Introdução A Semnatica e Pragmatica

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Semântica

Renato Miguel
Basso
Luisandro Mendes
de Souza Roberta


Período
Pires de Oliveira
Ronald Taveira

Florianópolis - 2009
Governo Federal
Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro de Educação: Fernando Haddad
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Distância Diretor Unidade de Ensino: Felício Wessling Margutti
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Letras-Português na Modalidade a
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Ficha Catalográfca

S471 Semântica / Renato Miguel Basso...[et al.]. – Florianópolis :


LLV/CCE/ UFSC, 2009.
151p. : 28cm

ISBN 978-85-61482-17-6

1. Semântica – Estudo e ensino. 2. Gramática comparada e geral.


3. Ensino a distância. I. Basso, Renato Miguel. II. Título.

CDU: 801
Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina.

Sumário
Unidade A
.......................................................................................
...11 1 Semântica e pragmática: delimitando os
campos...........................13 1.1 O vasto domínio do signifcado
..................................................................13 1.2 O Signifcado
linguístico ...............................................................................15 1.3 A
noção de signifcado
..................................................................................20 1.4
Considerações
fnais........................................................................................24
2 Conhecimento semântico e os nexos semânticos:
acarretamento, contradição e sinonímia
............................................25 2.1 Conhecimento semântico
implícito...........................................................25 2.2.
Composicionalidade........................................................................
...............30 2.3 Trama semântica
..............................................................................................33 2.4
Condições de verdade
...................................................................................36 2.5
Considerações
fnais........................................................................................39

3 Metalinguagem
............................................................................................41
3.1 Teorema-T
.........................................................................................................
...41 3.2 Analisando uma língua
..................................................................................42 3.3
Considerações
fnais........................................................................................54

4
Pressuposição.........................................................................
.......................55 4.1 Caracterizando a
pressuposição..................................................................55 4.2 Os
gatilhos.............................................................................................
..............58 4.3 Acomodando
pressuposições......................................................................61 4.4
Considerações
fnais........................................................................................63

Unidade
B....................................................................................
.......65 5 As descrições
defnidas..............................................................................67 5.1
O papel semântico das DDs:o começo do
debate................................68
5.2 Como capturar a reação das DDs aos contextos A, B e C
semanticamente?.......................................................................
......................69
5.3 Falsas nos contextos A e
B.............................................................................69 5.4 Nem
falsas nem verdadeirasnos contextos A e
B..................................73 5.5 A função textual das
DDs...............................................................................76 5.6
Considerações
fnais........................................................................................79

6
Negação..................................................................................
.........................81 6.1 As várias maneiras de
negar.........................................................................81 6.2 O
‘não’..................................................................................................
..................83 6.3
Escopo.............................................................................................
......................86 6.4 Negações
escalares..........................................................................................
88 6.5 Os itens de polaridade
negativa..................................................................89 6.6 Negação
metalinguística
...............................................................................91 6.7
Considerações
fnais........................................................................................92

7 Quantifcação
................................................................................................
93 7.1
Introdução........................................................................................
...................93 7.2 A quantifcação nominal
................................................................................95 7.3
Interação de quantifcadores:as relações de
escopo...........................99 7.4 Considerações
fnais......................................................................................102

8 Comparação (ou a semântica das sentenças


comparativas).....103 8.1 A gramática da
comparação.......................................................................104 8.2
Interpretando as orações
comparativas.................................................109 8.3
Considerações
fnais......................................................................................114

Unidade
C....................................................................................
.... 117 9 Progressão
temporal................................................................................119
9.1 Referência temporal e progressão temporal
........................................121 9.2 Mecanismos de progressão
temporal.....................................................123 9.3 Regras-padrão e
outras.................................................................................126 9.4
Considerações
fnais......................................................................................128 10

Modalidade – os auxiliares
modais..................................................129 10.1 Introdução
......................................................................................................129
10.2 Auxiliares
modais.........................................................................................131
10.3 A semântica dos
modais............................................................................133 10.4 O
tempo e a
modalidade...........................................................................137 10.5
Considerações
fnais....................................................................................139

Coda..............................................................................
.................... 141
Referências...................................................................
................... 145
Glossário.......................................................................
................... 147
perdendo muito se essa for a nossa única tarefa.
Apresentação Trata-se, na verdade, do mesmo problema que
atingiu o ensino da gramática normativa:
ensina-se não somente uma coisa, mas se

E
ensina a repeti-la – não há questionamentos, e
perde-se a dimensão de se aprender algo sobre
ste Livro-texto introduz uma série de
a língua, criando assim a imagem de que não há
nada para aprender sobre a língua. Ora, ensinar
tópicos em Semântica, uma
sobre a língua não é apenas ensinar regras do
disciplina que ainda não teve chance de entrar
bem escrever, e o interesse de estudo de uma
nos ensinos médio e fundamental e que só muito
língua não se encerra (e nem se inicia) no texto.
recentemente aparece em currículos de cursos
de Letras (mas não em todos!). O máximo que As línguas humanas são um objeto muito

vemos de semântica na escola diz respeito aos interessante, extremamente complexo e ao


conteúdos referentes a antônimos e sinônimos. E mesmo tempo facilmente acessível: afnal, todos
falamos. É por isso que o estudo das línguas
mesmo as versões mais modernas de ensino de
humanas tem sido adotado, em várias univer
português, que têm se basea do no texto (a
sidades no mundo (dentre elas o famoso MIT),
Linguística Textual), pouco utilizam os conceitos
em cursos introdutórios de metodologia científca
da Semântica que, no entanto, são
para todas as áreas. É muito fácil aprender como
absolutamente fundamentais. Por exemplo, o
cons truir hipóteses e refutá-las usando as
conceito de anáfora, tão essencial na construção
línguas naturais – e, como hoje sabemos, lidar
de um texto, vem da Semântica. Curioso é que
com hipóteses, construí-las, submetê-las ao crivo
já contamos, desde 2001, com pelo menos uma
da empiria e refutá-las é parte fundamental do
publicação que traz pro postas de ensinar
fazer científco. Mas, esse movimento exige que
semântica na sala de aula, trata-se de
obser
Introdução à semântica,
brincando com a gramática
(2001), de Rodolfo Ilari. Mas, talvez a ausência
da Semântica na sala de aula possa antes ser
explicada por uma certa “fobia” da gramática:
nos últimos anos, as pedagogias do ensino de
língua materna tomaram como objetivo único
das aulas de português o ensino da leitura e da
produção textual. Não há dúvida alguma que é
parte da nossa tarefa de edu cadores ensinar a
ler e a escrever, mas certamente estamos
Ou, numa terminologia mais próxima da gramá
tica, seriam “advérbios de intensidade”.

Se você se interessar, procure na internete, por


exemplo, os trabalhos de
Angelika Kratzer, Gennaro Chierchia, Kai von
Fintel, Irene Heim, Manfred Krif ka, para alguns
expoentes atuais.
Massachusetts Institute of vemos a língua em si sem nos preocuparmos
Technology com o fato de que ela é o veículo para
apreendermos o pensamento dos outros (via
leitura ou via escuta) e para veicularmos o nosso
pensamento (ou ainda para dissimular o que
pensamos, para enganar, via oralidade ou via
escrita).

Mas, olhar a língua, sua estrutura, sua gramática,


fcou quase que proi bido depois que se decretou
o fm do estudo da gramática – joga-se fora o (1848-1925) sobre lógica, linguagem e
bebê com a água do banho. É claro que não matemática, e entre es
estamos propondo um retorno ao velho ses flósofos podemos citar Bertrand Russell
esquema de ensinar gramática normativa, ainda (1872-1970), Donald Davidson (1917-2003),
mais a gramática que é praticada nas escolas, Richard Montague (1930-1971), dentre muitos
uma gramática que nem é da nossa língua. outros. Na déca da de 70, Barbara Partee, uma
Ninguém no Brasil, com talvez exceção de uns linguista que estudou com Noam Chomsky e
poucos imortais, fala: “Eu lho trouxe”. Isso é Richard Montague, transpôs essa tradição para a
português europeu! A semântica que você vai linguística, que desde então só foresce, e não
encontrar neste Livro texto pretende ser uma apenas internacionalmente. Embora muito
análise da estrutura do português brasileiro atual recente, há tam bém um grupo de semanticistas
– da língua que vocês, que nós de fato falamos - de relevo no Brasil: Rodolfo Ilari, Ana Lúcia
como você vai ver, uma das vídeo aulas é sobre Müller, José Borges Neto, Roberta Pires de
expressões do tipo “pra caralho” e “puta”, que Oliveira, dentre outros.
são modifcadores de grau. A disciplina de O que caracteriza essa semântica, chamada de
Semântica busca construir um modelo para formal, não é, como pensam alguns
explicar como é possível que nós, seres fnitos, equivocadamente, sua relação com a sintaxe
num tempo tão curto, em poucos anos, sejamos gerativa, aquela praticada pelos
capazes de atribuir signifcado a qualquer chomskianos. A semântica se baseia
sentença da nossa língua, mesmo àquelas na sintaxe, mas pode escolher sua sintaxe (é
absolutamente novas, àquelas que nunca muito comum encontrar semanticistas formais
ouvimos antes. Essa não é uma capacidade que se fliam a uma gramática chamada de
trivial, embora ela esteja sempre conosco. Um categorial, iniciada por Montague e distante em
flósofo da linguagem muito famoso, chamado pon
Ludwig Wittgenstein, afrmava que nós somos tos fundamentais da gramática gerativa). Uma
tanto a linguagem, ela nos constitui de tal forma, das características principais da semântica é ser
que temos difculdade de nos distanciarmos dela uma teoria científca e, como tal, amparar-se
para olhá-la. É esse, porém, o movimento numa linguagem formal, num cálculo lógico. É
fundador do cientista: distanciar-se do objeto exatamente o que os físicos fazem ao empregar
para poder entendê-lo. a matemática para entender as leis da natureza.

Essa semântica não descende da linguística Porém, atenção, os físicos usam a linguagem

estruturalista saussureana – Saussure, feliz ou matemática para expressar as leis da

infelizmente, não é o pai de todos os linguistas –, natureza, mas isso não signif
mas da tradição da lógica e da flosofa da ca que eles acreditem que a

linguagem, de cunho analítico. Até a década de natureza é matemática.


70, a Semântica era praticada quase que Obviamente, alguns têm tal crença, entre eles o

exclusivamente por flósofos que, de uma mais famoso é Galileu. O mesmo se dá com o

maneira ou de outra, estavam respondendo a semanticista: a lógica que ele usa é apenas

questões colocadas por Gottlob Frege veículo de expressão das regras formuladas, de
suas hipóteses – nenhum semanticista reduz a formais. Mas, não é a toa que a matemática é
língua natural a um sistema lógico. Se você uma linguagem, e talvez seja um equívo co
ouviu tal crítica, certamente foi de alguém que opô-las. Ao longo deste Livro-texto você vai se
não conhece o trabalho dos semanticistas. deparar várias vezes com conceitos da teoria de
conjuntos da Matemática. Esperamos que esteja
Alfred Tarski, um lógico e flósofo muito
aí um convite para que os professores de
importante em várias áreas - porque elaborou,
Português desenvolvam juntamente com
dentre outros, o conceito de metalinguagem -,
mostrou que as línguas naturais são
fundamentalmente inconsistentes, elas geram
parado xos. Com isso, ele concluiu que não era Você teve contato com a Sintaxe Gerativa na
disciplina do professor Carlos Mioto! Veja mais
possível dar a elas um tratamento for mal.
em: MIOTO, C. Sintaxe do Português.
Posteriormente, um outro flósofo, Richard Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2009.
Montague, demonstrou que podemos descrever
formalmente “fragmentos” das línguas naturais.
Essas são questões muito complexas e talvez
seja preciso investigar mais para podermos
saber se as línguas naturais são ou não, em
parte, um cálculo. Como você deve saber a
teoria da relatividade coloca a luz como algo
paradoxal, que é e não é matéria, e não há uma
teoria lógica óbvia que dê conta dessa situação.
Não há dúvida, contudo, de que, como
metalinguagem, a lógica é uma ferramenta muito
importante para o semanticista.

Essa maneira de ver as línguas naturais é


certamente muito estranha, por que Newton da Costa, um ló gico brasileiro com
historicamente fomos levados a acreditar que o pouco reconhecimento nacional, propôs uma
lógica in consistente que pode dar subsídio a tal
português e as línguas são o oposto de ciências
teoria sobre a natureza da luz.
exatas, o oposto da matemática, dos sistemas
os professores de Matemática projetos em comum que não sejam
apenas para ensinar os alunos a decifrar os problemas de
matemática.

Usamos conceitos dessa teoria para entender o signifcado nas


línguas naturais (os semanticistas também utilizam comumente
funções, mas não fa remos isso aqui) sem, no entanto, nos
comprometermos em afrmar que há uma identidade entre elas. As
línguas naturais se caracterizam por serem con textuais, por
carregarem elementos dêiticos, aqueles que só ganham sentido na
situação de fala, que estão totalmente ausentes das linguagens
formais. Isso, porém, não signifca que não podemos usar uma
linguagem formal, arregi mentada, como se costuma dizer, para
descrever esses fenômenos.

Ao longo deste Livro-texto, exporemos as questões com as quais


lidam os semanticistas, e os métodos por eles empregados. Veremos
isso nos quatro primeiros tópicos do capítulo Conceitos Básicos. O
capítulo seguinte, Opera ções Semânticas, que traz os próximos
quatro tópicos, lidará com problemas semânticos específcos e com
algumas soluções encontradas na literatura. Por fm, os dois últimos
tópicos do capítulo Intencionalidade lidará com proble mas que têm
a ver com tempo e mundos possíveis.

Por ser um assunto novo ao graduando de Letras, que


provavelmente não viu nada de semântica no ensino médio, e
também por ser um assunto relati vamente complexo, que envolve
rigor nos raciocínios e na resolução das ati vidades – afnal, a
semântica usa a lógica para se expressar –, é necessário que você
leia com atenção todo o conteúdo aqui proposto e se dedique à
resolução dos exercícios. É quase como aprender matemática ou
física: só sabemos mes mo quando fazemos os exercícios.

Esperamos que ao fnal você saiba como trabalham os


semanticistas, quais questões lhes interessam e como eles procuram
resolvê-las. Tudo o que está ex posto no que segue foi feito em
termos de questionamento, com a intuição de mostrar como a língua
pode ser investigada de um ponto de vista científco e com uma
metalinguagem estabelecida. Esperamos que você goste!

Os autores

Unidade
A Conceitos
Básicos
CAPÍTULO 01 Semântica e pragmática:
delimitando os campos

1 Semântica e
pragmática: delimitando
os campos

Neste Capítulo, você vai conhecer o domínio do campo de

investigação da Semântica, opondo-o a outros,


principalmente ao da Pragmática.

1.1 O vasto domínio do signifcado


O termo signifcado tem uma acepção muito mais
ampla nas nos sas conversas cotidianas do que tem na
Linguística, e ele é ainda mais restrito quando estamos
pesquisando em Semântica. É por isso que pre cisamos,
inicialmente, ter clareza sobre o que se entende por esse termo
quando estudamos semântica. Por exemplo, no dia-a-dia,
conversamos sobre o signifcado da vida. Essa não é, no
entanto, uma questão se mântica, porque ela pergunta sobre o
signifcado de algo que ocorre no mundo: enquanto um
fenômeno no mundo, a vida pode receber dife rentes
explicações, nenhuma delas semântica: a resposta dada pela
bio logia, pela bioquímica, pelas religiões, pelo senso-comum. A
semântica, no entanto, nada pode dizer sobre o signifcado da
vida enquanto tal ou de qualquer outra “coisa” no mundo,
porque ela explica apenas um tipo muito específco de
fenômeno: o signifcado que atribuímos às sentenças e
expressões de uma língua natural, uma língua que aprendemos
no ber ço, sem aprendizagem formal.

O máximo que a semântica pode dizer é o


signifcado da palavra “vida”, algo que aparece nos
dicionários. Há uma notação específca que podemos usar para
indicar quando se trata de semântica e quando se trata do
fenômeno no mundo, as aspas simples, como abaixo:

(1) Qual o signifcado da vida?

(2) Qual o signifcado de ‘vida’?

Na sentença em (1), o que está em causa é o próprio ato


de viver, em que condições esse ato faz algum sentido. Em (2),
temos uma questão sobre o signifcado da própria palavra
‘vida’, talvez algo próximo do que aparece nos dicionários.

13
Semântica
Considere outro exemplo. É comum especularmos sobre o
signifca do de um ato. Suponha que o João é o chefe da Maria
e ele saiu apressado da sala dele em direção à sala do
presidente da empresa. A Maria pode se perguntar o que
signifca essa saída brusca de João, o que será que houve para
ele sair dessa maneira, algo tão incomum. Porém, mais uma
vez, essa especulação não é semântica, porque a pergunta
não é sobre o signifcado de uma fala ou de uma expressão
linguística, mas de um ato realizado por João. Contraste com a
seguinte situação: João está expondo as metas da empresa
para o próximo ano, e ele diz: O leiaute da nossa empresa
precisa ser reformulado. E a Maria se pergunta: O que será
que ‘leiaute’ signif
ca? Neste caso, sim, estamos diante de uma indagação
semântica, porque Maria se pergunta sobre o signifcado de
uma palavra, a palavra ‘leiaute’, e a resposta deve ser um
esclarecimento sobre o signifcado dessa palavra usando outras
palavras: leiaute é o projeto do desenho gráfco de uma
empresa. Maria aprendeu algo sobre a língua (e não sobre o
mundo).

Assim, uma primeira distinção a ser traçada, no vasto


domínio do termo signifcado, separa o signifcado
linguístico, que é aquele veicula do pelas línguas naturais, e o
signifcado não-linguístico, que compre ende o signifcado que
atribuímos a objetos (ou fatos) no mundo e a símbolos que não
são parte das línguas naturais.

Vejamos um exemplo desse último caso. Imagine a


seguinte situa ção: numa aula para arquitetos de interior, um
instrutor explica o signi fcado de símbolos que devem constar
num projeto arquitetônico para prédios, como o que
apresentamos ao lado:

– Esse símbolo - ele diz apontando para o slide na


tela - signifca que há acesso para
cadeira de rodas. Tal uso do termo ‘signifca’ deve
fazer parte da linguística? Se você respondeu negativamente,
acertou. De fato, esse uso do termo não se refere ao signifcado
linguístico, embora na si
tuação o falante esteja dando o signifcado de um símbolo. O
problema é que o símbolo em questão não é parte de uma
língua natural. Ele é um símbolo não-linguístico, embora
convencional.

Considere agora outra situação. A polícia está procurando


um ca sal que se perdeu numa foresta. De repente, os policiais
veem fumaça no céu e um deles diz:

14

CAPÍTULO 01 Semântica e pragmática:


delimitando os campos

– Essa fumaça signifca que alguém fez uma fogueira.

Mais uma vez, esse uso do signifcado não é linguístico,


porque se está atribuindo signifcado a um fenômeno no mundo.
É o que ocorre quando, ao notarmos que uma criança está com
febre, dizemos: signi fca que ela está doente. Veja que não se
está esclarecendo o signifcado da palavra ‘febre’, mas o que
ter febre no mundo pode estar indicando. A febre é um sinal de
doença, mas não signifca, linguisticamente falan do, doença.
Em nenhum dos casos questiona-se sobre o signifcado de
expressões linguísticas, por isso eles não fazem parte do
campo da se mântica, cujo estudo se restringe ao signifcado
linguístico, isto é, àquele veiculado pelas línguas naturais.

Chegamos, então, a um primeiro quadro, separando o


signifca do linguístico do signifcado não-linguístico, para nos
concentrarmos adiante no signifcado linguístico, isto é, aquele
que ocorre nas línguas naturais, e que é objeto de estudo da
Semântica.
(vínculo através de uma língua
Significado Linguístico natural)
x Significado Não-Linguístico
Convencionais Não Convencionais
x
(Natural)
linguístico
Febre = Doença
PARE

1.2 O Signifcado
da semântica, ocupando também a pauta
das ciências cognitivas e, em particular, da
Pragmática. Para desde já entendermos um
pouco melhor as diferenças e relações entre
semântica e pragmática, consideraremos a
seguinte situação: a Ma
Uma primeira constatação é a de que não
basta separar o signifca do linguístico do
signifcado não-linguístico para delimitar o
campo da Semântica, porque o estudo do Qual é a relação entre signi fcados linguísticos e
signifcado linguístico transborda as mar gens o que acontece no nosso cérebro?
do que fazem os semanticistas, as margens

15
Semântica

ria é a empregada de Joana. Ambas sabem que a roupa está


estendida no varal. De repente, Joana profere (3):

(3) Tá chovendo.

A Maria mais que depressa sai correndo para tirar a roupa


do varal, dizendo:

(4) Já tô indo tirar a roupa do varal.


Veja que os atos de Maria, inclusive o ato linguístico (seu
proferi mento), não respondem ou se relacionam diretamente à
sentença que Joana proferiu, mas decorrem dela. Se
atentarmos apenas para o signi fcado da sentença, notaremos
que a Joana afrma que, no momento em que ela profere a
sentença, é o caso de que está chovendo e nada mais. Ela não
pede explicitamente para que a Maria recolha a roupa do varal,
mas é possível “deduzir” que foi isso que a Joana quis dizer se
contex tualizarmos a fala de Joana, isto é, se atentarmos para
outros elementos dados pela situação de fala e que constituem
o proferimento linguístico: Joana e Maria sabem que a roupa
está no varal, que Maria é a empre gada - ela é quem deve
cuidar dos afazeres da casa - que chuva molha a roupa, que o
que a Joana disse é verdade (a Joana não está brincando) etc.
Todas essas informações (e outras) constituem o fundo
conversa cional no qual o proferimento de Maria se realiza, e
esse fundo permite um raciocínio inferencial de Maria, como:
dada a situação, se a Joana disse que está chovendo é porque
ela quer que eu tire a roupa do varal. Tanto a resposta quanto
os atos de Maria mostram que ela entendeu o pedido indireto
de Joana. Esse signifcado é também linguístico, porque ele
depende do que foi dito na situação, mas ele não é
propriamente semântico, porque ele depende de um cálculo
inferencial (da esfera da pragmática) que envolve elementos
contextuais a partir do signifcado da sentença, este sim objeto
da semântica.

Vejamos outra situação:

Cláudia é a mãe de Pedro, e ele está se preparando para


sair para a escola. Ela nota que ele não está levando nem capa
de chuva, nem guarda-chuva, e ela sabe que está chovendo.
Então, ela profere:

(5) Tá chovendo.

16

CAPÍTULO 01 Semântica e pragmática:


delimitando os campos
A fala de sua mãe leva Pedro a pegar o guarda-chuva
antes de sair. A sentença (5) diz exatamente o mesmo que a
sentença (3): no momento em que o falante profere a sentença
é o caso de que está chovendo – a semân tica das duas
sentenças é a mesma. Mas, as inferências mudaram, porque
mudou o fundo conversacional em que se dá a interação
linguística. Nesse caso, os elementos na situação levam a
outro raciocínio: se minha mãe disse que está chovendo é
porque ela quer que eu leve o guarda-chuva, para que eu não
me molhe.

Assim, mesmo restringindo a noção de signifcado para a de


sig nifcado linguístico podemos ainda subdividir esta em dois
níveis de signifcado: um que está atrelado ao signifcado da
sentença, a uma composição estrita do signifcado das
palavras, e outro, que depende do signifcado da sentença
mais informações sobre a situação em que a sentença é
proferida pelo falante. Essa é a distinção entre o signifcado da
sentença e o signifcado do falante, respectivamente.

Podemos, grosso modo, dizer que à Semântica cabe o


estudo do significado da sentença, enquanto cabe à
Pragmática o estudo do significado do falante.

Não é difícil encontrar na literatura a distinção entre signifcado


da sentença e signifcado do falante sendo estabelecida através
da ausência ou presença do contexto para o cálculo do
signifcado – algo como: a se mântica estuda o signifcado fora
do contexto (“fora de uso”). No entan to, é preciso tomar
cuidado com essa defnição porque a interpretação do sentido
da sentença muitas vezes leva em consideração o contexto, a
situação de fala. Por exemplo, o signifcado da sentença (3) e
(5) é: no momento em que a sentença é proferida, é o caso de
que está chovendo. Assim, essa sentença é verdadeira
somente se, quando o falante a profere, é o caso de que está
chovendo, não importa se no contexto de (3) ou de (5). Note,
contudo, que incorporamos o contexto nessa descrição porque
é necessário saber quando e onde o falante fala (3)
ou (5): ora, a verdade da sentença depende de estar ou não
chovendo quando e onde a sentença é pronunciada,
e o quando e onde (data, hora, local) não são
linguísticos.

Vejamos outro exemplo. A sentença

17
Semântica

(6) Eu estou com fome.

Signifca que o falante, no momento em que profere a


sentença, está num estado de fome. Num mesmo momento,
ela pode ser verdadeira para um falante e falsa para outro. Ou
ela pode ser verdadeira para um falante num momento e falsa
para o mesmo falante em outro momento. Sem levarmos em
consideração o contexto, não há como estabelecer plenamente
o signifcado dessa sentença (e da maior parte das sentenças
nas línguas naturais).

Uma maneira mais segura de separar a semântica da


pragmática é através da noção de intenção do falante: a
pragmática busca recons truir o que o falante quis dizer ao
proferir uma sentença, qual era a sua intenção comunicativa; é
importante notar que se trata de intenção co municativa, isto é,
o falante quer que o ouvinte perceba sua intenção ao proferir
uma dada sentença, o que o levou a dizer o que disse. Há,
evidentemente, outras intenções para além da comunicativa,
mas essas não pertencem ao domínio da linguística.

Por sua vez, a semântica tem como objetivo reconstruir o


sentido da sentença, porque a composição de palavras fornece
signifcado à sentença. Ambas remetem ao contexto, mas o
fazem com fnalidades distintas.

Como você pode ter notado, as relações entre semântica e


prag mática são bastante estreitas e as questões levantadas
pela pragmática requerem um estudo à parte (que não será
alvo direto desta Disciplina). Nosso interesse é apenas separar
o domínio da semântica. A discussão acima deve ter permitido
entender os seguintes quadros:

Semântica Pragmática
O que o faltante quer dizer com a
Signifcado da Sentença (SS). O
sentença que ele profere.
que a sentença diz.
Signifcado do falante (SF).

Observe outro exemplo, com base nesses quadros:


Suponha que Ma ria responda à pergunta ‘Quem quer namorar
um semanticista?’ usando a seguinte sentença: ‘Teresa quer
namorar um semanticista’. Com esse profe rimento, é possível
salientar duas interpretações semânticas (a e b a seguir) se o
proferimento é feito fora de algum contexto específco, e no
mínimo quatro interpretações pragmáticas (c, d, e, f) podem ser
tomadas, somente depois que escolhermos entre (a) ou (b):

18

CAPÍTULO 01 Semântica e pragmática:


delimitando os campos

a) Teresa quer namorar um determinado indivíduo X, que é


semanticista.

b) Teresa quer namorar alguém, desde que seja um semanticista.

c) Teresa quer namorar um determinado indivíduo,


semanticista: ela sabe quem é, mas não Maria, porque
Teresa não lhe revelou o seu nome.

d) Teresa quer namorar um determinado indivíduo X,


semanticista: também disse a Maria como se chama e o
apresentou a ela, mas Maria, por precaução, não julga
oportuno entrar em particulares.

e) Teresa está interessada por X e deseja namorá-lo, disse


a Maria quem é; ocorre que Maria sabe que é um
semanticista. Neste ponto não é relevante decidir se
Teresa sabe disso, se ignora ou se Maria já tenha lhe
dito. O fato é que Maria julga que, como Teresa está
defendendo uma tese em Sintaxe, os dois não poderão
nunca se entender e aquele namoro não vai acontecer
(suponha que sintaticistas e semanticistas não se
combinam ou são rivais). Ou seja, Maria exprime aos
interlocutores (que co nhecem muito bem as ideias de
Teresa) a sua perplexidade.

f) Teresa quer namorar X, que é semanticista; Teresa


terminou com um namorado que estuda sintaxe, assim
como ela estu da sintaxe. Mas, neste ponto, Teresa quer
fazer ciúmes ao ex namorado, namorando um
semanticista. Todos sabem que o ex-namorado de
Teresa odeia semanticistas e isto seria muito penoso
para ele.

No exemplo acima, a sentença traz duas interpretações semânti


cas, visíveis em (a) e em (b): se você observar bem, a sentença
‘Tereza quer namorar um semanticista’ é ambígua; a sentença
pode ainda car regar outras interpretações pragmáticas (de (c)
a (f)). Percebe-se que na pragmática outras informações são
necessárias, como, por exemplo, as intenções de Tereza
presente na interpretação pragmática (f): ela quer fazer ciúmes
ao ex-namorado, que o ex-namorado odeia semanticistas etc.
Mais uma vez, na pragmática, o falante precisa de outras
informa ções além daquelas oriundas de sentença – o
signifcado da sentença –, como, por exemplo, o contexto, as
intenções, o uso etc. A ideia é que a

19
Semântica
naturais. Frege, no famoso artigo Sobre o
Sentido e a Referência (1892, Über
Sinn und Bedeutung), mostra
que é preciso distinguir facetas no conceito
de signifcado, pois se não separamos es ses
aspectos não entendemos as razões das
sentenças (7) e (8) serem semanticamente
distintas, tendo em vista que em ambas se
estabelece uma identidade entre dois nomes
próprios:

(7) A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã.

(8) A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.

Gottlob Frege foi um matemático e filósofo


alemão que viveu entre 1848 e 1925, e é
reconhecido como o pai da semântica formal.
Suas pesquisas influenciaram áreas da
lógica, da filosofia e dos estudos do
significado. Muitos dos conceitos que
Gottlob Frege (1848-1925)
pragmática precisa do signifcado da sentença, utilizamos em semântica formal são frutos do
aliado às intenções do falante no momento de seu trabalho, como o princípio da
proferimento da sentença. composicionalidade, a formalização dos
quantificadores, a distinção entre sentido e
referência, e também entre representação
1.3 A noção de signifcado
(que tem a ver com psicologia) e cor (que tem
Esta Unidade começou com a explicação da a ver com atos de fala) dos enunciados etc.
noção de signifcado nos limites da Com suas pesquisas, Frege prati camente
Semântica. Para a Semântica, signifcado se lançou a agenda dos estudos em semântica,
restringe ao signifcado que as sentenças de discutindo pro blemas como a pressuposição,
uma língua têm, sem levar em consi deração aatitudes proposicionais, intensão versus
intenção do falante. Mas, mesmo essa noção extensão. A distinção entre sentido e
restrita precisa ainda ser melhor referência, crucial em seu pensa mento, pode
compreendida. também ser pensada como o que significa
exatamente o sinal ‘=’ e o que ele relaciona.
Essa foi uma das muitas contribuições de Se retornamos ao nosso par de exemplos
Gottlob Frege para a se mântica das línguas
20

CAPÍTULO 01 Semântica e pragmática:


delimitando os campos

7) A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã.

8) A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.

podemos dizer que vemos relacionado em (7) e em (8)


não referên cias, mas sim sentidos, em outras palavras, a
igualdade não é uma igualdade de objetos no mundo,
mas sim de maneiras para chegar mos ou atingirmos com
nossas palavras objetos no mundo. Por isso, (8) é uma
sentença interessante desse ponto de vista: ao
informarmos sentidos diferentes para um mesmo objeto,
aprendemos coisas no vas. De resto, se fosse uma
identidade de objeto, de referente, (8) seria uma
sentença falsa: ora, não há, de um ponto de vista lógico e
estrito da interpretação de ‘=’, dois objetos iguais no
mundo. Contudo, (8) não é falsa, logo, ela não relaciona
referências, mas sim sentidos.

A sentença (7) é uma sentença analítica, isto é, ela é


verdadeira sempre, independente de como o mundo é – ora, se
uma sentença é sempre verdadeira, independentemente dos
fatos, podemos dizer que ela não é informativa,
ou seja, não aprendemos nada com ela.

Mais uma vez, proferir uma sentença analítica, que é


obviamente verdadeira, provoca imediatamente uma
implicatura. Se o falante está dizendo algo que é trivialmente
verdadeiro, então é porque ele está que rendo dizer outra coisa;
afnal, por que diríamos algo que (todos sabem que) é sempre
verdadeiro?
Podemos pensar o seguinte: no caso de alguém dizer ‘O João
é o João’, em que o ouvinte conhece o João e sabe que ele
tem uma característi ca marcante (por exemplo, ser
extremamente meticuloso), o significado do falante ao proferir
‘O João é o João’ é justamente chamar a atenção para essa
característica do João (pense em casos como ‘Mãe é mãe’).

Voltando à sentença (7), vemos que ela estabelece uma


identidade entre o mesmo nome, ‘A Estrela da Manhã’. Por sua
vez, a sentença (8) estabelece uma identidade entre nomes
diferentes; como em ‘O João é o João Paulo’.

21
Semântica

Nesse caso, temos uma sentença informativa: suponha que


você sabe quem é o João, mas não sabe quem é o João Paulo;
ao ouvir que ‘O João é o João Paulo’ você aprendeu algo novo,
que o João tem dois nomes: ‘João’ e ‘João Paulo’. É claro que
a verdade (ou a falsidade) da sentença (8) depende de como o
mundo é. Não é necessário que o João tenha os nomes ‘João’ e
‘João Paulo’; podemos pensar em vários mundos parecidos
com o nosso, em que João tem apenas um nome. O mesmo se
aplica à sentença (8): que ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da
Tarde’ sejam dois nomes para um mesmo objeto no mundo - o
planeta Vênus - é algo contingente (e não necessário). Ao
contrá rio de sentenças como (7), sentenças como (8) são
sintéticas, precisamente porque sua verdade ou falsidade
depende de como o mundo é. No nosso mundo, a sentença
(8) é verdadeira. Veja, novamente, que podíamos pensar em
um mundo em que (8) seja falsa: basta que ‘A Estrela da
Manhã’ e ‘A Es
trela da Tarde’ se refram a objetos distintos.

A teoria clássica de signifcado, à qual Frege se contrapôs,


entendia que o signifcado de uma expressão era o objeto no
mundo. Assim, o signifcado de ‘Estrela da manhã’ seria o
objeto no mundo, no caso o planeta Vênus. Mas, se fosse esse
o caso, como é que diferenciaríamos (7) e (8)? Se ambas
fossem verdadeiras, então elas se referenciariam ao mesmo
“objeto”. Se este fosse o caso, como é que perceberíamos que
elas são diferentes? Como é que saberíamos que ‘Estrela da
Manhã’ e ‘Estrela da Tarde’ são dois nomes diferentes se o
signifcado é objeto no mundo? Não haveria como. A solução
proposta por Frege é distinguir aspectos do termo signifcado:
quando sabemos o signifcado de uma sentença sabe mos duas
“coisas”: a que objeto ela se refere e o sentido da expressão,
isto é, o pensamento que está associado àquela expressão. O
que diferencia (7) e (8) é o fato de que seu sentido é diferente;
o pensamento que elas veiculam não é o mesmo, embora elas
se refram ao mesmo objeto.

Frege mostrou, então, que a noção de signifcado comporta


duas “face tas”, ambas objetivas, porque de domínio público: o
sentido e a referência.

A referência é o objeto no mundo, enquanto o sentido é o


modo de apresentação do objeto, como conhecemos esse
objeto, o cami nho que nos leva até ele.

22

CAPÍTULO 01 Semântica e pragmática:


delimitando os campos

Um mesmo objeto pode ser apresentado de diferentes


maneiras, por caminhos diversos. Quando nos deparamos com
um novo “cami nho”, um novo sentido, aprendemos algo a mais
sobre o objeto. Em (8) temos dois caminhos, ‘Estrela da
Manhã’ e ‘Estrela da Tarde’, para uma única referência, o
planeta Vênus, como mostra o desenho a seguir (ver lado
direito), enquanto em (7) temos um único caminho, ‘Estrela da
Manhã’, para a referência (ver lado esquerdo):

Estrela da Manhã Estrela da Manhã


Estrela da Tarde

Como dissemos, quanto mais sentidos temos para chegar a


um objeto, mais sabemos sobre esse objeto; podemos
abordá-lo através de mais entradas. Considere o seguinte
exemplo. Suponha que o objeto do qual queremos falar é o
indivíduo Hitler, e esse indivíduo é alcança
do pelo nome próprio ‘Adolf Hitler’. Mas, podemos alcançá-lo
usando outras expressões que funcionam como um nome
próprio, isto é, que permitem alcançar um e apenas um
indivíduo. As descrições defnidas cumprem essa função, por
isso mesmo Frege também as denomina de nomes próprios.
Eis algumas descrições defnidas que alcançam Hitler, o
indivíduo: ‘o marido de Eva Brown’, ‘o autor de Mein
Kampf’, ‘o Führer’. Se, por exemplo, você não sabia que
Hitler havia escrito Mein Kampf, ao interpretar a
sentença ‘Hitler é o autor de Mein Kampf’ você
aprendeu algo a mais sobre Hitler; agora você tem mais um
caminho para chegar até ele. Aprendemos sobre o mundo
através de sentenças sintéticas.

Contudo, aqui é preciso fazer uma ressalva: não se deve


confundir o caso de (8) com a sinonímia. Em (8), não temos
um exemplo de si nonímia, porque há dois sentidos que são
identifcados, i.e., há duas re presentações para o mesmo
objeto. Na sinonímia temos um único sen tido (um único
caminho) veiculado por expressões distintas, por isso
sinonímias são sentenças analíticas; mais adiante, no
próximo tópico, veremos detalhadamente a noção de
sinonímia; por enquanto, nos basta apenas outro exemplo:

23
Semântica

(9) Maria é mulher de Pedro é o mesmo que Maria é


esposa de Pedro.

O que caracteriza a sinonímia é que expressar o mesmo


pensamen to (o mesmo conceito), o mesmo sentido,
através de expressões distintas: ‘ser esposa de’ e ‘ser mulher
de’ veiculam o mesmo conceito através de palavras diferentes.
Se é o caso de que a Maria é mulher do Pedro, tem que ser o
caso, necessariamente, de que a Maria é esposa de Pedro. Não
é possível imaginar um mundo em que seja verdadeiro que a
Maria é a mulher do Pedro e outro em que é falso que ela é a
esposa do Pedro. É diferente, é claro, usar ‘ser esposa de’ e
‘ser mulher de’, mas essa dife rença não é semântica, não se
dá no plano dos conceitos; essa diferença é sociolinguística:
‘esposa’ é uma palavra mais formal do que ‘mulher’, por
exemplo. Nesse caso, trata-se de um único caminho para a
mesma referência. Não há, portanto, acréscimo de informação
sobre o mundo: se você já sabe que a Maria é mulher do
Pedro, dizer que ela é esposa não acrescenta informação
sobre o mundo. O que pode ocorrer é uma aprendizagem
sobre a linguagem: aprende-se uma nova expressão, sem
haver acréscimo de sentido.

1.4 Considerações fnais


Ao fm deste Tópico, você já deve estar familiarizado com o
campo de estudo da Semântica. Assim como para quaisquer
campos de investi gação científca, é imprescindível que
separemos nosso objeto de estudo dos objetos das demais
disciplinas – próximos ou distantes a ele. Para o caso do
campo de estudo da Semântica, vimos inicialmente qual é o
signifcado que a Semântica estuda; num segundo momento,
isolamos esse signifcado do uso que fazemos dele, o qual é,
por sua vez, o campo de estudo da Pragmática.

Começamos a ver também as primeiras ideias de Frege e o


ferra mental básico do semanticista, como os conceitos de
sentido e de refe rência. Nos tópicos a seguir, exploraremos
cada vez mais essas ideias e conceitos.
24

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


não há no dicionário maneiras
pré-estabelecidas de como uma palavra
2 Conhecimento pode se combinar com outra em busca da
trama de signifcados, dos nexos que
semântico e os favorecem infnitas interpretações. Essas

nexos semânticos: combinações são decorrentes do próprio uso


da língua pelos seus falantes, mas não estão
acarretamento, nem presentes nos dicionários nem tampouco
alguém nos ensina: são conhecimentos
contradição e implícitos. Uma área da linguística moderna
sinonímia defende que o nosso conhecimento
semântico é um dote genético, por tanto, os
Você vai ver aqui algumas das operações
possíveis nexos semânticos são decorrentes
semânticas básicas, como as de acarretamento e
de uma capacidade inata de combinação de
sinonímia, e também conhecerá os nexos
palavras e sentenças, parte do conhecimento
semânticos existen tes entre sentenças.
se mântico implícito ou competência
Relacionaremos essas operações e nexos a
semântica. Observe um exemplo:
conhecimentos inatos dos falantes. (1) Pedro é flho de João.

Quando alguém pronuncia a sentença acima,


2.1 Conhecimento intuitivamente é possível afrmar que a
semântico implícito sentença (2) a seguir é verdadeira: em todos
os mundos que a sentença (1) é verdadeira,
Após a discussão sobre possíveis diferenças
a sentença (2) também é verdadeira, ou seja,
entre semântica e prag mática, esclarecemos
se é verdade que Pedro é flho de João,
o objeto de estudo da Semântica: o signifcado
também é verdade a sentença (2),
lin guístico das línguas naturais. Esse
tratando-se, obviamente, dos mesmos Pedro
signifcado possibilita alguns nexos
e João:
semânticos entre sentenças. Quando
perguntamos o signifcado de algu ma palavra, (2) João é pai de Pedro.
muitas vezes buscamos aquele modelo
signifcativo presente nos dicionários. Porém,
podem ser entendidos como relações
provocadas pela trama de signifcados das
sentenças.

Esses nexos, presentes nas línguas naturais,

25
Semântica

No nosso mundo folclórico sabemos que o Saci Pererê tem


apenas uma das pernas. Então, as três sentenças a seguir são
verdadeiras:

(3) O Saci não tem uma perna.

(4) O Saci tem perna.

(5) O Saci não tem as duas pernas.

Porém, a sentença a seguir é falsa:

(6) O Saci não tem perna.

Como sabemos que as sentenças (3), (4), (5) e (6) estão


relaciona das, e que somente (6) é falsa, dentro do nosso
conhecimento de mundo? Sabemos porque temos essa
capacidade inata de estabelecer relações en tre sentenças e
em que condições elas são verdadeiras. Como já mostra mos
que o campo da semântica é o signifcado linguístico da
sentença, sua pergunta básica é: o que um falante (de uma
língua natural) sabe quando sabe o sentido de uma sentença
qualquer de sua língua? Res ponder a essa pergunta é construir
uma teoria sobre um tipo particular de conhecimento: o
conhecimento que um falante tem do signifcado das sentenças
(e palavras) de sua língua. Evidentemente, esse conhe cimento
é implícito, isto é, o falante tem esse conhecimento e o utiliza
nas suas interações cotidianas, mas não sabe descrevê-lo, não
o conhece conscientemente. Ele é como o conhecimento
implícito que temos e que nos permite caminhar: sabemos
caminhar, mas são poucos (se é que há alguém) os que sabem
todos os passos que permitem que caminhemos: quais
articulações se movem ou quais músculos e nervos sensoriais
estão envolvidos, por exemplo. O mesmo ocorre com o
conhecimento que te mos do signifcado das sentenças:
sabemos o que as sentenças da nossa língua signifcam, mas
não sabemos descrever e explicar cientifcamente esse
conhecimento. Este é justamente o objetivo do semanticista:
descre ver e explicar esse conhecimento semântico que um
falante tem.

Neste Tópico, vamos enfrentar, parcialmente, essa questão: o


que um falante sabe quando sabe o signifcado de uma
sentença qualquer de sua língua? Certamente, ele sabe em
que condições uma sentença qual quer de sua língua é
verdadeira, e em que momentos ela é ou não verda deiramente
usada. Ele também sabe compor e interpretar sentenças que

26

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


sentenças, como:

nunca ouviu antes. Finalmente, ele sabe (8) Há um único quarto que é de Sara.
deduzir de uma sentença outras sentenças. (9) O evento (a nuvem alaranjada tomar
Antes de lidar especifcamente com cada um devagarzinho o quarto de Sara) ocorreu no
desses conheci mentos, vamos passado.
exemplifcá-los rapidamente.
Esse outro conhecimento é derivado do fato
Suponha que alguém peça para você dizer o de que você entendeu a sentença (7).
que a sentença ‘Tá cho vendo’ signifca. Você Assim, quando sabemos o signifcado de
certamente sabe a resposta e uma maneira uma sentença, sabemos, inevitavelmente, o
muito frequente de explicar é dizer quando a signifcado de muitas outras sentenças que
sentença ‘Tá chovendo’ é verda deira: a estão “enredadas” nela.
sentença ‘Tá chovendo’ signifca que está
chovendo quando o falante a profere. Esse Há outro conhecimento semântico que os
seu conhecimento não se restringe, falantes possuem: a paráfrase. Inicialmente,
obviamente, a essa sentença, ele se aplica é preciso diferenciar entre uma paráfrase
a qualquer outra; até mesmo a uma desen cadeada pelo léxico daquela que a
sentença que você nunca ouviu antes. Muito própria sentença opera. Um exemplo de
provavelmente, você nunca ouviu ou leu a paráfrase lexical é aquela que pode ser
sentença a seguir: desenvolvida por substantivo, adjetivo,
verbo ou preposição, como nos mostram as
(7) Uma nuvem alaranjada tomou expressões a se guir, respectivamente:
devagarzinho o quarto de Sara.
(10) João é vizinho de Pedro ≈ Pedro é
Você não tem qualquer problema em
imaginar como o mundo deve ser para que vizinho de João. (11) Maria é mais gorda que
ela seja verdadeira, certo? Como você sabe
Joana ≈ Joana é mais magra que Maria.
isso? Ora, você sabe o que as palavras em
(7) signifcam e sabe combiná-las, por isso
você pode interpretar um número infnito de
sentenças. Veja que se você sabe que a
sentença (7) é verdadeira, você sabe outras
alternativa de expressão que mantém o mesmo
sentido.

Tradicionalmente, a pará frase é entendida como

27
Semântica

(12) Maria atravessou a Avenida Paulista ≈ Maria cruzou a


avenida paulista.

(13) A casa de Maria fca atrás do Hospital ≈ O hospital fca


na frente da casa de Maria.

Há ainda aquela paráfrase desencadeada pelas sentenças,


que é a que nos interessa aqui. Algumas operações sintáticas
permitem que algumas sentenças derivem o mesmo sentido.
Certas operações fazem esse papel de conservar o mesmo
sentido, como a nominalização, a substituição de formas
verbais (fnita x infnita) ou o alçamento de verbos, como nos
mostram as sentenças a seguir, respectivamente:

(14) Os gafanhotos destruíram a cidade ≈ A destruição da


cidade pelos gafanhotos.

(15) Nas férias, era comum eu estudar semântica ≈ Nas


férias, era comum que eu estudasse semântica.

(16) Em época de eleições, foi preciso que a Polícia


Federal inter viesse em algumas cidades ≈ Em época
de eleições, a Polícia Federal precisou intervir em
algumas cidades.

Como esse conhecimento pode ser explicado? Como


descrever esse conhecimento através de uma teoria do
signifcado? A ideia é a de que, quando interpretamos qualquer
sentença em nossa língua, de alguma for ma, nós a avaliamos
em mundo(s), para determinar se ela é verdadeira ou falsa; ou
melhor, relacionamos sentenças a mundo(s), para avaliar se
uma determinada sentença é verdadeira ou falsa. Observe um
exemplo:

(17) Pedro surfa.

O que quer dizer “um falante conhece sua língua” ou “um


falante sabe o signifcado das sentenças de sua língua”? A
resposta é: ao saber o signifca do de sua língua, o falante
conhece suas condições de verdade. Dessa forma, ao
interpretar a sentença (17), nós dividimos os mundos a partir de
dois aspectos: o verdadeiro ou o falso: mundos em que essa
sentença é verda deira, ou seja, mundos em que Pedro surfa, e
mundos em que ela é falsa, ou seja, mundos em que Pedro
não surfa. Como podemos observar, estamos falando de
mundos, no plural, isto é, em mais de um mundo, os chamados
mundos possíveis. Então, de agora em diante, não estranhe ao
mencionar-

28

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


possíveis, sem ao me nos discriminá-los.
Apesar de essa discussão aparecer em
mos mundo(s) no plural ou, simplesmente, tópicos pos teriores, por ora, basta-nos
mundos possíveis.
afrmar que mundos possíveis são mundos
Suponha a existência de quatro mundos: w1, w2, que podem ser diferentes do nosso, em um
w3, w4. Observe agora a sentença ‘Pedro surfa’ ou mais de um aspecto. Pode haver mundos
em um certo modelo:
em que não há água, nem humanos, nem
w1 V prédios, nem bancos, nem uma determinada
w2 V
vizinha chata, ou aquela sogra insupor tável...
w3 V
w4 F Quando queremos dar conta da semântica de
sentenças como: Se eu fosse
Imagine agora que, além de Pedro, Joana
você, restringimos os mundos possíveis
também surfa, assim dis criminados nos
àqueles mundos que são próximos ao
mundos: em w1, Pedro surfa e a Joana surfa.
nosso, em que a única diferença é eu ser
Em w2, Pedro surfa e Joana esquia. Em w3,
você. Mas essa é uma restrição
tanto Pedro quanto Joana surfam. Em w4,
linguística/cognitiva, para interpretarmos a
Pedro joga futebol e Joana surfa. Em w1, w3
sentença. Su ponha um mundo igual a esse,
e w4, é verdadeiro que Joana surfa. Em w2,
mas a única diferença é que o homem não
é falso. Já em w1, w2 e w3, é verdadeiro que
foi à lua, ou um mundo em que o Brasil não é
Pedro surfa; em w4, é falso. Como se
campeão do mundo no futebol, ou um
observa, avaliamos as sentenças
mundo em que não há sol, ou um mundo
relativizando-as a mundos possíveis (e
com sete luas.
também ao tempo, embora não estejamos
levando em consideração esse aspecto por A semântica que estudamos nesta Disciplina
enquanto). Em ou tros termos, a sentença capta essa noção de mundo(s) ou mundos
‘Pedro surfa’ é verdadeira em todos os possíveis, ao afrmar que a interpretação de
mundos em que Pedro surfa (w1, w2 e w3) e uma sentença depende da relação entre
a sentença ‘Joana surfa’ é verdadeira em linguagem e mundo(s). Por esse mo tivo, ela
todos os mundos em que Joana surfa (w1, é denominada de semântica referencial ou
w3, e w4). semântica deno-

Até agora falamos em mundos ou mundos


há fatos sobre como as coisas podem ser ou
poderiam ter sido” (Stainton, 1996, p. 77).

“Além dos fatos como as coisas realmente são,

29
Semântica

tacional, exatamente porque sentenças são avaliadas em


mundo(s) ou mundos possíveis a fm de determinar suas
condições de verdade. Isso é interessante porque, como foi
visto, saber o signifcado de uma sentença é conhecer suas
condições de verdade. E quanto mais aprendemos sobre o
signifcado, ou, de um modo global, quanto mais aprendemos
como a linguagem funciona, estaremos mais perto do
conhecimento da mente e do cérebro.

De agora em diante, vamos nos ater mais detalhadamente a


alguns desses conhecimentos semânticos dos falantes, como
composicionalida de, acarretamento, contradição,
sinonímia e condições de verdade.

2.2. Composicionalidade
Uma propriedade que constitui o conhecimento semântico
de um falante e que, portanto, deve ser apreendida por uma
teoria do signifca do linguístico, é a
composicionalidade. Quando um falante sabe o
signi fcado de uma sentença, ele sabe não apenas suas
condições de verdade, ele sabe também “compô-la” e
“decompô-la”. Se o falante entende a sen tença ‘Tá chovendo’,
ele sabe o signifcado de ‘estar’ e ‘chovendo’ e, na verdade,
sabe que ‘chovendo’ se decompõe em ‘chov(e)-’ e ‘-ndo’. Sabe
ainda que essas “unidades” mantêm o mesmo signifcado em
infnitas sentenças nas quais elas podem ocorrer. Por exemplo,
veja que ‘chov(e)-’ dá a mesma contribuição nos diferentes
contextos em que aparece – de passagem, um falante também
sabe que o signifcado de chover está re lacionado com chuva,
chuvisco, água, entre outros:

(18) a. Vai chover.

b. Choveu ontem.

c. Choveria, se não estivesse ventando.

O falante sabe ainda qual é a contribuição do progressivo,


represen tado em ‘Tá chovendo’ pela perífrase verbal ‘estar
V+ndo’ (‘estou can tando’, ‘está falando’). Ele sabe que no
contexto em que ‘Tá chovendo’ é proferida, a perífrase indica
progressividade, isto é, o evento descrito, o evento de chuva,
está ocorrendo simultaneamente ao momento de fala, como
aparece no esquema a seguir:

30

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


no contexto e esse gato é azul e ele está
de ponta-cabeça. Não temos problema
momento de fala algum para interpretá-la porque
chove conhecemos o signifcado de cada um dos
termos que a compõem.
Podemos entender que a
composicionalidade expressa o fato de que Chomsky foi um dos primeiros, na
um falante sabe compor o signifcado de linguística, a chamar a atenção para o fato
uma sentença a partir do signifcado de de que os falantes são criativos, porque
partes mínimas, isto é, o signifcado de uma produzem e inter pretam sentenças que
expressão mais complexa é o resultado de nunca ouviram antes. Esse fato,
uma composição de suas partes. No caso aparentemente tão trivial, refutou tanto as
de ‘Tá chovendo’, o falante “soma” o teorias comportamentais da aprendizagem
signifcado de ‘chov(e)-’ mais o signifcado (que acreditam que as línguas humanas
da perífrase ‘estar + -ndo’. são aprendidas por estímulo e resposta)
quanto as teorias estruturalistas sobre a
A composicionalidade explica a linguagem humana (que entendiam,
criatividade, a capacidade de es grosso modo, que a linguagem
tarmos a todo instante construindo e era um conjunto “fecha do” de sentenças).
interpretando sentenças que nunca Chomsky mostra que a linguagem é aberta,
ouvimos antes. infnita, indeterminada, mas previsível no
sentido de que podemos “calcular” o novo,
porque sabemos “construir” sentenças a
É muito provável que ninguém que esteja partir do signifcado de unidades mínimas
estudando esta disciplina de Semântica (átomos) e regras de combinação, que são
encontrou antes a sentença a seguir, mas recursivas, isto é, se aplicam
nenhum de nós tem qualquer problema em repetidamente, em diferentes situações.
interpretá-la, isto é, todos nós sabemos em
que mundos ela é verdadeira:

(19) O gato azul está de ponta-cabeça.

Essa sentença é verdadeira em todos os


mundos em que há um úni co gato saliente
Structures (1957)

Com a obra Syntactic

31
Semântica
conjunto de fatores, a dança, a batida das
asas, o zumbido etc., que devem ser
desempenhados de uma determinada e
única forma, senão as outras abelhas não
vão entendê-la. Ou seja, há um único
caminho para se chegar ao objetivo: em
outras pala vras, as abelhas não têm
capacidade de fazer paráfrases. Já na lin
guagem humana são possíveis infinitas
maneiras de se alcançar tal objetivo, ou, nos
termos de Frege, diferentes sentidos para se
chegar a uma referência.

Na sentença ‘Tá chovendo’, combinamos o


signifcado de ‘chov(e)-’ com o signifcado do
progressivo, através de uma regra que
permite combinar ra dicais verbais com a
perífrase progressiva, ‘estar –ndo’. Essa
regra de combi nação é a mesma que recorre
em inúmeras outras sentenças da língua
(como em ‘está nevando’, ‘está chuviscando’,
‘está amando’, ‘está falando’ etc.).

Evidentemente, um dos problemas que o


semanticista enfrenta é de terminar quais são
Recapitule algumas noções de Morfologia em: as unidades mínimas e como elas são
MARGOTTI, Felício adquiridas pelo falante. A determinação das
W. Morfologia do Portu guês. Florianópolis: LLV/
CCE/USFC, 2008. unidades mínimas para constituir o léxico de
A recursividade é também uma competência uma língua é uma tarefa bastante complexa e
semântica do falan te, ela é uma propriedade que se dá na interface com a morfologia.
linguística que nos é fornecida genetica Considere, por exemplo, a sentença:
mente. Segundo Chomsky, Hauser e Fitch
(20) O João saiu apressado.
(2002), a recursividade é a propriedade que
distingue naturalmente a linguagem dos seres Certamente, o léxico deve conter um item
humanos da linguagem dos demais animais. para “sair”, uma raiz como ‘sa(i)-’, que se
Somente na lingua gem dos seres humanos é combina com diferentes fexões, cada uma
possível “calcular” o novo. Se uma abelha delas conglomerando signifcados: ‘-u’ indica
tem de comunicar a outras abelhas que o terceira pessoa do singular do pretérito
inimigo vem chegando, ela se utiliza de um perfeito do indicativo. Compare com:
(21) O João saía apressado.

32

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


As sentenças (20) e (21) não têm o mesmo signifcado e a
di ferença, neste caso, está no aspecto: o primeiro é perfectivo;
o segundo, imperfectivo.

Veja que no léxico estão o radical e os sufxos


tempo-aspectuais. Já ‘apressado’ é mais complicado: vamos
colocá-lo no léxico nessa forma? Ou será que no léxico deve
aparecer apenas ‘pressa’ e ‘apressado’ deve ser gerado via
uma regra de derivação morfológica que passa do adje
tivo ‘pressa’ para o verbo ‘apressar’ e, fnalmente, a forma de
particípio passado do verbo ou de adjetivo ‘apressado’? Esses
são problemas de quem estuda morfologia.

2.3 Trama semântica


Outra propriedade que caracteriza o conhecimento
semântico de um falante é sua capacidade de deduzir
sentenças de outras sentenças. O falante não sabe apenas em
que condições uma sentença é verdadeira e como
(de)compô-la, ele sabe outras sentenças quando ele sabe uma
sen
tença. Por exemplo, suponha que a sentença ‘Tá chovendo’
seja verdadei ra (ou que ela seja considerada verdadeira).
Nesse caso, o falante também sabe que a sentença (22) é
falsa, e que a sentença (23) é verdadeira:

(22) Não tá chovendo.

(23) Tá caindo chuva.

Se ‘Tá chovendo’ for falsa, obtemos um resultado oposto e


com pletamente previsível: (22) é verdadeira e (23) é falsa.
Sabemos isso simplesmente porque entendemos o que uma
sentença signifca e esse entendimento envolve conhecer
outras sentenças que estão semantica mente relacionadas à
sentença conhecida.

O par ‘Tá chovendo’ e ‘Não tá chovendo’ exemplifca um


caso de contradição: se a primeira é verdadeira, a segunda
tem que ser (neces sariamente) falsa e vice-versa. Em outros
termos, suponha que A e B são sentenças quaisquer de uma
língua, e que V e F estão por “verdadeiro” e “falso”,
respectivamente; assim, uma contradição ocorre quando:

se A é V, B é F (e vice-versa)

33
Semântica

Sentenças contraditórias são sentenças que não podem


ser simulta neamente verdadeiras: se está chovendo não pode
ser o caso de que não está chovendo (e vice-versa).

Alguém pode replicar o seguinte: mas às vezes a gente diz


‘tá e não tá chovendo’. É verdade, mas, em geral, esses são
casos em que o falante está criando uma implicatura –
raciocínios pragmáticos – ou casos de limites vagos para os
quais não há certeza sobre o uso da sentença. Em geral, é
muito estranho afrmar contradições como ‘João é e não é
homem’ e, por isso mesmo, elas tendem a disparar
implicaturas: o que o falante quer ao proferir uma sentença
contraditória é implicar que algumas caracte
rísticas do predicado se aplicam, enquanto outras não se
aplicam. Assim, ao proferir a contradição acima o falante está
implicando que em alguns aspectos João é homem e em
outros não. Mas, essa é uma maneira de resolver a (aparente)
contradição.

A relação entre ‘Tá chovendo’ e ‘Tá caindo chuva’ é, ao


mesmo tem po, de acarretamento e de sinonímia, que nada
mais é do que um duplo acarretamento (ou acarretamento em
mão dupla).
Uma sentença A acarreta outra (B) se em todos os
contextos em que A é verdadeira B também é verdadeira,
por isso dizemos que, se há acarretamento, uma
sentença se segue necessariamente da outra.

Por exemplo, se está chovendo, então é certo que está cain do


chuva, afnal não é possível imaginar uma situação em que es
teja chovendo sem que caia chuva do céu (deixe de lado os
usos metafóricos envolvendo ‘chover’, como por exemplo ‘está
choven do pétalas de rosa’). Note ainda que a sentença ‘Tá
caindo chuva’ acarreta a sentença ‘Tá chovendo’: se está
caindo chuva, então está chovendo. Quando há duplo
acarretamento, temos sinonímia. Acarretamento (de A para
B): Se A é V, então B é necessariamente V.

Sinonímia: A acarreta B e B acarreta A.


Note que a relação de acarretamento supõe uma
“direcionalidade”: se A é V, então B é necessariamente V. A
sinonímia é o acarretamen to de mão dupla porque ele vale nas
duas direções. Mas, nem sempre

34

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


acontece termos o duplo acarretamento. Por exemplo, a
sentença (24) acarreta a sentença (25), mas o contrário não é
verdadeiro, logo não há sinonímia:

(24) João preparou o almoço.

(25) João fez algo.

É claro que os mundos em que João cozinhou o almoço


são mun dos em que ele fez algo (há, portanto, acarretamento
de (24) para (25)), mas os mundos em que João fez algo
incluem outros mundos além da queles em que João preparou o
almoço: por exemplo, mundos em que ele fez o jantar, mundos
em que ele saiu de casa, em que ele se levantou etc. (portanto
(25) não acarreta (24)). Veja o gráfco de acarretamento a
seguir, no qual os balões indicam conjuntos de mundos: o
conjunto de mundos em que a sentença em (24) é verdadeira
está incluído no con junto de mundos em que (25) é verdadeira:

Mundos em que
João fez algo.

Mundos em que João preparou o almoço.

Considere, agora, a relação entre a sentença (24) e a

sentença (26): (26) João fez o almoço.

Suponha que ‘preparar o almoço’ signifca ‘fazer o almoço’.


Logo, se (24) é verdadeira, (26) também é e vice-versa. Nesse
caso, o conjunto de mundos em que (24) é verdadeira coincide
exatamente com o conjunto de mundos em que (26) é
verdadeira. Temos, assim, um caso de sinonímia. A fgura
representando o conjunto de mundos é a seguinte:

Mundos em que João preparou o almoço


=
Mundos em que João fez o almoço

35
Semântica
o de sinonímia.

2.4 Condições de verdade


Como dissemos, um primeiro aspecto do
conhecimento que um falante tem sobre o
signifcado das sentenças que uma teoria
semân tica deve capturar é o fato de que ele
sabe em que condições o mundo precisa
estar para que uma sentença seja verdadeira.
É por isso que na semântica se afrma que o
signifcado de uma sentença são as suas con
dições de verdade. Sublinhe-se que se trata
de condições de verdade, isto é, o falante
pode não saber se a sentença é efetivamente
verdadeira ou falsa; o que interessa é que
ele com certeza sabe em que condições ela
pode receber um ou outro valor de verdade: o
verdadeiro ou o falso. Por exemplo, podemos
dizer precisamente em que condições a
sentença (27) pode ser verdadeira (suas
condições de verdade) sem que possa mos
verifcar se ela de fato é verdadeira:

(27) Tem 531 insetos no meu jardim neste


momento.

A Semântica não lida com o uso da sentença,


mas com a sentença em sua potencialidade
de uso. As condições de verdade expressam
o conhecimento mínimo que um falante tem
quando ele sabe o que uma sentença
signifca: o potencial de uso dessa sentença.
Leia-se Português Brasileiro.
Há outras relações entre as sentenças (muitas O mínimo que ele sabe, se ele entende uma
vezes chamadas de “ne xos” semânticos) que são sentença, é separar, através dela, o mundo
objeto de estudos do semanticista, por exem plo, em dois blocos: de um lado, as situações em
a pressuposição, a anáfora, a comparação, que a sentença é verdadeira; de outro,
dentre outros. Vol taremos a elas ao longo desta aquelas em que ela é falsa. Ao ouvir a
Disciplina, por enquanto você deve ter sentença ‘tá chovendo’, um falante do PB
claro o conceito de contradição, acarretamento e delimita dois “esboços” de mundo:
verdadeira

‘Tá chovendo’ é falsa ‘Tá chovendo’ é

36

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


Estamos, nessa situação, num caso limite
em que tanto é possível afrmar que está
O falante sabe que a sentença ‘Tá chovendo’ chovendo, quanto que não está.
é falsa nos mundos à esquerda do quadro; e
é verdadeira nos mundos à direita. É nesse A indeterminação vem do fato de que uma
sen tido que uma sentença desenha um mesma sentença é ver dadeira em muitas
esboço de como o mundo deve ser para que situações diferentes, sem que o falante tenha
ela seja verdadeira, o que signifca que ela dúvida sobre se a sentença se aplica ou não
também desenha os mundos em que é falsa. à situação. Por exemplo, estamos numa
Assim, uma sentença estabelece uma relação situação em que nenhum de nós tem dúvida
entre linguagem e estados de mundo (ou sobre se está ou não chovendo; estamos de
mundos), deixando espaço para muita acordo que está chovendo. Mas, são
vagueza e indeterminação, dois fenômenos inúmeras as situações em que isso ocorre:
semânticos bem interessantes. está chovendo e frio; está chovendo e ca lor;
está chovendo forte, muito forte, é uma
O signifcado de uma sentença é sempre (e tempestade, está chovendo na rua, não
necessariamente) in determinado, dentro de casa etc.
precisamente porque ele recobre inúmeras
situações (no nosso exemplo, situações em O signifcado de uma sentença estabelece,
que está uma chuva fraca, chuva com sol, então, em que condições no mundo ela é
chuva forte, chuvinha...) em que esse verdadeira e, portanto, em que condições ela
signifcado é verdadeiro. A inde terminação é falsa. Esse modelo permite entendermos
deve ser distinguida da vagueza, o fato de como se dá a troca de informação através da
que muitas vezes não temos certeza se a linguagem. Suponha que um amigo seu
sentença é verdadeira ou não em uma dada telefone de São Paulo e pergunte:
si tuação. Por exemplo, se no momento em
(28) Como está o tempo aí?
que ‘Tá chovendo’ é proferida falante e
ouvinte estão numa situação em que está
uma chuvinha bem fninha poderia ser difícil
de defnir se está ou não chovendo, ou se eles
estão numa forte maresia, por exemplo.
(2007) para uma caracterização mais precisa da
diferença entre vagueza e indeterminação.

Ver: Pires de Oliveira; Basso; Mendes e Souza

37
Semântica
A palavra ‘aí’ é um dêitico, isto é, uma expressão
linguística cujo sig nificado só é plenamente determinado
(interpretado) se se levar em consideração a situação de
fala. Trata-se assim de um elemento variá vel cuja
interpretação depende do contexto: se o ouvinte está em
Sal vador, ‘aí’ significa Salvador; se ele está em Manaus,
significa Manaus,
e assim por diante. Os exemplos claros de dêiticos são os
pronomes pessoais, como ‘eu’ e ‘você’: quando eu falo
‘eu’ refiro-me a mim, que sou o falante, e o ‘você’
refere-se ao ouvinte, você; quando você fala, ‘você’
passa a ser eu e ‘eu’ passa a ser você. Confundiu? Então
leia aten tamente prestando atenção na presença e
ausência de aspas simples que indicam a língua-objeto,
isto é, a língua que estamos explicando.

Suponha que o ouvinte, a quem foi endereçada a pergunta


(28), esteja em Florianópolis. Nesse caso, ‘aí’ signifca
Florianópolis, o lugar onde o ouvinte está. Logo, o falante
pergunta sobre o tempo em Floria nópolis, uma informação que
o ouvinte tem, já que ele está em Florianó polis. Se o falante
não sabe como está o tempo em Florianópolis, então seu
estado de conhecimento inclui mundos em que chove em
Florianó polis e mundos em que não chove em Florianópolis; é
por isso mesmo que ele faz a pergunta sobre o tempo. Ao ouvir
‘Tá chovendo’ como resposta, há uma mudança no estado de
conhecimento do falante: agora ele sabe sobre o tempo em
Florianópolis, ou seja, ele consegue delimitar, ao interpretar a
sentença, o conjunto de mundos em que é verdade que chove
em Florianópolis no momento em que ele está.

Como vimos, o signifcado estabelece em que condições uma de


terminada sentença é verdadeira. Então, quando dizemos que o
falante tem conhecimento semântico, queremos dizer que ele
sabe em que con dições uma sentença qualquer de uma língua
pode ou não ser verdadei ra. Um semanticista procura
desvendar esse conhecimento, construindo uma teoria do
signifcado. Para tal empreendimento, ele utiliza o que se
denomina metalinguagem, que iremos discutir no próximo
Capítulo.

38

Conhecimento semântico... CAPÍTULO 02


2.5 Considerações fnais
Neste Capítulo exploramos conceitos semânticos básicos,
que esta rão presentes em toda investigação semântica. Como
você vai ver, mes mo neste Livro-texto, que é uma
apresentação dos vários temas de se mântica, os conceitos de
contradição, sinonímia, acarretamento, e outros
que acabamos de ver, serão retomados diversas vezes.

De particular interesse são as ideias de composicionalidade


e a de trama semântica. A primeira responde pelo fato de
entendermos e po dermos produzir sentenças que nunca antes
tenhamos visto; a segunda, pelo fato de sabermos que as
sentenças de uma língua estão sempre em relação com outras
sentenças, ou seja, quando sabemos que ‘João che gou’,
automaticamente sabemos que ele tinha saído.

A ideia de condições de verdade, por sua vez, permite


capturar nos sas intuições quanto à composicionalidade e à
trama semântica numa teoria formal sobre a linguagem. E é a
essa teoria que nos voltamos no próximo Capítulo.
39

Metalinguagem CAPÍTULO 03
descrever o fato de que o falante sabe
em que condições uma sentença é
3 Metalinguagem verdadeira é utilizar o famoso
Teorema-T:
Você terá conhecimento sobre a ideia de
condições de verdade e a ma neira como A sentença ‘Tá chovendo’ é verdadeira
funciona uma semântica verifuncional. em Português Brasileiro se e somente se
Apresentaremos também exemplos a você, (abreviado sse) está chovendo no
exemplos de derivação semântica, momento em que a sentença é proferida.
investigando o papel que argumentos e
predicados desempenham nessas
derivações.
Uma sentença-T pode parecer trivial, mas
ela não é, e é preciso entender o que
3.1 Teorema-T está por trás dela. Uma sentença-T
expressa um conhe cimento: o
A maneira mais usual na Semântica de conhecimento sobre o signifcado da
sentença. A impressão de trivialidade se metalinguagem. As sentenças-T podem
explica porque tanto a língua-objeto, ser facilmente generali zadas através do
aquela que que remos explicar (e que esquema-T, a seguir, em que ‘p’ está por
sempre aparece marcada formalmente, uma sentença qualquer da língua-objeto
através das aspas simples), quanto a e ‘q’ por uma sentença da
metalinguagem, a linguagem que metalinguagem:
utilizamos para explicar a língua-objeto,
isto é, para estabelecer as condições em
que o mundo deve estar para que a
sentença seja verdadeira, são o por
tuguês. Mas, compare:

(1) A sentença ‘ich liebe dich’ é


verdadeira em alemão se e somente se o
falante ama o ouvinte no momento de
fala.

Nesse caso, a sentença-T parece menos


trivial, porque a língua-ob jeto é o alemão,
e damos sua condição de verdade
(T de Tarski, 1944)
usando o português como
41
Semântica
estamos expressando amor por ninguém
quando a mo bilizamos aqui. O que ocorre,
neste Livro-texto, é que mencionamos a
sentença, tratamos dela como um objeto
teórico, “fora de uso”, para tentarmos
entender o signifcado que ela tem em uso. Já
as palavras e sentenças na metalinguagem
estão sendo usadas, isto é, utilizamos o
conhecimento implícito sobre seu signifcado
para explicar a língua objeto; a
metalinguagem remete ao mundo ou a um
modelo de mundo. Note a diferença entre
‘lua’ e lua nos exemplos a seguir. No primeiro
caso, estamos falando sobre a palavra ‘lua’,
porém no segundo estamos usando lua para
nos referirmos ao objeto lua no mundo. A
sentença (2) faz sentido, a sentença (3) não:

(2) ‘Lua’ tem três letras.

(3) Lua tem três letras.

É por isso que a sentença (4) expressa um


conhecimento: (4) ‘Lua’ em português
signifca lua.

3.2 Analisando uma língua


Antes de mais nada, é importante salientar
Veja novamente, confor me o Capítulo 1.
Esquema-T: p é verdade na língua X sse q que, grosso modo, todas as expressões de
uma língua têm sentido e referência.
A língua-objeto não está sendo efetivamente
usada, mas apenas Na teoria semântica que adotamos,
mencionada. Suponha, por encontramos dois tipos de en tidades no
exemplo, a sentença ‘eu te amo’. Se ela é mundo: os objetos (ou indivíduos), que são
efe tivamente usada, o falante se particulares, e os valores de verdade, isto
compromete com o que ela diz, isto é, o é, o verdadeiro e o falso. Este último é um
falante está expressando o que sente com objeto muito peculiar e é comum os alunos
relação ao ouvinte. Mas, veja que, neste terem muita difculdade em enten der as
Livro-texto, não estamos usando essa razões de precisarmos desses objetos, mas
sentença – feliz ou in felizmente, não isso se deve em parte a uma concepção
muito “concretista” de objeto. Por exemplo, o referenciais de semân tica: a que objeto no
número 2 refere-se a um objeto no mundo, mundo se refere a beleza? Mas, essa crítica
mas esse objeto não é concreto. É co mum mostra
encontrarmos a seguinte crítica aos modelos

42

Metalinguagem CAPÍTULO 03
refere a um indivíduo em particular, mas sim
a um conjunto de indivíduos: os indivíduos
apenas que o conceito de “objeto” foi mal
que são felizes.
compreendido, porque tem forte respaldo no
conceito de objeto de senso comum, ou seja,
de objeto con creto. Porém, não é esse o É bastante intuitivo entender que os nomes
caso. Os mundos do semanticista são próprios, como ‘João’, ‘Maria’, ‘Luís’ etc., se
modelos formais, constituídos por objetos referem a um indivíduo em particular. Menos
entendidos matematicamente: valores para intuiti vo é o fato de que, na Semântica, os
uma variável, como os números ou nomes próprios têm sentido, porque o
expressões que preenchem os ‘x’, ‘y’ e ‘z’ sentido é precisamente o que permite
das equações. É apenas por questões acessarmos um referente no mun do.
didáticas que, em geral, esses modelos são Quando alguém diz ‘Hitler’ imediatamente
apresentados através de exemplos acionamos uma referên cia, o indivíduo Hitler.
concretos. Essa ponte da palavra para o mundo é o
sentido. No caso das expressões saturadas,
Assim, no modelo semântico, os elementos
como os nomes próprios, essa ponte é entre
da língua se referem ou a indivíduos (e
uma expressão da linguagem e um único
conjuntos de indivíduos e conjuntos de
indivíduo no mundo.
conjuntos de in divíduos) ou a valores de
verdade. Nessa proposta, cuja base é Frege, Linguagem
há dois tipos de expressões na língua: Sentido Referência (Mundo)
expressões saturadas (ou completas) e
expressões insaturadas (ou incompletas).
Hitler
As expressões saturadas caracterizam-se por
se referirem a um único objeto no mundo,
um indivíduo ou um valor de verdade. Um
nome próprio, por exemplo, é uma
expressão saturada, porque se refere a um
único indivíduo. Já um predicado, como ‘ser
feliz’, é insaturado, dado que ele não se
Estamos aqui trabalhan do com um modelo bem
simples, em que só há um indivíduo chamado
‘João’. E, de fato, na nossa vida é só
aparentemente que há dois indivíduos chamados
‘João’, porque no fundo o nome próprio inclui o
sobrenome.

Nomes Próprios
43
Semântica

O sentido é, pois, uma função que associa a cada expressão


da lín gua uma única referência no mundo. A maneira usual de
implementar mos essa ideia na semântica é através de uma
função de interpretação, normalmente representada por
colchetes duplos [[ ]]. Assim, temos:
Hitler
[[Hitler]]
Linguage
m MUNDO
=

Entre os colchetes duplos temos linguagem, já do outro


lado da equação temos um indivíduo. Note que estamos
retornando à distinção entre língua-objeto e metalinguagem. O
sinal de igual é precisamente a função de interpretação.

Assim como os nomes próprios, as descrições defnidas (‘o


menino de azul’, ‘o atual presidente do Brasil’ etc.) também são
expressões satu radas, porque se referem a um único indivíduo
no mundo; por isso, para Frege, elas também são nomes
próprios. Uma descrição defnida é uma expressão complexa
que se compõe de um artigo defnido e um predica do, e se
refere a um e apenas um indivíduo no mundo. Na sentença

(5) Lula é o atual presidente do Brasil.

temos uma sentença de identidade entre um nome próprio,


‘Lula’, e uma descrição defnida, ‘o atual presidente do Brasil’.
Trata-se, obvia mente, de uma sentença sintética, porque é um
acaso histórico que o atual presidente do Brasil seja o Lula.
Tanto o nome próprio quanto a descrição defnida se referem ao
mesmo indivíduo no mundo, mas o fazem através de sentidos
distintos (de funções diferentes):

[[o atual presidente do Brasil]] = Lula

[[Lula]] = Lula

O último caso de expressão saturada são as sentenças,


como ‘João estuda’, ‘Maria trabalha’, ‘Pedro ama João’ etc.
Sentenças obviamente não se referem a um indivíduo em
particular no mundo, mas a um valor de verdade. Sentenças
são verdadeiras ou falsas. Uma sentença é uma

44

Metalinguagem CAPÍTULO 03
expressão saturada porque ela expressa um pensamento
completo e permite alcançarmos um objeto em particular:
ou a verdade ou o fal so (enquanto objetos matemáticos!).
Uma expressão como ‘O menino que está de azul’ não
expressa um pensamento completo, mas serve para apontar
um indivíduo em particular no mundo – trata-se, portanto, de
uma descrição defnida. Compare com ‘O menino que está de
azul caiu da escada’. Nesse caso, temos uma sentença,
porque há um pensamento completo e podemos, em confronto
com um estado no mundo, afrmar se ela é verdadeira ou falsa.
Como as descrições defnidas, as sentenças são estruturas
“complexas” e podem, portanto, ser decompostas em ele
mentos menores. Essa decomposição é também objeto de
estudo deste Livro-texto. Por enquanto, basta entender que
sentenças são estruturas complexas saturadas que têm como
referência um objeto em particular: ou a verdade ou a
falsidade.

3.2.1 Predicados e argumentos


A partir de agora, vamos decompor sentenças. Decompor
uma sentença em suas unidades mínimas e mostrar as regras
de composição é um trabalho árduo que tem sido realizado
pelos semanticistas ao lon go de gerações. Não é possível
apresentar essas conquistas de uma única vez, porque há
várias questões que são, muitas vezes, bastante comple xas. É
por isso que essa decomposição é feita por etapas. Vamos
iniciar apresentando os conceitos básicos de argumento e de
predicado, que são os paralelos na sintaxe dos conceitos de
expressão saturada e insatu rada, respectivamente. Considere
a sentença em (6):

(6) João estuda.

Sua forma sintática pode ser grosseiramente

representada por: S

S S

N V

N V

João estuda

45
Semântica
pode ser reduzida, é fundamental para a
sintaxe gerativa, conforme aquela iniciada
por Noam Chomsky (1928- ). A idéia,
contudo, de que há hie rarquia na sintaxe e
de usar representações arbóreas é mais
antiga.

Intuitivamente, o signifcado da sentença (6)


é função do signifcado de suas partes
(composicionalidade): ‘João’ e ‘estuda’.
Essas partes com portam-se, no entanto, de
modo muito diferente. ‘João’, como vimos, é
um nome próprio e, como tal, se refere a
um indivíduo específco no mundo, é por
isso uma expressão saturada; em termos
sintáticos, ‘João’ é o argu mento do
predicado ‘estuda’. Por sua vez, o predicado
‘estuda’ é uma ex pressão insaturada
porque ela não se refere a um objeto em
particular no mundo (nem a um indivíduo,
nem a um valor de verdade). Além disso,
ela não é uma estrutura completa, porque
não expressa um pensamento.

João Maria

A representação arbórea de uma sentença


visa a mimetizar uma pro priedade
fundamental das línguas naturais: o fato de
que os elemen tos linguísticos se combinam
hierarquicamente e não linearmente, como
poderíamos julgar se nos contentássemos
com a nossa percep ção da linguagem em
que, aparentemente, um elemento se segue
a
outro. A ideia de hierarquia de constituinte,
grosso modo, os elemen tos a partir do qual
uma sentença é “montada” e no qual ela
sobre quem é que estamos falando, ‘estuda’
não
expressa um pensamento e nem é possível
ave
riguar se é verdadeiro ou falso. É por isso
mes

Sem maiores informações, por exemplo,


mo que essa expressão é um objeto em particular. A
O menino que está de azul
insaturada, ela precisa de expressão ‘estuda’ tem uma
Pedro um “complemento” para se posição aberta, que pode ser
saturar. Uma vez saturada, preenchi
O atual presidente do Brasil - ela vira uma sentença que da por diferentes
- veicula um pensamento argumentos, gerando, então,
-
completo e pode se referir a uma nova estrutura saturada:
estuda

A expressão ‘estuda’ é um predicado, isto é, uma


expressão insa turada que pede uma complementação, uma
saturação. Uma expressão

46

Metalinguagem CAPÍTULO 03
insaturada pode ser pensada como uma estrutura na qual há
um lugar vazio (uma valência):

_______ estuda

Esse lugar pode ser preenchido por diferentes argumentos;


cada ar gumento satura o predicado diferentemente, gerando
sentenças diferen tes: ‘João estuda’, ‘Maria estuda’, ‘O menino
que está de azul estuda’ etc.

O resultado de saturarmos uma expressão insaturada é


formar uma expressão saturada, uma sentença, que se
refere a um objeto, o ver dadeiro ou o falso.

Dissemos que todas as expressões da língua têm sentido e


referên cia. A que ‘estuda’ se refere? ‘Estuda’ é um predicado
de um lugar, isto é, com uma posição aberta e por isso é
chamado de predicado monoar gumental, ou seja, deve tomar
um e apenas um argumento. Predicados de um lugar se
referem a um conjunto de indivíduos; assim,‘estuda’ se refere
ao conjunto dos indivíduos que têm a propriedade de estudar.

Quando usamos a palavra ‘conjunto’, o que temos em


mente é a teoria de conjuntos, da Matemática. Quando
na Matemática se questiona o conjunto dos números
primos, o que se busca é a descrição de to dos os
números que são números primos, ou seja, todos os
números primos pertencem a um conjunto, o conjunto
dos números primos. Na Semântica, o termo conjunto
funciona semelhantemente. Ao usarmos o termo
‘conjunto’, buscamos colocar no mesmo conjunto aqueles
elementos que têm a mesma propriedade, por exemplo,
no conjunto de ‘estudar’, temos todos os elementos que
compartilham a propriedade de estudar. Então, ao
usarmos o termo ‘pertence ao conjunto de’, queremos
incluir no conjunto aqueles elementos ou objetos que
dele fazem parte. Como veremos, os nomes comuns,
como ‘médico’, e predicados de um argumento, como
‘correr’, deno tam conjuntos de indivíduos.

47
Semântica

N
No primeiro caso, temos o conjunto de
indivíduos que têm a pro priedade de ser
médico - em termos robustos, o conjunto de
todas as pessoas que são médicas; no
segundo conjunto, temos os indiví duos que
têm a propriedade de correr ou, simplesmente,
o conjunto daqueles que correm. Então, na
sentença ‘Pedro corre’, o que que remos dizer
é que Pedro pertence ao conjunto daqueles
que têm a propriedade de correr.

Vamos compor semanticamente a árvore


citada anteriormente. Começamos pelos nós
terminais, isto é, as unidades mínimas que, no
caso da sentença (7), são ‘João’ e ‘estuda’.

SN
‘João’ refere-se ao indivíduo
A sentença ‘João estuda’ tem então a forma
[[João]] = ao lado; essa forma tam SV
bém é conhecida como derivação de uma
sentença; no caso, da sentença ‘João estuda’.
Observe que ‘estuda’ refere-se a um conjunto
V
de indivíduos (os que aparecem entre Semanticamente, podemos parafrasear essa
chaves): sentença por ‘João per
João estuda
tence ao conjunto daqueles que estudam’.
Mas, para chegar a tal pará frase, precisamos
de uma regra semântica que permita compor o
SN (sintagma nominal) com o SV (sintagma
verbal), para que a sentença (S) seja
verdadeira sse o referente do SN pertencer ao
conjunto denota do pelo SV – para o nosso
caso, ‘João estuda’ (S) é verdadeira sse João

[[estudar]] = { }

48

Metalinguagem CAPÍTULO 03
se João estuda. Essa é uma instância da
sentença-T. Mas, note que ela é o resultado
(SN) pertence ao conjunto dos que estudam de um cálculo, da soma das extensões (um
(SV). Essa regra se chama Aplicação outro nome para referência) de ‘João’ e
Funcional e vamos apresentá-la ‘estuda’. Note ainda que chegamos às
informalmente, porque uma defnição formal condições de verdade da sentença e não a
requer conceitos que ainda não dominamos. um resultado, ao verdadeiro ou ao falso. O
No exem plo anterior (e este será sempre o resultado depende de como o mundo é: se
caso quando estivermos no nó S), a João tem mesmo a propriedade de es tudar, a
aplicação funcional aplica a função ‘estuda’ sentença é verdadeira; caso contrário, ela é
ao argumento ‘João’. falsa. Na situação (ou mundo) que
desenhamos acima, a sentença é verdadeira
Há duas maneiras de representarmos um
conjunto: porque João de fato tem a propriedade de
estudar.
a) Apresentamos os elementos que compõem
o conjunto, ou 3.2.2 Predicados de mais de um
b) Explicitamos a propriedade que os argumento
elementos têm. No exem plo anterior, Até agora olhamos para um tipo especial de
explicitamos os elementos do conjunto. Eis
predicado, aquele que é saturado por um
mais um exemplo: suponha que queremos
único argumento. Mas há predicados de mais
explicitar o conjunto dos números naturais
de um lugar. Há predicados de dois
maiores que 1 e menores que 4. Podemos
argumentos (ou dois lugares), como: ‘amar’,
enumerar os elementos desse conjunto: {2,
3}; mas, podemos também dar a defnição do
conjunto: {x / x é maior que 1 e me nor que
4}. No primeiro caso, damos a referência; no
segundo, damos o sentido. Podemos fazer o
mesmo com ‘estuda’:

[[estuda]] = {x / x estuda}

Em linguagem mais natural: o conjunto dos x


tal que x estuda. A idéia da aplicação
funcional é a seguinte: na extensão
(referência) do SV temos o conjunto {x / x
estuda}. Na extensão do SN temos João. A
aplicação funcional permite substituir a
variável (x) por João, obtendo a sentença Leia-se: x tal que x é maior que 1 e menor que 4.
‘João estuda’, que é verdadeira se e somente
49
Semântica

‘odiar’, ‘brigar com’; predicados de três argumentos, como:


‘comprar’, ‘dar’. Em termos lógicos, podemos ter predicados de
quantos argumentos qui sermos ou precisarmos; isto é,
podemos ter predicados de n-argumen tos. Mas, não é esse o
caso das línguas naturais, e há debate sobre o tema: Quantos
argumentos, no máximo, pode ter um predicado de uma língua
natural? Parece certo que há predicados de três lugares, como
em:

(7) João comprou o bolo para a Maria.

Mas, e o predicado ‘traduzir’, teria ele 4 argumentos? É


possível tratá-lo como um predicado de quatro argumentos,
sublinhados na sentença (8):
(8) Pedro traduziu A Ilíada do grego para o português.

O ponto da discussão é o seguinte: argumentos devem


ser essen ciais para a saturação do predicado. Em outros
termos, um predicado que não tem todos os seus argumentos
não está saturado, não expressa um pensamento completo.
Veja que este é o caso de (9), em que o aste risco indica
má-formação:

(9) * Maria brigou com

Temos, assim, certeza de que ‘brigar com’ requer dois


argumentos para se saturar:

(10) Maria brigou com o Pedro.

É claro que podemos ter outras “coisas”, mas elas serão


adjuntos, que se caracterizam por não serem essenciais para a
saturação do predi cado, por isso elas podem ser retiradas sem
prejuízo:

(11) Maria brigou com o Pedro com uma faca.

Observe que ‘com uma faca’ é um adjunto, tanto que


podemos su primi-lo, e o predicado continua saturado, como
aparece em (10).

Reconsidere, agora, o caso de ‘traduzir’. A pergunta é:


‘grego’ e ‘por tuguês’ são essenciais? A sentença abaixo é
completa? O predicado ‘tra duzir’ está saturado?

(12) Pedro traduziu A Ilíada.

50

Metalinguagem CAPÍTULO 03

Essas não são questões triviais, porém vamos ignorá-las aqui,


porque esta é apenas uma disciplina de introdução à
semântica.

Vamos agora olhar mais atentamente para predicados de


dois luga res. Considere a sentença:

(13) João ama Maria.

Veja que há dois elementos saturados, ‘João’ e ‘Maria’, que


se refe rem a indivíduos particulares no mundo. Assim, ‘ama’ é
uma estrutura insaturada com dois lugares vazios:

_____ama _____

A que esse predicado se refere? Recorde que predicados


de um lu gar se referem a conjuntos de indivíduos. E predicados
de dois lugares? Intuitivamente, um predicado como ‘ama’ se
refere ao conjunto de in divíduos tal que o primeiro está numa
relação amorosa com o segundo. Assim, predicados de dois ou
mais lugares estabelecem relações entre indivíduos. E
relações são ordenadas, isto é, alterar a ordem dos indi víduos
numa relação pode alterar a verdade da relação. Por exemplo,
suponha que a sentença (13) é verdadeira, isto é, João de fato
ama Maria. Se alterarmos a ordem dos argumentos, obtemos:

(14) Maria ama João.

Ora, as condições de verdade dessa sentença são totalmente


dife rentes das condições de verdade da sentença (13), porque
em (14) se afrma que a Maria é quem está numa relação de
amor com o João. Pode muito bem ser o caso de que (14) seja
falsa. Por isso, dizemos que rela ções de dois lugares se
referem a um conjunto de pares ordenados, em que o primeiro
membro é o agente ou experienciador do predicado; no nosso
caso, em (13) o João é o experienciador; já na sentença (14),
Maria é a experenciadora do ato de amar. Pares ordenados
são representados assim: <João, Maria>. Essa representação
diz que João está numa certa relação com Maria. Já o par
<Maria, João> diz que é a Maria que está numa certa relação
com o João. Há, é claro, relações que são simétricas, por
exemplo ‘ser casado com’: se A é casado com B,
necessariamente B é casado com A. Nesse caso, a ordem dos
argumentos não importa.
51
Semântica

Na gramática gerativa, o ‘João’ de (14) é chamado de


argumento externo, exatamente porque ele não está
regido pelo verbo. O ter mo que é regido pelo verbo,
como objetos diretos ou indiretos ou simplesmente os
complemento verbais, é chamado de argumento interno,
ou seja, interno ao domínio de complemento do verbo. Os
argumentos externos são externos porque não pertencem
ao domí
nio de complemento do verbo. Na sentença ‘João ama
Maria’, o termo ‘João’ é argumento externo, enquanto o
termo ‘Maria’, argumento in terno. Então, quando se
responde à pergunta ‘Quem o João ama?’, a resposta
leva em causa o seu argumento interno, regido pelo
verbo, complemento do verbo; neste caso, o termo
‘Maria’. Já na sentença ‘Maria ama João’, ‘Maria’ é
argumento externo, e ‘João’ o interno.

Essa maneira de descrever a denotação (extensão ou


referência) de um predicado de dois lugares é encontrada nos
vários sistemas lógicos (no cálculo de predicados, por
exemplo). Ela é uma representação “pla na”, no sentido de que
os dois argumentos estão em igualdade, embora eles estejam
ordenados; como se eles preenchessem o predicado ‘ama’ si
multaneamente e não houvesse diferença estrutural entre eles.
Sabemos, no entanto, que o argumento interno é mais “ligado”
ao predicado do que o argumento externo. Há vários indícios
dessa assimetria entre os argumentos. Por exemplo, o
argumento interno dispara extensões me tafóricas do evento
descrito pelo verbo, enquanto o argumento externo não pode
dispará-las:

(15) a. Matar uma barata;

b. Matar uma conversa;


c. Matar uma tarde assistindo televisão;

d. Matar uma garrafa;

e. Matar uma audiência;

f. Matar uma aula.

Essa assimetria aparece claramente na representação


sintática, a derivação de ‘João ama Maria’:

52

Metalinguagem CAPÍTULO 03
João
ama
Maria
S
SV SN
SN x ama Maria
N

NV

João x ama y Maria

Note que o argumento ‘Maria’ (argumento interno) está


mais pró ximo do verbo ‘ama’; ele é interno ao verbo. O nó SV é
a combinação de ‘ama’ com ‘Maria’, formando ‘ama Maria’; só
depois, no nó S, é que o SV se combina com ‘João’. Esses
passos de interpretação não aparecem cla ramente quando
afrmamos que a denotação de um predicado de dois lugares é
um conjunto de pares ordenados.

Semanticamente, saímos da referência do nó terminal ‘ama’,


um pre dicado de dois lugares, isto é, um conjunto de pares
ordenados, por exem plo: {<João, Maria>, <Pedro, Maria>,
<Joana, Maria>, <Maria, Joana>, <Carla, Pedro>}. Esse
conjunto pode ser apreendido pela descrição:

{<x, y> / x ama y}

O conjunto de pares ordenados em que x ama y.


Realizamos a primeira operação semântica no nó SV, uma
aplica ção funcional, que preenche o argumento interno y, isto
é, atribui um valor a este argumento; no caso, Maria. Assim,
transforma-se o conjun to de pares ordenados no conjunto de
indivíduos que amam Maria. O resultado é que, no nó SV,
temos um predicado de um lugar, o predicado ‘ama Maria’, cuja
referência é o conjunto de indivíduos que têm a pro priedade de
amar Maria, ou:

{ x / x ama Maria}

O conjunto dos x tal que x ama Maria.

Em nosso exemplo, trata-se do conjunto {João, Pedro, Joana}.

Finalmente, realizamos novamente a aplicação funcional,


que subs titui o x por João e resulta em: A sentença ‘João ama
Maria’ é verdadeira

53
Semântica

se e somente se João ama Maria. Mas, esse é o resultado de


atribuirmos uma denotação para os nós terminais e de
combinarmos esses elemen tos da esquerda para a direita (ou
seja, primeiro o argumento interno) através de duas aplicações
funcionais.

Essa apresentação da interpretação semântica é informal.


Você deve ter notado que nem mesmo defnimos o que é
aplicação funcional. Nosso objetivo é apenas dar uma ideia de
como funciona o processo de interpretação. Uma abordagem
mais formal, como dissemos, requer uma série de conceitos de
que ainda não dispomos. Os próximos Capí
tulos têm por função apresentar alguns desses

conceitos. 3.3 Considerações fnais

A noção de metalinguagem pode parecer um pouco


complicada à primeira vista, mas de fato fazemos uso dela em
muitas situações corri queiras, e topamos com ela diversas
vezes na escola, ao usarmos a ma temática para entender
física ou química, ou mesmo para entendermos geometria – ou
seja, usamos a matemática para descrever o espaço, fala se do
espaço pela matemática.

Neste Tópico também vimos o esquema-T, que é a maneira


mais comumente empregada pelos semanticistas para exibir as
condições de verdade das sentenças e separar a
linguagem-objeto da metalinguagem. Ao voltarmos às noções
de predicados e argumentos, agora munidos do esquema-T e
da noção de metalinguagem, pudemos realizar a derivação de
sentenças simples, explicitando a integração dos componentes
sintá
ticos e semânticos.

54

Pressuposição CAPÍTULO 04
Semântica e Pragmática são dois domínios
da linguagem extrema mente
4 Pressuposição inter-relacionados. Se o leitor procurar nos
livros de introdução a essas disciplinas,
Neste Tópico, iremos nos concentrar nos descobrirá que elas têm em comum como
aspectos semânticos da pressupo sição, objeto empírico o signifcado das expressões
apresentando uma defnição e testes para linguísticas nas línguas naturais. Entretanto,
identifcá-la com certa precisão. Também veremos cada área vê o signifcado de uma
dois aspectos desse fenômeno: a projeção e a forma diferente. O que no fnal das contas
acomodação. cria um objeto diferente.
determinação do valor de verdade de uma
Nos termos do flósofo Paul Grice, a
sentença a informações presentes no
Semântica se ocupa do signif cado literal (ou
contexto. A essas informações contextuais
gramatical), da sentença, enquanto a
chamaremos fundo conversacional.
Pragmática estuda o signifcado do falante.
Há vários aspectos do signifcado em que a
distin ção entre o que é trabalho da Fundo conversacional: conjunto de
Semântica e o que é trabalho da Pragmática informações, na forma de sentenças, que
não é simples de se delimitar, e a são tomadas como verdadeiras pelo
pressuposição é um desses aspectos. falante(s) e ouvinte(s) num dado contexto.

4.1 Caracterizando a
pressuposição
Você deve ter visto no primeiro Tópico que a
Semântica vê o signif cado das orações nas
línguas naturais como um cálculo: o
signifcado do todo é a soma do signifcado
das partes. Entretanto, há vários aspectos do
signifcado que estão diretamente atrelados ao
contexto e dependem dele para que Herbert Paul Grice (1913– 1988) flósofo da lingua
possamos avaliar se uma sentença é gem.
verdadeira ou falsa. Você viu no Capítulo 1
que, para determinar o conteúdo de diversas
sentenças, é necessário computar
Vimos essa distinção e de mos alguns exemplos
informações do contexto, e muitas in
de seu papel no Capítulo 1; contudo, a distinção
formações variam de um contexto a outro. A entre Semântica e Pragmática por vezes não é
pressuposição é um fenô meno similar, por fácil de ser feita. Para uma discussão do que são
os objetos teóricos da Semântica e da
ser também uma forma de ligar a Pragmática, ver Pires de Oliveira e Basso (2007).
55
Semântica

Assumir que há um conjunto de verdades sendo


compartilhadas pe los falantes torna muito mais fácil entender o
papel que o contexto exerce na atribuição de um valor de
verdade para as sentenças da língua. A no ção de contexto
pode ser muito vaga e imprecisa. Podemos dizer que o
contexto inclui os falantes, o local onde eles estão, as
condições do tempo, o período do dia, os acontecimentos
importantes da semana etc. Delimi tar uma parte do contexto
como fundo conversacional é uma forma de estreitar o que
estamos considerando dentro desse contexto, o que conta
como importante para avaliar a verdade ou falsidade de uma
sentença.

Para algumas sentenças, tudo que precisamos saber é


quais esta dos de mundo tornam a sentença verdadeira:

(1) a. Tá chovendo

b. João ama Maria.

Tudo que precisamos saber para calcular o signifcado de


(1a) é: no momento em que a sentença está sendo proferida,
está (ou não) choven do? E, para calcular o signifcado de (1b):
João ama (ou não) Maria? Ou seja, elas serão falsas se não
estiver chovendo e se for o caso de que João não ama Maria; e
verdadeiras, caso contrário.

Contudo, para outras sentenças precisamos de mais


informação, e essa informação nos é fornecida pelo fundo
conversacional. Imagine o seguinte diálogo, adaptado do
seriado Friends:

(2) Rachel: — Eu não durmo com homens no primeiro


encontro. Mônica: — Ede, Carl, John, Bill...
Rachel: — Não mais.

Claro, uma certa entonação na lista de homens que


Mônica apre senta, e na réplica de Rachel, é responsável pelo
humor da situação. Va mos considerar que a réplica de Rachel
possa ser descrita como em (3):

(3) Rachel não dorme mais com homens no primeiro encontro.

Há algo no signifcado de (3) que permanece constante, e é


con dição para a sentença ser um proferimento adequado no
contexto. Po demos operar a sentença de algumas formas e
tentar entender o que permanece:

56

Pressuposição CAPÍTULO 04
(3) a. Rachel não dorme mais com homens no primeiro encontro?
b. Duvido que Rachel não dorme mais com homens no
primei ro encontro.

c. Se Rachel não dorme mais com homens no primeiro


encon tro, então ela virou uma mulher difícil.

Que parte do signifcado de (3) permanece constante


quando: ques tionamos (3a), duvidamos (3b) ou colocamos
essa sentença dentro de um contexto hipotético, usando uma
estrutura condicional (da forma ‘se A, então B’, como em (3c))?
De todas as sentenças em (3) podemos inferir que:

(4) Rachel dormia com homens no primeiro encontro.

Dizemos que (4) é então tomada como pressuposto para


a verdade das sentenças em (3), de outra forma não faria
sentido dizer que “não é mais o caso que Rachel dorme com
homens no primeiro encontro”. Ou seja, está presente no fundo
conversacional dos falantes que ela havia ido pra cama com
alguns homens no primeiro encontro antes, em momen
tos passados, por isso Mônica pode listá-los. Tanto faz a
operação que fa zemos sobre a sentença, a assunção
compartilhada permanece constan te. Nesse sentido, a
pressuposição é uma condição de felicidade para o
proferimento de (3). Essa sentença só é um proferimento, um
uso feliz da língua, se o falante e o ouvinte tomam como certo
que a pressuposição, (4), é verdadeira. E só a partir daí
podemos avaliar se (3) é verdadeira.

Ao conjunto de estruturas em (3a-c) chamamos família


pressu posicional, ou P-família. Ela é um teste bastante
seguro para detectar que tipo de informação está sendo
pressuposta em uma sentença, quais afrmações são tomadas
como verdadeiras num dado contexto, o nosso fundo
conversacional. Uma forma de defnir a pressuposição é através
de uma regra usando a noção da P-família:

(P) a sentença A pressupõe a sentença B se e somente


se A e os ou tros membros da P-família implicam B.

57
Semântica
acarretam!

Toda vez que a sentença A for usada, a


pressuposição que ela carre ga deverá
Vimos a noção de acar retamento no Capítulo 2;
caso seja necessário, volte a ela e reveja essa
manter-se constante se ela for encaixada em
noção, ou vá ao Glossário. um dos membros da P-família:
Implicam, mas não necessariamente
(5) P-família Da verdade de (6a) podemos inferir (6b) e
Negação: Não é o caso que A. (6c), e de (6b) podemos inferir (6c). Sempre
Pergunta: A? que a primeira for verdadeira, a verdade das
duas últimas é acarretada, mas não o
Dúvida: Duvido que A.
contrário.
Condicional: Se A, então...
Veremos agora dois aspectos particulares da
Exemplifcamos a P-família apresentada em
pressuposição. Ela pa rece estar sempre
(5) com as sentenças em (3), como você
ligada, ou gerada, por certas expressões ou
pode verifcar. A negação aparece em (3a), a
constru ções sintáticas. E, por outro lado,
dúvida em (3b) e a condicional em (3c).
mesmo quando a pressuposição não está no
Não devemos confundir pressuposição com fundo conversacional, ela encontra uma
acarretamento. Acar retamento é uma forma de se acomodar, sem que o
inferência lógica, um raciocínio semântico: a proferimento seja infeliz.
partir da verdade de uma sentença A,
concluímos que B é verdadeiro também, 4.2 Os gatilhos
sempre que A for verdadeiro. Veja o caso a
seguir: Há uma série de expressões na língua
portuguesa cujo signifcado envolve o que
(6) a. Brutus assassinou César com uma faca
chamamos de projeção da pressuposição.
violentamente. b. Brutus assassinou César
Essas expres
com uma faca.
c. Brutus assassinou César.

58

Pressuposição CAPÍTULO 04
sões são como gatilhos: sempre que usadas, elas disparam
uma pressu posição, à medida que acessam o fundo
conversacional para verifcar se o proferimento da sentença é
feliz no contexto em que é proferida a sentença que contém o
gatilho.

Um conjunto dessas expressões são os chamados verbos e


advérbios aspectuais. Eles são assim chamados porque
interferem no modo como vemos uma dada situação descrita
pelo verbo principal da oração. Esse conjunto inclui: ‘parou’,
‘ainda’, ‘continua’.

Suponha que João esteja sendo processado por uso de


drogas e du rante o julgamento o promotor pergunta:

(7) O senhor parou de fumar maconha?

Se João responder sim ele estará se incriminando: ora, se


ele con frma que parou de fumar maconha, é porque
fumava antes, estará afr mando que ele usava
drogas; se responder não também se incrimina: ora, se ele
não parou de fumar maconha, é porque ele ainda
fuma, e se ele ainda fuma, então ele já fumou
antes, ou seja, ele continua usando drogas. A única saída
é negar a pressuposição, dizendo algo como:

(8) Como eu posso ter parado de fazer algo que nunca fz?

Para mostrar que é esse o caso, que (7) pressupõe que


João fumava maconha, vamos fazer o teste da P-família:

(9) a. João parou de fumar maconha.

b. Não é o caso que João parou de fumar maconha.

c. João parou de fumar maconha?

d. Duvido que João parou de fumar maconha.

e. Se João parou de fumar maconha, então ele tomou


uma boa decisão.

f. João fumava maconha.

Note que as sentenças de (9a) a (9e) pressupõem (9f). Não


temos como afrmar (9a) se não for pressuposto, tomado como
certo que (9f) é verdadeira.

59
Semântica

Alguns verbos também introduzem pressuposições como


seus complementos. Dois casos típicos são: ‘lamentar’ e
‘descobrir’.
(10) João lamenta ter traído sua mulher.

(11) Maria descobriu que seu marido estava tendo

um caso. Façamos o teste:

(10’) a. Não é o caso que João lamenta ter traído sua mulher.

b. João lamenta ter traído sua mulher?


c. Duvido que João lamenta ter traído sua mulher.
d. Se João lamenta ter traído sua mulher, então
há espe rança de que ele se renegere.
e. João traiu sua mulher.

Novamente, a P-família nos ajuda a detectar a informação


que per manece constante: (10’e), ou seja, João traía sua
mulher antes.

Vimos que os testes são uma forma segura de


reconhecermos o que é pressuposto em uma sentença, e
reconhecer as pressuposições é uma competência intuitiva que
temos enquanto falantes (e leitores) de uma língua. Contudo,
não é fácil ou simples determinar quando as pressupo
sições de certas construções são projetadas e quando elas não
são. Veja mos um caso: vimos anteriormente que a sentença
‘João parou de fumar maconha’ pressupõe que ele fumava.
Agora, veja o caso a seguir:

(12) Carlos pediu para João parar de usar drogas.

Intuitivamente, percebemos que (12) não pressupõe que


João usava drogas. Imagine o seguinte cenário: alguém mentiu
para Carlos, dizen do que o comportamento estranho de João
era relacionado ao fato de que ele usava alguma substância
ilícita, Carlos acreditou e pediu que João parasse.
Diferentemente do cenário do julgamento, em que alguém
queria incriminar João, aqui a sentença não pode pressupor
algo que depende das crenças do falante. Veja outro caso:

(13) João está traindo sua esposa.

(14) Pedro acusa João de estar traindo sua esposa.


60

Pressuposição CAPÍTULO 04
Aqui, (13) pressupõe que João tem uma esposa, mas (14)
não, já que a acusação de Pedro pode ser falsa, e (13)
também.

4.3 Acomodando pressuposições


De acordo com o que vimos na Seção anterior, a
pressuposição de pende de um conjunto prévio de
proferimentos feitos, o que chama mos de fundo
conversacional. Dessa forma, um proferimento só é feliz se as
pressuposições que ele projeta são confrmadas como
verdadeiras em relação ao fundo conversacional. Entretanto,
temos casos em que, mesmo quando não existe tal
pressuposição, ela se cria, ou seja, ela é acomodada no fundo,
sem que o proferimento seja infeliz, ou julgado como falso pelo
ouvinte.

Suponha o seguinte cenário: João é seu novo colega de


trabalho, você conhece pouco sobre ele. Vocês estão no
horário do café, quando ele profere (15), que pressupõe que
ele tenha um flho:

(15) Hoje vou sair mais cedo, tenho que levar meu flho ao dentista.

Não paramos a conversa. Simplesmente ela continua, com


a infor mação nova – João tem um flho – sendo adicionada ao
fundo conversa cional. Provavelmente, alguém poderia
perguntar se o garoto tem algum problema de cárie ou se é
visita de rotina; outro poderia perguntar qual a idade do
menino. Basicamente, não temos como prever isso. O que nos
interessa é que nesse caso (15) não é um proferimento infeliz.
O fato de você, ou os outros ouvintes não saberem que João
tinha um flho não torna a sentença falsa ou estranha.
Uma forma de capturar isso é através da seguinte regra:

Se no proferimento de A a pressuposição B não existe no


fundo con versacional, então, para a sentença ser feliz, B
passa a fazer parte do que é compartilhado pelos
falantes como pressuposto.

Ou seja, B passa a fazer parte do conjunto de sentenças


tomadas como verdadeiras, nosso fundo conversacional.
Conforme uma conversa progride, novas informações são
adicionadas ao fundo conversacional,

61
Semântica
procurando por ele, você pergunta “Cadê o
João?”, quem lhe respondesse usando (16)
estaria lhe dando uma informação relevante.
Sabendo que você não sabe que João tem
flhos, (16) é construída de forma a primeiro
adicionar ao fundo conversacional a
pressuposição ‘João tem flhos’, para depois
fazer um proferimento verdadeiro a respeito
dos flhos dele. (17) soa es tranha, porque
Daí o uso do símbolo # para representar
anomalia semântica. primeiro temos a sentença que precisa da
pressuposições podem ser canceladas, como pressuposição, e depois a segunda oração,
vimos anteriormente, novas podem ser que introduz a pressuposição. Ela soa redun
adicionadas rapidamente. Veja as duas dante porque ‘João colocou seus flhos pra
sentenças a seguir: dormir’, caso a pressuposição ‘João tem
flhos’ não faça parte do fundo conversacional,
(16) João tem flhos, e ele colocou seus flhos
é criada ou acomodada pela sentença ‘João
pra dormir. (17) # João colocou seus flhos pra colocou seus flhos pra dormir’; ora, por que
dizer novamente, dar mais uma vez a
dormir, e João tem flhos.
informação ‘João tem flhos’, se ela já foi
O que faz com que (16) seja um proferimento acomodada? Daí a estranheza de (17).
feliz, enquanto (17) não? (17) soa
Até aqui, consideramos que sentenças
redundante fora de contexto. Contudo, faz
podem ser verdadeiras ou falsas (excluindo
todo o sentido se você não sabe que João
os casos vagos e indeterminados). Vimos
tem flhos, e ele some da festa. Se,
neste Tópi co que certas sentenças, para
serem verdadeiras, precisam que certas questão extrema mente complexa, e nossas
informações sejam garantidas como intuições de falantes nem sempre são claras
verdadeiras no fundo conversacio nal – quando pensamos nas possíveis respostas.
trata-se das pressuposições que certas
Tomemos um exemplo: sabemos que João
sentenças carregam. O que acontece,
nunca reprovou em Ma temática, e alguém
contudo, nos casos em que as
diz:
pressuposições não são garanti das e nem
acomodadas? Em outras palavras, qual o (18) João reprovou em Matemática.
valor de verdade de sentenças cujas
(19) João reprovou em Matemática de novo.
pressuposições são falsas? Essa é uma

62

Pressuposição CAPÍTULO 04
A sentença (18) simplesmente nos dá uma informação: a de
que João, pela primeira vez, por tudo o que sabemos, reprovou
em Matemá tica, e pode ser verdadeira se ele de fato reprovou,
e falsa caso contrário. E quanto à sentença (19)? Ora, se João
nunca reprovou em Matemática, é verdadeiro ou é falso que
ele reprovou em Matemática de novo? Mes mo supondo que
ele de fato tenha reprovado pela primeira vez, estamos
inclinados a dizer que (19) é falsa: afnal, ele não reprovou de
novo.

Tomemos outro exemplo: João não é uma pessoa violenta


e nunca agrediu sua mulher; nesse contexto, alguém diz:

(20) João parou de bater na mulher.

A sentença (20) é verdadeira ou falsa? A literatura em


Semântica, Pragmática e Filosofa se divide quanto à melhor
resposta. Neste Livro-tex to, adotaremos a seguinte resposta:
sentenças cuja pressuposição é falsa não têm valor de
verdade. Alguns gostariam até de afrmar que sentenças
nessas condições, com pressuposições não preenchidas, nem
sequer fazem sentido, mas não precisamos ir tão longe. Basta
indicar que esse é um tema controverso, cuja resolução ainda
está por ser estabelecida.
4.4 Considerações fnais
Neste Capítulo, estudamos um aspecto do signifcado das
línguas naturais que está diretamente ligado ao contexto: a
pressuposição. A se manticista Irene Heim usa uma analogia
para explicar a contribuição que a pressuposição faz ao
signifcado. Para a autora, quando pressupo sições são
adicionadas ao fundo conversacional é como se estivéssemos
alterando pastas de um grande arquivo (o nosso fundo
compartilhado de verdades). Cada pressuposição adicionada,
cancelada, acomodada é uma alteração que fazemos em uma
pasta. Obviamente isso é uma hi pótese de como funciona um
aspecto da interação humana através da linguagem (e como
toda hipótese científca, pode estar errada).

Nossos diálogos cotidianos não precisam começar (e não


come çam) do zero, há sempre algo já em nossos arquivos e
pastas, pressu posições são facilmente adicionadas ou
canceladas. Muito do que cha mamos “micos” são, na verdade,
conhecimento de mundo que não se

63
Semântica
comparação entre a semântica formal e outros
tipos de semântica.

Estas duas indicações são também boas


introduções aos objetivos e à estru tura da
Veja o conceito de inten sionalidade no glossário. semântica formal.
confrma, ou pressuposições que acreditamos
CHERCHIA, G. Semântica. Campinas:
serem verdadeiras e que acabam sendo
Editora da Unicamp; Londrina: Eduel. 2003.
falsas.
No capítulo 4 você pode ler de maneira clara as
restrições necessárias para a confecção de uma
teoria semântica.
Leia mais! ILARI, R.; GERALDI, W. Semântica. São
Paulo: Ática, 2002. [Série Princípios].
PIRES DE OLIVEIRA, R. Semântica. In:
MUSSALIM, Fernanda; BEN TES, Anna BORGES NETO, José. Semântica de
Christina (Orgs.). Introdução. vol. 2. São Modelos. In: Müller, A.; Negrão, E. V.;
Paulo: Cortez, 2001a. p. 17-46. Moltran, M. J. Semântica Formal. São
Paulo: Contexto, 2003.
Você pode consultar este capítulo para uma
passo uma pequena semântica formal, mas
Por fim, você pode também consultar esse texto, também a acopla a uma teoria sintática.
no qual o autor não só desenvolve passo a

64

Unidade
B Operações
Semânticas
As descrições definidas CAPÍTULO 05

5 As descrições definidas
Neste Capítulo, você vai aprender alguns dos problemas envolvidos
na análise das descrições defnidas. Exploraremos suas condições
de uso do ponto de vista quantifcacional e pressuposicional, e
também algumas das suas pro priedades textuais.

As descrições defnidas (DDs) são tema de intenso debate


nos li mites da flosofa analítica da linguagem, da semântica e
da pragmática. Basicamente, as DDs são sintagmas
encabeçados por um artigo defnido (‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’) seguido
por um substantivo, como ‘o gato’, ‘a cerveja’ etc. A estrutura
básica de uma DD pode variar em complexidade. Os tre chos
em itálico nos exemplos a seguir são todos descrições:

(1) João comprou o carro.

(2) O animal mais perigoso do zoológico fugiu de novo.

(3) Pedro deu um pedaço de bolo para o menino


de verde que não foi pra escola.

Esses exemplos mostram que a DD pode ocupar,


respectivamen te, as posições de objeto direto,
sujeito e objeto indireto, além de outras
posições numa sentença. Note também que trechos como
‘animal mais perigoso do zoológico’ desempenham nas DDs o
mesmo que substanti vos simples, como ‘carro’ em (1).

Neste Capítulo, veremos algumas das razões de uma


estrutura apa rentemente tão simples desencadear importantes
debates e também as funções textuais das descrições
defnidas, contrastando-as com as des crições indefnidas.
Usaremos as DDs como um exercício de análise se mântica,
mostrando como se formula e se avalia uma hipótese nessa
área do conhecimento.

67
Semântica

5.1 O papel semântico das DDs:


o começo do debate
Tomemos a sentença:

(4) O menino é esperto.

Nessa sentença há a DD ‘o menino’ e o predicado ‘ser


esperto’. In teressa-nos aqui investigar a contribuição semântica
das DDs, e, para tanto, é necessário saber quando uma DD
pode ser usada. Tomemos os seguintes contextos:

Contexto A: não há nenhum menino por perto e nada se


falou so bre menino algum; de repente, alguém fala ‘O menino
é esperto’;

Contexto B: há dois meninos brincando e alguém diz ‘O


menino é esperto’, sem apontar para nenhum deles;

Contexto C: há um único menino e uma menina


brincando; al guém diz ‘O menino é esperto’.

O que a sua intuição diz sobre esses usos de (4)? Para o


contexto A, a reação mais normal seria perguntar: mas de que
menino você está fa lando? Ora, não há nenhum menino por
perto nem se falou de menino algum antes... como saber de
quem se está falando? Para o contexto B, a reação mais
imediata seria perguntar sobre qual dos meninos se está
falando. Sem sabermos identifcar o referente não conseguimos
fazer sentido da sentença.

Os contextos A e B parecem não ser apropriados para o


uso de (4). No contexto A, no qual não há nenhum menino, não
podemos saber de quem se está falando – pode ser qualquer
menino do mundo e, sem mais informações, não temos como
saber de qual se trata; no contexto B, com dois meninos,
simplesmente não sabemos de quem se está fa
lando – como diferenciar os dois meninos e saber de qual
predicamos que seja esperto? Finalmente, no contexto C, a
sentença (4) tem um uso adequado: conseguimos saber de
quem se está falando.
68

As descrições definidas CAPÍTULO 05


5.2 Como capturar a reação das
DDs aos contextos A, B e C
semanticamente?
Podemos dizer que o contexto A “peca pela falta”: a DD ‘o
menino’ não pode ser usada no contexto A porque não há
ninguém sobre o qual predicar ‘é esperto’; por sua vez, o
contexto B “peca pelo excesso”: a DD não pode ser usada no
contexto B porque há mais de um menino (há dois, de fato)
sobre o qual se pode predicar ‘é esperto’ e não sabemos de
qual se trata. Finalmente, no contexto C achamos as condições
adequa
das para usar a DD ‘o menino’: há um e apenas um menino no
contexto C sobre o qual podemos predicar ‘é esperto’.

Assim sendo, para que uma DD seja usada


apropriadamente, há duas condições:

I) Deve haver pelo menos um referente capaz de satisfazer


o pre dicado que segue o artigo defnido – o contexto A,
portanto, está excluído.

II) Não pode haver mais que um referente capaz de


satisfazer o predicado que segue o artigo defnido – o
contexto B, portanto, está excluído.

Em resumo, para usarmos uma DD:

III) Deve haver um e apenas um referente no contexto em


que se usa uma DD que satisfaça o predicado que
compõe a DD – como no contexto C.
Os itens de (I) a (III) são apenas uma descrição do
comportamento semântico das DDs. Nas seções a seguir,
veremos exemplos mais interes santes e duas maneiras de
encaixar essas descrições em quadros teóricos.

5.3 Falsas nos contextos A e B


Como já vimos em Tópicos anteriores, o semanticista se
pergunta sempre: quais as condições de verdade de uma
sentença? Se apontarmos para uma pessoa qualquer e
dissermos:

(5) Ela leu Memórias Póstumas de Brás Cubas.

69
Semântica

Sabemos que (5) é verdadeira se ela de fato leu


Memórias Póstumas de Brás Cubas,
e sabemos que (5) é falsa se ela não leu Memórias
Póstu mas de Brás Cubas.

Do mesmo modo, vamos nos perguntar se a sentença (4), ‘O


meni no é esperto’, é verdadeira no contexto C. Ora, se o
menino for esperto, (4) é verdadeira; se ele não for esperto, (4)
é falsa. E o que nossa intuição nos diz sobre os contextos A e
B? A sentença (4) é verdadeira ou falsa?

Uma das teorias sobre as DDs, que podemos chamar de


teoria quantifcacional – as razões para esse nome fcarão
mais claras adiante –, nos responde à pergunta sobre a
verdade ou falsidade de (4) nos con textos A e B com um
sonoro “falso”.

A intuição por trás da teoria quantifcacional é a seguinte:


uma DD qualquer diz, afrma, ou asserta duas coisas:

a) Há um referente que satisfaz o predicado que compõe

a DD. &
b) Não há mais de um referente que satisfaça o predicado
que compõe a DD.

Observe que o símbolo que une as sentenças (a) e (b), ‘&’,


é um ‘e’, uma conjunção que só é verdadeira se as duas coisas
que ela une forem simultaneamente verdadeiras. Se dissermos
‘João e Maria vieram à festa’ quando na verdade só o João
veio, então teremos dito algo falso; do mes
mo, se apenas Maria veio, também diremos algo falso – em
resumo, a única maneira de ‘João e Maria vieram à festa’ ser
verdadeira é se ambos de fato vieram à festa.

Voltando à sentença (4), podemos entendê-la da

seguinte forma: (4) O menino é esperto.

a) há um menino

&

b) não há mais do que um menino.

70

As descrições definidas CAPÍTULO 05


Ora, agora é fácil entender por que, no contexto A, a
previsão da teoria quantifcacional é de que (4) seja falsa: não
há menino algum, portanto a primeira sentença unida por ‘&’ é
falsa, logo toda a sentença é falsa. O mesmo ocorre no
contexto B, só que agora a sentença falsa é a segunda unida
por ‘&’, ou seja, há mais do que um menino. O contexto C é o
único no qual as sentenças (a) e (b) são verdadeiras. Resta
saber então se o menino é realmente esperto para que (4) seja
verdadeira.

Novamente, para a teoria quantifcacional, a sentença (4) é


falsa no contexto A porque não há menino algum e, no
contexto B, porque há mais de um. Em relação ao contexto C,
diremos que (4) será falsa nesse contexto apenas se o
predicado ‘é esperto’ não se aplicar à DD ‘o menino’. Para
capturar melhor todos esses passos, façamos uma pequena
altera
ção nas condições de verdade de (4) e somemos a ela mais
uma linha - assim, (4) será verdadeira se e somente se:

a) Há um referente que satisfaz o predicado que compõe

a DD; &

b) Não há mais do que um referente que satisfaça o


predicado que compõe a DD;

&

c) O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.

Temos outra ‘&’, portanto uma sentença que tem uma DD


só será verdadeira se as linhas (a), (b) e (c) o forem
simultaneamente. Voltemos, uma última vez, aos nossos
contextos A, B e C e vejamos todas as possi bilidades – na
tabela a seguir, ‘V’ é verdadeiro e ‘F’ é falso:
referente que b) Não há mais predicado que aplica ao
satisfaz o do que um compõe a DD. referente da DD.
predicado que referente que
Contexto c) O predicado da Valor de verdade
compõe a DD. satisfaça o
a) Há um sentença se de (4)
1AFVVF2AFVFF3BVFVF4BVFFF5CVVVV6CVVFF

71
Semântica

Na tabela acima, expomos todas as confgurações possíveis


da sen tença (4) nos contextos A, B e C. Note que o valor de
verdade varia para cada contexto no item (c), no qual “o
predicado da sentença se aplica ao referente da DD”. Veja que
os contextos A e B serão sempre falsos – como já havíamos
previsto. A última linha, que torna a sentença (4) verdadeira, é
a 5, na qual os três itens a), b) e c) são simultaneamente
verdadeiros – como também já havíamos previsto.

Agora faz mais sentido entendermos o termo “teoria


quantifca cional”: além de ela lançar mão da lógica, ela pode ser
entendida como uma paráfrase do tipo: existe um e apenas um
referente que satisfaça o substantivo que segue o artigo, e o
predicado que segue a DD se aplica a ele. Tal paráfrase é
facilmente traduzível em linguagens lógicas.

Nesse quadro, uma DD qualquer é, na verdade, uma forma


resumi da de se dizer (a), (b) e (c).

A teoria quantifcacional é extremamente engenhosa, mas


não é isenta de problemas, e eles aparecem assim que
consideramos DDs mais interessantes. Vejamos:

(6) A atual presidenta do Brasil não gosta de andar de avião.

Não é difícil ver que a sentença (6), de acordo com a teoria


quantif cacional, receberá como valor de verdade, pelo menos
no nosso mundo, em 2009, o valor de falsa. Ela está
justamente num contexto do tipo A, que torna falsa a condição
(a), ou seja, “há um referente que satisfaz o subs tantivo que
segue a DD”: ora, não há presidenta do Brasil em 2009...

A pergunta que imediatamente fazem os críticos da teoria


quan tifcacional é: dizer que (6) é falsa está mesmo de acordo
com nossa intuição? Coloque-se na seguinte situação: você
pega o jornal de manhã e vê escrito numa manchete:

(6) A atual presidenta do Brasil não gosta de andar de avião.

Qual é a sua reação? Para a teoria quantifcacional, você


deveria pensar algo como: o jornal está dizendo uma mentira,
afnal, não há pre sidenta do Brasil – Lula é o presidente do
Brasil e ele é um homem. Por sua vez, os críticos da teoria
quantifcacional preveem que você pensaria algo como: Nossa!
Eu não sabia que o Brasil tinha uma presidenta... Sempre achei
que o presidente era o Lula.

72

As descrições definidas CAPÍTULO 05


Pois bem... Qual resposta lhe parece mais adequada?
Talvez alguns outros exemplos ilustrem melhor o ponto de vista
dos críticos:

(7) O rei do Brasil é jovem.

(8) A primeira mulher a pousar em Marte é casada.

(9) O tigre voador está em extinção.

Se sua reação diante das sentenças de (7) a (9) não foi a


de dizer que todas são falsas, que todas dizem algo que não é
verdadeiro – como prevê a teoria quantifcacional –, mas sim se
sua reação foi algo como: eu não sabia que existia rei no
Brasil; eu não sabia que uma mulher tinha pousado em Marte;
eu não sabia que existiam tigres voadores – então, a teoria
quantifcacional não está de todo correta.

Mais do que isso: imagine que algum chato fque insistindo


e obri gue você a responder se você acha que alguma das
sentenças de (6) a (9) são verdadeiras ou falsas. Muito
provavelmente você responderá espon taneamente com um
redondo “Não sei!”. Essa sua inocente e espontânea resposta
invalida a previsão da teoria quantifcacional de que essas sen
tenças deveriam ser falsas. O que fazer então?

Ora, é preciso formular uma outra teoria – é a isso que nos


voltare mos na próxima Seção.

5.4 Nem falsas nem verdadeiras


nos contextos A e B
Há um aspecto bastante interessante e problemático em
responder “Não sei.” sobre o valor de verdade de uma
sentença. A Semântica con sidera que tudo o que precisamos
saber sobre uma sentença são suas condições de verdade;
mais do que isso, considera que as sentenças são ou
verdadeiras ou falsas. Sentenças sem valor de verdade são,
portanto, um problema...

Contudo, não é a primeira vez que nos deparamos com tal


situação. Se você recapitular, verá que no Tópico sobre
pressuposição nos depara mos com uma situação na qual não
sabíamos dar o valor de verdade das sentenças, que é
justamente quando suas pressuposições não são preen chidas.
Um rápido exemplo pode ajudar a ilustrar esta situação:

73
Semântica

Um amigo diz para o outro:

(10) O João parou de fumar.

A sentença (10) carrega uma pressuposição, a de que João


fumava antes, e diz ou asserta que ele não fuma mais: ele
parou de fumar. Ima gine essa mesma sentença dita num
contexto em que todos (inclusive você) sabem que João nunca,
jamais fumou. Nesse caso, a sentença (10) é verdadeira ou é
falsa?

Se você teve difculdade em responder a essa pergunta,


tudo bem. Pense agora o seguinte: será que não acontece o
mesmo com as senten ças de (6) a (9) quando perguntamos se
elas são verdadeiras ou falsas? A resposta, para quem
defende a teoria que chamaremos (com muita criatividade!) de
pressuposicional, é “Sim!”.

Essa teoria, em linhas bastante gerais, pode ser entendida


como uma alteração da teoria quantifcacional, mas uma
alteração funda mental. Lembramos que na teoria
quantifcacional há três condições, as quais são ditas ou
assertadas por uma sentença que tenha uma DD, e devem ser
simultaneamente preenchidas para que a sentença seja ver
dadeira. A teoria pressuposicional dirá que as duas primeiras
linhas são pressuposições, são imposições feitas ao contexto e
que apenas a terceira linha é de fato dita ou assertada.
Comparemos as duas teorias:

Teoria quantifcacional: uma sentença com DD diz:

a) Há um referente que satisfaz o predicado que compõe


a DD; &

b) Não há mais do que um referente que satisfaça o


predicado que compõe a DD ;
&

c) O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.

Teoria pressuposicional: uma sentença com DD

pressupõe: a) Há um referente que satisfaz o

substantivo que segue a DD; &

74

As descrições definidas CAPÍTULO 05


b) Não há mais do que um referente que satisfaça o
substantivo que segue a DD;

e diz:

c) O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.

Se voltarmos para a sentença (4), que já analisamos


exaustivamen te, e aos contextos A, B e C à luz da teoria
pressuposicional, obteremos resultados diferenciados. Agora,
(4) não é mais falsa nem em A nem em B: ela simplesmente
não pode receber valor de verdade nesses contex tos porque
as pressuposições de que há um referente (linha (a)) e que não
há mais de um (linha (b)) não estão preenchidas nos contextos
A e B, respectivamente. Para que a nova situação fque ainda
mais clara, retomemos a tabela de verdade, que
reapresentamos em seguida. Vamos indicar pelo símbolo ‘Ø’
as situações em que pressuposições não são sa tisfeitas, e por
‘INDEF’ o valor de verdade indefnido ou a falta de valor de
verdade, decorrente de pressuposições não satisfeitas.

Pressuposições Asserção
que compõe a DD. que compõe a DD. Valor de verdade de
Contexto a) Há um b) Não há mais do c) O predicado da (4)
referente que satisfaz que um referente que sentença se aplica ao
o predicado satisfaça o predicado referente da DD.

1 A Ø V V INDEF 2 A Ø V F INDEF 3 B V Ø V INDEF 4 B V Ø F INDEF 5 C V V V V


6CVVFF

Como a tabela deixa transparecer, somente podemos atribuir valor


de verdade a uma sentença quando suas pressuposições estão todas pre
enchidas – que é o caso apenas do contexto C. É pela falta de pressupo
sições preenchidas que respondemos “Não sei.” quando nos perguntam
pelo valor de verdade de sentenças como ‘A atual rainha do Paraguai
gosta de pular de paraquedas’.

O debate sobre o estatuto de asserção ou de pressuposição das li


nhas a seguir não está resolvido:

75
Semântica

a) Há um referente que satisfaz o predicado que compõe

a DD; &

b) Não há mais do que um referente que satisfaça o


predicado que compõe a DD.

Além disso, são muitos os argumentos a favor de uma ou outra


po sição. Contudo, não seria errado dizer que, pelo menos nos
últimos anos, a maioria dos pesquisadores em semântica está
mais propenso a adotar a teoria pressuposicional. Bom, pode
ser que isso mude nos próximos anos – afnal, a ciência não é
algo estático e sempre é possível construirmos ar gumentos
melhores e mais refnados, que iluminem aspectos ainda não
vislumbrados, e que ajudem na adoção de uma ou outra
perspectiva.

Depois de explicitar a problemática por trás das DDs, nos


voltare mos, na última Seção deste Capítulo, a um aspecto
bastante importante dessa construção: o seu papel textual.

5.5 A função textual das DDs


Tanto a teoria quantifcacional quanto a pressuposicional
conside ram, para a semântica das DDs, que, ao empregar uma
DD, o falante considera que o ouvinte, de alguma maneira,
conseguirá identifcar ine quivocamente o referente sobre o qual
se está falando. No caso da solução quantifcacional,
afrma-se que há apenas um referente do tipo em ques
tão, e, no caso da solução pressuposicional,
pressupõe-se que no contexto haja apenas um
referente do tipo em questão. Devido a essa característica, as
DDs estão sempre associadas a informações já dadas e
recuperáveis, desempenhando um interessante papel na
tessitura dos textos.

Se contrapusermos às DDs as descrições indefnidas (DI)


– que têm a mesma estrutura, porém são encabeçadas pelos
artigos indef nidos –, veremos que as DIs são responsáveis por
introduzir (novos) referentes num dado texto ou discurso, ao
passo que as DDs são respon sáveis por indicar que estamos
falando de referentes já conhecidos (ve lhos, informação dada).
Quando começamos uma narrativa qualquer, ao introduzirmos
uma personagem o fazemos, na imensa maioria
das vezes, através de uma DI:

76

As descrições definidas CAPÍTULO 05


(11) Era uma vez um rei muito bondoso.

(12) ? Era uma vez o rei muito bondoso.

Mas, se quisermos continuar a falar da personagem


introduzida, teremos que usar uma DD e não uma DI:

(13) Era uma vez [um rei muito bondoso]1. Mas [o


rei]1 tinha ini migos.

(14) ? Era uma vez [um rei muito bondoso]1. Mas


[um rei]1 tinha inimigos.

O índice 1 indica que se trata dos mesmos referentes,


explicitando a relação anafórica que nos interessa.

Como muitos argumentam, as DDs são sempre anafóricas, ou


seja, sempre falam de um referente recuperável no contexto e,
portanto, já mencionado. Como num contexto ou discurso em
geral há muitos refe rentes sobre os quais se fala, a DD deve
indicar de alguma maneira uma especifcidade, ou uma
característica distintiva através da qual captura mos apenas um
referente. Uma maneira de fazer isso é pensar que a DD indica
que há uma restrição em operação, e que devemos procurar
um referente exclusivo que cumpra tal restrição. Vejamos um
exemplo:

Duas mães conversando sobre a escola dos flhos, e então


uma co menta:

(15) Coloquei meu flho numa escola que todos diziam ser
boa. Depois de dois meses, meu flho quis mudar. Aí eu fui ver,
e achei que a escola não era tão boa.

(16) ? Coloquei meu flho numa escola que todos diziam ser
boa. Depois de dois meses, meu flho quis mudar. Aí eu fui ver,
e achei que uma escola não era tão boa.

O exemplo (16) é ruim porque a DI ‘uma escola’ não funciona


como termo anafórico, e só pode indicar que a mãe está
falando de uma se gunda escola: uma interpretação que torna
incoerente o texto como um todo. Por sua vez, no exemplo
(15), a DD cumpre seu papel anafórico: sabemos que quando a
mãe diz ‘a escola’ ela está falando de uma escola já
mencionada. Como sabemos isso? Aqui entra a ideia de que as
DDs

77
Semântica

indicam que há uma restrição em operação, que nos faz buscar


um re ferente já mencionado. Para o caso de (15), sabemos
que a mãe não está falando de uma escola qualquer, mas sim
da escola em que ela colocou seu flho, que todos diziam ser
boa e da qual o flho em questão quis se mudar dois meses
depois de entrar.

É por desempenhar esse papel que as DDs são tão


importantes nas amarras do texto, indicando que estamos
falando de um mesmo refe rente, apenas acrescentando mais
informações sobre ele.

Outra função textual interessante das DDs, que se combina


com a função anafórica, é aquela desempenhada pelo
predicado que segue o artigo. Ora, um mesmo objeto pode ser
referido por meio de diferentes descrições; tomemos, por
exemplo, o referente ‘John Lennon’. Podemos nos referir a ele
como:

a) o principal vocalista dos Beatles;

b) o marido de Yoko Ono;

c) o compositor de Imagine;

d) o pai de Sean Lennon; etc.

Apesar de essas quatro DDs referirem-se inequivocamente


a John Lennon, elas obviamente desempenham papéis
informacionais diferen tes. Imagine, por exemplo, que alguém
queira saber sobre a banda Te Beatles e pergunta
sobre a relação entre John Lennon e essa banda. Se alguém
responder com algo como ‘Ora, John Lennon é o pai de Sean
Lennon’, provavelmente não ajudará em nada quem fez a
pergunta. É fácil imaginar outras situações em que DDs que se
referem ao mesmo indivíduo não podem ser usadas
intercambiavelmente.

Pense em alguém apaixonado pela música Imagine,


mas que des conhece seu compositor. De repente essa música
toca no rádio, e uma outra pessoa diz para a primeira: ‘O
marido de Yoko Ono é um gênio’ – esse proferimento não vai
fazer muito sentido para a pessoa apaixonada pela música (e
que desconhece quem é seu compositor).

Essa propriedade das DDs – ter conteúdos informacionais


distin tos – pode e é muito explorada na área da política. Uma
coisa é dizer

78
As descrições definidas CAPÍTULO 05
de Lula que ele é ‘o presidente que atingiu 80% de aprovação
popular’, e outra coisa é dizer de Lula que ele é ‘o presidente
que é um ex-sindica lista, sem curso superior’. Apesar de
ambas as descrições se referirem à mesma pessoa (Lula), a
segunda carrega certa dose de preconceito e será
preferencialmente usada pelos inimigos de Lula.

5.6 Considerações fnais


Como procuramos mostrar neste Tópico, a descrição
defnida (DD) é o tema de um intenso debate em semântica.
Esse debate, ao tentar es clarecer a natureza semântica da
descrição defnida, aprofunda nosso entendimento de conceitos
como pressuposição, condição de verdade, conjunção, e
outros.

Porém, o interesse nas descrições defnidas não se encerra


no es tabelecimento de sua natureza semântica: essa
construção desempenha um importante papel textual, seja na
manutenção do fuxo de informa ção (a descrição defnida
responde por referentes já introduzidos no discurso), seja na
qualifcação dos referentes.
79

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