB e tela monocro- mática, aparelho que revoluciona o mercado
de música mundial ao permitir, segundo o seu, já falecido, criador
Steve Jobs, o “armazenamento de até 1.000 músicas em seu
bolso”. Os exemplos são muitos.

Portanto, essas mudanças na realidade social são visíveis e características da


atualidade, interferindo em praticamente todas as tarefas realizadas pelo ser humano,
alterando as formas de interação, trabalho, lazer, econômicas, dentre outras. No âmbito
jurídico, essas mudanças também são necessárias, com o fim de aproximar as relações
cotidianas com a ordem legal.
Segundo Peck (2016, p.69), “a globalização da economia e da sociedade exige a
globalização do pensamento jurídico, de modo a encontrar mecanismos de aplicação de
normas que possam extrapolar os princípios da territorialidade”.
Necessário relembrar, como posto no primeiro capítulo, que, no Brasil, as
relações privadas são regidas pelo Código Civil. No entanto, o projeto inicial do Código
Civil vigente se deu no ano de 1975 e, como demonstrado acima, os avanços da internet
se deram na década de 90, não sendo previsto na legislação privada as questões
atinentes à internet.
A partir de tal imposição da sociedade, com novos métodos de relações jurídicas
que surgiram com o advento da internet e avanço da sociedade, é que surge o Direito
Digital. Ensina Peck (2016, p. 69) que devem ser criados novos princípios acerca das
relações digitais, os quais não seriam limitados no tempo e espaço:

Para o Direito Digital, porém, a questão vai além: devem ser


criados novos princípios de relacionamento, ou seja, diretrizes
gerais sobre alguns requisitos básicos que deveriam ser
atendidos por todos os usuários da rede. A resolução dessas
questões já possibilitaria segurança maior nas relações virtuais.
O que é diferente de se criarem normas específicas cuja
aplicação e eficácia ficariam muito limitadas no tempo e no
espaço.
Nogueira (2019, p.49) elenca como abrangências do direito digital as relações
jurídicas inseridas no universo digital trazendo institutos como aplicativos móveis,
assinaturas eletrônicas, banco de dados, certificação digital, comércio eletrônico,
criptografia, cyberbullying, delitos de informática, documento eletrônico, escrituração
digital, governança digital, petição eletrônica, pregão eletrônico, programa de
computador (software), prontuário eletrônico, proteção de dados digitais, dentre outros.
Nota-se, conforme demonstrado acima, que a abrangência do Direito Digital se
deu em razão de que, na atualidade, praticamente todas as relações jurídicas podem ser
realizadas no âmbito digital. Tal fato se deu em razão da “desmaterialização e
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 284

digitalização” dos dados. Acerca da desmaterialização e digitalização, ensina Fernando


Taveira Junior (2018, p.23):

De maneira bem simplificada, a desmaterialização pode ser


compreendida como a "perda da forma material". Cada vez mais
presente no mundo informatizado, ela pode variar um pouco o
seu sentido de acordo com a área a ser analisada. Na Economia,
por exemplo, a desmaterialização intenta "[...] dissociar o
consumo de recursos do desenvolvimento econômico, ou seja,
busca atingir um patamar de crescimento econômico
consumindo menor quantidade de recursos naturais".
No comércio eletrônico, a título exemplificativo, atualizou-se o
entendimento sobre o objeto contratual, ante a imaterialidade
das prestações contratuais dos contratos informáticos, a exemplo
do fornecimento de software, de filmes, de jogos, e de músicas.
Na área jurídica, por sua vez, "[..] desmaterializar é
normalmente associado à substituição do papel por suportes
eletrónicos" até pela necessidade de resolver a problemática do
acúmulo de papéis arquivados.
Nesse contexto, como pontua Patrícia Peck (2016, p. 71), a Internet pode ser
considerada um lugar, devendo as questões pertinentes ao Direito serem redesenhadas,
vez que seu território ou jurisdição deveria ser a própria Internet. Na sequência do
raciocínio, explica:
Se a Internet é um meio, como é o rádio, a televisão, o fax, o
telefone, então não há que falar em Direito de Internet, mas sim
em um único Direito Digital cujo grande desafio é estar
preparado para o desconhecido, seja apli- cando antigas ou
novas normas, mas com a capacidade de interpretar a reali- dade
social e adequar a solução ao caso concreto na mesma
velocidade das mudanças da sociedade.
Ainda sobre Direito Digital, ensina Peck (2022, p. 74):
Na Era Digital, o instrumento de poder é a informação, não só
recebida mas refletida. A liberdade individual e a soberania do
Estado são hoje medidas pela capacidade de acesso à
informação. Em vez de empresas, temos organizações
moleculares, baseadas no Indivíduo. A mudança é constante e os
avanços tecnológicos afetam diretamente as relações sociais.
Sendo assim, o Direito Digital é, necessariamente, pragmático e
costumeiro, baseado em estratégia jurídica e dinamismo.
O modelo de riqueza da Sociedade pós-Digital está baseado em
ativos intangíveis, onde, do ponto de vista jurídico, crescem de
importância as questões que envolvem a proteção da
propriedade intelectual.

Diante do demonstrado, verifica-se que a sociedade digital está em constante


evolução, devendo o Direito acompanhar tal avanço, aprimorando seus institutos e
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 285

criando novos que sejam capazes de garantir a segurança jurídica necessária às relações
sociais. (PECK, 2016, p.76).
2.2 Bens Digitais
De acordo com o que foi explanado, o direito precisou (e ainda precisa)
acompanhar a evolução constante da sociedade informatizada, a qual cresce cada vez
mais. Nesse sentido, preceitua Bruno Torquato Zampier Lacerda (2021, p. 110):

Numa sociedade cada vez mais imersa no cenário da tecnologia é


natural que surjam novos interesses para os quais o direito não
poderá fechar os olhos e contribuir decisivamente com sua
normatividade. Afinal, projeções materiais e imateriais da própria
pessoa humana passam a ser incorporadas pelo mundo digital. A
vida presencial confunde-se com a virtual.

Fleischmann e Tedesco (2021, p. 363) asseveram que, a partir de tal avanço,


surge-se uma nova modalidade de bem:
O surgimento da internet trouxe consigo o ambiente digital e, com
isso, a possibilidade de extensão da identidade do indivíduo, por
meio das diferentes ferramentas de interação social fornecidas
virtualmente, assim como de criação de um novo conceito de
bens, completamente desvinculado do mundo material, os bens
digitais.
Sobre a nomenclatura a ser utilizada, Lacerda (2021, p. 111) esclarece que dois
nomes vêm sendo utilizados em âmbito internacional, sendo eles: digital assets163 e
digital property164. No Brasil, a doutrina propõe a utilização do termo “bens digitais”,
onde, segundo o autor:

A opção mais acertada, no cenário brasileiro, conforme


defendemos desde 2015, até para alinhamento à nomenclatura
utilizada pelo Código Civil de 2002, é a de denominar tais ativos
como bens. E, em sendo bens, como se apresentam em um
ambiente diferente do convencionalmente tratado por nossa
legislação, o melhor seria considerá-los bens digitais, como
fruto da verdadeira revolução tecnológica e digital operada em
nossa sociedade nas últimas décadas. Assim, restaria claro que
se está diante de legítimos bens jurídicos, com notória
implicação na vida privada dos titulares e não titulares destes
ativos.
Rememorando o capítulo primeiro, os bens podem ser divididos por meio de
classificação, podendo ser corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, singulares ou
coletivos, dentre outras. O mesmo acontece com os bens digitais. Lacerda (p. 112)
ensina sobre sua definição e classificação:

163
Ativos digitais.
164
Propriedade digital.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 286

Há que se recordar ainda que os bens em geral poderão ter


natureza corpórea ou incorpórea. Neste sentido, os bens digitais
se aproximariam mais da segunda forma, bens incorpóreos, já
que a informação (aqui tratada como verdadeiro bem jurídico
em sentido lato, conforme ensinamentos de Pietro Perlingieri)
postada na rede, esteja ela armazenada localmente em um sítio
ou inserida em pastas de armazenamento virtual, seria intangível
fisicamente; abstrata em principio (livro geral herança, p. 112)
Já Pinheiro e Fachin (2018, p. 13), conceituam bens digitais como:

bens imateriais representados por instruções codificadas e


organizadas virtualmente com a utilização linguagem
informática, armazenados em forma digital, seja no dispositivo
do próprio usuário ou em servidores externos como no caso de
armazenamento em nuvem, por exemplo, cuja interpretação e
reprodução se opera por meio de dispositivos informáticos
(computadores, tablets, smartphones dentre outros), que poderão
estar ou não armazenado no dispositivo de seu próprio titular, ou
transmitidos entre usuários de um dispositivo para outro, acesso
via download de servidores ou digitalmente na rede, e podem se
apresentar ao usuário.
Thatiane Rabelo Gonçalves (2019, p. 6), define bens digitais como ativos
armazenados no espaço virtual, citando exemplos, como os nomes de domínio na
internet, milhas, perfis em redes sociais, bens adquiridos em jogos online, fotos, e-
mails, dentre outros.
Por outro lado, Bruno Miragem (2019, p. 4) elenca que os bens digitais devem
possuir uma interação entre a prestação de um serviço de oferta ou custódia, sendo
aqueles que possuem interesse legítimo de uso, fruição e disposição de pertença ao
consumidor.
Registre-se que, como posto por Lacerda (2021, p.123), no Brasil, em que pese
haja legislações como o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e LGPD (Lei
13.709/2018), não há qualquer regramento legal em relação aos bens digitais ou sua
definição.
Como posto, atualmente no país, a definição e classificação de bens digitais
ficam a cargo dos doutrinadores, uma vez que o tema ainda não foi abordado nas
legislações em vigência. Desse modo, autores como Evarilda Brandão Guilhermino e
Bruno Zampier, trazem a classificação dos bens tidos como digitais.
Guilhermino (2021, p. 237), entende que os bens digitais devem ser separados
em três modalidades, a saber: bens transmissíveis; acessíveis; e inacessíveis.
Quanto aos bens transmissíveis, declara que são aqueles que possuem valor
econômico, citando exemplos como arquivos em drives ou nuvem, matriz de livros a
serem publicados, coleção de música, e-books, filmes digitais etc. Quanto à sua
valoração, aduz Guilhermino (2021, p. 238):

O valor de um patrimônio digital chega a surpreender. Uma


biblioteca digital, uma coleção de músicas baixadas no itunes ou
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 287

obras escritas e armazenadas em nuvem por seus autores podem


representar valor econômico relevante, maior do que os bens
corpóreos do acervo, e portanto, de grande interesse sucessório
para os herdeiros.
Destaca que os perfis digitais possuem valoração própria, podendo render
inúmeras vezes mais que um imóvel, inclusive gerando receitas mensais que podem
continuar após a morte do titular. Explica que a valoração de tal perfil deve compor o
monte-mor, pois faz parte do espólio do de cujus. Tal precificação pode ser realizada
através do processo conhecido como valuation, que é capaz de documentar o valor de
mercado do perfil digital.
No que tange os bens inacessíveis, afirma a autora que são aqueles que devem
resguardar a privacidade do morto, como conversas particulares em salas virtuais,
contas de e-mail, dentre outros com as mesmas características. Expõe que nesses casos,
provavelmente o falecido não gostaria de ver a divulgação, exemplificando as conversas
decorrentes de relações amorosas ou comerciais duvidosas.
Já sobre os bens acessíveis, Guilhermino (2021, p.239) explora:

Por fim, ressalta-se aqueles bens que não permitem transmissão


de titularidade, mas podem gerar um direito de acesso dos
herdeiros. O melhor exemplo vem dos perfis sociais como
Facebook ou Instagram. E inegável o conteúdo afetivo que
existe nas postagens, como depoimentos, fotografias, vídeos.
Todo o conteúdo da página do morto não pode ser transmitido,
dada a relação contratual estabelecida com a plataforma no
momento da abertura da conta. Não se pode, por exemplo, dar a
um herdeiro a titularidade da conta para que continue as
postagens, ou mesmo altere ou delete o conteúdo. Mas é
possível o seu direito de acesso, para que se mantenha a
memória do falecido.
Conrado Paulino da Rosa e Cíntia Burille (2021, p. 572), citando Bruno
Zampier, descreve que o autor classifica os bens como patrimoniais, existenciais ou
patrimoniais-existenciais.
Acerca da classificação dos bens trazida por Zampier, aduzem Rosa e Burille
(2021, p. 572):

Seguindo o entendimento de Carvalho e Godinho, os bens


digitais patrimoniais são aqueles cuja natureza é
meramente econômica, a exemplo das moedas virtuais
(Bitcoins), milhas aéreas, itens pagos em plataformas
digitais; já os bens digitais existenciais (ou bens
sensíveis), por sua vez, possuem natureza personalíssima,
podendo ser exemplificados através dos perfis de redes
sociais, blogs, correio eletrônico, mensagens privadas de
aplicativos como o WhatsApp, entre outros; e, por último,
os bens de caráter híbrido, bens digitais patrimoniais-
existenciais (ou patrimoniais-personalíssimos), os quais
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 288

perfazem um misto de economicidade e privacidade, como


ocorre com os influenciadores digitais, que são
monetizados através da exploração de postagens de
natureza pessoal, a exemplo da plataforma do Instagram
ou Youtube.
Assim, embora a nomenclatura da classificação não seja linear entre os
doutrinadores, apresenta uma simetria de conceitos. Sob esta ótica, pode-se constatar a
existência de quatro espécies de bens digitais, sendo: a primeira, como aquela que
possui natureza econômica; a segunda está ligada diretamente às memórias do de cujus,
incluindo seus perfis em redes sociais; a terceira, por sua vez, consiste nas mensagens
que o usuário mantém em seus perfis na internet; e, por último, as de natureza mista, a
exemplo de publicações realizadas por influenciadores digitais em redes sociais, no
âmbito do exercício de atividade laboral.
Quanto à conceituação de herança digital, Tepedino e Oliveira (2021, p.181)
ensinam que pode ser considerada como a universalidade de bens digitais e direitos de
cunho patrimonial, transmissíveis, aos herdeiros, por sucessão causa mortis.
João Aguirre, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família –
IBDFAM, declara que a herança digital constitui, em um sentido amplo, lato sensu, todo
o acervo pertencente ao falecido e disposto em sistema digital, incluindo imagens,
informações e senhas. Declara, ainda, que dentre os bens da herança digital, encontram-
se os ativos de fundo patrimonial, como as bitcoins, moedas digitais com valor
absolutamente considerável.
Apresentado uma ideia sobre a conceituação de bem e herança digital, é de se
indagar o motivo pelo qual o assunto passou a ter relevância no âmbito jurídico. Para
tanto, merecem destaque as palavras de Ana Carolina Brocado Teixeira e Livia Teixeira
Leal (2021, p. 11):
Há algum tempo, temos nos deparado com inúmeros desafios
que os bens digitais vêm apresentando. Entender esse novo
universo que representa parte da vida de quase todos os
brasileiros, as projeções das identidades na Internet, o trato
adequado do patrimônio digital, fazem despertar a consciência
da necessidade de tutela jurídica a esses novos tipos de bens e
direitos... afinal, a pandemia fez com que se tornasse tênue a
separação da vida online da offline – se é que ela ainda existe.
[...]
Se as repercussões desses novos bens durante a vida dos seus
titulares ainda carecem de estudos, o que dirá seus efeitos post
mortem. O ponto de partida dessa reflexão é a tarefa de delimitar
o acervo transmissível pelas regras do direito sucessório: todos
os dados se transmitem ou apenas aqueles com natureza
patrimonial ou dúplice? É dado aos herdeiros conhecer todas as
situações jurídicas digitais nas quais o titular da herança está
inserido ou faz-se necessário redimensionar a ideia de
privacidade, projetando-a para uma tutela post mortem?

Flávio Tartuce (IBDFAM, 2018) aduz que “as novas tecnologias,


especialmente as incrementadas pelas redes sociais e pelas interações digitais,
trouxeram grandes repercussões para o Direito, especialmente para o Direito Privado.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 289

Como não poderia ser diferente, o Direito das Sucessões não escapa dessa influência,
surgindo intensos debates sobre a transmissão da chamada herança digital.”
Arrematando a questão, no que tange a necessidade de uma tutela jurídica
específica para o patrimônio digital, traz-se as palavras da advogada e professora
Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão de Família e Tecnologia do Instituto
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM:
Existem alguns projetos de lei em tramitação no Congresso que
tratam da herança digital. Por enquanto, nenhum desses projetos
garante a segurança jurídica necessária para se legislar sobre uma
temática de tamanha importância e solenidade, no Direito das
Sucessões e da privacidade.
Ela opina especificamente sobre o PL 1689/2021, que trata dos dados pessoais
como passíveis de serem herdados. “Direitos da personalidade como o nome e a
privacidade, por exemplo, são intransmissíveis. É preciso ressaltar que o direito à
privacidade abrange a proteção aos dados pessoais. Gerar uma exceção quanto à
transmissibilidade desses direitos cria uma insegurança jurídica e social ab initio.”
(IBDFAM, 2021).

2.3 Transmissão de Bens Digitais


O debate quanto à transmissão dos bens digitais está estritamente ligado a sua
classificação, como posto acima. No entanto, diante da ausência de regramento legal, a
questão sobre a possibilidade é discutida e embasada nas discussões no âmbito
doutrinário e jurisprudencial.
Como declara Lacerda (2021, p.114):

Deixar o judiciário desguarnecido de um aparato legislativo


atualizado e apto a enfrentar os inéditos dilemas não parece ser a
medida mais adequada, no trato dos bens digitais. Por mais que a
legislação existente possa dar conta de resolver alguns conflitos
nesta seara, decerto será insuficiente para abarcar compreender
inúmeros outros. Socorrer-se de analogias ou da concretização de
cláusulas gerais, pode ser útil num primeiro momento. Mas, com
o decorrer dos anos os conflitos irão aumentar, em escala de
milhares, de milhões.
Aline de Miranda Valverde Terra, Milena Donato Oliva e Filipe Medon
(2021), esclarecem acerca da transmissibilidade que, conforme normativa legal, a
personalidade extingue-se com a morte do sujeito, vez que se trata de direito
intransmissível. Porém, não se deve confundir a personalidade em si considerada,
insuscetível de sucessão, com os bens ligados ao direito personalidade, exemplificando,
fotos, cartas e diários.
Os autores explicam que esses bens, embora carreguem importantes aspectos
existenciais, não se confundem com a personalidade do de cujus, sendo, portanto,
passíveis de sucessão, da mesma forma que ocorre com os dados analógicos.
As correntes contra a transmissibilidade sustentam que os bens que não
constituem natureza patrimonial, ou seja, aqueles presentes em redes sociais, não devem
ser transmitidos por herança em razão da preservação da privacidade do de cujus.
Sustentam que somente deveriam ser transmitidos os de cunho patrimonial, seguindo a
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 290

regra geral do direito sucessório. É o que traz TERRA, OLIVA e MEDON, 2021, p.
140:
Em apertada síntese, os defensores da intransmissibilidade
sustentam que nem todos os bens digitais são passíveis de
transmissão, havendo, portanto, dois regimes jurídicos distintos
aplicáveis a referidos bens. Gabriel Honorato e Livia Teixeira
Leal, nessa linha, aduzem que “ao menos a priori, somente
deveria seguir a regra geral do direito sucessório os bens com
característica patrimonial, ao passo que os demais não estariam
sujeitos à transmissão para seus herdeiros em virtude da
preservação da privacidade”, tanto do de cujus como de todos os
terceiros que se relacionem com o conteúdo deixado na rede.
Aludidos autores sustentam que nem mesmo o titular do acervo
digital poderia, em vida, optar por futura destinação de seu
patrimônio para eventuais herdeiros quando o seu conteúdo
pudesse “comprometer a personalidade de outrem, o que ocorre
com conversas de WhatsApp, e-mail e também em redes sociais
que dotam de espaços reservados para conversas particulares,
como as direct messages do Facebook e do Instagram”.
Verifica-se que, dentre as possibilidades de transmissão dos bens digitais, que
aquela decorrente dos bens de conteúdo unicamente patrimonial é pacífica entre os
doutrinadores. Segundo Rosa e Burille (2021, p. 575):
Assim, pode-se afirmar que o ponto pacífico nas correntes
doutrinárias se dá em relação aos bens cujo conteúdo é
meramente patrimonial, no sentido de que "devem seguir as
regras gerais do direito sucessório, projetando-se do morto para
os herdeiros através dos trâmites de inventário". De outro modo,
verifica-se que o ponto de divergência na doutrina brasileira em
relação a transmissibilidade dos bens digitais permeia,
precipuamente, acerca da possibilidade ou não de transmissão
dos chamados bens digitais com conteúdo existencial (aqui
também compreendidos como dados pessoais), assim
considerados os bens de caráter exclusivamente existenciais e
aqueles de caráter híbrido.
Havendo tal interesse por parte dos herdeiros, registra-se que o procedimento
deverá se dar do mesmo modo do inventário de bens analógicos ou físicos, a saber:
Em sendo necessária a judicialização das questões referentes à
transmissão dos bens digitais mortis causa, destaca-se desde
logo o entendimento pela indispensabilidade de que tal demanda
seja submetida aos procedimentos previstos pelo Direito
Sucessório. Em outras palavras, entende-se pela necessidade de
que a transmissão dos bens digitais por ocasião do falecimento
de seu titular seja apreciada no âmbito do processo judicial de
inventário, pelo juízo competente para tanto - ou seja, por Vara
Especializada em Direito das Sucessões, quando houver tal
divisão no Judiciário local.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 291

No entanto, a doutrina diverge quanto às demais espécies de bens digitais,


principalmente em razão de suas características próprias. De um lado, temos os bens
digitais de natureza mista, quais sejam, aqueles que estão vinculados aos direitos de
personalidade do protegido, mas possuem natureza econômica, como os perfis de
influencers digitais, como posto anteriormente.
Já quanto aos bens unicamente vinculados aos direitos de personalidade, a
discussão é ainda mais acirrada, porquanto tratam de mensagens privadas do de cujus,
como mensagens de WhatsApp, e-mails, etc.
Nesse sentido explica Colombo (2021, p. 262):
Decerto, a patrimonialidade da situação jurídica subjetiva é
importante vetor para a análise acerca da possibilidade de
atuação de terceiros. Os aspectos inerentes ao modo de ser da
pessoa, que não têm equivalente econômico, somente a ela
dizem respeito e somente ela a pessoa titular desses direitos
pode exercê-los.
Porém, a própria autora rebate aduzindo que o critério não é suficiente para
barrar a transmissão de tais bens:
Mas esse critério não é suficiente. Isso porque a
repersonalização do direito civil não significa ignorar o
fenômeno relacional da realização das situações existenciais. Ao
voltar-se para proteção da dignidade humana, os direitos da
personalidade não poderiam, paradoxalmente, causar a
hipertrofia da autonomia tornando-o uma categoria egoística.
Apesar de a origem da construção dogmática dos direitos da
personalidade remeter ao liberalismo-individualista do século
XX, as incursões da solidariedade social - princípio
constitucional consagrado no art. 3º, I, da Constituição Federal -
no direito privado demandam o redimensionamento da função
de terceiros na promoção do desenvolvimento da personalidade
de cada pessoa, seja por atos comissivos ou omissivos.
Assim, o que se infere, é que, interpretando a letra fria da lei vigente, a
transmissão de bens digitais com caráter unicamente extrapatrimonial não encontra
respaldo no direito sucessório, uma vez que estão estritamente interligados aos direitos
de personalidades, os quais são extintos quando da morte. Todavia, havendo motivo
relevante, poderão os familiares do de cujus postularem judicialmente sua transmissão
ou acesso, transferindo a análise do pedido ao Poder Judiciário.
Declara Colombo (2021, p. 267) que, não havendo expressa declaração do titular
das contas e dados digitais, à luz da proteção póstuma da personalidade, o juízo só
deverá conceder acesso aos excepcionalmente legitimados do que for estritamente
necessário a seu interesse, devendo preservar a tutela da personalidade da pessoa
falecida.
Por fim, o que impõe-se é que, não havendo no Brasil legislação que trate
especificamente sobre os bens digitais, e enquanto os Projetos de Lei não forem
analisados, praticamente todos os casos deverão ser levados ao judiciário, cabendo aos
tribunais a análise da matéria em questão.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 292

3. A POSSIBILIDADE DE SUCESSÃO DOS BENS DIGITAIS NO DIREITO


BRASILEIRO E DIREITO COMPARADO

3.1 Ferramentas para “sucessão” de bens digitais


Previamente ao avanço do mundo tecnológico, fotos, vídeos, músicas,
documentos, cartas, dentre outros objetos, eram tangíveis, podendo os herdeiros, quando
do falecimento do possuidor, tomar posse de tais objetos, não havendo discussão acerca
da privacidade do falecido.
Porém, na atualidade, a maioria desses objetos são digitais, sendo armazenados
em redes sociais, serviços de nuvem e e-mails.
Acerca da discussão, escreve Everilda Brandão Guilhermino (2019, p. 236):
A questão da privacidade do morto é tema que surge com a era
digital. No mundo analógico ela se mostrava extremamente
vulnerável. Já no digital, é possível analisar a intenção de guarda
e sigilo de certas informações através da conduta da pessoa em
vida. Um arquivo com senha, por exemplo, é um indicativo de
que aquele conteúdo não devia ser revelado. Já em redes sociais,
as conversas privadas são um demonstrativo de que ali se guarda
que não se deseja publicizar, como nas postagens públicas. (...)
Novos bens se apresentam no campo de interesses das pessoas. Se
há um século a corporeidade era a marca, agora a fluidez é o foco.
Antes os bens de maior interesse eram os que permitiam a
apropriação física, como fazendas, máquinas, imóveis. Hoje a
riqueza está refletida em bens digitais.
Ademais, como pontuam Terra, Oliveira e Mendon (2019, p. 144), os contratos
das plataformas, em sua grande maioria, são dotados de cláusulas de privacidade, o que
acaba obstando o acesso dos familiares ao conteúdo nelas armazenado:
À exceção das relações jurídicas personalíssimas, os herdeiros
ocupam a posição do falecido, sucedendo nos direitos pessoais e
reais. Os contratos com as plataformas, celebrados por adesão,
adotam configuração personalíssima e, uma vez falecido o
titular, seguem-se as disposições contratuais e não se franqueia
acesso aos herdeiros ao conteúdo nelas armazenado.
Na sequência, sobre os termos de uso das contas digitais, Terra, Oliveira e
Mendon (2019, p. 145) pontuam:
Notadamente no âmbito de relação de consumo, disposição
contratual de adesão pela qual o consumidor é expropriado por
ocasião de sua morte, sem que lhe seja franqueado o direito de
dispor diversamente, afigura-se flagrantemente abusiva.
Os usuários do serviço, de regra, não leem todos os seus
infindáveis termos, dispostos em cláusulas de adesão. Como
resultado, sujeitam-se, sem saber, ao apagamento definitivo de
tudo o que estiver nas nuvens fotos, vídeos, documentos. Nada
se transmite aos herdeiros.
A partir de tal ponto, destaca Pereira (2020, p. 148), que algumas empresas já
disponibilizam, através de suas plataformas, a possibilidade dos usuários disporem
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 293

sobre o destino de seus bens digitais, através de formulários que podem ser
considerados testamentos digitais, uma vez que dispõem sobre a destinação dos bens e
quem herdará o patrimônio.
A Apple, em recente lançamento, apresentou a ferramenta chamada Legado
Digital, na qual os usuários dos dispositivos da marca podem indicar alguém para ter
acesso aos seus dados após o falecimento. Segundo explicação disponível no site da
empresa:
A partir do iOS 15.2, iPadOS 15.2 e macOS 12.1, você pode
adicionar um Contato de Legado ao ID Apple. Adicionar um
Contato de Legado é a maneira mais fácil e segura de dar a
alguém confiável acesso aos dados armazenados na sua conta da
Apple após o seu falecimento. Os dados podem incluir fotos,
mensagens, notas, arquivos, apps que você baixou, backups de
dispositivos e muito mais. Determinadas informações, como
filmes, músicas, livros ou assinaturas que você tiver comprado
com o ID Apple, bem como dados armazenados nas Chaves,
como informações de pagamento e senhas, não poderão ser
acessados pelo Contato de Legado.

Outrossim, dentro dos dispositivos, quando da nomeação de um Contato de


Legado, a empresa traz as seguintes informações:
Figura 1 - Nomeação de contato legado Apple

Fonte própria
No Facebook, o usuário pode dispor acerca do futuro de sua conta após seu
falecimento. Para tanto, deve escolher entre as opções de transformar a conta em
memorial, nomeando um contato herdeiro, ou optar pela exclusão da conta
permanentemente, aparecendo as opções aos usuários da seguinte maneira:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 294

Figura 2 - Nomeação de contato herdeiro ou exclusão da conta Facebook

Fonte própria
Já no Instagram, o usuário não possui, até o momento, a liberdade de escolher a
destinação de sua conta. Em caso de falecimento, a conta pode ser transformada em
memorial, através de solicitação à empresa165, ou excluída, por meio de requerimento
dos familiares166. O Google também permite ao usuário dispor sobre a sucessão de sua
conta, através do gerenciador de contas inativas, que traz a opção de legado digital. Ao
utilizar a ferramenta, o usuário deve primeiramente informar a partir de qual período de
inatividade o Google deve iniciar o processo de transmissão da conta. A empresa
notificará o usuário através do telefone cadastrado, bem como da conta de e-mail que
será atingida e e-mail de recuperação, um mês antes do período de inatividade
escolhido. Transcorrido o prazo sem qualquer acesso, a empresa considerará a conta
inativa e procederá ao que foi escolhido pelo usuário, podendo ser a exclusão
permanente da conta ou permitirá o acesso, dos dados selecionados pelo usuário, às
pessoas previamente indicadas167.
Acerca da possibilidade de tais disposições, pontua Flávio Tartuce (2018) que,
“essas opções, como se nota, variam entre a valorização da autonomia privada e a
atribuição dos bens digitais aos herdeiros.” Ainda, declara que o melhor caminho para
tratar sobre tais assuntos seria construir uma proposta de alteração do Código Civil, que
deveria integrar o capítulo do Direito das Sucessões.
165
INSTAGRAM. Após um falecimento, a conta da pessoa poderá ser transformada em memorial se um
membro da família ou amigo enviar uma solicitação. Se desejar que a conta de um ente querido seja
transformada em memorial, use este formulário para nos informar. Disponível em:
https://help.instagram.com/contact/452224988254813. Acesso em 14 de jul. 2022.
166
INSTAGRAM. Use este formulário para solicitar a remoção da conta de uma pessoa falecida.
Gostaríamos de manifestar nossas condolências e agradecer desde já pela sua paciência e compreensão ao
longo desse processo. Disponível em:
https://help.instagram.com/contact/1474899482730688. Acesso em: 14 de jul. 2022.
167
GOOGLE - Disponível em: https://support.google.com/accounts/answer/3036546?hl=pt-BR. Acesso
em: 14 de jul. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 295

Com efeito, a falta de normativa legal acerca da transmissibilidade de bens


digitais traz insegurança jurídica nas demandas atinentes ao tema, devendo o judiciário,
se invocado, valer-se da legislação “analógica” para tratar sobre o tema.
3.2 Direito Brasileiro
Como posto no tópico acima, até o momento, não há no Brasil leis que tratem da
herança de bens digitais. No entanto, tal tema já foi levado à Câmara dos Deputados,
tendo alguns projetos de lei que buscam alterar as normativas legais para permitir que os
bens digitais incluídos no patrimônio do de cujus sejam transmitidos aos herdeiros,
independente de sua valoração econômica.
Ademais, já existem decisões do Poder Judiciário brasileiro sobre o tema, uma
vez que, em se tratando de tema de extrema relevância social, na falta de
regulamentação, cabe ao judiciário decidir sobre o tema, o que será demonstrado na
sequência.

3.2.1 Projetos de Lei em andamento


Para fins de análise na presente pesquisa, buscou-se trazer, dentre os Projetos de
Lei com o tema, aqueles mais recentes e com tramitação conjunta. Assim, elenca-se
como principal, o Projeto de Lei 3051/2020, proposto pelo deputado Gilberto Abrano,
onde estão apensados os PLs 410/2021, 1144/2021, 1689/2021, 2664/2021 e 703/2022.
O PL 3051/2020, busca a alteração da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da
Internet), acrescentando o art. 10-A, a fim de “dispor sobre a destinação das contas de
aplicações de internet após a morte de seu titular”. Como justificativa para tal alteração,
explica o deputado que:
O projeto de lei pretende tratar sobre a possibilidade de exclusão
de contas virtuais de usuários falecidos quando requerido pela
família, para que seja respeitado a memória do usuário.
Procurando evitar situações indesejáveis e até mesmo judiciais é
que estamos propondo que as contas nos provedores de aplicações
de internet sejam encerradas imediatamente após a comprovação
do óbito do seu titular, se forem requeridas pelos familiares, mas
com a cautela de serem tais provedores obrigados a manter os
respectivos dados da conta armazenados pelo prazo de um ano,
prorrogável por igual período, sobretudo para fins de prova em
apurações criminais.
Além disso, também está previsto a hipótese em que esses
familiares próximos do falecido resolvam manter uma espécie de
memorial a partir dessa mesma conta, que, contudo, somente
poderá ser gerenciada com novas publicações no perfil do
falecido e outras ações que se fizerem necessárias, se o falecido
tiver deixado previamente estabelecido quem poderá gerenciar a
sua conta após a sua morte.
Na mesma linha, o PL 410/2021, proposto pelo deputado Carlos Bezerra,
também busca a alteração do Marco Civil da Internet, visando também a inclusão do art.
10-A, porém, com algumas alterações do projeto apresentado pelo deputado Abrano.
Dentre elas estão a possibilidade de manutenção dos dados pelo período de dois anos, a
partir da data do óbito, e possibilidade de manutenção das contas, desde que o falecido
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 296

disponha sobre tal ato em manifestação de última vontade, indicando alguém para o
gerenciamento de suas contas.
Já o PL 1144/2021, da deputada Renata Abreu, propõe a alteração do Código
Civil e Marco Civil da Internet. Dentre as mudanças, sugere a inclusão do art. 1.791-A
no Código Civil, com a seguinte redação:

Art. 1.791-A. Integram a herança os conteúdos e dados pessoais


inseridos em aplicação da Internet de natureza econômica.
§ 1º Além de dados financeiros, os conteúdos e dados de que
trata o caput abrangem, salvo manifestação do autor da herança
em sentido contrário, perfis de redes sociais utilizados para fins
econômicos, como os de divulgação de atividade científica,
literária, artística ou empresária, desde que a transmissão seja
compatível com os termos do contrato.
§ 2º Os dados pessoais constantes de contas públicas em redes
sociais observarão o disposto em lei especial e no Capítulo II do
Título I do Livro I da Parte Geral.
§ 3º Não se transmite aos herdeiros o conteúdo de mensagens
privadas constantes de quaisquer espécies de aplicações de
Internet, exceto se utilizadas com finalidade exclusivamente
econômica.
Outrossim, o PL 1689/2021, da deputada Alê Silva, busca, do mesmo modo do
PL 1144, a inclusão do art. 1.791-A, porém, também propõe a inclusão de um parágrafo
no art. 1.857 e inserção do art. 1.863-A, e do com as seguintes redações:

Art. 1.791-A Incluem-se na herança os direitos autorais, dados


pessoais e demais publicações e interações do falecido em
provedores de aplicações de internet.
§ 1º O direito de acesso do sucessor à página pessoal do falecido
deve ser assegurado pelo provedor de aplicações de internet,
mediante apresentação de atestado de óbito, a não ser por
disposição contrária do falecido em testamento.
§ 2º Será garantido ao sucessor o direito de, alternativamente,
manter e editar as informações digitais do falecido ou de
transformar o perfil ou página da internet em memorial.
§ 3º Morrendo a pessoa sem herdeiros legítimos, o provedor de
aplicações de internet, quando informado da morte e mediante
apresentação de atestado de óbito, tratará o perfil, publicações e
todos os dados pessoais do falecido como herança jacente,
consignando-os à guarda e administração de um curador, até a
sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração
de sua vacância.
Art. 1.857 (...) § 3º A disposição por testamento de pessoa capaz
inclui os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e
interações do testador em provedores de aplicações de internet.
Art. 1863-A O testamento cerrado e o particular, bem como os
codicilos, serão válidos em formato eletrônico, desde que
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 297

assinados digitalmente com certificado digital pelo testador, na


forma da lei.
Por último, dentre os projetos apensados ao PL 3051/2020 e, dentre eles, o mais
recente, está o PL 703/2022, do deputado Hélio Lopes, que visa a criação do art. 1.857-
A no Código Civil, com a presente normativa:

Art. 1857-A. Toda pessoa capaz pode dispor, por qualquer outro
meio no qual fique expressa a manifestação de vontade, sobre o
tratamento de dados pessoais após a sua morte.
§ 1° os herdeiros têm o direito de:
I – acessar os dados do falecido;
II - identificando informações válidas, relevantes e úteis para o
inventário e a partilha do patrimônio;
III – obtenção de todos os dados íntimos relativos a família;
IV – eliminação e retificação de dados equivocados, falsos ou
impróprios.
§ 2°As disposições do presente artigo aplicam-se, no que
couber, aos declarados incapazes.
Com efeito, a maioria dos projetos em tramitação buscam trazer um maior
esclarecimento sobre a tutela do acervo digital após a morte de seu titular, uma vez que,
como posto anteriormente, a legislação atual é precária no que tange o assunto, trazendo
uma instabilidade jurídica.
No entanto, como assevera Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão de
Família e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM:

a herança digital é uma questão emergente no direito sucessório,


com muitos desdobramentos, em função da velocidade com que
se criam perfis pessoais e se monetizam bens digitais, e merece
uma legislação fundamentada em opiniões dos juristas e
especialistas em Direito das Famílias e Sucessões, evitando que
seja aprovada uma legislação que não atenda aos anseios da
sociedade atual.
No mesmo sentido, ensina Flávio Tartuce (2018):

Pontuo, a propósito, que a proteção dos dados pessoais acabou


por ser regulamentada pela recente Lei n. 13.709, de 14 de
agosto de 2018, norma que trata da matéria em sessenta e cinco
artigos e que entrará em vigor no País no início de 2020. A nova
lei sofreu claras influências do Regulamento Geral de Proteção
de Dados Europeu, de maio de 2018, amparando sobremaneira a
intimidade Em termos gerais, existe uma ampla preocupação
com os dados e informações comercializáveis das pessoas
naturais, inclusive nos meios digitais, e objetiva-se proteger os
direitos fundamentais de liberdade e de privacidade; bem como
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 298

o livre desenvolvimento da personalidade (art. 1º). Nos termos


do preceito seguinte da norma específica, a disciplina da
proteção de dados pessoais tem como fundamentos: a) o respeito
à privacidade; b) a autodeterminação informativa, com amparo
na autonomia privada; c) a liberdade de expressão, de
informação, de comunicação e de opinião; d) a inviolabilidade
da intimidade, da honra e da imagem; e) o desenvolvimento
econômico e tecnológico e a inovação; f) a livre iniciativa, a
livre concorrência e a defesa do consumidor; e g) os direitos
humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade
e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Uma eventual
projeção legislativa sobre herança digital deve dialogar com essa
lei emergente, o que não parece ter sido feito com as propostas
ora analisadas.
Desse modo, é preciso cautela na tramitação dos processos, devendo ser levado
em consideração a opinião de juristas especialistas no assunto, como posto pelos
pesquisadores. Todavia, ao mesmo tempo, é necessário celeridade no andamento de tais
projetos, dada a demanda e urgência do tema.

3.2.2 Decisões judiciais proferidas no âmbito nacional


Assim como na doutrina e legislação, ainda não há um entendimento
consolidado no âmbito dos Tribunais brasileiros. A 10ª Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o Facebook restaure os perfis de uma
usuária da rede social, já falecida, ao estado anterior às invasões que os modificaram.
No presente caso, a conta da falecida havia sido invadida, tendo o viúvo e filha
da de cujus ingressado com ação contra o Facebook requerendo a recuperação das
informações do perfil desta.
O juízo de primeiro grau indeferiu o pedido para modificação das contas da
falecida em razão do parentesco, pois isso não condiz com a política de uso do serviço
prestado pela requerida, razão pela qual os autores da ação recorreram da decisão.
O relator, desembargador Ronnie Barros Soares, afirmou
que o tema debatido nos autos diz respeito ao direito à
memória e é um reflexo do direito de personalidade.
Segundo o magistrado, atualmente a manutenção de
páginas de redes sociais é um dos meios de cultuar os
mortos.
O relator ressaltou que o fato de a falecida não ter feito
uso da opção oferecida pelo Facebook de designar um
continuador de sua memória, responsável por suas contas
após a morte, não é relevante ao processo, pois a família
não pretende atualizar ou alterar as informações dos
aplicativos.
"O que os autores pretenderam foi a recuperação das
informações que constavam dos sítios e que
confessadamente foram alterados por terceiros", sustentou.
Sob esse aspecto, o desembargador concluiu que o recurso
dos autores merece acolhimento, não cabendo o
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 299

argumento da requerida de falta de prova, porque quem


detém as informações técnicas e pode trazer aos autos a
conformação das páginas antes da invasão é a própria ré
(CONJUR, 2021).
De outra banda, há o julgado da 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de
Justiça de São Paulo – TJSP, o qual respeitou a disposição da falecida, que optou por
utilizar a ferramenta oferecida pelo Facebook para determinar o destino de sua conta
após o falecimento.
No caso, a genitora da falecida utilizava sua conta para recordar os fatos da vida
da filha, interagindo com seus amigos e familiares. Ocorre que a de cujus havia optado
pela exclusão do seu perfil após a morte, o qual veio a ser excluído pela empresa,
levando ao ajuizamento de ação de indenização por danos morais, interposta pela
genitora.
O entendimento do Magistrado de primeiro grau foi de que a empresa havia
agido no exercício regular de um direito, sem abusividade ou falha na prestação do
serviço, vindo a autora a recorrer da decisão.
No Tribunal, o entendimento do juízo a quo foi mantido, tendo o relator
declarado que: "Não se ignora a dor da autora frente à tragédia que se instaurou perante
a sua família, e que talvez seja a mais sensibilizante das mazelas humanas. Tampouco a
necessidade de procurar conforto em qualquer registro que resgate a memória de sua
filha".
O desembargador ressaltou ainda que não há regramento específico sobre
herança digital no ordenamento jurídico brasileiro, nem no Marco Civil da Internet (Lei
12.965/2014) ou na Lei Geral de Produção de Dados Pessoais – LGPD (13.709/2018)
(IBDFAM, 2021).
Conforme exposto, verifica-se que, por ora, enquanto não houver uma legislação
específica sobre o tema, a possibilidade de transmissão dos bens ficará a cargo da
interpretação jurisprudencial, podendo os juristas se basearem nas legislações e decisões
internacionais para tanto, o que será demonstrado na sequência.
3.3 Direito Comparado
Em sede de direito comparado, serão explanados alguns casos ocorridos nos
Estados Unidos e Europa, onde já foram permitidos algum grau de acesso a contas
digitais de falecidos, mesmo sem a manifestação de prévio consentimento.

3.3.1 Caso Justin Ellsworth


Primeiramente, traz-se o caso do estadunidense Justin Ellsworth. No caso,
Ellsworth era militar da marinha americana, e faleceu em missão no Iraque. Após sua
morte, seu pai requereu acesso a sua conta de e-mail, o qual foi negado pelo Yahoo.
Assim, seu genitor ingressou com ação contra o provedor de e-mail, que declarou não
poder liberar as mensagens por conta das cláusulas presentes em seu termo de uso, em
especial, as que proíbem o acesso de terceiros à conta, ainda que o titular esteja morto e
seus familiares estejam solicitando. Em decisão, o Juiz ordenou a transferência das
informações à família, sem, contudo, fornecer os dados de acesso à conta. Tal decisão
não feriu os termos de uso do Yahoo, uma vez que os dados para acesso da conta não
foram fornecidos.168
168
It has to be emphasized that some heirs have been able to attain access to decedent’s account, but only
after a legal battle. Th is happened in several cases; non-more recognized than the highly publicized
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 300

3.3.2 Caso Garota de Berlim


Na sequência, temos o caso da “Garota de Berlim”, conforme intitulação da
pesquisadora Karina Nunes Fritz (2019?, p. 530). Narra a autora que trata-se de
processo na qual os pais de uma adolescente de 15 anos ingressaram com uma ação
contra o Facebook, requerendo acesso à conta da filha após a mesma ter sido
transformada em memorial depois que um usuário desconhecido comunicou à empresa
sobre o óbito da garota.
No caso, as circunstâncias acerca da morte da adolescente eram obscuras,
havendo suspeita de suicídio, razão pela qual seus genitores postularam o acesso à
conta, pois pretendiam buscar pistas sobre o falecimento da filha. Entretanto, a página
da adolescente havia sido transformada em memorial e, mesmo com os dados de acesso,
seus pais não conseguiam acessá-la.
O Facebook, em sua defesa, alegou que a transformação da página em memorial,
e bloqueio do acesso à conta, visava tutelar o direito à privacidade do usuário. Aduziu
que, embora se solidarizasse com a família, precisava proteger a comunicação entre os
usuários da rede social.
O juiz de primeiro grau julgou procedente os pedidos, determinando a concessão
do acesso da conta aos pais da adolescente. Segundo sentença, a herança digital
pertence aos herdeiros, assim como a analógica, podendo os mesmos acessarem todas as
contas de e-mails, celulares, WhatsApp e redes sociais do falecido.
Em recurso ao Kammergericht169, reformou a decisão proferida em primeiro
grau, declarando que, em regra, os direitos e obrigações relacionados a contrato são
transmissíveis via herança, porém, no caso, não havia “clareza jurídica” acerca da
transmissibilidade de bens de conteúdo personalíssimo, bem como que o acesso ao
conteúdo digital violaria o sigilo das comunicações, assegurado no §88 da lei alemã de
telecomunicações.
A genitora, irresignada da decisão, recorreu ao Bundesgerichtshof170, que
reformou novamente a decisão, asseverando, em síntese, que a pretensão dos pais,
herdeiros únicos da adolescente, merecia ser reconhecida, vez que decorria diretamente
do contrato de uso da plataforma digital, que foi transmitido aos herdeiros por força do
princípio da sucessão universal, que vigora no mundo digital da mesma forma que no
analógico, sendo que, no momento da abertura da sucessão, os genitores da de cujus,
passaram a ocupar a posição jurídica contratual da filha com todos os direitos e
obrigações.

Ellsworth case: After Yahoo! refused family members access to an e-mail account belonging to late U.S.
marine Justin Ellsworth, his father sued Yahoo!. The reason for Yahoo!’s refusal was that their ToS
prohibit third parties from accessing someone’s account, even if that someone is dead, and it is his/her
family members demanding access. In the end, the judge ordered Yahoo! to enable access to the
deceased’s account without ordering the transfer of log-in and password information. Th at way, Yahoo!
could still abide by its privacy policy, but family members could and did gain access to deceased e-mails.
It was done because the judge ordered Yahoo! to provide a family with a CD containing copies of the e-
mails in the account (Edwards/Harbinja, 2016; Truong, 2009). However, they did not gain access to
deceased’s e-mail account or log-in information. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/329124760_Digital_inheritance. Acesso em: 14 de jul. 2022.
169
Tribunal de Recurso - https://www.berlin.de/gerichte/kammergericht/
170
Tribunal da Justiça Federal da Alemanha -
https://www.bundesgerichtshof.de/DE/Home/home_node.html
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 301

Na decisão, a Corte ainda esclareceu que, para afastar a intransmissibilidade da


conta, o titular deve, em vida, testamento ou outro documento inequívoco, vedar
expressamente o acesso dos herdeiros ao seu acervo digital.
3.3.3 Caso Ric Swezey

Trata-se do caso de Ric Swezey, estadunidense, que faleceu repentinamente aos


45 anos. Segundo o marido de Swezey, o mesmo era o fotógrafo da família e, com o
advento de sua morte, perdeu acesso a todas as fotos armazenadas na conta da Apple do
de cujus, as quais incluíam fotos em família e de seus dois filhos pequenos. 171 Em
solicitação diretamente à empresa, esta se negou a fornecer o acesso às imagens,
levando o viúvo a ingressar com ação contra a empresa. Na sentença, o Juiz do caso
determinou o acesso do autor às imagens e vídeos, observando que apenas
comunicações de texto e e-mails são protegidas pela lei de privacidade, não sendo o
caso da propriedade digital, como as fotografias172.
3.3.4 Leis Internaiconais
Inicialmente, destaca-se a Ley de protección de Datos y Garantía de los
Derechos Digitales173, promulgada no final do ano de 2018, na Espanha, onde foi
estabelecido, em seu artigo 96, a possibilidade ao testamento digital, in verbis:
Artículo 96. Derecho al testamento digital.
1. El acceso a contenidos gestionados por prestadores de
servicios de la sociedad de la información sobre personas
fallecidas se regirá por las siguientes reglas:
a) Las personas vinculadas al fallecido por razones familiares o
de hecho, así como sus herederos podrán dirigirse a los
prestadores de servicios de la sociedad de la información al
objeto de acceder a dichos contenidos e impartirles las
instrucciones que estimen oportunas sobre su utilización, destino
o supresión Como excepción, las personas mencionadas no
podrán acceder a los contenidos del causante, ni solicitar su
modificación o eliminación, cuando la persona fallecida lo
hubiese prohibido expresamente o así lo establezca una ley.
Dicha prohibición no afectará al derecho de los herederos a

171
Before his sudden death, Ric Swezey was the family photographer, capturing memorable moments
with his iPhone and digital camera. When Swezey died in an accident two years ago, he left behind his
husband, their two kids — and access to precious photos stored in the 45-year-old’s password-protected
Apple AAPL, -2.06% account. Now a Manhattan judge is ordering Apple to give Swezey’s surviving
husband, Nicholas Scandalios, the needed access to any photos behind the Apple ID. Disponível em:
https://www.marketwatch.com/story/apple-must-give-grieving-husband-access-to-cloud-stored-family-
photos-judge-rules-2019-01-25. Acesso em: 14 de jul. 2022.
172
But Apple refused to provide Scandalios with access to Swezey’s account, so he turned to Manhattan
Surrogate’s Court. Nine months later the court has given him access, noting that only communications
such as texts or emails, and not digital property such as photographs, are protected under privacy laws.
Disponível em:
https://nypost.com/2019/01/18/broadway-exec-goes-to-court-over-dead-spouses-icloud-password/.
Acesso em 14 de jul. 2022.
173
Ley Orgánica 3/2018, de 5 de diciembre, de Protección de Datos Personales y garantía de los derechos
digitales. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2018-16673. Acesso em: 14 de
jul. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 302

acceder a los contenidos que pudiesen formar parte del caudal


relicto.
b) El albacea testamentario así como aquella persona o
institución a la que el fallecido hubiese designado expresamente
para ello también podrá solicitar, con arreglo a las instrucciones
recibidas, el acceso a los contenidos con vistas a dar
cumplimiento a tales instrucciones.
c) En caso de personas fallecidas menores de edad, estas
facultades podrán ejercerse también por sus representantes
legales o, en el marco de sus competencias, por el Ministerio
Fiscal, que podrá actuar de oficio o a instancia de cualquier
persona física o jurídica interesada.
d) En caso de fallecimiento de personas con discapacidad, estas
facultades podrán ejercerse también, además de por quienes
señala la letra anterior, por quienes hubiesen sido designados
para el ejercicio de funciones de apoyo si tales facultades se
entendieran comprendidas en las medidas de apoyo prestadas
por el designado.
2. Las personas legitimadas en el apartado anterior podrán
decidir acerca del mantenimiento o eliminación de los perfiles
personales de personas fallecidas en redes sociales o servicios
equivalentes, a menos que el fallecido hubiera decidido acerca
de esta circunstancia, en cuyo caso se estará a sus instrucciones.
El responsable del servicio al que se le comunique, con arreglo
al párrafo anterior, la solicitud de eliminación del perfil, deberá
proceder sin dilación a la misma.
3. Mediante real decreto se establecerán los requisitos y
condiciones para acreditar la validez y vigencia de los mandatos
e instrucciones y, en su caso, el registro de los mismos, que
podrá coincidir con el previsto en el artículo 3 de esta ley
orgánica.
4. Lo establecido en este artículo en relación con las personas
fallecidas en las comunidades autónomas con derecho civil,
foral o especial, propio se regirá por lo establecido por estas
dentro de su ámbito de aplicación.
Como se verifica no artigo 96, 1, “a”, podem os familiares do falecido e seus
herdeiros postularem o acesso aos conteúdos digitais do de cujus, podendo dispor acerca
de sua finalidade. Outrossim, havendo disposição do falecido ou lei, poderá ser vedado
o acesso a tais informações.
O artigo ainda dispõe sobre o uso das informações pelo testamenteiro;
falecimento de pessoas menores de idade; deficientes; bem como acerca da manutenção
dos dados digitais, com a manutenção ou exclusão dos perfis.
Na legislação francesa, mais precisamente no artigo 63 da Loi pour une
République Numérique174, que acrescenta o artigo 40-1 na Loi n° 78-17 du 6 janvier

174
LOI n° 2016-1321 du 7 octobre 2016 pour une République numérique. Disponível em:
https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000033202746. Acesso em 14 de jul. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 303

1978, estabelece, em seu inciso II, que qualquer pessoa pode definir as diretrizes
relativas ao armazenamento, exclusão e comunicação de seus dados pessoais após a
morte. No caso do falecido não dispor acerca de seus dados digitais, poderão os
herdeiros exercer o controle sobre os dados, nos termos definidos em lei 175.
Nos Estados Unidos, cada estado possui sua própria legislação acerca do tema,
entretanto, a maioria delas é orientada pela Comissão de Uniformização de Leis, que
editou um documento com intuito de padronizar o tratamento jurídico dos arquivos
digitais em caso de morte ou incapacidade do titular, resultando no Uniform Fiduciary
Access to Digital Assets Act (UFADAA). Tal regulamentação dispõe que, com o
falecimento do titular, seus ativos digitais podem ser administrados pelos herdeiros,
como domínios de internet, moedas digitais, dentre outros. Porém, a norma traz
ressalvas quanto às redes sociais e e-mails, sendo, neste caso, necessário o
consentimento prévio do titular, por meio de testamento, procuração, ou documento
legalmente válido (LACERDA, 2021).

175
Article 63 - L'article 40 est ainsi modifié : a) Au début du premier alinéa, est ajoutée la mention : « I.-
» ; (...) II.-Toute personne peut définir des directives relatives à la conservation, à l'effacement et à la
communication de ses données à caractère personnel après son décès. Ces directives sont générales ou
particulières. (...) III.-En l'absence de directives ou de mention contraire dans lesdites directives, les
héritiers de la personne concernée peuvent exercer après son décès les droits mentionnés à la présente
section dans la mesure nécessaire (...).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 304

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou trazer a análise sobre a possibilidade jurídica de


sucessão de bens digitais no direito brasileiro, abordando as distintas classificações
desses bens, e se há ou não possibilidade na sua transmissão. Todavia, não se buscou
esgotar o debate acerca do tema, que, sabidamente, é dotado de grande complexidade.
Destaca-se que a evolução da tecnologia permite verificar que determinados
bens que compõem o acervo pessoal do indivíduo passaram da forma física para a
digital, como fotos, vídeos, documentos, etc.
A partir disso, se verifica que a conceituação legislativa sobre bem autoriza, em
alguns casos, a transmissão através dos procedimentos do inventário ou arrolamento.
Como é o caso dos bens digitais de natureza unicamente patrimonial, uma vez
que a doutrina entende possível sua transmissão, vez que integram o patrimônio do
falecido, fazendo parte da herança.
Tal possibilidade existe em razão do Código Civil estabelecer que a herança é
composta pelos bens de natureza patrimonial. Assim, tendo o bem digital a natureza
requisito interposta pela codificação privada, este pode ser transmitido aos herdeiros,
pois possui característica semelhante aos bens tangíveis.
Outrossim, em se tratando de bens ligados à personalidade, e sem caráter
econômico, como fotos, e-mails, perfis de redes sociais, etc., o caso é de ser analisado
em específico, tendo em vista que o ordenamento jurídico vigente não traz essa
possibilidade, ficando a cargo do judiciário a possibilidade ou não da transmissão.
A questão do Direito Digital é questão contemporânea que vem sendo
desenvolvida, havendo necessidade da existência de amplos debates para que o assunto
ganhe força, para que a partir disso, os projetos legislativos em tramitação venham a
regulamentar o assunto, assim como vêm ocorrendo nos demais países, uma vez que a
sucessão de bens acontece diariamente, razão pela qual urge-se a urgência da
regulamentação.
Dessa forma, conclui-se que, em que pese a ausência de previsão legal, não há
qualquer impedimento legal para que a sucessão causa mortis de bens de natureza
digital, que possuam natureza patrimonial, possam ser transmitidos aos herdeiros.
Outrossim, havendo manifestação de última vontade, como no caso das ferramentas
disponibilizadas aos usuários, tal disposição deve ser respeitada com a mesma força do
testamento.
Ademais, tem-se que o Brasil deveria se espelhar nas legislações estrangeiras
para o fim de regulamentar a questão no país, uma vez que os projetos apresentados
carecem de tecnicidade, em especial no que tange a opinião dos doutrinadores sobre o
tema.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 305

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Direito Civil - Parte Geral - Vol. 1. Grupo GEN, 2021. 9788597027181. Disponível
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jul. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 308

VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E VERDADE JURÍDICA: como é construída a


verdade jurídica sobre a violência psicológica contra a mulher pelos agentes do
sistema de justiça criminal176

Maria Fernanda Corrêa Freitas


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
@hotmail.com

Profa. Dra. Vanessa Dorneles Schinke


Orientador
Docente do Curso de Direito da Unipampa
vanessashinke@unipampa.edu.br

RESUMO

O termo gênero como é utilizado hoje passou por inúmeras modificações no seu
conceito, desde a ideia inicial de dissociação da visão biológica binária, até uma
construção histórica e cultural de papéis sociais de cada indivíduo na sociedade. Hoje é
visto como categoria de análise, juntamente com outras variáveis, como classe social e
raça. A estrutura social foi moldada pelo gênero, especialmente pelo machismo e pelo
patriarcado que sustentam a dominação e a ordem masculina, através do simbolismo
pelo qual são perpetuados. Com o objetivo de dar visibilidade às mulheres, de uma
forma positiva, e buscando conquistar seus direitos, iniciou a luta feminista. No mesmo
sentido, unindo a teoria crítica e a criminologia feminista as estudiosas trabalharam para
a inserção dos estudos feministas dentro da história, da sociologia, da própria
criminologia e demais áreas do conhecimento. Além de conquistar direitos para as
mulheres, reféns da divisão sexual, o escopo das batalhas foi introduzir a questão
feminina como integrante da sociedade, bem como na questão criminal, tanto como
agente, quanto como vítima. Em ambas situações, a mulher é duplamente penalizada
diante do sistema de justiça criminal, que também é desigual. Uma das principais
consequências da hierarquia de gênero é a violência, um mal que afeta grande parte das
mulheres no sistema de dominação-exploração ao qual são submetidas. A violência é
representada das mais variadas formas, mas tem uma maneira silenciosa e com
consequências gritantes e eternas, a psicológica, que começa sutil e silenciosamente e,
em grande parte dos casos, abre portas para as demais. Entretanto, mesmo com um
número absurdo de ocorrências, as que realmente chegam ao poder judiciário são
poucas; as que recebem a atenção e a tutela que necessitam, são ainda menos. Dessa
forma que se apresenta a verdade jurídica, conceito de Mills que retrata um vocabulário
de motivos que é construído pelos agentes da justiça criminal sobre qual verdade é
interessante e segura, atendendo às expectativas sociais. Destarte, para a construção do
presente trabalho e a fim de entender a verdade jurídica produzida sobre a violência
psicológica contra a mulher, foi feita análise de 100 (cem) processos em trâmite na Vara
Criminal de Santana do Livramento entre o período de 2020 a 2022. Os resultados da

176
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 309

análise levaram à descoberta de que a forma de produção da verdade jurídica nos casos
analisados deu-se de maneira a excluir os casos de violência psicológica ou diminuir sua
importância, deixando de tutelá-los quando não acompanhados das provas consideradas
suficientes. Assim, em que pese tipificado o crime de violência psicológica contra a
mulher, sua aplicação não é efetuada, deixando de concretizar a proteção garantida à
mulher, em especial, na Lei Maria da Penha.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; criminologia; crítica feminista; violência psicológica


contra a mulher; verdade jurídica.

RESUMEN

El término género tal como se utiliza hoy en día ha sufrido numerosos cambios en su
concepto, desde la idea inicial de disociación de la visión biológica binaria, hasta una
construcción histórica y cultural de los roles sociales de cada individuo en la sociedad.
Hoy se ve como una categoría de análisis, junto con otras variables como la clase social
y la raza. La estructura social ha sido moldeada por el género, especialmente el
machismo y el patriarcado que sustentan la dominación y el orden masculino, a través
del simbolismo mediante el cual se perpetúan. Con el objetivo de dar visibilidad a las
mujeres, de manera positiva, y buscando la conquista de sus derechos, se inició la lucha
feminista. En el mismo sentido, al unir la teoría crítica y la criminología feminista, las
académicas trabajaron por la inserción de los estudios feministas dentro de la historia, la
sociología, la propia criminología y otras áreas del conocimiento. Además de conquistar
derechos para las mujeres, rehenes de la división sexual, el alcance de las batallas fue
introducir la cuestión femenina como parte integral de la sociedad, así como en la
cuestión criminal, como agente y como víctima. En ambas situaciones, las mujeres son
doblemente penalizadas en el sistema de justicia penal, que también es desigual. Una de
las principales consecuencias de la jerarquía de género es la violencia, un mal que afecta
a la mayoría de las mujeres en el sistema de dominación-explotación al que son
sometidas. La violencia se representa de las más variadas formas, pero tiene una forma
silenciosa y de consecuencias flagrantes y eternas, la psicológica, que comienza sutil y
silenciosamente y, en la mayoría de los casos, abre puertas a otras. Sin embargo, aun
con un número absurdo de ocurrencias, las que realmente llegan al poder judicial son
pocas; aquellas que reciben la atención y el cuidado que necesitan son aún menos. De
esta forma, se presenta la verdad jurídica, concepto de Mills que retrata un vocabulario
de motivos que construyen los agentes de justicia penal sobre los cuales la verdad es
interesante y segura, atendiendo a las expectativas sociales. Así, para la construcción del
presente trabajo y con el fin de comprender la verdad jurídica producida sobre la
violencia psicológica contra la mujer, se hizo un análisis de 100 (cien) casos pendientes
en el Juzgado Penal de Santana do Livramento entre el período de 2020 al 2022. Los
resultados del análisis permitieron constatar que la forma de producción de la verdad
jurídica en los casos analizados se dio de tal manera que se excluyeron los casos de
violencia psicológica o se les restó importancia, desamparándolos cuando no se
acompañan de la prueba considerada suficiente. Así, a pesar de estar tipificado el delito
de violencia psicológica contra la mujer, su aplicación no se lleva a cabo, no
materializándose la protección garantizada a la mujer, especialmente en la Ley Maria da
Penha.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 310

Palabras clave: Género; criminología crítica feminista; violencia psicológicacontra la


mujer; verdade jurídica.

INTRODUÇÃO

A luta das mulheres não é recente, mas, ao contrário, atravessa os séculos.


Muitas batalhas são enfrentadas, diariamente, por elas. A sua história é, muitas vezes,
apagada. O seu protagonismo é resumido a uma mera participação nos acontecimentos
da vida humana.
A mulher, em meio a um mundo fundamentado, histórico e culturalmente
machista e patriarcal, tem sua identidade diminuída a questões de sexualidade e
submissão. As mulheres já tinham seus destinos traçados (pelos homens), concentrados
na reprodução, no lar, nos cuidados e educação dos filhos.
Como eternas reféns da sorte e das vidas alheias, sobre suas figuras recaiam (e
recaem) as consequências negativas do poder, do fracasso e dos desejos dos homens.
Entre elas, o tormento da violência, com o qual sofriam e, ainda sofrem, caladas, talvez
pelo medo, talvez pela vergonha, talvez pela dependência, ou até mesmo pelo costume e
pela impunidade.
Os direitos das mulheres, dentro da igualdade material exigida pelo tema,
foram sendo conquistados, aos poucos, pelos movimentos feministas ao longo da
história; mas ainda há muitas lutas pela frente. Gênero é um termo cujo conceito foi
bastante discutido ao longo da história; inicialmente retratava a ideia biológica e
dualista, voltada para os caracteres corporais e sexuais das pessoas. Com o surgimento
de novas ideias, especialmente no que diz respeito aos estudos da teoria crítica
feminista, novos ares tomaram espaço.
A teoria crítica feminista, que leva como esteio a inserção da questão feminina
nas mais variadas áreas do conhecimento, trouxe consigo novas visões sobre o conceito
de gênero, que passou a ser analisado, dentre outras formas, do ponto de vista cultural e
com a evolução dos estudos, em meio à sua variabilidade, distanciando-se das estáticas
e conservadoras ideias que dominavam a palavra.
Na mesma senda, sobreveio a criminologia feminista, estudando a mulher
como agente e vítima dentro do sistema criminal. Analisou-se as desigualdades e os
impactosda submissão e opressão às quais cultural e costumeiramente são submetidas as
mulheres.
Como um dos principais objetos de análise, está a questão da violência que,
enraizada estruturalmente na sociedade, é uma das principais causas que levam as
mulheres a socorrerem-se junto ao sistema penal, que deixa muito a desejar na acolhida.
Em um país no qual o direito ao voto para as mulheres foi incluído na
Constituição Federal somente em 1934; onde os demais direitos foram igualados aos
homens somente após a Constituição Federal de 1988; onde os números da violência e
de feminicídios são gritantes e crescem em silêncio a cada dia, são urgentes as medidas
para tornar efetivos os direitos pelos quais muitas batalhas foram travadas.
Mesmo hoje, após importantes (mas não suficientes) conquistas de direitos e
garantias, a violência em todos os seus aspectos, atormenta uma em cada quatro
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 311

mulheres brasileiras177, fora os casos silenciosos, mantidos em segredo no corpo e na


alma das vítimas. As mulheres são vítimas das mais variadas maneiras de violência, são
privadas da liberdade, da expressão, dos direitos reprodutivos e sexuais, do seu
patrimônio, das escolhas sobre sua vida, seu corpo, seu futuro; têm a sua integridade
física, moral e psicológica violada diariamente; carregam o fardo de serem quem são.
No Brasil, em análise dos Anuários Brasileiros de Segurança Pública, do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a Agência Patrícia Galvão178 chegou à
conclusão de que uma mulher é vítima de estupro a cada dez minutos, três mulheres são
vítimas de feminicídio a cada um dia e 30 mulheres sofrem agressão física por hora.
Outro dado gritante, do mesmo Fórum, refere-se à violência psicológica, registrando 13
milhões de mulheres vítimas, o que configura uma a cada três segundos, no ano de
2020.
Uma das formas de violência que mais atinge a população feminina, sem nem
mesmo ser percebida, é a psicológica que, apesar dos esforços legislativos para
criminalizá-la, ainda faz parte da imensa cifra oculta.
Em grande parte dos casos de violência contra a mulher, a violência
psicológica aparece como a porta de entrada para as demais, tornando-se, muitas vezes,
uma dolorosa rotina, que acaba com o emocional, a autoestima, e até mesmo com a vida
das mulheres que são vítimas.
Entretanto, poucos ou inexistentes, são os casos que chegam a ser
judicializados, ficando à margem dos dados. No geral, a face psicológica da violência
contra a mulher é apontada como um detalhe, uma pequena parcela, um grau menos
intenso, quando na verdade, é uma das formas que mais destrói a identidade e a
autodeterminação da vítima, deixando sequelas irreparáveis e inesquecíveis.
Essas lacunas podem ser geradas por inúmeras questões, entre as quais destaca-
se a produção da verdade jurídica, ou seja, a verdade aceita e admitida em consenso,
uma determinada narrativa que se caracterize como segura dentro do conceito social de
justiça.
Diante disso, através deste trabalho, buscar-se-á analisar os casos de violência
psicológica levados ao Juízo Criminal da Comarca de Sant’Ana do Livramento, entre
2020 e 2022, pesquisando sob orientação da Profª Drª Vanessa Dorneles Schinke.
O problema está centrado na pergunta: Como é construída a verdade jurídica
sobre a violência psicológica pelos agentes do sistema de justiça criminal em casos
envolvendo violência contra a mulher?
Analisar-se-á a questão de como e por que os agentes do sistema de justiça
criminal, com destaque para os juízes, muitas vezes extraem a violência psicológica de
suas decisões e discursos, compreendendo-a somente como um mero detalhe das demais
formas de violência contra a mulher, apagando, em grande parte das vezes, a sua
importância e frequência, o que faz com que, na prática da verdade jurídica, seus
números e gravidade sejam diminuídos.
Também, será verificada a questão cultural histórica, que acostumou a
sociedade com a violência psicológica como algo cotidiano e natural, até certo ponto; o

177
PAULO, Paula Paiva. Uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de violência na
pandemia no Brasil, aponta pesquisa. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2021/06/07/1-em-cada-4-mulheres-foi-vitima-de-algum-tipo-de-violencia-na-pandemia-no-
brasil-diz-datafolha.ghtml. Acesso em 11 jan 2022.
178
VIOLÊNCIA contra a mulher em dados. Dossiês Agência Patrícia Galvão, 2020. Disponível em:
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/. Acesso em 11 jan. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 312

motivo pelo qual a ideia de violência contra a mulher ainda está presa basicamente
naforma física, especialmente dentro dos discursos dos agentes do sistema, que insistem
em diminuir as outras formas, com ênfase para a psicológica, limitando-se a mencioná-
la como fatores que compõem a violência doméstica.
Para isso, foi realizada pesquisa documental, em decisões de processos
envolvendo violência contra a mulher. A metodologia de abordagem utilizada é a
qualitativa multimétodos, conciliando a pesquisa bibliográfica com a pesquisa de
campo.
Os tópicos estão desenvolvidos em cima da ideia de violência psicológica
contra a mulher, com base na análise da criminologia feminista e utilizando a ideia de
verdade jurídica como mola propulsora da investigação.
O estudo também passará pela historicidade da violência contra a mulher, nas
formas descritas na Lei Maria da Penha, com destaque para a psicológica, encerrando-se
na análise concreta dos casos judicializados.
O Capítulo 1 abordará a questão do gênero, seus conceitos e discussões; o
Capítulo 2 entrará nos pensamentos da teoria crítica feminista, tendo entre seus
subtítulos a violência contra a mulher como um dos problemas a serem enfrentados e a
própria violência psicológica; no 3º Capítulo, far-se-á a análise da definição de verdade
jurídica, utilizando o conceito do vocabulário de motivos, de MILLS (2016) e, na
sequência, serão contrapostos os conteúdos explorados com os casos concretos de
violência psicológica contra a mulher judicializados na Comarca de Santana do
Livramento de 2020 a 2022.

CAPÍTULO 1 - GÊNERO: CONCEITOS E DISCUSSÕES

No campo da gramática, a palavra gênero tem inúmeras divisões em relação


aos seus significados, que se modificam e adequam-se a cada área em que é aplicada.
Mas, conceitualmente, a origem da noção de gênero remonta, mesmo que não
formulado por ela, os escritos de Simone de Beauvoir (1949), que se tornou precursora,
utilizando a fundamentação do vocábulo em O segundo sexo. (SAFFIOTI, 2015)
Em 1950, John Money utilizou a expressão para diferenciar sexo anatômico e
sexo psicológico, mas apenas na sua publicação de 1955 que apareceu explicitamente.
Posteriormente, em 1966, Ralph Greenson abordou questões de identidade de gênero e
des-identificação. (LATTANZIO e RIBEIRO, 2018)
Entretanto, a menção específica ao termo dentro da área foi feita por Robert
Stoller (1968) em Sex and Gender, utilizando-o para diferenciá-lo de sexo e das
condições biológicas. Em 1975, Gayle Rubin trouxe uma nova perspectiva de gênero no
texto O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. E assim, novos
entendimentos foram sendo produzidos. (SAFFIOTI, 2015)
Mesmo diante da polissemia encontrada no caso da palavra gênero, o conceito
utilizado inicialmente, vai ao encontro da diferenciação histórica e estática entre homens
e mulheres, distinção baseada unicamente no sexo determinado biologicamente,
empregado muitas vezes de maneira conotativa ou até mesmo, para descrever traços de
caráter.
O termo teve sua significação ou utilidade modificada ao longo dos tempos e foi
aproveitado analogicamente em diversos âmbitos. Serviu como base para a descrição de
uma identidade sexual subjetiva; foi resumido exclusivamente ao produto das relações
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 313

de parentesco; foi objeto para a política, para a obtenção e manutenção do poder e


matéria para as legislações; formou relações sociais e serviu como influenciador
sociocultural; foi utilizado para dividir e distribuir funções, legitimar direitos e deveres.
Mas basicamente em todos os cenários, suas destinações eram fundadas em estereótipos
de representação.
Inicialmente, o gênero era definido através das perspectivas biológicas,
onde as diferenças do corpo humano e entre os sexos eram vistas como definidoras das
características de cada indivíduo e de seus lugares na sociedade. Via-se o gênero como
decorrência dos sexos biológicos, tendo como centro o casamento, as questões
reprodutivas e a continuidade da humanidade, através da descendência. Com o apoio da
Igreja, tais teorias dominaram até o século XIX.
As diferenciações entre homens e mulheres marcam a história da humanidade.
A biologia traz conceitos sobre a natureza de tais indivíduos e, a fim de se distanciar da
ideia baseada nos sexos, surge o conceito de identidade de gênero, que abarca outras
áreas do conhecimento e expande a visão sobre as noções da palavra.
Com o surgimento de discussões sobre o conceito, iniciaram-se as tentativas de
distinção entre as definições de sexo e gênero. Em um segundo momento, percebeu-se
este último como a forma pela qual as sociedades veem os seres, de acordo com
características e comportamentos comumente atribuídos a cada um.
Nessa nova conjuntura, compreende-se a cultura como mola propulsora das
classificações impostas aos homens e mulheres, ou seja, de acordo com o momento
histórico, os padrões do modo de ser dos indivíduos variam, transformando o
significado dos termos. Estuda-se o sentido dos papéis sociais, que são noções
culturalmente construídas e distribuídas aos integrantes da sociedade e uma das
principais formas utilizadas para justificar a distinção entre homens e mulheres.
A origem do termo gênero veio da necessidade de diferenciação da visão
biológica, que baseia suas ideias na fisiologia dos sexos, nas características corporais e
naturais dos homens e mulheres.
Nos estudos das ciências sociais e humanas, esse conceito ganhou grande
destaque, justificando o modo de ser masculino e feminino pela cultura de cada espaço-
tempo, ou seja, a sociedade e sua realidade que moldam os padrões que formam os
papéis sociais dos homens e das mulheres.
Mesmo que muitos acreditem que as aptidões são inerentes a cada um, que as
mulheres são destinadas à maternidade, à fragilidade e à dependência, que os homens
nasceram para os trabalhos com maior reconhecimento, com o dom da força e para
desempenhar atividades tipicamente masculinas, é o social e o cultural que formam as
perspectivas sob as quais são vistos.
As ações e comportamentos humanos são resultados de todos aprendizados
obtidos e seguem, na maioria das vezes, os padrões pré-estabelecidos e esperados pela
sociedade. Assim, quando não seguidos, da quebra da expectativa social, surgem as
desigualdades e os preconceitos.
O que se entende atualmente por gênero foi obtido através de muitos estudos e
diálogos, especialmente com a contribuição do movimento feminista e das
interseccionalidades com as diversas áreas das ciências humanas. Tais estudos foram
imprescindíveis para a quebra do modelo do sexo anatômico como definidor de
condutas humanas, bem como para o entendimento das assimetrias de gênero, suas
origens e consequências.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 314

Entretanto, especialmente no que diz respeito às assimetrias de gênero, a visão


sobre os instintos naturais dos indivíduos ainda é muito presente, sendo utilizada para
justificar os mais variados comportamentos. A mulher ainda é vista como frágil e
submissa e o homem como detentor da força, do poder e da razão, dominando o mundo
ao seu redor. Os papéis sociais são criados a fim de atender as expectativas da
sociedade, ou seja, cada um deve ocupar o seu lugar no mundo, conforme ditam os
costumes e a cultura de cada local.
Nos mais variados nichos da sociedade aprende-se sobre os papéis dos homens
e das mulheres, desde o nascimento até o fim da vida, mas, principalmente quando
crianças, as pessoas recebem inúmeras instruções sobre o modo de agir, as escolhas, os
objetos, as roupas, as palavras que devem usar, conforme o gênero.
Apesar das variações ao longo dos lugares e dos tempos, as concepções do que
é feminino ou masculino e adequado ou inadequado, de acordo com cada qual, sempre
se encontram carregadas de regras costumeiras históricas e retrógradas.
Dentro do fenômeno cultural que moldou a visão sobre as mulheres,
especificamente, estão os malfadados valores patriarcais de dominação e submissão, que
percorreram eras e acompanham estes indivíduos até os dias de hoje.
Um dos principais problemas enfrentados em razão das assimetrias, é a
violência de gênero, com a reprodução de comportamentos que atestam a
gritanteopressão masculina sobre as mulheres. Institucionalmente e estruturalmente,
replica-se a inferiorização das mulheres, acentuando-se as desigualdades e distanciando-
se cada vez mais da equidade de gênero.
Ainda é comum que as mulheres não possam se autodeterminar, sendo
destinadas aos papéis escolhidos pela sociedade - leia-se homens - para elas. Muitas
vezes não podem decidir nem sobre o próprio corpo, suas escolhas, seu destino; todos
seus direitos são retirados ao ponto de aceitarem o mínimo da vida que lhes é permitido
viver.
A violência de gênero está enraizada na sociedade, persistindo geração após
geração, tornando-se marco costumeiro na vida de inúmeras mulheres que, até mesmo
sem perceber, são diariamente vítimas dessa construção sociocultural. Assim, muitas
reflexões sobre a posição da mulher como construção social foram sendo realizadas. A
subordinação feminina e as desigualdades sociais foram objeto principal.
Com base nisso, iniciou a luta social feminista, que, fundada na busca pelo fim
da diferenciação sexual, da dominação masculina, da opressão, do patriarcado e das
desigualdades e preconceitos geradas por eles, sustentaram suas reivindicações e
conquistaram a totalidade dos direitos garantidos às mulheres. O feminismo, seja por
meio de ações políticas, dadas através de movimentos sociais, ou como teoria, busca
acabar com a associação das mulheres com a submissão, a sujeição e a fragilidade.
Dentro das discussões sobre a temática, algumas autoras ganham destaque no
presente texto, como Joan Scott e Judith Butler que, inspiradas pelas novas construções
contemporâneas sobre gênero, trouxeram outras visões ao campo desses estudos.
Joan Scott (1989) inicia sua análise abordando o uso dos termos da gramática a
fim de descrever traços sexuais ou de caráter, utilizando de maneira metafórica os
vocábulos sexo e gênero; segue construindo seu texto mencionando as novas utilizações
dos termos, especialmente no campo feminista, que faz alusão à organização social
entre os sexos.
Sustenta também a variedade de possibilidades gramaticais que podem ser
empregadas, estando entre elas, em meio às regras formais, hipóteses de uso
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 315

esignificação ainda ignoradas, para além do comumente conhecido e difundido.


(SCOTT, 1989)
Gramaticalmente, usa-se gênero a fim de classificar fenômenos e distinguir
socialmente os traços inerentes a cada ser, agrupando-os isoladamente. Mais
recentemente, o uso entre as feministas americanas volta-se para o aspecto social dos
contrastes envolvendo o sexo, rejeitando o determinismo biológico. (SCOTT, 1989)
Mas o destaque especial é dado à ideia de que a análise sobre as mulheres seria
de grande valia para a modificação dos paradigmas estabelecidos em todas disciplinas,
trazendo novos e diferentes olhares para a história, redefinindo o que era aprendido
tradicionalmente. Ou seja, defende-se que o gênero seja utilizado como categoria de
análise. (SCOTT, 1989)
No campo dos historiadores, foram encontrados alguns percalços e desafios
teóricos, especialmente em razão da ausência de material subsídio para a edificação das
pesquisas e da reação negativa e pouco contributiva dos historiadores não feministas.
(SCOTT, 1989)
Já no espaço dos estudos mais recentes, gênero vem sendo utilizado como
sinônimo de mulheres. Assim é falado no campo de pesquisas escritas e manifestações
feministas, a fim de referir-se de uma forma literal, neutra, séria, erudita e distanciada
dos preconceitos com o feminismo, em uma análise social da categoria. (SCOTT, 1989)
Considera-se esta forma de emprego da palavra como uma espécie de busca
por legitimidade na academia, deixando de intitular as mulheres, sem tomar posição
sobre questões como desigualdade e poder, bem como mantendo a invisibilidade de
praxe, igualando as mulheres a sujeitos históricos legítimos, assim como os homens.
(SCOTT, 1989)
Aponta também o uso do gênero como designador de relações sociais entre os
sexos, afastando os argumentos biológicos e dando azo às construções sociais que
formam os papéis e as identidades subjetivas dos homens e das mulheres na sociedade.
Contudo, em que pese fortemente utilizado para distanciar os estudos das questões
sexuais, ainda não se mostrou suficiente para desconstruir os padrões dominantes
presentes. (SCOTT, 1989)
Do ponto de vista da autora, as abordagens na análise do gênero produzidas
pelas(os) historiadoras(es) feministas resumem-se em três conjunturas:

A primeira, um esforço inteiramente feminista que tenta explicar


as origens do patriarcado. A segunda se situa no seio de uma
tradição marxista e procura um compromisso com as críticas
feministas. A terceira, fundamentalmente dividida entre o pós-
estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações
de objeto, inspira-se nas várias escolas de psicanálise para
explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do
sujeito. (SCOTT, 1989, n.p)

Refere-se às críticas, às teorias e estudos na área, afirmando a necessidade de


rejeição do que afirma como caráter fixo e permanente da oposição binária, apontando
que devem ser desconstruídos efetiva e autenticamente os termos de diferenciação
sexual; e para isso sugere a submissão das categorias à crítica, teorizando as práticas
feministas e desenvolvendo o gênero como categoria de análise. (SCOTT, 1989, n.p)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 316

Na sua definição de gênero, Scott faz uma divisão de análise afirmando que:
gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de
poder. (SCOTT, 1989, n.p)
Em relação à primeira afirmação, ainda menciona quatro elementos fundantes
das diferenças sociais imputadas: símbolos culturalmente disponíveis que evocam
representações múltiplas, e através de figuras ou comportamentos e sensações
personificam os ideais sobre a mulher e o homem; conceitos normativos que colocam
em evidência interpretações do sentido dos símbolos que tentam limitar e conter as suas
possibilidades metafóricas, que estão presentes em todas doutrinas, escrevem a história
posterior e são vistas como produtos de consenso social; a representação binária dos
gêneros nas instituições e organizações sociais, que ligam cada indivíduo ao seu papel
tradicional; e por fim a identidade subjetiva, que traz a ideia da construção e
distribuição do poder. (SCOTT, 1989, n.p)
É abordada, ainda, a relação entre o gênero e a política, reciprocamente
considerados, aduzindo que aquele é construtor e legitimador das relações sociais,
auxiliando na descoberta do sentido e da compreensão das suas complexidades.
(SCOTT, 1989)
Na política, o gênero encontra uma possibilidade de meio para análise
histórica, uma vez que nos mais variados contextos históricos esteve presente desde a
justificativa ou crítica à monarquia, até como forma de expressão das relações entre
governantes e governados. Registra inclusive, que as necessidades de cada estado pode
ser uma das causas da mudança das relações de gênero. (SCOTT, 1989)
Já em relação à significação e à formação das relações de poder, destaca-se o
uso do controle e da força, com o emprego da diferenciação sexual como forma de
dominação e controle das mulheres. Às mulheres foram impostas inúmeras restrições,
sendo reservado a elas o papel secundário nas mais variadas situações. Foi-lhes proibida
a participação na política; imposta a maternidade como obrigação, sem chance de
escolha; vedado o trabalho assalariado; limitado o uso de determinadas vestes. (SCOTT,
1989)
Mas ao longo dos anos, também surgiram os movimentos e regimes, ou pelo
menos ideais sobre eles, que defendiam o fim da hierarquia pelas diferenças sexuais,
com a união de todos, com críticas às organizações estabelecidas e à dominação;
visavam que a harmonia entre os indivíduos se sobrepusesse às desigualdades. (SCOTT,
1989)
Scott também afirma que, em que pese a utilização do gênero nessas
organizações não seja explícita, é decisiva, pois, baseia-se nas estruturas hierárquicas e,
genericamente, nas concepções de masculino e feminino. Isto pode ser observado
através do fato que, comumente, aplicavam-se características consideradas femininas
para descrever fraqueza, exploração, vulnerabilidade, subordinação; já sobre os homens,
falava-se em força, proteção, domínio. (SCOTT, 1989)
Basicamente, o poder foi concebido e legitimado pelo gênero, mas também,
criticado. E como remédio, as medidas que se impõem são mudanças na ordem
estabelecida, revisão e ressignificação dos termos utilizados e a busca por novas formas
de legitimação, o que pode ser efetivado através de um processo político. Mas, para
isso, afirma Scott:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 317

Só podemos escrever a história desse processo se


reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo
categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não tem
nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes
porque mesmo quando parecem fixadas, elas contém ainda
dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas.
(SCOTT, 1989, n.p)

Assim, é necessário acabar com a invisibilidade e a subjetividade, tornando


explícitas algumas questões e fazendo emergir novas, reestruturando o que estava
arraigado, com novos olhares de gênero sobre a história e a contemporaneidade.
Autoras como Judith Butler (2003), contrapondo questões como desejo e
identidade, foram decisivas na quebra ocorrida dentro das teorias feministas, passando a
ver o gênero como um contexto variável e relativo que dependeria de um conjunto de
situações.
Fala-se sobre a ruptura ocorrida nas ideias feministas, onde a representação da
mulher, como sujeito do feminismo, passou por mudanças, deixando de ser limitada,
estável e permanente. Na mesma linha, o conceito de gênero estabeleceu, ao longo de
sua construção, confluências com as ideias de raça, classe, etnia, sexismos e, também,
influências políticas, regionais e culturais.
Judith Butler aponta a noção da política da identidade, criticando as categorias
estruturadas contemporaneamente e defendendo um pós-feminismo, que possibilite
reformular e renovar as teses existentes, tomando como base a variabilidade da
identidade. (BUTLER, 2003)
A autora ainda reflete acerca da morfologia da palavra gênero, referindo que se
tal termo origina-se das significações culturais que lhes são atribuídas, não é possível
afirmar que advenha de um sexo, no sentido de corpos sexuados. Distanciando-se do
sistema binário, afirma que o gênero não reflete ou se restringe ao sexo. (BUTLER,
2003)
Conceitua a identidade de gênero como uma relação entre sexo, gênero, prática
sexual e desejo e, diante da sua variabilidade, defende a criação de uma nova política
feminista e, para isso é necessário o questionamento da concepção de gênero. A
definição do termo construiu-se a partir de um contraponto ao determinismo biológico,
contestando a praxe de caracterização do indivíduo de acordo com o sexo, que
estabelece atributos estáticos e fomenta as desigualdades.
Entretanto, Butler refere que, mesmo assim, a conceituação de gênero pode
ocasionar uma espécie de determinismo, mas desta vez, de acordo com a própriacultura.
Nesse sentido, a autora refere a famosa frase de Simone de Beauvoir (1970) não se
nasce mulher, torna-se, aduzindo que a própria escolha de tornar-se mulher é pré-
determinada pelas percepções culturais que permeiam a sociedade, que também têm o
sexo como motivador e integrante do discurso e da expectativa social. (BUTLER, 2003)
Ainda, a filósofa rebate a naturalização da heterossexualidade que, política,
social e culturalmente, através de atos repetidos e cotidianos, é imposta compulsória e
disfarçadamente. Assim, afirma que as identidades são formadas de acordo com o
desejo heterossexual. E esta heterossexualidade é a grande construtora do poder,
contribuindo para a opressão e hegemonia masculina e, consequentemente, para a
dominação da mulher. (BUTLER, 2003)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 318

Outrossim, ainda nos estudos acerca de gênero e feminismos, Alessandro


Baratta, no livro organizado por Carmen Hein de Campos fala sobre a construção de um
paradigma do gênero contraposto ao biológico, cujo conteúdo compreende, nas suas
palavras:

1. As formas de pensamento, de linguagem e as instituições da


nossa civilização (assim como de todas as outras conhecidas)
possuem uma implicação estrutural com o gênero, ou seja, com
a dicotomia “masculino-feminino”.
2. Os gêneros não são naturais, não dependem do sexo
biológico, mas, sim, constituem o resultado de uma construção
social.
3. Os pares de qualidades contrapostas atribuídas aos dois sexos
são instrumentos simbólicos da distribuição de recursos entre
homens e mulheres e das relações de poder existentes entre eles.
(CAMPOS; BARATTA, 1999, p. 23)

Na mesma obra de organização de Carmen de Campos, Lenio Luiz Streck


refere a forma pela qual o direito e a dogmática jurídica maltratam a mulher,
contribuindo para a sua opressão e para a desigualdade no tratamento.
Já Vera de Andrade, também na referida publicação, pesquisa o funcionamento
da justiça penal no âmbito da violência sexual contra a mulher e conclui:

[...] o sistema penal, salvo situações contingentes e


excepcionais, não apenas é um meio ineficaz para a proteção das
mulheres contra a violência (e eu falo aqui particularmente da
violência sexual, que é o tema da minha investigação), como
também dulica a violência exercida contra elas e as divide,
sendo uma estratégia excludente, que afeta a própria unidade do
movimento (é óbvio queteria que fundamentar isto, mas só vou
poder aqui enunciar esta hipótese). Isto porque se trata de um
sub-sistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de
homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema
de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto
também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a
sua complexa fenomenologia de controle social (Lei, polícia,
Ministério Público, Justiça, prisão), que representa, por sua vez,
a culminação de um processo de controle que certamente inicial
na família, o sistema penal duplica, em vez de proteger, a
vitimação feminina; [...] (CAMPOS; ANDRADE, 1999, p. 112
e 113)

Nesse sentido, no mesmo campo da violência sexual, inserem-se as demais


formas, pois a violência está institucionalizada e conta com muitas faces estruturadas na
sociedade que, dissimuladamente, dominam todas as áreas da vida humana. Do mesmo
modo, Vera Regina Pereira de Andrade (2010, n.p) também afirma que a passagem da
vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema de justiça
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 319

criminal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura da discriminação, da


humilhação e da estereotipia.
A produção, acesso e aplicação da ciência e do direito foi condicionada ao
patriarcado. Mas, com a evolução dos estudos feministas, a visão abstrata sobre a
mulher, isolada das demais características sociais que possam apresentar, foi superada.
Tal mudança foi essencial para libertar a mulher de uma identidade imposta,
culturalmente, pela sociedade desigual. Muitas conquistas surgiram quando o gênero
passou a ser entendido como uma variável concreta entre tantas outras. Mas, ainda
assim, tanto o gênero, quanto outras variáveis, como a cor e a classe social, refletem nas
discriminações que, através de ações e comportamentos, concorrem para a opressão da
mulher e, consequentemente, para a violência.
Assim, gênero, conceituado das mais variadas formas, tornou-se um dos
grandes legitimadores, senão o principal deles, do que, nas palavras de Bourdieu (2012),
chamou de dominação simbólica, que nada mais é do que a incorporação e aceitação de
uma ordem masculina, de forma inconsciente e natural.
Sob a análise de gênero nas relações de poder, o controle e a dominação
referem-se ao masculino, já a submissão, subordinação e dependência são as
características femininas, ostentando as desigualdades. Tais características fazemparte
da subconsciência da sociedade que, inconscientemente atrelam-se a cada indivíduo de
acordo com os simbolismos que representam.
Nessa lógica, Saffioti frisa as diferenciações impostas às mulheres e aos
homens, atrelando suas condutas e comportamentos a determinados estereótipos:

As mulheres são “amputadas”, sobretudo no desenvolvimento e


uso da razão e no exercício do poder. Elas são socializadas para
desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores.
Os homens, ao contrário, são estimulados a desenvolver
condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem.
(SAFFIOTI, 2015, p. 37)

Nas relações de gênero, como um dos problemas que mais merecem, mas
ainda não ganham o suficiente, destaque e atenção é a violência. A distribuição desigual
de poder entre os gêneros fortalece a conjuntura formada de uma sociedade patriarcal e
machista.
Essa distribuição desequilibrada do poder, juntamente com a discrepância
criada naturalmente nos diversos âmbitos da sociedade, arraigou-se na cultura e
espalhou-se para o cotidiano de todas as mulheres, de quaisquer classes sociais,
ocupações ou lugares do mundo. Recorrentemente, as mulheres, discriminadas pelo
gênero, são obrigadas a enfrentarem as mais variadas exposições, humilhações e
violências; em casa, na escola, no trabalho, na rua, na vida da mulher a inferioridade e
submissão insistem em ser imprimidas nas suas imagens.
A hierarquia de gênero ressalta a hegemonia masculina, estabelecendo padrões
a serem culturalmente seguidos. A mulher é vista como objeto, coisa, servindo ao
homem para lhe gerar e satisfazer suas necessidades e, quando contrárias a este
protótipo, desviante da conduta esperada, sofre as consequências da dominação.
A dominação pode ser entendida como uma imposição de vontade a terceiros,
influenciando suas ações ou, melhor, nas palavras de Max Weber:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 320

Por "dominação" compreenderemos, então, aqui, uma situação


de fato, em que uma vontade manifesta ("mandado") do
"dominador" ou dos "dominadores" quer influenciar as ações de
outras pessoas (do "dominado" ou dos "dominados"), e de fato
as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente
relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do
próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações
C'obediência"). (WEBER, 1999, p. 191)

Tal ato pode ser concretizado de inúmeras formas, mas no caso dos homens e
das mulheres, a dominação masculina é legitimada pela própria sociedade através da
crença de superioridade e inferioridade, bem como da naturalização das desigualdades.
Simbolicamente, a estrutura patriarcal e machista da sociedade é perpetuada e difundida
e, através da hierarquização das classes e gêneros, a organização assimétrica e
classificatória é fortalecida.
As opções se tornam escassas para as mulheres, que não encontram outra
alternativa, ou não têm consciência da existência de uma saída, a não ser seguir o que já
está consolidado na sociedade e nas relações de poder e de gênero. Nesse sentido,
Bourdieu traz a ideia do habitus, referindo que este interioriza as estruturas sociais,
naturalizando o processo da divisão nas relações de gênero:

As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente,


as relações sociais de dominação e de exploração que estão
instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim,
progressivamente em duas classes de habitus diferentes, sob a
forma de hexis corporais opostos e complementares e de
princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as
coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções
redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino.
(BOURDIEU, 2012, p. 41)

O habitus é o norteador dos comportamentos dos homens e das mulheres, reproduzindo


os padrões e sustentando a dominação e a submissão, ditando as regras do jogo entre
dominantes e dominados. Destarte, esta maneira socializada de subjetividade refere que
as ações de cada ser individualmente tornam-se influenciáveis pelo conjunto.

A ordem masculina predomina; a visão de mundo é obtida através de suas


lentes. As ideias dos homens são a base de tudo; a história foi construída pelas suas
palavras e a realidade é ditada conforme suas regras; sua autoridade é imposta como a
única correta e predominante.
E sobre essa ordem, cujo alicerce é a dominação, Bourdieu menciona a
segmentação de cada espaço na sociedade, entre homens e mulheres:

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica


que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se
alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante
estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu
local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 321

opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos


homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta,
entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o
estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada,
o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura,
masculinos, e longos períodos de gestação, femininos.
(BOURDIEU, 2012, p. 18)

No mesmo arranjo simbólico, está a violência, tolerável e silenciosa, que habita


os cantos (mas também os centros) da sociedade, tornada banal e aceita
inconscientemente pelas dominadas, como algo inevitável a que estejam naturalmente
submetidas. Esse símbolo da dominação está presente quase de forma imperceptível nos
mínimos detalhes dos comportamentos dos indivíduos, sendo reproduzido da mesma
maneira.
Volta-se à concepção de papéis sociais que, construídos culturalmente,
estabelecem os moldes a serem ocupados por cada indivíduo, categorizando-os e
amarrando-os a regras pré-estabelecidas, repassadas na convivência e na educação.
Assim, a valoração dos papéis do homem e da mulher refletem nas suas identidades e
determinam seus comportamentos de acordo com o que a sociedade espera ou melhor,
acostumou-se a esperar.
Ainda sobre gênero, Saffioti nas suas considerações sobre o tema, acrescenta
informações ao conceito, ampliando-o, mas mesmo assim, retoma um consenso:

Este conceito não se resume a uma categoria de análise, como


muitas estudiosas pensam, não obstante apresentar muita
utilidade enquanto tal. Gênero também diz respeito a uma
categoria histórica, cuja investigação tem demandado muito
investimento intelectual. Enquanto categoria histórica, o gênero
pode ser concebido em várias instâncias: como aparelho
semiótico (Lauretis, 1987); como símbolos culturais evocadores
de representações, conceitos normativos como grade de
interpretação de significados, organizações e instituições sociais,
identidade subjetiva (Scott, 1988); como divisões e atribuições
assimétricas de característicos e potencialidades (Flax, 1987);
como, numa certa instância, uma gramática sexual, regulando
não apenas relações homem-mulher, mas também relações
homem-homem e relações mulher-mulher (Saffioti, 1992,
1997b; Saffioti e Almeida, 1995) etc. Cada feminista enfatiza
determinado aspecto do gênero, havendo um campo, ainda que
limitado, de consenso: o gênero é a construção social do
masculino e do feminino. (SAFFIOTI, 2015, p. 47)

Mais precisamente, a sociedade é organizada e estruturada social e


historicamente através do gênero, dando privilégios específicos aos homens. No que se
refere à violência, o gênero tem destaque na questão da rotina e da codependência; a
mulher, privada de escolha, é submetida a uma práxis de dependência ao homem,
dominante na relação. Assim, Saffioti usa o termo camisa de força para descrever a
prisão na qual as mulheres vivem, sob a crença de que o homem deve agredir, porque o
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 322

macho deve dominar a qualquer custo; e a mulher deve suportar agressões de toda
ordem, porque seu “destino” assim o determina. (SAFFIOTI, 2015, p. 90)
O controle e o medo são integrantes assíduos da organização social de gênero,
marcada pelo patriarcado, pela dominação-exploração, pelo poder e pela subordinação.
As discriminações originadas pela hierarquização são legitimadas pelos preconceitos,
marginalizando os dominados e atendendo aos interesses dos dominantes.
Assim, a estrutura social permite o exercício da dominação masculina, pois
baseia-se na divisão sexual do trabalho de produção e na reprodução biológica e social,
exaltando os homens e moldando as ações, os pensamentos e as percepções de todos.
Até mesmo as mulheres incorporam tais influências e contribuem para a perpetuação da
ordem simbólica. (BOURDIEU, 2012)
Bourdieu ainda refere como se dão na prática os efeitos e a imposição da
dominação simbólica:

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero,


de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das
consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de
percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos
habitus e que fundamentam aquém das decisões da consciência
e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento
profundamente obscura a ela mesma. (BOURDIEU, 2012, p. 49)

A sociedade já está configurada de uma forma propensa ao exercício do poder


como uma força simbólica, logo não se pode atribuir a responsabilidade da opressão às
próprias mulheres:

[...] é preciso assinalar não só que as tendências à "submissão",


dadas por vezes como pretexto para "culpar a vítima", são
resultantes das estruturas objetivas, como também que essas
estruturas só devem sua eficácia aos mecanismos que elas
desencadeiam e que contribuem para sua reprodução. O poder
simbólico não pode se exercer sem a colaboração dos que lhe
são subordinados e que só se subordinam a ele porque o
constroem como poder. Mas, evitando deter-nos nessa
constatação (como faz o construtivismo idealista,
etnometodológico ou de outro tipo), temos que registrar e levar
em conta a construção social das estruturas cognitivas que
organizam os atos de construção do mundo e de seus poderes.
Assim se percebe que essa construção prática, longe de ser um
ato intelectual consciente, livre, deliberado de um "sujeito"
isolado, é, ela própria, resultante de um poder, inscrito
duradouramente no corpo dos dominados sob forma de
esquemas depercepção e de disposições (a admirar, respeitar,
amar etc.) que o tornam sensível a certas manifestações
simbólicas do poder. (BOURDIEU, 2012, p. 52)

A estrutura da dominação já está tão sistematizada que a própria educação das


mulheres é feita com base nessa cultura, passando até mesmo despercebidos os
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 323

ensinamentos, tornando a submissão comum, através da impotência aprendida. O


arquétipo que é aceito e ensinado para as mulheres é um produto social, ou seja, a forma
de representação simbólica da mulher se origina a partir do que a sociedade impõe,
mesmo que silenciosamente. (BOURDIEU, 2012)
A violência é um dos padrões ensinados e reproduzidos, legitimados pela
desigualdade de gênero e, como exige força e poder, é exercida, usualmente, pelos
homens sobre as mulheres. Como principal símbolo disfarçado e invisível da
dominação, está a violência que, integrada (in) conscientemente nas relações sociais e
de gênero, faz da mulher seu objeto e alvo direto e, de tão implícita na sociedade, torna-
se natural e comum.
O monopólio dessa violência simbólica legítima foi concedido aos homens
seguindo na mesma linha do simbolismo da dominação masculina. Essa hierarquia
domina toda a sociedade, naturalizando-se nas experiências diárias dos indivíduos e
reforçando as desigualdades implantadas.
Mas o próprio Bourdieu aponta fatores de mudança, com destaque para as lutas
dos movimentos feministas e o acesso ao trabalho e à educação que elas permitiram às
mulheres. Assim, a ideia de romper com os padrões da dominação vem sendo
construída e, apoiada nas pesquisas e estudos criminológicos, críticos e feministas foi
encontrando espaço. (BOURDIEU, 2012)

CAPÍTULO 2 - CRIMINOLOGIA FEMINISTA

A criminologia como ciência leva o olhar do pensamento criminológico a


diversas searas, presenciando e, pode-se dizer, fundamentando a formação da sociedade
e dos conhecimentos por ela adquiridos. Em meio às suas inúmeras teorias, relaciona o
crime e o criminoso com a construção social, o sistema penal, o trabalho e o poder.
São inúmeras as vertentes criminológicas, das quais a origem remonta os
primórdios do poder punitivo, na Inquisição, que tinha as mulheres como alvos e os
homens como justos e salvadores, sendo um marco para os estereótipos que
acompanhariam os séculos. O procedimento conhecido como caça às bruxas foi a base
do judiciário e, em que pese não tenha sido uma inovação, iniciou a repressão e a
perseguição às mulheres no que, futuramente, seria entendido como direito penal.
(MENDES, 2012)
Dentro da Escola Clássica, reflexões sobre o poder de punir diante da liberdade
individual foram iniciadas, buscando garantir, de certa forma, a proteção do indivíduo
perante o aparato estatal. Com ares filosóficos e jurídicos, veio a racionalização do
castigo, a fim de atender os fins sociais e individuais. Contudo, nestes pensamentos, as
mulheres não ganharam destaque, restando-lhes o papel secundário, diante dos homens
como sujeitos de direitos, recebendo apenas benefícios indiretos. Dessa maneira, foram
surgindo os discursos feministas, que eram contrapostos pelos juristas da época, cujas
manifestações certificavam a desigualdade no tratamento, legitimando-a.
Modernamente, o delinquente ganhou destaque com Lombroso (1876) que
atrelou a natureza humana como razão para a criminalidade, trazendo a antropologia
para a criminologia, inaugurando, junto com demais autores, a Escola Positiva. Trata o
delito como oriundo da periculosidade do criminoso, sendo a pena uma forma de
salvaguarda para a sociedade, que reage diante da prática de delitos. O autor defendeo
determinismo biológico do criminoso nato e a responsabilização dos indivíduos pelos
seus atos. Equitativamente, Enrico Ferri expande as ideias de Lombroso, trazendo
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 324

noções sociológicas para a criminologia e ampliando as causas dos delitos, mas ainda
assim, é mantida a essência da periculosidade social.
Lombroso também estudou as mulheres, contudo, atribuiu a elas diferentes
características como a inércia e a passividade, o que as torna obedientes às leis, mas
aponta as criminosas como calculistas, más, perversas. Entretanto, as vítimas dos delitos
continuavam a ser ignoradas, ganhando espaço somente com o surgimento do ramo da
vitimologia, que iniciou seus estudos com teses ofensivas e injustas, como as que
defendiam que a vítima colocava-se nesta condição por conta própria ou fornecia as
oportunidades ao criminoso, o que perdurou até pouco tempo atrás, principalmente
quando quem sofria os crimes eram mulheres.
Dinamizando a criminologia, as análises foram voltadas para o controle social,
trazendo o que ficou conhecido como labeling approach ou teoria do etiquetamento
social, que modificou a visão criminológica. Segundo Mendes:

Com o labeling approach desmascara-se a suposta legitimidade


de todo o sistema de valores até então sustentado a partir da
constatação de que o crime não pode ser estudado como um
dado. Mais do que isso, ele precisa ser visto como o centro de
uma teoria da criminalidade. Desta forma, para os seguidores do
labeling approach o fenômeno do crime precisa ser estudado a
partir de duas instâncias.
A primeira é a da definição do comportamento criminoso por
normas abstratas. E a segunda, a da reação das instâncias
oficiais contra esse comportamento delitivo anteriormente
definido. Entre estas duas instâncias encontra-se a constatação
fundamental da teoria: o efeito estigmatizante. (MENDES,
2012, n.p)

Logo, nesse entendimento, as relações sociais, através de processos e


construções, condicionam comportamentos e determinam os desvios. Através da
interação social, confere-se aos indivíduos determinadas qualidades, que permitem a
análise das condutas desviadas e da reação social.
Já na sua concepção crítica, a criminologia vai muito além da teoria,
identificando, aprofundadamente, as origens, as consequências, o funcionamento das
ações criminológicas. A criminologia crítica baseia-se no estudo e na inter-relação de
três denúncias centrais, como observam Gauer e Martins:

1. A crítica econômica da exploração capitalista através do


sistema de produção e do aprisionamento; 2. A percepção da
reação social aos processos de criminalização e vitimização
marcados pela seletividade (de raça, de gênero, de classe, de
territorialização etc.) e 3. A necessidade de análises micro e
macro para compreensão dos processos de controle social
(formal e informal), criminalização e encarceramento [em
massa]. (GAUER; MARTINS, 2020, n.p)

Analisa-se a distribuição desigual do poder e a legitimação das desigualdades


no sistema de justiça criminal, onde os recursos, a divisão dos riscos e as imunidades
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 325

também são partilhadas assimetricamente, em razão das variáveis às quais a construção


social é ligada, como as vantagens e desvantagens, força e vulnerabilidade, dominação e
exploração, centro e periferia (CAMPOS; BARATTA, 1999).
Os críticos relacionam o empirismo com a teoria social e, segundo Mendes, o
foco passa a ser a normalidade e a desordem como um problema estrutural da
sociedade. Apontam o sistema penal como contraditório, pois de um lado, afirma a
igualdade formal entre os sujeitos de direito. Mas, de outro, convive com a
desigualdade substancial entre os indivíduos, que determina a maior ou menor chance
de alguém ser com a etiqueta de criminoso. (MENDES, 2012, n.p)
Busca-se decifrar a atuação seletiva do sistema de justiça criminal, discutindo a
complexidade da relação entre o sistema punitivo e estrutura social que, fundamentados
na diferenciação dos papéis sociais e na posição social dos indivíduos, fortalecem as
vulnerabilidades.
Entre as dimensões que formam o sistema de justiça criminal, Vera de Andrade
aponta a ideológica-simbólica que, unindo a oficialidade, através das ciências criminais,
de suas declarações e dos operadores do sistema juntamente com a lei, e o senso comum
punitivo, com o público em geral e por meio da ideologia penal dominante. Assim, dá-
se o que a autora denomina como (auto) legitimação oficial do sistema:

Com efeito, é precisamente a lei e o saber (ciências criminais),


dotados da ideologia capitalista e patriarcal, que dotam o
sistema de uma discursividade que justifica e legitima sua
existência (ideologias legitimadoras), co-constituindo o senso
comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto
dos mecanismos de controle social, com
ênfase,contemporaneamente, para a mídia. (ANDRADE, 2010,
p. 58)

Ademais, no que diz respeito à ideologia, o sistema de justiça criminal promete


o que não pode cumprir, especialmente com a proteção supostamente oferecidaatravés
da retribuição, prevenção e reabilitação. Este apelo até mesmo convence,
temporariamente, algumas pessoas, contudo segue sendo um mito no que se refere à
igualdade no tratamento e a efetividade da sua metodologia.
Vera de Andrade também evidencia que a eficácia simbólica do sistema de
justiça criminal sustenta uma eficácia instrumental invertida:

A eficácia invertida significa, então, que a função latente e


real do sistema não é combater (reduzir e eliminar) a
criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando
segurança pública e jurídica, mas, ao invés, construí-la seletiva
e estigmatizantemente e neste processo reproduzir, material e
ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de
classe,gênero, raça). (ANDRADE, 2010, p. 59)

Desse modo, as assimetrias e os estereótipos por elas alimentados, que


reproduzem os preconceitos e as discriminações e intensificam as hierarquias, fazem
parte da mecânica de controle que habita nas estruturas sociais. Isso faz com que os
indivíduos que integram a sociedade atuem de acordo com essa organização, mesmo
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 326

sem perceber, formando os papéis de controlado e controlador, dominante e dominado e


definindo quem ocupará cada função na criminalização e na vitimização.
A conceituação de teoria crítica é objeto de discussão entre os teóricos, mas
divide-se em gerações, que divergem nos pontos de vista e maneiras de análise, mas
encontram sua semelhança na própria crítica e no estudo da sociedade, de acordo com o
contexto em que se encontram.
E é dentro dessa noção de contexto que se insere o ponto inicial da teoria
crítica feminista, seguindo os acontecimentos sociais, em meados das terceira e quarta
gerações, quando o movimento feminista alcançava suas conquistas mais significativas.
A primeira onda do feminismo é marcada pela luta por direitos básicos, o alcance de
espaço e de voz, com o direito ao voto e a inserção na esfera pública; na segunda,
questiona-se o lugar da mulher na sociedade, abarcando os direitos reprodutivos e
sexuais; na terceira, ganha força a interseccionalidade, somando as noções de raça,
gênero e classe e a estrutura da sociedade.
Em resumo, os movimentos feministas têm como escopo alcançar visibilidade
para a figura da mulher, conquistar espaços, públicos e privados, direitos
ereconhecimento, entender e acabar com as desigualdades, adquirir efetivamente a
dignidade que a todos é garantida.
A criminologia feminista surge a partir da ideia do estudo da mulher como
cometedora de delitos e como vítima destes, visto que os estudos criminológicos
careciam dessa visão, uma vez que as pesquisas eram feitas por pesquisadores homens e
através de um viés de análise altamente masculino.
Foi somente com a emergência dos movimentos feministas que a matéria
feminina passou a integrar as considerações criminológicas. Assim, a opressão,
submissão, desigualdades, dominação passou a ser produto de inúmeras pesquisas,
alcançando o poder público e as políticas e legislações por ele elaboradas.
Desse modo, conseguiu-se espaço e iniciou-se a discussão teórica e política do
ponto de vista feminista e, na busca pelo entendimento da sociedade e da estrutura na
qual estão inseridas as mulheres, ganhou força e espaço o estudo de gênero,
especialmente na área da criminologia.
Tanto a criminologia crítica como a feminista têm o sistema de justiça criminal
como principal instrumento de análise e, na junção de ambas, estuda-se a atuação do
referido sistema sobre a mulher, ou seja, como esta é tratada diante daquele.
A teoria crítica feminista é marcada pela inclusão do subtexto de gênero nas
demandas da crítica social, trazendo o viés feminista, teorizando e analisando os
movimentos e as ideias do feminismo. A criminologia feminista resulta numa noção
que, junto com a crítica, busca defender a igualdade de direitos; estudando o
patriarcado, a submissão, a repressão, a dominação e a diferenciação de gênero na
criminalidade. Muitos debates são formulados a partir dessa perspectiva, alinhando a
realidade da mulher com a prática penal, tanto como vítimas, para as quais se busca
proteção, quanto como agentes, procurando-se obter as mínimas garantias.
As ideias do feminismo visavam, primeiramente, a garantia de direitos
igualitários entre homens e mulheres, especialmente no que diz respeito à educação, ao
trabalho e à cidadania. A vontade das mulheres era controlada socialmente, assim como
seus corpos; elas eram reprimidas e oprimidas, vivendo à mercê do poder dos homens.
Esse paradigma precisava ter fim.
As batalhas prosseguiram com a pretensão de findar com a dominação dos
homens, estudando sua origem e consequências, analisando a subordinação
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 327

tradicionalmente imposta às mulheres e as causas da opressão. Outros assuntos foram


sendo incluídos, como a influência do capitalismo, o patriarcalismo, questões raciais e
culturais, culminando na investigação dos papéis impostos socialmente e
estruturalmente às mulheres.
Nesta senda, feminismo e criminologia entrelaçam-se através das questões de
gênero, racismo, dominação, poder e desigualdades. Entre os pontos de análise da
criminologia feminista, que é a intersecção da criminologia, da crítica e do feminismo,
está a dupla punição da vítima, a visão que se tem sobre as mulheres e o local que elas
ocupam no direito penal e na sociedade. E no Brasil, tais ideias enfrentam obstáculo na
institucionalização das demandas feministas.
A doutrina e a jurisprudência, além da legislação, e até mesmo os
pesquisadores dentro da criminologia, trazem interpretações preconceituosas aos
direitos das mulheres, excluindo as discussões e teorias feministas da criminologia. Ou
existem normas diretamente discriminatórias da mulher, o conhecido como direito
masculino, ou elas são aplicadas de forma a discriminá-las.
Assim, a criminologia feminista busca deixar frente a frente a questão feminina
com a questão criminal dentro do contexto social, analisando historicamente as questões
de gênero e trazendo ao debate tópicos que envolvem as mulheres, o sistema penal e a
criminalidade, tornando ainda mais visíveis as dificuldades e obstáculos enfrentados por
uma mulher na sociedade e buscando políticas de enfrentamento.
Questionando a dominação sexista e a subordinação que as mulheres
enfrentam, a teoria crítica feminista encontrou, tanto na esfera pública, quanto na
privada, seja pelo sexo/gênero ou outros motivos determinantes, sob a responsabilidade
do patriarcado, do capitalismo e do racismo, um sistema de exploração e opressão
enfrentados pelas mulheres, individualmente ou em grupos.
As ideias feministas contribuem tanto para o fim das desigualdades, dos
sexismos, da inferioridade das mulheres, quanto na busca de espaço para questões de
gênero na pesquisa que, seguindo a influência da sociedade em geral, é marcada pela
subordinação das mulheres e as disparidades que as cercam.
Os discursos machistas também fazem-se presentes na academia, nas
instituições, no direito, espelhando a realidade social enfrentada. Na criminologia não é
diferente, pois em uma área criada e dominada por homens, feita para eles e sobre eles,
a utilização das mulheres como objeto de estudo foi descartada.
Assim, como forma de dar visibilidade às mulheres no sistema de justiça
criminal e buscando fazer com que sejam lembradas e não oprimidas, surgiu essa nova
criminologia, agora sob um olhar feminista. Através dessa epistemologia fez-se uma
nova interpretação das teorias já criadas, mas muito além disso, analisou a condição
feminina dentro do sistema penal e a violência enraizada, trazendo novos discursos e
perspectivas; questionou o lugar reservado à mulher no direito penal e expôs a
seletividade de gênero e raça.
Permitiu-se refletir sobre novas noções, incluindo questões como identidade,
igualdade e diferenças, modificando os estereótipos formados. O cerne da teoria é o
questionamento à conjuntura dominante que, sob os moldes das ditas neutralidade e
universalidade excluíam e escondiam as mulheres.
Inicialmente, o objetivo foi a desconstrução do padrão machista e sexista; na
sequência, com a evolução das ideias e pensamentos, chegou-se à criação de categorias
próprias de estudo. Nesta segunda etapa, o que era invisível, foi exposto; foi denunciada
a ocultação feminina e, em especial, o flagelo da violência.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 328

Mas, mesmo assim, concretizando a desigualdade de gênero intrínseca à


sociedade, a participação feminina e o prestígio dado às mulheres, que já foram
ausentes, ainda são irrisórios. Enraizada cultural e institucionalmente, a hierarquização
de gênero e a submissão das mulheres aos homens, ainda perdura, mesmo após
incontáveis avanços, pois estes, longe dos propósitos da luta feminista, alcançam
somente alguns segmentos femininos.
A organização da sociedade, fundada no patriarcado e no controle social das
mulheres, tem o gênero como atestado de dominação e inferiorização, o que é retratado,
perfeitamente, no sistema penal. Dentro dessa seara, a violência é a base e está
institucionalizada estatalmente, presente tanto no setor público, quanto no privado,
subjuga as mulheres em todos os seus papéis, como a infratora ou como a vítima; a
punitividade é dobrada, triplicada.
O sistema de justiça criminal revela e reitera a estrutura e o simbolismo de
gênero e, consequentemente, o patriarcado. Eivado de seletividade, mostra-se
insuficiente e ineficaz para proteger a mulher. Assim expõe Andrade, sobre a
insuficiência do referido sistema diante da complexidade da violência, suas origens e
consequências:

[...] não é capaz de prevenir novas situações de violência


(ANDRADE, 2012, p. 131); subvaloriza as especificidades das
violências de gênero quando a mulher ocupa a condição de
vítima (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 152) – violências
perpetradas, frequentemente, no ambiente doméstico e
decorrentes, muitas vezes, de relações afetivo-familiares –; e
agrava a punição quando a mulher é sujeito ativo do delito,
submetendo-a a penalidades extraoficiais não aplicadas aos
homens – estupros e humilhações perpetradas por agentes
penitenciários, negação da maternidade, revistas íntimas,
escassez de absorventes, etc. (ANDRADE, 2016, p. 19)

A mulher sofre no âmbito privado um tipo de pena diferente da pública, que se


dá através do controle informal da sociedade, por meio da violência. Mas mesmo assim,
essa pena se reproduz também no âmbito da justiça, quando são estigmatizadas e
silenciadas, continuando à mercê dos violadores de seus direitos.
No mesmo sentido, anotam Gauer e Martins acerca do tratamento das mulheres
no direito penal:

É através da cooptação das mulheres como duplamente


criminosas - sempre na dupla exceção - que o direito penal
sustenta sua ordem patriarcal, seja operando sobre o feminimo
sua perpetuação como vítima - suplicante de “amparo” e incapaz
do agir - ou em transgressora, fora da lei masculina e das
expectativas de gênero. Enfim, sobretudo, excluída, senão
sequestrada por estas duas figuras pré-estabelecidas no processo
de produção do discurso das agências de punição. (GAUER e
MARTINS, 2020, n.p)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 329

Dessa forma, um dos principais anseios da teoria crítica feminista é fazer com
que as mulheres tornem-se preocupação do direito penal, a fim de, pelo menos, diminuir
a violência, punindo de forma mais acentuada os agressores, expandindo as condutas
positivadas como crime, protegendo e oferecendo segurança às vítimas.
Com a intervenção do direito até mesmo no domicílio das mulheres, surgem
novas salvaguardas às vulnerabilidades que encaram. Assim, as violações aos direitos
seriam punidas também na esfera privada, tutelando e garantindo uma vida
minimamente digna.
Mas, a prática se mostra muito diferente das formalidades; as promessas de
proteção não são efetivamente cumpridas e, muito menos, suficientes para amparar as
mulheres e modificar a situação de violência. Incontáveis vezes, acontece até mesmo o
contrário do esperado, mormente em razão da seletividade do sistema.
Mesmo com a existência de legislações destinadas a defender a mulher e
responsabilizar os agressores, a eficácia está distante e os obstáculos sempre presentes.
Muitas mulheres ainda vivem à mercê da dependência a que são submetidas, sem acesso
à justiça, sem a garantia dos direitos que lhes são inerentes. Permanecem vítimas dos
sistemas e da realidade.
São esses os motivos pelos quais as teorias críticas feministas vêm, ao longo
dos anos, tomando novos rumos, em particular no que diz respeito à colonialidade,
categoria emprestada dos assuntos que envolvem a subalternidade e a (in) dependência
latino-americana. Dentre os círculos sociais marginalizados, a união dos grupos
vulneráveis permite um estudo epistemológico mais aguçado e concreto aos teóricos
feministas, propiciando uma abordagem mais abrangente e interpretativa sobre as
questões que envolvem a mulher, a subjugação à qual se sujeita, a discriminação, a
violência.
A exploração da categoria do patriarcado também serve como fonte para a
crítica feminista e, através das noções de Estado, liberalismo, capitalismo, sociologia e
poder, permite uma análise do sistema como um todo e suas implicações acerca da
dominação que recai sobre as mulheres, sobretudo objetivando aplicar a variante da
despatriarcalização no tema. Ademais, outra conceituação bastante presente é a da
interseccionalidade, com destaque para questões envolvendo os direitos humanos das
mulheres, formando um emaranhado de fatores que incentivam as opressões sofridas e
as desigualdades enfrentadas.
Enfim, em meio a tantos tópicos de análise e discussão, entre os alvos da teoria
crítica feminista está o poder judiciário e suas práticas, com a reprodução das
desigualdades e a produção de uma verdade jurídica distante da realidade, reforçando e
contribuindo para a manutenção das desigualdades, da violência e da discriminação,
tópicos aos quais foram destinados tantos anos de luta e pesquisa.
O Estado pode ser visto tanto como um meio de conquistas, quanto como uma
barreira para o feminismo. Ao longo dos tempos, foi ele que manteve as mulheres à
margem da sociedade, suprimindo direitos e contribuindo para a vulnerabilidade e o
medo que as aflige. Mas também, é através dele que a demanda feminista ganhou
espaço nas políticas públicas, foi chegando nele que a voz dos movimentos conseguiu
fazer ouvir suas preocupações.
Como principal meio de comunicação entre o feminismo e a criminologia
crítica, estão os esforços no combate da violência contra a mulher, na tentativa de
reconhecimento de tal assunto como problema social e de ordem pública (GAUER e
MARTINS, 2020).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 330

O status de vulnerável das mulheres tornou-se objeto de políticas públicas e


legislações, visando a proteção feminina, a criminalização dos atos e a punição dos
agentes. Entretanto, mesmo formalmente garantidos os direitos, a ineficácia do direito
penal ainda vige na esfera da violência contra a mulher, o que, corroborado pela
revitimização à qual são submetidas, salienta a institucionalização do patriarcado e da
dominação masculina no sistema de justiça criminal.

2.1 - Violência contra a Mulher

O conceito de violência não se caracteriza como universal; os entendimentos


sobre o que significa variam de acordo com a cultura de cada povo, como por exemplo,
entre ocidente e oriente. Da mesma forma, entre as várias maneiras pelas quais a
violência faz-se presente, apenas parte delas recebem atenção como tal, especialmente
pelo Estado. (MORATO et al, 2009)
A palavra violência tem, no dicionário, sua complexidade resumida à
qualidade de violento; ato violento; ato de violentar; ação violenta, com uso da força
bruta. Para a OMS (Organização Mundial da Saúde), a violência é o uso intencional da
força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou
contra umgrupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de
resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou
privação.
Como um elemento oriundo do desenvolvimento humano, a violência é
explicada através de várias teorias. Entre elas, cita-se Lombroso, com o Criminoso
Nato, que aponta a biologia como origem dos pensamentos/ações criminosas, referindo
o homem como um delinquente desde o seu nascimento. Ainda, há aquelas que tentam
explicar a violência através da influência do meio, dos demais indivíduos e coisas, bem
como da forma como a pessoa que se utiliza dela, sente-se e interage. Outras, ainda,
deixam a responsabilidade da violência com o poder, a maneira pela qual é exercido, ou
até mesmo por quem o é.
Na psicologia, o que se entende por violência vai muito mais além, sendo
compreendida, por autores como Martín-Baró como um fenômeno social e individual,
um processo histórico, produto das relações sociais de uma sociedade. Resume-se no
uso da força, física ou não, em excesso contra alguém e, por ter múltiplas e
indeterminadas causas, da mesma forma também são suas manifestações.
Os casos de violência abrangidos pelo Direito Penal são inúmeros, alcançando
variadas formas de manifestação, mas aqui, discute-se as que ocorrem, geralmente, no
seio familiar, os de violência doméstica, especialmente a psicológica e contra a mulher.
O conservadorismo e o patriarcalismo arraigado na sociedade legitimam a
violência contra a mulher, na medida em que costumeiramente autorizam o homem a
exercer o seu poder e domínio sobre a mulher, legitimando atos violentos e mantendo
impunes os agressores. A assimetria das relações sociais e da dominação, oriundas das
questões de gênero, que se apresentam institucionalizadas e naturalizadas, justificam e
atestam a violência contra a mulher, que é caracterizada como violação aos direitos
humanos e conforme a Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres:

[...] a expressão “violência contra as mulheres” significa


qualquer acto de violência baseado no género do qual resulte, ou
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 331

possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico


para as mulheres, incluindo as ameaças de tais actos, a coacção
ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida
pública, quer na vida privada. (ONU, 1993, n.p)

Esse tipo de violência, ganhou maior visibilidade mediante ações dos


movimentos feministas e destaque no direito com a Organização dos Estados
Americanos, quando em 1994, reconheceu a violência contra a mulher como violação
aos direitos humanos das mulheres e firmou a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ou Convenção de Belém do Pará,
internalizada no Brasil pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. (MORATO et al,
2009)
As mobilizações feministas ainda resultaram na promulgação da lei nº 11.340
de 7 de agosto de 2006, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, que:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar


contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o
Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. (BRASIL, 2006, online)

No entanto, em que pese inúmeros direitos conquistados pelas mulheres através


da luta feminista, a violência ainda é uma sombra em suas vidas, atingindo uma parcela
gigantesca da população e deixando marcas irreparáveis.
A violência doméstica (e familiar contra a mulher), que alcança patamares
gritantes, é conceituada, pela Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º, como qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial, ou seja, são abusos físicos, psicológicos, ou
de qualquer outra natureza, provocados por membros do núcleo familiar, no âmbito de
convívio ou fora dele ou em qualquer relação íntima de afeto que causem danos à
vítima.
Tal dispositivo veio trazer uma segurança, pelo menos em tese, para as
mulheres, buscando ao menos, diminuir a impunidade que recai sobre os agressores;
acabar com a cultura de violência que as cerca; garantir direitos mínimos às mulheres,
criando mecanismos a fim de prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher.
O art. 7º da lei 11.340/2006 aponta as formas de ocorrência de violência
doméstica e familiar contra a mulher, quais sejam, a física, a psicológica, a sexual, a
patrimonial e a moral.
Todavia, nos espaços públicos, locais nos quais deveria ser garantida a
segurança e a proteção da mulher, ainda está perpetuada a violência institucionalizada
estrutural e culturalmente. Especialmente no caso que trata este trabalho, das mulheres
como vítimas da violência, é de grande vulto a revitimização à qual são submetidas que,
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 332

com a influência de diversos fatores, aumentam ainda mais a vulnerabilidade feminina


diante de um Estado machista.
Em que pese as legislações e os direitos garantidos às mulheres tenham sido
grandes conquistas, a aplicabilidade e a eficácia não são vistas na realidade. A violência
ainda é um mal presente e cotidiano na vida de uma boa parte da população feminina,
especialmente em casa e pelas pessoas mais próximas a elas.

2.2 - Violência Psicológica

Entre os tipos de violência doméstica, está a psicológica que, na maioria dos


casos, precede às demais, abrindo as portas, tornando-se cada vez mais constante e
mostrando-se como uma das mais duras e causadora de impactos não-físicos profundos.
Integra o cotidiano de muitas mulheres e, comumente, é imperceptível, diferente de suas
sequelas, que se mostram inesquecíveis e devastadoras.
Marta Larrosa destaca a gravidade extrema que pode chegar a alcançar,
comparando a violência psicológica com a física, dentro do âmbito familiar:

Se configuran así los malos tratos como un fenómeno


oculto del que sólo conocemos una mínima parte, la punta
de un iceberg cuya extensión real aún desconocemos con
exactitud. Y más aún cuando las agresiones familiares se
traducen en maltrato psicológico cuya intensidad alcanza
límites de gravedad superiores incluso que los que resultan del
ejercicio de la violencia física. (LARROSA, 2011, p. 05)

A violência psicológica é identificada por meio de atos verbais ou não,


realizados de forma isolada ou repetida, causando danos emocionais na vítima.
Inúmeras vezes são encobertas por desculpas como a personalidade forte do agressor ou
ações sem intenção. Dão-se, entre outras formas, por humilhações, ameaças, isolamento
social, manipulações, chantagens emocionais, insultos, ofensas, manejo das ações e dos
pensamentos da vítima, com distorção de fatos.
Tais condutas iniciam, muitas vezes, de forma sutil e lenta, até virarem rotina e
deixarem a mulher em situações que se encontre impossibilitada de sair ou pedir ajuda.
Outrossim, os prejuízos causados são fardos pesados que as vítimas carregam ao longo
de sua existência, afetando todos os âmbitos de sua vida e deixando feridas, por vezes,
incuráveis. Nesse sentido, SAFFIOTI, destaca que:

[...] feridas do corpo podem ser tratadas com êxito num grande
número de casos. Feridas da alma podem, igualmente, ser
tratadas. Todavia, as probabilidades de sucesso, em termos de
cura, são muito reduzidas e, em grande parte dos casos, não se
obtém nenhum êxito. (SAFFIOTI, 2015, p. 19)

As mulheres são tratadas de uma forma que afete sua própria identidade e
autodeterminação; vivem como prisioneiras do medo e da dominação. São submetidas a
situações vexatórias, se tornam submissas da vontade dos seus agressores e dependentes
emocionalmente deles.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 333

O ciclo da violência se repete sem parar e segue gerando efeitos sobre a vida e
a saúde das vítimas, assim como afirma Gabriela Echeverria:

Como consequências para a saúde emocional e mental, causados


pela violência psicológica sofrida pela mulher, Ferreira
(2012) e Rodrigues (2014) pontuam vários agravos, como:
isolamento social, vergonha, culpa, medo de represálias,
isolamento emocional, desconfiança, ansiedade, depressão,
transtorno de estresse pós-traumático, transtornos no sono,
na alimentação, baixa autoestima, pensamentos suicidas e
tentativas de suicídio, com êxito ou não. Apesar da
invisibilidade dos danos sofridos, isto pode deixar sequelas
bem visíveis, como processos de somatização e interferência na
construção da identidade e subjetividade. Pode-se dizer,
contudo, que a violência psicológica contra a mulher é a forma
mais cruel delas, porque, além de deixar sequelas
irremediáveis, pode durar até mesmo toda a vida, invadindo
os limites do bem-estar, causando pânico e provocando danos
mentais que podem anular e destruir a personalidade de uma
pessoa. (ECHEVERRIA, 2018, n.p)

Para José Navarro Góngora, a violência psicológica, representada pelo abuso


emocional divide-se em alguns tipos, de acordo com os objetivos do agressor:

Primero, hay un tipo de abuso emocional que es percibido como


un indicio precursor de las agresiones, en cuyo caso sirve para
disparar la respuesta de miedo y sumisión. [...] Un segundo tipo
limita el acceso a recursos que hagan sentir a la víctima que
dispone de personas con las que cultivar relaciones de amistad y
que, eventualmente, le permitirían acceder a visiones
alternativas a la de la pareja y ayudarle. La limitación de acceso
lo es también a recursos materiales que le permitan autonomía y
la sensación de tener algo, lo que una cultura consumista como
la nuestra valora en grado extremo. [...] Un tercer tipo se plantea
como objetivo deteriorar la imagen de competencia intelectual y
emocional de la víctima, algo particularmente tóxico en
términos de salud mental. [...] En cuarto lugar, el victimario
puede hacer sentir su presunta superioridad intelectual o
emocional de una manera hostil que tiene como efecto degradar
la imagen de la víctima (su objetivo). (GÓNGORA, 2015, p. 50)

No conceito formulado pelo Instituto Maria da Penha179, a violência


psicológica pode ser identificada por qualquer conduta que cause dano emocional e
diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher;
ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.

179
INSTITUTO MARIA DA PENHA. Violência psicológica. Disponível em:
https://www.institutomariadapenha.org.br/lei-11340/tipos-de-violencia.html. Acesso em 06 jun. 2022.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 334

Para a Lei Maria da Penha, enquadra-se em:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a


mulher, entre outras:
[...]
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou
que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica
e à autodeterminação; (BRASIL, 2006, online)

Recentemente, a lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021 trouxe para o Código


Penal, no art. 147-B o crime de Violência psicológica contra a mulher, tipificando a
modalidade já constante na lei nº 11.340. O tipo penal surgiu em mais uma tentativa de
tornar efetivas as punições sobre a violência praticada contra a mulher, já que se
encontrava dificuldade na subsunção de acordo com a conduta do agressor.
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e
perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a
controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de
ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde
psicológica e autodeterminação: (Incluído pela Lei nº 14.188,
de 2021)
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a
conduta não constitui crime mais grave. (BRASIL, 2021, online)

No entanto, em que pese esteja positivado o próprio crime de violência


psicológica, este mal aflige um número muito maior, que não chegam a ser
contabilizados por inúmeros motivos. No Brasil, em que pese vigore o Estado
Democrático de Direito, com garantia de direitos fundamentais, sob a bandeira da
equidade, os casos concretos diferem um pouco da teoria e do papel. O cotidiano das
mulheres brasileiras é marcado dolorosamente pela violência e pelo silêncio.
Esse tipo de violência emocional afeta o âmago da mulher que sofre e, em
razão da difícil percepção, até mesmo pelas próprias vítimas, e da sutileza com a qual
vai se perpetuando, sujeita a sofrente a uma vida de abusos. A autoconfiança, a
autodeterminação e a autoestima da mulher vão sendo diminuídas até a inexistência,
deixando-a sem identidade ou liberdade, cedendo ao agressor os direitos e as decisões
sobre si.
Entre as razões pelas quais a violência psicológica contra a mulher integra a
cifra oculta, ganha destaque neste trabalho a questão da verdade jurídica, como barreira
produzida pelos operadores do direito, limitando a chegada dos casos correspondentes à
realidade no poder judiciário.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 335

CAPÍTULO 3 - A VERDADE JURÍDICA SOBRE A VIOLÊNCIA


PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER

3.1 - O que é a Verdade Jurídica?

Foucault em sua obra A Verdade e as Formas Jurídicas, aborda o conhecimento


como invenções prévias da sociedade. Refere os sujeitos de conhecimento e, por
conseguinte, as relações de verdade como oriundas dos aspectos políticos, sociais e
econômicos. Também, já falava em uma verdade formada de acordo com os lugares na
sociedade, de acordo com as regras de jogo, eivadas de subjetividade.

Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo


menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a
verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são
definidas — regras de jogo a partir das quais vemos nascer
certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos
tipos de saber —e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer
uma história externa, exterior, da verdade. (FOUCAULT, 2002,
p. 11)

Entre as formas de definição dessas subjetividades, aponta as práticas


judiciárias como uma das principais. A base da análise está em como as formas jurídicas
constroem as formas de verdade, ou seja, na evolução destas dentro do direito penal
como construtoras das formas de verdade. (FOUCAULT, 2002)
Especificamente, a expressão verdade jurídica foi resultado de uma pesquisa de
MILLS (2016), onde, sob o título Ações situadas e vocabulários de motivos, o autor
analisa os motivos como impulsionadores subjetivos de ação, podendo ser considerados
como típicos vocabulários com funções verificáveis em situações sociais delimitadas.
Os motivos são imputados abstratamente como explicações de
comportamentos, mas essa aplicação diverge da análise dos mecanismos linguísticos
observáveis da imputação e de como eles funcionam na conduta. Têm-se os motivos
deacordo com a forma de interpretar as condutas dos atores sociais, observando-se as
razões dadas às ações humanas.
Conforme o autor, é necessária uma cronologia para verificar as funções de
especificação, controle e integração que um discurso cumpre nas ações humanas:

Primeiro, devemos demarcar as condições gerais em que essa


imputação de motivo e sua revelação parecem ocorrer. Em
seguida, temos de oferecer uma caracterização do motivo em
termos denotáveis e um paradigma explicativo do porquê de
certos motivos serem verbalizados em vez de outros. Então,
indicaremos os mecanismos de ligação entre os vocabulários de
motivos e os sistemas de ação. (MILLS, 2016, n.p)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 336

Para ele, os motivos surgem na forma de respostas para perguntas, sendo


representados através de palavras e atribuídos às consequências previstas ou intentadas
por meio das ações.
Os vocabulários de motivos são diferentes em cada parte da população e de
acordo com a situação apresentada ou momento histórico explorado. No geral, são os
principais responsáveis pelo controle social, pois aqueles que acompanham o cotidiano
de determinada conjuntura já têm as razões e justificativas pré-definidas para as
circunstâncias que se apresentam.
O motivo visto como adequado, é aquele que vai de encontro às expectativas
dos observadores e dos questionadores, fazendo jus àquilo que eles consideram
adequado ou satisfatório. Logo, o motivo é aceitável quando representa uma
justificativa plausível.
Também podem ser vistos como estratégias de ação quando envolvem outras
pessoas, trazendo a diplomacia para a escolha dos motivos e estabelecendo condições
sobre quais seriam as condutas adequadas. Utilizados nas soluções de conflitos, mediam
e orientam comportamentos e ações. Podem ser utilizados para justificar ou até mesmo
criticar uma ação, bem como para influenciar terceiros. Para ZNANIECKI (1936 apud
MILLS, 2016, n.p), são instrumentos sociais, ou seja, ferramentas que apontam qual o
agente será capaz de influenciar (a si mesmo ou outras pessoas).
Mills ainda menciona os conceitos de motivos reais, motivo inconsciente,
motivos verbalizados, motivos mistos, conflitos motivacionais, elucidando as falhas e as
aplicações dessas formas de explicação das ações sociais.
Por fim, a verdade jurídica é um termo construído a partir das falas dos agentes
do sistema de justiça e de como são registrados os acontecimentos nos processos e
demais documentos afins. Difere-se da realidade, pois busca-se encontrar a verdade
mais adequada, admitida no direito, de maneira que coloque fim ao litígio através da
garantia da pacificação e do bem-estar social.
Assim, com base nos autores estudados, essa forma de verdade representa a
visão de quem a profere e determina, a fim de satisfazer fins específicos. Considera-se
essa verdade como uma espécie de ficção, não a mais justa ou mais correta, mas aquela
que atende as expectativas.
A verdade produzida é aquela que garante a segurança jurídica, que não deixa
brechas, que não exponha a violência enraizada na sociedade, ou seja, uma ficção que
cumpra com os objetivos do ideal de justiça, atendendo ao interesse coletivo das
maiorias.

3.2 - A verdade jurídica na pesquisa e na prática da violência psicológica contra a


mulher

Em pesquisa que utilizou o conceito de verdade jurídica de Mills, Maria Gorete


Marques de Jesus abordou a verdade policial como verdade jurídica, ou seja, analisou
como a polícia integra as lacunas deixadas pelas normas e determina,
discricionariamente, quais fundamentos definem os crimes. Refere que as crenças da
sociedade contribuem para o exercício do poder estatal de prender e punir e,
consequentemente, para uma aceitação sem questionamentos daquilo que é produzido
pelo vocabulário policial. (JESUS, 2020)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 337

No mesmo sentido vai a presente pesquisa, na qual, a fim de averiguar a


violência psicológica contra a mulher em sua realidade na Comarca de Sant’Ana do
Livramento, investiga-se a verdade jurídica produzida por parte dos agentes da justiça
criminal - juízes. Foram analisados 100 (cem) processos, dentre os quais alguns
merecem destaque pelo conteúdo, manifestações e expressões utilizadas acerca do tema.
O filtro da pesquisa deu-se pelos processos que envolvem violência contra a
mulher, especialmente aqueles que contêm pedidos de medidas protetivas de urgência
em favor das vítimas. Analisou-se, em especial, as decisões proferidas pelos juízes que
atuaram nos processos criminais da Comarca no marco temporal analisado. Cabe
ressaltar que, atualmente, a Vara Criminal encontra-se sem juiz titular, enfrentando
muitas mudanças nos entendimentos conforme as substituições.
Na maioria esmagadora dos processos analisados, o agressor tem contato com a
vítima através de um relacionamento amoroso que ainda vige ou que já teve fim, pelo
menos para um dos dois. Há casos de relações duradouras, com mais de 10 (dez) ou 20
(vinte) anos, mas também casos que perduraram por um curto período de tempo. Por
vezes a violência ocorre em um namoro, outras em casamentos ou uniões estáveis ou,
ainda, após o término do vínculo entre agressor e vítima. Em raras vezes, a violência
advém dos pais, filhos, genros ou outros. Na tabela abaixo, pode-se observar a
incidência de cada agressor dentro da pesquisa:

Tabela 1 - Quem são os agressores nos processos analisados?


Agressor Quantidade de incidências

Cunhado 1

Irmão 2

Pai 3

Ex-companheiro/ex-cônjuge/ex-namorado 38

Filho 3

Companheiro/cônjuge/namorado 52

Vizinho 1

Ex-genro 1
Fonte: processos da Vara Criminal da Comarca de Santana do Livramento

Em muitas oportunidades, é retratada uma série de violências que já vêm


ocorrendo há algum tempo, sendo relatadas somente quando as mulheres já
estãoimersas na situação. Frequentemente, tratam-se de duas ou mais formas de
violência, com destaque para a presença, quase unânime da psicológica, geralmente
oculta, percebida apenas pelas expressões utilizadas.
São variados os tópicos que merecem atenção na análise dos processos,
iniciando pelo fato de que os casos das medidas protetivas de urgência que chegam a
tornarem-se processos efetivamente são irrisórios quando comparados com a totalidade
de acontecimentos. Aqueles que realmente recebem um pouco do empenho e da atenção
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 338

que realmente exigem, são disparadamente os casos mais graves e que ganham maior
repercussão dentro da violência física ou sexual.
Dos 100 (cem) processos analisados, em que pese a violência física estar
presente em grande parte, a maior expressividade fica a cargo da psíquica que, através
dos diferentes termos utilizados esteve presente em 9% (nove por cento), visto que
somente em 9 (nove) casos houve apenas violência/agressão física, de forma isolada,
conforme tabela abaixo que retrata, a quantidade de vezes que cada palavra ou frase foi
utilizada:

Tabela 2 - Expressões utilizadas para caracterizar ou descrever o tipo de


violência
Caracterização da violência Quantidade de menções

Discussões 8

Agressão/violência física 48

Xingamento 2

Ofensa/insulto 16

Agressão/violência verbal 6

Ameaça 37

Gritos 3

Sexual 2

Ameaça de morte 30

Perturbação 3

Injúria 10

Perseguição 3
Fonte: processos da Vara Criminal da Comarca de Santana do Livramento

O primeiro impacto sofrido teve como motivo a generalidade e a desatenção


com a qual os casos são tratados. Desde a lavratura da ocorrência policial, as palavras
utilizadas para descrever a situação de violência enfrentada pelas mulheres repetem-se e
são resumidas, especificamente, a termos como xingamentos, injúria, ofensas, agressão
física, ameaça, discussões, insultos, agressão verbal, gritos, perturbação, perseguição.
Não há como ter certeza de quem profere as expressões escritas nas ocorrências
ou depoimentos, se são faladas pelas próprias vítimas ou interpretadas por quem lavra
tais documentos. Assim, no próprio registro efetuado na Delegacia, inicia a produção da
verdade jurídica, com a definição pelos agentes do sistema de justiça criminal.
Expressões como vagabunda, lixo, imunda, vadia, chinelona, puta, prostituta
são corriqueiramente empregadas nas ocorrências policiais para descrever as ações de
violência. Além disso, outras como se não ficar comigo, não vai ficar com mais
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 339

ninguém, da prisão se sai, mas do caixão não, está colocando macho pra dentro de
casa também são descritas. Sem maiores detalhes, as ocorrências são remetidas ao
poder judiciário para a decisão sobre o (in) deferimento das medidas protetivas
pleiteadas pelas vítimas.
Outro importante ponto que merece destaque é o grande número de medidas
protetivas que são indeferidas em razão do que costumou chamar-se de ausência de
prova efetiva da violência alegada, senão a palavra da ofendida. Ademais, o descrédito
da palavra da vítima ganha ainda mais reforço com o entendimento de que não
sobreveio prova a emprestar verossimilhança a tal alegação, uma vez que não
procedida a oitiva do suposto agressor ou eventual testemunha.
A palavra da vítima, por si só, não ganha a confiança que deveria receber para
atestar a ocorrência da violência sofrida, o que se mostra no mínimo contraditório,
considerando que o objeto da proteção do direito, principalmente no que se refere à Lei
Maria da Penha, seria a própria mulher, que sofre a violência, calada, isolada, no seu
âmbito familiar ou domiciliar, sem telespectadores ou testemunhas.
Destaca-se outro trecho colacionado a partir das decisões de indeferimento da
concessão de medidas protetivas dos autos analisados, no qual a versão da ofendida
segue desacreditada e é considerada insuficiente:

A produção de prova mínima sobre o fato afigura-se


imprescindível a emprestar verossimilhança a versão
apresentada pela ofendida, sem o que resta temerário o
deferimento de medidas tão drásticas quanto às previstas na Lei
nº 11.340/06. Assim, não comprovada a
AMEAÇA/AGRESSÃO, entendo desnecessária à aplicação das
medidas pleiteadas com base na Lei nº 11.340/06.
Ressalvo que não se está a chancelar eventual comportamento
agressivo do (ex-)companheiro da vítima, mas a se analisar,
diante do caso em concreto, a plausibilidade da versão
apresentada na DP e a razoabilidade da medida pleiteada.
Não há, portanto, e diante dos elementos de convicção que
vieram a Juízo, plausibilidade para o deferimento das medidas
pleiteadas.

Outrossim, como outras razões para o indeferimento, encontra-se a não


representação ou registro de ocorrência anterior contra o agressor que já agrediu a
vítima outras vezes ou a inexistência de exame de corpo de delito.
Quanto à primeira questão, as causas são inúmeras, entre elas o medo, a
dependência, o desconhecimento sobre os seus direitos, a sensação de impunidade, a
preocupação com o sustento próprio e dos filhos, os costumes e valores impostos sobre
os seus deveres como mulher, a vergonha, a preocupação com a opinião alheia, a
confiança demasiada na mudança do agressor, entre tantas outras. Outro importante
fator de influência é a cultura da romantização dos crimes que envolvem a mulher como
vítima e o homem como agressor dentro de uma relação de afetividade, pois conforme
afirma Débora Cristina da Silva Cordeiro, essa visão deturpada e romantizada do crime
que é perpetrada pelas próprias instituições encarregadas de defender os direitos das
mulheres, acaba sendo um fator que constrange e gera a insegurança da vítima para
querer denunciar o crime. (CORDEIRO, 2018, p. 13)
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 340

Na segunda alegação, as motivações são semelhantes, com ênfase na questão


da vergonha e do medo, ou até mesmo, porque a violência pode não deixar visíveis por
muito tempo suas marcas, ainda mais porque a realização do exame não se dá de forma
imediata ou rápida, na maioria das vezes.
Assim, mesmo quando as mulheres conseguem acesso à justiça ou tomam
coragem de chegar até ela, o Estado falha, pois a violência anteriormente sofrida é
agravada pela institucional e estrutural que passam a enfrentar. Essas circunstâncias são
a pura representação da dupla punibilidade que o sistema de justiça criminal impõe às
mulheres.
Também existem os casos em que a mulher é tão desacreditada, que a violência
é tratada como um desentendimento, atrito ou briga de casal; a sua palavra é depreciada:

Entretanto, do relato constante da comunicação de ocorrência,


não vislumbro qualquer situação de risco ou urgência que
reclame a intervenção jurisdicional para a aplicação de alguma
das medidas protetivas previstas na Lei n° 11.340/06, uma vez
que, ao que tudo indica, o fato em questão parece não refugir de
atrito e/ou desentendimento entre casal, muito provavelmente
desencadeado pelo término da relação do casal.
Ademais, inexiste qualquer testemunha presencial da suposta
ameaça, contexto que, aparentemente, torna temerária a
concessão das medidas postuladas pela vítima.

O judiciário deixa de aplicar as medidas necessárias para a proteção da mulher


por não considerar suficiente o seu apelo, o seu pedido de socorro na busca de uma
saída da situação que somente ela vivencia, e é novamente silenciada. No momento de
dúvida, a opção deveria ser proteger a parte mais vulnerável e não deixar de tomar uma
providência em razão da temeridade alegada.
Já as medidas protetivas que são concedidas, na grande maioria das vezes,
recebem as mesmas justificativas-modelo, com a finalidade básica de impedir a
reiteração dos atos violentos e resguardar a integridade física e psíquica da mulher que
sofre com a violência. Cada caso não recebe uma cautela zelosa de acordo com as suas
peculiaridades, sendo enquadrados quase que todos da mesma forma e decididos no
mesmo sentido.
Independentemente de tratar-se de violência física, psicológica ou de outro
tipo, as decisões de deferimento são proferidas quase sempre no mesmo sentido,
equiparando-as, deixando de analisar minuciosamente as situações, a fim de verificar
eventuais necessidades específicas e concretas, conforme trecho abaixo colacionado:

Diante dos fatos noticiados, dando conta de ocorrência de


violência doméstica praticada pelo homem contra sua ex-
companheira, afiguram-se presentes os requisitos legais para a
concessão das medidas protetivas de urgência postuladas, nos
termos da Lei 11.340/2006.

As pequenas mudanças que foram percebidas, são na própria grafia ou maneira


de escrita, o que leva a entender que as decisões originam-se a partir de padrões
anteriormente formulados, com a troca de algumas palavras, a fim de adequar-se a cada
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 341

evento. Outras vezes, sequer estas simples alterações são efetuadas, ficando o texto da
decisão desconexo com o contexto dos fatos.
Assim, até mesmo nos casos específicos de determinada forma de violência, os
bens jurídicos protegidos, conforme o parecer dos magistrados, permanecem genéricos,
repetindo-se, na maioria das vezes, as mesmas justificativas, bem como, as medidas
protetivas:

Os fatos narrados revestem-se de gravidade, na medida que


põem em risco a segurança e integridade da vítima e dos filhos
desta.
Assim, a fim de evitar que seja a vítima novamente exposta a
situação de desrespeito aos seus direitos, entendo, por ora,
salutar determinar o afastamento do suposto agressor do lar
conjugal e a proibição de aproximação do agressor com vítima e
de seus familiares e de manter contato com os mesmos.

Na mesma linha, são economizadas palavras para descrever a violência e sua


gravidade, como na oportunidade na qual a agressão foi resumida e reduzida a um
importuno: os fatos narrados revestem-se de gravidade, na medida em que põem em
risco a segurança e integridade da vítima, a qual vem sendo importunada pelo acusado.
Ainda, no que diz respeito à efetividade e continuidade do processo, muitas
medidas são revogadas em razão da retomada da relação entre agressor e vítima. Na
mesma linha, muitos agressores têm extinta sua punibilidade em razão da retomada do
relacionamento. Tais aspectos ocorrem a partir da dificuldade da identificação do ciclo
da violência; as mulheres, em muitas ocasiões, diminuem a significatividade
daviolência sofrida, e, em razão da complexidade da relação, veem na ilusão da
mudança uma forma de amenizar a dor do corpo e da alma, escondem até de si mesmas,
mesmo que inconscientemente, a gravidade da situação.
A violência psicológica em si se vê retratada nas ocorrências como ofensas e
ameaças frequentes que diminuem ou terminam com a autodeterminação da vítima. A
mulher se encontra em uma situação na qual está presa e dependente, por amor, por
obrigação, financeiramente ou por qualquer de todos os outros motivos que alimentam a
sua submissão.
Em grande parte dos depoimentos e das ocorrências lidas e exploradas, os
abusos psicológicos não são contemporâneos aos registros, mas ocorrem há tempos,
descritos através da agressividade dos autores dos fatos e dos insultos que recebem
frequentemente. Há muitas menções a registros anteriores, a medidas já deferidas e não
cumpridas ou revogadas. Vê-se que a busca por ajuda dá-se somente quando cai a ficha
de que a violência não vai cessar ou quando o medo das ameaças tornarem-se realidade
for maior que o de buscar ajuda.
Mas mesmo assim, as mulheres não são atendidas, não é compreendida a
seriedade e a importância do seu apelo, e o ciclo permanece e se repete, até que se
agrava de tal maneira que as marcas da violência transcendem a alma e se fazem
presentes nos corpos das vítimas, quando finalmente, ou às vezes tarde demais, são
percebidas e atendidas.
Nas decisões, a forma psicológica da violência é desvalorizada, com especial
ressalva nos casos que não são agravados pela agressão física, como refere a expressão
utilizada em um processo: o ofensor é primário (cf. folha de antecedentes criminais),
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 342

não agrediu a vítima fisicamente e não foi ouvido pela autoridade policial, conforme
art. 12, V, da Lei Maria da Penha.
Especificamente, o crime tipificado como violência psicológica (art. 147-B,
CP) não foi encontrado em nenhum dos processos analisados, o que se deve a alguns
possíveis fatores. O conceito do tipo penal é amplo, encaixando-se nele toda ação que
cause dano emocional prejudicial ou perturbador ao pleno desenvolvimento ou que vise
a degradação e o controle, mediante inúmeros atos que prejudiquem a saúde psicológica
e a autodeterminação da mulher. (BRASIL, 2021)
Nessas ações, podem ser incluídos inúmeros comportamentos, contudo esse
tipo de agressão, como tal, encontra dificuldade na sua percepção isolada, considerando
o fato de que os seus limites não são especificados e seu conceito engloba muitas
discussões. Nesse sentido:

[...] o abuso psicológico é mais recorrente do que o abuso físico,


embora mais difícil de detectar e provar sua ocorrência. O
problema toma força no momento que se tenta conceituar e
definir quais os comportamentos que se enquadram no tipo
criminoso, criando uma bifurcação entre aqueles que apresentam
componentes suficientes para ser sancionado pelo direito penal,
contra aqueles que não são gravosos o suficiente para necessitar
da intervenção da justiça. (LARROSA apud SILVA, 2021, p.23)

Igualmente, a expressão violência psicológica não foi encontrada em nenhuma


decisão ou manifestação dos juízes, apenas uma referência utilizando, esporadicamente,
o termo psíquica, tanto com referência à violência como para a defesa da integridade,
sem pormenorizar ou especificar de acordo com o caso apresentado, no trecho: Tais
medidas se justificam porque necessário se evitar a reiteração e continuidade da
violência física ou psíquica à mulher, bem como para a proteção da integridade
psíquica da mulher.
Assim, em que pese o dado retirado da Tabela 2, de que somente 9 (nove)
processos tratavam exclusivamente de violência física, através de lesões e agressões, as
outras manifestações de violência, que são, em quase sua totalidade, psicológicas foram
ignoradas e deixaram de ser levadas em consideração durante a prolação da decisão. Ao
mesmo tempo, quando referidas simbolicamente e com menosprezo, foram descritas
como insuficientes para a necessidade de aplicação de medidas protetivas pleiteadas
pelas vítimas.
As práticas e discursos judiciais são representativos simbólicos da construção
social baseada no gênero, legitimando a violência, com destaque para a psicológica, que
permanece à margem do judiciário. O sistema de dominação atua de maneira a deixar a
mulher tão fragilizada ou pelo menos acreditar nisso, que o medo toma conta de sua
vida, regulando suas ações e comportamentos e estimulando sua submissão.
Na análise dos pedidos das medidas protetivas, os juízes dão preferência aos
casos em que haja violência física efetivamente comprovada, ou através de fotos, exame
de corpo de delito, em eventual flagrante ou que se configurem como de extrema
gravidade. Nos casos em que isso não ocorre, o pedido é indeferido, com base na
inexistência de efetiva lesão a um bem jurídico.
No entanto, os direitos das vítimas seguem sendo violados e a exigência de
outras provas impede a tutela preventiva e prejudica a efetiva proteção que a lei promete
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 343

fornecer. Em que pese a grande quantidade de casos de violência psicológica que


acontecem diariamente, os registros e os julgados acerca do tema são raros ou
inexistentes.
A injúria constante, as críticas, as proibições, as humilhações e as ameaças, que
começam sutilmente e vão crescendo gradativa e silenciosamente tomam conta da vida
das mulheres e configuram uma situação de abuso psíquico que se agrega às suas vidas
e torna-se rotina. Estes hábitos persistem, até destruir a vítima internamente, quando não
abrem portas para outros tipos de agressões, que também atingem o externo.
O poder judiciário define, através de seus valores estruturais, entre eles os
patriarcais e machistas, quem ocupa cada lugar, determina quem é o criminoso, quem se
encaixa no papel de vítima e quem não se adequa a ele. Essas definições recebem
grande influência da construção social do gênero, da naturalização das desigualdades e
das relações de poder.
Nesta linha, segundo Raylla Silva, um dos empecilhos mais recorrentes para a
real efetivação da legislação que protege os direitos das mulheres é a interpretação e
aplicação realizada no âmbito Judicial. Ainda, a autora destaca que a grande maioria
das mulheres tem seus processos julgados superficialmente onde o judiciário
convenientemente não considera as nuances das desigualdades de gênero e sociais.
(SILVA, 2021, p. 39)
Desse modo, de acordo com o que é estabelecido pela sociedade, a verdade
jurídica sobre a violência psicológica contra a mulher é construída. Essa verdade
jurídica demonstra um padrão de exclusão dessa violência, na medida em que as
decisões notoriamente não expressam sua ocorrência ou desvalorizam-na.
Em muitas situações nas quais são mencionadas as manifestações do abuso
emocional ou da agressão psíquica, através das ameaças, das injúrias, dashumilhações e
suas mais variadas formas de manifestação nas ocorrências, as decisões sobre as
medidas protetivas vão no sentido do indeferimento pela falta ou insuficiência de
provas.
Em que pese o grande vulto de eventos com agressão física, a psíquica sempre
os acompanha, quando não se apresenta sozinha. Costumeiramente, para que esses
cenários cheguem à justiça, o estágio da violência já está avançado e o ciclo perpetuado
na vida das vítimas. Muitas situações são registradas com as informações de que ele
sempre foi agressivo, mas nunca me bateu; ele não deixa eu sair de casa; ele não deixa
eu trabalhar; quando ele ingere álcool/drogas fica assim; tenho medo que as ameaças
sejam cumpridas.
Todas essas revelações são maneiras de manifestação da violência psicológica
que vão degradando a mulher como dona de si e das suas vontades, anulando sua
autodeterminação, deixando o agressor com o poder de escolha e domínio sobre sua
vida. Entretanto, um dos maiores problemas enfrentados é na adequação da conduta ao
crime, o que é influenciado pelo pensamento daqueles que são responsáveis por essa
interpretação.
O número de mulheres que se encorajam e procuram o poder judiciário já é
ínfimo; a quantidade de deferimentos de medidas protetivas é bem menor do que a de
pedidos; as ocorrências que realmente se tornam ações penais são pouquíssimas.
O primeiro fato tem como premissa maior a estrutura de dominação de gênero
presente na sociedade. Poucas são as mulheres que percebem a violência, em especial a
psicológica, que sutilmente as persegue e acaba sendo naturalizada até mesmo pelas
próprias, em razão da dominação masculina que reside no habitus social, enraizada
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 344

inconscientemente nos valores e costumes aprendidos e ensinados. Outros fatores


relevantes que merecem destaque são o medo e a dependência; o medo de que algo pior
aconteça, de que as ameaças tornem-se realidade, de que os filhos sofram as
consequências; a dependência emocional, quando acreditam ser o agressor o único e
verdadeiro amor que podem encontrar; financeira, quando dependem do sustento
fornecido para o agressor; de identidade, quando pensam que não podem viver de outra
forma, que são destinadas a isso. Nesse sentido vão as palavras de Marta Larrosa, sobre
a tolerância da violência pelas mulheres:

La culpa, la vergüenza y el temor a hacer público en el


medio social una conducta por la que se sienten tan degradadas
explica que, en muchos casos, las mujeres toleren situaciones
reiteradas de comportamientos violentos de sus parejas hacia
ellas. Al ser, además, el agresor una persona de la que la
víctima depende sentimentalmente y, muchas veces,
económicamente, el grado de tolerancia del delito por parte de
las mujeres es mucho mayor que en otros casos. (LARROSA,
2011, p. 06)

Já acerca do segundo fato, conforme já referido, as razões são exprimidas nas


próprias decisões, como a falta de provas, a carência de confiança no depoimento da
vítima e a necessidade de marcas físicas. Basicamente, a inadequação da ocorrência ao
padrão que corresponde ao que é considerado como violência e que merece a atenção e
a tutela do poder judiciário.
Enfim, com relação ao terceiro fato, em sequência ao anterior, também está a
dúvida sobre a gravidade da questão, mas em especial, a própria legitimidade para a
propositura determinada pelo ordenamento jurídico penal e processual penal. A maioria
dos crimes que são imputados aos agressores (ameaça, art. 147, CP; injúria, art. 140,
CP) somente se procedem mediante representação da ofendida ou através de ação penal
privada, o que retoma o primeiro fato, pois estas atitudes não são tomadas pelas vítimas
pelos mesmos motivos.
Todos esses impasses poderiam ser solucionados se a violência psicológica
fosse realmente identificada e o agressor fosse punido como tal, visto que o novo tipo
penal, ainda não utilizado, abrange todas as formas de abuso psíquico e emocional e
enseja ação penal pública incondicionada, o que traria maior segurança para as vítimas,
bem como efetividade na aplicação das medidas destinadas à sua proteção.
No entanto, as práticas seguem sendo as mesmas e essa construção impacta na
(in) efetividade das garantias voltadas às mulheres, impedindo a concretização dos seus
direitos e deixando de assegurar a proteção que está positivada na legislação. Mesmo
após a positivação de direitos, a criação de programas e projetos a fim de diminuir a
violência contra a mulher, a realidade diverge do papel e a aplicação de tais
determinações é movida pela seletividade penal, que também atua na seara da
vitimização.
A verdade jurídica produzida tem como base as desigualdades de gênero, com
a visão estereotipada sobre as mulheres e os homens, na qual aquelas são frágeis e
devem ficar no resguardo do lar, dependendo e servindo a estes, que são os detentores
do poder, dominantes, merecendo ter suas vontades atendidas e sua verdade como
absoluta.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 345

A forma de construção dessa verdade jurídica sobre a violência psicológica


contra a mulher nos casos levados ao judiciário da Comarca de Santana do Livramento
tem sua base na exclusão dessas condutas da tutela judicial, considerando-as
insuficientes para merecerem tal salvaguarda.
Essa conjuntura retoma os estudos de gênero das teorias críticas e da
criminologia feminista, explicitando a teoria da dominação masculina como padrão da
sociedade. O controle e o medo sustentam a ordem simbólica constituída, tanto no que
se refere ao silêncio das mulheres, ao receio de pedir ajuda, à imperceptibilidade da
violência, quanto na questão do próprio judiciário deixar de tutelar, na prática, certos
tipos de violência.
A violência contra a mulher é tão institucionalizada que exsurge no âmbito do
lar, do domicílio, da relação da qual resulta e ultrapassa essas barreiras do privado,
alcançando as esferas públicas, o que se retrata no tratamento destinado às vítimas no
sistema de justiça criminal.
Esse sistema volta sua atenção somente aos acontecimentos mais agressivos
que deixam marcas visíveis, tutelando apenas esses fatos e mantendo um número muito
maior de episódios à margem do judiciário, alheios à proteção jurídica. Conforme já
observado, a violência psicológica está presente na vida de muitas mulheres, mesmo que
disfarçadamente, o que não é diferente nos casos levados ao judiciário, nos quais ou
ocorre de forma isolada ou em conjunto com as demais formas.
A falta de uma tutela efetiva para resguardar a segurança das vítimas da
violência psicológica ainda é pouco discutida, carecendo de diálogos e pesquisas na
área, em especial no âmbito processual criminal. A dominação-exploração segue
conservada até a contemporaneidade, tanto pela sociedade em geral, ainda, de certo
modo, machista e patriarcal, quanto pelas instituições, como o poder judiciário e o SJC,
que reforçam a submissão das mulheres, que se acostumam às situações enfrentadase
não impedidas ou solucionadas, naturalizando-as, e mantêm-se caladas frente ao medo e
à opressão.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 346

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Grande foi a luta das mulheres, na busca de seus direitos, aqueles que
inicialmente nem se cogitava ser-lhes garantidos pela sociedade que, marcada pela
dominação e exploração masculina e patriarcal, moldava a identidade feminina baseada
na fragilidade, na submissão, nas obrigações que lhes eram impostas.
As batalhas iniciaram pelo reconhecimento das mulheres como sujeitos de
direitos, com a possibilidade de fazer escolhas sobre suas vidas, seu presente e futuro.
Procurou-se acabar com a sujeição à vontade dos homens de suas vidas. Seguiram
tentando conquistar voz e lugar nos espaços públicos, no meio acadêmico, político e
social.
O conceito de gênero passou por várias modificações, mas, hoje com os
estudos feministas, o entendimento foi modificado até a contemporaneidade. Fala-se em
papéis sociais e construções culturais de gênero, formulados a partir de um processo
histórico.
Na seara do gênero, um dos principais impactos gerados por essa desigualdade
patriarcal e machista é a violência, esse mal que apaga ou suprime a existência de tantas
mulheres. A violência é perpetrada por ações diárias que reforçam a hierarquia entre
homens e mulheres, na tentativa de afirmar uma suposta superioridade daqueles sobre
estas, que foi construída culturalmente e domina o campo das relações de gênero.
O gênero é um termo variável, que merece ser analisado em conjunto com
outras questões, a fim de analisar suas repercussões na estrutura da sociedade. Está
presente nas mais variadas áreas, com destaque para as relações de poder, onde através
do uso da força e do controle ganha evidência a dominação masculina.
Essa dominação simbólica também toma conta do sistema penal, onde a
criminologia crítica e suas teóricas fazem a análise da questão feminina inserta na
questão criminal. A teoria crítica e a criminologia feministas vão na mesma direção
dosmovimentos feministas, com escopo de garantir os direitos e os espaços às mulheres,
mas, conforme seus próprios conteúdos, fazem uma análise do contexto social e
criminológico com a participação das mulheres. Essa análise é feita sob a égide do
gênero como influenciador da visão da sociedade sobre a mulher. O objeto central está
no tema da violência, naturalizada e arraigada no seio do corpo social.
A violência é um problema de saúde pública, estudado pela psicologia, pela
sociologia, criminologia e outros campos. Aquela que é praticada contra a mulher é
tutelada, normativamente, pela Lei Maria da Penha, mas na realidade, segue ocorrendo,
sem prevenção ou solução.
Assim, em que pese conquistados e garantidos inúmeros direitos às mulheres
ao longo dos tempos, o mal da violência e o desamparo ainda as acompanham. Os dados
seguem alarmantes e o número de casos que ainda não chegam à justiça e aos registros
são ainda maiores.
Dentre esses casos, têm ênfase os de violência psicológica que, silenciosamente
e, por vezes de modo imperceptível, eliminam com a autodeterminação das mulheres,
que passam por humilhações e ameaças diárias que afetam o âmago de suas almas,
gerando feridas invisíveis, mas desestruturantes e incuráveis que atormentam suas vidas
até a eternidade.
Isso posto, em razão da dificuldade de identificação dessa forma de violência,
do medo que impede as mulheres de pedir socorro, da naturalização da agressividade
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dos homens, bem como da pouca importância que recebe no sistema de justiça criminal,
o abuso psíquico e emocional segue sendo rotina de muitas.
Nesta linha, constrói-se a verdade jurídica, que nada mais é do que a verdade
socialmente aceita, conforme a interpretação dos agentes do sistema de justiça.
A fim de descobrir a realidade sobre a violência psicológica contra a mulher na
realidade de Santana do Livramento, analisou-se a construção da verdade jurídica nesta
Comarca, através da observação e pesquisa em um número simbólico de processos que
tramitaram entre 2020 e 2022.
Dado o exposto, chegou-se à conclusão de que os juízes, que foram os agentes
do sistema de justiça criminal investigados, realmente extraem a violência psicológica
de suas decisões, discursos escritos averiguados. Tal dedução deu-se a partir do fatode
que, em meio a todos casos nos quais foram retratadas alguma manifestação da
violência psicológica, poucos tiveram suas medidas protetivas de urgência pleiteadas
deferidas, com justificativas acerca da falta de provas da alegada violência, da
temeridade das alegações da vítima, da insuficiência de indícios de violência concreta.
O que se pôde perceber é que inseridas em todas as fundamentações, rasas e
genéricas, estão as essências da construção social do gênero, da submissão feminina, do
patriarcado, do machismo, com a desqualificação da palavra das mulheres e do
impedimento da garantia concreta de seus direitos.
Portanto, mesmo com a tipificação da violência psicológica contra a mulher, a
categoria que recebe uma efetiva atenção, e também não em todos os casos, é a física,
que deixa marcas palpáveis e visíveis. A verdade jurídica retrata a edificação cultural e
histórica que tornou a violência psicológica como algo instintivo, automático e
inconsciente que é aceito até mesmo pelas mulheres, que foram educadas nestes moldes.
Logo, levando-se em conta tudo que foi referido, a positivação de direitos é
insuficiente, na medida em que a realidade é divergente e não aplica as garantias
necessárias para a proteção das mulheres e para a modificação do estado de violência ao
qual são submetidas.
Ainda, poucos são os estudos na área, considerando igualmente a recente
inclusão do crime. Por consequência, além da imprescindível transformação na
interpretação dos agentes da justiça criminal, urgentes são as investigações na área, bem
como a fiscalização na aplicação das normas positivadas, a fim de permitir ao menos a
mínima segurança e resguardo às mulheres.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 348

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A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 354

ACIDENTE DE TRABALHO E AS REPERCUSSÕES ECONÔMICAS PARA O


EMPREGADO, EMPREGADOR E ESTADO180

Vivian Daiane Liforma Pintos


Egressa do Curso de Direito da Unipampa
@hotmail.com

Alexandre Vicentine Xavier


Orientador
Docente do Curso de Direito da Unipampa
alexandrexavier@unipampa.edu.br

RESUMO

Sabe-se que os acidentes de trabalho afetam diversos aspectos da vida do trabalhador,


causando-lhe danos físicos, psicológicos e econômicos, no entanto, o presente trabalho
dedica-se a análise das repercussões econômicas que tais incidentes causam as
principais partes envolvidas: colaborador, empregador e ao Estado como sociedade.
Busca-se reunir informações para gerar uma ferramenta concisa com noções conceituais
e históricas, estatísticas e mensurações de custos que tais incidentes causam ao
trabalhador afetado, ao sustento familiar, bem como, proporcionar uma visão do lado
empresarial, consequências como a diminuição de produtividade devido aos dias de
trabalho perdidos que afetam a economia local e, em maior escala, nacional, e, por fim,
os custos estatais com despesas previdenciárias, reabilitações dos acidentados e
despesas médicas. Em 2020, início da pandemia de COVID-19, constatou-se um
aumento significativo de acidentes, cerca de 40% de incidentes graves notificados ao
ministério de saúde, bem como crescimento exponencial do uso de auxílio-doença por
causas como depressão, ansiedade, estresse e demais transtornos, crescendo,
juntamente, a necessidade de estudos relacionados ao assunto. Tais situações, podem ser
evitáveis e sua ocorrência denota negligência e injustiça social. Sendo assim, parte do
comprometimento da presente pesquisa é a conscientização da evitabilidade dos
referidos acontecimentos, ressaltando a importância de manter empresas e
colaboradores bem instruídos e com os respectivos EPIs (Equipamento de Proteção
Individual), incentivando investimentos voltados a saúde e segurança no trabalho.

Palavras-chave: Acidente de trabalho; Direito do Trabalho; repercussões econômicas.

RESUMEN

Es conocido el hecho de que los accidentes de trabajo afectan varios aspectos de la vida
del trabajador, causándole daños físicos, psicológicos y económicos, sin embargo, el
presente estudio se dedica a la análisis de las consecuencias económicas que tales
incidentes causan a los involucrados: empleado, empleador y Gobierno como sociedad.

180
Este capítulo é referente ao Trabalho de Conclusão do curso de Direito da Unipampa, campus Santana
do Livramento.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 355

Se busca reunir informaciones para crear una herramienta concreta con nociones
conceptuales e históricas, dados estadísticos y mensuraciones de costos que tales
incidentes causan al trabajador afectado, al mantenimiento familiar, incluyendo,
propiciar una visión de la perspectiva empresarial, consecuencias como la disminución
de la productividad debido a los días de trabajo perdidos que afectan a la economía local
y en mayor escala, nacional, y por fin, los costos estatales con gastos previdenciarios,
rehabilitación de los accidentados y gastos médicos. En 2020, inicio de la pandemia por
COVID-19, se constató un aumento importante de accidentes, cerca de 40% de
incidentes graves notificados al ministerio de salud, bien como el crecimiento
exponencial de la utilización de auxilio-enfermedad por causas como depresión,
ansiedad, estrés entre otros trastornos, creciendo, juntamente, la necesidad de estudios
relacionados con el tema. Entonces, parte del comprometimiento del presente estudio es
la concientización para evitar tales situaciones, resaltando la importancia de mantener
empresas y trabajadores bien informados y con los respectivos equipamientos de
protección individual, incentivando las inversiones direccionadas a la salud y seguridad
laboral.

Palabras llave: Accidente de trabajo, Derecho laboral, repercusiones económicas.


A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 356

INTRODUÇÃO

Sabe-se da inegável relevância do tema, acidente de trabalho, dada a sua


incidência social em diferentes aspectos, não apenas na ordem jurídica. Para Francisco
Rossal de Araújo, Desembargador Federal do Trabalho, Tribunal Regional do Trabalho
(TRT) 4ª Região e Fernando Rubin, advogado especialista em saúde do trabalhador, a
temática vai além da classificação entre acidentes típicos e atípicos, pois engloba
doenças profissionais e concausalidades, incluindo uma visão interdisciplinar, pois
exige a união de normas jurídicas, atuação de magistrados, promotores, advogados, bem
como médicos, engenheiros em segurança do trabalho, previdência social, sindicato,
patrões, empregados, legislação esparsa e a própria sociedade (ARAÚJO; RUBIN,
2016).
Deve-se partir do princípio de que o trabalhador acidentado é a parte mais
afetada de tais situações, porém, também existem repercussões para o empregador e o
Estado, o que torna necessário o estudo acerca das reais consequências econômicas
causadas ao trabalhador, à produtividade empresarial e a própria economia nacional, já
que, muitas vezes, tratam-se de situações evitáveis, e sua ocorrência, denota negligência
e injustiça social.
Os acidentes de trabalho causam repercussões também fora da ordem jurídica, já
que em casos menos graves, nos quais o empregado se ausenta por período inferior a
quinze dias, a empresa sofre comoções, deixando de contar com a mão de obra do
trabalhador temporariamente afastado, devendo arcar com as custas econômicas da
relação empregatícia, inclusive, repercutindo no cálculo do Fator Acidentário de
Prevenção (FAP) da empresa, nos termos do art. 10 da Lei nº 10.666/2003 (BRASIL,
2003).
Para uma perspectiva mais abrangente, segundo estatísticas da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), um trabalhador morre a cada 15 (quinze) segundos
devido a acidentes de trabalho ou doenças relacionadas a sua atividade profissional,
totalizando 2.3 milhões de mortes por ano, mundialmente. Dentre tais números, deve-se
considerar que o Brasil foi classificado como o segundo país do G-20 em mortalidade
por acidentes no trabalho, como aponta o Observatório de Segurança e Saúde no
Trabalho, criado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), juntamente a OIT.
Registrando entre 2012 e 2020, um total de 21.467 brasileiros mortos devido a acidentes
de trabalho ou doenças laborais, ou seja, 6 óbitos a cada 100 mil empregos formais
durante o período181.
Segundo relatório de monitoramento global realizado em conjunto entre a
Organização Mundial da Saúde (OMS) e da OIT, o número de mortes relacionadas ao
trabalho, caiu 14% entre os anos 2000 e 2016, possivelmente, devido a algumas
melhorias na saúde e segurança nos ambientes laborais, entretanto, o número de óbitos
por doenças cardíacas e derrames cerebrais, ligados a cargas horarias excessivas,
aumentaram 41% e 19% na devida ordem, demonstrando risco crescente. Tal estudo
considera 19 (dezenove) fatores de risco ocupacional, como poluição do ar, longas horas
de trabalho, exposição a substancias cancerígenas, riscos ergonômicos e ruídos, e,

181
Ver em: Segurança e Saúde no Trabalho. Organização Internacional do Trabalho. Disponível em:
https://www.ilo.org/lisbon/publica%C3%A7%C3%B5es/WCMS_650864/lang--
pt/index.htm#:~:text=De%20acordo%20com%20as%20estat%C3%ADsticas,milh%C3%B5es%20de%2
0mortes%20por%20ano. Acesso em : 22 jul. 22.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 357

constatou-se como principal fator desencadeante de problemas de saúde, as longas


jornadas de trabalho, acarretando em cerca de 750.000 (setecentos e cinquenta mil)
mortes; enquanto a exposição ao ar poluído, foi responsável por 450.000 (quatrocentos
e cinquenta mil) mortes (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO,
2021).
O procurador do MPT e cientista de dados, Fabiano de Assis, afirmou que
doenças e acidentes de trabalho produzem perda de 4% do PIB global a cada ano,
correspondente a, aproximadamente R$ 300 bilhões, sobre o PIB do Brasil em 2020
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2021).
Deve-se considerar ainda, que os números apresentados estão abaixo da
realidade, já que mesmo entre empregados formais, existe o problema da
subnotificação, e, segundo artigo publicado no site oficial do TRT 4ª região, em agosto
de 2020, em 18% dos casos o Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) não é
emitido, fazendo com que a informação chegue a Previdência mediante o sistema de
saúde, prejudicando as informações da ocorrência e a tipificação do acidente
(TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO, 2020).
Mediante tais estudos, percebe-se, que o trabalhador é o principal prejudicado, já
que em decorrência dos acidentes, surgem, muitas vezes, ferimentos graves que podem
acarretar em incapacidade, consequências psicológicas e até levar a morte. Em casos de
afastamento superior a 15 (quinze) dias, depois de passar por perícia médica, passa a
receber uma porcentagem do seu salário mediante auxílio do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS), ou seja, sofre uma diminuição de sua renda.
Em segundo plano, existem as consequências para o empregador, que, em
acidentes menos graves, deixa de contar com a mão de obra do colaborador acidentado
durante quinze dias, arcando com os custos da relação de emprego, respondendo pelas
consequências no cálculo do FAP da empresa, nos termos do art. 10 da Lei nº
10.666/2003 (BRASIL, 2003), e, muitas vezes, tornando-se responsável pelo pagamento
de indenizações por danos morais, materiais e estéticos, como constata o desembargador
Alexandre Corrêa da Cruz, gestor do Programa Trabalho Seguro no TRT-RS, em artigo
disponibilizado no site oficial do TRT 4ª região (TRIBUNAL REGIONAL DO
TRABALHO DA 4ª REGIÃO, 2020).
Dessa forma, busca-se, mediante o presente trabalho, realizar uma análise de
dados que proporcione ao leitor uma ferramenta para mensurar os efeitos econômicos
produzidos pelos acidentes de trabalho nas vidas dos colaboradores, que, muitas vezes,
percebem comprometidas sua existência e as de suas famílias, retomando conceitos
históricos e analisando os valores das contribuições de benefícios concedidos por
acidentes de trabalho, dentre os demais benefícios relacionados a saúde e Previdência
Social, bem como, verificando quais são os serviços disponibilizados às vítimas de
acidentes de trabalho, e, as consequências econômicas que tais acidentes trazem ao
empregado, a produtividade empresarial e a sociedade como Estado, e, por fim, realizar
uma análise de decisões jurisprudenciais ocorridas no último ano, no TRT da 4ª região,
a fim de proporcionar uma visão pratica da aplicabilidade de preceitos discutidos ao
longo da pesquisa, e verificar como são estipulados os valores indenizatórios.
Acredita-se que, conhecendo as consequências de tais acidentes, cria-se um
incentivo para que as organizações estabeleçam medidas preventivas, diminuindo o
crescimento exponencial de casos análogos.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 358

2 ASPECTOS CONCEITURAIS E TIPOS DE ACIDENTE DE TRABALHO

Segundo a Lei nº 8.213/91, o acidente de trabalho ocorre durante o exercício


profissional do colaborador para o empregador, ou em prol das atividades empresarias,
causando-lhe lesão corporal ou perturbação funcional que resulte em perda ou redução,
permanente ou temporária, de sua capacidade de trabalho, ou, inclusive, em morte
(BRASIL, 1991).
Para Gomes e Gottschalk (2008), a teoria do acidente de trabalho é fundada no
pressuposto de que o empregador é quem deve responsabilizar-se pelo dano sofrido pelo
empregado, decorrente do trabalho. Segundo os autores, é recente a noção do direito de
reparação de danos causados por tais incidentes que provocam lesão corporal,
perturbação funcional, ou doença profissional, sendo estas, muitas vezes, determinante
de incapacidade.
Os mesmos afirmam que o trabalhador obteve direito a tal reparação após a
primeira Revolução Industrial, época na qual houve grande desenvolvimento na
indústria mecânica, desde então, surge uma busca por novo fundamento jurídico para
indeniza-lo de forma pessoal, remodelando, concomitantemente, a responsabilidade
jurídica patronal.
Torna-se interessante para o prosseguimento do assunto, uma retrospectiva
mediantes os dispositivos legais ao longo da história, pois os autores afirmam que a lei
de acidentes do trabalho foi uma das primeiras leis sociais do país, e citam:

Data de 1919 o primeiro diploma legal sobre a matéria, o qual tomou


o nº 3.724. Em 1934, foi substituído pelo Decreto nº 24.637,
regulamentado pelo de nº 985, de 1935. Posteriormente, editou-se, em
1944, o Dec. – Lei nº 7.527,de 1945, a Lei nº 599 – A, de 1948, a Lei
nº 4.604, de 30.04.1945, e regulamentado pelo Decreto nº 18.809, de
1945; todo o regime de acidentes do trabalho foi refundido pela Lei nº
5.316, de 14.09.1967, que integrou o seguro de acidentes na
Previdência Social através etapas sucessivas. A lei em questão
revogou, expressamente, o Dec.-Lei nº 293, de 28.02.1967. Em
seguida, a Lei nº 5.280, de 27.04.1967, que dispõe sobre importação
de maquinas e maquinismos sem dispositivo de proteção. Tratam,
ainda da matéria: Lei Complementar nº 11, de 25.05.1971; Lei
Complementar nº 16, de 25.05.1971, Lei nº 6.195, de 19.12.1974, que
atribui ao FUNRURAL as prestações de acidentes do trabalho. Lei nº
6.367, de 19.10.1976, seguros de acidentes a cargo do INPS; Lei nº
6.338, de 07.06.1976, ações em curso durante as férias; Lei nº 6.195,
de 19.12.1974, atribui prestações ao FUNRURAL, revogado pela lei
que criou o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
(1977) e Decreto nº 83.081 de 24.01.1979, referente ao custeio do
seguro de acidentes do trabalho urbano e rurais (GOMES;
GOTTSCHALK, 2008, p. 520).

Atualmente, sabe-se que o art. 7º, inciso XXVIII da Constituição Federal,


estabelece o direito ao seguro contra acidentes de trabalho, responsabilizando o
empregador, considerando a indenização que obriga a este, se for comprovado dolo ou
culpa (BRASIL, 1988). Bem como o art. 19 da Lei nº 8.213 de 1991, regulamentado
pelo Decreto 3.048/99, dispõe dos benefícios da Presidência Social (BRASIL, 1991).
Conforme o Manual de Acidente de Trabalho, elaborado pelo INSS, a palavra
"acidente", refere-se à casualidade ou imprevisto, enquanto "dano", conceitua-se como
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 359

prejuízo de natureza física, moral ou patrimonial. Dessa forma, segundo a Constituição


Federal, sempre que um acidente gere danos, será passível de reparação (INSTITUTO
NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, 2016, p. 7). Para sua determinação, deve existir
conexão entre o dano e o agente que o provocou, formando o nexo causal. Ou seja,
quando um incidente ocorrido em ambiente laboral, decorre em lesão ou doença,
chama-se de “causa”. Por outro lado, quando o agente contribuir para o surgimento ou
agravamento de algum problema de saúde do trabalhador, chama-se concausa. Pode-se
dizer então, que tais incidentes incluem acidentes com causas súbitas e imprevisíveis,
chamados de acidentes típicos ou tipo, e doenças agravadas em razão de funções
exercidas no ambiente laboral, conhecidas como doenças ocupacionais.
Gomes e Gottschalk (2008), proporcionam a visão de dois critérios para
classificar o acidente de trabalho, sendo estes o sintético e o analítico. No qual o
primeiro afirma que acidente de trabalho é todo fato que causa um dano ao trabalhador,
em consequência do trabalho que o mesmo exerce. Enquanto que o critério analítico, é
adotado de forma unânime pelos legisladores, no qual descrevem o fato junto aos
elementos que o configuram, orientando as decisões que virão a ser tomadas, sendo este
critério o utilizado pela lei pátria. Os autores ressaltam ainda, o fato de que a definição
dada pela Lei nº 6.367 de 1976, não fazia menção ao acidente doloso ou intencional
previsto nas Leis predecessoras, nº 7.036 e 5.316, de 1944 e 1967, as quais previam
também, imperícia de terceiros e doenças vindas de contaminações acidentais de equipe
médica (GOMES; GOTTSCHALK, 2008).
Constata-se então, que o acidente de trabalho se distingue, de forma objetiva,
pela convergência dos componentes: I – fato ocorrido na execução do trabalho; II –
dano na integridade física ou saúde do empregado; III – incapacidade para o trabalho.
Deve-se considerar, ainda, que, a política da tutela do trabalhador fez com que o
legislador considerasse acidente, por exemplo, os danos advindos de caso fortuito e de
fenômenos causados ou agravados pelas instalações do ambiente laboral, bem como,
equipara-se a acidente de trabalho, aquele que o empregado sofre fora do local de labor,
antes ou depois de seu horário de serviço, se estiver realizando atividades sob ordem do
empregador, qualquer serviço que lhe forneça ganho econômico ou evite prejuízos ao
mesmo, ou ainda, durante viagens a serviço do empregador ou em casos de ida e volta
do trabalho até sua residência, os quais tratam-se de acidente in itineris, respaldado na
Lei nº 5.316 de 1967, reafirmado pela Lei nº 6.367, art. 2º e pelo Decreto nº 357 de
1991 (GOMES; GOTTSCHALK, 2008, p. 521).
Segundo o Manual de Acidente de Trabalho (INSTITUTO NACIONAL DO
SEGURO SOCIAL, 2016, p. 9), tratando-se de saúde do trabalhador, o Brasil adota
como critério, a classificação criada em 1984 por Richard Schilling: I – o trabalho como
causa necessária (doenças profissionais legalmente reconhecidas); II - o trabalho como
fator contributivo, mas não necessário (doenças do aparelho locomotor, varizes, câncer);
III - trabalho como provocador de distúrbio latente ou agravador de doença já existente
(ulceras, bronquite crônica, asma e doenças mentais).
O grupo I, é relacionado as doenças profissionais, sendo considerado o trabalho
como causa obrigatória para caracterizar a doença, já nos grupos II, e III, considera-se o
trabalho como fato contributivo ou desencadeante do problema, não determinante, e são
chamadas de doenças do trabalho.
Sebastião Geraldo de Oliveira, Desembargador do Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, em sua obra “Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença
Ocupacional” (2016, p. 45), afirma que a lei, apesar de definir apenas o acidente típico
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 360

ou tipo, acrescentou outras hipóteses equiparáveis para os efeitos legais, já que a


incapacidade pode surgir de outras causas que não sejam, precisamente, acidentes, por
exemplo enfermidades decorrente do trabalho, doenças com origem em outras causas,
laborais e extra laborais (concausas), essas hipóteses relacionadas ao acidente de
trabalho, são chamados de acidentes de trabalho por equiparação legal.
O autor destaca que o conceito de acidente de trabalho foi sendo aperfeiçoado
com o passar do tempo e em cada lei, sendo que, inicialmente, o foco legislativo
mantinha-se sobre a lesão produzida, logo alterou-se para fatores causais, houve uma
inclusão das concausas e abandonou-se o termo “causa involuntária e violenta”, que
dificultava o enquadramento do acidente e, por vezes, imputava a responsabilidade ao
próprio trabalhador (OLIVEIRA, 2016).
Quanto ao regulamento da Previdência Social, registra-se um conceito geral de
acidente, abrangendo diferentes aspectos de origens traumáticas, ou exposição a agentes
externos: físicos, químicos e biológicos, que gerem lesões ao trabalhador. Partindo
desse princípio, o autor identifica alguns requisitos para caracterizar o acidente de
trabalho: I – evento danoso; II – que decorre da execução do trabalho a serviço de um
empregador; III – que gere lesão ou perturbação, corporal ou funcional; IV – que
decorra em morte, perda, ou redução, permanente ou temporária da capacidade para
trabalhar.
Sobre o fato gerador, Oliveira (2016, p. 47) expõe que, geralmente, surge de
forma súbita e inesperada, de forma externa ao trabalhador, ou seja, sem ser provocado
pela vítima. Com efeitos nocivos e imediatos, sendo possível identificar o evento de
forma rápida, diferentemente das doenças ocupacionais.
Na própria legislação percebem-se os avanços comentados por Oliveira, citando
como exemplo, a Lei de Benefícios da Previdência Social, Lei nº 11.430/2006
(BRASIL, 2006); o Art. 21 – A da Lei nº 8.213/1991, que determina perícia médica do
INSS (BRASIL, 1991), e, o Decreto nº 6.042/2007 (BRASIL, 2007), em seu art. 337,
que agora não só caracterizam como acidente de trabalho a ocorrência de morte, lesão
ou perturbação funcional, como também, foram incluídos os conceitos de transtorno de
saúde, distúrbio, disfunção ou síndrome de evolução aguda, subaguda ou crônica,
independentemente do tempo que permaneceu oculto.
Quanto à doença ocupacional, Oliveira narra que, desde a primeira lei
acidentaria, de 1919, as doenças que surgiam em decorrência do trabalho, eram
consideradas como acidentes de trabalho. A partir da quarta lei acidentaria, em 1967,
foram incorporados os conceitos de doenças profissionais atípicas, e, a pesar de terem
conceitos diferentes, no âmbito jurídico, realiza-se a equiparação entre ambas para
efeitos de reparação. O autor elucida que, “enquanto o acidente é um fato que provoca
lesão, a enfermidade profissional é um estado patológico ou mórbido, ou seja,
perturbação da saúde do trabalhador” (OLIVEIRA, 2019, p. 52). Dessa forma, o
acidente, trata-se de fato repentino, inesperado e externo ao trabalhador, já a doença
ocupacional surge de forma lenta, interna e tende a agravar-se.
A Lei nº 8.213/1991, em seu art. 20, prevê tais doenças como formas de acidente de
trabalho:
Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo
anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada
pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e
constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho
e da Previdência Social;
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 361

II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada


em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com
ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no
inciso I (BRASIL, 1991).

Salienta-se ainda a divisão de três conceitos: doença profissional, doença do trabalho e


doença ocupacional, Oliveira (2016), explana que, a primeira, também chamada de
doença profissional ou típica, é própria de determinada profissão, sendo esse o nexo
causal, cita-se o exemplo de trabalhadores de mineradoras, expostos a toxinas como
sílica, já em situações nas quais o nexo causal com a doença é a própria profissão ou
atividade, chama-se juris et de jure, de forma que não se admite prova em contrário.
O autor descreve ainda a mesopatia ou doença profissional atípica, que, não
necessariamente tem a ver com a profissão do trabalhador, mas sim com as condições
do ambiente laboral, e estas, não possuem nexo causal presumido, por consequência, é
necessária a comprovação das causas que levaram ao acometimento da doença
(OLIVEIRA, 2016). Acrescentando o fato de que houve uma alteração que facilitou o
enquadramento de tais enfermidades, já que a Lei nº 11.430/2006 (BRASIL, 2006)
agregou o nexo epidemiológico, adicionando um novo artigo à Lei nº 8.213/1991, que
foi atualizado pela Lei Complementar nº 150/2015:

Art. 21-A. A perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social


(INSS) considerará caracterizada a natureza acidentária da
incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico
epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação
entre a atividade da empresa ou do empregado doméstico e a entidade
mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação
Internacional de Doenças (CID), em conformidade com o que
dispuser o regulamento (BRASIL, 2015).

Segundo Oliveira (2016, p. 54), a qualificação “doença ocupacional” passou a abranger


os critérios de doença profissional e doença do trabalho, termos constantes na NR-7 da
Portaria nº 3.214/1978 do Ministério do Trabalho e Emprego. Os critérios de doenças
profissionais e do trabalho, estão inclusos no Anexo II do atual Regulamento da
Previdência Social, o qual destaca quatro critérios importantes:

(...) a primeira indica os agentes patogênicos causadores de doenças


profissionais ou do trabalho; a segunda – Lista A – aponta os agentes
ou fatores de risco de natureza ocupacional, relacionados com a
etiologia de doenças profissionais e de outras doenças relacionadas
com o trabalho; a terceira – Letra B – indica as doenças ocupacionais
e os possíveis agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza
ocupacional; e a quarta – Lista C – aponta as hipóteses em que se
reconhece o nexo técnico epidemiológico (OLIVEIRA, 2016, p. 54).

O autor esclarece também, que o Ministério Público, a fim de evitar


procedimentos distintos, entre Previdência Social e Sistema Único de Saúde (SUS),
internalizou a referida relação de doenças ocupacionais mediante a Portaria nº
1.339/GM de novembro de 1999 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999). Tal relação
engloba tanto doenças profissionais e do trabalho em uma única lista, pois sabe-se da
dificuldade em separar as duas espécies de patologias.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 362

3 CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS PARA O EMPREGADO E DIREITOS


QUE O AMPARAM

Para Alago (2020), engenheira química especializada em engenharia de


segurança do trabalho, o principal prejudicado nas situações acidentarias em ambiente
laboral, sempre será o colaborador, já que o trauma pode acarretar em ferimentos
graves, incapacidades físicas e efeitos psicológicos severos, bem como, o próprio
falecimento.
Quanto as consequências econômicas, pode-se citar, inicialmente, o
afastamento de até quinze dias para casos de incapacidade temporária, no qual o obreiro
permanece recebendo salário integral, pago pelo empregador, caso os efeitos do
acidente permanecerem por mais tempo, após perícia médica, o colaborador passa a
receber o auxílio de incapacidade temporária acidentaria do INSS, valor inferior ao que
percebia, sendo calculada a média aritmética simples dos salários pagos como
contribuição desde julho de 1994 ou desde o início da contribuição, portanto, sofre
diminuição de sua renda familiar. Sendo assim, os impactos econômicos, bem como
psicológicos, são profundos, pois durante o período de redução de remuneração, ocorre,
muitas vezes, a necessidade de ajuda de terceiros para a própria subsistência e/ou de sua
família (ALAGO, 2020).
Em casos de incapacidade permanente total, ou seja, incapacidade para exercer
qualquer atividade laborativa, o obreiro fará uso da aposentadoria por invalidez, sendo
um impacto profundo e definitivo em sua vida, já que durante a percepção do auxílio-
doença acidentário, o benefício previdenciário corresponde a 91% (noventa e um por
cento) do salário de contribuição do trabalhador, o que torna-se um problema grave,
pois deve-se considerar que haja um aumento de gastos referentes a medicamentes, por
exemplo, acompanhado de uma diminuição salarial, juntamente a outro fato recorrente,
qual seja que outro membro da família necessite prestar cuidados ao enfermo,
afastando-se de seu trabalho (ALAGO, 2020).
Para melhor mensuração, cita-se um exemplo real de grande parte da
população brasileira, idealizando um trabalhador que recebe um salário mínimo de R$
1.212,00 (mil duzentos e doze reais), em 2022, durante o uso do benefício
previdenciário, passaria a receber apenas R$ 1.102,92 (mil cento e dois reais com
noventa e dois centavos), ou seja, comprometendo ainda mais seu sustento e de seus
dependentes.
Segundo a Cartilha de Acidente de Trabalho (COMISSÃO DE ESTUDOS
SOBRE ACIDENTES DE TRABALHO DA OAB/SP, 2010), quando o empregado é
afastado de sua função para realizar tratamento, a CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho) o ampara, devido ao vínculo laboral que o obreiro possui com o empregador,
sendo assim, pode-se citar, dentre os direitos que o resguardam, a abertura de CAT, o
qual deve ser realizado pela própria empresa, indicando doença ou relatando o acidente
sofrido pelo obreiro, independentemente do tempo necessário para tratamento deste; em
segundo lugar, pode-se citar a interrupção do contrato de trabalho durante o
afastamento, já que é proibida sua rescisão por parte do empregador, também são
mantidos alguns benefícios, como cestas básicas, complementação salarial e convênios
médicos, caso esteja previsto em Convenção Sindical; o recolhimento do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) deve continuar sendo realizado pelo empregador
durante o período de afastamento do colaborador; em casos de sequelas totais ou
parciais, permanentes, sendo provada a culpa do empregador, lhe será devido ao
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 363

empregado uma indenização por dano moral, estético ou material, mediante ação
judicial; ressaltando que, caso não ocorra a comunicação do CAT, o próprio colaborador
poderá solicitar junto ao INSS, mediante recurso, uma avaliação médica, conforme art.
170 do Decreto 3.048/99 (BRASIL, 1999).
Durante seu retorno a empresa, caso a vítima de acidente permanecer com
sequelas que o impeçam de voltar a sua função original, poderá usufruir de reabilitação
profissional, ministrada pelo INSS, enquanto recebe o auxílio doença, e, findando tal
período, caso não recupere sua plena capacidade de trabalhar, a empresa deverá realocá-
lo em função distinta, sem diminuição salarial (COMISSÃO DE ESTUDOS SOBRE
ACIDENTES DE TRABALHO DA OAB/SP, 2010, p. 11).
Ao acúmulo de prejuízos para o trabalhador acidentado, por vezes, soma-se o
que alguns autores chamam de "limbo trabalhista previdenciário", momento no qual
finaliza o auxílio-doença acidentário e as obrigações da relação empregatícia entre
empregado e empregador são restabelecidas, porém, após o cancelamento do benefício e
o encaminhamento do obreiro para suas antigas atividades laborais, o empregador
considera que o mesmo não está apto a realizá-las, dessa forma, o trabalhador tem seu
sustento e de seus familiares, inteiramente comprometido, já que não recebe pagamento
salarial do empregador, nem o benefício previdenciário, ficando sem fonte de renda. Tal
fato, eventualmente, o obriga a buscar o poder judiciário para postular a restauração do
benefício por incapacidade junto ao INSS, ou/e reclamação trabalhista contra a empresa
para receber indenização pelos danos causados, transcorrendo maior espaço de tempo
sem renda alguma, pondo em risco sua sobrevivência e de seus dependentes
(BEZERRA NETO, 2016).
O número de trabalhadores que tem de lidar com as consequências de acidentes
no ambiente laboral são alarmantes. Em matéria no site da Justiça do Trabalho 4ª região
(TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO, 2020), fala-se acerca do
problema da subnotificação, ou seja, mesmo entre os empregados formais, o CAT não é
emitido em, aproximadamente, 18% (dezoito por cento) dos casos, fazendo com que as
informações cheguem a Previdência Social por meio do SUS, o que prejudica
severamente a apuração de especificidades dos acidentes.
Mesmo com a defasagem de informações, os números nacionais são
expressivos: em 2018 foram contabilizados, do total de ocorrências, 62% de acidentes
típicos, 19% de acidentes de trajeto e 2% de doenças decorrentes de trabalho
(TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO, 2020).
Quanto ao fato da subnotificação, Oliveira (2016, p. 37), em sua obra chamada
“Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional”, frisa:

Um sinal da subnotificação pode ser observado no descompasso


estatístico entre os acidentes registrados e a quantidade de mortes.
Enquanto o número de acidentes nos últimos trinta anos teve redução
significativa, o volume de mortes manteve-se elevado; pode ocorrer a
ocultação do acidente, mas é muito difícil omitir o óbito.

Em estudos estatísticos realizados em 2018, o Rio Grande do Sul, constou,


como terceiro colocado dentre os estados com maior número de acidentes de trabalho,
totalizando 48.559 (quarenta e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove) trabalhadores
acidentados com carteira assinada, permanecendo em segundo lugar Minas Gerais, com
59.553 (cinquenta e nove mil, quinhentos e cinquenta e três), e São Paulo em primeiro
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 364

lugar com 197.330 (cento noventa e sete mil, trezentos e trinta) acidentados. Devendo
constar que o estado de Rio grande do Sul, compõe o grupo de Santa Catarina e
Rondônia, no qual registra-se 19 (dezenove) mil acidentes por milhão de empregados,
totalizando 4 (quatro) mil a mais que a média nacional (TRIBUNAL REGIONAL DO
TRABALHO DA 4ª REGIÃO, 2020).
Não obstante, dentre as consequências derivadas de um acidente de trabalho,
existem os danos ao patrimônio material e extrapatrimonial do acidentado, sendo o
primeiro dano, referente a prejuízos imediatos e lucros cessantes, amparado pelo inciso
II do art. 948 do Código Civil, o qual trata de danos futuros, ou seja, como o acidente
atingirá o patrimônio da vítima futuramente, com base no ganho certo, ou provável, que
foi prejudicado pelo próprio acidente, já o extrapatrimonial, refere-se ao dano não-
material, amparado pelos arts. 233-A a 233-G, Título II-A da CLT, sendo considerados
neste, lesão a honra, dano existencial, e sua apreciação está presente na Lei nº
13.467/2017, da Reforma Trabalhista (FROTA, 2018, p. 2).

3.1 Desafios na mensuração do valor da indenização por dano moral advindo de


acidente de trabalho

Dentre as dificuldades encontradas no ressarcimento dos danos causados ao


trabalhador acidentado, também está presente a de mensurar, de forma quantitativa, os
danos morais que lhe foram causados após o acidente laboral. Pois tratam-se de bases
intangíveis, como a moral e a honra, de forma que a justiça deve quantificar a dor e
sofrimento de alguém que teve sua moral severamente afetada, tais questões
permanecem sendo de difícil compreensão e mensuração para aplicação de punições ao
empregador, devendo considerar-se ainda, na tomada de decisão, a razoabilidade e
moderação.
Sebastião Geraldo de Oliveira (2016), expõe que, inclusive após a Constituição
de 1988, havia uma discussão acerca da indenização cumulativa de dano moral e
material, quando resultantes do mesmo fato gerador. Logo percebeu-se que não havia
embasamento lógico ou jurídico para uma rejeição do conjunto, pois mesmo partindo do
mesmo acidente, os danos possuem finalidades distintas, fazendo jus a duas
indenizações diferentes, o que foi pacificado mediante Súmula nº 37 do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) em 1992 (BRASIL, 2006), bem como nos artigos 948 e 949
do Código Civil (BRASIL, 2002).
Acerca da mensuração quantitativa do dano moral advindo de acidente de
trabalho, o desembargador acrescenta:

A indenização pelos danos materiais pode até alcançar a recomposição


do prejuízo e a “equivalência matemática” norteia os critérios de
cálculo. No entanto, a dor da exclusão, a tristeza da inatividade
precoce, a solidão do abandono na intimidade do lar, o vexame da
mutilação exposta, a dificuldade para os cuidados pessoais básicos, o
constrangimento da dependência permanente de outra pessoa, a
sensação de inutilidade, o conflito entre um cérebro que ordena e um
corpo que não consegue responder, a orfandade ou a viuvez
inesperada, o vazio na inercia imposta, tudo isso e muito mais não tem
retorno ou dinheiro que repare suficientemente (OLIVEIRA, 2016, p.
265).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 365

Pode-se dizer então, que quando é impossível atingir uma reparação rigorosa
ao dano causado, pode-se pelo menos, oferecer uma compensação monetária para que o
obreiro acidentado tenha uma resignação frente ao acontecido, tendo ao menos, mais
conforto.
Um dos grandes impasses envolvendo o tema, é o indeferimento de tal
indenização devido à falta de provas da ocorrência de dano moral, segundo os próprios
juízes, o ressarcimento não é devido quando a vítima consegue sobrelevar os efeitos do
sinistro, ou se as sequelas deixadas não comprometem seu estado psicológico, mesmo
havendo sido deferido indenização por dano moral devido aos danos físicos causados ao
indivíduo (OLIVEIRA, 2016).
O referido autor explana sua discordância com relação a tal concepção
doutrinaria, pois segundo ele, torna-se desnecessário a vítima demonstrar, classificado
como dano in re ipsa, pois isso tornaria a sentença passível de relatividade, baseando-se
em aspectos pessoais, ou seja, a indenização por nado moral seria concedida aos
indivíduos mais sensíveis ou emotivos. Entretanto, para uma quantificação justa do
valor, o juiz deve investigar as circunstâncias do caso concreto, quando achar
necessário, mediante depoimento pessoal e de testemunhas em audiência, conforme art.
944 do enunciado nº 455 da V Jornada de Direito Civil (CONSELHO DA JUSTIÇA
FEDERAL, 2011).
Paulo Mon’t Alverne Frota, atualmente, juiz titular da 7ª Vara do Trabalho de
São Luís, faz uma relação com a Lei nº 13.467/2017 (BRASIL, 2017), também
chamada Reforma Trabalhista, a qual, segundo ele, alterou de forma drástica o
procedimento utilizado na majoração do dano moral causado ao trabalhador pelo
empregador, bem como às famílias do indivíduo que vem a óbito em decorrência de
acidentes, pois a lei fixou tabela de valores para indenização por dano moral em seu art.
223 - G, § 1º da CLT. Sendo assim, a CLT prevê, em casos de acidentes que decorram
em morte do trabalhador, um valor de indenização inferior a 50 (cinquenta) vezes o
último salário contratual do obreiro falecido, segundo o autor, sem considerar o capital
financeiro da empresa que causou o dano. Para o juiz, tal previsão legal não é viável,
pois trata-se de uma forma de limitar arbitrariamente o magistrado trabalhista, o que não
ocorre em outras áreas do direito, inclusive, cita que tal previsão viola a própria
Constituição Federal (FROTA, 2019).
Deve-se considerar ainda, que a constitucionalidade do referido artigo, foi
severamente discutida, inclusive, mediante julgamento iniciado pelo STF, em outubro
de 2021. Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que tais critérios de
quantificação estabelecidos pela CLT são sim constitucionais, e que, seu objetivo seria
de orientar o magistrado durante suas decisões, porém, concordou que o tabelamento é
incompatível com a Constituição e considerou que os limites monetários serviriam
como parâmetro e não como teto de indenização, podendo fixar-se quantia superior. Tal
julgamento foi suspenso, devido solicitação do ministro Nunes Marques (GERÊNCIA
EXECUTIVA DE RELAÇÕES DO TRABALHO, 2021).
Com isso, chega-se a entender o alto grau de dificuldade em determinar o
montante devido para um dano tão significativo, que abala de forma severa e
permanente um indivíduo, ou um grupo de pessoas. Frota (2019), a fim de ilustrar o
problema, cita um exemplo com valores fictícios, seguindo os parâmetros da CLT:

Com efeito, se tomarmos, a título de exemplo, um trabalhador que


ganhava R$ 2.000,00 e faleceu em decorrência de acidente do
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 366

trabalho, segundo a CLT atual, é correto dizer que, por toda a dor
causada a sua esposa, o valor máximo a ser a ela pago, a título de
indenização por dano moral, será R$ 100.000,00. O valor a ser pago a
cada um dos filhos também não ultrapassaria R$ 100.000,00. E isso
ainda que o empregador causador do dano seja uma empresa
acostumada a obter lucro líquido anual de bilhões de reais (FROTA,
2019, p. 4).

4 RESPONSABILIDADE CIVIL, OBRIGAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS


ECONÔMICAS PARA O EMPREGADOR

Zainaghi (2015) um dos colaboradores na realização da obra denominada


“Responsabilidade Civil nas Relações de Trabalho”, coordenada por Rodrigo Fortunato
Goulart e Marco Antônio Villatore, realiza uma breve análise histórica da
responsabilidade civil. O autor afirma que a tal responsabilidade está presente em todas
as áreas do direito, e relembrando a ideologia utilizada no Código de Hamurabi, datado
de 1708 A.C.; às Leis das XII Tábuas; ao princípio de vingança “justiça com as próprias
mãos”; ao “olho por olho dente por dente”, bem como ao Código Penal do império
brasileiro, percebe-se que apenas o dolo era passível de punição.
Após tal período, o castigo físico foi substituído pelo pagamento em moeda ou
entrega de bens, com fim de reparação do dano causado, percebeu-se tal ação como
sendo mais eficiente do que a aplicação do denominado, duplo dano, ou seja, do
ofendido e do ofensor (ZAINAGHI, 2015).
O autor salienta que, durante a ocorrência de um plebiscito, em Roma no
século V, a Lex Aquilia, criou a possibilidade de reparação por meio pecuniário ao dano
causado, ou seja, possibilitando que o devedor respondesse mediante seu capital, seus
bens, surgindo do direito clássico romano, a responsabilidade extracontratual. Assim
como, posteriormente, em 1804, tal responsabilidade constou no Código Civil Francês e
se mostrou ainda mais necessário durante a revolução industrial, já que, juntamente com
a série de mudanças trazidas pela evolução tecnológica, os riscos à saúde e a vida do
trabalhador aumentaram (ZAINAGHI, 2015).
Pode-se dizer que, com o passar do tempo, cresceu a necessidade de reparação
de danos causados, ainda que sem culpa, ou seja, responsabilidade objetiva e subjetiva.
Dessa forma, nos dias atuais, a legislação especifica a aplicação de dois seguros contra
acidentes, um a cargo do empregador (Art. 7º, XXVIII da CF), baseando-se na teoria do
risco, e outro advindo de seguridade social (Art. 22º, II, da Lei nº 8212/91), podendo ser
aplicados concomitantemente, a luz do Art. 121 da Lei nº 8213/91 (ZAINAGHI, 2015).

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros


que visem à melhoria de sua condição social: XXVIII - seguro contra
acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a
indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou
culpa;
Art. 201, I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade
avançada.
(BRASIL, 1988).

Art. 22º A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade


Social, além do disposto no art. 23, é de:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 367

II - para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei


nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do
grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos
ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou
creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e
trabalhadores avulsos (BRASIL, 1991).

Como citado anteriormente, em casos de acidente de trabalho advindos de


culpa do empregador, a doutrina possui duas classificações, culpa objetiva e subjetiva,
sendo que para a primeira, o empregador é obrigado a reparar o dano tendo culpa direta
do acidente ou não, considerando o risco criado pelo mesmo, e está prevista no Art. 927
do Código Civil, parágrafo único:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (BRASIL,
2002).

Segundo o autor, com o passar do tempo foi realizada uma alteração de prisma
com relação a responsabilidade objetiva, pois com a teoria do risco, foi apreciada a
posição da vítima do infortúnio, assistindo seu interesse sobre a causalidade do evento
lesivo, ou seja, o empregador que aceite expor seus colaboradores a uma lesão física,
psíquica, ou a morte, deve arcar com o ônus indenizatório em casos de acidentes
(ZAINAGHI, 2015).
Segundo cartilha elaborada pela Comissão de Estudos sobre Acidentes do
Trabalho, 2016, OAB de São Paulo, é do empregador a responsabilidade de emitir o
CAT, o documento necessário para que o trabalhador inicie a tramitação do seguro de
acidentes, e possa, futuramente, usufruir dos benefícios da lei acidentaria. Tal
comprovativo é o meio pelo qual o empregador comunica o INSS a ocorrência do
acidente ou o surgimento de moléstia profissional, manifestada devido as condições de
trabalho (COMISSÃO DE ESTUDOS SOBRE ACIDENTES DE TRABALHO DA
OAB/SP, 2016).
Segundo as informações expostas na cartilha, a empresa é obrigada a informar
a Previdência Social de qualquer acidente ocorrido com seus colaboradores, até o
primeiro dia útil seguinte ao acontecimento, mesmo não havendo afastamento das
atividades, e, com comunicação imediata em caso de falecimento, estando sujeito o
empregador à multa determinada nos arts. 286 e 336 do Decreto 3.048/99 (COMISSÃO
DE ESTUDOS SOBRE ACIDENTES DE TRABALHO DA OAB/SP, 2016)
Em casos de não emissão do CAT pela empresa empregadora responsável pelo
empregado acidentado, a cartilha cita quem pode realizar o registro:

Se a empresa não fizer o registro da CAT, o próprio trabalhador, seu


dependente, a entidade sindical, o médico, o CEREST (Centro de
Referência da Saúde do Trabalhador ou a autoridade pública
(magistrados, membros do Ministério Público e dos serviços jurídicos
da União e dos estados ou do Distrito Federal e comandantes de
unidades do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do Corpo de
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 368

Bombeiros e da Polícia Militar), poderão efetivar a qualquer tempo o


registro deste instrumento junto à Previdência Social, o que não exclui
a possibilidade da aplicação da multa à empresa (COMISSÃO DE
ESTUDOS SOBRE ACIDENTES DE TRABALHO DA OAB/SP,
2016, p. 9).

O CAT deve conter informações primordiais como: último dia trabalhado;


local e data do acidente; atestado médico preenchido por profissional da área da
medicina; certidão de óbito em casos de falecimento do colaborador; duração provável
do tratamento; necessidade de afastamento; descrição da lesão e provável diagnostico.
Percebe-se que, como mencionado no decorrer da presente monografia, o
acidente de trabalho causa uma série de danos patrimoniais, além dos físicos e
psicológicos já mencionados, para todas as partes envolvidas, incluindo as empresas.
José Pastore (2011), expõe a dificuldade em aplicar conceitos econômicos na
tentativa de mensurar o valor de uma vida ou a saúde humana, entretanto, é um trabalho
necessário para ressaltar a importância da prevenção. Para isso, deve ser levado em
conta uma série de dimensões, e considerar que o dano tem um custo, e deve ser pago
pelo empregador. O autor diferencia dois tipos de custos para as empresas, os
segurados e os não segurados, sendo que, os primeiros, são mais visíveis,
correspondendo aos valores gastos com seguro de acidentes de trabalho, e os segundos,
são mais diluídos, tornando-se menos visíveis.
Como principais despesas para o empresário, podem-se citar: o tempo
desprendido após o acidente ou doença; primeiros socorros; danos de equipamentos e
materiais; diminuição da produção; necessidade de retreinamento de mão de obra
(decorrente de substituição de trabalhadores); recuperação dos empregados; salários que
continuam sendo pagos aos trabalhadores afastados; continuação do depósito de FGTS,
segundo § 5º do Art. 15 da Lei nº 8.036/1990 (BRASIL, 1990); despesas referentes a
administração; despesas com reparação; bem como despesas médicas, dentre outros
prejuízos (PASTORE, 2011). Entre os custos para a empresa, estão alguns não tão
visíveis, cita-se como exemplo o adicional pago em casos de trabalhos em condições
perigosas; o risco de denegrir a imagem empresarial no mercado em que atua devido a
desastres de grandes proporções ou acidentes repetitivos com colaboradores; bem como
ações judiciais, que, muitas vezes, comprometem o capital empresarial de forma severa.
O autor enfatiza o montante gasto com pagamentos de seguro de acidentes de trabalho,
denominado Seguro de Acidente de Trabalho (SAT) que em 2011, foi de R$ 41 bilhões,
correspondente a cerca de 5% da folha salarial nacional. Recentemente, em 2018,
segundo pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE,
estimou-se um gasto de R$ 100 bilhões de reais com tais acidentes (PASTORE, 2011).
Para melhor entendimento, dentre as formas de seguro, prevenção e amparo ao
acidentado, que são pagos pelas empresas, existem atualmente, o FAP, fundamentado
na Lei nº 10.666/03, regulamentado pelo Decreto nº 3.048/99, atualizado pelo Decreto
nº 6.957/09, o qual trata-se de um sistema multiplicador responsável por bonificar ou
punir as firmas, dependendo do número de acidentes ocorridos em um período
determinado. Sendo este, o fator responsável por definir o desempenho empresarial no
tipo de atividade econômica que realiza a organização, considerando-se uma ferramenta
importante de políticas públicas relativas a saúde e segurança no trabalho (INSTITUTO
NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, 2016).
O SAT, atualmente denomina-se Riscos Ambientais do Trabalho (RAT) e está
prevista no inciso II do art. 22 da Lei nº 8.212, de 1991, trata-se de uma contribuição
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 369

que possui como objetivo, financiar os benefícios previdenciários essenciais em casos


de acidentes, ou seja, a Previdência Social cobra uma taxa compulsória do empregador,
denominada RAT, e, a porcentagem de tal contribuição varia conforme o risco de
acidente, sendo o mínimo 1% para atividades de baixo risco, 2% sobre atividades de
risco médio e 3% para atividades de alto risco, conforme estipulado no Anexo V do
Decreto 6.957/2009 (INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, 2016).
Nota-se que os valores gastos pelas empresas com tais ocorrências, são altos, e
podem ser amenizados com implemento de medidas de prevenção que tornem os
ambientes laborais mais seguros para os obreiros, acarretando em preservação de vidas
e, consequentemente, melhorando a produtividade empresarial.

4.1 Formas de Prevenção


Oliveira (2021), especialista em enfermagem do trabalho e ergonomia
aplicada ao trabalho, estabelece em seu artigo os principais pontos que, segundo ela,
devem ser utilizados pelas empresas para evitar acidentes em ambiente laboral, levando
em consideração que se deve conhecer as atividades realizadas por cada equipe, bem
como, os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados para cada função.
A autora cita, em primeiro lugar, a importância de reforçar para os
colaboradores, o uso de EPIs, pois estes são itens fundamentais na prevenção de
acidentes e doenças ocupacionais, protegendo o colaborador sem afetar sua
produtividade. Sendo cada função diferente, os equipamentos também devem ser, bem
como devem estar sempre em bom estado de conservação ou serem trocados
regularmente (OLIVEIRA, 2021).
Em segundo lugar, cita-se a divulgação dos riscos ambientais da empresa,
sendo estes classificados em físicos (energias às quais os colaboradores de uma
organização estão expostos, como temperatura, vibrações, pressões e radiações);
químicos (substâncias que causam danos quando em contato com seres humanos);
biológicos (doenças causadas por bactérias micro-organismos); acidentes (incidentes no
ambiente laboral que causem danos ao empregado) e ergonômicos (danos à saúde
causados por esforços físicos intensos) (OLIVEIRA, 2021).
Visto que, informando os colaboradores dos danos, cria-se uma consciência
coletiva na organização, alertando para os cuidados que devem ser tomados durante o
exercício das atividades, por isso a importância de palestras nas instituições.
Como terceiro ponto, refere-se a não improvisação, ou seja, se foram criados
padrões e regras consistentes para a realização das atividades, estes devem ser seguidos
a fim de reduzir riscos (OLIVEIRA, 2021).
O quarto ponto, trata da necessidade de estimular o diálogo, assim como
em todas as relações humanas, dentro de uma organização o diálogo também é de
extrema importância para manter a integração da equipe, trocando opiniões e ideias
acerca de suas atividades, dessa forma os meios de prevenção podem ser aprimorados
(OLIVEIRA, 2021).
Em quinto lugar, a autora ressalta a importância de entender a prevenção de
doenças ocupacionais, pois, normalmente, associa-se segurança no trabalho com evitar
quedas, incêndios ou impactos, no entanto, estes não são os únicos riscos, já que, se
executada de maneira errada, ou no ambiente inadequado, uma atividade rotineira pode
desencadear doença ocupacional. Cita-se como exemplo, a exposição a ruídos
excessivos que podem levar a diminuição ou perda da audição, ou movimentos
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 370

repetitivos que desprendam de excesso de força, podendo levar a lesões em músculos e


articulações (OLIVEIRA, 2021).
De acordo com o Guia de Análise de Acidentes de Trabalho do Ministério do
Trabalho e Emprego (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010) é de
grande relevância a análise de consequências de eventos adversos, já que grande parte é
prevenível e decorrem de situações determinadas em sociedade, sendo estes, os
chamados fatores de risco dos sistemas de produção. Segundo o Guia, com relação a
saúde e segurança no trabalho, predomina no Brasil a cultura de que o ser humano
corresponde ao ponto fraco, enquanto que o sistema técnico é mais confiável, já que o
trabalhador possui falhas humanas, como por exemplo o desrespeito às normas
estabelecidas, por tal motivo, toma-se medidas, apenas, de punições e treinamentos.
Ainda segundo o referido guia, evento adverso trata-se de uma ocorrência
indesejada que se relaciona com o trabalho. Tal evento subdivide-se em acidente de
trabalho, incidente e circunstância indesejada, sendo o primeiro, um acontecimento não
planejado que acarreta em danos a saúde e/ou integridade física do obreiro ou de
terceiros; o segundo trata-se de evento que não resultou em danos físicos as pessoas,
porém, tinha potencial para consequências graves; e o ultimo, trata-se de um conjunto
de situações com potencial para provocar consequências graves (MINISTÉRIO DO
TRABALHO E EMPREGO, 2010).
Demonstrados os riscos, fala-se nos principais motivos para realizar a analise,
dentre eles, cita-se:
• Acidentes e doenças relacionados ao trabalho causam sofrimento e
problemas para os trabalhadores, suas famílias, outras pessoas e as
empresas.
• Acidentes e doenças relacionados ao trabalho geram custo elevado
para as empresas e para a sociedade.
• Análises de eventos adversos constituem importante ferramenta para
o desenvolvimento e refinamento do sistema de gerenciamento de
riscos.
• Adequada avaliação das condições de segurança e saúde proporciona
conhecimento dos riscos associados com as atividades laborais,
contribuindo para a transformação das condições de trabalho.
• Medidas de controle de risco bem planejadas, associadas com
supervisão adequada, monitoramento e gestão efetiva de SST, podem
garantir que as atividades no trabalho sejam seguras (MINISTÉRIO
DO TRABALHO E EMPREGO, 2010, p. 11).
O Guia estabelece formas de analisar os eventos adversos e criar formas de
prevenção. Inicialmente, deve-se avaliar se o dano gerado poderia haver sido mais
grave, e se, pode ocorrer novamente. Em segundo plano é estabelecida a necessidade de
envolvimento dos níveis hierárquicos durante a análise, incluindo os trabalhadores da
base do sistema de produção, já que os mesmos possuem conhecimentos fundamentais,
bem como de administradores com poder de decisão, sendo necessário também, durante
o processo, fortalecer a ideia de que a investigação é positiva para todos. Igualmente,
fazer uso de profissionais capacitados para a análise: coleta de informações, entrevistas,
avaliação de situações de riscos e sugestões para implementação de medidas
(MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010).
Para que uma análise seja oportuna e útil, deve revelar fatores subjacentes e
latentes, dispõe o Guia que “somente com a identificação dos fatores subjacentes e
latentes, que propiciam a existência dos fatores imediatos, será possível adquirir
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 371

conhecimento capaz de eliminar ou controlar o risco de ocorrência de outros eventos


adversos” (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010).
Em casos de constatação de eventos adversos, o Guia descreve o protocolo
básico a ser adoto pelo setor empresarial, elencando: I - Resposta Emergencial: são
ações de emergência definidas de forma preliminar pela organização, como exemplo os
primeiros socorros e traslado da vítima, bem como tornar o perímetro seguro após o
incidente; II - Resposta Secundaria: trata-se de passar as informações ao responsável do
setor, emitir o CAT e verificar quais as exigências das Normas Regulamentadores, cita-
se como exemplo a NR 18, NR 22, NR 4 e NR 5, e, em casos mais abrangentes,
verificar necessidade de comunicação a defesa civil e órgãos ambientais; III - Obtenção
Preliminar de dados: incluídos neste, a preservação do cenário do incidente, listar nomes
de vítimas e demais envolvidos, listar maquinaria e equipamentos, registrar através de
vídeos/fotografias o espaço e coletar materiais para futura perícia; IV - Decisão do nível
de análise: trata-se do nível oportuno de investigação, devendo considerar a pior
consequência em potencial do evento adverso (leve, moderada, grave e letal) e sua
probabilidade de acontecer novamente (rara, improvável, possível, provável e certa)
(MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010).
Quanto a análise de dados, os autores elencam as etapas a serem seguidas: I -
Coleta de dados; II - Analise das informações; III - Identificação de medidas de controle
e IV - Plano de ação. A primeira baseia-se em demonstrar os fatores que contribuíram
para desencadear o evento, devem ser incluídas nesta fase: medições, fotografias,
medições, observações, entrevistas, ou seja, um detalhamento conciso do ambiente de
trabalho, e os principais questionamentos a serem realizados neste momento são:
"Quando e onde o evento aconteceu?", "Quem sofreu os danos ou estava envolvido?",
"O que aconteceu?", "Como o fato aconteceu?", "Quais atividades estavam sendo
desenvolvidas no momento?", "Havia algo incomum ou diferente nas condições de
trabalho?", "Haviam procedimentos de segurança e eles foram seguidos?", "Quais
lesões foram causadas?", "O risco era conhecido?, se sim, por que não foi controlado?,
"Como a organização do trabalho contribuiu para o incidente?", "Manutenção e limpeza
eram suficientes?", "Os trabalhadores envolvidos eram capacitados?", "O plano a ser
seguido no local de trabalho influenciou para a ocorrência do evento?", "Os materiais
utilizados influenciaram o evento adverso?", "Dificuldades na utilização das instalações
ou equipamentos contribuíram para a ocorrência?", "Os equipamentos de segurança
eram suficientes?", "Outras condições influenciaram o evento adverso?, quais?
(MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010).
A segunda etapa, denominada Analise das Informações, trata da escolha livre
do método de análise e processamento de dados, porém, recomendam-se aqueles
baseados na Teoria de Sistemas para proporcionar analises mais abrangentes. Tais
sistemas consideram as empresas como organizações que formam sistemas
sociotécnicos abertos, nos quais fatores externos podem influenciar e provocar
acidentes, com isso, torna-se necessário descobrir as origens dos fatos geradores de
problemas. Para isso, segundo o Guia, a analise deve: “ser objetiva e imparcial;
identificar os fatores imediatos; identificar os fatores subjacentes; identificar os fatores
latentes; identificar a rede de fatores em interação” (MINISTÉRIO DO TRABALHO E
EMPREGO, 2010). O tipo de análise escolhida na segunda etapa, determinara as falhas
ocorridas e quais as soluções possíveis, ou seja, terceira etapa. Após a análise dos dados
coletados, será selecionada a solução mais adequada ao caso, devendo estabelecer-se o
que precisa ser realizado, quando e por quem.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 372

Quanto quarta fase, Plano de Ação, é a forma de fornecer melhorias nas


condições de trabalho, e a base para tal, são as questões relacionadas à segurança que
foram descobertas durante o referido processo de análise. O objetivo de tal momento é a
apresentação de objetivos específicos e mensuráveis a serem implementados de forma
duradoura na organização, devendo englobar os fatores imediatos, subjacentes e latentes
(MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010).
Constata-se a importância de prevenir acidentes no ambiente laboral, a fim de
evitar danos, muitas vezes irreparáveis, tanto para a saúde e integridade física do
trabalhador, como para sua situação econômica, bem como a do empregador e,
futuramente, do Estado. Um sistema de prevenção efetivo pode ser concretizado
mediante a conscientização dos trabalhadores e responsáveis, acerca dos riscos durante
uso de ferramentas ou manuseio de produtos químicos, bem como, mediante a aplicação
de estudos em casos específicos, constatação de problemas em potencial e futuras
soluções, a fim de que as empresas implantem, gradativamente, métodos e
procedimentos de trabalho mais seguros, minimizando improvisações e incidentes.

5 BENEFICIOS CABíVEIS, CUSTOS PARA O ESTADO E PREVIDÊNCIA


SOCIAL

Com o objetivo de criar um embasamento histórico, o próprio Manual de


Acidente de Trabalho, elaborado pelo INSS, mediante a Diretoria de Saúde do
Trabalhador, em maio de 2016, informa que no Brasil, as caixas de pensões iniciaram
junto aos operários da Casa da Moeda, mediante o Decreto nº 9.284 de 1911, época na
qual o Brasil começou a fazer parte da OIT criada com o objetivo de melhorar as
condições de trabalho mundialmente.
Dessa forma, pode-se dizer que, tanto a garantia de indenização ao trabalhador
acidentado, quanto a teoria de responsabilidade objetiva do empregador, iniciaram em
1919 com a Lei nº 3.724 (BRASIL, 1919), a qual especificou o dever de pagamento de
seguradoras particulares para amparar trabalhadores acidentados ou suas famílias,
proporcionalmente a gravidade do acidente e seus efeitos posteriores, garantindo assim,
um seguro contra acidentes para as atividades de labor (INSTITUTO NACIONAL DO
SEGURO SOCIAL, 2016).
Sabe-se que a responsabilização pelo acidente de trabalho está prevista na
Constituição Federal de 1988, Art. 7º, inciso XXVIII, garantindo o amparo de
trabalhadores urbanos e rurais mediante seguro contra tais acidentes, estando este a
cargo do empregador, e, caso constatado culpa ou dolo do mesmo, ocorre a obrigação
de indenização, sendo esta, a denominada responsabilidade civil da empresa (BRASIL,
1988).
Com a Lei de Benefícios da Previdência Social, nº 8.213, de 1991, foi incluído o
conceito especifico de acidente de trabalho e os respectivos preceitos para que o
segurado alcance o direito aos benefícios que lhe fazem jus, sendo tal tipo de acidente
fundamentado na legislação previdenciária nos artigos 19 a 23 da Lei acima citada,
considerando-se como elementos de configuração: a) o exercício do trabalho a serviço
da empresa ou do empregador doméstico, ou trabalho na condição de segurado especial
ou avulso; b) a existência de lesão corporal ou perturbação funcional; e c) morte, perda
ou redução da capacidade para o trabalho (BRASIL, 1991).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 373

Por outro lado, o artigo 20 da Lei define o que se considera “entidade mórbida”
sendo estas:

(...) I – doença profissional, assim entendida a produzida ou


desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada
atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério
do Trabalho e da Previdência Social; II – doença do trabalho, assim
entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições
especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione
diretamente, constante da relação mencionada no inciso I (BRASIL,
1991).

A mesma determina em seu § 1º, também, o que não pode ser considerado como
doenças do trabalho: “a) degenerativa; b) inerente a grupo etário; c) que não produza
incapacidade laborativa; e d) endêmica adquirida por segurado habitante de região em
que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato
direto determinado pela natureza do trabalho” (BRASIL, 1991).
Ainda assim, o Manual de Acidente de Trabalho (INSTITUTO NACIONAL DO
SEGURO SOCIAL, 2016) constata que o § 2º do Art. 20 estabelece exceções, pois se
constatado que a doença que acomete o trabalhador, não incluída nas previsões
estabelecidas nos incisos I e II do referido artigo, resultar de circunstâncias nas quais o
trabalho era executado, comprovando relação causal direta, a Previdência Social
considerará como acidente de trabalho, passando a responsabilidade de conceder
benefícios para o Estado, e consequentemente, a sociedade.
Pode-se constatar no decorrer do presente estudo que os acidentes de trabalho
geram repercussões variadas e que vão além do âmbito jurídico, prejudicando diversos
aspectos da vida do trabalhador, bem como empresas e organizações, no entanto, tais
acidentes também geram custos estatais, pois é de responsabilidade da Previdência
Social, como sistema previdenciário nacional e do INSS, como seu administrador,
detectar a natureza acidentaria para futura prestação do benefício, sejam eles: auxílio-
doença acidentário, auxílio-acidente, habilitação/reabilitação profissional e pessoal,
aposentadoria por invalidez e pensão por morte.
Sebastião Geraldo de Oliveira (2016, p. 45), Desembargador do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região, em sua obra “Indenizações por Acidente do
Trabalho ou Doença Ocupacional”, ressalta que a Previdência Social e o Ministério do
Trabalho realizam a divulgação de estatísticas que sinalizam os quatro principais tipos
de acidentes de trabalhos que ocorrem no Brasil, sendo eles: acidente típico, doença
ocupacional, acidente de trajeto e o sem CAT. O autor destaca que o INSS garante aos
seus segurados cobertura durante afastamentos por todos os tipos de acidente, sem,
necessariamente, considerar o nexo de causalidade com o trabalho.

O regulamento da Previdência Social registra um conceito genérico de


acidente de qualquer natureza, sem as amarras da definição de
acidente do trabalho qual seja: Entende-se como acidente de qualquer
natureza ou causa aquele de origem traumática e por exposição a
agentes exógenos (físicos, químicos e biológicos), que acarreta lesão
corporal ou perturbação funcional que cause a morte, a perda ou a
redução permanente ou temporária da capacidade laborativa
(OLIVEIRA, 2016, p. 49).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 374

Frente a necessidade de tal amparo para com o trabalhador acidentado, um


estudo realizado pela OIT, estimou um gasto de cerca de 17 (dezessete) bilhões de reais
com tais benefícios no ano de 2010. Ao passo que estudos mais recentes realizados
entre 2012 e 2020 pela organização, registraram grande aumento no gasto
previdenciário, alcançando mais de R$ 100 bilhões apenas com despesas acidentarias,
contabilizando 5,6 milhões de doenças e acidentes do trabalho no Brasil e mais 430
milhões de dias de trabalho perdidos (MARINHO, 2021).
A matéria publicada por Marinho (2021), demonstrou que somado ao abalo
econômico e social, tal fato implica em 21.467 (vinte e um mil quatrocentos e sessenta e
sete) vítimas fatais de acidentes de trabalho entre os anos de 2012 a 2020, ou seja, 6
óbitos para cada 100 mil vínculos empregatícios do mercado formal, colocando o Brasil
em segundo lugar do contexto das Américas, o G-20, permanecendo atrás, apenas do
Mexico, o qual apresenta 8 óbitos a cada 100 mil vínculos empregatícios. Enquanto que
os indicadores atualizados apontam menores taxas em países como Japão, Canadá,
Argentina, dentre outros.
Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação- SINAN, sistema
que inclui setores formais e informais da economia, pertencente ao Ministério de Saúde,
ouve um aumento exponencial de notificações de acidentes de trabalho graves, de
94.353 em 2019 para 132.623 em 2020, totalizando um crescimento de 40%
(MARINHO, 2021).
Quanto ao período de pandemia por COVID-19, foi constatado aumento no total
de auxílios-doença, acidentários e não-acidentários, por depressão, estresse, ansiedade e
demais transtornos mentais, eram de 224 mil no ano de 2019 e ampliou para 289 mil em
2020, ou seja, um aumento de 30%.
Luís Fabiano de Assis, procurador do MPT, cientista de dados e coordenador da
iniciativa SmartLab, projeto realizado junto a OIT, que busca fornecer informações
uteis e relevantes para criação de políticas públicas relacionadas ao trabalho decente
mediante dados públicos abertos, afirmou que, segundo estimativas, doenças e acidentes
no ambiente laboral produzem perda de 4% do PIB (Produto Interno Bruto) global
anual. Sendo que a nível nacional, sem considerar fatores incomensuráveis como saúde
e vidas humanas, o percentual representa aproximadamente R$ 300 bilhões, sobre o PIB
brasileiro de 2020. Pois como constatado na presente pesquisa, tais situações geram
despesas para o sistema de saúde, seguro social, bem como no setor privado, afetando
pequenas, médias e grandes empresas devido aos dias de trabalho perdidos
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2021).
Denise Marinho, oficial de comunicação da OIT, explana e constata em sua
matéria para o site das Nações Unidas Brasil, a falta de medidas de proteções nas
organizações, bem como a falta de políticas públicas eficazes para prevenir acidentes,
pois muitas vezes, tratam-se de situações de padrões semelhantes e repetitivos, e atenta
para o fato de que houve crescimento do número de acidentes ocasionados pelo uso de
máquinas e equipamentos, que era de 15% entre 2012 a 2019 e subiu para 18% em
2020, ou seja, ocorreram lesões graves com 15 vezes mais frequência (MARINHO,
2021). A autora ressalta que, durante a pandemia, os profissionais de atendimento
hospitalar detiveram o maior número de acidentes, se comparado a outras profissões,
principalmente técnicos de enfermagem, passando de 6% em 2019, para 9% em 2020,
um aumento de 15% devido a pandemia por COVID-19. Acerca de outros setores que
sofreram alterações de números, cita:
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 375

O número total de comunicações de acidentes de 2020 (446.881


registros), ano de início da pandemia da COVID-19, é 30% menor do
que o de 2019 (639.325 registros), que havia apresentado elevação de
2,5% em relação a 2018 (623.788). Dentre outros setores que sofreram
aumento no número total de acidentes notificados está o de abate de
suínos, aves e outros pequenos animais (de 10.880 acidentes em 2019
para 12.179 em 2020, elevação de 12%), ao passo o setor de
transporte rodoviário de carga é um dos que registraram queda, com
redução de 8% (MARINHO, 2021).

6 ANÁLLISE DE CASO

Sabe-se que a jurisprudência é uma das principais fontes de estudo do direito,


pois possibilita aos juristas construções e modificações de ideologias, políticas públicas,
bem como proporciona a busca pela concretização de diversos assuntos no poder
judiciário. Igualmente, a análise jurisprudencial é um método prático que auxilia a
verificação da efetividade de direitos, devido a busca de cidadãos pelo sistema
judiciário objetivando fixar suas garantias (GOMES; CARVALHO; BORTOLON,
2018).
Para Gomes, Carvalho e Bortolon (2018), a análise de casos concretos
proporciona uma base para a pesquisa cientifica por criar uma forma de avaliação
efetiva das decisões que estão sendo tomadas acerca de assuntos específicos, podendo
ser de abordagem quantitativas ou qualitativas, dependendo da perspectiva a ser
abordada, bem como estudos de casos, em situações nas quais o objetivo do trabalho
sejam temas específicos tratados nas decisões.
Dessa forma, com o objetivo de relacionar o levantamento de dados apresentado
no decorrer da presente pesquisa a casos práticos com decisões efetivadas, será
realizada uma análise de seleção de seis decisões proferidas pelo TRT da 4º Região no
último ano, acerca da responsabilidade civil do empregador nos acidentes de trabalho e
as respectivas indenizações ao colaborador por danos morais, materiais e estéticos, bem
como uma análise da Súmula nº 392 do TST.
A referida seleção foi realizada mediante site do TST 4ª Região, através de aba
denominada “Jurisprudências”, e após, “Decisões de 2º Grau”, com as palavras-chave,
“acidente de trabalho indenização por dano moral, material e estético”, tipo "acórdãos",
classe "todas as classes", órgão julgador "todos os órgãos julgadores", fonte "todas as
fontes" e redatores "todos os redatores", entre as datas 14/07/2021 e 14/07/2022, por
ordem de relevância.
I - A primeira analise trata-se de acórdão de recurso ordinário de autor e
reclamada, caso julgado pela 8ª Turma do TRT da 4ª Região, pelo Desembargador Luiz
Alberto de Vargas, processo nº 0020308-69.2020.5.04.0406, em 05/07/2022. Na
referida decisão, os magistrados acordaram por maioria, havendo sido vencidos
parcialmente os Desembargadores Marcelo Ferlin D'Ambroso e Luciane Cardoso
Barzotto, dar provimento parcial ao recurso do reclamante no sentido de majorar para
R$ 10.000,00, o valor a título de indenização por danos morais e para R$ 5.000,00 o
valor a título de indenização por danos estéticos, havendo sido negado o recurso da
reclamada.
Em sentença havia sido constatado como fato incontroverso o acidente de
trânsito sofrido pelo autor durante jornada de trabalho, enquanto exercia suas atividades
em prol da reclamada, havendo sido admitido pela ré o fato em contestação e relatado
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 376

mediante CAT, bem como no laudo médico pericial. Foi configurado nexo causal pois a
atividade realizada pelo autor era considerada de alto risco, trabalhando como "agente
de atendimento de ocorrências" mediante uso de motocicleta ou veículo de propriedade
da reclamada, consequentemente, considerada responsável a demandada pois incumbe
ao empregador suportar o ônus advindo do empreendimento econômico. Assim como
foi citado o inc. XXVII do art. 7º da Carta Magna, como forma de estabelecer a regra
geral da responsabilidade subjetiva do empregador por danos decorrentes de acidente de
trabalho, bem como o parágrafo único do art. 927 do Código Civil, que fala sobre a
teoria do risco criado, responsabilidade objetiva do empregador, amplamente aludida na
presente pesquisa.
A ré como forma de defesa, citou culpa de terceiros no acidente, no entanto o
Juízo entendeu que tal alegação, mesmo que verdadeira, não afastaria a
responsabilidade do empregador em responder pelo dano causado, sendo reiterado na
decisão que o risco de acidente de trânsito era inerente e habitual nas atividades
exercidas pelo trabalhador. Sendo assim, foi comprovado o dano e o nexo de
causalidade, fatores essenciais para determinar o direito de indenização do autor. A
reclamada foi condenada ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$
3.000,00 e indenização por dano estético no valor de R$ 2.000,00. Em relação ao dano
material, a julgadora decidiu que não era devido, pois não houve redução de capacidade
laborativa permanente.
Durante recurso, o reclamante mostrou evidências de cicatriz na perna devido ao
acidente e juntou provas da realização de quinze pontos no local, evidenciando sequelas
permanentes, alegou dano estético, e afirmou que a cicatriz lhe trazia lembranças do
ocorrido, provocando comoção emocional, portanto, a indenização por tal dano deveria
ser majorada de R$ 2.000,00 para R$ 10.000,00, requerendo a consideração do grande
porte da empresa reclamada, com capital social de cerca de 50 (cinquenta) mil reais.
O magistrado considerou que para fins reparatórios, "o resultado não deve ser
insignificante, a estimular o descaso do empregador, nem exagerado, de modo a
proporcionar o enriquecimento indevido da vítima" (TRIBUNAL REGIONAL DO
TRABALHO, 2020). Desta forma, entendeu razoável a majoração para R$ 10.000,00 o
valor a título de indenização por danos morais. Quanto a indenização por dano estético
foi majorada para R$ 5.000,00, e entendeu-se como apropriada a cumulação da
indenização por danos morais com danos estéticos, encontrando respaldo na Súmula
387 do STJ, o que havia sido contestado anteriormente pela reclamada.
Quanto aos danos materiais, o magistrado explanou que a indenização busca
compensar, de forma proporcional a diminuição de perdas decorrentes de incapacidade
laboral, o que não cabia pois o laudo pericial constatou o autor como sendo apto para
trabalhar, sem redução de sua capacidade, não havendo que se falar em dano material.
Por fim, deu-se parcial provimento ao recurso do reclamante, majorando a indenização
por dano moral e por danos estéticos, negando provimento ao recurso da reclamada.
Percebe-se que durante todo o processo de decisão, existe a intenção de manter
presentes os princípios da razoabilidade e equilíbrio, amplamente abordados no decorrer
da presente pesquisa, de forma que não ocorram abusos ao empregador, nem seja
diminuído o sofrimento da vítima. De forma a elucidar tal premissa, analisa-se o voto da
Desembargadora Luciane Cardoso Barzotto que discordou da majoração dos valores
correspondentes a danos morais e estéticos, baseando-se em trechos da sentença que
constatavam a ausência de sequelas funcionais do autor para o trabalho, segundo perícia
médica, considerando também, ofensa leve decorrente de responsabilidade objetiva da
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 377

empregadora, bem como, segundo a desembargadora, os valores usualmente fixados


pelo Tribunal, entendo como não devida a majoração.
Quanto ao dano estético, após analisar fotografia anexada ao laudo, a mesma
entendeu como dano leve, sendo cicatriz em local coberto pelo uso de calça, portanto
razoável e proporcional o valor inicialmente estipulado por sentença, R$ 2.000,00, pois
segundo a Desembargadora, um valor superior acarretaria em enriquecimento indevido
do autor.
II - A segunda analise será realizada sobre decisão proferida pela 5ª Turma do
TRT 4ª Região, Relator Manuel Cid Jardon, processo nº 0020254-27.2019.5.04.0281,
em 14/07/2021. Entendeu-se como devida a indenização por danos morais, materiais e
estéticos, por restar comprovados nexo causal e culpa da reclamada, comprovação do
acidente sofrido pelo autor com danos evidentes. Negou-se provimento ao recurso
ordinário da reclamada, e, por unanimidade, deu-se parcial provimento ao recurso do
reclamante, afastando-se a redução de 20% no valor de indenização por dano material,
valor de condenação e custas processuais foram majorados, em R$ 20.000,00 e R$
400,00, respectivamente.
Quanto ao recurso da reclamada, a mesma restou inconformada com o
reconhecimento de culpa na ocorrência de acidente sofrido pelo reclamante, sustentando
argumentos de que o acidente foi inteiramente culpa do autor, que como empregadora
sempre instruiu seus empregados acerca de normas e proteções de segurança, bem como
insistia no uso de equipamentos de proteção individual, certificando-se de que as
recomendações fossem seguidas, logo, reitera que o acidente ocorreu devido à má
execução do procedimento de manutenção de equipamento pelo reclamante, requerendo
por fim, reforma da sentença.
O reclamante informou em sua inicial que no dia 04/04/2019, durante suas
funções de mecânico a serviço da empresa, foi vítima de acidente de trabalho
locomovendo um suporte de ferro, incidente que acarretou na perda de dois dedos de
sua mão esquerda, alegando culpa correspondente a reclamada.
A sentença entendeu que, em casos de culpa exclusiva da vítima, restaria
afastado o nexo de causalidade e, consequentemente, o dever de indenizar, porém, o
ônus da prova recai sobre o empregador, sendo assim, entendeu-se que a culpa não
corresponderia ao autor, pois este não havia sido devidamente treinado com relação a
revisão de equipamento e uso de suas mãos, e cita-se depoimento de testemunha, a qual
afirmou que após o conserto, era procedimento habitual verificar funcionamento com o
equipamento energizado, especificando que o treinamento recebido pelos trabalhadores
era o de bloqueio de energia e conserto do equipamento, sem incluir informações acerca
do procedimento de revisão visual.
Entendeu-se, portanto, culpa da empregadora, visto não ser suficiente o
fornecimento de EPIs e realização de cursos, e citou-se:

A responsabilidade do empregador por danos decorrentes de acidente


do trabalho depende da prática de ato ilícito, consistente na adoção de
conduta dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, esta última
configurada quando deixa de observar as obrigações legais e de adotar
as diligências adequadas à preservação da saúde e segurança do
trabalhador. Configurada esta hipótese, aliada à constatação da
ocorrência do dano e do nexo de causalidade com o trabalho, há que
se reconhecer o direito à reparação, por aplicação do artigo 927 do
Código Civil. (Recurso Ordinário nº 0020254-27.2019.5.04.0281, 5ª
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 378

Turma do TRT 4ª Região, Relator: Manuel Cid Jardon, Julgado em


14/07/2021).

Quanto ao ônus da prova, a decisão reitera ser do empregador segundo disposto


no artigo 157, II da CLT, complementando que a parte não de se desincumbiu de tal
ônus, não juntando provas de que promovia um ambiente de trabalho seguro a seus
empregados, sendo assim, negou-se provimento do recurso à empresa.
A reclamada mostrou-se inconformada com a condenação ao pagamento de
indenizações dos danos moral e estético nos valores de R$ 20.000,00 e R$ 15.000,00,
respectivamente, bem como o reclamante tampouco mostrou-se conforme com os
valores arbitrados, alegando que deveria ser aplicados os preceitos do art. 223-G, §1.º,
da CLT, já que o dano sofrido atingiu sua pessoalidade, deixando-lhe sequelas
profundas e permanentes, bem como dor e abalo emocional, requerendo classificação de
dano moral em grau máximo, com majoração para o valor de R$ 51.460,00, bem como
majoração do dano estético para R$ 20.000,00.
Dessa forma, restaram configurados dano e nexo causal com o trabalho realizado
e culpa da empregadora devido a ocorrência do acidente, quanto ao dano moral,
entendeu-se que, por ser presumido, independe de provas. Entretanto, quanto a lesão,
considerou-se como não sendo leve nem grave, pois foi em apenas uma das mãos, não
gerando incapacidade em índice alto, considerando-se coerente o valor inicialmente
arbitrado (R$20.000,00). Assim como entendeu-se razoável o valor definido a título de
dano estético, visto que este foi classificado em grau médio, devido as amputações.
Assim sendo, negou-se provimento a ambos recursos nos dois aspectos acima
explanados, e, quanto ao dano material, considerando-se a capacidade profissional
reduzida, deu-se parcial provimento ao recurso do autor, pela não redução do valor de
indenização em 20%.
III - Quanto ao terceiro caso, trata-se de decisão proferida pela 2ª Turma do TRT
4ª Região, Relator Marcal Hneri dos Santos Figueiredo, processo nº 0020298-
25.2020.5.04.0406, em 16/05/2022. Trata-se de acórdão que, por maioria, vencido em
parte o Relator, negou provimento ao recurso ordinário da parte reclamada, bem como
ao recurso do reclamante, por unanimidade, permanecendo inalterado o valor da
condenação.
Quanto aos fatos narrados nos autos, o autor da ação sofreu uma queda no
ambiente laboral fraturando o dedo mínimo de mão direita, devido a fratura, passou por
várias cirurgias, porém, permaneceram sequelas, o mesmo foi afastado do trabalho e
fazia uso de benefício previdenciário, recebeu notificação de cessação do mesmo em
18/10/2021.
Diferentemente dos casos analisados anteriormente, foi constatado que a
atividade realizada pela ré não expunha o reclamante a risco, havendo sido necessária
prova de dolo ou culpa da empresa. Foi configurado nexo causal em sentença, pois
incontroverso o acidente em local de trabalho e durante a jornada do autor.
Fazia-se necessária a comprovação de adoção de medidas preventivas da reclamada, à
luz da teoria da aptidão probatória, pois a presunção de culpa recai sobre a mesma e a
favor do empregado, já que o empregador é quem assume os riscos da atividade
econômica, art. 2º da CLT.
Foi considerado também o fato de que, ordinariamente, o empregado não se
acidenta intencionalmente, bem como, de que o autor permanece com sequelas e
esperando por nova cirurgia, já havendo sido realizadas o total de 3, e mantém-se
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 379

realizando fisioterapia. Sendo assim, foram preenchidos os requisitos para indenização


por parte da empresa.
Logo, se fez presente o dano moral baseado no trauma decorrente do acidente, e
o valor da indenização foi consubstanciado no salário percebido pelo autor na época do
acidente, R$ 1.267,89, arbitrando o valor da indenização em R$ 3.500,00.
Quanto ao dano estético, considerando parecer do perito, o qual classificou o
prejuízo como sendo leve, condenou-se a reclamada ao pagamento de R$ 3.000,00,
reiterando-se a licitude de cumulação de danos morais, estéticos e materiais, conforme
Súmula 387 do STJ.
Quanto aos danos materiais, condenou-se a reclamada no valor arbitrado de R$
21.575,68 em parcela única, considerando o salário do autor, a redução de sua
capacidade laboral em 5%, bem como sua idade na data do acidente, 37 anos, inclusive,
sua expectativa de vida, 72,8 anos.
Em recurso, com relação ao dano material, a reclamada alegou que o acidente foi
provocado pelo autor, tratando-se de culpa exclusiva da vítima, que não houve redução
de capacidade, e que, devido ao recebimento de benefício pelo reclamante, o pagamento
de valor sobre tal dano seria caracterizado como bis in idem. Alegando também, que a
jurisprudência tem pacificado a indenização até os 65 anos de idade da vítima.
Quanto ao dano material, o reclamado recorreu afirmando que não se aplica ao
caso responsabilidade objetiva, alegando doença ocupacional e que não houve culpa ou
dolo do empregador, requerendo redução do valor. E, do dano estético, nega sua
comprovação, sendo descabido o valor de R$3.000,00.
Por outro lado, o reclamante em seu recurso requereu majoração dos valores a
título de dano moral e estético, pois entendeu que não foram respeitados os princípios
de proporcionalidade e razoabilidade se considerado o patrimônio da empresa, sendo
este bilionário, requerendo, por fim, majoração para R$40.000,00 de ambas
indenizações, dano moral e estético.
Os magistrados entenderam que incontroverso o dano sofrido pelo reclamante,
ressaltando laudo pericial que comprova redução da capacidade laborativa. Quanto ao
dano material, explicam que contribuições da seguridade social em nada elidem com as
responsabilidades advindas da empresa devido ao acidente, não prosperando o
argumento da mesma. Por fim, entenderam proporcionais os valores atribuídos aos
danos morais (R$ 3.500,00) e estéticos (R$ 3.000,00) em sentença, quanto ao dano
material, deu-se parcial provimento ao recurso da reclamada, determinando como data
inicial para fins de cálculos, a data do ajuizamento da ação.
IV - Quanto ao quarto caso em analise, trata-se de decisão proferida pela 6ª
Turma do TRT 4ª Região, Relatora Beatriz Renck, processo nº 0020486-
52.2019.5.04.0406, em 12/05/2022. Trata-se de acórdão que, por unanimidade,
concedeu parcial procedência ao recurso da reclamante, condenando a reclamada ao
pagamento de indenização por dano moral, fixada em R$ 3.000,00 (três mil reais) e
indenização por dano estético, fixada em R$ 7.000,00 (sete mil reais). Por conseguinte,
inverteu-se o ônus da sucumbência, incumbindo à reclamada o pagamento das custas
processuais, honorários periciais e advocatícios, observando-se juros e correção
monetária, na forma da lei.
A reclamante relatou em primeira instância que no dia 11/06/2017, durante o
desempenho de suas atividades dentro do Hospital Geral, sofreu acidente de trabalho,
sendo vítima do ataque de um ser vivo, qual seja, uma aranha, em sua panturrilha
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 380

direita, situação que ensejou inúmeras lesões, tendo que ser afastada de suas atividades
laborais, atribuindo culpa à reclamada.
Conforme a sentença proferida, o juiz entendeu que a reclamada não teve
participação na consumação do acidente, como também que o conjunto probatório não
logrou êxito em comprovar o dano funcional oriundo das diversas sequelas provenientes
do acidente. Entretanto, o Tribunal indicou que, considerando a axiologia constitucional
pautada na dignidade do ser humano e na valorização do trabalho, bem como a função
social da empresa, é dever da reclamante assegurar que o meio ambiente de trabalho
seja seguro e hígido, a fim de proporcionar bem-estar aos trabalhadores e o
cumprimento das regras de segurança e medicina do trabalho.
Portanto, entende-se que a reclamada possui responsabilidade civil sobre o
ocorrido, evidenciando-se o dano, a conduta e o nexo de causalidade. Ainda nesse
sentido, a relatora mencionou que, embora a jurisprudência predominante defenda que
em situações de acidente de trabalho a responsabilidade civil do empregador seja
subjetiva, no presente caso restou comprovado o nexo causal entre o dano sofrido e o
acidente de trabalho. Outrossim, a culpa do empregador é presumida, diante da
imposição do trabalhador à situação de risco, colocando em perigo sua integridade em
virtude do trabalho prestado.
Por conseguinte, a relatora menciona a teoria do risco profissional, que defende
que havendo um fato prejudicial decorrente de uma atividade ou profissão do lesado,
surge o dever de indenização. Nesse sentido, o conceito de risco profissional encontra-
se expresso no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), bem
como nos artigos 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990).
Entende ainda a relatora, que tais dispositivos têm plena aplicação no direito do
trabalho, uma vez que vão ao encontro da situação fática, em que, numa relação de
emprego, o empregado sofreu dano devido ao trabalho prestado ao empregador, a teor
do artigo 8º da CLT (BRASIL, 1943) e art. 4º da LINDB (BRASIL, 1942).
No que tange ao pagamento de danos materiais na forma de pensionamento,
oriundo da impossibilidade do exercício de sua profissão ou da diminuição de sua
capacidade laboral, o acórdão defende que, conforme laudo pericial, a reclamante não
sofreu redução da capacidade de trabalho, tornando-se indevido o pensionamento de
forma vitalícia, conforme postulado na inicial.
Em relação à indenização por dano moral, entendeu-se que é necessário
considerar a extensão do dano, além do grau de culpa e as condições econômicas da
reclamada, visando reparar o dano sofrido, mas sem causar enriquecimento
injustificado. Dessa forma, evidenciando-se o nexo de causalidade entre o acidente de
trabalho e a reclamada, bem como o presumível abalo moral e psíquico da reclamante,
foi fixada indenização por danos morais no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais).
Quanto à alegação de dano estético, destacou-se que a jurisprudência admite a
acumulação do dano estético com o dano moral, frisando-se, contudo, a diferença entre
tais danos, pois o dano estético consiste em uma alteração morfológica advinda de
formação corpórea que gera desagrado e repulsa. Diante das cicatrizes visíveis na coxa
da reclamante, as quais configuram dano estético, fixou-se o valor de R$ 7.000,00 (sete
mil reais) a título de indenização.
V – A quinta analise foi realizada sobre acórdão da 5ª Turma do TRT 4ª Região,
Relatora Angela Rosi Almeida Chepper, processo nº 0020896-53.2019.5.04.0231, em
31/03/2022. Trata-se de recurso ordinário interposto por reclamante acerca de danos
estéticos e morais, com objetivo de majoração da indenização em vista de acidente
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 381

típico que lhe causou lesão em pálpebra esquerda, necessitando de cirurgia e deixando
cicatriz aparente.
O autor da demanda exercia as funções de chapeador para a empresa, com
relação de emprego constante desde 11/01/2012 até 06/06/2018, e entendeu como
irrisório o valor de indenização proferia em sentença, R$ 5.000,00, pois o acidente lhe
causou transtornos como cirurgia e pálpebra caída, sendo que, o perito mencionou a
possibilidade de cirurgia plástica para melhor resultado da cicatriz, tendo esta um
tamanho de 4 centímetros, o mesmo afirma que sua aparência estética lhe causa
sentimento de desgosto, humilhação e constrangimento.
Para tanto, o magistrado considerou o fato de que o acidente não afetou as
condições do autor para trabalhar, considerando devida a indenização de R$ 5.000,00
por danos morais e estáticos, e considera correta a sentença que indeferiu danos
materiais, devido sua plena capacidade para o trabalho.
Quanto ao dano moral e estético, entendeu-se como responsável a reclamada, e,
referente a cicatriz, esta foi considerada pequena pelo magistrado, porém perceptível, e
considerou-se que se trata do rosto do indivíduo, sendo assim, constata-se dano estético
existente e, em razão do mesmo, dano moral decorrente, ambos leves.
O magistrado atenta para o fato de que a reparação por dano moral busca
indenizar o reclamante por seu abalo psicológico, enquanto que a indenização por dano
estético, procura compensar o dano visível causado a imagem da vítima de acidente de
trabalho. Dessa forma, deu-se parcial provimento ao recurso ordinário apresentado pelo
reclamante, majorando em 15% o valor dos honorários devidos a seu advogado bem
como a indenização por dano moral e estético para R$ 10.000,00.
VI - A sexta analise de caso foi realizada sobre acórdão da 1ª Turma do TRT 4ª
Região, Relator Roger Ballejo Villarinho, processo nº 0020767-39.2019.5.04.0331, em
06/04/2022. Trata-se de recurso ordinário interposto pelas partes, reclamante e primeira
reclamada, acerca da responsabilidade civil do empregador, pois a existência de dano,
bem como o nexo causal, são fatores essenciais para imputar responsabilidade civil
(dono/culpa) ao empregador.
A primeira reclamada buscou reforma da sentença com relação a competência da
justiça do trabalho, responsabilidade civil decorrente de acidente de trabalho, dano
material, dano moral e dano estético; enquanto que o reclamante pretendia a
modificação quanto aos itens, dano moral, dano estético e dano material.
Inicialmente, a empresa pretendia o afastamento da responsabilidade civil quanto ao
acidente típico sofrido pelo autor, consequente absolvição das indenizações, bem como
fosse declarada culpa concorrente do reclamante, reduzindo o montante arbitrado às
indenizações, e o abatimento dos valores gastos com médico para a vítima, com risco de
violação do artigo 884 do Código Civil.
A empresa alegou, em suma, que o incidente ocorreu devido ao procedimento
errôneo do empregado, que o mesmo não seguiu as orientações da reclamada com
relação a máquina rebobinadeira, que colocou as mãos de forma imprudente na bobina
durante funcionamento do equipamento, que ficou provado que sua ação não era
necessária, bem como houve prova testemunhal que corroborou a versão da empresa.
Por outro lado, o reclamante pugna pela majoração das indenizações a título de
danos morais e estéticos, requerendo ainda que o valor decorrente de dano material seja
pago em parcela única, segundo artigo 950, parágrafo único da CLT, considerando sua
incapacidade total para o trabalho. Bem como acusa a primeira reclamada de risco
presumido, e que a mesma não tomou os devidos cuidados a fim de evitar acidentes, que
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 382

sente dores e que a volta ao estado anterior ao dano é impossível, sendo que a perícia
constatou incapacidade total para o trabalho, estando em gozo de benefício
previdenciário (auxílio-doença acidentário).
O magistrado por sua vez, afirma que o empregador responde civilmente pelo
acidente de trabalho quando existe dolo ou culpa, aplicando-se a responsabilidade civil
subjetiva, prevista no art. 186 do CC (BRASIL, 2002) e no inciso XXVIII do art. 7º da
CF (BRASIL, 1988), em casos excepcionais, considera-se responsabilidade objetiva do
empregador, ou seja, independente de culpa, em casos de atividades empresarias que
acarretem grandes riscos aos empregados, hipótese do artigo 927 do Código Civil
(BRASIL, 2002).
Também foi considerada a afirmação do perito técnico acerca do treinamento
recebido pelo autor, estando apto para operar a máquina, sendo esta de baixa
complexidade, porém, sem mecanismos de segurança.
Igualmente considerou-se pelo magistrado o depoimento no qual uma
testemunha explica que, independentemente do treinamento realizado pelo reclamante,
os empregados recebiam orientações para manusear a máquina durante seu
funcionamento, apenas freando-a, sem desliga-la, o que vai contra as orientações
fornecidas pelo perito. Frente a isso, negou-se provimento ao recurso da primeira
reclamada, sendo mantida sua responsabilidade civil.
Quanto ao dano material, lucros cessantes, considerou-se o caso como
incapacidade temporária total para exercício das atividades desempenhadas, sendo
assim, os danos causados ao trabalhador são equivalentes ao 100% da média do salário
percebido por este, incluindo um terço das férias e décimo terceiro, pois estes compõe o
rendimento no decorrer da relação empregatícia, porém, os lucros cessantes devem
sanar apenas o prejuízo econômico sofrido pelo empregado, correspondo a diferença
entre o valor do benefício recebido e a remuneração que este perceberia se estivesse
exercendo suas atividades laborais, e esclarece:

Todavia, prevalece neste Colegiado o entendimento de que, dada a


distinção da natureza jurídica e do fato gerador dos lucros cessantes e
do benefício previdenciário, não é possível que a indenização a cargo
empregador tenha como limitador a diferença havida entre os
respectivos valores. Logo, por medida de disciplina judiciária, deixo
de acolher o pedido. (Recurso Ordinário nº 0020767-
39.2019.5.04.0331, 1ª Turma do TRT 4ª Região, Relator: Roger
Ballejo Villarinho, Julgado em 06/04/2022).

Quanto ao pedido do autor acerca de pagamento em parcela única, considerou-se


que a incapacidade do mesmo foi temporária, havendo sido atestado pelo perito, bem
como seu contrato de trabalho foi suspenso, permanecendo em gozo do benefício
previdenciário, ou seja, não poderia ser concedido dano material em forma de pensão
vitalícia. Sendo assim, foi negado o recurso do reclamante e dado parcial provimento ao
recurso da primeira reclamada, de forma a excluir a indenização por dano material da
base de cálculos.
Referente ao dano estético, o magistrado considerou evidente, porém, entendeu
como sendo excessivo o montante de R$20.000,00, considerando a situação econômica
da primeira reclamada e o grau leve da lesão demonstrado por prova pericial, reformou
assim, o valor para R$ 5.000,00, dando parcial provimento ao recurso ordinário da
reclamada.
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 383

Sobre a reparação por danos morais, foi comprovada a responsabilidade civil da


empregadora bem como constatado o dano sofrido pelo reclamante, e, mesmo
considerando: a necessidade de intervenção cirúrgica, a culpa do empregador e a
incapacidade temporária constatada, decidiu-se por reduzir o valor de tal indenização de
R$20.000,00, para R$ 7.000,00. Conforme requerido pela primeira reclamada.
Durante as análises de casos expostas acima, pode-se perceber a complexidade
de formulação de vereditos, bem como de decisões que visam mensurar de forma
quantitativa a dor e sofrimento de alguém que viu sua integridade física e moral
afetados por um acidente de trabalho. Tal questão foi abordada no item 2.1 da presente
pesquisa, ponto que discorre acerca do desafio da mensuração de valores indenizatórios
por danos morais advindos de acidentes de trabalho, já que envolve a necessidade de
ressarcir, mediante valores monetários, os danos causados a moral e honra de um
trabalhador após o acidente laboral, sendo estas, bases intangíveis, o magistrado deve
arcar com a complexidade dos casos e das relações trabalhistas para formular a solução
mais justa para as partes envolvidas.
De forma a tornar tal mensuração mais acertada, percebem-se alguns pontos
essenciais que são considerados durante a formulação de decisões pelas Turmas
julgadoras, sendo alguns destes: o tempo de serviço prestado pelo trabalhador, o salário
percebido pelo mesmo no momento do acidente, proporções dos danos/lesões causadas
a vítima, dimensões de cicatrizes deixadas pelo evento, região do corpo onde se
encontram (se evidentes ou não), se tratam-se de marcas consideradas deformantes,
idade e expectativa de vida do trabalhador acidentado, tempo de incapacidade devido as
lesões, bem como, considera-se a capacidade econômica da empresa reclamada, tudo
com o objetivo de ponderar valores de indenizações o mais justos possíveis.
Quanto a competência para julgar casos análogos, a Súmula 392 do TST, que
trata de ações por dano moral e material advindos de acidentes de trabalho foi
reformulada em 2015, de forma a reafirmar a competência da Justiça do Trabalho para
julgar esses casos.
DANO MORAL E MATERIAL. RELAÇÃO DE TRABALHO.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. (nova redação) -
Res. 193/2013, DEJT divulgado em 13, 16 e 17.12.2013.
Nos termos do art. 114, inc. VI, da Constituição da República, a
Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações de
indenização por dano moral e material, decorrentes da relação de
trabalho, inclusive as oriundas de acidente de trabalho e doenças a ele
equiparadas (TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, 2015).

Tal alteração da redação foi proposta pelo ministro João Oreste Dalazen, então
presidente da Comissão de Jurisprudência e Precedentes Normativos, dessa forma, o
texto buscou a adequação ao entendimento já pacificado do TST, bem como do STF,
acerca da competência da Justiça do Trabalho para julgar ações motivadas por acidentes
em local de trabalho que acarretem em danos morais e materiais, garantindo inclusive, o
julgamento de ações propostas por herdeiros ou dependentes de trabalhador vítima fatal
de acidente ou que haja sido acometido por doença relacionada a função desempenhada
na empresa (BALBINO, 2015).
A Súmula vinculante nº 22 do STF segue a mesma orientação, e reitera a
competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações de indenização por
danos morais e patrimoniais, decorrentes de tais acidentes, propostas pelo empregado
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 384

contra o empregador, incluindo as ações que não possuem sentença de mérito em


primeiro grau (AUGUSTO, 2015).
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 385

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatou-se no desenvolver do presente trabalho, mediante pesquisa


bibliográfica e levantamento de dados estatísticos, a evolução do conceito de acidente
de trabalho no decorrer da história, com diferentes perspectivas fornecidas por autores,
profissionais da área jurídica e segurança no ambiente laboral, bem como tornou-se
latente a percepção dos vários âmbitos afetados por tais incidentes, como a própria
saúde e integridade física dos trabalhadores, sua subsistência e de seus dependentes
devido ao comprometimento de suas rendas, assim como os passos para a determinação
legal, regulamento da Previdência Social, fato gerador e formas de caracterização do
acidente para definição do tipo de benefício a ser concedido.
Foram apresentados os avanços na legislação e pontuados paralelos entre teoria e
realidade, de forma a ilustrar a real situação de um trabalhador acidentado, seus traumas
e condições econômicas após o acidente, devido ao cálculo de média aritmética simples
dos salários pagos como contribuição desde julho de 1994 ou desde o início da
contribuição.
Foi debatido o desafio de mensurar o valor a título de indenização por dano
moral provocado pelos acidentes, junto ao conflito e posterior pacificação com relação a
cumulação de danos morais e materiais, já que logo percebeu-se como lógico o fato de
que o mesmo fato gerador afete moral e materialmente a vítima, surgindo assim, o dever
de indenizá-la.
Igualmente, apresentou-se uma análise desde a ótica dos demais envolvidos,
tanto as empresas prejudicadas por falta de mão de obra e posterior pagamento de
indenizações advindas dos acidentes com seus obreiros, incluindo, a própria Previdência
Social como Estado e sociedade, os quais devem responsabilizar-se pela administração
de benefícios acidentários, formulação de laudos médicos acertados e justiça social.
Por fim, foram trazidas decisões do Tribunal Regional do Trabalho, 4ª Região,
com os últimos entendimentos dos magistrados acerca dos valores dados as
indenizações por danos morais, materiais e estéticos, a fim de elucidar as consequências
econômicas advindas de acidentes em ambiente laboral, bem como as duas concepções
presentes nos litígios, empregado e empregador.
Nesse sentido, acredita-se haver formulado uma ferramenta para que o leitor
possa verificar os níveis do crescente número de acidentes de trabalho ou doenças
advindas dele, tanto em nível estadual, quanto nacional e mundial, inclusive durante a
pandemia por COVID-19, que a pesar de recente, produziu e ainda produz, severos
efeitos a curto e médio prazo com doenças como depressão, estresse, ansiedade e
demais transtornos mentais, produzindo aumento de 30% na utilização de auxílios-
doença, acidentários e não-acidentários.
Percebe-se então, que a mensuração de despesas advindas de tais ocorrências é
complexa, pois devem ser incluídos custos diretos e indiretos, considerando desde o
tratamento médico do acidentado, até sua reabilitação e posterior concessão do
benefício, bem como os prejuízos ao empregador, decorrentes de substituição,
treinamento, contratação de novos profissionais e pagamento de indenizações por danos
morais, estéticos e materiais que acabam por sobrecarregar o sistema judiciário,
produzindo despesas também nessa seara.
Nesse diapasão, possibilitou-se uma visão capaz de conscientizar dos problemas
que acarretam os acidentes em ambiente laboral, atentando aos direitos que resguardam
os trabalhadores mediante a evolução legislativa referente ao assunto, bem como alertar
A PESQUISA JURÍDICA NA FRONTEIRA DA PAZ ____________________________ | 386

aos empregadores da importância de aplicar e internalizar a cultura de prevenção em


suas empresas a fim de evitar transtornos e perdas econômicas, como constatado no
decorrer da pesquisa, os quais, percebem-se morosos para ambas as partes, não
fornecendo aos acidentados meios de voltar ao estado físico/psíquico anteriores ao
acidente.
Portanto conclui-se como uma das soluções, a formação de consciência
prevencionista e conciliação entre empresários e trabalhadores, a fim de estabelecerem,
de forma conjunta, a importância de condições seguras no ambiente de trabalho como
uma garantia de qualidade de vida, não admitindo-se desperdícios, principalmente, de
vidas humanas, pois segundo Pastore (2011), "o processo educativo, quando associado à
lógica econômica, é mais importante do que o processo punitivo".
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da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de
1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no
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