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O Preço Do Dinheiro - Ken Follett

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O PREÇO DO DINHEIRO

KEN FOLLETT
O PREÇO DO DINHEIRO
Tradução de
MARiA LuíSA SANTOS

CíRCULO DE LEITORES

Título original.-
PAPER MONEY

Capa:
ALIX
CARLOS ALVES

Copyright 1977 by Zachary Stone


Apresentação c 1987 by Holland Copyright Corporation
Impresso e encadernado por Printer Portuguesa
para Círculo de Leitores
no mês de Dezembro de 1990
Número de edição: 2805
Depósito legal número 37 158/90
ISI3N 972-42-0179-1
SEIS DA MANHÃ

Fora a noite mais saborosa da vida de Tim


Fitzpeterson.

Este o pensamento que lhe ocorreu ao abrir os

olhos e ver a rapariga que, na cama, a seu lado, ainda

dormia. Não se mexeu, com receio de a acordar; mas

mirou-a, quase furtivamente, … luz fria da madrugada

londrina. A jovem dormia de barriga para o ar, com o

abandono incondicionado das crianças de tenra idade.

Fez lembrar a Tim a sua pequena Adrienne quando

era pequena. Afastou a lembrança incomodativa.

A rapariga que tinha a seu lado possuía cabelo rui-

vo, que lhe envolvia a cabeça pequena como uma tou-

ca, deixando-lhe as orelhas minúsculas … mostra. Os

seus traços eram, todos eles, miudinhos: nariz, quei-

xo, maçãs do rosto, os dentes extremamente delica-

dos. A certa altura, durante a noite, ele cobríra-lhe o


rosto com as mãos largas e desajeitadas, premindo-lhe
os
dedos suavemente nas concavidades dos olhos e

das faces, abrindo-lhe os lábios macios com os polega-

res, como se a sua pele pudesse sentir a beleza dela

como o calor de uma fogueira.

Um dos braços da jovem jazia, inerte, fora da col-

cha que, afastada para baixo, revelava ombros estrei-

tos e delicados e um seio pequeno, de mamilo disten-

dido pelo repouso.

Estavam deitados ao lado um do outro, sem chega-


rem a tocar-se, apesar de ele sentir o calor da coxa da
ovem perto da sua. Desviou o olhar, fixando-o no
i
tecto, e, por um momento, deixou que o prazer exta-
siante da cópula recordada o envolvesse com um fr‚-
mito; depois levantou-se.
De p‚, em frente da cama, voltou a fitá-la. A jovem
dormia imperturbavelmente. A luz alva da manhã não
a tornava menos bela, apesar do cabelo desalinhado e
dos restos inest‚ticos da que fora uma maquilhagem
esmerada. Sabia que o nascer do dia era menos gene-
roso para ele, Tim Fitzpeterson. Fora por essa razão
que se esforçara por não a acordar: queria arranjar-se
antes de ela o ver.
Atravessou, nu, o chão alcatifado, em tom de ver-
de, da sala de estar sombria, em direcção … casa de
banho. No espaço de alguns minutos, viu o que o ro-
deava como que pela primeira vez, achando tudo de-
sesperadamente monótono. A condizer com a alcatifa
via-se um sofá de um verde ainda mais sombrio, com
almofadas de flores esbatidas. Havia uma secretária
de madeira vulgar, do gênero das que se vêem em mi-
lhões de escritórios; um velho aparelho de televisão a
preto e branco; um armário de arquivo; e uma estante
com livros versando temas jurídicos e económicas, assim
como vários volumes de Hansard. Já lá iam os tempos
em que considerara fantástico ter um apartamento em
Londres.
A casa de banho dispunha de um espelho de corpo
inteiro - comprado não por Tim mas por sua mulher,
nos dias que antecederam a retirada desta da vida ci-
tadina. Mirou-se nele, enquanto esperava que a ba-
nheira se enchesse, perguntando a si mesmo o que ha-
veria naquele corpo de meia-idade capaz de provocar
numa linda rapariga - que idade teria, vinte e cinco?
- um frenesim de luxúria. Ele era saudável mas não
estava em forma; não no sentido em que essa palavra
lo
era comummente aplicada, descrevendo homens que
praticam exercício e frequentam ginásios. Era bai-
xo, e a sua estrutura física larga fora encorpada por
um POUCO de gordura sup‚rflua, sobretudo no peito,
na cintura e nas nádegas. Fisicamente, estava bem
para um homem de quarenta e um anos, mas não era
nada que excitasse nem mesmo a mais sensual das
mulheres.
o espelho ficou obscurecido pelo vapor de água, e
Tim meteu-se na banheira. Apoiou a cabeça e cerrou
as pálpebras. Lembrou-se de que não chegara a dor-
mir duas horas, no entanto, sentia-se perfeitamente
repousado. De acordo com a educação recebida, as
noitadas, os bailes, o adult‚rio e as bebidas fortes re-
sultavam em dor, mal-estar, senão mesmo em doença.
Todos esses pecados juntos desencadeariam, sem pena
nem agravo, a ira de Deus.
Não: a paga por tais pecados era o mais puro delei-
te. Começou e ensaboar-se languidamente. Tudo prin-
cipiara num desses jantares pavorosos: cocktail de to-
ranja, bife demasiado passado e bombe' sem surprise'
para trezentos membros de uma organização sem
pr‚stimo. O discurso de Tim fora mais outra exposi-
ção sobre a estrat‚gia do Governo, emocionalmente
empolgado de maneira a apelar …s simpatias específi-
cas do público. Depois, concordara em ir a um lado
qualquer tomar uns copos com um dos colegas - um
jovem economista brilhante - e duas pessoas pouco
interessantes do público.
O local do crime acabou por ser um clube nocturno
que, em circunstâncias normais, estaria al‚m das pos-
ses de Tini; mas algu‚m pagou a entrada. Uma vez no
interior, começou a divertir-se, ao ponto de comprar
uma garrafa de champanhe com o seu cartão de cr‚di-

E. francês no original: Patuscada. (N. da T)


E- francês no original: surpresa. (N. da T.)

to. O grupo fora engrossado por mais pessoas: um exe-


cutivo de uma empresa cinematográfica de que Tim
ouvira falar vagamente; um dramaturgo que lhe era
perfeitamente desconhecido; um economista de es-
querda que dava apertos de mão com um sorriso de
esguelha e evitava conversa fiada; e as raparigas.
O champanhe e o espectáculo excitaram-no ligeira-
mente. Nos velhos tempos, chegado …quele ponto, te-
ria levado Júlia para casa e feito amor com ela … bruta
ela gostava, só de vez em quando. Mas, agora, a
mulher já não vinha … cidade, e ele deixara de ir a clu-
bes nocturnos; não por hábito.
As raparigas não lhe tinham sido apresentadas. Tim
começou a conversar com a que lhe ficara mais próxi-
ma, a ruiva de peito raso e vestido comprido de cor
clara indefinida. Fazia lembrar uma modelo, mas dis-
sera que era actriz. Ele contara achá-la entediante,
sentimento que seria reciproco. Foi aí que teve o pri-
meiro indício de que aquela noite seria especial: ela
parecia considerá-lo fascinante.
A conversa a dois isolou-os gradualmente do resto
do grupo, at‚ algu‚m sugerir outro clube. Tim disse
imediatamente que ia para casa. A ruiva pegou-lhe no
braço e pediu-lhe que não fosse; e Tim, que estava a
ser galante para com uma mulher bonita pela primeira
vez em vinte anos, concordou imediatamente em acom-
panhá-los.
Ao sair do banho, tentou lembrar-se do que tinham
conversado durante todo aquele tempo. O trabalho de
um ministro júnior no Departamento de Energia difi-
cilmente propiciava uma conversa adequada a uma
festa mundana: quando não era t‚cnico, revelava-se
altamente confidencial. Talvez tivessem discutido polí-
tica. Teria ele contado anedotas tortuosas sobre políti-
cos da velha guarda, naquele tom inexpressivo que era
a única maneira que conhecia de ser engraçado? Não
conseguia lembrar-se. A única coisa que tinha presen-
12
te era a maneira como ela se sentava, com todas as
partes do seu corpo extremosamente inclinadas para
ele: cabeça, ombros, joelhos, p‚s; uma postura física
que era simultaneamente íntima e provocante.
Limpou o vapor que se condensara sobre o espelho
diante do qual se barbeava e esfregou o queixo pensa-
tivarnente, examinando-se. Possuía cabelo muito escu-
ro, e a barba, se a deixasse crescer, seria espessa.
O resto do rosto era, no mínimo, vulgar. Começava a
notar-se uma pequena papada, o nariz apresentava
duas marcas gêmeas pronunciadas, ladeando a cana, o
sítio onde óculos se tinham apoiado durante trinta
anos, a boca não era pequena mas um tanto severa, as
orelhas demasiado grandes, a testa alta, de intelec-
tual. Não espalhava um carácter definido. Era um ros-
to treinado para esconder pensamentos, não para exi-
bir emoções. Ligou a máquina de barbear e, com um
esgar, fez sobressair a face esquerda. Nem sequer era
feio. Ouvira falar de raparigas apreciadoras de ho-
mens feios - não estava em posição de verificar tais
generalizações acerca de mulheres -, mas Tim Fitz-
peterson nem sequer se encaixava dentro dessa cate-
goria dubiamente afortunada.
Talvez fosse chegada a altura de repensar as catego-
rias em que se encaixava. O segundo clube visitado
era o tipo de lugar em que nunca teria entrado volun-
tariamente. Não era grande apreciador de música,
mas, se o fosse, a sua escolha não incluiria a toada
clamorosa e insistente que abafava qualquer conversa
no Buraco Negro. Ainda assim, dançara ao som dela
- a dança espasmódica e exibicionista que parecia ser
de rigueur' no local.
Divertiu-se e achou que não se saiu nada mal; não
notou olhares divertidos da parte dos outros fregue-

'Em francês no original: obrigatório. (N. da T)


13

ses, como receara que acontecesse. Talvez o facto se


devesse a muitos deles terem a sua idade.
O disc jockey, um jovem de barbas e T-shirt impres-
sa com as palavras Escola de Gestão de Harvard, p“s
a tocar, caprichosamen te, uma balada lenta, cantada
por um americano atacado de gripe. Na altura, encon-
travam-se os dois na pequena pista de dança. A rapa-
riga aproximou-se dele e rodeou-o com os braços. Foi
então que ele percebeu que as intenções dela eram in-
confundivelmente objectivas; e ele tinha de decidir se
as suas o eram tamb‚m. Ao sentir o pequeno corpo
quente dela estreitamente cingido ao seu como uma
toalha molhada, não demorou tempo algum a resol-
ver-se. Inclinou a cabeça - ela era ligeiramente mais
baixa do que ele - e murmurou-lhe ao ouvido: ®Ve-
nha tomar uma bebida ao meu apartamentos
No táxi, beijou-a - algo que não fazia há muitos
anos! O beijo foi de tal maneira lascivo, dando a im-
pressão de se enquadrar num sonho, que ele acari-
ciou-lhe os seios, maravilhosamente pequenos e rijos
sob o vestido largo; e depois disso tiveram dificuldade
em se refrear at‚ chegarem a casa.
A bebida simbólica ficou esquecida. ®Creio que nos
metemos na cama em menos de um minuto¯, pensou
Tira com presunção. Acabou de se barbear e olhou
em volta … procura de uma água-de-col“nia. No armá-
rio da parede havia um frasco antigo.
Voltou para o quarto. A jovem continuva a dormir.
Vestiu o roupão, pegou nos cigarros e sentou-se numa
cadeira de costas direitas, junto da janela. ®Fui uma
maravilha na cama¯, pensou. Sabia que estava a enga-
nar-se a si próprio; ela ‚ que fora a activista, a cria-
tiva. Por iniciativa dela, tinham feito coisas que Tim
nem se atrevia a sugerir a Júlia depois de quinze anos
a partilharem o mesmo leito.
Sim, Júlia. Espraiou um olhar, sem nada ver, pela
janela do primeiro andar, de onde se avistava a rua
14
estreita que ia dar … escola vitoriana de tijoleira ver-
nielha, com o seu reduzido pátio de recreio pintado
com as linhas amarelas desvanecidas de um campo de
basquetebol. Continuava a nutrir os mesmos sentimen-
tos por Júlia: se a amara antes, amava-a tamb‚m naque-
le momento. Aquela rapariga era um outro assunto.
Mas não era isso, precisamente, o que os imbecis di-
ziam sempre para com os seus botões antes de se dei-
xarem levar numa aventura?
®Não sejamos precipitados¯, disse a si mesmo. ®Pa-
ra ela pode não passar de um encontro de uma noite. ¯
Não lhe cabia a ele partir do princípio de que ela de-
sejaria voltar a vê-lo. No entanto, queria saber quais
eram os seus objectivos antes de perguntar … jovem
que opções havia: o seu trabalho no Governo ensina-
ra-o a organizar-se antes das reuniões.
Tinha uma fórmula para abordar questões compli-
cadas. Primeiro, que tenho a perder?
Júlia, mais uma vez: roliça, inteligente, aprazível;
os seus horizontes a diminuírem, inexoravelmente, a
cada ano de maternidade. Houvera tempos em que vi-
vera para ela: comprava as roupas de que ela gostava,
lia romances porque ela se interessava por esse tipo
de literatura, e sentia-se satisfeito com o seu sucesso
político porque ela tamb‚m o estava. Por‚m, o centro
de gravidade da sua vida desviara-se. Agora, Júlia só se
dispersava em trivialidades. Queria viver no Hampshire,
e como ele não se importava com o facto, era aí que
habitavam. Júlia queria que ele usasse casacos aos
quadrados, mas a praxe de Westminster exigia fatos
discretos, pelo que ele ficava-se pelos cinzentos-es-
curos, de padrões suaves, e pelos azuis-marinhos.
Ao analisar o que sentia, descobrira que pouco o li-
gava a Júlia. Um pouco de sentimento, talvez; uma
fotografia nostálgica dela, de rabo-de-cavalo e saia
travada, a dançar swing. Seria isso amor? Tinha as
suas dúvidas.
15

As filhas? Aí, a questão era outra. Katie, Penny e


Adrienne: somente Katie tinha idade suficiente para
entender o amor e o casamento. Não o viam muito,
por‚m, ele achava que terem o pai de vez em quando
era bastante melhor do que não o terem nunca. Nesse
ponto não havia discussão possível: a sua opinião esta-
va formada.
E depois havia a sua carreira. Um divórcio poderia
não prejudicar um ministro júnior, mas um homem de
posição superior correria s‚rio risco de se ver arruina-
do. Nunca houvera nenhum primeiro-ministro divor-
ciado. Tim Fitzpeterson queria esse posto.
Daí que houvesse muito a perder - de facto, tudo
quanto considerava da maior importância. Desviou o
olhar da janela e fixou-o na cama. A jovem rolara pa-
ra o lado, ficando de costas para ele. Fazia bem em
usar o cabelo curto - acentuava-lhe o pescoço esguio
e os ombros bonitos. As costas afunilavam-se acentua-
damente at‚ … cintura fina, depois desapareciam de-
baixo de um lençol amarrotado. Tinha a pele ligeira-
mente bronzeada.
Havia tanto a desfrutar. ®Prazer¯ era uma palavra
de que Tim pouco uso fazia, porem, naquele momen-
to ela penetrou-lhe nos pensamentos. Se alguma vez
sentira prazer, não conseguia lembrar-se de quando.
Satisfação, sim: na elaboração de um relatório perfei-
to, completo; na vitória alcançado numa dessas pe-
quenas batalhas incontáveis que se travavam em co-
missoes e na Casa dos Comuns; num livro empolgante
ou num vinho excelente. Mas o prazer arrebatadora-
mente químico que sentira com aquela jovem era algo
de novo.
Aí estava; esses eram os prós e os contras. A fór-
mula dizia, agora soma tudo e vê o que ‚ melhor. Mas
daquela vez a fórmula não funcionaria. Tim conhecia
pessoas que afirmavam nunca o terem feito. Quem sa-
be tinham razão. Talvez fosse um erro pensar que as
16
razões podiam ser contadas como notas de libra.
Veio-lhe … ideia, curiosamente, uma frase ouvida nu-
ma aula de Filosofia na faculdade, ®o enfeitiçamento
da nossa inteligência atrav‚s da linguagem¯. O que ‚
mais comprido - um avião ou uma peça de teatro de
acto único? O que prefiro - satisfação ou prazer? As
ideias começavam a tornar-se confusas na sua cabeça.
Emitiu um som de impaciência, depois olhou rapida-
mente para a cama, não fosse tê-la acordado. A jo-
vem continuava a dormir. óptimo.
Na rua, um Rolls Royce cinzento parou … esquina, a
cerca de cem metros de distância. Ningu‚m se apeou.
Tim olhou com mais atenção e viu o condutor abrir
um jornal. Seria algum motorista que vinha buscar al-
gu‚m …s seis e meia da manhã? Algum homem de ne-
gócios que viajara durante a noite e chegara demasia-
do cedo? Tim não conseguia ler a matrícula. Podia
ver, no entanto, que se tratava de um homem corpu-
lento; suficientemente corpulento para fazer com que
o interior do carro parecesse tão atravancado como o
de um Mini. Voltou a reflectir sobre o seu dilema.
®O que fazemos na política¯, pensou, ®quando de-
frontamos dois problemas imperiosos mas antagóni-
cos?¯ A resposta veio imediatamente: ®Escolhernos
uma forma de acção que, real ou aparentemente, sa-
tisfaça ambas as necessidades.¯ O paralelo era óbvio.
Continuaria casado com Júlia e teria uma aventura
com aquela jovem. Parecia uma solução muito políti-
ca, e agradava-lhe.
Acendeu novo cigarro e pensou no futuro. Era um
passatempo agradável. Desfrutaria de muitas mais
noites ali no apartamento; o fim-de-sernana ocasional
num pequeno hotel de província. Talvez mesmo uma
quizena ao sol, em alguma praiazinha discreta no Nor-
te de Africa ou nas índias Ocidentais. De biquini, ela
devia ser Um espanto.
Diante de tais expectativas, todas as outras empali-
17

deciam. Sentiu-se tentado pela ideia de considerar que,


at‚ ali, a sua vida fora desperdiçado; mas sabia que pen-
sar assim seria uma extravagância. Portanto, não fora
desperdiçado; mas era como se tivesse passado a sua
juventude a destrinçar operações de divisão que nunca
mais acabavam e nunca descobrira o cálculo diferen-
cial. Decidiu discutir o problema e a respectiva solu-
ção com a jovem. Esta diria que não era possível e ele
responderia que fazer ajustamentos era o seu talento
especial.
Como deveria começar? ®Querida, quero repetir
o que se passou, muitas vezes.¯ Não parecia mal. Que
diria ela? ®Eu tamb‚m!¯ ou ®Telefona-me para este
número¯ ou ®Desculpa, Timmy, mas não costumo re-
petir os meus encontros nocturnos¯.
Não, não, isso não; não era possível. A noite passa-
da tamb‚m fora agradável para ela. Assim o afirmara.
Levantou-se e apagou o cigarro. ®Vou at‚ junto da
cama¯, pensou; ®depois, afasto-lhe os cobertores sua-
vemente, aprecio-lhe a nudez por uns instantes; a se-
guir ajoelho-me ao lado dela e beijo-lhe o ventre, as
coxas e os seios, at‚ a acordar; depois voltamos a fa-
zer amor.¯
Desviou o olhar da jovem e fixou-o na janela, sabo-
reando a expectativa. O RolIs continuava no mesmo
sítio, fazendo lembrar uma lesma cinzenta na sarjeta.
Por alguma razão, incomodava-o. Mas afastou a ideia
e foi acordar a jovem.

2
F‚lix Laski não dispunha de muito dinheiro, apesar
do facto de ser bastante rico. A sua fortuna cifrava-se
em acções, terras, pr‚dios e, ocasionalmente, em bens
18
nos claro, como metade de um guião
de carácter me
terço de um invento para fazer bata-
de cinema ou um
s fritas instantâneas. Os jornais gostavam de dizer
ta
que, se todas as suas riqu ezas fossem reduzidas a di-
nheiro, ele ficaria com muitos milhões de libras; e
vã igualmente salientar que transformar
Laski aprecia
as suas riquezas em dinheiro seria quase impossível.
Foi a p‚ desde a estação de Waterloo at‚ … City,
porqI@e acreditava que a preguiça provoca ataques de
coração aos homens da sua idade. Esta preocupação
com a saúde era uma tolice, pois tratava-se do cin-
quentão com melhores condições físicas que se podia
encontrar na Square Mile. Com cerca de um metro e
oitenta e dois de altura e um tórax que fazia lembrar a
popa de um couraçado de batalha, era tão vulnerável
a um ataque cardíaco como um boi jovem.
Ao caminhar pela ponte Blackfriars ao sol t‚nue
daquele início de manhã, chamava a atenção. Usava
roupas claras, desde a camisa de seda azul aos sapatos
manufacturados; segundo os padrões da City, era um
dandy.
Tal devia-se ao facto de todos os homens da aldeia
em que Laski nascera usarem sempre calças de algo-
dão e bon‚s de pano; agora, as roupas de qualidade
serviam para que tivesse sempre presente o que deixa-
ra para trás.
As roupas faziam parte da sua imagem, que era a
de um bucaneiro. Os seus negocios acarretavam, qua-
se sempre, risco ou oportunismo, ou ambas as coisas;
mas ele tomava providências para que, no exterior,
parecessem mais honestos do que eram. Uma fama e
mago dos negócios valia mais do que um banco co-
mercial.
Fora a imagem que seduzira Peters. Laski pensou
neste enquanto passava agilmente em frente da Cate-
dral de São Paulo, rumo ao ponto de encontro. Ho-
menzinho de vistas curtas, a sua especialidade era a
19

movimentação de dinheiro: não de cr‚dito, mas fun-


dos físicos, papel-moeda. Trabalhava para o Bank of
England, a maior de todas as fontes de moeda corren-
te. A sua tarefa era orientar a produção e a destruição
de notas e moedas. Não fazia política - essa era re-
servada para um nível mais elevado, talvez o minist‚-
rio, mas sabia de quantas notas de cinco libras o
Barcklays Bank iria precisar antes de lho dizerem,
Laski conhecerão num beberete de inauguração de
um pr‚dio de escritórios construido por uma loja de
descontos. Laski frequentava esses convívios com o
único objectivo de conhecer pessoas como Peters, que
um dia poderiam servir-lhe para algum esquema. Cin-
co anos mais tarde, Peters tornara-se-lhe útil. Laski
telefonou-lhe para o banco e pediu-lhe que lhe indi-
casse um numismata que o aconselhasse sobre uma
venda, fictícia, de moedas antigas. Peters anunciou
que ele próprio era coleccionador, modesto, na verda-
de, mas que não se importaria de, pessoalmente, dar
uma olhada, caso Laski quisesse. Esplêndido, retor-
quira Laski, que fora a correr arranjar as moedas. Pe-
ters aconselharão a comprar. De repente, tornaram-
-se amigos.
(A compra originou o início de uma colecção que
valia o dobro do que Laski pagara por ela. O facto fo-
ra alheio ao seu propósito, mas orgulhava-se imensa-
mente do modo como actuara.)
Como veio a descobrir, Peters era um madrugador,
em parte, porque gostava, em parte, porque era de
manhã que o dinheiro era movimentado, portanto, a
parte principal do seu trabalho tinha de ser feita at‚
…s nove horas. Laski descobrira que Peters tinha o
costume de, todos os dias, pelas seis e meia, tornar
a sua bica em determinado caf‚, pelo que começou a
aparecer para lhe fazer companhia, inicialmente, de
vez em quando, depois, com regularidade. Laski pre-
tendia passar, ele próprio, por um madrugador, e fin-
20
gia alinhar com Peters no gosto pelas ruas tranquilas e
o ar fresco da manhã. Na realidade, preferia levantar-
-se tarde, irias estava disposto a todos os sacrifícios
necessários caso houvesse alguma possiblidade de o
esquema que engendrara resultar.
ofegante, entrou no caf‚. Na sua idade, at‚ mesmo
uni homem bem preparado fisicamente tinha o direito
de ficar um pouco alterado depois de um passeio pro-
longado. O estabelecimento cheirava a caf‚ e a pão
fresco. Nas paredes viam-se tomates de plástico e
aguarelas da terra do proprietário, que era em Itália.
Atrás do balcão, uma mulher de bata e um jovem de
cabelos compridos preparavam montanhas de sanduí-
ches para as centenas de pessoas que, … hora do almo-
ço, petiscariam qualquer coisa sentadas …s suas secre-
tárias. Havia um rádio ligado algures, por‚m, o som
não estava alto. Peters já estava instalado no lugar do
costume, ao p‚ da janela.
Laski comprou uma bica e uma sandes leberwurst e
sentou-se em frente de Peters, que comia donuts -
parecia ser uma daquelas pessoas que nunca engor-
am. Laski observou:
Vai estar um dia esplêndido.
Tinha uma voz profunda e ressonante, como a de
um actor, onde se notava apenas um sotaque europeu-
-leste indeterminado e muito ligeiro.
Peters respondeu:
- Maravilhoso. E …s quatro e meia estarei no meu
jardim.
Laski beberricou o caf‚ e fitou o outro homem. Pe-
ters usava o cabelo muito curto e um bigode pouco es-
pesso, e o rost o exibia um ar atormentado. Ainda não
começara a trabalhar e já se sentia ansioso por voltar
para casa; Laski achou o facto trágico. Experimentou
unia comiseração breve por Peters e todos os outros
homenzinhos para quem o trabalho era um meio e
não um fim.
21
Eu gosto do meu trabalho - disse Peters, como
que lendo os pensamentos de Laski.
Este disfarçou a sua surpresa.
-Mas gosta ainda mais do seu jardim.
-Com este tempo, sem dúvida. Tem algum j ar-
dim... F‚lix?
- A minha empregada dom‚stica ‚ que trata dos
vasos das janelas. Não sou homem de passatempos.
Laski reflectiu sobre a utilização hesitante que Pe-
1.
ters fizera do seu nome proprio. O sujeito era um tu-
do-nada tímido, concluiu. õptimo.
- Imagino que não tenha tempo. Deve trabalhar
duramente.
- � o que as pessoas me dizem. Acontece apenas
que prefiro gastar as horas que vão das seis da tarde
at‚ … meia-noite a fazer cinquenta mil dólares em vez
de ver actores a matarem-se uns aos outros na televi-
são.
Peters riu.
- O c‚rebro mais imaginativo da City não tem, afi-
nal de contas, imaginação.
- Não entendi o que disse.
-Tamb‚m não lê romances nem vai ao cinema,
pois não?
- Não.
- Vê? Tem uma falha, não liga … ficção. Acontece
com a maioria dos empresários mais empreendedores.
A incapacidade parece aliar-se a uma perspicácia mais
aguçada, … semelhança da hipersensibilidade auditiva
de um cego.
Laski franziu o sobrolho. Sentir-se objecto de análi-
se colocava-o em desvantagem.
Talvez - admitiu.
Peters pareceu reparar no seu incómodo.
Sinto-me fascinado pelas carreiras de grandes
empresários - explicou.
Eu tamb‚m - declarou Laski. - Sou todo a fa-
22
vor de que se bisbilhotem as ondas mentais dos ou-
tros.
- Qual foi o seu primeiro sucesso, F‚lix?
Laski descontraiu-se. Já era território mais familiar.
- Suponho que tenha sido com as Woolwich Che-
núcaIs - retorquiu. - Era um pequeno laboratório
farmacêutico. Depois da guerra, montaram uma pe-
quena cadeia de farmácias na High Street, com o ob-
jectivo de garantirem um mercado certo. O problema
‚ que sabiam tudo sobre produtos químicos, mas nada
sobre vendas a retalho, e as lojas absorveram a maior
parte dos lucros dados pelo laboratório. Na altura eu
trabalhava para um corretor de acções e ganhei algum
dinheiro a jogar no mercado. Fui ter com o meu pa-
trão e propus-lhe metade do lucro caso estivesse dis-
posto a financiar o negócio. Comprámos a empresa e
vendemos imediatamente o laboratório ao ICI quase
pelo preço que tínhamos pago pelas acções (estavam
todas em posição excelente)-
- Nunca entenderei esse tipo de negócio - obser-
vou Peters. - Se o laboratório e as farmácias valiam
assim tanto, porque estavam as acções baratas?
- Porque a empresa andava a perder dinheiro. Há
anos que não pagavam dividendos. A gerência não te-
ve coragem para aceitar a morte, por assim dizer. Nós
tivemos. Nos negócios, coragem ‚ algo que não pode
faltar.
Começou a comer a sua sanduíche.
- � fascinante - comentou Peters. Consultou o
seu relógio de pulso. - Tenho de ir.
- Dia grande? - inquiriu Laski despreocupada-
mente.
- Hoje ‚ um dos dias, o que significa sempre dores
de cabeça.
- Chegou a resolver aquele problema?
- Qual?
ù dos caminhos. - Laski baixou ligeiramente a
23

voz. - O seu pessoal de segurança queria que envias-


se a escolta cada dia por um caminho diferente.
Não.
Peters sentia-se embaraçado por ter falado a Laski
no dilema.
Realmente só há uma maneira ideal de lá chegar
acrescentou. - Contudo...
Levantou-se.
Laski sorriu e manteve o tom de indiferença na voz.
- Quer então dizer que a grande remessa segue
hoje pelo mesmo caminho directo de sempre.
Peters levou um dedo aos lábios.
- Segurança.
- Claro.
Peters, pegou na sua gabardina.
- At‚ … vista.
- At‚ amanhã - retorquiu Laski, sorrindo esfu-
siantemente.

Arthur Cole subiu os degraus da estação, sentindo a


respiração a agitar-lhe o peito ruidosa e doentiamen-
te. Das profundezas do metropolitano subiu uma raja-
da de ar quente, que o envolveu agradavelmente antes
de se dispersar. Estremeceu ao de leve, e desembocou
na rua.
O sol apanhou-o de surpresa - a aurora mal acaba-
ra de raiar quando se metera numa das carruagens.
O ar estava fresco e agradável, mas não tardaria a fi-
car suficientemente poluído para deitar abaixo um po-
lícia em serviço de giro. Cole lembrava-se da primeira
vez em que tal acontecera: a história servira para uni
exclusivo no Evening Post.
24
Caminhou devagar, at‚ a sua respiração normalizar.
Vinte e cinco anos a trabalhar em jornais haviam-lhe
dado cabo da saúde, pensou. Na verdade, qualquer
indústria teria tido nele o mesmo efeito, pois padecia
de unia tendência para a melancolia e para a bebida,
e ainda de problemas respiratórios; mas atirar as cul-
pas para cima da sua profissão reconfortava-o.
De qualquer maneira, deixara de fumar. Era um
não fumador há - consultou o relógio - cento e vin-
te e oito minutos, sem contar com a noite, caso con-
trário ter-se-iam passa o oito oras. Já u trapassara
alguns momentos de risco: logo a seguir ao toque do
despertador, …s quatro e meia (normalmente fumava
logo um no WC); ao afastar-se de carro de sua casa,
depois de colocar o automóvel em marcha directa e li-
gar o rádio, preparando-se para ouvir o noticiário das
cinco da manhã; ao acelerar o seu enorme Ford pela
primeira faixa rápida da A12; e ao aguardar, numa es-
tação do metropolitano, fria e ao ar livre, na zona les-
te de Londres, pela primeira composição do dia.
O noticiário das cinco da manhã da 1313C não o ani-
mara, mas prestara-lhe toda a sua atenção durante a
condução, pois a estrada era-lhe de tal maneira fami-
liar que fazia as curvas e metia as mudanças automati-
camente, de memória. A notícia principal vinha de
Westminster: o último projecto de lei sobre relações
industriais acabara de ser aprovado pelo Parlamento,
por‚m, fora mesmo … tangente. Cole ouvira a notícia
na televisão, na noite anterior. Tal significava que os
jornais da manhã a dariam certamente, o que, por sua
vez, queria dizer que o Post nada podia fazer com ela,
salvo se se registasse alguma evolução mais ao fim do
dia.
Havia uma história acerca da Tabela de Preços de
Retalho. A fonte seriam as estatísticas oficiais do Go-
verno, as quais ficariam embargadas at‚ … meia-noite;
mais uma vez, os matutinos açambarcá-la-iam.
25

Não foi surpresa saber que a greve dos trabalhado-


re s dos transportes ia prolongar-se - dificilmente se
poderia ter chegado a um consenso durante a noite.
O campeonato de críquete na Austrália resolvera o
problema dos editores no que dizia respeito … secção
desportiva, no entanto, a pontuação não fora suficien-
temente sensacional para a primeira página. Cole co-
meçou a preocupar-se.
Entrou no edifício do Evening Post e meteu-se no
elevador. A sala da redacção ocupava todo o primeiro
andar. Era um vasto salão aberto em forma de 1. Cole
entrou na base do 1. A esquerda, ficavam as máquinas
de escrever e os telefones dos registadores de mensa-
dactilografando notícias transmitidas
gens, que iriam
pelo telefone; … direita, os armários de arquivos e es-
tantes com livros especializados - política, com‚rcio
e finanças, criminologia, defesa, e outros. Cole cami-
nhou pela haste do 1 acima, por entre filas de secretá-
rias pertencentes a repórteres vulgares, at‚ chegar …
mesa comprida da redacção, que dividia a sala ao
meio. Por trás dela ficava a mesa, em forma de U,
dos subeditores, e depois desta, no travessão do 1, si-
tuava-se a secção desportiva - um reino semi-inde-
pendente, com editor, repórteres e subeditor próprios.
De vez em quando, Cole mostrava o local a parentes
curiosos; dizia-lhes sempre: ®Isto devia funcionar …
maneira de uma linha de produç ão. Normalmente,
mais parece um campo de batalha ... ¯ Era um exage-
ro, mas fazia sempre rir.
A sala encontrava-se fortemente iluminada, mas
vazia. Cole, na sua qualidade de subchefe de redac-
Y ção, dispunha de uma secretária só para si. Abriu
uma gaveta e tirou de dentro desta uma moeda; a se-
guir, dirigiu-se para a máquina de venda automática
da secção de Desporto e carregou nos botões que lhe
forneceriam chá com leite e açúcar. Nesse momento,
uma impressora começou a matraquear, quebrando o
silêncio.
26
(uando Cole voltava para a sua secretária levando
o copo de papel na mão, a porta do fundo abriu-se
com uma pancada para deixar passar uma figura baixa
e de cabelos grisalhos, envergando uma samarra volu-
niosa e com molas de bicicleta nas claças. Cole ace-
nou-lhe e cumprimentou:
-Bom dia, George.
- Olá, Arthur. Ainda tens frio? - disse George …
laia de resposta, começando a despir o agasalho.
O corpo que emergiu era baixo e franzino. Apesar
da idade, a designação profissional de George era es-
tafeta-chefe: chefiava o grupo de estafetas da redac-
ção. Vivia em Potters Bar e vinha de bicicleta para o
trabalho. Arthur considerava o facto uma façanha es-
pantosa.
Arthur pousou o seu copo de chá, despiu a gabar-
dina, ligou o rádio e sentou-se. O aparelho começou
a rumorejar. Bebeu o chá em goles pequenos e fixou
o olhar em frente. A sala da redacção era um pande-
ónio - havia cadeiras espalhadas por todo o lado,
jornais e folhas de papel a atravancar as secretárias e
a redecoração fora adiada no acesso de poupança que
vigorara no ano transacto - porem, a cena era de-
masiado conhecida para ser registada. Cole pensava
na primeira edição, que dali a três horas estaria nas
ruas.
O jornal daquele dia teria dezasseis páginas. Cator-
ze delas já estavam compostas nas placas semicilíndri-
cas de metal da tipografia, que ficava num andar de
baixo. Continham anúncios, histórias aos quadrados,
programas de televisão e notícias escritas de maneira
a que a sua antiguidade não fosse - assim se esperava
- patente aos olhos do leitor. Faltavam, portanto, a
última página, para o editor dos desportos, e a primei-
ra, para Arthur Cole.
Parlamento, uma greve e inflação - eram tudo his-
tórias da v‚spera. Pouco mais poderia fazer com elas.
27

Qualquer uma podia ser encabeçado por uma nova in-


trodução, como por exemplo: ®Ministros do Gabinete
inquiriram hoje o Governo sobre ... ¯ Havia sempre al-
go do gênero para todas as situações. O desastre da
v‚spera tornara-se a notícia do dia com ®A madruga-
da de hoje revelou todo o horror ... ¯. O assassínio do
dia anterior beneficiara com ®Os investigadores corre-
ram hoje Londres de alto a baixo em busca do ho-
mem que ... ¯. O problema com que Arthur se debatia
dera origem a uma infinidade de chavões. Numa so-
ciedade civilizada, reflectiu, quando não houvesse
nada a noticiar, não se publicariam jornais. Era um
pensamento antigo que imediatamente afastou com
impaciência.
Todos aceitavam o facto de a primeira edição ser,
três vezes cada seis dias, um perfeito lixo. Mas tal não
servia de consolo porque representava a razão pela
qual Arthur Cole tinha a tarefa de a produzir. Era
subchefe da redacção ia para cinco anos. O lugar de
chefe de redacção ficara vago duas vezes durante esse
período, mas em ambas fora preenchido por um indi-
víduo mais jovem do que Cole. Algu‚m decidira que
o posto número dois representava o limite das suas ca-
pacidades. Ele discordava.
A única forma de poder demonstrar o seu talento
era fazer uma primeira edição excelente. Infelizmen-
te, por‚m, a qualidade da edição dependia imenso do
factor sorte. A estrat‚gia de Cole era concentrar os
seus esforços na elaboração de um jornal que fosse ni-
tidamente melhor do que a primeira edição da concor-
rência. Pareceu-lhe que estava a ser bem sucedido:
mas o que ignorava era se algu‚m lá de cima reparara
ou não; mas tamb‚m não se permitiria ficar preocupa-
do com a questão.
George aproximou-se por trás dele e deixou-lhe cair
uma pilha de jornais em cima da secretária.
-O jovem Steplien avisou que está outra vez
doente - resmungou.
28
lei
Arthur sorriu.
-Que ‚... uma ressaca ou o nariz a pingar?
- Lenibras-te do que costumava dizer-nos? ®Se po-
des andar, tamb‚m podes trabalharas Com esta gente
não ‚ assim.
Arthur acenou com a cabeça.
- Tenho razão ou não? - perguntou George.
-Tens razão.
Os dois tinham sido estafetas no Post na mesma al-
tura. Arthur recebera o seu cartão de imprensa depois
da guerra. George, que não fora promovido, conti-
nuara a ser estafeta.
George disse:
- Nós ‚ramos activos. Nós queríamos trabalhar.
Arthur pegou no jornal que estava no cimo da pi-
lha. Não era a primeira vez que George se queixava
do seu pessoal e que ele, Arthur, juntava aos dele os
seus lamentos. Mas Arthur sabia qual era o problema
dos estafetas da altura. Trinta anos atrás, um estafeta
esperto tinha possibilidade de se tornar repórter; nos
dias que iam correndo, essa via estava interdita. O no-
vo sistema tinha um impacte duplo: os jovens talento-
sos frequentavam um estabelecimento de ensino em
vez de começarem por ser estafetas; e os que se torna-
vam estafetas sabiam que não tinham perspectivas,
pelo que se esforçavam o menos possível. Mas Arthur
não podia dizer semelhante coisa a George, porque
tal seria chamar a atenção para o facto de Arthur se
ter saído muito melhor do que aquele seu velho ami-
90. Portanto, concordou que a juventude daqueles
tempos não prestava.
George parecia disposto a insistir nas suas lamenta-
ções. Arthur atalhou-lhe a inclinação perguntando:
- Chegou alguma coisa por telex durante a noite?
- Eu vou ver. Acontece apenas que vou ter de ser
eu a examinar os Jor
nais todos...
� melhor eu ver os telexes primeiro - disse Ar-
29

thur, dando o assunto por encerrado. Detestava puxar


dos galões. Nunca aprendera a fazê-lo com naturalida-
de, talvez porque o facto não lhe dava prazer. Olhou
para o Morning Star: tinham posto o decreto-lei sobre
a indústria na primeira página.
Era improvável que já houvesse notícias nacionais
no telex; era demasiado cedo. No entanto, as notícias
do estrangeiro iam chegando esporadicamente duran-
te a noite e, não raras vezes, incluíam alguma história
passível de ser tema de primeira página em caso de
emergência. Na maioria das noites havia, algures no
no mundo, um incêndio de grandes proporções, um
assassínio múltiplo, uma desordem, ou um golpe qual-
quer. O Post era um jornal londrino e não gostava de
sair com notícias do estrangeiro em primeira página, a
não ser que fossem sensacionais; mas talvez fosse me-
lhor do que ®O Gabinete de ministros inquiriu hoje o
Governo ... ¯.
George colocou-lhe em cima da secretária uma fo-
lha de papel com cerca de um metro de comprimen-
to. Não cortar a folha em histórias individuais era a
sua maneira de mostrar desagrado. Provavelmente,
queria que Arthur manifestasse descontentamento,
para assim ele poder queixar-se sobre a quantidade
de trabalho.que o aguardava devido … ausência do
estafeta mais novo por motivo de doença. Arthur
vasculhou na secretária … procura de uma tesoura, e
começou a ler.
Inteirou-se de um acontecimento político em Was-
hington, de um relatório sobre a Test Match e de
rrência do foro policial no M‚dio Oriente.
uma oco
Ia a meio de um divórcio de pouca importância em
Hollywood, quando o telefone tocou. Atendeu e
disse:
- Redacção.
-Tenho um caso para a vossa coluna de mexe-
ricos.
30
Era unia voz masculina, com um acentuado sotaque
1.
cockney
Cole ficou imediatamente c‚ptico. Não era uma voz
de homem que estivesse por dentro das vidas amoro-
sas da aristocracia. Respondeu:
- óptimo. Importa-se de me dizer o seu nome?
- isso não interessa. Sabe quem ‚ Tim Fitzpeter-
son?
Evidentemente.
-Pois bem, ele anda a fazer figuras tristes com
urna ruiva. Ela deve ter uns vinte anos a menos. Quer
que lhe dê o número do telefone dele?
Faça favor.
Cole tomou nota. Agora, sentia-se interessado. Se
o casamento de um ministro fosse pelos ares, o facto
daria um belo artigo, não um simples mexerico.
- Quem ‚ a rapariga?
- Tem-se na conta de actriz. Certo, ‚ uma brasa.
Mas dê-lhe uma telefonadela já e pergunte-lhe pela
Dizi Disney.
A linha ficou muda.
Cole franziu o sobrolho. Havia ali qualquer coisa
que não batia certo: a maioria dos indivíduos que for-
neciam informações queriam dinheiro, especialmente
por notícias daquele tipo. Encolheu os ombros. Valia
a pena investigar. Mais tarde passaria a tarefa a um
repórter.
Depois, mudou de ideia. Era incontável o número de
histórias desperdiçados por serem postas de lado por
alguns minutos. Fitzpeterson poderia sair para o Par-
lamento ou para o seu gabinete em Whitehall. E o in-
formante dissera: ®Dê-lhe uma telefonadela já.¯
Cole leu o número que assentara no seu bloco e dis-
COU.

'Dialecto de um bairro do extremo leste de Londres. (N. da T.)


31

SETE DA MANHA

4
Já alguma vez te viste
a fazer isso ao espelho? -
perguntara-lhe ela; e
quando Tim admitira que não,
ela insistira em que
experimentassem. Encontravam-
-se em frente do espelho de
corpo inteiro da casa de
banho quando o telefone
tocara. O ruído fizera Tim
dar um pulo, e ela
exclamara:
Ai! Tem cuidado.
Ele tentou ignorar a
intrusão do mundo exterior,
por‚m esta fizera
desaparecer o seu desejo. Deixou-a
e foi at‚ ao quarto. O
telefone estava em cima de uma
cadeira, debaixo de um
monte de roupas dela. Encon-
trou-o e levantou o
auscultador.
- Está?
-
Mr. Fitzpeterson?
Era a voz de um homem
de meia-idade, com sota-
que londrino. Parecia
ligeiramente asmático.
-Sim. Quem
fala?
- Evening Post,
senhor. Desculpe telefonar-lhe tão
cedo. Devo perguntar-lhe se
‚ verdade que tenciona
divorciar-se.
Tim sentou-se
pesadamente. Por um momento, sen-
tiu-se incapaz de falar.
- Está aí,
senhor?
- Quem diabo
lhe disse semelhante coisa?
- O informante
mencionou uma mulher chamada
Dizi Disney. Conhece-a?
4

33

Nunca ouvi falar de tal pessoa. Tim recome-


çava a ganhar a sua compostura. - Agradeço que não
me acorde com boatos fúteis.
Desligou.
A jovem entrou no quarto.
- Estás muito pálido - observou. - Quem era?
- Como te chamas? - perguntou Tim secamente.
- Dizi Disney.
- Santo Deus.
Tinha as mãos a tremer. Cerrou os punhos e levan-
tou-se.
-Chegou aos jornais o boato de que me vou di-
vorciar!
- Eles devem passar a vida a ouvir esse tipo de
coisas acerca de gente famosa.
Mencionaram o teu nome. - Desferiu um mur-
ro na palma da outra mão. - Como terão descoberto
com tanta rapidez? Que hei-de fazer?
A jovem virou-lhe as costas e vestiu as calcinhas.
Tim espreitou pela janela. O Rolls Royce cinzento
continuava no mesmo sítio, mas naquele momento en-
contrava-se vazio. Onde teria ido o condutor, interro-
gou-se. A ideia vaga perturbou-o. Tentou analisar a si-
tuação friamente. Algu‚m o vira sair do clube com a
rapariga e telefonara a dar a informação a um repór-
ter. O informador aumentara as proporções do inci-
dente para lhe conferir maior dramatismo. Mas Tim
tinha a certeza de que ningu‚m os vira entrar no apar-
tamento juntos.
Escuta - disse Tim. - Ontem … noite disseste
que não te sentias bem. Eu levei-te para fora do clube
e chamei um táxi, que me deixou ficar em minha casa
e depois te levou para a tua. Certo?
- Como quiseres - respondeu a jovem com indi-
ferença.
A atitude dela enfureceu-o.
Por amor de Deus, esta situação tem a ver con-
tigo!
34
pois eu creio que o meu envolvimento nela che-
gou ao fim.
- Que significa isso?
ouviu-se uma batida na porta.
Tini exclamou:
- Oli, Jesus, não!
A jovem puxou o fecho do vestido para cima.
- Vou-me embora.
- Não sejas tola. - Agarrou-lhe no braço. - Não
compreendes que não podes ser vista aqui? Deixa-te
ficar no quarto. Eu vou ver quem ‚. Se eu tiver de os
convidar a entrar, limita-te a ficar em silêncio at‚ par-
tirem.
Vestiu as cuecas e enfiou, desajeitadamente, o rou-
pão, encaminhando-se depois para a sala de estar. No
vestíbulo diminuto, a porta da frente tinha uma vigia.
Tim desviou a patilha para o lado e espreitou.
O homem que estava do lado de fora parecia-lhe
vagamente conhecido. Tinha um rosto de pugilista.
De ombros largos e compleição robusta, devia ter sido
peso-pesado. Envergava uma gabardina cinzenta de
colarinho de veludo. Tim calculou que a sua idade
rondasse os trinta anos. Não tinha ar de repórter de
jornal.
Tim destrancou a Porta e abriu-a.
- Que deseja? - perguntou.
O homem, sem falar, empurrou Tim para o lado e
entrou, fechando a porta atrás de si. Dirigiu-se para
a sala de estar.
Tim respirou fundo e tentou não entr
F ar em panico.
oi atrás do homem.
- Vou chamar a polícia - declarou.
O homem sentou-se. Chamou:
- Estás. aí, Dizíe?
A rapariga apareceu a porta do quarto.
O homem ordenou:
Prepara-nos uma chávena de chá, moça.
35

Conhece-o? - perguntou Tim com


incredulidade.
A jovem não lhe ligou nenhuma e foi para a
co-
zinha.
O homem riu.
- Se a conheço? Ela trabalha para mim.
Tim sentou-se.
- Que se passa aqui? - inquiriu com voz d‚bil.
- Tudo a seu tempo. - O homem olhou em vol-
ta. - Não lhe posso dizer que tem uma casa
bonita,
rque não ‚ verdade. Contava encontrar algo
mais
espampanante, percebe, não ‚? A propósito, para
o
caso de não me ter reconhecido, chamo-me Tony
Cox.
Estendeu a mão a Tim. Este ignorou o
gesto. Cox
disse:
- Como queira.
Tim começou a recordar-se - o rosto e o
nome eram
conhecidos. Imaginou que Cox fosse algum
abastado
homem de negócios, por‚m, não era capaz de se
lem-
brar de que gênero estes seriam. Pareceu-lhe
ter visto
uma fotografia dele nos jornais - algo que
tinha a ver
com a recolha de fundos para os clubes
masculinos ju-
venis no East End.
Cox fez sinal com a cabeça em direcção …
cozinha.
- Gostou dela?
- Por amor de Deus - indignou-se Tim.
A rapariga entrou, trazendo um tabuleiro
com duas
chávenas. Cox perguntou-lhe:
- Ele gostou?
fi @i! - Que ‚ que achas? - retorquiu ela
secamente.
Cox puxou da carteira e contou algumas notas.
Toma - disse-lhe. - Fizeste um bom
trabalho
Agora. põe-te a andar.
A jovern agarrou no dinheiro e utiardou-o nurna
&
í bolsa de mão. Disse:
Sabes. Tone, aquilo que mais aprecio em ti
são
as boas maneiras.
30
E saiu sem olhar para Tim.
Tim pensou: ®Corneti o maior erro da minha vida.¯
A jovem, ao sair, atirou com a porta.
Cox piscou-lhe o olho.
-� boa rapariga.
- � a forma de vida humana mais vil que há - ri-
postou Tim asperamente.
- Ora, não seja assim. � apenas uma actriz esplên-
dida. Talvez tivesse ido parar ao cinema, se eu não lhe
deitasse a mão primeiro.
- E presumo que você seja um, chulo.
pelos olhos de Cox perpassou um clarão de raiva,
por‚m, controlou-se imediatamente.
- Lamentará essa pequena piada - disse suave-
mente. - Tudo quanto precisa de saber em relação a
Dizi e a mim ‚ que ela faz o que eu mando. Se lhe or-
deno que fique de boca calada, ela obedece. E se lhe
digo: ®Conta ao senhor simpático do News of the
World como Mr. Fitzpeterson te seduziu¯, ela fá-lo.
Entende onde quero chegar?
Tim disse:
- Presumo que tenha sido você quem contactou
com o Evening Post.
- Não se preocupe! Sem uma certeza, eles ficam
de p‚s e mãos atados. E somente três pessoas podem
confirmar a história: o senhor, Dizi e eu. O senhor
nada dirá, Dizi faz o que lhe mandam e eu sei guardar
segredo.
Tim acendeu um cigarro. Começava a recuperar no-
vamente a sua autoconfiança. Cox não passava de um
vagabundo, apesar da sua gola de veludo e do Rolls
Royce cinzento. Tim tinha a impressão de que seria
capaz de controlar o homem. Disse:
- Se a sua intenção ‚ fazer chantagem, pode tirar
o cavalinho da chuva. Não tenho dinheiro.
- Aqui dentro está calor, não acha?
Cox levantou-se e despiu o casaco.
37

Bem - recomeçou -, se o senhor não tem di-


nheiro, teremos de pensar noutra coisa que possa dar-
-nos.
Tim franziu o sobrolho. Voltava a sentir-se confuso.
Cox continuou:
- Nos últimos meses, cerca de meia dúzia de em-
presas fizeram licitações sobre os direitos de perfura-
ção num novo campo petrolífero chamado Shield, não
‚ verdade?
Tim ficou atónito. Com certeza aquele bandido não
estaria ligado a nenhuma daquelas empresas respeitá-
veis... Respondeu:
Sim, ‚ verdade, mas já ‚ demasiado tarde para
eu influenciar o resultado... A decisão já foi tomada.
Será anunciada hoje … tarde.
- Não tire conclusões precipitadas. Sei que ‚ de-
masiado tarde para a alterar. Mas pode dizer-me
quem ganhou a licença.
Tim ficou de boca aberta. Ele quereria só aquilo?
Inquiriu:
- Que utilização poderia o senhor dar a esse tipo
de ínformação9
Nenhuma, de facto. Vou trocá-la por outra. Sa-
be, tenho uns negócios com certo senhor. Ele não sa-
be de que maneira arranjo estas dicas, tal como tam-
b‚m desconhece o que faço com as que ele me dá.
Deste modo não se mete em complicações. Percebe o
que quero dizer? Agora, vejamos: quem ‚ que fica
com a licença?
Era tão fácil, pensou Tim. Duas palavras e o pesa-
delo terminaria. Semelhante quebra de confiança po-
deria arruinar-lhe a carreira; mas, tamb‚m, se não o
fizesse, esta chegaria igualmente ao fim.
Cox observou:
Se não sabe bem o que fazer, lembre-se apenas
dos cabeçalhos: ®O ministro e a actriz¯, ®'Ele não
cumpriu o prometido', declarou a corista lavada em
38
lágrimas.¯ Lembra-se do que aconteceu ao pobre Tony
Lainbton?
- Cale-se - ordenou Tim. � a Hamilton Hol-
dings.
Cox sorriu.
- O meu amigo vai ficar todo contente - disse. -
Onde está o telefone?
Tim apontou com o dedo.
- No quarto - disse em tom sombrio.
Cox foi at‚ ao quarto e Tim fechou os olhos. Que
in ‚nuo fora em pensar que uma jovem como Dizi
podia cair perdidamente apaixonada nos braços de al-
gu‚m como ele? O que ele não passava era do bode
expiatório de algum esquema complicado muito mais
s‚rio do que uma simples chantagem.
A voz de Cox chegou-lhe aos ouvidos.
- Lasky? Sou eu. Hamilton Holdings. Tomaste no-
ta? A comunicação ‚ feita hoje … tarde. E agora,
quanto … tua parte? - Houve uma pausa. - Hoje?
Estupendo. Deste-me o dia a ganhar, pá. E qual ‚ o
caminho? - Nova pausa. - Que queres dizer com
essa de que pensas que ‚ o mesmo? O que ficou com-
binado... Está bem, está bem. At‚ logo.
Tim ouvira falar de Laski - tratava-se de um tipo,
já não muito novo, excepcionalmente bem sucedido
na vida -, mas estava demasiado exausto, em termos
emocionais, e sentia-se verdadeiramente atónito. Na-
quele momento era capaz de acreditar em qualquer
coisa sobre qualquer pessoa.
Cox voltou … sala. Tim p“s-se de p‚. Cox disse:
- Ora bem, foi uma manhã de grande sucesso, em
todos os aspectos. E o senhor não esteja com grandes
problemas em relação ao sucedido. Vendo bem, me-
lhor pedaço de mulher nunca poderá encontrar.
- Agora importa-se de se retirar? - disse Tim.
- Bem, só falta mais um pequeno ponto. Dê-me o
seu roupão.
39

- Porquê?
- Eu mostro-lhe. Vá.
Tim estava demasiado devastado para levantar ob-
jecções. Despiu o roupão e passou-o a Cox. Ficou …
espera, apenas com as cuecas vestidas.
Cox atirou a peça de roupa para o lado.
Quero que fique a lembrar-se do nome que me
chamou: ®Chulo¯ - disse.
A seguir, desferiu um murro no est“mago de Tim.
Tim recuou e dobrou-se sobre si, em agonia. Cox
agarrou-lhe nos órgãos genitais com uma das mãos
enormes e apertou. Tim tentou gritar mas não tinha
f“lego. Ao tentar inspirar o ar, a boca abriu-se-lhe
num esgar silencioso.
Cox largou-o e deu-lhe um pontap‚. Tim estatelou-
-se no meio do chão. E ali ficou, encolhido, com os
olhos cheios de lágrimas. Deixara de ter orgulho, dig-
nidade. Implorou:
Por favor, não me magoe mais.
Tony Cox sorriu e vestiu o sobretudo.
Por enquanto, não - disse.
Depois saiu.

5
O ilustre Derek Hamilton acordou com uma dor.
Deixou-se ficar deitado na cama, de olhos fechados,
enquanto, algures no abd“men, localizava o incóríio-
do, o analisava e concluía que era grave mas não inca-
pacitante. Depois, recordou o jantar da noite ante-
rior. O creme de espargos era inofensivo; recusara os
crepes de marisco; comera o bife bem passado; prefe-
rira o queijo … tarte de maçã. Um vinho branco leve,
caf‚ com natas, brandy...
40
Brandy. Raios, devia ter preferido Porto.
Sabia como o dia iria decorrer. Passaria sem peque-
no-alnloço e, pelo meio da manhã, a fome seria tão
dolorosa quanto a úlcera, levando-o a comer alguma
coisa. Por volta da hora do almoço, a fome voltaria e
a úlcera pioraria. Durante a tarde, ficaria excessiva-
inente irritado com qualquer assunto, gritaria com o
seu pessoal e o seu est“mago enrodilhar-se-ia de dor,
diria de raciocinar minimamente. Iria pa-
o que o inipe ia dois comprimidos analg‚sicos. Dor-
ra casa e tomar
Miri.a, acordaria com uma dor de cabeça, jantaria, to-
niaria soporíferos e iria para a cama.
A cama ainda era a única coisa que o aliviava.
Rolou para o lado, abriu a gaveta da mesinha de ca-
beceira, agarrou numa pastilha e levou-a … boca. De-
pois sentou-se e pegou na sua chávena de chá. Sorveu
um gole, engoliu, e cumprimentou:
-Bom dia, querida.
Bom dia - respondeu Ellen Hamilton, sentada
na beira da cama gêmea, em robe de seda, com a chá-
vena apoiada no joelho esguio. Escovara já o cabelo.
A sua roupa de noite era tão elegante como o resto
do vasto guarda-roupa, apesar de ele ser o único a vê-
-Ia e de não estar interessado. O facto não tinha im-
portância, supunha ele: não que ela quisesse que os
homens a desejassem, apenas gostava de se achar ape-
tecível.
Terminou o seu chá e p“s as pernas fora da cama.
A sua úlcera protestou com o movimento súbito, fa-
zendo-o estremecer de dor.
Ellen perguntou:
- Outra vez?
Ele anuiu.
- Foi o brandy de ontem … noite. Já tinha obriga-
ۋo de saber no que ia dar.
O rosto da mulher manteve-se inexpressivo.
- Imagino que nada tenha a ver com os resultados
do semestre de que tomaste conhecimento ontem.
41

P“s-se de p‚ com esforço e percorreu lentamente a


extensão alcatifada em tom de p‚rola que se estendia
at‚ … casa de banho. O rosto que viu ao espelho era
redondo e avermelhado, com princípio de calvície e
uma papada considerável. Examinou a barba matinal,
repuxando a pele lassa para um lado e para o outro
para erguer os pêlos. Começou a barbear-se. Procedia
…quela operação ia para quarenta anos e continuava a
achá-la entediante.
Sim, os resultados do semestre eram maus. A Ha-
milton Holdings estava em maus lençóis.
Quando herdara do pai a Hamilton Printing5 esta
era eficiente, bem sucedida e lucrativa. Jasper Hamil-
ton fora tipógrafo - fascinado com o tamanho e o
estilo dos caracteres, ávido pelas novas tecnologias,
adorando o cheiro a óleo das impressoras. O filho era
um homem de negócios. Mobilizara o fluxo do lucro e
aplicarão noutros negócios - importação de vinhos,
retalho, publicações, fábricas de papel, rádio comer-
cial. A iniciativa atingira o seu objectivo primordial,
qu e era o de transformar o rendimento em riqueza e,
deste modo, evitar os impostos. Em vez de Bíblias,
brochuras e posters, preocupara-se com a liquidez e o
ganho.
Comprara companhias e fundara novas empresas,
construindo um imp‚rio.
O sucesso contínuo do empreendimento original
disfarçara, durante muito tempo, a fragilidade da su-
perestrutura. Mas quando o seu complexo tipográfico
enfraqueceu, Hamilton descobriu que a maior parte
dos seus restantes negócios eram marginais; que su-
bestimara o investimento de capital necessário para os
desenvolver at‚ atingirem o seu melhor; e que alguns
eram, na verdade, muito a longo prazo. Vendeu qua-
renta e nove por cento das suas acções em todas as
empresas, em seguida transferiu o seu stock para uma
sociedade de controlo e vendeu quarenta e nove por
42
cento da mesma. Levantou mais dinheiro e negociou
um empr‚stimo de sete números. Este manteve a or-
ganização activa, por‚m, o juro - que subira celere-
mente durante a d‚cada - absorvera o pouco lucro
havido.
Entretanto, Derek Hamilton arranjou uma úlcera.
o programa de recuperação fora iniciado ia quase
para uni ano. O cr‚dito fora retraído, numa tentativa
para diminuir o empr‚stimo; os custos tinham sido
cortados atrav‚s de todas as formas possíveis, desde o
cancelaniento de campanhas de publicidade ao apro-
veitamento dos desperdícios das impressoras para fa-
zer artigos de papelaria. Hamilton governava agora
sob r‚dea curta; no entanto, a inflação e a queda
brusca da economia eram uma realidade cada vez
mais presente. Esperara-se que os resultados do se-
mestre mostrassem ao mundo que a Hamilton Hol-
dings dera a volta por cima. Em vez disso, demonstra-
vam um declínio ainda mais acentuado.
Secou o rosto com uma toalha aquecida, p“s água-
-de-colónia com fartura e voltou para o quarto. Eleen
estava vestida, sentada em frente do espelho, a ma-
quilhar-se. Conseguia sempre vestir-se e despir-se en-
quanto o marido estava fora do quarto: ocorreu-lhe
que já não a via nua há anos. Sentiu curiosidade em
saber porquê. Estaria ela a ficar flácida, a pele de cin-
quenta e cinco anos teria começado a engelhar-se e o
peito, outrora firme, a descair? A nudez destruiria a ilu-
são do desejo? Talvez; mas ele desconfiava de algo mais
complexo. Algo obscuramente ligado … forma como o
seu próprio corpo envelhecera, pensou, enquanto ves-
tia as cuecas largas. Ela apresentava-se sempre recata-
damente tapada; daí que ele nunca a desejasse; daí
que ela nunca tivesse de demonstrar quão indesejável
o achava a ele. Nada mais característico do que serne-
lhante combinação de afastamento e susceptibilidade.
43

Ellen perguntou:
Que tencionas fazer?
A pergunta apanhou-o desprevenido. A princípio,
pensou que ela tivesse adivinhado os seus pensamen-
tos e a eles se referisse; depois, compreendeu que se
tratava de uma continuação da conversa acerca dos
negócios. Prendeu os suspensórios, reflectindo sobre o
que deveria responder-lhe.
Não estou bem certo - acabou por dizer.
Ellen olhou-se atentamente ao espelho, fazendo
movimentar as suas pestanas.
As vezes pergunto a mim mesma o que quererás
tu da vida.
Fitou-a. A educação da mulher ensinaras a ser in-
directa e a nunca fazer perguntas pessoais, pois a se-
riedade e a emoção prejudicavam festas e levavam as
senhoras a desmaiar. Inquirir sobre o objectivo da
existência de algu‚m devia ter-lhe custado um grande
esforço.
Hamilton sentou-se na beira da cama e falou-lhe
para as costas.
- Tenho de cortar o brandy, nada mais.
- Tenho a certeza de que sabes que nada tem a ver
com o que comes e bebes - insistiu Ellen, aplicando
bâton nos lábios, primeiro, contornando-os e, depois,
preenchendo suavemente a parte interior. - Come-
çou há nove anos atrás, e o teu pai morreu há dez.
Corre-me tinta de imprimir nas veias.
A resposta veio formalmente, como um catecismo.
A conversa teria parecido deslocado a quem a escutas-
se de parte, por‚m eles conheciam-lhe a lógica. Havia
um código: a morte do pai dele significava a tomada
do controlo do negócio; a sua úlcera era sinónimo dos
1.
seus problemas no negocio.
Ellen observou:
Tu não tens tinta nas veias. O teu pai tinha, frias
tu não suportas o cheiro dos materiais.
44
Herdei um negócio forte e quero deixá-lo aos
meus filhos ainda mais consolidado. Não será o que as
pessoas da ri ossa classe costumam fazer na vida?
- Os nossos filhos não estão interessados no que
possamos deixar-lhes. Michael está a montar o seu
pr@prio negócio a partir da base e Andrew tem por
único desejo vacinar o continente africano inteiro con-
tra a varicela.
Hamilton deixou de poder ver at‚ que ponto a mu-
lher falava a s‚rio. O que ela estava a fazer ao rosto
tornava-lhe a expressão indecifrável. Não havia dúvi-
da de que era propositado. Quase tudo o que Ellen
fazia era calculado.
Disse-lhe:
- Tenho um dever. Dou trabalho a mais de duas mil
pessoas e há muitos mais postos de trabalho depen-
dentes do bom funcionamento das minhas empresas.
- Eu acho que já cumpriste o teu dever. Mantives-
te a empresa a funcionar em tempo de crise, o que
nem todos conseguiram. Sacrificaste a tua saúde por
ela- deste-lhe dez anos da tua vida, e... Deus sabe que
mais.
A voz de Ellen esmoreceu na última frase, como se
se tivesse arrependido, tarde de mais, de a proferir.
- Achas que tamb‚m devia desistir do meu orgu-
lho? - perguntou ele. Continuou a vestir-se, fazendo
m
u nó apertado na gravata. - Transformei uma sim-
ples tipografia numa das mil maiores empresas do
país. O meu negócio vale cinco vezes mais do que
aquele que meu pai me deixou. Fui eu que o montei,
portanto, tenho de o manter a funcionar.
-Tens de te sair melhor que o teu pai.
- Será assim uma ambição tão mesquinha?
�, sim! - A súbita veemência de Ellen foi um
oq e. - Devias preocupar-te em gozar de boa saú-
c' u
de em
ter uma vida longa, e... com a minha felici-
dade.
45
Se a empresa estivesse próspera, talvez pudesse
vendê-la. Como a situação se apresenta neste morne11-
to, não conseguiria o seu valor real. - Consultou o
relógio. - Tenho de ir para baixo.
Desceu a escadaria larga. O vestíbulo era dominado
por um retrato de seu pai. Muita gente pensava tratar-
-se de Derek aos cinquenta anos. Na realidade, era
Jasper, aos sessenta e cinco. Quando ia a passar, o te-
lefone, que se encontrava em cima da cómoda, tocou
estridentemente. Ignorou-o: não recebia chamadas de
manhã.
Entrou na pequena sala de jantar - a.grande era
reservada a festas, raras nos tempos que iam corren-
do. A mesa redonda estava posta com talheres de pra-
ta. Uma empregada idosa, fardada, trouxe meia to-
ranja num prato de porcelana fina.
- Hoje não, Mrs. Treinlett - disse-lhe Hamilton.
- Quero apenas uma chavena de chá, se faz favor.
Pegou no Financial Times.
A mulher hesitou e depois colocou o prato no lugar
de Ellen. Hamilton desviou rapidamente o olhar do
jornal.
- Leve isso daqui, está bem? - disse com irrita-
ção. - Faça o favor de servir o pequeno-almoço a
Mrs. Hamilton quando ela descer, e não antes.
Com certeza - murmurou Mrs. Treinlett. Reti-
rou a toranj a.
Quando Ellen desceu, retomou a conversa no ponto
em que ficara.
Não creio que o importante aqui seja arranjares
cinco milhões ou quinhentos mil dólares para a erfi-
presa. Seja de que maneira for, ficaríamos melhor do
que agora. Já que não vivemos … vontade, não vejo
porque não havemos de o fazer mas sem problemas,
Hamilton pousou o jornal e fitou a mulher. Esta en-
vergava um dos seus fatos de saia e casaco, feitos Por
medida, em tecido cor de creme, com um camiseiro
46
de seda estampado a condizer e sapatos feitos … mão.
Disse:
Tens um lar acolhedor e criadagem suficiente.
possuis arnigos aqui e uma vida social na cidade quan-
do te apetece tirar proveito dela. Esta manhã estás
vestida com roupas no valor de várias centenas de dó-
lares e provavelmente nem sequer irás al‚m da vila.
As vezes, tenho curiosidade em perceber o que tu
queres da vida.
Ellen corou - ocorrência rara.
- Eu digo-te - principiou.
Nesse momento bateram … porta e entrou um ho-
mem bem-parecido, de sobretudo vestido e bon‚ na
rifão.
- Bom dia, senhor, minha senhora - cumprimen-
tou. - Senhor, se queremos apanhar o comboio das
sete e quarenta e cinco...
Hamilton disse:
- Está bem, Pritchard. Espera um pouco no vestí-
bulo.
- Com certeza, senhor. A senhora precisa do carro
esta manhã?
Hamilton'olhou para Ellen. Esta não desviou os
olhos do prato ao responder:
- Sim, penso que sim.
Pritchard anuiu e retirou-se.
Hamilton disse:
- Ias a falar-me do que pretendes da vida.
- Não me parece que seja tema para discutir … me-
sã do pequeno-almoço, especialmente quando estás
cheio de pressa para apanhar o comboio.
- Muito bem. - Levantou-se. - Boa saída de car-
ro. Não vás demasiado depressa.
- Como?
- Guia com cuidado.
- Oli, oli, o Pritchard ‚ que me leva.
Hamilton inclinou-se para beijar a mulher na face,
47

mas esta virou o rosto para ele e beijou-o nos lábios.


Quando ele se afastou, Ellen enrubescera. Ela agar-
rou-lhe no braço e declarou:
_ Ouero-te, Derek.
Hamilton ficou a olhá-la fixamente.
Quero que passemos um período de reforma lon-
go e feliz juntos - continuou Ellen, falando com rapi-
dez. - Quero que te descontraías, que te alimentes
como deve ser, que recuperes a saúde e a boa fornia
física. Quero o homem que vinha cortejar-me num Ri-
ley descapotável, o homem que voltou da guerra cheio
de medalhas e casou comigo, e o homem que me se-
gurou na mão quando dei … luz os meus filhos. Quero
amar-te.
Hamilton ficou embaraçado. Ela nunca se mostrara
assim com ele, nunca. Sentiu-se desesperadamente in-
capaz de enfrentar a situação. Não sabia o que dizer,
o que fazer, para onde olhar. Respondeu:
Tenho... tenho de ir apanhar o comboio.
Ellen recuperou rapidamente a compostura.
Sim. Tens de te apressar.
Ele fitou-a por mais um momento, por‚m, ela não
o olhou. Disse:
Hum... at‚ logo.
Ellen acenou silenciosamente com a cabeça.
Hamilton saiu. No vesti 'bulo, colocou o chap‚u, de-
pois deixou que Pritchard lhe abrisse a porta da fren-
caminho
te. O Mercedes azul-escuro aguardava-o no
coberto de cascalho, brilhando … luz do sol. ®Pritchard
deve lavá-lo todas as manhãs antes de eu me levan-
tar¯, pensou.
A conversa com Ellen fora extremamente peculiar,
reflectiu durante o percurso para a estação de carni-
nhos-de-ferro. Atrav‚s da janela viu os raios solares a
brincarem nas folhas que começavam a amarelecer, e
relembrou os aspectos principais da cena acabada de
ocorrer. Quero amar-te, dissera a mulher, com a enfa-
48
se no te. A falar das coisas que ele sacrificara pelos
negócios, salientara, e Deus sabe que mais.
Quero amar-te a ti, não a outra pessoa. Seria o que
ela queria dizer? Perdera ele a fidelidade da mulher,
al‚ti, da sua saúde? Talvez ela quisesse simplesmente
levá-lo a presumir que tinha uma ligação amorosa. Al-
go bem mais próprio de Ellen. Apreciava as subtile-
zas. Gritos de socorro não eram o seu gênero. Depois
dos resultados do semestre, os problemas dom‚sticos
faziani-lhe tanta falta como uma reunião com os cre-
dores.
Havia algo mais. Ela corara quando Pritchard lhe
perguntara se ia precisar do carro; depois, apressada-
inente, respondera-lhe Pritchard ‚ que me leva.
Hamilton perguntou:
- Onde ‚ costuma levar Mrs. Hamilton, Pritchard?
- Ela ‚ que vai a guiar, senhor. Eu ajudo na casa,
há sempre muito...
- Sim, está bem - interrompeu Hamilton. - Não
te pedi nenhum relatório. Era apenas curiosidade.
- Com certeza, senhor.
Sentiu a úlcera manifestar-se dolorosamente. Foi o
chá, pensou: esta manhã devia ter bebido leite.
Herbert Chieseman acendeu as luzes, silenciou o
despertador, aumentou o volume do rádio, que ficara
ligado toda a noite, e carregou no botão de retrocesso
do gravador. Em seguida, levantou-se da cama.
POs a chaleira ao lume e ficou a olhar pela janela
do apartarnento-estúdio, enquanto a fita de sete horas
re inava por completo. A manhã estava límpida e
da, Mais tarde, o sol brilharia com força, mas por

49

AM .

J
enquanto fazia frio. Vestiu uma calças e uma camisola
por cima da roupa interior com que dormira, e enfiou
uns chinelos de quarto.
O seu lar era constituído por uma única sala gran-
de, numa casa vitoriana na zona Norte de Londres
elhores. A mobília, o aquece-
que já conhecera dias in senho-
dor Ascot e o velho fogão a gás pertenciam ao
rio. O rádio era de Herbert. A sua renda incluía a uti-
lização de uma casa de banho comunal e - o que era
mais importante - o uso exclusivo do sótão.
O rádio dominava o quarto. Era um potente apare-
lho receptor VFIF, construido com peças cuidadosa-
mente escolhidas por ele em meia dúzia de lojas da
Tottenham Court Road. A antena encontrava-se no
sótão do telhado. O gravador tamb‚m fora obra dele.
Deitou chá numa chávena, acrescentou leite con-
densado de uma lata e sentou-se … sua mesa de traba-
lho. Al‚m do equipamento electrónico, a mesa tinha
só mais um telefone, um caderno de escola e uma es-
ferográfica. Abriu o caderno numa página nova e es-
creveu a data no topo com letra grande e ligada. De-
pois, reduziu o volume do rádio e cõrr@e€ou a ouvir a
gravação da noite em alta velocidade. Sempre que um
ruído agudo indicava que havia uma fala na gravação,
ele abrandava a velocidade do carreto com a ajuda do
dedo, at‚ poder distinguir as palavras.
®... o carro seguiu para o fundo da Holloway Road,
para prestar assistência … AP ... ¯
'Ludlow Street, Oeste Cinco, uma tal Mrs. Shai-
tesbury - parece-me que ‚ dom‚stica, vinte e um ... ¯
®... o in@pector diz que se o Chinês ainda estiver
aberto, vai at‚ lá comer arroz chau-chau. corri ... ¯
®... Holloway Road apresse-se, o AP está com difi-
culdades ... ¯
Herbert suspendeu a passagem da fita e tornou
apontamento.
®... comunicação de assalto a uma casa, fica perto
de Wimbledon Cominori, Jack ... ¯
so
está … escuta ... ¯
... Dezoito, a área Lee livres para ajuda-

®... todos os carros d


ni O Corpo de bombeiros no vinte e dois da Feather
re
street ... ¯ tornou novo apontamento.
Herbert
®... Dezoito, escuta ... ¯
®... não sei, dá-lhe urna aspirina ... ¯
®... assalto com faca, nada de grave... ¯
®... onde diabo tens andado, Dezoito... ¯
A atenção de Herbert foi atraída pela fotografia
cima da cornija da lareira. A imagem
que se via em.
estava favorecido: Herbert soubera-o, vinte anos an-
tes, quando ela lha oferecera; mas agora esquecera.
Estranharnente deixara de pensar nela como real-
mente fora. Quando a recordava, visualizava uma mu-
lher de pele impecável e maçãs do rosto com rouge, a
posar em frente de uma paisagem desvanecida num
estúdio de fotógrafo.
®... roubo de uma televisão a cores e danos numa
montra espalhada ... ¯
Ele fora o primeiro, no seu círculo de amigos, a
®perder a esposa¯, como costumavam colocar a ques-
tão. Dois ou três deles tinham, desde então, sofrido a
mesma trag‚dia: um dera em bêbado varrido, outro
desposara uma viúva. Herbert mergulhara de cabeça
no seu hobby, a rádio. Começou a ouvir as transmis-
sões da polícia durante o dia, quando não se sentia su-
ficienterriente bem para ir trabalhar, o que era bastan-
te frequente.
®... Grey Avenue, Golders Green, comunicação de
assalto ... ¯
Certo dia, depois de ouvir a polícia falar acerca do
assalto a um banco, telefonou para o Evening Post.
Um repórter agradeceu-lhe a informação e tomou no-
ta do seu nome e morada O assalto fora dos grandes
um quarto de milhão de libras - e a história -apa-
receu na primeira página do Post nessa tarde. Herbert
51

sentira-se orgulhoso por ter sido ele a passar-lhes a di-


ca, e nessa noite contou o sucedido em três bares. De-
pois esqueceu-a. Três meses mais tarde, recebeu um
cheque de cinquenta libras do jornal. A acompanhá-lo
vinha uma declaração que dizia: ®Dois tiros em assal-
to de 250 000 libras¯ e referia a data do roubo.
®... se ela não apresenta queixa, larga isso, Charke,
esquece ... ¯
No dia seguinte, Herbert ficara em casa e telefona-
ra para o Post de cada vez que apanhava alguma coisa
nas ondas de comunicação por rádio da polícia. Nessa
tarde, recebeu uma chamada de um homem que se di-
zia subchefe de redacção, o qual lhe explicou precisa-
mente o que o jornal queria de pessoas como Her-
bert. Disseram-lhe que só comunicasse assaltos em
qu e fosse utilizada uma arma ou algu‚m fosse morto-
que não se preocupasse com pequenos assaltos, ex-
cepto se os mesmos fossem efectuados em Belgravia,
Chelsea ou Kensington; que não transmitisse a ocor-
rência de roubos em que não tivessem sido utilizadas
armas ou retiradas grandes quantias de dinheiro.
®... siga para o vinte e três da Narrow Road e
aguarde ... ¯
Apreendeu a ideia rapidamente porque não era es-
túpido, e a valorização que o Post dava …s notícias na-
da tinha de subtil. Depressa se apercebeu de que ga-
J1 nhava ligeiramente mais nos seus dias de ®doente¯ do
Y
1 que quando ia para o emprego. Al‚m disso, preferia
ouvir rádio do que fazer caixas para câmaras. Portan-
to, apresentou a demissão e tornou-se aquilo que o
ornal designou de ®bisbilhoteiro¯.
®... ‚ melhor dares-me já essa descrição ... ¯
Depois de já estar a trabalhar, fazia algumas sema-
nas, a tempo inteiro com o rádio, recebeu a visita do
subchefe de redacção em sua casa - fora antes de se
mudar para o apartamento-estúdio -, que desejava
falar-lhe. O jornalista disse que o trabalho de Herbert
52
era da máxima utilidade para o jornal, propondo-lhe
começar a trabalhar para eles em regime de exclusivi-
dade. Tal significaria Herbert passar a dar informa-
ções unicamente ao Post, abstendo-se de o fazer a ou-
tros jornais. Mas, para compensar a perda de
remuneração, receberia um subsídio semanal. Herber
não disse que nunca telefonara para outros jornais.
Aceitou a oferta de bom grado.
®... aguenta-te que daqui a pouco já te fazemos
chegar ajuda ... ¯
Ao longo dos anos, melhorara tanto o seu equipa-
mento como a sua compreensão do que o jornal que-
ria. Aprendeu que, ao princípio da manhã, se mostra-
vam gratos praticamente por qualquer coisa que
pudesse aparecer, mas que, … medida que o dia ia de-
correndo, se tornavam mais criteriosos, at‚ que cerca
das três da tarde, lhes não interessava nada inferior a
um assassínio na rua ou um assalto em larga escala
acompanhado de violência. Tamb‚m descobriu que o
jornal, tal como a polícia, se mostrava muito menos
interessado num crime cometido contra um indivíduo
de cor, numa zona habitada por cong‚neres. Herbert
considerou tratar-se de uma realidade deveras com-
preensível, já que ele, na sua qualidade de leitor do
Evening Post, não sentia grande interesse no que os
®escuros¯ faziam uns aos outros nas suas áreas pró-
prias de Londres; e depreendeu, correctamente, que a
razão pela qual o Post não estava interessado era,
simplesmente, por pessoas como Herbert, que com-
pravam o Post, não estarem interessadas. E aprendeu
a ler nas entrelinhas do calão policial: sabia quando
um assalto era trivial ou uma queixa dom‚stica; aper-
cebia-se do tom de urgência na voz de um sargento da
sala de operações quando um pedido de ajuda era de-
Sesperado; descobriu como alhear-se quando eles re-
solviam ler listas enormes de matrículas de automó-
veis roubados.
53

O som acelerado do seu próprio despertador soou


atrav‚s do alto-falante grande, e desligou o gravador.
Aumentou o volume do rádio e, em seguida, discou o
número do Post. Enquanto esperava que o atendes-
sem, foi beberricando o seu chá.
Post, bom dia.
Era uma voz masculina.
Registo de notícias, por favor - pediu
Herbert.
Houve nova pausa.
- Registo de notícias.
- Viva. Daqui fala o Queijeiro, são sete e cinquen-
ta e nove.
Ao fundo ouvia-se o matraquear de máquinas de
escrever.
- Olá, Bertie. Alguma novidade?
- Parece que a noite foi tranquila informou
Herbert.
N,
OITO DA MANHA

Tony Cox encontrava-se numa cabina telefónica … es-


quina da Quill Street, em Bethrial Green, com o aus-
cultador no ouvido. Transpirava dentro do sobretudo
quente de gola de veludo. Na outra mão tinha a ponta
de uma trela presa … coleira da cadela, que estava no
lado de fora. O animal tamb‚m transpirava.
O telefone que ficava na outra ponta da linha foi
atendido, e Topy meteu a moeda na ranhura.
Uma voz diss'e.-®Está?¯ em tom de quem não se
acostumou ainda a estas inovações no domínio dos te-
lefones.
Tony falou concisamente:
-E hoje. Prepara tudo.
Desligou sem se identificar ou esperar por uma res-
posta.
Seguiu ao longo do passeio, puxando a cadela atrás
de si. Era uma boxer com pedigree, dotada de um cor-
po bem tratado e forte, e Tony via-se obrigado a pu-
xar constantemente pela trela para a manter ao seu
ritmo. A cadela era forte, por‚m, o seu dono era-o
muito mais.
As portas das velhas casas de varandas davam direc-
tamente para a rua. Tony deteve-se em frente de uma
delas. Junto ao passeio, estacionava um Rolls Royce
cinzento. Empurrou a porta da habitação. Nunca esta-
55

va trancada, pois os ocupantes não receavam os Ia-


drões.
No ar da pequena casa pairava um odor a cozinha-
dos. Empurrando a cadela … sua frente, Tony entrou
na cozinha e sentou-se numa cadeira. Desprendeu a
trela da coleira do animal e mandou-o embora com
uma palmada pesada no traseiro. Levantou-se e des-
piu o sobretudo.
Estava uma chaleira ao lume no fogão a gás e havia
bacon …s fatias num bocado de papel vegetal. Tony
abriu uma gaveta e tirou uma faca com uma lâmina de
vinte e cinco centímetros. Experimentou a aresta com
o polegar, achou que precisava de ser afiada, e saiu
para o pátio.
No alpendre do telheiro havia um velho esmeril.
Tony sentou-se ao lado, num baco de madeira, e deu
ao pedal, tal como vira fazer ao pai anos antes. Tony
sentia prazer em fazer as coisas ao jeito do pai. Re-
cordou-o: homem alto e bem-parecido, de cabelos on-
dulados e olhos brilhantes, a lançar faíscas com o es-
moril enquanto os filhos riam ruidosamente. Tivera
uma banca numa rua do mercado, onde vendia loiça e
panelas, apregoando a sua mercadoria com voz forte
e sonora. Costumava arreliar o vendeiro do lado, gri-
tando-lhe: ®Aí tens, acabei de vender uma panela por
metade de uma libra. Quantas pás tens de vender pa-
ra fazeres três xelins?¯ Era capaz de detectar … distân-
cia a aproximação de uma mulher desconhecida e não
hesitava em recorrer descaradamente ao seu encanto
pessoal. ®Escute, querida ... ¯ - isto para uma mulher
de meia-idade com o cabelo preso numa rede - ®não
‚ costume virem muitas raparigas bonitas a esta ponta
do mercado, portanto, vou vender-lhe esta com pre-
juízo para mim, na esperança de que volte. Veja só,
fundo de cobre teso, se me perdoa a expressão, e ‚ a
última; fiz o meu lucro com as outras, portanto pode
ficar com ela por duas libras, metade do que eu dei,
56
só por ter feito acelerar este meu coração de velho,
mas leve-a antes que eu mude de ideias.¯
Tony ficara chocado com a rapidez com que o velho
mudara depois de perder um dos pulmões. O cabelo
enibranqueceu, as faces encovaram-se e a voz potente
tornou-se aguda e lamurienta. A banca era de Tony
por direito, mas na altura i … ele dispunha de uma fon-
te de rendimento própria, portanto, deixou-a para o
jovem Harry, o irmão surdo-mudo, que casara com
uma bela rapariga de Whitechapel com paciência para
aprender a linguagem gestual. Para que um surdo-
-niudo dirigisse uma banca de venda num mercado era
preciso ter fibra; quando precisava de dizer algo aos
clientes, escrevia numa ardósia, e tinha sempre consi-
go um cartão com a palavra OBRIGADO, para apre-
sentar no final de uma venda. Mas dirigia bem o ne-
gócio, e Tony emprestou-lhe capital para se mudar
para uma loja adequada e contratar um gerente, em-
preendimento em que tamb‚m foi bem sucedido. Fi-
bra... era de família.
A faca de cozinha já estava suficientemente afiada.
Experimentou-a na unha do polegar, mas feriu-se. Le-
vou o dedo aos lábios e voltou para a cozinha.
Sua mãe estava lá. Lillian Cox era baixa e tinha um
pouco de peso a mais - o filho herdara dela a ten-
dência para a obesidade, que não a baixa estatura -
e possuía muito mais energia do que qualquer mulher
de sessenta e três anos. Esta disse-lhe:
- Vou fazer-te um bocado de pão frito.
- óptimo - disse Tony, pousando a faca e apli-
cando um pano ao dedo. - Tenha cuidado com esta
faca... Aflei-a demasiado.
Lillian mostrou-se agitada com o ferimento do fi-
lho, depois p“s-lhe o dedo debaixo do jacto de água
fria da torneira, contou at‚ cem e aplicou creme anti-
-S‚ptico antes de o enrolar com uma compressa, que
prendeu com um alfinete de dama. Tony manteve-se
quieto, deixando-a agir … vontade dela.
57

Lillian disse:
- Ali, mas que rico filho em afiar as facas para a
sua mãe. Mas diz-me, onde foste hoje tão cedo?
Levei a cadela at‚ ao parque. E tentei telefonar
para uma pessoa.
A mãe emitiu um ruído de desd‚m.
-Ora, não sei que mal tem o telefone da sala,
Tony inclinou-se sobre o fogão para sentir o cheiro
do bacon que frigia.
Sabe como ‚, mãe. O Velho Bill' está de escuta
a esse.
Lillian entregou-lhe o bule.
- Então vai lá dentro e serve o chá.
Tony levou o bule para a sala de estar e pousou-o
em cima de um isolador. A mesa quadrada estava pos-
ta com uma toalha bordada, talheres para dois, sal e
pimenta e frascos de temperos.
Tony sentou-se ao p‚ da lareira, no mesmo sítio que
o pai costumava ocupar. Daí, estendeu a mão para o
guarda-louça e tirou duas chávenas e dois pires. Voltou
a visualizar a imagem do velho supervisando as refei-
ções, com as costas das mãos sempre prontas a inter-
virem e uma profusão de calão a acompanhar. ®Ti-
rem-me esses ossos da mesa¯, gritava quando os via
apoiarem-se nos cotovelos. A única revolta que Tony
conservara em relação a ele fora a maneira como tra-
tara a mãe. O seu aspecto agradável fazia com que ti-
vesse sempre algumas mulheres por fora, e em vez de
trazer o dinheiro para casa, gastava-o a pagar-lhes
gim. Nessas alturas, Tony e o irmão iam at‚ ao merca-
do de Smithfield apanhar bocados de papel debaixo
das bancas, para os venderem na fábrica de papel por
alguns cobres. E nunca fora … tropa - mas enfim,
muita rapaziada indómita fugira no tempo da guerra.
Que vais fazer - ficas a dormir ou serves esse

'O Governo, as autoridades inglesas. (N. da T)


58
chá? - Lillian colocou um prato em frente de Tony
e sentou-se na frente deste. - Deixa lá. Eu mesma
o faço .
Tony pegou no talher, segurando na faca como se
fosse um lápis, e começou a comer. Eram salsichas,
dois ovos estrelados, tomate de lata e várias fatias de
pão frito. Encheu a boca antes de se servir do tempe-
ro castanho. O exercício matinal deixara-o faminto.
A mãe passou-lhe o chá. Disse:
- Não sei, cá a gente nunca teve medo de usar o
telefone no tempo em que o teu pai era vivo, Deus te-
nha a sua alma em paz. Ele tinha o cuidado de nunca
se meter com o Velho Bill.
Tony pensou que no tempo do pai não tinham tele-
fone, mas não fez qualquer reparo. Respondeu:
- Pois. Tinha tanto cuidado que morreu na mi-
s‚ria.
- Mas honesto.
- Seria?
- Sabes perfeitamente que sim, e que eu nunca te
oiça dizer o contrário.
- Não gosto nada de ver a mãe a exaltar-se.
- Então não me provoques.
Tony comeu em silêncio, e depressa chegou ao fim.
Esvaziou a chávena de chá e começou a desembrulhar
um charuto.
A mãe pegou na chávena.
- Mais chá?
Tony consultou o relógio de pulso.
- Não, obrigado. Tenho uns assuntos para tratar.
Acendeu o charuto e levantou-se.
A mãe fitou-o de olhos franzidos.
- Andas metido em sarilhos?
A pergunta aborreceu-o. Expeliu o fumo para o ar.
- A quem ‚ que interessa saber9
- A vida ‚ tua. Então vai, at‚ logo. Mas vê lá se
olhas por ti.
59

Tony fitou-a durante mais um momento. Embora ti-


vesse cedido perante ele, não deixava de ser uma niu-
lher forte. Ela ‚ que aguentara a família depois de o
velho morrer: reconstituindo casamentos, pedindo em-
prestado de um filho para dar a outro, aconselhando,
utilizando a sua desaprovação como forma de sanção
poderosa. Resistira a todos os esforços de a mudarem
da Quill Street para uma linda vivendazinha em Bour-
nemouth, suspeitando - acertadamente - que a ve-
lha casa e as suas recordações constituíam um símbolo
poderoso da sua autoridade. Outrora, houvera uma
arrogância regia no seu nariz arqueado e no queixo
saliente; agora, era autoritária mas resignada, qual
monarca abdicante; ciente de que era prudente largar
as r‚deas do poder, mas lamentando o facto constan
temente. Tony compreendeu que era por esse motivo
que ela precisava dele: agora o rei era ele, e tê-lo a vi-
ver ao seu lado mantinhas perto do trono. Ele adora-
va-a por precisar dele. Ningu‚m mais sentia tal neces-
sidade.
Lilhan levantou-se.
- Então, sempre vais ou não?
- Vou. - Tony apercebeu-se de que estivera Mer-
gulhado nos seus pensamentos. Rodeou-lhe os ombros
com um braço e apertou-lhos levemente. Nunca a bei-
java. - Ta-ta, mãe.
Pegou no sobretudo, fez uma festa … cadela e saiu.
O interior do Rolls estava aquecido. Antes de se
acomodar no assento e arrancar, carregou no botão
que abria a janela.
Sentiu prazer a conduzir o carro pelas ruas estreitas
de East End. O seu luxo descarado, contrastando com
as ruas pobres e as velhas casas em mau estado, con-
J tava a história de Tony Cox. As pessoas olhavam
para
o automóvel - donas de casa, jornaleiros, operári os,
moradores da vila - e diziam entre si: ®Ali vai Tony
Cox. Alcançou sucesso na vida.¯
60
Sacudiu a cinza do charuto pela janela aberta. Ele
alcançara sucesso. Aos dezasseis anos comprara o seu
primeiro carro por seis libras. A carta de condução,
por preencher, custara-lhe trinta xelins no mercado
negro. Escrevera nos espaços em branco e voltara a
vender o automóvel por oitenta libras.
Passado pouco tempo era dono de um parque de
carros usados que, a pouco e pouco, transformou num
negócio legal. Depois, vendeu-o juntamente com o
stock, por cinco mil libras, enveredando então pelos
negócios ilícitos.
Serviu-se das cinco mil libras para abrir uma conta
bancária, dando como referência o nome do homem
que comprara o parque automóvel. Disse o seu verda-
deiro nome ao gerente do banco, por‚m, deu uma
morada falsa - a mesma que dera ao comprador do
negócio dos automóveis.
Alugou um armaz‚m, pagando três meses antecipa-
damente. Comprou pequenas quantidades de rádios,
televisões e aparelhagens estereofónicas a fabricantes,
e revendeu-as a estabelecimentos comerciais em Lon-
dres. Pagava a pronto aos fornecedores e a sua conta
bancária sofria movimentações constantes. Um par de
meses mais tarde tinha um prejuízo insignificante mas
ganhava fama de bom pagador.
Foi então que fez uma s‚rie de encomendas de gran-
de vulto. Pequenos fabricantes, a quem ele pagara, a
pronto, um par de facturas de quinhentas libras cada,
não hesitaram em lhe fornecer mercadoria no valor de
três ou quatro mil fibras, nas mesmas condições de crê-
dito: ele parecia estar a tornar-se um bom cliente.
Com o armaz‚m repleto de aparelhagens electróni-
cas caras pelas quais nada pagara, promoveu uma ven-
da. Gira-discos, televisores a cores, relógios digitais,
gravadores, amplificadores e rádios foram vendidos a
preços reduzidos, por vezes por metade do seu valor
61

77

Ifl

a retalho. O armaz‚m ficou vazio em dois dias e Tony


Cox arrecadou três mil libras em dinheiro, que guar-
dou em duas malas. Fechou o armaz‚m e foi para
casa.
No assento do motorista, estremeceu com a recor-
dação. Nunca mais voltaria a correr semelhantes ris-
cos. E se algum dos fornecedores tivesse sabido da
venda? E se o gerente do banco visse Tony num bar
alguns dias depois?
De vez em quando, ainda se metia num ou noutro
negociozito ilegal, por‚m, nos tempos que iam corren-
do utilizava homens de nomeada, que tiravam f‚rias
em Espanha assim que apareciam problemas. E nin-
guem via o rosto de Tony.
No entanto os seus interesses comerciais tinham-se
diversificado. Era proprietário de apartamentos no
Centro de Londres, que alugava a senhoras jovens por
rendas altíssimas; dirigia clubes nocturnos; at‚ era
gestor de agrupamentos de música moderna. Alguns
dos seus projectos eram legais, outros criminosos; al-
guns eram uma mistura de ambas as coisas, e outros
situavam-se na fronteira nebulosa entre os dois, onde
a lei não ‚ muito clara, mas que homens de negócios
respeitáveis, com nomes a defender, receiam trilhar.
O Velho Bill sabia das suas andanças, evidentemen-
te. Nos tempos que iam correndo havia tanta vigilân-
cia que ningu‚m podia tornar-se um patife de respeito
sem que o seu nome constasse nos arquivos da Scotland
Yard. Mas o problema era arranjar provas, especial-
mente havendo vários detectives preparados para,
com antecedência, alentarem Tony de alguma incur-
são. Nunca deu por mal empregue o dinheiro gasto
nesse campo. Todos os meses de Agosto, havia três
ou quatro famílias de polícias em Benidorm a passar
f‚rias … conta de Tony.
Não que confiasse neles. Tinham a sua utilidade, no
entanto, diziam todos para si mesmos que um dia pa-
62
gariam a sua dívida de lealdade entregando-o. Um po-
lícia corrupto não deixava, por isso, de continuar a
ser, acima de tudo, um polícia. Daí que todas as tran-
sacções fossem feitas a dinheiro; não havia nada escri-
to, só na cabeça de Tony; todos os trabalhos eram fei-
tos pelos seus capangas, com instruções verbais.
Actuava, cada vez mais, pelo seguro, assumindo
simplesmente o papel de banqueiro. Um planeador
obtinha uma informação interna qualquer e engendra-
va um plano; depois, recrutava um bandido para orga-
izar o equipamento e o pessoal. Os dois iriam a se-
guir ter com Tony e expunham-lhe o plano. Se este
lhe agradasse, emprestava-lhes o dinheiro para subor-
nos, armas, via turas, explosivos e tudo quanto fosse
ecessário. Depois do trabalhinho feito, devolver-lhe-
-iam cinco ou seis vezes mais o dinheiro cedido.
Parou o carro numa rua lateral e apeou-se. Ali, as
casas eram maiores - tinham sido construidos para
chefes de secção e artífices, não para trabalhadores
das docas e operários -, por‚m, não eram mais segu-
ras que os casebres de Quill Street. As fachadas de ci-
mento apresentavam rachas, os caixilhos de madeira
das janelas estavam podres e os jardins da frente eram
mais pequenos que o porta-bagagens do carro de To-
ny. Apenas cerca de metade estava habitada: o resto
eram armaz‚ns, escritórios ou lojas.
A porta … qual Tony bateu exibia um letreiro com
os seguintes dizeres: ®Bilhar e Snooker¯, com a maior
parte da tinta do ®e¯ comida. Foi imediatamente
aberta e Tony entrou.
Apertou a mão a Walter Burden e depois seguiu-o
escada acima. Um acidente de estrada deixara Walter
a coxear e a gaguejar, impedindo-o de trabalhar nas
docas. Tony entregara-lhe a gerência da sala de bilhar,
ciente de que o gesto - que nada lhe custara - seria
compensado por um aumento no respeito entre os
moradores do East End e uma lealdade inabalável por
parte de Walter.
63

Este ofereceu:
- Queres uma chávena de chá, Tony?
- Não, obrigado, Walter, acabei de tomar o pe@
queno-almoço. - Olhou em volta, mirando o pri-
meiro piso com ar de posse. As mesas estavam tapa-
das, o chão forrado a linóleo fora varrido, os tacos
impecavelmente arrumados. - Tens a casa muito bem
tratada.
- Não faço mais que o meu dever, Tony. Deste-me
a mão.
- Certo.
Cox foi at‚ … janela e olhou para a rua, que se es-
tendia em baixo. No passeio oposto, a alguns metros
de distância, estacionava um Morris 1100 azul. Dentro
dele viam-se duas pessoas. Tony sentiu-se curiosamen-
te satisfeito; tivera razão em munir-se de precaução.
- Onde está o telefone, Walter? - perguntou.
- No escritório - retorquiu Walter, abrindo a por-
ta da divisão para deixar entrar Tony, fechando-a a se-
guir e ficando do lado de fora.
O escritório estava arrumado e limpo. Tony sentou-
-se … secretária e discou um número.
Ouviu-se uma voz no outro lado.
- Está?
- Venham buscar-me - ordenou Tony.
- Cinco minutos.
Tony desligou. O seu charuto apagara-se. Quando
algo o enervava, deixava extinguir o que estava a fu-
mar. Reacendeu-o com um Dunhill de ouro, depois
saiu.
Voltou a mostrar-se … janela.
- Muito bem, amigo, vou-me embora - disse a
Walter. - Se algum daqueles detectives da polícia
que estão dentro do carro azul se lembrar de vir bater
… porta, não atendas. Precisarei de meia hora.
- Não te preocupes. Sabes bem que podes confiar
em mim.
64
Walter sacudiu a cabeça como um pássaro.
- Sim, eu sei.
Tony tocou no ombro do velho por breves instantes,
depois dírigiu-se para o fundo do vestíbulo. Abriu a
porta e desceu rapidamente a escada das traseiras.
Abriu caminho por entre um carrinho de beb‚
cheio de ferrugem, um colchão encharcado e três
quintos de um carro antigo. As ervas daninhas teima-
vam em brotar pelas rachas que atravessavam o pavi-
niento do pátio. Um gato escanzelado fugiu-lhe do cá-
minho com um salto. Ficou com os sapatos italianos
sujos.
o pátio tinha um portão que deitava para uma rue-
la estreita. Tony caminhou at‚ ao fundo desta. Quan-
do ia a chegar, um pequeno Fiat vermelho parou na
esquina com três homens no seu interior. Tony entrou
e instalou-se no assento de trás. O automóvel arran-
cou imediatamente.
O motorista era Jacko, o ajudante número um de
Tony. Ao lado de Jacko, estava Willie o Mouco, que
percebia agora mais de explosivos do que trinta anos
antes, quando perdera o tímpano esquerdo. No banco
de trás, ao lado de Tony, ia Peter ®Jesse¯ James, que
tinha duas obsessões: as armas de fogo e as raparigas
de traseiros volumosos. Eram todos bons homens; to-
dos membros permanentes da firma de Tony.
Tony perguntou:
- Como vai o rapaz, Willie?
Willie o Mouco voltou o ouvido são para Tony.
- O quê?
-Perguntei como vai o jovem Billy.
Faz hoje dezoito - respondeu Willie. - Tá na
mesma, Tony. Nunca mais será capaz de olhar por si.
A assistente social disse-nos para o metermos num lar.
Tony deixou escapar uma interjeição de comisera-
ção. Dava-se ao trabalho de ser simpático para com o
filho atrasado mental de Willie; as doenças mentais
atemorizavam-no.
65

Não hás-de querer fazer uma coisa dessas.


Willie disse:
Foi o que eu disse … minha mulher. O que ‚ que
ma assistente social percebe do assunto? Esta moça
tem … volta de vinte anos. Andou na Faculdade. Mes-
mo assim, não chateia de mais.
Impaciente, Jacko interrompeu.
Estamos todos combinados, Tony. Os rapazes es-
tão 1 os carros estão preparados.
-áóptimo. - Tony fitou Jesse James. - Atira-
dores?
- Arranjei um par de espingardas e uma Uzi.
- Uma quê?
Jesse sorriu orgulhosamente.
� uma pistola-metralhadora de nove
milímetros.
Israelita.
Vamos a isto - ordenou Tony.
Jacko disse:
Cá estamos.
Tony tirou um bon‚ de pano do bolso e enfiou-o na
cabeça.
Puseste a rapaziada no lado de dentro, não pu-
L seste?
Pus - respondeu Jacko.
Não me importo que saibam que ‚ um trabalho
de Tony Cox, mas não quero que sejam capazes de di-
J zer que me viram.
Eu sei.
el O automóvel deteve-se num pátio de ferro-velho.
Era um recinto extraordinariamente arrumado. As
-se verticalmente
carcaças dos automóveis empilhavam
em filas ordenadas, e as peças componentes estavam
amontoadas por perto: pilares de pneus, uma pirairu-
de de eixos traseiros, um cubo formado por blocos de
cilindro.
Perto do portão estavam um guindaste e um tratis-
portador longo de carros. Mais adiante, via-se urna
66
velha carrinha Ford azul com rodas traseiras duplas,
a resistente máquina de cortar de oxia-
ao lado de um
cetileno.
o automóvel parou e Tony apeou-se. Estava satis-
feito. Gostava das coisas ordenadas. Os outros três
fnantiveram-se por perto, esperando que ele tomasse
alguma iniciativa. Jacko acendeu um cigarro.
Tony perguntou:
Trataram do dono do pátio?
Jacko anuiu.
- Lá se desenrascou para aqui ter o guindaste, o
transportador e a máquina de corte. Mas não sabe pa-
ra que são, portanto, a gente amarrou-o, só para fi-
carmos mais descansados.
Desatou a tossir.
Tony tirou-lhe o cigarro da boca e deixou-o cair na
lama.
- Isto faz-te tossir. - Tirou um charuto do bolso.
- Fuma antes disto que morres de velho.
Tony voltou, a p‚, para junto do portão. Os três
homens seguiram-no. Tony contornou cuidadosamen-
te as poças de água e as faixas de lama, passou por
um monte formado por milhares de acumuladores,
por entre pequenos amontoados de eixos e caixas de
direcção, at‚ chegar junto do guindaste. Era um mo-
delo pequeno, tractor de lagarta com capacidade para
erguer um carro, uma carrinha ou um camião ligeiro.
Desabotoou o sobretudo e subiu pela escada que con-
duzia … cabina, no alto.
Sentou-se no banco do operador. As janelas circun-
dantes permitiam-lhe ver todo o pátio. Era de forma-
to triangular. Num lado, estava um viaduto com car-
ris, com as suas arcadas de tijolo preenchidas por
arrecadações. No lado adjacente havia uma parede al-
ta que separava o pátio de um campo de jogos. A es-
t,ada estendia-se ao longo da parte da frente do pátio,
iriclinando-se ligeiramente para acompanhar a curva
67

do rio, alguns metros … frente. Era uma estrada larga.


mas com pouco uso.
sotavento do viaduto erguia-se uma cabana feita
A
de velhas portas de madeira encimadas por um telha-
do de papel de alcatrão. Os homens deviam estar n o
seu interior, reunidos em volta de um aquecedor el‚c-
trico, a beberem chá e a fumarem nervosamente.
Estava tudo certo. Tony experimentou uma sensa-
ção de júbilo dentro de si quando o instinto lhe disse
que tudo iria correr bem. Desceu do guindaste.
Falou com voz propositadamente baixa, segura e in-
diferente.
Esta carrinha nem sempre segue pela mesma via.
Existem muitos percursos entre a cidade e Loughton.
No entanto. este lugar fica perto de muitos deles, não
e verdade? Se não quiserem seguir via Birmingliam ou
Watford. têm de passar por aqui. Ora bem, de vez em
quando seguem por caminhos inesperados. Hoje, po-
derá muito bem ser um desses dias. Se eles não apare-
cerem, limita-te simplesmente a dar um bonus a rapa-
ziada e a mandá-la para casa, at‚ … próxima.
Jacko disse:
- Todos eles estão a par do assunto.
- Optimo. Mais alguma coisa?
Os três homens mantiveram-se calados.
Tony deu as suas instruções finais.
Todos levam máscara. E luvas. Ningu‚m fala.
Fitou cada um dos homens por sua vez, certifican-
do-se de que tinham entendido. Depois, disse:
bem, levem-me de volta.
Muito
Não houve conversa enquanto o Fiat vermelho atra-
uela que ficava
vessou as ruas estreitas e parou na r
or trás da sala de bilhar.
p
Tony saiu, depois apoiou-se … porta que dava acesso
ao banco da frente, do lado do passageiro, e falou
atrav‚s da janela aberta.
E um plano estupendo, e se o fizerem bem resul-
68
tará. Há um par de aspectos sobre os quais vocês nada
guardas de segurança, homens colocados den-
sabem,
tro da viatura. Mantenham-se calmos, procedam co-
nio deve ser, que o golpe dá resultado. - Fez uma
pausa. - E, por amor de Deus, não me disparem es-
sa maldita arma de cano curto sobre ningu‚m.
Subiu a ruela e entrou na sala de bilhar pela porta
das traseiras. Walter jogava numa das mesas. Endirei-
tou-se, mal ouviu a porta bater.
- Está tudo bem, Tony?
Tony acercou-se da janela.
Os tipos não se mexeram?
Via que o Morris azul continuava no mesmo sítio.
Não. Têm estado pr'ali a fumar que nem uns de-
salmados
E uma sorte¯, pensou Tony ®eles não disporem de
mão-de-obra suficiente para me vigiarem … noite, tal
como acontece durante o dia.¯ O acompanhamento
entre as nove e as cinco era bastante útil, pois permi-
tia-lhe arranjar álibis sem restringir seriamente as suas
actividades. Um dia destes começariam a segui-lo vin-
te e quatro horas por dia. Mas muito antes já ele teria
conhecimento do facto.
Walter apontou para a mesa com o polegar.
-Apetece-te fazer um intervalo?
Não - respondeu Tony, afastando-se da janela.
- Tive um dia cansativo.
Desceu as escadas e Walter foi atrás dele, mancando.
- Ta-ta, Walter - despediu-se Tony, saindo para a
rua.
-At‚ um dia destes, Tony. Deus te abençoe.

A sala da redacção ganhou vida repentinamente,


As oito da manhã apresentara-se silenciosa como unia
morgue, a quietude interrompida apenas por sons iria-
nimados como o matraquear do telex e o rumorejar
dos jornais que Cole folheava. Naquele momento,
três registadoras de mensagens batiam nas teclas, um
estafeta assobiava uma música pop, e um fotógrafo de
casaco de cabedal discutia determinada partida de fu-
tebol com um subeditor. Os repórteres começavam a
chegar. A maioria tinha uma rotina matinal, conforme
Cole reparara: um comprava chá, outro acendia um
cigarro, um outro abria o Sun na terceira página para
ver os nus; cada qual recorria a um hábito para me-
lhor iniciar o seu dia.
Cole achava que as pessoas faziam muito bem em
se sentar durante uns minutos, antes de deitarem mãos
ao trabalho: ajudava a criar um ambiente de ordem e
sangue-frio. Cliff Poulson, o seu chefe de redacção,
era de opinião diferente. Poulson, com os seus olhos
verdes de rã e o sotaque de Yorkshire, gostava de di-
zer: ®Não dispas o casaco, rapaz.¯ O seu deleite pelas
decisões repentinas, a sua pressa permanente e o ar
instável de bonomia criavam uma atmosfera fren‚tica.
Poulson era um tarado da velocidade. Cole não sabia
de nenhuma história que tivesse falhado uma edição
por algu‚m ter tirado um minuto para reflectir sobre
ela.
Kevin Hart já estava na redacção ia para alguns rni-
nutos. Lia o Mirror, meio sentado na beira de uma se-
cretária, com as calças do fato …s riscas a caíreríi ele-
gantemente. Cole chaniou-o.
Kevin, telefona para a Yard, se fazes favor.
O jovem pegou no telefone.
Tinha as dicas de Bertie Chieseman em cinia da sua
70
se ,cretária.,.uma boa quantidade de material transmiti
do vara ali. Cole olhou em redor. A maioria dos re-
órteres já chegara. Era tempo de p“-los a trabalhar.
p rocedeu a uma escolha entre as informações, enfian-
P e metal, entregando outras a
do algumas num espeto d
repórteres, acompanhadas por instruções breves.
- Anna, um agente da polícia meteu-se em sarilhos
na Holloway Road.... telefona ao informador mais
próximo e vê se descobres o que se passa. Se forem
bêbados, esquece. Joe, este incêndio no East End....
confirma para os bombeiros. Phillip, tens aqui um as-
salto em Chelsea. Procura a morada na lista telefóni-
ca, Kelly, para o caso de algu‚m famoso viver aí. Bar-
ney, a polícia perseguiu e prendeu um irlandês, depois
de telefonar para uma casa que fica na Oueenstown
Street, Caniden. Liga para a Yard e pergunta-lhes se
tem alguma coisa a ver com o IRA.
Um telefone interno começou a tocar e Cole aten-
deu.
-Fala Arthur Cole.
- Que tens aí para mim, Arthur?
Cole reconheceu a voz do editor das gravuras. Res-
pondeu:
- De momento parece que a notícia de primeira
página irá para a votação de ontem … noite nos Co-
muns.
- Mas isso apareceu ontem na televisão!
- Telefonaste-me para perguntares ou para dizeres
coisas?
- Se calhar mais vale mandar algu‚m a Downing
Street tirar uma fotografia actualizada … primeira-mi-
nistra. Mais alguma coisa?
- Nada que não venha nos matutinos.
- Obrigado, Arthur.
Cole desligou. Que mis‚ria, recorrer a uma notícia
de v‚spera para compor a primeira página. Estava a
fazer os possíveis para a actualizar - andavam dois
71

repórteres a ver se conseguiam alguma coisa. At‚ ali


só tinham arranjado umas fotografias de membros do
Parlamento de importância menor, mas nada de mi.
nistros.
Um repórter de meia-idade, de cachimbo na mão,
informou:
- Acabou de ligar a mulher de Mr. Poulson. Cliff
hoje não vem. Está com problemas intestinais.
Cole resmungou.
- Como ‚ que
ele os arranjou em Orpingtonl?
- Caril ao
jantar.
- Muito bem.
Aquela tinha sido bem metida, pensou Cole. O dia
anunciava-se monótono como nunca em termos de no-
tícias, e Poulson ficava em casa doente. Ainda por ci-
ma, com o assistente da redacção de f‚rias, Cole fica-
vá entregue a si mesmo.
Kevin Hart aproximou-se a secretária.
Nada da Yárd - disse. - Tem sido uma noite
perfeitamente pacata.
Cole ergueu os olhos. Hart tinha uns vinte e três
anos e era muito alto, com cabelo louro encaracolado,
que usava comprido. Cole reprimiu um estremecimen-
to de irritarão.
Isso ‚ ridículo - declarou. - A ScotIand Yá d r
nunca tem uma noite perfeitamente pacata. Que se
passa com esse Departamento de Imprensa?
pr Devíamos fazer um artigo sobre o facto: ®A
pri-
meira noite livre do crime que Londres conheceu em
mil anos¯ - brincou Hart com um sorriso.
A frivolidade incomodou Cole.
Nunca se contente com esse tipo de resposta por
parte da Yard - disse friamente.
Hart corou. Embaraçava-o ser admoestado corno se
fosse um repórter novato.
- Quer que volte a ligar para
eles?
- Não respondeu Cole,
vendo que se fizera en-
72
tender. - Quero que escreva um artigo. Ouviu falar
desse tal campo petrolífero no mar do Norte9
- Tem o nome de Shield - anuiu Hart.
- Exacto. Daqui a pouco o ministro da Energia
anunciará quem ficou com a licença para o explorar.
Escreva um artigo com o historial do caso at‚ termos
a declaração. Antecedentes, o que a licença represen-
ta para as pessoas envolvidas, em que ‚ que o minis-
tro se baseou para tomar a sua decisão. Depois, … tar-
de, podemos retirá-lo e preencher esse espaço com a
notícia a s‚rio.
Muito bem.
Hart afastou-se, em direcção … biblioteca. ®Sabe que
estão a dar-lhe uma tarefa idiota, uma esp‚cie de casti-
go, no entanto, aceita sem problemas¯, pensou Cole.
Ficou a olhar para as costas do rapaz por um momen
to. Este irritava Cole, com o seu cabelo comprido e as
suas fatiotas. Era demasiado presumido - mas, en-
fim, os repórteres precisavam de muita ousadia.
Cole p“s-se de p‚ e foi at‚ … mesa do subeditor.
O assistente do chefe de redacção tinha na sua frente
o telex com a história da passagem do decreto-lei da
Indústria e a última notícia que o pessoal de Cole
apresentara. Este espreitou-lhe por cima do ombro.
Num bloco de notas escrevera:
REBELDE DO PARLAMENTO DISSE
®JUNTEM-SE AOS LIBERAIS¯
O homem coçou a barba e olhou para cima.
- Que acha?
- Parece uma história sobre o Movimento de Li-
bertaۋO das Mulheres - disse Cole. - Detesto-a.
- Eu tamb‚m. - O subeditor rasgou a folha do
bloco, ainachucou-a e atirou-a para um cesto de pá-
P‚is metálico. Que mais novidades temos?
73

Nenhumas. Acabei de distribuir as pistas.


O barbudo acenou com a cabeça e olhou rápida
e pensativamente para o relógio que pendia do tecto,
… sua frente.
Esperemos que apareça alguma coisa de jeito pa-
ra a segunda.
Cole inclínou-se sobre ele e escreveu no bloco:
REBELDE DO PARLAMENTO DISSE
®JUNTEM-SE LIBERAIS¯
Observou:
- Faz mais sentido, mas ‚ a mesma porcaria.
O subeditor sorriu.
- Quer o lugar?
Cole voltou para a sua secretária. Annela SinIS
aproximou-se e informou:
-O incidente da Holloway Road deu em nada.
Foi um grupo de arruaceiros, não houve prisões.
Cole retorquiu:
Está bem.
Joe Barnard pousou o auscultador do telefone e
disse:
Este incêndio não teve nada de especial. Nin-
gu‚m ficou ferido.
Otiantas pessoas viviam no local? -
perguntou
:íli
Cole automaticamente.
- Dois adultos, três crianças.
- Portanto, trata-se de uma família que escapou a
morte. Escreva sobre o assunto.
Phillip Jones informou:
Parece que o apartamento assaltado pertence a
Nicholas Crost, um violinista famoso.
óptimo - observou Cole. - Liga para o infor-
mador de Chelsea e descobre o que levarani.
Já o fiz - disse Phillip com uma careta. - Falta
um Stradivarius.
Cole sorriu.
- Boa, rapaz. Escreve, depois dá um pulo at‚ lá e
tenta entrevistar o maestro pesaroso.
o telefone tocou e Cole atendeu.
Embora não o tivesse admitido, estava a retirar um
gozo enorme da situação.

74

NOVE DA MANHŽ
9
noTim Fitzpeterson já não tinha lágrimas para chorar,
entanto, o pranto não ajudara. Deitado na cama,
enterrara o rosto na almofada encharcada. Mover-se
era uma agonia. Tentava não pensar em nada, a sua
mente a rejeitar pensamentos qual estalajadeira com a
casa … cunha. A certa altura, o seu c‚rebro desligou
por completo, permitindo-lhe dormitar por alguns mo-
mentos, por‚m, a fuga … dor e ao desespero foi breve
e voltou a acordar.
Não se levantou da cama, porque não havia nada
que quisesse encarar. A única coisa em que podia
pensar era na promessa de felicidade que tão falsa se
mostrara. Cox tivera razão ao dizer tão grosseiramen-
te: ®Melhor pedaço de mulher nunca poderá encon-
trar.¯ Tim não conseguia banir por completo as recor-
dações repentinas do corpo esguio e ágil da jovem;
elas tinham agora, por‚m, um gosto pavorosamente
amargo. Ela mostrara-lhe o Paraíso e a seguir fechara-
-lhe a porta na cara. Como não podia deixar de ser,
todo o êxtase dela não passara de simulação; mas na-
da de fingido houvera no prazer de Tim. Há poucas
ho as atrás pensara em encetar vida nova, realçada
pelo tipo de amor sexual de cuja existência já se es-
quecera. Naquele momento tinha dificuldade em ver
qualquer sent-ido no futuro.
77

O barulho que as crianças faziam no pátio de re-


creio que ficava junto … casa, gritando, guinchando e
barafustando; e ele invejou-lhes a trivialidade total
das suas vidas. Relembrou os seus tempos de estudan-
te, com o seu casaco azul-escuro e os calções cinzen-
tos, percorrendo cerca de cinco quilómetros diários
pelos campos de Dorset, a fim de frequentar a escola
primária de classe única. Fora o aluno mais brilhante
que alguma vez tinham tido, o que não lhe trazia
grande m‚rito. No entanto, ensinaram-lhe aritm‚tica
e arranjaram-lhe lugar na escola secundária, o que pa-
ra ele fora o importante.
Fora na escola secundária que desabrochara, recor-
dou. Tornou-se líder do grupo, aquele que organizava
jogos no recreio e rebeliões nas aulas. At‚ passar a
ter de usar óculos.
Ali estava: estivera a tentar lembrar-se de outra al-
tura da sua vida em que tivesse sentido um desespero
semelhante ao que experimentava naquele momento;
e já descobrira: fora no primeiro dia em que levara
óculos para a escola. Primeiro, os membros do seu
grupo tinham-se mostrado admirados, depois, diverti-
dos, a seguir, trocistas. Na hora do recreio, era segui-
do por uma chusma que cantarolava ®Quatro-Olhos¯.
Depois do almoço, tentara organizar um jogo de fute-
bol, por‚m, John WilIcott dissera: ®Não tens nada a ver
com o jogo.¯ Tim guardara os óculos no estojo e dera
um soco na cara de Willcott; mas este era corpulento,
e Tim, que normalmente dominava atrav‚s da força
da sua personalidade, não era um combatente. Aca-
bou a estancar o sangue do nariz no vestiário, enquan-
to Willcott escolhia as equipas.
Tentou recuperar o prestígio durante a aula de His-
tória, atirando pap‚is sujos de tinta a Willcott, inesino
no nariz de Miss Percival, conhecida pela Velha Percy-
Mas a normalmente tolerante Percy decidiu assumir
uma posição de disciplina nesse dia, e Tim foi manda-
78
do ao director para receber seis reguadas das boas.
No caminho de casa, teve nova briga, perdeu nova-
mente e rasgou o casaco; a mãe foi-lhe ao mealheiro
tirar dinheiro para um novo, dinheiro que Tim andava
a poupar para comprar um rádio, o que o fez retroce-
der seis meses. Foi o dia mais negro na vida do jovem
Tini, e as suas qualidades de liderança mantiveram-
-se reprimidas at‚ ir para a faculdade e entrar para o
partido.
Urna batalha perdida, um casaco rasgado e seis re-
guadas das boas: quem lhe dera problemas desses na-
quele momento. Ouviu-se um apito no pátio de re-
creio do lado de fora e o barulho das crianças cessou
abruptamente. ®Eu podia acabar com os meus proble-
mas com a mesma rapidez¯, pensou Tim; e a ideia era
tentadora.
®Quais eram os objectivos da minha vida ontem?¯,
interrogou-se. ®Bom trabalho, a minha reputação, um
Governo bem sucedido; hoje nada disto parece ter
sentido.¯ O apito da escola significava que já passava
das nove da manhã. Tim devia presidir a uma reunião
da comissão encarregada de discutir a produtividade
de diferentes tipos de centrais nucleares. ®Como pude
interessar-me por algo tão desprovido de sentido?¯
Pensou no projecto que acarinhava particularmente,
uma previsão das necessidades de energia da indústria
britânica dali at‚ ao ano dois mil. Deixara de sentir o
entusiasmo habitual. Pensou nas filhas e abominou a
ideia de as encarar. Tudo perdera o sentido na sua vi-
da. Que interessava quem ganhasse as próximas elei-
ções9 Os destinos da Grã-Bretanha eram traçados por
forças alheias ao controlo dos seus dirigentes. Sempre
soubera tratar-se de um jogo, no entanto, deixara de
ter vontade de ganhar os prêmios.
Não tinha ningu‚m com quem pudesse desabafar,
ningu‚m. Imaginou a conversa com a mulher: ®Queri-
da, fui tolo e infiel. Deixei-me seduzir por uma prosti-
79

M 77

tuta, uma rapariga bela e flexível, e chantageado ... ¯


Júlia nunca mais o poderia ver. Não tinha dificuldade
em imaginar o seu rosto, adoptando uma expressão rí-
gida de asco, ao mesmo tempo que se alheava de
qualquer contacto emocional. Ele estenderia a mão
para ela, que lhe diria: ®Não me toques.¯ Não, não
odia contar nada a Júlia; não at‚ ter a certeza de que
p
tinha as próprias chagas s aradas - e não lhe parecia
que conseguisse sobreviver tanto tempo.
Mais algu‚m? Os colegas do Gabinete diriam:
... lamento profundamente ... ¯,
®Santo Deus, caro Tim
e começariam imediatamente a calcular a posição de
descr‚dito em que ele ficaria quando o acontecido fosse
do domínio público. Evitariam associar-se a algo que
ele, e ser vistos na sua
tivesse sido patrocinado por
companhia com demasiada frequência; poderiam at‚
fazer um discurso moralista para consolidar creden-
ciais puritanas. Não os odiava pelo que sabia que fa-
riam: o seu prognóstico baseava-se no que ele faria
em tal situação.
O seu agente tornara-se quase um amigo, em uma
ou duas ocasiões. Mas o homem era jovem; não sabe
ria dizer at‚ que ponto a fidelidade era importante
num casamento de vinte anos; recomendaria, cinica-
mente, que encobrisse por completo o sucedido e ig-
noraria os danos já infligidos na alma de um homerri-
Então e sua irmã? Mulher simplória, casada com
um carpinteiro, sempre tivera uma certa inveja de
Tim. Chafurdaria na questão. Tim não podia sequer
rli!
pensar nessa hipótese.
seu pai morrera, a mãe estava senil. Teria
assim tão
i poucos amigos? Que fizera ele da sua vida para na-
quele momento se ver sem ningu‚m que o amasse nos
bons e nos maus momentos? Talvez se desse o caso de
ser um tipo de compromisso em que era necessária
uma contrapartida, e ele tivera sempre o cuidado de
não ter ningu‚m que não fosse capaz de abandonar
em caso de necessidade.
80
Não tinha qualquer apoio a que recorrer. Apenas
lhe restavam os seus próprios recursos. ®Que faze-
rnos¯, pensou, ®quando perdemos umas eleições por
unia maioria esmagadora de votos? � reagrupar, reco
lher o cenário para os anos de oposição, trabalhando
nos bastidores, utilizando a raiva e a desilusão como
estímulo para a luta.¯ Olhou para dentro de si em
busca de coragem, ódio e amargura que lhe permitis-
sem não aceitar a vitória de Tony Cox; mas encontrou
apenas cobardia e rancor. Já noutras ocasiões perdera
batalhas e sofrera humilhações, mas era um homem, e
os homens têm força para continuar a lutar, ou não
seria?
d A sua força viera-lhe sempre de uma certa imagem
e si próprio: um homem civilizado, estável, de con-
fiança, leal e corajoso; capaz de ganhar com orgulho e
perder com elegância. Tony Cox mostrara-lhe uma
imagem nova de si próprio: era suficientemente ing‚-
nuo para se deixar seduzir por uma mulher leviana;
suficientemente fraco para trair a confiança nele de
positada, perante a primeira ameaça de chantagem;
suficientemente assustado para rastejar pelo chão e
implorar misericórdia.
Esfregou os olhos com força, mas a imagem conti-
nuava a invadir-lhe a mente. Ficaria com ele para o
resto da vida.
Mas não seria preciso prolongar a situação por mais
tempo.
Por fim, moveu-se. Sentou-se na beira da cama, em
seguida POs-se de p‚. Havia sangue, sangue seu, no
lençol, uma recordação vergonhosa. O Sol dera a vol-
ta ao c‚u e brilhava agora fortemente atrav‚s da jane-
Ia. Tim teria gostado de fechá-la, por‚m o esforço se-
ria excessivo. Atravessou, vacilante, o quarto, passou
pela sala de estar e entrou na cozinha. A chaleira e a
caixa de chá continuavam no mesmo sítio onde ela as
dlixara depois de preparar a bebida. Deixara cair,
81

descuidadamente, algumas folhas em cima da cobertura


de fórmica do balcão, nem sequer se dando ao cuidado
til de guardar novamente a garrafa do leite no pequeno
fe-
frigorífico. O estojo de primeiros socorros estava
chado … chave num armário alto, onde as crianças não
podiam chegar. Tim arrastou um banco pelo chão co-
berto de tijoleira Marley e subiu para cima do mesmo,
A chave encontrava-se no topo do armário. Abriu-o e
tirou uma velha caixa de biscoitos com a imagem da
catedral de Durliam, na tampa.
Desceu do banco e pousou a lata. Dentro desta lia-
via compressas, um rolo de ligadura, tesouras, creme
X
anti-s‚ptico, um medicamento para os desarranjos in-
testinais infantis, um tubo de Ambre Solaire desorde-
nado e um frasco, dos grandes, cheio de soporíferos.
Tirou os comprimidos e voltou a colocar a tampa. De-
pois, procurou um copo noutro armário.
Ele continuava a não fazer as coisas: a não guardar
o leite, a não limpar as folhas de chá espalhadas, a
não colocar a lata de primeiros socorros no seu sítio,
a não fechar a porta do armário da loiça. Não havia
necessidade, lembrava a si mesmo constantemente.
Levou o copo e os comprimidos para a sala de es-
tar, colocando-os em cima da sua secretária. Esta en-
contrava-se vazia, apenas com o telefone: tinha o há-
bito de guardar tudo, depois de terminar o trabalho.
Abriu o armário que ficava por baixo do televisor.
Fora ali que guardara as bebidas que planeara ofere-
cer … jovem. Havia uísque, gim, xerez seco, um bom
brande, e uma garrafa de eau-de-vie de prunes' por
abrir, que algu‚m lhe trouxera de Dordogne. Tim es-
colheu o gim, embora não o apreciasse. da
Encheu parte do seu copo que estava em cima
secretária, depois sentou-se na cadeira de costas di-
reitas.

Em francês no original - aguardente de ameixas. (N. da T)


J 1!
82
Não dispunha da força de vontade necessária para
esperar, talvez anos, pela vingança que lhe restituiria
o arnor-próprio. Contudo, naquele momento n@…0 @o-
dia ferir Cox sem infringir danos piores a si
proprio.
Denunciar Cox seria denunciar Tim.
Mas a morte não trazia sofrimento.
Ele podia destruir Cox, e depois morrer.
Naquelas circunstâncias, parecia o único procedi-
niento a tomar.

10

Derek Hamilton era esperado na estação de Water-


loo por outro motorista, desta vez num Jaguar.
O Rolls Royce da presidência desaparecera na onda
de contenção de despesas: malogradamente, os sindi-
catos não tinham apreciado o gesto. O motorista le-
vou a mão ao bon‚ e abriu a porta, pela qual Hamil-
ton entrou sem proferir palavra.
Enquanto o carro arrancava, tomou uma decisão.
Não iria directamente para o escritório. Ordenou:
Leve-me at‚ Nathaniel Fett. Sabe onde fica?
O motorista respondeu:
-Sei sim, senhor.
Atravessaram a ponte Waterloo e viraram pela Ald-
wich, em direcção … cidade. Hamilton e Fett tinham
andado juntos na escola de Westminster: Nathaniel
Fett s‚nior certificara-se de que, naquele estabeleci-
mento, seu filho não sofreria com o facto de ser ju-
deu, e Lorde Hamilton acreditara que a escola não
transformaria o seu filho num toleirão da alta-roda -
frase de Sua Senhoria.
Os dois rapazes tinham antecedentes superficial-
mente similares. Ambos possuíam riqueza, pais dinâ-
83
micos e mães bonitas; ambos pertenciam a famílias in-
telectuais no seio das quais os políticos conviviam;
ambos cresceram rodeados de pinturas de qualidade e
livros incontáveis. No entanto, enquanto a amizade
aumentava e os dois jovens iam para Oxford - Fett
para Baffiol e Hamilton para Magdalen - a casa Ha-
milton sofrera com a comparação. Derek passou a
considerar o intelecto do seu proprio pai como banal,
O velho Fett não hesitava em falar de pintura abstrac-
ta, do comunismo e do jazz be-pop, para depois os
por de rastos com uma precisão que descia ao porme-
nor mais ínfimo. Lorde Hamilton defendia os mesmos
pontos de vista conservadores, por‚m, expressava-os
com os clich‚s retumbantes de um discurso da Câmara
dos Lordes.
No banco de trás do automóvel, Derek sorriu de si
para si. Fora duro para com seu pai; talvez fosse cos-
tume dos filhos. Poucos homens tinham entendido
mais de escaramuças políticas: a argúcia do velho con-
feria-lhe verdadeiro poder, enquanto o pai de Natha-
niel fora demasiado sensato para alguma vez exercer
verdadeira influência em questões de Estado.
Nathaniel herdara essa sabedoria e fizera carreira
com ela. A firma de corretagem, que fora dirigida por
seis gerações de filhos varões com o nome Nathaniel
Fett, fora transformada, na s‚tima, num banco comer-
cial. As pessoas sempre tinham procurado Nathaniel
em busca de conselhos, mesmo na escola. Agora, for-
necia directivas sobre fusões de empresas, assuntos li-
gados a acções e controlo empresarial.
O automóvel encostou ao passeio. Hamilton pediu:
- Espere por mim, se faz favor.
Os escritórios de Nathaniel Fett não eram impres-
sionantes - a firma não precisava de provar a sua ri-
queza. Na rua, ao lado de uma porta próxima do
Bank of England, havia uma pequena placa identifica-
dora. A entrada estava ladeada por uma loja de san-
84
duíches num lado e por uma tabacaria no outro. Qual-
quer observador casual poderia tomá-la por uma
seguradora ou por uma companhia de navegação pe-
quena e não muito próspera; mas não saberia at‚ que
ponto a dita firma ocupava, em termos de exclusivida-
de, cada lado do edifício.
O interior era confortável, em vez de opulento, com
ar condicionado, iluminação indirecta e carpetas que
apresentavam bom uso e deixavam um pequeno espaço
junto …s.paredes. O mesmo observador casual poderia
ter imaginado que os quadros que pendiam das paredes
eram caros. Estaria certo e errado: eram caros mas
não pendiam das paredes. Tinham sido incrustados
nos tijolos, por trás de vidro inquebrável - somente
as molduras falsas pendiam, de facto, por cima do pa-
pel de parede.
Hamilton foi imediatamente acompanhado at‚ ao
gabinete de Fett, que ficava no r‚s-do-chão. Nathaniel
lia The Financial Times, sentado numa poltrona de
braços. Levantou-se para apertar a mão ao amigo.
Hamilton observou:
- Nunca te vi sentado a essa secretária. � só para
decoração?
- Senta-te, Derek. Chá, caf‚, xerez?
- Um copo de leite, se fazes favor.
- Se não se importa, Valerie - disse Fett … funcio-
nária, que saiu do gabinete. - Quanto … secretária...
não, nunca a utilizo. Tudo o que escrevo ‚ ditado; na-
da do que leio ‚ demasiado pesado para não poder se-
gurar com as mãos; para que precisaria, pois, de me
sentar a uma secretária qual escrivão de Dickens?
- Portanto, ‚ para decoração.
- Está aqui há mais tempo do que eu. Demasiado
grande para caber pela porta e demasiado valiosa para
ser desmantelada. Estou convencido de que construí-
ram a casa … volta dela.
Hamilton sorriu. Valerie trouxe o seu leite e voltou
85

a sair. Bebeu um gole e examinou o amigo. Fett e o


u escritório estavam bem um para outro: ambos
se
mas não diminutos, escuros mas não
eram pequenos
sombrios, descontraídos mas sem caírem na frivolida-
de. O homem usava óculos de aros grossos e brilhanti-
na no cabelo. Ostentava uma gravata clássica, marca
de aceitabilidade social: era, nele, o único indício da
ua condição de judeu, pensou Hamilton, fitando-o de
s
esguelha.
Fett tirou os óculos e inquiriu:
- Andaste a ler acerca de mim?
- Só superficialmente. Uma reacção previsível. Dez
anos atrás, resultados como estes numa empresa como
a Hamilton teriam feito ondas que iriam desde audito-
rias dos accionistas a preços do zinco. Hoje e apenas
mais um conglomerado em crise. A situação ‚ defini-
da por uma palavra: recessão.
Hamilton suspirou.
- Porque nos prestamos a isto, Nathaniel?
- Não percebi - disse Fett, surpreendido.
ù amigo encolheu os ombros.
Porque trabalhamos de mais, dormimos pouco,
arriscamos fortunas?
E arranjamos úlceras.
Fett sorriu, no entanto, os seus modos tinham sofrido
uma mudança imperceptível. Os olhos estreitavam-se-
-o pelo cabelo
-lhe por detrás dos óculos e passou a ma
eriçado da nuca, num gesto que Hamilton reconheceu
oceder para o seu
como defensivo. Fett estava a retr
apel de conselheiro prudente, de consultor amigo
P
com um ponto de vista objectivo. A sua resposta, po-
r‚m, foi estudadamente indiferente.
Para fazer dinheiro. Que outra razão havia de
ser?
Hamilton sacudiu a cabeça. O amigo tinha senipre
de ser aliciado duas vezes antes de entrar a fundo na
questão.
86
Simples princípio económico - retorquiu zom-
--- mente. - Se tivesse vendido a minha herança
beteira
vestido o dinheiro nos Correios, teria lucrado
e ín
niais. A maioria das pessoas possuidoras de grandes
tie,gocios viveriam muito mais confortavelmente se o
fizessem. Porque conservaremos nós as nossas fortu-
tentando ainda expandi-Ias? Será por ganância,
nas,
poder ou espírito de aventura? Seremos todos jogado-
res compulsivos?
Fett observou:
Aposto em como Ellen andou a dizer-te tudo isso.
Hamilton riu.
Tens razão, mas está a parecer-me que me con-
s ideras incapaz de tais reflexões por minha própria
conta.
-Oh, não duvido de que sejas dessa opinião.
Acontece apenas que Ellen tem uma maneira muito
dela para expressar o que tu pensas. Seja como for,
não me estarias aqui a repetir essas coisas se não ti-
vesses sido tocado por elas. - Fez uma pausa. - De-
rek, tem cuidado para não perderes Ellen.
Os olhares de ambos entrecruzaram-se por um mo-
mento, depois cada qual desviou o seu. Fez se silên-
cio. Tinham chegado ao limite da intimidade que a
amizade entre ambos permitia.
A certa altura, Fett disse:
- � possível que apareça uma oferta insolente nos
próximos dias.
Hamilton mostrou-se surpreendido.
- Porquê?
- Algu‚m poderá pensar que pode deitar-te a mão
por um preço de pechincha, enquanto andas deprimi-
do e em pânico com resultados provisórios.
- Nesse caso, que aconselharias? - perguntou Ha-
rniltOn Pensativamente.
Depende da oferta. Mas provavelmente, diria
®Espera¯. Hoje devemos saber' se ganhaste a licença
do campo petrolífero.
87

Lençol.
Isso. Se a ganhares, a s tuas acções ficarão mais
fortes.
Não deixaremos de continuar a ter poucas pers-
pectivas de lucros.
Mas seria o material ideal para uma valorização
dos bens.
Interessante - reflectiu Hamilton. - Um joga-
dor faria a oferta hoje, antes de o ministro anunciar o
res ultado. Um oportunista fá-lo-ia amanhã, se ganhar-
mos a licença. Um investidor genuíno esperaria pela
próxima semana.
E um homem sensato diria não a todos eles.
Hamilton sorriu.
- O dinheiro não ‚ tudo, Nathaniel.
- Santo Deus!
� assim tão her‚tico9
De forma alguma. - Fett estava divertido e os
olhos brilhavam-lhe por detrás dos óculos. - Há anos
que o sei. O que me surpreende ‚ que tu o digas.
Tamb‚m fico admirado comigo mesmo. - Ha-
milton fez uma pausa. - Por uma questão de curiosi-
dade: achas que ganharemos a licença?
Não te sei dizer. - O rosto do corretor adoptou
de novo uma expressão indecifrável. - Depende de o
J ministro achar que deva ir para uma empresa já
lucra-
tiva, como um bónus, ou para uma deficitária, como
um cinto de salvação.
Hum. Desconfio que não será para nenhuma das
duas. Lembra-te, nós só encabeçamos o grupo econo-
mico; o que conta ‚ o conjunto. A secção Hamilton,
em controlo, proporciona contactos na City e perícia
empresarial. Nós ‚ que arranjaremos o dinheiro para
o desenvolvimento, em vez de o fornecermos do nosso
próprio bolso. No grupo, há outros que oferecem CO
nhecímentos de engenharia, experiência nas questões
ligadas ao petróleo, facilidades de mercado, e daí por
diante.
88
Portanto tens boas hipóteses.
-laniilton voltou a sorrir.
- Sócrates.
- Porquê?
- Ele fez sempre com que as pessoas respondes-
sern …s suas próprias perguntas. - Hamilton levantou
o físico corpulento da cadeira. - Tenho de ir.
Fett acompanhou o amigo at‚ … porta.
- Derek, quanto a Ellen... espero que não te im-
portes que te tenha dito...
Não. - Apertaram as mãos. - Considero a tua
opinião muito importante.
Fett anuiu e abriu a porta.
Faças o que fizeres, não entres em panico.
Certíssimo, meu.
Quando o amigo saiu, Nathaniel apercebeu-se de
que não utilizava aquela expressão há trinta anos.

Dois elementos da polícia motorizada estacionaram


as respectivas máquinas de cada um dos lados da es-
trada das traseiras do banco. Um deles apresentou um
cartão de identificação e espalmou-o contra o vidro do
POstigo ao lado da porta. O homem que se encontrava
no lado de dentro leu o cartão cuidadosamente, de-
Pois falou atrav‚s de um telefone vermelho.
Unia carrinha preta foi conduzido para o meio das
duas motorizadas, ficando com a frentre virada para a
Porta. As janelas laterais da cabina estavam protegi-
das, pelo lado de dentro, por uma rede metálica, e os
dois homens que seguiam no interior da viatura usa-
vam uniformes de tipo policial e capacetes anticho-
com viseiras transparentes. O corpo da carrinha
89

não dispunha de janelas, apesar de ali se encontrar


um terceiro homem.
O comboio era completado por mais duas motoriza-
das, que seguiam atrás da carrinha.
A porta de aço do edifício subiu suave e silenciosa-
mente, deixando a carrinha entrar. Dava para um tú-
nel curto, fortemente iluminado por lâmpadas fluores-
centes. Ao fundo havia outra porta, igual … primeira,
a bloquear a saída. A viatura parou e a porta de trás
fechou-se. Os polícias motorizados permaneceram na
rua.
O motorista da carrinha baixou a janela e falou,
fone colocado
atrav‚s da rede metálica, para um micro
num suporte.
Bom dia - cumprimentou alegremente.
Numa das paredes do túnel havia um enorme vidro
espalhado. Por trás da janela, que era … prova de ba-
la, um indivíduo de olhos brilhantes e em mangas de
camisa falou por outro microfone.
- Palavra de código, por favor.
ù motorista, cujo nome era Ron Biggins, respon-
deu:
- Obadiali.
O controlador que organizara a deslocarão daquele
dia era diácono numa igreja baptista.
O homem em mangas de camisa carregou num botão
vermelho que se via na parede pintada de branco atrás
de si, e a segunda porta de aço subiu. Ron Biggins
murmurou:
Estupor mais antipático.
fez avançar a carrinha. A porta de aço voltou a
E
fechar-se atrás de si.
Encontrava-se agora numa sala desprovida de jane-
Ias, nas profundezas do edifício. A maior parte do es-
paço era ocupado por uma mesa giratória. Coni ex-
cepção desta, toda a área se encontrava vazia. Rol'
dirigiu cuidadosamente a carrinha at‚ … trilha marcado
90
,o chão e depois desligou o motor. A mesa giratória
sofreu um impulso, e a carrinha executou, lentamen-
te, uni angulo de 180 graus, parando em seguida.
As portas traseiras da carrinha estavam agora volta-
das para o elevador, na parede oposta. Enquanto Ron
observava a manobra pelo seu retrovisor lateral, as
portas do elevador abriram-se e deixaram entrar um
homem de óculos, de casaco preto e calças …s riscas.
Na mão trazia uma chave, empunhando a mesma co-
mo se se tratasse de uma lanterna ou uma arma. Des-
trancou a porta das traseiras da carrinha, que, a se-
guir, foi aberta do lado de dentro. O terceiro guarda
apeou-se.
Do elevador saíram mais homens, trazendo consigo
uma enorme caixa metálica do tamanho de uma mala
de viagem. Colocaram-na dentro da carrinha e volta-
ram para trás, a fim de irem buscar outras.
Ron olhou em redor- A sala estava nua, com excep-
ção das duas entradas, três fiadas de luzes fluorescentes
e um ventilador de ar condicionado. Era de pequenas
dimensões e não chegava exactamente a ser rectangu-
lar. Ron calculou que poucas das pessoas que traba-
lhavam no banco soubessem sequer da sua existência.
Presumivelmente o elevador ia só at‚ … caixa-forte
subterrânea, e a porta de aço que deitava para a rua
não tinha, aparentemente, ligação com a entrada prin-
cipal, que ficava no outro lado da esquina.
O guarda que viera no interior do veículo, Stephen
Yotinger, contornou a carrinha pela esquerda; e o aju-
dante de motorista de Ron, Max Fitch, baixou a jane-
la do seu lado.
Stephen observou:
i
- Ho'e ‚ dos grandes.
- A nós tanto faz - retorquiu Ron asperamente.
Olhou para trás pelo espelho retrovisor. A carga
terminara.
Stephen disse a Max:
91

Aqui o capataz gosta de filmes de cowboys.


Não me digas.
Max sentiu curiosidade. Era a primeira vez que ali
ia e o funcionário de calças …s riscas não tinha pro-
John Wayne.
priamente ar de fã de
- Como ‚ que sabes? - perguntou.
- Repara. Lá vem ele.
ù funcionário acercou-se da janela de Ron e or-
denou:
-Toca a andar com eles daqui pra fora!
um ruído e tentou abafar o ri-
Max deixou escapar
so. Stephen deu a volta … carrinha e entrou por
tras.
O funcionário trancou as portas.
Os três empregados do banco desapareceram den-
tro do elevador. Durante dois ou três minutos, nada
aconteceu; depois a porta de aço ergueu-se. Ron p“s
motor a trabalhar e guiou at‚ ao túnel. Aguardaram
o
que a porta interior se fechasse e a exterior se
abrisse.
Pouco antes de se porem a caminho, Max disse pelo
microfone: ®Risonho¯.
Adeusinho,
A carrinha saiu para a rua. A escolta mo torizada
Tomaram as suas posições, duas motos
estava pronta.
na frente e duas atrás, e o comboio rumou a leste.
Ao chegar a uma vasta ramificação a leste de Lon-
Mi
dres, a carrinha virou para a A11. Foi observada por
um homem corpulento envergando um sobretudo cin-
zento de gola de veludo, que se dirigiu, de
imediato,
para uma cabina telefónica.
Max Fitch comentou:
-Adivinha quem eu acabei de ver agora mesmo,
Não faço ideia.
Tony Cox.
O rosto de Ron manteve-se inexpressivo.
- Quem ‚ ele de especial?
- Foi pugilista nos seus tempos. Dos bons, sem dú-
vida. Vi-o derrotar Kid Vittorio em Bethrial Greell
92
Baths, mais ou menos há uns dez anos. Era um rapaz
dos diabos.
O que Max sempre desejara ser era detective, por‚m,
reprovara nos testes para a polícia dos serviços secretos,
o ando antes pela segurança. Lia muita ficção policial
pt
e, consequentemente, estava convencido de que a ariria
mais potente da Scofiand Yard era a dedução lógica.
Em casa fazia coisas como encontrar uma beata man-
chada de bâton no cinzeiro e anunciar, pomposamen-
te, que tinha razões para crer que Mrs. Asliford, a vi-
zinha do lado, estivera ali.
Inq@ieto, agitou-se no assento.
E naquelas caixas que eles guardam as notas ve-
lhas, não ‚?
� - retorquiu Ron.
Portanto, devemos ir a caminho da fábrica de
destruição que fica no Essex - declarou Max com or-
gulho. - Certo, Ron?
Ron ia a olhar fixamente para os motociclistas que
seguiam … frente da carrinha. Como elemento mais
velho do grupo, era o único que estava a par do desti-
no que levavam. Mas não ia a pensar no caminho, no
emprego ou sequer em Tony Cox, o ex-pugilista. Ten-
tava perceber por que razão a sua filha mais velha se
apaixonara or um hippie.
p

12
sOuO escritório de Felix Laski em Poultry não exibia o
nome em parte alguma. Era um edifício bizarro,
que se erguia ombro a ombro com dois outros de con-
cep€ão arquitectónica diferente. Se tivesse conseguido
a
licença para o deitar abaixo e, no seu lugar, cons-
truir uni arranha-c‚us, poderia ter feito milhões. Em
93

vez disso, erguia-se como um exemplo da maneira co-


mo a sua riqueza se encontrava preservada. Mas reco-
nhecia que, a longo prazo, grandes pressões retira-
riam o travão …s restrições do planeamento; e quando
se tratava de negócios, era um homem paciente.
Quase todos os pr‚dios estavam subalugados. A maio-
ria dos inquilinos era constituída por bancos estrangei-
ros menores, que precisavam de ter morada próxima
da Threadneedie Street, e os seus nomes estavam bem
… vista. As pessoas propendiam a presumir que Laski
possuía interesses nos bancos, e este encorajava o er-
ro de todas as maneiras ao seu alcance, pouco faltan-
do para a mentira descarada. Al‚m disso, um dos
bancos era, de facto, propriedade sua.
O mobiliário que decorava o interior era adequado
mas barato: máquinas de escrever antigas e pesadas,
armários de arquivo antiquados, secretárias em segun-
da mão e a alcatifa quase no fio. A semelhança de to-
dos os homens de meia-idade bem sucedidos na vida,
Laski gostava de explicar os seus feitos servindo-se de
aforismos, dos quais um dos preferidos era: ®Eu nun-
ca gasto dinheiro. Invisto-o.¯ Correspondia mais …
verdade do que a maioria dos ditos do gênero. A úni-
ca casa que possuía, uma pequena mansão em Kent,
fora-se valorizando desde que a adquirira, pouco de-
pois da guerra; as suas refeições eram, frequentemen-
te, dispendiosos encontros de negócios, por conta da
firma,1para fins comerciais; at‚ mesmo os quadros quc
possuía - mantidos num cofre, não na parede - ti-
nham sido comprados porque o seu negociante de arte
afirmara que se valorizariam. Para ele, o dinheiro era
como as notas de brincar do jogo do Monopólio: que-
ria-as, não pelo que pudessem comprar, mas porque
eram precisas para o jogo.
Ainda assim, o seu estilo de vida era desafogado.
Um professor de instrução primária, a esposa ou uln
operário agrícola considerariam que vivia num luxo
imperdoável.
94
A sala que utilizava como seu gabinete pessoal era
de pequenas dimensões. Tinha uma secretária com
três telefones, uma cadeira giratória atrás desta, mais
duas cadeiras para visitas, e um sofá comprido, encos-
tado … parede. A estante ao lado da parede do cofre
exibia fileiras de pesados volumes versando impostos
e legislação ligados … empresa. Era uma sala desprovi-
da de personalidade: não tinha fotografias de seres
armados sobre a secretária, nenhum quadro na parede,
nenhum suporte de plástico idiota para caneta, ofere-
cido por algum neto bem-intencionado, nenhum cin-
zeiro trazido de Clovelly ou roubado no Hilton.
A secretária de Laski era uma rapariga gorda e efi-
ciente que usava as saias demasiado curtas. Era fre-
quente ele dizer …s pessoas: ®Ouando andaram a distri-
buir sex-appeal, Carol estavam noutro lado qualquer a
banquetear-se com uma dose extra de miolos.¯ Era
uma boa piada, uma piada inglesa, do tipo das que os
directores contavam uns aos outros no refeitório dos
executivos. Carol chegara …s nove e vinte e encontrara
o tabuleiro das ®saídas¯ do patrão cheio de trabalho
que ali não estivera na noite anterior. Era assim que
Laski gostava de agir: impressionava o pessoal e aju-
dava a combater a inveja. Carol só tocou nos pap‚is
depois de lhe preparar o caf‚. Laski tamb‚m aprecia-
va esse hábito.
Encontrava-se sentado no sofá, escondido atrás do
Times, com o caf‚ … mão, sobre o braço da cadeira,
quando Ellen Hamilton entrou.
Fechou a porta silenciosamente e atravessou a sala
na ponta dos p‚s, at‚ chegar junto dele e baixar-lhe
O jornal, fitando-o. A agitação súbita fê-lo sobressal-
tar-se.
Eflen disse:
- Mr. Laski.
Laski exclamou:
Mrs. Hamilton!
95

Ellen ergueu a saia at‚ … cintura e pediu:


Dá-me um beijo de bons-dias.
Por baixo da saia trazia umas ligas de meias … moda
antiga, e de cuecas nem sinaL Laski inclinou-se para a
frente e esfregou o rosto no cabelo púbico encaracola-
do e bem cheiroso. O coração começou a bater-lhe
um pouco mais depressa e sentiu-se deliciosamente
perverso, tal como lhe acontecera quando beijara, pe-
Ia p vulva de uma mulher.
rimeira vez, a
Recostou-se e olhou para ela.
Aquilo que mais me agrada em ti ‚ a maneira
como fazes com que o sexo pareça obsceno - obser-
VOU.
Dobrou o jornal e atirou-o para o chão.
Ellen baixou a saia e disse:
� que …s vezes fico cheia de apetites.
Laski sorriu com ar sabedor e deixou que os olhos
lhe percorressem o corpo. Ela tinha perto de cinquen-
ta anos, era muito esguia e senhora de seios pequenos
Ii!í
e pontiagudos. A pele, que o processo de envelheci-
mento começara já a marcar, recorria a um bronzeado
profundo por ela cuidadosamente preservado durante
todo o Inverno graças a uma lâmpada de raios
ultra-
M
violetas. Tinha o cabelo negro, liso, e com um corte
excelente; e os cabelos grisalhos, que apareciam de
L!
tempos a tempos, eram rapidamente
obliterados num
i: q
dispendioso cabeleireiro de Knightbridge. Naquele
dia, envergava uma fatiota em tom de creme: muito
tí-lhe
gante, muito cara e muito britânica. Ele enfio
ele
a mão pela saia de confecção impecável, percorrendo
-lhe o interior da coxa. Os seus dedos tactearam, COM
intimidade insolente, a região entre as nádegas. Per-
guntou a si mesmo se algu‚m acreditaria que a reser-
vada esposa do ilustre Derek Hamilton se passeava
sem cueca e
s, precisamente para que F'Iix Laski pudes
se apalpar-lhe o traseiro quando muito bem lhe apete-
cesse.
96
Ellen contorceu-se de prazer, depois afastou-se li-
geiraniente e sentou-se ao lado dele, no sofá onde,
dura nte os últimos meses, lhe satisfizera algumas das
fantasias sexuais mais bizarras.
A intenção dele fora tornar Mrs. Hamilton uma
personagem menor no seu grande cenário, por‚m, ela
acabara por se transformar num bónus deveras agra-
dável.
Conhecera-a numa recepção ao ar livre. Os anfitriões
eram amigos dos Hamilton, não seus; no entanto,
conseguira um convite, simulando ter interesses co-
marciais em comum com os convidados do anfitrião,
uríi grupo de t‚cnicos ligados … engenharia. Estava um
dia quente de Julho. As mulheres usavam vestidos de
Verão, leves, e os homens, casacos de linho; Laski en-
vergava um fato branco. A sua figura alta e distinta,
assim como o ar vagamente estrangeiro, fazia sucesso,
e ele tinha a noção do facto.
Havia jogo de críquete para os convidados mais ve-
lhos, t‚nis para a gente nova e piscina para as crian-
ças. Os anfitriões mantinham constante o fluxo de
champanhe e morangos com chantifiy. Laski, que se
informara devidamente acerca do anfitrião - incluin-
do as suas ambições -, sabia que dificilmente poderia
suportar semelhante despesa. No entanto, fora convi-
dado com relutância, e apenas porque quase formulara
o pedido. Porque daria um casal, com falta de dinhei-
ro, uma festa sem objectivos, em honra de pessoas de
que não precisava? A sociedade inglesa confundia-o..
Oli
era certo que ele conhecia as suas regras e com-
preendia a sua lógica; mas nunca seria capaz de enten-
der as razões que levavam as pessoas a entrar em se-
inelhantes jogadas.
A psicologia das mulheres de meia-idade era algo
que entendia em muito maior profundidade. Pegou na
'não de Ellen Hamilton, esboçando uma v‚nia quase
11nperceptíveI, e reparou no brilho que lhe apareceu
97
- Que dito engraçado.
- Como vai Derek?
- Outro dito engraçado. Anda deprimido. Porque
perguntas?
Laski encolheu os ombros.
- O homem interessa-me. Como ‚ que ele, pos-
suindo uma preciosidade como Ellen Hamilton, a dei-
xa escapulir-se por entre os dedos?
Ellen desviou o olhar.
- Mudemos de assunto.
- Está bem. �s feliz?
Ellen voltou a sorrir.
- Sou. Só espero que dure.
- Porque não haveria de durar?
despreocupadamente.
Não sei. Venho ter contigo, fornicamos que
nem.. que nem...
- Que nem coelhos.
- Como? 1
- Fornicamos que nem coelhos. E uma expressão
inglesa correcta.
Ellen riu ruidosamente.
Velho tonto. Adoro-te quando ‚s todo prussiano
e impecável. Sei que o fazes só para me agradar.
Portanto, encontramo-nos, fornicamos que nem
coelhos, e tu não achas que dure.
Não podes negar que tudo tem um certo ar de
ef‚mero.
Aceitarias que fosse de outra maneira? - inqui-
riu ele cuidadosamente.
Não sei.
Era a única resposta que ela podia dar, apercebeu-
-se ele.
Ellen acrescentou:
E tu?
Laski escolheu as palavras:
- � a primeira vez que tenho ocasião para reflectir
100
inquiriu ele

4W
sobre a possibilidade de a nossa relação ser ou não
ef‚niera.
- Pára de falar como o Relatório Anual da Presi-
dência.
- Se tu parares de te exprimir como a heroína de
urna novela romântica. Por falar em Relatórios Anuais
da Presidência, imagino que seja por causa disso que
Derek anda deprimido.
- �. Ele pensa que ‚ a úlcera que o faz sentir pior,
mas eu conheço a verdadeira razão.
- Achas que ele vendera a empresa?
- Quem me dera. - Fitou Laski com dureza. -
Tu compravas?
- Talvez.
Ellen fitou-o durante um momento prolongado. Ele
sabia que ela estava a analisar o que ele dissera, sope-
sando possibilidades, considerando os seus motivos.
Era uma mulher inteligente.
Elen decidiu não aprofundar o assunto.
Tenho de ir - disse. - Quero estar em casa …
hora do almoço.
Levantaram-se. Laski beijou-a na boca e passou-lhe
as mãos por todo o corpo, com familiaridade sensual.
Ellen meteu-lhe um dedo na boca, que ele sugou.
Adeus - disse ela.
Mais logo, telefono-te - disse Laski.
Depois, Ellen partiu. Laski acercou-se da estante e
ficou a olhar, sem a ver, para a lombada de O Direc-
torro dos Directores. Ela dissera ®só espero que dure¯
e ele precisava de reflectir sobre a questão. Ellen ti-
nha um certo jeito de dizer coisas que o faziam pen-
sar. Era uma mulher subtil. Então que quereria ela -
casamento? Dissera que não sabia o que queria, e
apesar de dificilmente poder ter dado outra resposta
que não essa, ele tinha o pressentimento de que ela
estava a ser sincera. ®Portanto, que quero eu?¯, pen-
sou. ®Casar com ela?¯
101

Sentou-se … sua secretária. Tinha muito trabalho.


Carregou no botão do intercomunicador e falou coro
Carol.
Liga-me para o Departamento de Energia e des-
cobre exactamente quem, quero dizer, a que horas,
eles tencionam anunciar o nome da empresa que ga-
nhou a licença para explorar o campo de petróleo.
Com certeza - disse Carol.
-Depois, liga para Fett e Co. Quero falar com
Nat ame ett, o patrao.
- Muito bem.
Desligou o botão. Pensou de novo: ®Quero casar
com Ellen Hamilton?¯
E de repente soube qual era a resposta, que o sur-
preendeu.
DEZ DA MANHA
13
O editor do Evening Post vivia na ilusão de perten-
cer … classe dominante. Filho de um funcionário dos
caminhos-de-ferro, ao longo dos vinte anos que ti-
nham decorrido desde que saíra da escola subira rapi-
damente no escalão social. Quando sentia necessidade
de se auto-reafirmar, lembrava a si mesmo que era di-
rector do Evening Post Ltd., e um formador de opi-
mão; e que o salário que auferia o colocava nos nove
por cento de chefes de família privilegiados. Nunca
lhe ocorrera que jamais se teria tornado um formador
de opinião se as suas opiniões não coincidissem exac-
tamente com as do proprietário do jornal; nem que a
sua liderança era controlada pelo proprietário; nem
que a classe dominante ‚ definida pela riqueza, e não
pelo rendimento auferido. E não fazia ideia de que o
seu fato pronto-a-vestir de Cardin, o seu tr‚mulo sota-
que sofisticado e a sua casa de executivo com quatro
quartos de dormir, em Chislehurst, o marcavam clara-
mente, aos olhos invejosos de cínicos como Arthur
Cole, como um simplório caído em boas graças: mais
claramente do que se usasse um bon‚ de pano e molas
de bicicleta nas calças.
Eram dez em ponto quando Cole chegou ao gabine-
te do editor, com a gravata direita, os pensamentos
ordenados e a sua lista dactilografada. Apercebeu-se
103

imediatamente de que fora um erro. Deveria ter irrom-


pido gabinete dentro dois minutos antes, de mangas
de camisa arregaçadas, para dar a impressão de que
fora com esforço que se arrancara ao lugar de impor-
tância vital que ocupava na redacção, com o propósito
de transmitir ao pessoal menor o ponto da situação re-
lativamente ao que se passava em departamentos ver-
dadeiramente importantes. Mas enfim, ele só se lem-
brava de tais pormenores quando já era demasiado
tarde: não tinha jeito para politiquices internas. Seria
interessante observar como outros executivos faziam a
sua entrada na reunião matinal.
O gabinete do editor tinha características muito pró-
prias. A secretária era branca e as poltronas vinham
da Habitat. As venezianas verticais protegiam a alcati-
fa azul da luz do sol, e as estantes de alumínio e mela-
mina tinham portas de vidro fosco. Numa mesa lateral
viam-se exemplares de todos os matutinos, e uma pi-
lha das edições do Evening Post do dia anterior.
Sentado … sua secretária, o editor fumava um charu-
to fino e lia o Mirror. A visão fez Cole ansiar por um
cigarro. Em sua substituição, meteu uma pastilha de
hortelã-pimenta na boca.
Os outros chegaram em grupo: o redactor das inia-
gens, de camisa justa e cabelos pelos ombros, que
muitas mulheres invejariam; o redactor da secção des-
portiva, em casaco de tweed e camisa lilás; o redactor
das reportagens especiais, de cachimbo e sorriso de
esguelha permanente; e o responsável das tiragens,
um jovem de fato cinzento impecável que começara a
vender enciclop‚dias e subira at‚ …quela óptima posi-
çao apenas em cinco anos. A entrada teatral do últinio
minuto foi feita pelo sub~redactor chefe, o desenhador
do jornal; era um indivíduo baixo com o cabelo corta-
do … escovinha, que usava suspensorios. Trazia um lá-
Pis atrás da orelha.
104
Depois de todos se acomodarem, o editor atirou o
Mirror para cima da mesa lateral e puxou a sua cadei-
. perto da secretária. Pergu
,a rã mais ntou:
_@aAinda não temos primeira edição?
- Não - respondeu o subchefe, olhando para o
relógio de pulso. - Perdemos oito minutos por causa
de uma falha de corrente.
O editor desviou o olhar para o responsável das ti-
ragens.
- At‚ que ponto o facto o afecta?
Tamb‚m este consultava o seu relógio.
- Se forem só oito minutos e se se conseguir recu-
perar na próxima edição, podemos aguentar.
O editor comentou:
Parece que andamos a ter falhas de corrente diá-
rias.
� este papel ordinário que utilizamos na impres-
são - disse o subchefe
- Bem, teremos de viver com o facto at‚ cokneçar-
mos novamente a ter lucros. - O editor pegou na lis-
ta das histór ias do dia que Cole lhe colocara em cima
da secretária' - Arthur, aqui não há nada que relan-
ce a circulação.
- Está uma manhã tranquila. Com um pouco de
sorte teremos uma crise de Gabinete ao meio-dia.
O que não passa do dia-a-dia deste malfadado
Governo. - O editor continuou a ler a lista. - Esta
história do Stradivarius agrada-me.
Cole debruçou-se sobre os casos constantes da lista,
tecendo alguns comentários sobre cada um deles. De-
pois de terminar, o editor disse:
9
- Aí não há nada de sensacional. Não me a rada
p“r um tema político … cabeça do jornal todos os dias.
A nossa missão ‚ cobrir ®todos os aspectos ligad@s ao
dia do londrino¯, para citar o lema da nossa propria
Publicidade. Imagino que não possamos atribuir a este
Stra
diyarius o valor de um milhão de libras, pois não9
E uma boa ideia - observou Cole. - Mas não
105

creio que valha assim tanto. Ainda assim, poderemos


tentar.
O subchefe disse:
Se não resultar em libras esterlinas, tenta o violi-
no de um milhão de dólares. Ou melhor ainda, a ra-
beca de um milhão de dólares.
Boa ideia - disse o editor. - Procurem uma foto-
grafia de um violino semelhante na biblioteca, e consi-
gam entrevistas de três violinistas de nomeada a falarem
sobre o que sentiriam se perdessem o seu instrumento
preferido. - Fez uma pausa. - Tamb‚m quero apro-
fundar a questão do campo de petróleo. As pessoas
interessam-se sobre esse petróleo no mar do Norte (‚
pressuposto ser a nossa salvação económica).
Cole esclareceu:
Está previsto darem a notícia ao meio-dia e
a. Entretanto, reservámos espaço.
mei
Cautela com o que dizem. A nossa própria em-
presa-mãe ‚ uma das concorrentes, não sei se sabem.
E não esquecer que uma fonte de petróleo não signifi-
ca riqueza imediata... primeiro representa vários anos
de grandes investimentos.
- Claro - anuiu Cole.
O responsável pelas tiragens voltou-se para o sub-
chefe.
- Ponhamos cartazes na rua sobre a história do
violino, e sobre esse incêndio em East End...
A porta abriu-se ruidosamente, interrompendo o
responsável pela tiragem. Todos viram aparecer Kevin
Hart, que se deteve … entrada, corado e excitadíssimo.
Cole resmungou interiormente.
Hart disse:
Desculpem interromper, mas creio que esta ‚ das
grandes.
Do que se trata? - perguntou o editor serena-
mente.
- Acabei de receber um telefonema de Timothy
Fitzpeterson, um ministro júnior do...
106
Sei quem ‚ - interrompeu o editor. - Que foi
que ele disse?
- Afirma que está a ser chantageado por duas pes-
soas que dão pelo nome de Laski e Cox. Parecia pro-
fundamente abalado. Ele...
o editor voltou a interrompê-lo.
- Conheces-lhe a voz?
O jovem repórter ficou atrapalhado. Contara, ob-
viamente, com um pânico imediato, não com um in-
terrogatório.
Nunca falei com Fitzpeterson anteriormente -
retorquiu.
Cole meteu-se na conversa.
Esta manhã recebi uma dica razoavelmente mal-
dosa acerca dele. Telefonei-lhe a confirmar, mas ele
negou.
O editor fez uma careta.
Cheira-me a esturro - observou.
O subchefe acenou com a cabeça em sinal de con-
cordância. Hart pareceu ficar abatido.
Cole disse:
Muito bem, Kevin, depois falaremos sobre o
assunto.
Hart saiu e fechou a porta.
- Tipo excitável - comentou o editor.
Cole disse:
- Não ‚ estúpido, mas tem muito a aprender.
- Então ensina-o - disse o editor. - Agora veja-
mos, quais são as fotografias escolhidas?

14
Ron Biggins pensava na filha. Naquele aspecto, es-
tava em falta: devia ir com a atenção concentrada uni-
camente na carrinha que conduzia, e na carga de, pa-
107

pel-moeda, no valor de várias centenas de milhar de


libras, que esta transportava - sujo, rasgado, ama-
chucado, escrevinhado e agora só próprio para a fá-
brica de destruição que o Banco de Inglaterra tinha
em Loughton, no Essex. Mas talvez a sua distracção
fosse desculpável: para um homem, uma filha ‚ mais
importante do que papel-moeda; e quando se trata da
única rapariga, esta ‚ uma rainha; e quando ‚ o único
filho, bem, nesse caso passa a ser, praticamente, tudo
o que lhe importa na vida.
®Vendo bem¯, reflectia Ron, ®um homem passa a
vida a criar a filha na esperança de, em a vendo che-
gar a idade própria, a entregar a um tipo seguro, de
confiança, que tomará conta dela da mesma maneira
que seu pai. Não o estupor de um mandrião bêbado,
nojento, de cabelo comprido, fumador de erva, de-
sempregado ... ¯
- O quê? - perguntou Max Fitch.
Ron voltou bruscamente ao presente.
- Disse alguma coisa?
- Estavas a murmurar - respondeu-lhe Max. -
Andas com alguma preocupação?
� bem possível, filho - retorquiu Ron.
®Sou bem capaz de estar com vontade de cometer
um homicídios, pensou, sabendo, no entanto, que
não era a s‚rio. Acelerou ligeiramente, a fim de man-
ter constante a distância entre a carrinha e os inotoci-
clistas. No entanto, quase agarrara no jovem estupor
pelo pescoço quando este lhe dissera: ®Cá eu e a Judy
estávamos a pensar em juntar os trapinhos durante
uns tempos, tá a ver, não tá?¯ Palavras articuladas
com a mesma indiferença com que teria roposto le-
p
vá-Ia a uma matin‚e. O tipo tinha vinte e dois anos,
mais cinco que Judy - graças a Deus ela ainda era
menor, obrigada a obedecer ao pai. O namorado -
chamava-se Lou - sentara-se na sala de estar, com ar
nervoso. vestindo tinia camisa indescritível, blue jeans
ensebados presos por um complicado cinto de cabedal
que fazia lembrar um instrumento de tortura medie-
val, e sandálias abertas que deixavam ver os p‚s sujos.
Quando Ron lhe perguntou o que fazia na vida, r‚s-
pondeu-lhe que era poeta desempregado, e Ron des-
confiou de que o fedelho estava a gozá-lo.
Depois da sugestão de irem viver juntos, Ron p“-lo
fora de casa. Desde então, as discussões não paravam.
Primeiro, explicara a Judy que não podia ir viver com
Lou porque a tinha obrigação de se guardar para o
marido; daí que a filha se lhe tivesse rido na cara, afir-
niando que já dormira com ele pelo menos uma dúzia
de vezes, quando dizia passar a noite com uma amiga
que tinha em FinchIey. Ele disse que imaginava, por-
tanto, que ela lhe iria comunicar que estava grávida; e
ela repondeu-lhe que não fosse tão estúpido, que já
tomava a pílula desde os dezasseis anos, altura em
que a mãe a levara a uma consulta de planeamento fa-
miliar. Nessa altura Ron quase batera na mulher, pela
primeira vez em vinte anos de casamento.
Ron pediu a um amigo que tinha na polícia que in-
vestigasse Louis Thurley, de vinte e dois anos de ida-
de, desempregado, morador na Barracks Road, em
Harringey. Os Registos Criminais revelaram que já
havia duas condenações: uma, por posse de haxixe no
festival de música pop Reading e, outra, por roubo de
comida no Tesco's, em Muswell Hill. Tal informação
deveria ter terminado com o romance. Convenceu, de
facto, a mulher de Ron, mas Judy limitou-se a dizer
que já tinha conhecimento de ambos os incidentes.
Fumar erva não devia ser roibido, declarou, e no que
dizia respeito ao roubo, Ron e os amigos tinham-se
simplesmente sentado no chão do supermercado a co-
nier as empadas de porco tiradas da prateleira, at‚ se-
rem presos. Tinham-no feito porque achavam que os
alimentos deviam ser grátis, e tamb‚m porque esta-
109

am cheios de fome e sem dinheiro. Ela parecia achar


v
a atitude deles perfeitamente razoável.
Incapaz de a trazer … razão, Ron proibira-a, final-
mente, de sair … noite. A filha aceitara a decisão com
tranquilidade. Faria a vontade ao pai, mas dali a qua-
tro meses, quando atingisse a maioridade, mudar-se-ia
para o apartainento-estúdio que Lou partilhava com
os seus três amigos e uma rapariga.
Ron sentiu-se derrotado. Há oito dias que andava
obcecado com o problema e continuava a não ver for-
ma de salvar a sua filha de uma vida miserável - pois
sombra de dúvida. Já não
era o que a esperava, sem
era a primeira vez que Ron via tal acontecer. Uma ra-
pariga nova casa com o tipo errado. Vai para o traba-
lho enquanto ele fica em casa a assistir a corridas pela
televisão. De vez em quando, ele faz umas maroteiras
que lhe dêem para a cerveja e o tabaco. Ela tem al-
guns filhos, o tipo ‚ apanhado e vai dentro durante
uns tempos, e de repente a pobre moça tem de sus-
tentar a família sem marido.
Ele daria a vida por Judy - ele dera a vida por de-
zoito anos dela e agora ela queria deitar fora tudo por
que Ron lutara e votá-lo ao desprezo. Teria chorado,
se se lembrasse de como fazê-lo.
Não conseguia afastar o pensamento do problema,
pelo que ia a pensar nele …s 10h16 daquele dia. Foi
or isso que não se apercebeu mais cedo da embosca-
p
da. Mas a sua falta de concentração pouca diferença
teria fe'to diante do que aconteceu nos poucos segun-
dos que se seguiram.
Passou debaixo de uma arcada da via-f‚rtea e virou
para uma estrada cuirva que se estendia a perder de
.1
vista, tendo o rio a sua esquerda e um parque de fer~
ro-velho … direita. Estava um dia sereno e lírnpido,
e, portanto, ao dar a curva suave, não teve dificuldade
em ver o enonne transportador de automóveis, a abar-
rotar de veículos amolgados e amassados, que fazia in-
110
versão de marcha, com dificuldade, para entrar pelo
portão do parque.
A princípio deu a impressão de que o camião já te-
ria o caminho desimpedido quando o comboio chegas-
se junto dele. Mas o motorista não acertara bem na
entrada, pelo que voltara a avançar um bocado, blo-
queando a estrada por completo.
Os dois motociclistas travaram, e Ron parou a car-
rinha logo a seguir. Um deles apoiou o veículo no des-
canso e saltou para a plataforma da cabina para gritar
com o motorista. O motor do camião trabalhava rui-
dosamente e do seu tubo de escape saia fumo negro,
eni nuvens.
- Comunica uma paragem fora do programa - or-
denou Ron. - Vamos fazer como o livro manda.
Max pegou, no microfone do rádio.
- Móvel a Controlo Obadiali.
Ron olhava para o camião. Este transportava uma
estranha miscelânia de veículos. Havia uma carrinha
verde velhíssima com a frase ®Talho da Família Coo-
pers¯ pintada de lado; um Ford Anglia sem rodas;
dois Volkswagen Beedês em cima um do outro; e, no
suporte de cima, um enorme Ford Australiano branco
e um Triumph de aspecto novo. O conjunto parecia
um pouco desconjuntado, especialmente os dois Bee-
des no abraço enferrujado que os fazia parecer um ca-
sal de insectos a copular. Ron voltou a mirar a cabina:
o inotocic sta ia sinais ao con tor para que este
saísse da frente do comboio.
Max repetiu-
- Móvel a Controlo Obadiali. Escuto, por favor.
®Devemos estar numa zona bastante baixa, assim
tão perto do rio¯, pensou Ron. ®Talvez a recepção se-
ja má.¯ Voltou a olhar para o transportador de carros,
aprecebendo-se então de que os veículos não estavam
presos por cordas. Ali estava algo verdadeiramente
perigoso. Que percurso fizera o transportador com a
sua carga de sucata em perigo de derrocada?

De repente, compreendeu.
- Dêem o alarme! - gritou.
Max fitou-o, surpreendido.
ù quê?
Algo atingiu o telhado da carrinha com um baque.
O motorista do transportador saltou da sua cabina,
caindo sobre o motociclista. Vários homens, com meias
enfiadas na cabeça, saltaram o muro do ferro-velho.
Ron olhou rapidamente pelo espelho retrovisor e viu
os dois motociclistas de trás a serem violentamente
atirados ao chão.
A carrinha balançou, e de repente, incompreensi-
velmente, pareceu erguer-se no ar. Ron olhou para a
direita e viu o braço de um guindaste estender-se por
cima do muro, desaparecendo por cima do tecto da
carrinha. Arrancou o microfone das mãos de um Max
estupidificado no preciso momento em que um indiví-
duo mascarado corria em direcção ao veículo. O ho-
mem atirou algo pequeno e negro, que fazia lembrar
uma bola de críquete, contra o pára-brisas.
O segundo seguinte passou lentamente, numa s‚rie
de imagens, como um filme visto ao retardador: uni
capacete … prova de choque a ir pelos ares; uma inoca
de madeira a atingir algu‚m na cabeça; Max a agarrar
na alavanca das velocidades ao mesmo tempo que a
carrinha se inclinava; o próprio polegar de Ron a car-
o articulava ®So-
regar no botão do microfone enquant
corro Obadiali ... ¯; a pequena bomba que parecia uma
lodir,
bola de críquete a embater no pára-brisas e a exp
fazendo voar uma chuveira de fragmentos de vidro; e
depois o embate físico quando a onda de choque che-
gou e, com ela, o negrume tranquilo da inconsciência.
O sargento Wilkinson ouviu o sinal de chamada
®Obadiah¯ do veículo que levara o papel-moeda, mas
igriorou-o. Fora uma manhã atarefada, com três ini-
112
Cortantes engarrafamentos de tráfego, uma persegui-
ção atrav‚s de Londres no encalço de um motorista
envolvido num caso de atropelamento e 1fuga, dois aci-
dentes graves, um incêndio num armazem, e uma ma-
nifestação improvisada levada a cabo por um grupo de
anarquistas na Downing Street. Quando a chamada
chegou, recebia ele uma chávena de caf‚ instantâneo
e uni rolo de fiambre que lhe eram oferecidos por
unia jovem indiana, … qual dizia:
- Que ‚ que o seu marido pensa de você vir traba-
lhar sem soutien?
A rapariga, que era dona de um peito generoso,
respondeu:
- Ele não repara.
E soltou uma risada.
O Guarda Jones, no outro lado da consola, obser-
vou:
- Aí tens, Dave, aproveita a insinuação.
Wilkinson perguntou:
- Que faz esta noite? a s‚rio.
A jovem riu, sabendo que ele não falava
Trabalho - retorquiu.
ù rádio disse:
®Móvel a Controlo Obadiali. Escuto, por favor.¯
Wilkinson inquiriu:
- Outro emprego? Qual?
- Sou dançarina go-go num bar.
Topless?
Terá de ir at‚ lá para ver, não ‚? - disse a rapa-
riga, continuando em frente com o carrinho.
O rádio deixou escapar: ®Soco ... ¯, logo seguido de
unI estampido abafado que tanto poderia ser uma
erupção estática como uma explosão.
O sorriso desapareceu rapidamente do jovem rosto
de Wilkinson. Ligou um botão e falou pelo micro-
fone.
Controlo Obadiali em escuta, Móvel.
113

Não houve resposta. Wilkinson chamou o seu su-


pervisor, imprimindo … voz uma nota de urgência.
- Patrão!
O inspector ®Harry¯ Harrison aproximou-se do sítio
onde Wilkinson se encontrava. Homem alto, passara
as mãos pelo cabelo raio e naquele momento parecia
mais distraído do que era.
- Tudo sob controlo, sargento?
- Pareceu-me captar um pedido de socorro de Oba-
diali, patrão.
Harrison perguntou secamente:
Que quer dizer com esse pareceu-me?
mas admit'
Wilkinson não chegara a sargento, ia os
seus erros. Respondeu:
Mensagem distorcida, sargento.
Harrison pegou no microfone.
Controlo Obadiali a Móvel, escuto. Terminado.
Aguardou, depois repetiu a mensagem. Não houve
resposta. Disse a Wilkinson:
Uma mensagem distorcida, a seguir desapare-
cem. Temos de partir do princípio de que se trata de
um sequestro. Não preciso de mais nada.
Tinha precisamente o ar de pessoa para quem o
e
destino fora não só injusto como indiscutivelment
vingativo.
Wilkinson observou:
Não consegui obter a localização.
gigantesco de Lon-
Ambos se voltaram para o mapa
dres que ocupava uma das paredes.
Wilkinson disse:
Eles foram pelo caminho do rio. Da última vez
es
que comunicaram estavam em Aldgate. O trânsito
tá normal, portanto devem encontrar-se algures como,
por exemplo, Dagenham.
Que maravilha - exclamou Harrison sarcastica-
mente. Reflectiu por um momento. - Transmita UM
alerta a todas as unidades móveis. Depois, destaqje
114
três patrulhas do Leste de Londres e mande-as proce-
der a uma busca. Imediatamente, alerte Essex e certi-
fique-se de que aqueles sornas sabem quanto malfada-
do dinheiro está naquela carrinha. Muito bem, mãos
ao trabalho.
Wilkinson começou a fazer os telefonemas. Harri-
son inanteve-se alguns momentos atrás do sargento,
profundamente empenhado nos seus pensamentos.
- Não tarda que nos chegue alguma chamada... al-
gu‚m deve ter visto o que se passou - murmurou.
Reflectiu um pouco mais. - Mas, tamb‚m, se o ami-
galhaço ‚ suficientemente esperto para cortar o rádio
antes de os rapazes ligarem para aqui, tamb‚m o ‚ pa-
rã fazer o trabalhinho num sítio sossegado.
Houve uma pausa prolongada. Por fim, Harrison
disse:
Pessoalmente, não creio que tenhamos a menor
hipótese.
Tudo parecia um sonho, pensou Jacko. A carrinha
do dinheiro fora içada por cima do muro, para depois
ser suavemente pousada ao lado da máquina de corte.
As quatro motocicletas tinham sido atiradas para den-
tro do transportador que, finalmente, concretizara a
manobra de marcha atrás para dentro do pátio. Os
motociclistas encontravam-se já deitados no chão, nu-
ma fila ordenada, todos eles algemados de mãos e
pes, e os portões tinham sido fechados.
Dois dos rapazes, com óculos de protecção por ci-
ma das máscaras de meia, abriram um orifício num
dos lados da carrinha transportadora de papel-moeda,
enquanto outra carrinha, azul, era manobrada para
Perto. Um enorme rectângulo de aço caiu para o
chão, e um guarda saltou para fora, de mãos no ar.
Jesse algemou-o e fê-lo deitar-se ao lado dos polícias
da escolta.
A máquina de cortar, montada sobre rodas, foi rã-
115

pidamente tirada do local, e dois outros homens inete-


ram-se dentro da carrinha do dinheiro e começaram a
passar para fora as caixas com as notas. Estas foram
imediatamente colocadas no interior da segunda carri-
nha.
Jacko lançou uma olhadela aos prisioneiros. Ti-
nham sido ligeiramente espancados, no entanto, não
fora nada de grave. Estavam todos conscientes. Jacko
transpirava por debaixo da máscara, mas não se atre-
via a tirá-la.
Da cabina do guindaste, onde um dos rapazes esta-
va de vigia, veio um grito. Jacko olhou para cima. No
mesmo instante, chegou-lhe o som de uma sirena.
Olhou em redor. Não podia ser verdade! A ideia fo-
ra arrumar os guardas antes de estes terem tempo pa-
ra pedir ajuda pelo rádio. Praguejou. Os homens ti-
nham os olhos postos nele, aguardando instr -
uções.
O transportador recuara para trás de uma pilha de
pneus, portanto, as motonetas brancas não ficavam …
vista. As duas carrinhas e o guindaste tinham uma
aparência suficientemente inocente. Jacko gritou:
_ Todos escondidos!
Depois, lembrou-se dos prisioneiros. Não havia
tempo para os tirar do caminho. O seu olhar recaiu
sobre uma lona. Puxou-a para cima dos cinco corpos,
a seguir atirou-se para trás de uma vagoneta.
A sirena foi-se aproximando. O carro vinha muito
depressa. Ouviu o chiar dos pneus quando deu a cur-
va para passar debaixo da arcada da via-f‚rrea, depois
o roncar do motor a atingir os setenta em terceira an-
tes de mudar para quarta. O som tornou-se mais for-
te, depois o som agudo da sirena baixou repentina-
mente e começou a diluir-se … distância. Jacko
respirou fundo de alívio, para logo ouvir a segunda si-
rena. Gritou:
- Fiquem escondidos!
ù segundo carro passou, e ouviu um terceiro. Hou-
116
o chiar sob a arcada, a mesma ac
ve o rnesm eleração
eni terceira apos a curva - mas desta vez o automó-
1 abrandou ao passar em frente do portão.
ve Tudo parecia muito calmo. Jacko tinha o rosto
insu-
poirtavelmente quente sob o nylon. Sentiu-se sufocar.
@1egou-lhe um som que fazia lembrar as botas de um
polícia a rasparem no portão. ®Um deles deve estar a
trepar pelo portão para vir dar uma vista de olhos
aqui¯, pensou. De repente, Jacko lembrou-se de que
havia mais dois polícias na cabina da carrinha. Só es-
perava que não recuperassem os sentidos naquele mo-
Mento.
Que estaria o agente a fazer? Não passara para o
lado de dentro do portão, mas tamb‚m não recuara.
Se se lembrasse de entrar para dar uma boa vista de
olhos, estaria tudo perdido. ®Não, não entres em pa-
nico¯, pensou, ®dez dos nossos podem tratar da saúde
a um carro cheio deles.¯ Mas levaria o seu tempo, e
quem sabia se ficara mais algum no carro, que poderia
pedir reforços pelo rádio...
Jacko quase podia sentir todo aquele dinheiro a fu-
gir-lhe por entre os dedos. Queria arriscar uma olha-
dela rápida de detrás da vagoneta, no entanto, disse
de si para si que não resolveria nada: o som do auto-
móvel dar-lhe-ia a saber que se tinham retirado.
Que estariam eles a fazer?
Olhou de novo para a carrinha do dinheiro. Jesus,
um dos tipos mexia-se. Jacko levantou a espingarda.
Ia haver luta. Sussurrou:
- Raios partam!
Ouviu-se um ruído na.carrinha - um grito roufe-
nho. Jacko p“s-se precipitadamente em p‚ e saiu de
detrás da vagoneta de arma em punho.
Não havia ningu‚m ali.
A seguir ouviu o carro arrancar com um chiar de
Pneus. A sirena foi novamente ligada e desvaneceu-se
ao longe.
117
Willie o Mouco emergiu de detrás da carcaça enfer-
rujada do táxi Mercedes. Juntos, dirigiram-se para a
carrinha. Willie comentou:
- Foi divertido, não foi?
- Foi - respondeu Jacko, asperamente. - Melhor
do que ficar a assistir ao raio da televisão.
Olharam para o interior da carrinha. O motorista
gemia, no entanto, não parecia gravemente ferido.
- Toca a sair daí, avozinho - ordenou Jacko atra-
v‚s da janela quebrada. - O intervalo para o chá ter-
minou.
A voz exerceu um efeito tranquilizador em Ron Bi-
ggins. At‚ ali sentira-se entontecido e em pânico. Ti-
nha a impressão de estar meio surdo, aparecera-lhe
uma dor na cabeça e, quando levava a mão … cara, to-
cava em algo pegajoso. A visão de um homem com
umas meias enfiadas na cabeça foi curiosamente recon-
fortante. Era tudo muito claro. Um assalto extrema-
mente eficiente - Ron estava, de facto, algo espantado
com a facilidade com que a operação decorrera. Eles
tinham conhecimento do caminho, do horário, da des-
locação da carrinha com o dinheiro. Começou a sen-
tir-se furioso. Não havia dúvida de que uma percenta-
gem do saque seguiria para a@conta bancária secreta
de algum detective corrupto. A semelhança da maio-
ria daqueles que trabalhavam nas fileiras da polícia e
da segurança, detestava ainda mais os polícias corrup-
tos do que os bandidos.
O homem que lhe chamara avozinho abriu a porta e
enfiou o braço pela janela lateral estilhaçado, a fini de
chegar ao manípulo interior. Ron saiu. O movimento
fez-lhe dores.
O homem era novo - Ron reparou no cabelo com-
rido que lhe aparecia por baixo da meia. Usava jeans
p
e empunhava uma espingarda. Deu um empurrão sen,
.1.
cerim“nias e ordenou:
118
Mãos estendidas, bem juntas, velhote. Podes ir
parar ao hospital num minuto.
A dor que Ron sentia na cabeça pareceu crescer
com a raiva. Reprimiu a vontade de desferir um pon-
tap‚ em qualquer lado e fez por se lembrar do com-
portamento que devia ter durante um assalto: Não re-
sistir, colaborar com eles, dar-lhes o dinheiro. Estamos
cobertos pelo seguro, para nós a tua vida ‚ mais pre-
ciosa, não armes em herói.
Começou a respirar com dificuldade. A sua mente
perturbada fê-lo confundir o jovem de espingarda
apontada para ele com o detective corrupto e com
Lou Thurley, arquejando e gemendo em cima da ino-
cente e virginal Lucy, numa cama bichenta, num apar-
tamento-estúdio imundo; e, de repente, compreendeu
que quem dera cabo da sua vida fora aquele homem
e que talvez fosse preciso um herói para recuperar o
respeito da sua única filha; e que z‚s-ningu‚ns como
aquele detective corrupto de meia enfiada na cabeça
na cama de Judy e de espingarda na mão eram dos
que andavam sempre a dar cabo da vida da gente ho-
nesta como Ron Biggins; portanto, deu dois passos em
frente e desferiu um murro no nariz do jovem estupe-
facto, que cambaleou e carregou nos dois gatilhos da
sua arma , atingindo não Ron mas outro homem masca-
rado a seu lado, que espirrou sangue e caiu por terra; e
Ron ficou a olhar, horrorizado, para o sangue, at‚ o pri-
meiro indivíduo o atingir na cabeça com a coronha de
metal da sua arma, fazendo-o desmaiar mais uma vez.
Jacko ajoelhou-se ao lado de Willie o Mouco e afas-
tou os fiapos de meia do rosto do homem mais velho.
Este tinha a cara numa desgraça, fazendo empalidecer
Jacko. Este e os seus comparsas tinham o hábito de
infligir ferimentos …s suas vítimas e uns aos outros,
por‚m,
utilizavam armas brancas; consequentemente,
119

Jacko nunca vira, at‚ …quele momento, ferimentos


provocados por balas. E como o ensino de primeiros
socorros não fazia parte do programa de treino que
Tony Cox dava aos seus homens, Jacko não sabia ver-
dadeiramente o que fazer. Mas era capaz de racioci-
nar com rapidez.
Ergueu a cabeça. Os outros mantinham-se em re-
dor, a olhar. Jacko gritou-lhes:
- Continuem o trabalho, seus estupores ensonados!
Os companheiros deram um pulo.
Jacko chegou-se para mais perto de Willie e per-
guntou,
Es capaz de me ouvir, amigo?
O rosto de Willie contorceu-se, mas não conseguiu
falar.
Jesse ajoelhou-se do outro lado de Willie.
Temos de o levar para o hospital - disse.
Jacko já se tinha adiantado.
- Preciso de um carro veloz - declarou. Apontou
para um Volvo azul estacionado perto. - De quem ‚
aquele?
Pertence ao proprietário do ferro-velho - res-
pondeu Jesse.
Perfeito. Ajuda-me a meter Willie lá dentro.
Jacko pegou Willie pelos ombros e Jesse pelas per-
nas. Levaram-no, a gemer, para o carro, deitando-o
no banco de trás. As chaves estavam-na ignição.
Um dos homens que se encontravam na carrinha do
dinheiro informou:
-Está tudo pronto, Jacko-
Jacko teria batido no indivíduo por este o haver
chamado pelo nome, porem, @I'nha outras preocupa-
ções na cabeça. Disse a Jesse:
- Sabes para onde vais?
- Sei, mas estava previsto ires comigo.
- Não interessa. Seja como for, tenho de levar
120
Willie para o hospital, e depois encontro-me contigo
na quinta. Conta a Tony o que aconteceu. Agora
presta atenção, guia devagar, não passes os sinais
amarelos … pressa, pára nas passadeiras dos peões,
guia como se estivesses no raio de um exame de con-
duۋo, percebeste?
- Sim - retorquiu Jesse.
Correu para a carrinha da fuga e experimentou as
portas das traseiras. Estavam trancados. Despegou o
papel castanho que tapava as placas de matrícula -
um cuidado que visava impedir que os guardas obti-
vessem o número; Tony Cox não descorava nenhum
- e in
pormenor stalou-se ao volante.
Jacko p“s o Volvo a trabalhar. Algu‚m abriu o por-
tão do pátio. Os restantes homens já se tinham senta-
do nos seus próprios carros e retirado as luvas e as
máscaras. Jesse arrancou na carrinha e virou … direita.
Jacko foi atrás dele e seguiu na direcção oposta.
Ao acelerar pela estrada abaixo, consultou o seu re-
lógio: eram dez e vinte e sete. A operação levara, no
total, onze minutos a executar. Tony tivera razão: dis-
sera que teriam tudo despachado no tempo que um
carro da esquadra leva a ir da Vine Street … Isle of
Dogs. Fora um belo trabalho, com excepção do que
acontecera ao pobre Willie o Mouco. Jacko esperava
que o amigo vivesse para poder desfrutar da parte que
lhe cabia.
Aproximava-se do hospital. Fizera um plano para
tratar daquele assunto, mas precisava de esconder
Willie. Chamou:
-Willie? Consegues deitar-te no chão?
Não houve resposta. Olhou para trás de relance. Os
olhos de Willie encontravam-se num estado tal que as
Palavras ®abertos¯ e ®fechados¯ já não se aplicavam
…quele caso. Mas o pobre tipo devia estar desmaiado.
Jacko inclinou-se para trás e puxou o corpo do banco
para o chão, onde este caiu com um baque doloroso.
121

Dirigiu o carro pela entrada do hospital e estacionou-


-o no parque. Apeou-se e seguiu as indicações que cori-
duziam …s Urgências. Encontrou uma cabina telefónica
logo a seguir … entrada. Consultou a lista telefónica e
encontrou o número do hospital.
Discou, introduziu uma moeda na ranhura e pediu
que o ligassem …s Urgências. O telefone que se via eni
cima de um balcão próximo tocou duas vezes e a en-
fermeira atendeu.
Disse:
Um momento, por favor.
Pousou o auscultador sobre o balcão. Era uma qua-
rentona roliça, de uniforme branco, impecavelmente
engomado e cabelo maltratado. Escreveu umas pala-
vras num livro e depois voltou a pegar no auscultador.
Urgências, faça favor.
Jacko falou calmamente, observando o rosto da en-
fermeira.
No banco de trás de um Volvo azul parado no
vosso parque d e estacionamento está um homem com
ferimentos de bala no rosto.
A enfermeira corpulenta empalideceu.
.J Quer dizer, aqui?
Jacko enfureceu-se.
Sim, sua vaca velha e pastelona, no vosso hospital.
Agora ponha-me esse eu daí para fora e vá buscá-lo!
Sentiu-se tentado a atirar violentamente com o aus-
cultador, mas conteve-se e optou antes por carregar
na patilha do descanso: se ele podia vê-Ia, ela tamb‚rn
podia vê-lo. Manteve o auscultador silencioso encosta-
do ao ouvido enquanto ela pousava o seu, levantava-
-se, chamava uma enfermeira e dirigiam-se as duas
para o parque de estacionamento.
Jacko seguiu em frente e saiu por outra porta. Olhou
pelo portão principal e viu uma maca ser carregada
atrav‚s do parque. Fizera por Willie tudo quanto esta-
va ao seu alcance.
Agora precisava de outro carro.
122
15
F‚lix Laski gostava do escritório de Nathaniel Fett.
Era uma sala confortável, de decoração discreta, um
local óptimo para tratar de negócios. Não exibia ne-
nhum dos recursos publicitários que Laski usava no
seu próprio gabinete em seu proveito, como, por
exemplo, uma secretária junto … janela que lhe permi-
tia ficar de costas para esta e manter o rosto mergu-
lhado na sombra, as cadeiras baixas e pouco firmes
para as visitas, ou o serviço de caf‚ em porcelana ca-
ríssima que as pessoas temiam pavorosamente deixar
cair. O gabinete de Fett possuía o ambiente de um
clube para directores de empresas: o que, sem dúvida,
era propositado. Laski reparou em dois pormenores
ao apertar a mão comprida e fina de Fett: primeiro,
que havia uma secretária grande e aparentemente
com pouco uso; segundo, que Fett usava uma gravata
clássica. A gravata representava uma escolha curiosa
num judeu, reflectiu; depois, pensando melhor, con-
cluiu que, afinal de contas, o facto não era tão estra-
nho como poderia parecer. Fett usava-a pela mesma
razão que Laski envergava um fato Savile Row …s ris-
cas finas, de corte impecável: como um distintivo que
exprimisse a ideia de que ®tamb‚m eu sou um inglês¯.
®Portanto¯, pensou Laski, ®inesmo depois de seis ge-
rações de banqueiros Fett, Nathaniel continua a sen-
tir-se vagamente inseguro. Trata-se de uma informa-
€ão que poderá ser útil.¯
Fett convidou:
- Sente-se, Laski. Deseja um caf‚?
- Passo o dia todo a beber caf‚. @ prejudicial ao
coração. Não, obrigado.
- Uma bebida?
Laski abanou negativamente a cabeça. Recusar ma-
123

ifestações de hospitalidade era um dos seus proces-


n
sos para colocar um anfitrião em desvantagem. Disse:
Conheci o seu pai muito bem, at‚ se reformar.
A sua morte foi uma perda. � algo que se diz de mui-
ta gente mas que, no caso dele, corresponde … ver-
dade.
_ Obrigado.
Fett sentou-se numa poltrona, em frente de Laski, e
cruzou as pernas. Os seus olhos, por trás dos vidros
dos óculos, revelavam-se inescrutáveis.
- Já lá vão dez anos - acrescentou.
- Já passou assim tanto tempo? Ele era muito mais
velho do que eu, evidentemente, mas sabia que eu, tal
como os seus antepassados, viera de Varsóvia.
Fett acenou afirmativamente com a cabeça.
o primeiro Nathaniel Fett atravessou a Europa
com um saco de ouro e um burro.
Eu fiz a mesma viagem com uma motoreta rou-
bada a um nazi e uma mala cheia de marcos alemães
sem valor.
No entanto, o seu sucesso foi muito mais meteó-
rico.
Era um comentário mordaz, compreendeu Laski:
Fett queria dizer nós podemos ser judeus polacos fugi-
dos, mas não somos tão reles como tu. O corretor es-
tava … altura de fazer frente a Laski. E, com aqueles
óculos para lhe ocultar a expressão dos olhos, não
precisava da luz por trás. Laski sorriu.
- O senhor ‚ como o seu pai. Nunca se sabia o
que lhe ia na cabeça.
Ainda não me apresentou nada que me fizesse
pensar.
®Ah, quer então dizer que a conversa de circunstâll-
cia acabou¯, pensou Laski.
- Desculpe o meu telefonema ter sido um tanto
misterioso. Foi muito simpático da sua parte receber-
-me num espaço de tempo tão curto.
124
- O senhor disse que tinha uma proposta de sete
núffieros para apresentar a um dos meus clientes: co-
ajo queria que não o recebesse? Deseja um charuto?
Fett levantou-se e apresentou-lhe uma caixa que ti-
rou de cima de uma mesa lateral.
Laski disse:
- Obrigado.
Hesitou ligeiramente quanto … escolha, depois, en-
quanto a sua mão descia para pegar num charuto, de-
clarou:
- Quero comprar a Hamilton Holdings a Derek
Hamilton.
A altura fora excelente, por‚m, Fett nem sequer pes-
tanejou de surpresa. Laski esperava vê-lo deixar cair a
caixa. Mas como não podia deixar de ser, Fett sabia
que Laski escolheria aquela ocasião para largar a
bomba; criara o momento com esse objectivo único.
Fechou a caixa e, sem proferir palavra, acendeu o
charuto a Laski. Voltou a sentar-se e cruzou as pernas.
- A Hamilton Holdings, por sete números.
- Exactamente um milhão de libras. Quando um
homem vende o trabalho de toda uma vida, tem direi-
to a um belo número redondo.
- Oh, compreendo a psicologia inerente ao seu ra-
ciocínio - observou Fett com indiferença. - Não era
de todo inesperado.
- Como?
- Não quis dizer que o Esperássemos de si. Contá-
vamos que aparecesse alguem. � a altura ideal.
- A oferta ultrapassa substancialmente o valor das
acções aos preços actuais.
A margem não está mal - disse Fett.
Laski abriu as mãos, com as palmas voltadas para
cima, num gesto de apelo. 1
- Não regateemos - disse. - E uma oferta alta.
- Mas inferior ao que as acções valerão se o grupo
económico de Derek obtiver o poço de óleo.
125

O que me leva … única condição que ponho,


A oferta depende de o negócio ser fechado esta nia-
nhã.
Fett consultou o seu relógio.
- São quase onze. Acha realmente que tal poderia
ser feito no espaço de uma hora, mesmo partindo do
principio de que Derek está interessado?
Laski deu uma palmadinha na sua pasta.
- Tenho aqui todos os documentos necessários.
- Mal teríamos tempo para os ler...
- Tamb‚m aqui trago uma declaração de inten-
ções, contendo os pontos que ficarão acordados. Para
mim, bastará.
Devia ter imaginado que viria preparado. - Fett
reflectiu por inomentos. - Claro, que se Derek não
conseguir o poço de óleo, as acções baixarão certa-
mente um pouco.
- Sou um jogador - observou Laski, sorrindo.
Fett continuou:
- E se assim for, o senhor venderá os bens da em-
presa e encerrará as sucursais não lucrativas.
- De maneira alguma - mentiu Laski. - Estou
convencido de que serão lucrativas, mantendo a sua
forma presente, mas mudando a gerência.
� provável que tenha razão. Bem, ‚ uma oferta
razoável; uma oferta que me vejo obrigado a apresen-
tar ao cliente.
-Não se arme em difícil. Pense na comissão que
receberá sobre um milhão de libras.
- De facto - disse Fett friamente. - Telefonarei
a Derek.
Pegou no auscultador do telefone que tinha em ci-
ma da secretária e pediu:
- Ligue-me a Derek Hamilton, se faz favor.
Laski puxou o fumo ao seu charuto e disfarçou a
ansiedade.
126
Derek, fala Nathaniel. Tenho F‚lix Laski aqui
comigo. Ele apresentou uma proposta. - Houve uma
pausa. - Sim, fizemos, claro. Um milhão em núme-
ros redondos. Estarás... está bem. Ficaremos … tua es-
pera. O quê? Ali... compreendo. - Soltou uma risa-
da vagamente embaraçado. - Dez minutos.
pousou o auscultador.
- Muito bem, Laski, ele está a caminho. Leiamos
os seus documentos enquanto aguardamos.
Laski não p“de resistir a perguntar:
- Ouer então dizer que ele está interessado?
- E poss ível.
- Fez mais alguma observação, não?
Fett voltou a soltar a mesma risadinha de embaraço.
- Suponho que não tem importância, se lhe contar.
Ele disse que se lhe entregar a empresa ao meio-dia,
quer o dinheiro na mão …s doze horas.

ONZE DA MANHŽ

16
Kevin Hart encontrou a morada que a mesa da re-
dacção lhe fornecera e estacionou numa linha amare-
la. O seu carro era um Rover com dois anos e um mo-
tor V8, pois era solteiro e o Evening Post pagava
salários ao estilo da Fleet Street, de modo que tinha
uma vida bem mais desafogada do que a maioria dos
homens de vinte e dois anos. Tinha consciência do
facto, que lhe dava grande prazer; e não era suficien-
temente velho para ocultar esse prazer, razão pela
qual indivíduos como Arthur Cole lhe manifestavam
uma certa antipatia.
Arthur fora muito impertinente quando saíra da
reunião com o editor. Sentara-se … mesa da redacção,
distribuíra a fornada de tarefas da maneira habitual, e
a seguir chamara Kevin e dissera-lhe que desse a volta
… secretária e se sentasse: indício seguro de que estava
prestes a receber o que os repórteres designavam de
um puxão de orelhas.
Arthur surpreenderão por falar, não acerca da ma-
neira como interrompera a reunião, mas sim da histó-
ria. Perguntara-lhe:
Como era a voz?
Kevin respondera:
De homem de meia-idade, sotaque da província.
Escolhia as palavras. Talvez com demasiado cuidado
podia estar embriagado ou muito perturbado.
129

Essa não ‚ a voz que eu ouvi esta manhã - ob-


servou Arthur com ar pensativo. - A minha era jo-
vem, e cockney. Que foi que a sua disse?
Kevin leu os apontamentos que tirara.
®Chamo-me Tim Fitzpeterson e estou a ser chanta-
geado por duas pessoas chamadas Laski e Cox- Quero
que voces crucifiquem os estupores quando eu desapa-
recer. ¯
Arthur abanou a cabeça com incredulidade.
- Isso tudo?
- Bom, perguntei-lhe qual o motivo da chantagem
e ele respondeu, ®Deus, vocês são todos iguais¯, e
desligou-me o telefone na cara. - Kevin fez uma pau-
sã, … espera de urna repreensão. - Não devia ter fel-
to essa pergunta?
Arthur encolheu os ombros.
Não devia, mas tamb‚m não vejo nenhuma mais
acertada. - Pegou no telefone, discou, a seguir pas-
sou o auscultador a Kevin. - Pergunte-lhe se nos te-
lefonou na última meia hora.
Kevin ficou … escuta por um momento e depois
pousou o auscultador no descanso.
-Dá sinal de impedido.
Não há nada a fazer - disse Arthur tacteando
os bolsos … procura dos cigarros.
Vai desistir? - observou Kevin, reconhecendo
os sintomas.
Pois vou. - Arthur começou a roer as unhas. -
Está a ver, a maior ameaça que o chantagista pode fa-
zer a um político ‚ a de que vai para os jornais. Por-
tanto, não seria o chantagista a ligar para nós para
nos dar a história. Isso seria deitar fora o seu trunfo.
Pela mesma ordem de ideias, como os jornais são O
que a vítima receia, esta não nos telefonaria a infor-
mar de que estava a ser alvo de chantagem.
Com o ar de quem chegou a uma conclusão definiti-
va, completou:
130
-Daí que presuma que tudo não passa de uma
brincadeira.
Kevin achou que o assunto estava arrumado. Le-
vantou-se.
- Vou voltar … história do petróleo.
- Não - disse Arthur. - Temos de investigar este
caso. Acho melhor que dê um pulo at‚ lá e lhe bata …
porta.
- Ali, está bem.
- Mas na próxima vez que pense em interromper
urna reunião com o editor, sente-se primeiro e conte
at‚ cem.
Kevin não conseguiu evitar um sorriso amarelo.
- Com certeza.
Mas quanto mais reflectia sobre o assunto, menos
hipóteses de verosimilhança achava na história. No
carro, tentou recordar o que sabia acerca de Tim Fitz-
peterson. O homem era um moderado e de pouco
destaque. Licenciado em Economia, tinha fama de ar-
guto, por‚m, não parecia pessoa suficientemente dinâ-
mica ou imaginativa para proporcionar a chantagistas
qualquer tipo de mat‚ria-prima. Kevin recordou uma
fotografia de Fitzpeterson com a família - uma mu-
lher simplória e três filhas de aspecto desajeitado -
numa praia espanhola. O político envergava uns pavo-
rosos calções de caqui.
A primeira vista, o edifício em frente do qual Kevin
naquele momento se encantava não tinha nada o ar
de um ninho de amor. Era um pr‚dio acinzentado e
sujo dos anos trinta, que ficava numa rua secundária
de Westminster. Não fora a sua proximidade do Parla-
mento e já estaria, naquela altura, num estado precá-
rio. Ao entrar, Kevin reparou que os condóminos ti-
liam melhorado a qualidade do edifício com um
elevador e um porteiro de entrada: sem dúvida, desig-
navam agora as habitações de ®apartamenos utilitários
de luxo¯.
131

Seria impossível, pensou, manter uma esposa e


três
P. filhos ali; ou, pelo menos, um homem como
Fitzpeter-
son considerá-lo-ia como tal. Descobriu que o aparta-
mento era uma habitação secundária, portanto, afinal
de contas, Fitzpeterson podia ali fazer orgias homos-
sexuais ou festas de ®erva¯.
®Pára com as especulações¯, disse de si para si,
®não tardarás em saber¯.
Não havia maneira de evitar o porteiro. O seu cubí-
culo ficava em frente do elevador, do outro lado de
um vestíbulo estreito. Homem cadav‚rico, de rosto
encovado e empalidecido, mirava as pessoas se como
estivesse acorrentado … secretária e nunca lhe fosse
permitido ver a luz do dia. Quando Kevin se aproxi-
mou, o homem pousou um livro com o título Como
Ganhar o Seu Segundo Milhão e tirou os óculos.
Kevin apontou para o livro.
- Gostaria de saber como ganhar o meu primeiro.
- Nove - disse o porteiro com voz paciente e en-
tediada.
- Como?
- O senhor ‚ a nona pessoa a fazer semelhante ob-
servação.
- Oli, desculpe.
- A seguir quererá saber por que razão estou a lê-
-lo e eu responderei que o livro me foi emprestado
por um inquilino, ao que o senhor responderá que
gostaria de fazer amizade com esse inquilino. Agora,
que já despachámos tudo isso, que deseja de facto?
Kevin sabia como lidar com espertinhos. ®Grande-
císsimo alcoviteiros, disse de si para si. Em voz alta,
perguntou:
Qual ‚ o número do apartamento de Mr. Fitzpe-
terson?
Eu ligarei a avisar da sua presença - disse o por-
teiro, fazendo menção de pegar no intercomunicador.
132
Só um minuto. - Kevin tirou a carteira e es-
colheu duas notas. - Gostaria de lhe fazer uma sur-
presa.
Piscou um olho e pousou o dinheiro em cima do
balcão.
O homem pegou nas notas e disse em voz alta:
- Com certeza, senhor, já que ‚ seu irmão. Cinco C.
- Obrigado.
Kevin aproximou-se do elevador e carregou no bo-
tão. Estava convencido de que a piscadela de olho
conspirativa exercera mais efeito do que o dinheiro.
Meteu-se no elevador, carregou no botão do quinto
piso, mas manteve as portas abertas. Viu o porteiro
estender a mão para o telefone interno.
� uma surpresa, lembra-se?
ù porteiro pegou no livro, sem responder,
O elevador subiu, chiando. Kevin sentiu uma sensa-
ção de expectativa física já conhecida. Acontecia-lhe
sempre que estava para bater a uma porta … cata de
uma história. A sensação não era desagradável, mas
normalmente continha um certo receio de não conse-
guir alcançar o seu propósito.
O patamar do último piso estava decorado com uma
carpeta de nylon fino e algumas aguarelas esbatidas,
de mau gosto, mas inofensivas. Havia quatro aparta-
Mentos, cada qual com uma campainha, uma caixa de
correio e um orifício visor. Kevin encontrou o 5C, res-
pirou fundo e tocou … campainha.
Não houve resposta. Depois de tocar novamente,
encostou o ouvido … porta para tentar ouvir alguma
coisa. Nada. A tensão abandonou-o, deixando-o vaga-
mente deprimido.
Sem saber muito bem o que fazer, atravessou o pa-
tamar e foi espreitar … janela minúscula que deitava
para a rua. Do outro lado da rua, havia uma escola.
Uma classe de meninas jogava basquetebol no pátio
de recreio. Do sítio onde se encontrava, Kevin não sa-
133

bia dizer se teriam idade suficiente para as desejar.


Voltou para junto da porta de Fitzpeterson e tocou in-
sistentemente. O barulho do elevador a chegar sobres-
saltou-o. Se fosse um vizinho, talvez pudesse pergun-
tar...
A visão de um polícia jovem e alto a sair do eleva-
dor c ocou-o. entiu-se culpado. Mas, para sua sur-
presa, o guarda cumprimentou-o.
O senhor deve ser o irmão de sua excelência -
disse o polícia.
Kevin raciocionou com rapidez.
- Oucra foi que lhe disse? - perguntou.
- O porteiro.
Kevin dirigiu-lhe imediatamente nova pergunta.
- E porque está o senhor aqui?
- Só para ver se ele está bem. Faltou a uma reu-
nião esta manhã e tem o auscultador fora do descan-
so. Estes ministros deviam andar com guarda-costas,
sabe, mas não querem. - Olhou para a porta. - Não
atende?
- Não.
- Conhece alguma razão que o pudesse levar a es-
tar... bem, doente? Perturbado? Ou terá ido a algum
lado?
Kevin disse:
Bem, esta manhã ligou para mim e parecia mui-
to preocupado. Foi por isso que vim.
Tinha consciência de que estava a alinhar num jogo
muito perigoso; mas ainda não mentira, e fosse como
fosse, era demasiado tarde para recuar.
O polícia sugeriu:
Talvez devêssemos pedir a chave ao porteiro.
Kevin não tinha vontade de recorrer …quele meio.
Disse:
Olhe que não sei se não devíamos arrombar a
porta. Meu Deus, se ele adoeceu ali dentro...
lícia era jovem e inexperiente, e a perspectiva
O po
de deitar uma porta abaixo parecia atraí-lo. Inquiriu:
13
- Acha que poderá ser assim tão mau?
- Ouem sabe? Se ‚ por causa de uma porta... os
ão uma família pobre.
Fitzpeterson não s
Não, senhor. - Não precisava de mais encoraja-
nientos. Encostou o ombro … porta, tentando avaliar-
-lhe a solidez. - Um bom encontrão...
Kevin chegou-se para perto do agente e, juntos,
enibateram contra a porta ao mesmo tempo. Fizeram
anais barulho do que progressos. Kevin observou:
- Nos filmes não ‚ assim.
Arrependeu-se imediatamente de ter feito o comen-
tário - parecia desajustadamente irreverente.
Mas o polícia não deu mostras de ter reparado.
Disse:
- Vamos repetir.
Desta vez atiraram-se com todo o peso contra a
porta. As ombreiras lascaram-se e uma das metades
da fechadura soltou-se, caindo no chão ao mesmo
Kevin deixou o polícia seguir … frente. Ao entrar,
tempo que a porta se escancarava.
depois do homem, na sala, ouviu-o dizer:
Não cheira a gás.
Não está nada el‚ctrico ligado
deitando-se a adivinhar.
O vestíbulo minúsculo tinha três portas. A primeira
deitava para uma pequena casa de banho, onde Kevin
islumbrou uma fiada de escovas de dentes e um espe-
lho de corpo inteiro. A segunda encontrava-se aberta,
revelando uma cozinha que dava a impressão de ter
sido remexida fazia pouco tempo. Entraram pela ter-
ceira por ta, avistando Fitzpeterson imediatamente.
Este estava sentado na cadeira de costas direitas
da sua secretária, tendo a cabeça apoiada nos bra-
€os, como se tivesse adormecido a meio do trabalho.
Mas não havia sinais de trabalho no tampo da secretá-
ria: apenas o telefone, um copo e uma garrafa vazia.
135
disse Kevin,

O frasco era de pequenas dimensões, de vidro casta-


nho, e tinha um rótulo escrito … mão - o tipo de fras-
co que os empregados das farmácias utilizam para dis-
pensar soporíferos.
Apesar da sua juventude, o polícia agiu com rapi-
dez louvável. Chamou: ®Mister Fitzpeterson, senhor!¯
com voz bem alta; e, sem se deter, atravessou a sala e
enfiou a mão por dentro do roupão para sentir as pul-
sações cardíacas do homem. Kevin manteve-se imóvel
durante um momento. Finalmente, o polícia declarou:
- Ainda está vivo.
O jovem agente pareceu assumir o comando. Fez
sinal a Kevin para que se chegasse a Fitzpeterson.
Fale com ele - ordenou.
Depois, tirou um rádio do bolso da frente do blusão
e comunicou com a esquadra.
Kevin endireitou os ombros do político. Dentro do
roupão, o corpo parecia estranhamente desprovido de
vida.
Acorde! Acorde! - ordenou.
O polícia finalizou a sua comunicação e veio para
junto dele.
- Vem ai uma ambulância - informou. - Faça-
mo-lo andar.
Cada um pegou num dos braços do homem incons-
ciente e tentaram obrigá-lo a caminhar. Kevin pergun-
tou: 1
- E o que se costuma fazer nestes casos?
- Espero bem que sim.
- Quem me dera ter prestado atenção nas minhas
aulas de primeiros socorros.
- Tamb‚m eu.
Kevin estava ansioso por se aproximar de um telefo-
ne. Estava mesmo a ver os cabeçalhos: SALVEI A VIDA
A UM MINISTRO. Não era um jovem empedernido,
por‚m, há muito que sabia que a história que lhe da-
ria nome representaria, com toda a certeza, uma tra-
136
g‚dia para alguma outra pessoa. Agora que acontece-
ra, queria utilizá-la antes que se lhe escapasse por en-
tre os dedos. Esperava que a ambulância chegasse rã-
pidainente.
O tratamento não exerceu qualquer influência em
Fitzpeterson. O polícia disse:
- Fale com ele. Diga-lhe quem ‚.
A situação começara a tornar-se um pouco compli-
cada. Kevin engoliu em seco e disse:
- Tim, Tim! Sou eu.
- Diga-lhe o seu nome.
Kevin foi salvo pelo som de uma ambulância na
rua. Sobrepondo-se ao barulho da sirena, gritou ao
agente:
- Levemo-lo imediatamente para o patamar.
Arrastaram o corpo desfalecido para fora do apar-
tamento. Enquanto aguardavam pelo elevador, o polí-
cia voltou a tentar detectar as batidas cardíacas de
Fitzpeterson.
- Caramba, não consigo sentir nada.
O elevador chegou, tranzendo dois funcionários das
ambulâncias. O mais velho lançou uma olhadela ao
corpo prostrado e perguntou:
- Overdose?
- Sim - retorquiu o polícia.
- Então nada de maca, Bill. � mantê-lo de p‚.
O polícia perguntou a Kevin:
- Quer acompanhá-lo?
Era a última coisa que Kevin desejava fazer.
- Tenho de ficar aqui para fazer um telefonema -
respondeu.
Os homens da ambulância encontravam-se já den-
tro do elevador, amparando Fitzpeterson de cada
lado.
- Vamos andando - disse o mais velho, carregan-
do no botão.
O polícia voltou a pegar no rádio e Kevin regressou
137

ao interior do apartamento. O telefone estava sobre a


secretária, mas não queria que o agente escutasse.
Talvez houvesse uma extensão no quarto.
Foi ver. Ao lado da cama via-se um pequeno supor-
te com um Trimphone cinzento. Ligou para o Post.
- Registos, por favor... Daqui fala Kevin Hart.
Tim Fitzpeterson, ministro do Governo, foi hoje
apressadamente levado para o hospital depois de ter
tentado cometer suicídio ponto parágrafo. Encontrei o
corpo inconsciente do ministro da Energia depois de
este me ter dito vírgula num telefonema hist‚rico vír-
gula que estava a ser alvo de chantagem ponto pará-
grafo. O ministro...
Kevin não terminou.
- Ainda aí está? - perguntou a registadora.
Kevin ficou calado. Acabara de reparar no sangue
que empastava os lençóis amarrotados mesmo junto
de si, e sentiu-se agoniado.

17
®Que obtenho eu do meu trabalho?¯, fora a pergunta
que Derek Hamilton dirigira a si mesmo durante toda
a manhã, enquanto os medicamentos iam deixando de
fazer efeito e a dor, que a sua úlcera provocava, se ia
tornando cada vez mais aguda e frequente. Tal corno
a dor, a pergunta vinha … tona em momentos de
stress. Hamilton começara mal, numa reunião com uni
director financeiro que propusera um programa de di-
minuição de despesas que ia at‚ ao encerramento de
cinquenta por cento de toda a operação. O plano não
era viável - teria beneficiado o fluxo de fundos mas
destruiria a rendibilidade -, por‚m, Hamilton não
conseguiu ver alternativas e o dilema deixara-o irado.
138
Gritara para o contabilista: ®Peço-lhe soluções e o se-
nhor manda-me fechar o raio da loja!¯ Sabia que seme-
lhante comportamento para com a gerência competente
era perfeitamente inadmissível. O mais certo era o ho-
niem apresentar a sua demissão, e possivelmente não
conseguirem dissuadi-lo de tal. Depois a sua secretá-
ria, uma imperturbável senhora casada que falava três
línguas, incomodarão com uma lista de trivialidades,
e ele tamb‚m gritara com ela. Sendo como era, prova-
velmente pensaria que suportar tais atitudes fazia par-
te das suas funções, mas isso não servia de desculpa,
pensou.
E de cada vez que praguejava consigo próprio, com
o seu pessoal e com a sua úlcera, perguntava-se: ®Que
estou eu a fazer aqui?¯
Enquanto o automóvel percorria a pequena distân-
cia entre o seu escritório e o de Nathaniel Fett, pas-
sou mentalmente em revista algumas respostas possí-
veis. O dinheiro como incentivo não podia ser posto
de parte com aquela facilidade como …s vezes gosta-
ria. Era certo que ele e Ellen podiam viver com todo
o conforto com o seu capital, ou mesmo com os juros
deste. Mas os seus sonhos iam al‚m de uma vida desa-
fogada. Um verdadeiro sucesso nos ne ócios traduzir-
9
-se-ia num iate de um milhão de libras, numa villa em
Cannes, num ancoradouro particular, e na possibilida-
de de comprar os Picassos que desejasse sem ter de se
contentar em admirar reproduções em livros lustrosos.
Assim eram os seus sonhos - ou tinham sido -,
mas, provavelmente, já era demasiado tarde para os
concretizar. A Hamilton Holdings não daria lucros fa-
bulosos no tempo que lhe restava de vida.
Durante a juventude, desejara possuir poder e pres-
tígio, supunha. Falhara esse objectivo. A presidência
de uma empresa deficitária não lhe trouxera prestígio,
independentemente da dimensão que ela pudesse ter;
e o seu poder tornara-se ineficaz contra as limitações
impostas pelos contabilistas.
139

Não estava muito certo de perceber o que as pes-


soas queriam dizer quando falavam de realização pro-
fissional. Era uma expressão estranha, que lhe trazia
a mente a imagem de um artesão a construir uma me-
sa a partir de um pedaço de madeira, ou de um agri-
cultor a conduzir um rebanho de ovelhas roliças ao
mercado. Nos negócios, as coisas processavam-se de
forma diferente: mesmo que se fosse moderadamente
bem sucedido, surgiriam sempre novas frustrações.
E para Hamilton nada mais contava do que os negó-
cios. Mesmo que o tivesse desejado, faltava-lhe a ha-
bilidade para construir mesas ou criar ovelhas, escre-
ver livros ou desenhar edifícios para escritórios.
Voltou a pensar nos filhos. Ellen tivera razão: ne-
nhum deles contava com a herança.@ Se lhes pedissse
conselho, certamente dir-lhe-iam: ®E seu... gaste-o!¯
Não obstante, desfazer-se do negócio que enriquecera
a sua família ia contra os seus instintos. ®Quem sabe¯,
reflectiu, ®deva contrariar os meus instintos, já que
segui-los não me tem tornado feliz.¯ Interrogou-se,
pela primeira vez, sobre o que faria se não tivesse de
ir para o esc ritório. A vida social da localidade onde
vivia não o interessava. Passear at‚ ao bar com o cão
pela trela, como fazia o seu vizinho, o coronel Quin-
ton, só proporcionaria a Hamilton um imenso t‚dio.
Os jornais não lhe diziam nada - agora só lia as pági-
nas respeitantes a negócios, mas se não tivesse ne-
nhum, estas tornar-se-iam monótonas. Gostav a do seu
jardim, no entanto, não podia imaginar-se gastando o
dia inteiro a arrancar ervas daninhas e a deitar fertili-
zante na terra.
®Que costumávamos nós fazer quando ‚ramos no-
vos?¯ Parecia-lhe, em retrospectiva, que Ellen e ele ti-
nham passado uma quantidade de tempo horrível sem
fazer absolutamente nada. Tinham dado grandes pas-
seios no seu carro de dois lugares, …s vezes iam a uni
pequenique com amigos. Porquê? Porquê enfiarem-se
140
num carro, percorrerem grandes distâncias, comerem
sanduíches e voltarem para casa? Tinham ido a espec-
táculos e a restaun-ites, mas, era só … noite. No en-
tanto, sempre parecera disporem de poucos dias livres
para passarem juntos.
Bem, talvez fosse tempo de ele e Ellen começarem
a redescobrir-se um ao outro. E um milhão de libras
chegaria para comprar alguns dos seus sonhos. Pode-
riam ter uma villa - talvez não em Cannes, mas algu-
res no Sul. Poderia adquirir um iate suficientemente
grande para enfrentar o Mediterrâneo e suficiente-
mente pequeno para que ele o conduzisse pessoal-
mente. O ancoradouro particular estava fora de ques-
tão, mas talvez sobrasse o bastante para um ou dois
quadros.
Esse tal Laski nem calculava os sarilhos em que se
ia meter. Estes pareciam, no entanto, ser a sua espe-
cialidade. Hamilton conhecia-o vagamente. O homem
não possuia origens, educação, família; mas tinha ca-
beça e dinheiro, e em tempos difíceis esses atributos
tinham mais peso do que a boa linhagem. Talvez Las-
ki e a Hamilton Holdings se merecessem um ao outro.
Hamilton fizera uma observação estranha a Natha-
niel Fett: ®Diz a Laski que se lhe vender a minha em-
presa ao meio-dia, quero o dinheiro comigo …s doze
horas.¯ Que excêntrico, pedir dinheiro na mão como
se fosse o dono de uma taberna de Glasgow. Mas sa-
bia porque o fizera. O objectivo fora libertar-se da de-
cisão final: se Laski pudesse apresentar o dinheiro, o
negócio concretizava-se; caso contrário, não se reali-
zaria. Incapaz de se decidir, Hamilton atirara uma
moeda ao ar.
De repente, desejou fervorosamente que Laski con-
seguisse arranjar o dinheiro. Derek Hamilton nunca
mais queria voltar …quele escritório.
O carro deteve-se em frente do estabelecimento de
Fett, e Hamilton apeou-se.
141

18
A beleza de se ser escuta, conforme Bertie Chiese-
man descobrira, estava em poder fazer-se praticamente
tudo o que se desejasse enquanto se escutava a troca
de mensagens, via rádio, entre apolícia. E a trag‚dia
ponto de vista, estava em ele não ter
do facto, do seu
quase nada para fazer. Naquela manhã, já varrera a
carpeta - um processo que fazia levantar a poeira pa-
ra a seguir esta voltar a assentar - enquanto as ondas
a‚reas eram preenchidas com mensagens desinteres-
santes acerca do trânsito na Old Kent Road. Tamb‚m
se barbeara na pia do canto, utilizando uma navalha e
água quente de Ascot; e para o pequeno-almoço frita-
ra uma só fatia de toucinho fumado no fogão que ti-
nha na mesma divisão. Comia muito pouco.
Telefonara para o Evening Post só uma vez desde a
sua primeira comunicação das oito da manhã: para
ra chamada uma ambulân-
lhes passar a dica de que fo
cia a um quarteirão de apartamentos em Westminster.
O nome do paciente não fora divulgado atrav‚s do rã-
dio, mas Bertie deduzira, pela morada, tratar-se pos-
sivelmente de algu‚m importante. Agora, competia …
redacção ligar para a sede das ambulâncias e pedir
e lá soubessem de quem se tratava, dariam
o nome; e s
a informação. Era frequente os homens do serviço de
ambulâncias só fazerem o seu relatório depois de o pa-
ciente dar entrada no hospital. De vez em quando, Ber-
tie falava com os repórteres e perguntava-lhes sempre
como tinham utilizado a informação que lhes dera,
transformando-a em artigos. Estava muito bem infor-
mado sobre os mecanismos do jornalismo.
Al‚m do facto comunicado e do trânsito, houvera
apenas roubos em lojas, actos de vandalismo insignifi-
cantes, um par de acidentes, uma pequena manifesta-
ção em Downing Street, e um mist‚rio.
142
O mist‚rio passava-se na zona leste de Londres,
mas o conhecimento de Bertie ficava-se por aí. Escu-
tar a um alerta a todas as unidades móveis, mas a men-
sagem subsequente não fornecera qualquer informa-
ção: os carros deviam procurar uma carrinha azul com
determinado número de matrícula. Poderia simples-
mente ter sido sequestrada com uma carga de cigar-
ros, ou ser conduzido por algu‚m que a polícia queria
interrogar, ou poderia ainda estar integrada num as-
salto. Fora utilizada a palavra ®Obadiah¯; Bertie não
sabia porquê. Logo após o alerta, tinham sido desta-
cadas três viaturas para procurarem a carrinha. O fac-
to não tinha grande relevância.
A agitação poderia não se basear em nada de espe-
cial - quem sabe se fora a esposa de algum inspector
da Esquadra de Flyinf que fugira; já não era a primei-
ra vez que a Bertie se deparava uma situação seme-
lhante. Por outro lado, poderia ser algo de importan-
te. Aguardava mais informações.
A senhoria chegou enquanto lavava a frigideira com
água quente e um trapo. Secou as mãos na camisola e
agarrou no livro das rendas. Mrs. Keeney, de avental
e rolos na cabeça, olhava, espantada, para o equipa-
mento de rádio, apesar de o ver todas as semanas.
Bertie entregou-lhe o dinheiro e a mulher assinou o
livro. Depois, passou-lhe uma carta.
- Não percebo porque não põe alguma música bo-
nita a tocar - disse.
Bertie sorriu. Não lhe dissera qual a utilidade que
dava ao rádio, pois escutar as transmissões da polícia
era contra a lei.
- Não sou grande apreciador de música - decla-
rou.
A senhoria sacudiu a cabeça resignadamente e saiu
porta fora. Bertie abriu a carta. Era o seu cheque
mensal do Evening Post. Fora um bom período de tra-
balho: o cheque era de quinhentas libras. Bertie não
pagava impostos. Tinha dificuldade em gastar todo o
143

seu dinheiro. O seu trabalho impelia-o a viver com


simplicidade. Passava todas as suas noites em bares, e
aos domingos saía no seu carro, o unico luxo que se
permitia, um Ford Capri novinho em folha. Ia a todo
o gênero de locais, como se fosse um turista: estivera
na Catedral de Cantuária, no Castelo de Windsor, em
Beaulieu, St. Albans, Bath, Oxford; visitara parques
de safari, mansões senhoriais, monumentos antigos,
cidades históricas, pistas de corridas e parques de di-
versões, tudo com igual prazer. Nunca dispusera de
tanto dinheiro na sua vida. Havia o suficiente para
comprar o que desejava, e ainda sobrava um pouco
para p“r de parte.
acabou de lavar
Guardou o cheque numa gaveta e
a frigideira. Quando ia a guardá-la, o rádio crepitou e
um sexto sentido aconselhou-o a escutar atentamente.
Exactamente, uma Bedford azul. Alfa Charlie
Londres dois zero três Mãe. Se tem o quê? Caracterís-
dentro repararás
ticas especiais? Sim, se olhares para
mente fora do vulgar... Seis
num pormenor extrema
caixas grandes cheias de notas usadas.
Bertie franziu o sobrolho. O operador do rádio da
sede estava9 nitidamente, a armar em engraçadinho;
mas o que dissera significava que a carrinha procurada
transportava uma vasta soma `de dinheiro. Tal tipo de
viatura não desaparecia acidentalmente. Devia ter si-
do desviada.
Bertie sentou-se … sua mesa e estendeu a mão para
o telefone.
19
Felix Laski e Nathaniel Fett levantaram-se quando
Derek Hamilton entrou na sala. iltori, o
Laski, o comprador em potência, e Ham.
144
vendedor, apertaram rapidamente as mãos, quais pu-
gilistas antes de um combate. Laski apercebeu-se,
com um sobressalto, de que ele e Hamilton enverga-
vam fatos idênticos: azuis-escuros com riscas finas.
At‚ vestiam a mesma jaqueta de seis botões e abas so-
brepostas no peito, sem bolsos. Mas o corpo pesado
de Hamilto fazia desaparecer toda a elegância que o
ri
ia proporcion
estilo pod ar. Nele, o fato mais impecável
pareceria um bocado.de pano a embrulhar gelatina.
Laski sabia, sem precisar de se olhar ao espelho, que
o seu próprio fato parecia muito mais dispendioso.
Recomendou a si mesmo que se não sentisse supe-
rior. Uma atitude errada poderia deitar por terra uma
negociação. Declarou:
- � um prazer voltar a vê-lo, Hamilton.
Hamilton inclinou a cabeça.
- Como vai, Mr. Laski.
A cadeira chiou ao receber o peso do seu corpo.
A utilização do ®Mr.¯ não escapou a Laski. Hamil-
ton só trataria pelo nome próprio os seus iguais.
Laski cruzou as pernas e aguardou que Fett, o cor-
retor, iniciasse o processo. Analisou Hamilton disfar-
çadamente. O homem devia ter tido uma aparência
agradável na sua juventude, concluiu: tinha uma testa
alta, um nariz direito e olhos azuis-claros. Naquele
momento aparentava descontracção, de mãos entrela-
çadas … sua frente. Laski pensou que tinha diante de
si um homem com decisões já tomadas.
Fett declarou:
Para que conste, Derek possui quinhentas e dez
mil acções da Hamilton Holdings, Limitada, empresa
pública. As restantes quatrocentas e noventa mil per-
tencem a várias entidades e não existe diferença entre
o capital autorizado e o emitido. Mr. Laski oferece-se
para comprar essas quinhentas e dez mil acções pela
soma de um milhão de libras, na condição de a escri-
tura de venda ter a data de hoje e ser assinada ao
meio-dia.
145

Ou que uma carta nesse sentido tenha a referida


data e assinatura.
Exactamente.
Laski desligou, enquanto Fett continuava a, enun-
ciar formalidades em tom monocórdico e seco. Pensa-
Iton merecia perder a
va, provavelmente, que Hami
cidade e o elevado po-
esposa. Uma mulher com a viva
tencial de Ellen podia aspirar a uma vida amorosa em
pleno: o marido não tinha o direito de se deixar fe-
necer.
®Eu aqui a roubar a mulher a um homem e a tirar-
-lhe o trabalho de uma vida¯, reflectiu, ®e no entanto
e embaraçar-me tratando-me por
ele ainda consegu
senhor'. ¯
Na minha opinião - concluiu Fett -, o negócio
pode ser feito tal como Mr. Laski o delineou. Os do-
cumentos são satisfatórios. Só falta a questão mais de-
licada, justamente saber se Derek vende, e em que
condições.
Recostowse na cadeira como se tivesse completado
um ritual.
Hamilton olhou para Laski.
Que planos tem para o grupo? perguntou.
Laski reprimiu um suspiro. Não fazia sentido proce-
der a qualquer contra-interrogatório. Ele dispunha de
plena liberdade para contar a Hamilton o chorrilho
de mentiras que muito bem entendesse. Foi o que fez.
O primeiro passo será dar-lhe uma poderosa in-
jecção de fundos - respondeu. - A seguir, uma me-
lhoria nos serviços de gestão, uma lufada de ar fresco
nos lugares cimeiros das empresas em funcionamento,
e alguns ajustamentos em sectores com resultados me-
nos brilhantes.
Nada poderia estar mais longe da verdade, mas se
Laski não
Hamilton queria ler o guião do princípio,
se importava de lhe fazer a vontade.
Escolheu o momento crucial para apresentar a
sua proposta.
146
- Nem por isso - observou Laski. - O poço pe-
trolífero, se for caso disso, será um bónus. O que
compro ‚ um grupo basicamente forte que está a pas-
sar por uma temporada menos propícia. Torná-lo-ei
lucrativo sem alterar as suas infra-estruturas. Esse ‚,
por acaso, um talento especial que eu tenho. - Sorriu
constrangidamente. - Apesar da minha fama, inte-
ressa-me gerir indústrias autênticas, não investir em
acções.
Captou um breve olhar hostil de Fett: o corretor sa-
bia que ele estava a mentir.
- Portanto, porquê o prazo final ao meio-dia?
- Penso que o preço das acções da Hamilton subi-
rão vertiginosamente se conseguir a licença. Esta po-
derá ser a última oportunidade de que disponho, du-
rante uns tempos, de a comprar a um preço razoável.
- E justo - reconheceu Hamilton, tirando a ini-
ciativa a Fett. - Mas tamb‚m eu determinei um pra-
zo final. Como se sente em relação ao facto?
Muito satisfeito - mentiu Laski.
Na verdade sentia-se terrivelmente preocupado.
Não contara com o desejo de Hamilton em ter o di-
nheiro ®na mão¯ na altura em que o negócio fosse as-
sinado. Laski planeara pagar um depósito naquele dia
e o resto quando os contactos finais fossem trocados.
Mas apesar de a exigência de Hamilton ser excêntrica,
era perfeitamente razoável. Uma vez a carta assinada,
Laski poderia transaccionar as acções, quer vendendo-
-as quer utilizando-as para obter um empr‚stimo.
O que tencionara fazer fora servir-se das acções - ao
seu preço inflacionado pelo petróleo - para levantar
dinheiro para pagar a aquisição original.
Mas caíra no buraco que cavara. Tentara Hamilton
com um negócio rápido e o velho alinhara com denia-
siada facilidade. Laski não sabia o que fazer, pois não
dispunha de um milhão de libras - andara … cata dos
últimos niqueis para completar as cem mil de depósi-
147

to. Mas. o que não iria fazer sabia ele: permitir que
aquele negócio lhe escapasse por entre os dedos.
Muito satisfeito - repetiu.
Fett disse:
Derek, talvez seja a altura de nós dois termos
uma pequena conversa a sós...
- Não me parece - interrompeu Hamilton. -
A não ser que tenciones dizer-me que este negócio es-
tá cheio de ciladas...
- De forma alguma.
- Nesse caso.. Hamilton virou-se para Laski -
aceito.
Laski p“s-se de p‚ e apertou a mão a Hamilton.
O homem corpulento ficou vagamente embaraçado
com o gesto, mas Laski fez questão no mesmo. Os ho-
Hamilton podiam sem re encontrar um
mens como P
meio de escaparem a cláusulas de um contrato, mas
não conseguiriam atrever-se a recusar um aperto de
mão.
Laski disse:
Os fundos encontram-se no Cotton Bank da Ja-
maica... Sucursal de Londres, evidentemente. Presu-
mo que o facto não constitua problerna.
Tirou um livro de cheques do bolso.
Fett franziu o cenho. Tratava-se de um banco muito
pequeno, embora perfeitamente respeitável. Teria
preferido um cheque passado a um banco mais acessí-
vel, por‚m, naquele estádio do negócio não Dodia ob-
jectar sem parecer obstrutivo: Laski sabia que ele che-
garia a essa conclusão.
Laski preencheu o cheque e entregou-o a Hamilton.
Não ‚ todos os dias que um homem embolsa um
milhão de libras - observou.
Hamilton pareceu ficar jovial. Sorriu e retorquiu:
E não ‚ todos os dias que um homem o desem-
bolsa.
Laski disse:
148
Tinha eu os meus dez anos quando o nosso velho
galo morreu e eu fui com o meu pai comprar outro ao
mercado. Custou o equivalente a... oli, três libras.
Mas a minha família andara a economizar esse dinhei-
ro durante um ano. Custou mais comprar aquele galo
do que qualquer outro negócio que eu alguma vez te-
nha feito, incluindo este. - Sorriu, ciente de que es-
cutavam a sua história com constrangimento e total
ausência de interesse. - Um milhão de libras não ‚
nada, mas um galo pode salvar uma família inteira da
fome.
Hamilton tartamudeou:
- � verdade.
Laski reassumiu a sua imagem habitual.
- Permitam-me que ligue @ara o banco a fim de os
avisar de que este cheque vai a caminho.
- Com certeza - disse Fett, acompanhando-o at‚
… porta e apontando. - Aquela sala está vazia. Vale-
rie passar-lhe-á uma linha.
Obrigado. Quando voltar, poderemos assinar o
documentos. s
Laski foi at‚ … pequena sala e pegou no ausculta-
dor. Ao ouvir o sinal de linha, olhou para fora da sala
a fim de ver se Valerie não estaria … escuta. Esta en-
contrava-se junto do arquivo. Laski discou.
- Cotton Bank da Jamaica.
- Fala Laski. Passa-me Jones.
Houve uma pausa.
- Bom dia, mister Laski.
- Jones, acabei de assinar um cheque no valor de
um milhão de libras.
A Princípio não houve resposta. Depois Jones ex-
clamou:
- Jesus! Não tem cobertura.
- O que não te impedirá de o deixares passar.
- Mã e quanto a ThreadneedIe Street? - A voz
do banqueiro começara a esganiçar-se. - Não temos
dinheiro suficiente em depósito no banco!
149

Resolveremos esse problema quando for a altura.


Mr. Laski. Este banco não pode autorizar a
transferência de um milhão de libras da sua conta no
Bank of England para outra conta no Bank of En-
gland, porque este banco não possui um milhão de li-
bras no Bank of England. Penso que a situação não
pode ser mais clara.
Jones, de quem ‚ o Cotton Bank da Jamaica?
Jones suspendeu audivelmente a respiração.
- Seu, senhor.
- Precisamente.
Laski pousou o auscultador.
MEIO-Dm

20
Peter ®Jesse¯ James trans irava. O sol do meio-dia
fazia-se sentir inusitadamente forte, e o vidro do pára-
-brisas da carrinha aumentava o calor ao ponto de os
raios lhe queimarem os braços roliços despidos e
aquecerem desagradavelmente as pernas das calças.
Fazia um calor tremendo.
Al‚m disso, sentia-se aterrorizado.
Jacko dissera-lhe para guiar devagar. O conselho fo-
ra sup‚rfluo. Cerca de quilómetro e meio a seguir ao
ferrc-velho, haviam-se-lhe deparado bichas no trânsi-
to; e desde então fora atravessar o Sul de meia Lon-
dres a passo de caracol. Dificilmente se poderia ter
apressado, mesmo que o pretendesse.
Levava ambas as portas corrediças da carrinha aber-
tas, mas nem tal ajudava. Não corria uma aragem
quando o veículo estava parado e tudo quanto obtinha
ao avançar era uma brisa ligeira formada pelo fumo
quente dos escapes.
Jess achava que conduzir devia ser uma aventura.
Apaixonara-se pelos automóveis desde que roubara o
seu primeiro carro - um Zephyr-Zodiac com lamina-
dos feitos sob encomenda -, aos doze anos. Adorava
passar, c‚lere, as luzes reguladoras do trânsito, dar as
curvas em derrapagem e pregar sustos de morte aos
condutores de domingo. Quando algum motorista se
atrevia a apitar-lhe, Jesse gritava-lhe imprecações e
151
agitava o punho no ar, imaginando que disparava um
tiro na cabeça do estupor. Andava sempre com uma
pistola no porta-luvas do seu próprio carro. Nunca fo-
ra usada.
Mas guiar não tinha piada quando se levava uma for-
tuna roubada no porta-bagagens. Havia que acelerar
lentamente e travar suavemente, fazer o velho sinal com
a mão quando se queria parar, evitar as ultrapassagens e
dar prioridade aos peões nos cruzamentos. Ocorreu-lhe
que poderiam desconfiar de tão bom comportamento:
era bem possível que um polícia inteligente, ao ver um
jovem conduzir uma carrinha como se fosse um velhote
num exame de condução, se sentisse desconfiado.
Chegou a mais um cruzamento na interminável
4 South Circular Road. As luzes passaram do verde
pa-
ra o amarelo. O instinto de Jess foi carregar no acele-
rador e passar velozmente o sinal... mas soltou um
suspiro de enfado, p“s o braço de fora da janela como
um idiota, e parou cuidadosamente.
Tinha de fazer um esforço para não se preocupar -
as pessoas nervosas cometiam asneiras. Devia esque-
cer-se do dinheiro, pensar noutra coisa qualquer. Per-
correra milhares de quilómetros atrav‚s do exasperan-
te trânsito londrino sem nunca ser detido pela lei: por
que haveria aquele dia de ser diferente? Nem mesmo
Velho Bill era capaz de cheirar dinheiro ilegítimo.
O sinal verde apareceu e ele avançou. A rua a funi-
lava junto de um centro comercial, em frente do qual
gas, e uma s‚
estavam parados camiões de entre rie de
passadeiras para peões abrandava o fluxo dos carros.
Os passeios estavam pejados de pessoas que andavam
…s compras e obstruidos por vários vendedores ambu-
lantes agitando no ar bijuteria fora de moda e cober-
tas de protecção para tábuas de engomar.
As mulheres envergavam roupas de Verão - o ca-
lor era de se lhe tirar o chap‚u. Jesse começou a ob-
servar as T-shirts, os vestidos deliciosamente folgados
152
e os Joelhos … mostra, enquanto ia avançando lentamen-
te na bicha. Gostava de raparigas de trasei iros gr
andes,
de modo que perscrutou a multidão … procura de um ‚s-
p‚cline adequado que pudesse despir com o olhar.
Localizou-a a uns bons cinquenta metros de distân-
1
cia. Trazia uma carnisola de nylon azul e umas calças
1
brancas justas. Provavelmente, 'maginava-se com ex-
cesso de peso, por‚m, Jess ter-lhe-'a dito o contrário.
Usava um estupendo soutien … moda antíga, que fazia
com que os seios fizessem lembrar torpedos; e o cós
alto das calças realçava-lhe as ancas generosas. Jesse
fixou o olhar nela, … espera de lhe ver os seios balan-
çar. Assim aconteceu.
O que ele gostaria de fazer era colocar-se atrás dela,
puxar-lhe as calças lentamente para baixo, depois...
O carro … sua frente avançou cerca de uma vintena
de metros e Jesse seguiu-o. Era um Marina novinho
em folha, com capota de vinil. Talvez comprasse um
para si com a parte que lhe cabia do saque. A fila de
automóveis parou novamente. Jesse accionou o travão
de mão e procurou a rapariga roliça.
Só voltou a vê-Ia quando o trânsito recomeçou a an-
dar. Ao enfiar a mudança reparou que estava a olhar
para a montra de uma sapataria, de costas para ele.
Tinha as calças tão justas que ele podia ver-lhe o con-
torno das cuecas, duas linhas em diagonal a aponta-
rem para a junção das coxas. Ele adorava poder ver-
lhes as cuecas atrav‚s do tecido das calças: excitava-o
quase tanto quanto um traseiro ao l‚u. Depois baixa-
va-lhe as cuecas, pensou, e...
Ouviu-se um estrondo de aço contra aço. A carrinha
parou com um solavanco, atirando Jesse contra o vo-
lante. As portas fecharam-se com um violento baque
duplo. Ainda mesmo antes de olhar, sabia o que tinha
feito; e o sabor do medo fê-lo sentir-se agoniado.
O Marina … sua frente parou antes do tempo e Jes-
se, entretido com a rapariga roliça das calças justas,
foi estatelar-se contra a parte traseira do automóvel.
153

Saiu da carrinha. O condutor do carro de luxo já


estava a inspeccionar os estragos. Ergueu o rosto, co-
rado de raiva, para Jesse.
Seu estupor doido - insultou. - Você ‚ cego
ou estúpido?
Tinha um sotaque do Lancashire.
Jesse ignorou-o e olhou para os pára-lamas dos dois
veículos, enlaçados num abraço de metal. Fez um es-
forço para manter a calma.
- Desculpe, amigo. A culpa foi minha.
- Desculpe! Gente como você devia ser proibida
de andar nas estradas.
Jesse olhou para o homem. Era baixo e corpulento,
e vestia um fato completo. O rosto redondo era a
imagem da mais pura indignação Tinha a agressivida-
de espontânea das pessoas baixas, assim como a incli-
nação da cabeça para trás que lhes era característica.
Jesse detestou-o imediatamente. Fazia lembrar um
sargento-major. Jesse teria gostado de lhe dar um
murro nas trombas; ou melhor, um tiro nos miolos.
Todos nós cometemos erros - observou com
amabilidade forçada. - Troquemos apenas de nomes
e tudo o mais, para voltarmos …s nossas vidas. Não
passa de uma pequena batida. Não exagere o aconte-
cido.
Não devia ter feito semelhante observação. O ho-
menzinho ficou ainda mais vermelho.
- Não pense que se safa assim com essa facilidade
disse.
O trânsito em frente avançara e os condutores que
estavam atrás começavam a ímpacientar-se. Vários
apitaram. Um apeou-se para ver o que se passava.
O condutor do Marina assentou a matrícula da car-
rinha num pequeno bloco de notas. Aquele tipo de in-
divíduo andava sempre com um pequeno bloco de
apontamentos e uma caneta no bolso do casaco, pen-
sou Jesse.
154
O homem fechou o bloco.
Você guia pessimamente. Vou telefonar … polí-
cia.
O motorista do carro de trás disse:
Que tal afastarem os vossos automóveis para o
lado a fim de nós podermos passar?
Jesse pressentiu um aliado.
- Por mim tudo bem, mas aqui este tipo quer cha-
mar a polícia para tratar do assunto.
O homem corpulento acenou com um dedo.
- Eu conheço o seu gênero... Guia que nem um
doido e depois o seguro que pague. Vou tramar-lhe a
vida, rapazinho.
Jesse deu um passo em frente, cerrando os punhos;
depois parou. Estava a entrar em pânico.
Os olhos do outro homem estreitaram-se. Dera-se
conta do medo de Jesse.
- A polícia deve ter mais que fazer - implorou.
- Eles que decidam se têm mais que fazer. - Olhou
em volta e avistou uma cabina telefónica. - Espere
aqui por mim.
E afastou-se.
Jesse agarrou-lhe no ombro. Agora estava assusta-
do. Declarou:
Isto não tem nada a ver com a polícia!
O homem voltou-se e afastou a mão de Jesse com
brutalidade.
- Largue-me, seu rapazelho atrevido...
Jesse agarrou-lhe nas lapelas e levantou-o at‚ o ter
na ponta dos p‚s.
Eu lhe dou o rapazelho atrevido...
De repente tomou consciência da multidão que se
reunira para assistir … querela com interesse. Havia
cerca de uma dúzia de pessoas. Fitou-as. Eram, na
sua maioria, donas de casa com sacos de compras nas
mãos. A rapariga das calças justas estava na primeira
fila. Apercebeu-se de que optara pelo pior comporta-
mento possível.
155

Decidiu p“r um ponto final na situação.


Largou o homem indignado e entrou na carrinha.
Este ficou a olhar para ele com incredulidade.
Jesse voltou a ligar o motor maltratado e fez mar-
cha atrás. Os veículos desengancharam-se com um pu-
xão violento. Reparou que o pára-choques do Marina
se soltara e que tinha os faróis de trás estilhaçados.
São cinquenta libras 'para o arranjo, mas uma de dez
ser for o próprio a fazer o trabalho, pensou desespera-
damente.
O homem corpulento postou-se defronte da carri-
nha e dali não saiu, qual Neptuno, agitando autorita-
riamente o dedo.
Você não sai daqui! - gritou.
A medida que a discussão era mais espectacular, mais
densa se tornava a multidão. Verificou-se um abran-
damento no trânsito que vinha no sentido contrário e
os carros de trás começaram a contornar o local do
acidente.
Jesse conseguiu meter a primeira e acelerou o mo-
tor. O homem não arredou do seu lugar. Jesse largou
a embraiagem com brusquidão e a carrinha precipi-
tou-se para a frente.
O homem corpulento atirou-se, demasiado tarde,
para o passeio. Jesse ouviu um baque surdo vindo do
guarda-lama do seu lado, quando o homem foi atirado
ao ar. Atrás de si, um automóvel travou com um gran-
de chiar de pneus. Jesse meteu as mudanças seguintes,
escapando-se sem olhar para trás.
A rua parecia estreita e opressiva, como uma ra-
toeira, mas ele ia avançando estrepitosamente, igno-
rando faixas para peões, desviando-se e travando.
Tentou desesperadamente raciocinar. Deitara tudo a
perder. A operação a correr tão bem e Jesse James ti-
nha de dar cabo dela. Uma carrinha carregada de no-
tas deitada a perder por uma batida de cinquenta pa-
lhaços. Raio de azar!
156
®Tem calma¯, disse a si mesmo. Nem tudo estava
perdido at‚ o prenderem. Ainda havia tempo, se ao
menos conseguisse pensar.
Diminuiu a velocidade e saiu da rua principal. Não
valia a pena voltar a chamar a atenção. Foi andando
por uma s‚rie de ruas secundárias, enquanto reflectia
sobre o assunto.
Que aconteceria a partir dali? O mais provável era
algum mirone ter telefonado para a polícia, sobretudo
depois de ele ter batido no homem. A matrícula da
carrinha estava no pequeno bloco de notas; al‚m disso,
algu‚m no meio da multidão tamb‚m devia ter repa-
rado nele.
Seria acusado de atropelamento e fuga e o número
da matrícula iria para o ar, dirigido a todos os carros-
-patrulhas. Mas passar-se-iam entre três a quinze mi-
nutos at‚ a situação chegar a esse ponto. Mais cinco
minutos e transmitiriam uma descrição de Jesse. Que
levava ele vestido? Calças azuis e camisa cor-de-laran-
ja. Grandes bestas.
Que diria Tony Cox se estivesse aqui para falar?
Jesse recordou o rosto carnudo do patrão e ouviu-lhe
a voz: Vê tu mesmo qual ‚ o problema, certo?
Jesse disse em voz alta:
A polícia tem a minha matrícula e descrição.
Pensa no que farias para resolver o problema.
- Que raio posso eu fazer, Tone? Mudar a matrí-
cula e a minha aparência?
Então fá-lo, certo?
Jesse franziu o sobrolho. O raciocínio analítico de
Tony não ia mais longe. Onde diabo poderia arranjar
uma matrícula, e como a colocaria?
Evidentemente, era fácil.
Apanhou uma rua principal e seguiu por ela at‚ en-
contrar uma garagem. Parou no pátio da frente. Por
trás das bombas de gasolina havia uma oficina de re-
parações. No extremo oposto, um auto-tanque descar-
regava.
157

O empregado aproximou-se, limpando os óculos


com um trapo sujo de óleo.
Cinco libras de gasolina - pediu Jesse. Onde
fica a casa de banho?
Do outro lado.
Jesse seguiu na direcção apontada pelo dedo espeta-
do. Um carreiro de cimento irregular estendia-se ao
lado da garagem. Encontrou uma porta desconjuntada
onde se lia a palavra ®Homens¯ e entrou.
Por trás da garagem, havia uma pequena faixa de
terreno descampado onde carros novos para repara-
ções se amontoavam … mistura com portas enferruja-
das, guarda-lamas amachucados e maquinaria inútil.
Jesse não conseguiu descobrir aquilo que procurava.
A seu lado, a entrada das traseiras da oficina estava
escancarada, suficientemente grande para permitir a
entrada de um autocarro. Não valia a pena mostrar-se
furtivo. Entrou.
Precisou de uns momentos para se ajustar … penum-
bra que reinava no interior, depois de sair do sol.
O ar cheirava a óleo de motor e a ozone. Numa ram-
pa elevatória via-se um Mini, por altura da cabeça,
com as entranhas obscenamente pendentes. A ponta
da frente de um camião articulado estava ligada a um
aparelho de medição Krypton. Um Jaguar, montado
em cunhas, tinha os pneus tirados. Não havia nin-
gu‚m por perto. Consultou o seu relógio: deviam es-
tar a jantar. Olhou em volta.
Avistou os objectos de que precisava.
Em cima de um tambor de óleo, a um canto, via-se
um par de matrículas com os seus números vermelhos
sobre fundo branco. Aproximou-se e pegou nelas.
Voltou a olhar em redor e roubou mais duas coisas:
um fato-macaco limpo que estava pendurado num ca-
bid‚ fixo na parede de tijolo, e um bocado de corda
fina suja, que apanhou do chão.
Uma voz perguntou:
158
Anda … procura de alguma coisa, irmão?
Jesse voltou-se precipitadamente, com o coração a
bater violentamente. Na outra ponta da oficina estava
um negro de fato-macaco sujo de óleo, apoiado ao pá-
ra-lamas branco e reluzente do Jaguar, com a boca
cheia de comida. Ao mastigar, o penteado, … moda de
Africa, movia-se. Jesse tentou disfarçar as matrículas
com o fato-macaco.
- Da casa de banho - respondeu. - Quero mu-
dar de roupa.
Susteve a respiração.
O mecânico apontou.
E lá fora - disse.
Engoliu, deu nova dentada numa sanduíche.
- Obrigado - agradeceu Jesse, apressando-se a sair.
- De nada - retorquiu o mecânico nas suas costas.
Jesse reparou que o homem falava com um sotaque
irlandês. Pretos irlandeses? Aquela era nova.
O empregado da bomba de gasolina estava … sua es-
pera ao lado da carrinha. Jesse sentou-se ao volante e
atirou o fato-macaco e o seu conteúdo para cima do
banco de trás. O empregado olhou para a trouxa com
curiosidade. Jesse explicou:
- Tinha o fato-macaco pendurado na porta de trás.
Deve estar um nojo. Quanto ‚?
- Normalmente levamos uma nota de cinco por
cinco libras de mercadoria. Não dei por ela.
- Eu tamb‚m não, durante cinquenta malditos qui-
lómetros. Eu pedi que me metesse cinco libras, não
foi?
-Foi o que disse. Não paga nada pela retrete.
Jesse entregou-lhe uma nota de cinco libras e arran-
cou rapidamente.
Estava agora ligeiramente afastado do seu caminho,
o que era positivo. A área apresentava-se mais calma
do que os lugares por onde se deslocara anteriormen-
159

te. Viam-se velhas casas isoladas de um lado, afasta-


das da estrada. Castanheiros-da-índia alinhavam-se ao
longo do pavimento. Avistou uma paragem para auto-
I carros da Linha Verde.
Precisava de encontrar um descampado onde pudes-
se executar a troca de matrículas. Voltou a consultar o
seu relógio. Já se deviam ter passado uns bons quinze
minutos desde o acidente. Não havia tempo para
grandes exigências.
Virou na curva seguinte. A rua chamava-se Brook
Avenue. Todas as casas eram duplas. Por amor de
Deus, ele precisava de um lugar menos exposto! Não
podia trocar de matrículas em frente de sessenta do-
nas de casa bisbilhoteiras.
Voltou nova esquina, e outra... e deparou-se-lhe
uma rua secundária por trás de uma pequena fiada de
lojas. Estacionou e desligou o motor. Havia garagens
e contentares do lixo, assim como as portas das trasei-
ras das lojas atrav‚s das quais se fazia a entrega das
mercadorias. Era o melhor que podia esperar.
Passou para a parte de trás da carrinha por cima
das costas do banco. Estava muito calor. Sentou-se
em cima de uma das caixas com dinheiro e enfiou o
fato-macaco pelas pernas. Jesus, estava quase a conse-
guir, só precisava de mais um par de minutos, pensou
era quase uma oração.
Levantou-se e, inclinando-se, acabou de vestir a pe-
ça de roupa. Se deitasse tudo a perder, de certeza que
Tony lhe dava cabo do canastro, reflectiu. Estreme-
ceu. Tony Cox era um filho da mãe duro. Tinha a pá-
ranóia dos castigos.
Jesse puxou o fecho do fato-macaco para cima. Ou-
vira falar de descrições feitas por testemunhas ocula-
res. A polícia já devia andar … procura de um tipo
muito grande, de ar feroz e olhos desesperados, en-
vergando uma camisa cor de laranja e jeans. Quem
160
quer que se lembrasse de olhar para Jesse, veria sim-
plesmente um mecânico.
Pegou nas placas de matrícula. A corda fina desapa-
recera - devia tê-la deixado cair. Olhou para o chão
… sua volta. Raios, havia sempre um bocado de corda
a passear pelo chão de uma carrinha! Abriu a caixa de
ferramentas e encontrou um pedaço de cordel oleoso
enrolado no macaco.
Saiu e foi at‚ … parte da frente do veículo. Traba-
lhou com cuidado, receoso de, com a pressa, deixar o
serviço mal feito. Amarrou a placa vermelha e branca
sobre a capa original, precisamente como as garagens
costumam fazer quando saem com um veículo comer-
cial para uma experiência na estrada. Retrocedeu e
examinou o seu trabalho. Estava óptimo.
Foi at‚ …s traseiras da carrinha e repetiu a operação
com a chapa de trás. Estava pronto. Respirou com
maior alívio.
- Com que então a mudar as matrículas, há?
Jesse deu um pulo e virou-se. Por pouco não des-
maiou. A voz pertencia a um polícia.
Para Jesse, era a última gota. Não se sentia capaz
de mais disfarces, de mais mentiras plausíveis, de mais
artimanhas. Sentiu os seus instintos esvaírem-se. Não
sabia, de todo, o que dizer.
O polícia aproximou-se dele. Era bastante jovem,
com patilhas arruivadas e nariz sardento.
- Problemas?
Jesse ficou espantado por vê-lo sorrir. Um raio de
esperança penetrou-lhe no c‚rebro petrificado. Conse-
guiu falar.
- As placas soltaram-se - disse. - � só apertá-
-Ias.
O polícia concordou.
- Já guiei uma dessas - disse … laia de conversa.
- � mais fácil do que conduzir um automóvel. Belos
trabalhos.
161

Jesse lembrou-se de que o homem talvez estivesse a


brincar a um jogo sádico do gato-e-do-rato, sabendo
perfeitamente que Jesse era o condutor do atropela-
mento e fuga, mas fazendo de conta que ignorava o
facto de maneira a, depois, apanhá-lo desprevenido.
E uma beleza quando trabalham bem - obser-
vou. Sentia gelar o suor que lhe banhava o rosto.
Bem, agora que já terminou, vá andando, está a
bloquear a rua.
Jesse subiu para a carrinha como um sonâmbulo e
p“s o motor a trabalhar. Onde estava o carro do polí-
cia? Teria o rádio desligado? O fato-macaco e as'pla-
cas tê-lo-iam enganado?
Se ele se lembrasse de ir at‚ … parte da frente da
carrinha e visse as marcas deixadas pelo pára-choques
do Marina...
Jesse levantou o p‚ da embraiagem e guiou lenta-
mente pela rua secundária. Parou ao chegar ao fim
desta e olhou para ambos os lados. Pelo espelho late-
ral viu o polícia a entrar, ao fundo, para o carro-
-patrulha.
Jesse entrou na rua e perdeu o veículo da polícia de
vista. Limpou a testa. Tremia.
Diabos me levem. Foi por pouco - exclamou,
suspirando fundo.
21
Evan Jones bebia, pela primeira vez na sua vida,
uísque antes do almoço. Havia uma razão. Ele tinha
um código, que quebrara - tamb‚m pela primeira
vez. Explicava o facto ao amigo, Arny Matthews, mas
não estava a sair-se muito bem, pois a falta de hábito
de beber uísque fazia com que o primeiro duplo já lhe
estivesse a afectar o c‚rebro.
162
� a educação que me deram, sabes - disse com
o seu sotaque musical da ilha de Gales. - Religião ri-
gorosa. Seguíamos a Bíblia … risca. Ora, um homem
pode trocar um código por outro, mas não consegue
livrar-se do hábito da obediência. Compreendes?
- Compreendo - disse Arny que, na verdade, não
compreendia absolutamente nada.
Evan. era gerente da sucursal londrina do Cotton
Bank da Jamaica, Arny era um actuário importante
nos Seguros Fire and General Marine, e viviam em
casas adjacentes, a imitarem o estilo Tudor, em Wo-
king, Surrey. A amizade que existia entre ambos era
superficial mas estável.
- Os bancários possuem um código - continuou
Evan. - Não sei se sabes, mas quando informei os
meus pais de que queria ser bancário foi uma grande
confusão. Em Gales Sul, os rapazes que saem da esco-
la secundária ou vão para professores, ministros, fun-
cionários da Coal Board ou para sindicalistas, mas
não querem ser bancários.
A minha mãe nem sequer sabia o que um actuá-
rio era - observou Arny compreensivamente, não en-
tendendo aonde o outro queria chegar.
- Não falo dos princípios da boa gestão bancária...
a lei do menor risco, a garantia de valor superior ao
empr‚stimo, juros mais altos para prazos mais dilata-
dos... não me refiro a nada disso.
- Não? - retorquiu Arny, sem fazer ideia do que
Evan queria dizer. No entanto, sentia que Evan ia co-
meter uma indiscrição e, … semelhança de quantos vi-
viam na cidade, adorava as indiscrições dos outros. -
Queres mais?
Pegou nos copos.
Evan acenou afirmativamente com a cabeça e ficou
a ver Arny dirigir-se ao bar. Era frequente os dois en-
contrarem-se na sala do Pollard antes de apanharem o
comboio juntos. Evan apreciava os estofos macios dos
163

assentos, a tranquilidade e os barmen vagamente ser-


vis. Não tinha tempo para a nova vaga de bares que
começava a despontar no Square Mile: caves apinha-
das, com música aos berros, para as jovens sumidades
de cabelos compridos e fatos de três peças e gravatas
espalhafatosas, que bebiam grandes canecas de cerve-
ja ou tomavam aperitivos continentais.
Falo de integridade - resumiu Evan quando Ar-
ny voltou. - Um bancário pode ser um parvo e so-
breviver, se se mantiver honesto; mas se não conser-
var a inte ridade...
9
- Absolutamente.
- Agora, vejamos o exemplo de F‚lix Laski. Ali
está um homem completamente desprovido de integri-
dade.
Trata-se do homem que te tem estado a passar
para trás.
Para minha grande mágoa, ‚. Queres que te con-
te como ele assumiu o controlo?
Arny inclinou-se para a frente na sua cadeira, sus-
tendo o gesto de levar o cigarro aos lábios.
- Conta.
- Tínhamos um cliente chamado Propriedades
South MiddIesex. Estavam manietados pelas amorti-
zações de um empr‚stimo feito por uma firma nossa
conhecida, e nós queríamos um escoamento para uma
grande quantidade de dinheiro a longo prazo. Na ver-
dade, o empr‚stimo era demasiado grande para os
bens da empresa mas a garantia era importante. Para
abreviar, fizeram um desfalque no empr‚stimo.
Mas vocês tinham os bens - observou Arny. -
Certamente, os títulos de propriedade estavam no
vosso cofre subterrâneo.
Não valiam nada. O que nós tínhamos eram co-
pias - e o mesmo aconteceu a vários outros credores.
- Fraude declarada.
- De facto, embora tenhamos arranjado maneira
164
de a fazer parecer mera incompetência. Contudo, es-
távamos em apuros. Laski resolveu-nos a situação em
troca de uma maioria nas acções.
- Astuto.
- Mais astuto de que pensas, Arny. Laski pratica-
mente controlava as Propriedades South MiddIesex.
Repara, não era director. Mas dispunha de acções e
trabalhava com eles como consultor, e a gerência era
fraca...
- Portanto, comprou a sua entrada no Cotton
Bank com o dinheiro que pedira emprestado e, que
desfalcara.
- E o que parece, não ‚?
Arny abanou a cabeça.
- Tenho muita dificuldade em acreditar em seme-
lhante coisa.
- Se conhecesses o inalandrim não tinhas.
Na mesa ao lado sentaram-se dois indivíduos com
ar de advogados, de canecas na mão, de modo que
Evan baixou o tom de voz.
1
- E um homem completamente desprovido de in-
tegridade - repetiu.
~- Que golpada. - Notava-se uma nota de admira-
çao , na voz de Arny. - Podias ter ido para os jornais,
se e verdade.
- Que outro publicaria semelhante história al‚m
do Private Eye? Mas ‚ verdadeira, rapaz. Aquele ho-
mem ‚ capaz de tudo. - Bebeu uma golada de uís-
que. - Sabes o que ele fez hoje?
Não poderá ter sido pior do que a negociata do
Middlesex - aguilhoou-o Arny.
- Não poderá? Ali! - Evan tinha agora o rosto li-
geiramente corado e segurava o copo com mão tr‚mu-
Ia. Falou lenta e ponderadamente. - Ele instruiu-me,
instruiu, repara, no sentido de deixar passar um che-
que sem cobertura de um milhão de dólares.
Pousou o copo com um floreado.
165
- Mas e a ThreadneedIe Strect?
- Precisamente o que lhe disse!
Os dois advogados olharam em volta e Evan aper-
cebeu-se de que gritara. Falou com mais calma.
-Precisainente o que eu disse. Não vais acreditar
no que ele respondeu. Disse: ®A quem pertence o
Cotton Bank da Jamaica?¯, e depois desligou-me o te-
lefone na cara.
E tii que fizeste?
Quando o tomador do cheque telefonou, disse-
-lhe que o mesmo tinha cobertura.
Arny soltou um assobio.
O que tu dizes não faz diferença. Quem tem que
fazer a transferência ‚ o Bank of England. E quando
eles descobrirem que tu não tens um milhão...
Eu disse-lhe tudo isso - protestou Evan, aper-
cebendo-se de que estava … beira das lágrimas e sen-
tindo-se envergonhado. - Nunca, mas nunca, em
trinta anos de trabalho bancário, desde o dia em que
comecei por ser caixa no Barclays Bank em Cardiff,
deixei passar um cheque sem fundos. At‚ hoje. - Es-
vaziou o copo e ficou a olhá-lo com ar sombrio.
Tomas outro?
Não. E tu tamb‚m não devias beber mais nada.
Vais demitir-te?
Não tenho outro rem‚dio. - Abanou a cabeça
de um lado para o outro. - Trinta anos. Vá, toma
outro.
Não - disse Arny com firmeza. - Devias ir pa-
ra casa.
Levantou-se e amparou Evan pelo cotovelo.
Está bem.
Os dois homens saíram do bar para a rua. O sol es-
tava alto e quente. Nos caf‚s e nas lojas de sanduíches
tinham começado a formar-se bichas. Duas bonitas se-
cretárias passaram, comendo cones de gelado.
Arny comentou:
166
Está um tempo magnífico para esta altura do
ano.
- Magnífico - concordou Evan lugubremente.
Arny saiu do passeio e mandou parar um táxi.
O veículo negro voltou a esquina e parou com um
guincho.
Evan perguntou:
- Aonde vais?
- Eu não. Tu.
Arny abriu a porta e disse ao motorista:
Estação de Waterloo.
Evan entrou tropegamente para dentro do táxi e
entou-se no banco de trás.
Vai para casa antes que fiques demasiado em-
briagado para andar - disse-lhe Arny.
E fechou-lhe a porta.
Evan abriu a janela.
- Obrigado - agradeceu.
- Em casa ficarás bem.
Evan acenou com a cabeça.
Quem me dera saber o que hei-de dizer a My-
fanwy.
Arny viu o táxi desaparecer, depois voltou para o
seu escritório a reflectir sobre o amigo. Evari estava
arrumado como bancário. Na cidade de Londres, a fa-
ma de pessoa honesta levava tempo a afirmar-se, mas
perdia-se num ápice. Era tão certo Evan ficar sem a
sua como se tivesse roubado a carteira do bolso do
ministro das Finanças.
Talvez conseguisse uma boa pensão, mas nunca mais
arranjaria outro emprego.
Arny estava seguro, ainda que com dificuldades fi-
nanceiras: exactamente o contrário de Evan. Auferia
um salário respeitável, por‚m, pedira um empr‚stimo
para construir uma extensão na sua sala de estar, e
estava a ter dificuldade em pagar. Encontrara uma
167

maneira de tirar vantagem do azar de Evan. Sentiu-se


desleal. No entanto, raciocinou, Evan não poderia so-
frer mais do que aquela conta.
Entrou numa cabina telefónica e discou um número.
Ouviram-se os pips habituais e enfiou uma moeda.
- Evening Post!
- Oue departamento?
- Redactor da secção de economia.
Houve uma pausa, depois outra voz disse:
- Redacção da economia.
- Mervyn?
- Sim.
- Fala Arnold Mattews.
- Viva, Arny. Alguma novidade?
Arny respirou fundo.
O Cotton Bank da Jamaica está em dificuldades.

22
mulher de Willie o Mouco, ia rigidamente
Doreen, segu-
sentada no banco da frente do carro de Jacko,
rando a mala de mão que levava no regaço. Tinha o
rosto empalidecido e os lábios crispados numa estra-
mistura de fúria e temor. Era uma mu-
nha expressão,
tante alta e de ancas grandes,
lher de ossos largos, bas
com tendência para a obesidade devido ao gosto que
Willie tinha pelas batatas fritas. Tam ‚m se apresen
tava pobremente vestida, isto por Willie gostar de cer
veja preta. Olhava fixamente em frente, falando a
Jacko pelo canto da boca.
- Então quem foi que o levou para o hospita19
ntiu Jacko- - Talvez te-
- Não sei, Doreen - me
nha sido um trabalho e eles não quisessem que se sou
ei e que recebi um
besse a quem, compreendes. Só s
168
telefonema a dizer que Willie o Mouco estava no hos-
pital, que contasse … patroa dele, e pumba. - Esbo-
çou o gesto de quem desliga um telefone.
- Mentiroso - disse Doreen calmamente.
Jacko não respondeu.
Nas traseiras do carro, Billy, filho de Willie, olhava
pela janela com ar ausente. O seu corpo comprido e
desajeitado obrigava-o a ir todo enrodilhado no espa-
ço exíguo. Normalmente, gostava de andar de carro,
mas naquele dia sua mãe estava muito tensa e ele sa-
bia que algo de mau acontecera. Não tinha era a cer-
teza do que fora: as coisas mostravam-se confusas.
A mãe parecia zangada com Jacko, mas este era um
amigo. Jacko dissera que o pai estava no hospital, mas
não que adoecera; e de facto, como poderia ser? Ain-
da naquela manhã, quando saíra de casa, muito cedo,
estava bem.
O hospital era um enorme edifício forrado a tijolei-
ra, vagamente gótico, que outrora servira de residên-
cia ao presidente da Câmara de Southwark. Tinham
sido construídas várias extensões de telhados planos
nos terrenos circunstantes, e parques alcatroados para
automóveis tinham obliterado o resto dos campos.
Jacko parou perto da entrada das Urgências. Nin-
1
guem proferiu palavra enquanto saíam do carro e se
dirigiam para a porta. Passaram por um empregado
de ambulância que, de cachimbo na boca, se apoiava
a um postar antitabagístico num dos lados do seu veí-
culo.
Saíram do calor do parque de estacionamento para
a frescura que reinava no interior do hospital. O co-
nhecido odor anti-s‚ptico provocou um nauseante
acesso de medo no est“mago de Doreen. Encostadas
…s paredes viam-se cadeiras de plástico verdes e em
frente da entrada, no meio da passagem, havia uma
secretária. Doreen reparou num rapazinho agarrado a
um dedo onde se cortara com um vidro, num jovem
169

com um braço provisoriamente protegido por talas, e


numa rapariga com a cabeça entre as mãos. Algures,
perto, uma mulher gemeu. Doreen sentiu-se invadir
pelo pânico.
A enfermeira indiana que se encontrava … secretária
falava ao telefone. Aguardaram que terminasse, em
seguida Doreen disse:
Esta manhã deu aqui entrada algum William
Johnson?
A enfermeira não a fitou.
Só um momento, por favor.
Escreveu algo num bloco de apontamentos e depois
lançou um olhar rápido … ambulância que acabara de
chegar. Disse:
Agradeço que se sentem.
Deu a volta … secretária e dirigiu-se para a porta,
passando em frente deles.
Jacko fez menção de se ir sentar, mas Doreen agar-
rou-o pela manga.
- Não saias daqui! - ordenou. - Não tenciono fi-
car aqui especada … espera, não me mexo sem ela me
dar a resposta.
Viram uma maca ser trazida para dentro. A figura
prostrada vinha envolvida num cobertor ensanguenta-
do. A enfermeira escoltou os maqueiros, ajudando-os
a passar duas portas oscilantes.
Uma mulher branca e anafada, envergando o uni-
forme de enfermeira-chefe, entrou por outra porta, e
Doreen foi lamentar-se junto dela.
Porque será que não consigo saber se o meu ma-
rido está aqui ou não? - perguntou estridentemente.
A enfermeira parou e abarcou os três com um só
olhar. A enfermeira indiana voltou.
Doreen acrescentou:
Perguntei-lhe, mas ela não me deu resposta.
A enfermeira-chefe inquiriu:
Senhora enfermeira, porque não foram estas
pessoas atendidas?
170
-Achei que o caso do acidente de estrada com
dois membros decepados era mais grave do que o des-
ta senhora.
- Procedeu bem, mas não há necessidade de iro-
nias. - A enfermeira-chefe anafada voltou-se para
Doreen. - Como se chama o seu marido?
- William Jolinson.
A enfermeira-chefe consultou o registo de entradas.
- Esse nome não consta aqui. - Fez uma pausa.
- Mas temos um paciente não identificado. Do sexo
masculino, branco, constituição física mediana, meia-
-idade, com ferimentos de bala na cabeça.
Jacko disse:
E esse mesmo.
Doreen exclamou:
Oli, Meu Deus!
A profissional de enfermagem pegou no telefone.
E melhor vê-lo para confirmar se se trata real-
mente do seu marido.
Discou um único número e aguardou uns instantes.
- Ali, doutor, fala a enfermeira-chefe Rowe, das
Urgências. Tenho aqui uma mulher que talvez seja a
esposa do paciente ferido a tiro. Sim. Com certeza...
at‚ j ….
Desligou e disse:
- Façam o favor de me acompanhar.
Doreen reprimiu a terrível sensação de desespero
que a acometeu enquanto caminhavam pelos corredo-
res forrados a linóleo do hospital. Temera aquele
acontecimento desde o dia, cerca de quinze anos an-
tes, em que descobrira que casara com um bandido.
Sempre suspeitara do facto; Willie dissera-lhe que ti-
nha um negócio e ela nada mais perguntara, pois vi-
viam-se tempos em que uma rapariga que namorasse
e quisesse casar não podia ser muito exigente. Mas no
casamento nunca era muito fácil manter segredos.
Certa noite, tinham batido … porta, ainda o jovem Bill
171

usava cueiros, e Willie espreitara pela janela e vira


tratar-se de um polícia. Antes de ir atender, recomen-
dou a Doreen: ®Ontem … noite, houve um jogo de pó~
quer aqui: estive eu, Scotch Harry, Tom Webster e o
velho Gordon. Começou …s dez e prolongou-se at‚
madrugadas Doreen, que passara metade da noite
numa casa vazia a tentar adormecer Billy, anuíra apa-
ticamente; e quando a autoridade lhe fizera a pergun-
ta, ela dera a resposta que Willie lhe indicara. A par-
E
tir daí nunca mais deixara de se preocupar.
Quando ‚ apenas uma desconfiança, uma pessoa
ode dizer a si mesma que não há motivo para p
p reo-
cupações; mas quando se sabe que o marido anda al-
ures lá fora a assaltar uma fábrica, uma loja ou at‚
9
m esmo um banco, ‚ impossível uma pessoa não se in-
terrogar sobre se será nessa noite que ele não volta.
Não percebia bem por que razão se sentia tão cheia
de raiva e medo. Não amava Willie, nem sequer em
qualquer sentido próximo do termo. Ele era um mari-
do bem reles: sempre fora de casa durante a noite, so-
vina no dinheiro, e como amante, uma desgraça.
O casamento passara de tolerável a miserável. Doreen
abortara duas vezes, finalmente, viera Billy; depois de
este nascer, deixaram de tentar. Permaneciam juntos
or causa do filho, e ela calculava que não eram o
p
único casal nessa situação. Não que Willie partilhasse
muito do fardo de criar uma criança retardada, no en-
tanto, o facto parecia fazer com que se sentisse sufi-
cientemente culpado para não desfazer o casamento.
O rapaz adorava o pai.
®Não, Willie, eu não te amo¯, pensou. ®Mas quero-
-te comigo e preciso de ti; gosto de te ter ali na ca ma,
sentado ao meu lado a ver televisão, e a fazeres as
tuas paciências em cima da mesa; se isso tem o nome
de amor, nesse caso diria que te amo.¯
Tinham parado e a enfermeira-chefe falava.
- Eu chamo-vos quando o m‚dico mandar - disse.
172
Desapareceu dentro de uma enfermaria, fechando a
porta atrás de si.
Doreen olhou fixamente para a parede pintada de
creme, tentando não adivinhar o que estaria ali den-
tro. Já não era a primeira vez que lhe acontecia algo
do g‚nero, depois do trabalho feito … Componiparts.
Mas nessa altura fora diferente: eles tinham ido a sua
casa, dizendo: ®Willie está no hospital, mas está bem
- apenas abalado.¯ Colocara demasiada gelinhite na
porta do cofre, e perdera toda a audição de um ouvi-
do. Fora ao hospital - outro - e aguardara; mas
soubera que ele estava bem.
Depois daquele trabalhinho, ela tentara, pela pri-
1.
meira e unica vez, encaminhá-lo para uma vida hones-
ta. Ele parecera disposto a ceder, saíra do hospital e
vira-se diante da perspectiva de fazer realmente algo
nes se sentido. Passou alguns dias em casa a descansar,
depois, quando o dinheiro se acabou, voltou a fazer
nova maroteira. Mais tarde deixou escapar que Tony
Cox o aceitara na firma. Ele ficou orgulhoso, e Do-
reen furiosa. A partir daí, passara a odiar Tony Cox.
Tony tamb‚m tinha conhecimento do facto. Estivera
uma vez em casa deles, a comer batatas fritas e a dis-
cutir boxe com Willie. De repente, erguera os olhos
para Doreen e perguntara:
- Que tens contra mim, rapariga?
Willie ficara preocupado e pedira:
- Vai com calma, Tone.
Doreen erguera a cabeça e respondera:
Es um bandido.
Tony rira ao ouvir a tirada, mostrando uma boca
cheia de batatas fritas meio mastigados. Depois dis-
sera:
O teu marido tamb‚m ‚, não sabias?
Depois, tinham retomado a conversa acerca do boxe.
Doreen nunca tivera respostas rápidas para pessoas
173

espertas como Tony, portanto, não dissera mais nada.


Fosse como fosse, a sua opinião não aquecia nem ar-
refecia. Nunca ocorreria a Willie que o facto de ela
não gostar de uma pessoa era razão para ele nunca a
levar lá a casa. A casa era de Willie, mesmo que qua-
se todas as semanas Doreen tivesse de pagar a renda
com o que ganhava com o catálogo de encomendas
pelo correio.
O trabalho que Willie fora fazer naquela manhã
destinara-se a Tony Cox. Doreen soubera atrav‚s da
mulher de Jacko - Willie não podia dizer-lhe. ®Se
Willie morre, juro por Deus que me vingo daquele
Tony Cox. Meu Deus, oxalá ele esteja bem ... ¯
A porta abriu-se e a enfermeira-chefe enfiou a ca-
beça pela abertura.
Já podem entrar.
Doreen foi a primeira. Havia um m‚dico baixo e
moreno, de cabeleira preta abundante, junto da por-
ta, mas Doreen não lhe ligou nenhuma e seguiu direc-
tamente para junto da cama.
A princípio ficou confundida. A figura que jazia na
cama alta de grades metálicas estava coberta at‚ ao
pescoço com um lençol, e do queixo at‚ ao cimo da
abeça só se viam ligaduras. Contara ver um rosto que
lhe permitisse identificar imediatamente se se tratava
de Willie. Por um instante, não soube o que fazer.
Depois, ajoelhou-se e puxou suavemente o lençol pa-
ra trás.
O m‚dico perguntou:
Mrs. Johnson, este ‚ o seu marido?
Ela respondeu:
Oh, Deus, Willie, que foi que te fizeram?
A cabeça descaiu-lhe lentamente, at‚
apoiar a testa
no ombro nu do marido.
Ouviu Jacko dizer mais atrás:
E ele. William Johnson.
Forneceu a idade e a morada de Willie.
Doreen
174
iU U
apercebeu-se de que Billy estava a seu lado. Passados
alguns momentos, o rapaz pousou a sua mão no om-
bro da mãe. A sua presença obrigou-a a afastar a dor
ou, pelos menos, a adiá-la. Recomp“s as feições e le-
vantou-se.
O m‚dico tinha um ar grave.
- O seu marido viverá - disse.
Doreen colocou um braço em volta dos ombros do
filho.
- Que foi que lhe fizeram?
- Disparo de arma. De perto.
Doreen agarrava nos ombros de Billy com muita
força. Não choraria.
Mas ficará bem?
Eu disse que ele viveria, Mrs. Johnson. Mas tal-
vez não possamos salvar-lhe a vista.
- O quê?
- Vai ficar cego.
Doreen fechou os olhos com força e gritou:
Não.
Todos a rodearam rapidamente; estavam … espera
de uma cena de histerismo. Doreen afastou-os. Viu o
rosto de Jacko … sua frente e gritou:
A culpa foi de Tony Cox, filho da mãe! - Agre-
diu Jacko. - Filho da mãe!
Ouviu Billy soluçar e acalmou imediatamente. Vi-
rou-se para o rapaz e puxou-o pa ra si, abraçando-o.
O filho era mais alto do que ela.
Pronto, pronto, Billy - murmurou. - O teu pai
está vivo, dá graças por isso.
O m‚dico observou:
Agora devem voltar para casa. Temos um núme-
ro de telefone atrav‚s do qual podemos entrar em
contacto convosco...
- Eu levo-a - disse Jacko. - � o meu telefone,
mas vivo perto.
Doreen largou o filho e dirigiu-se para a porta.
175

A enfermeira-chefe abriu-a. No lado de fora, estavam


dois polícias.
Jacko exclamou:
Mas que ‚ isto?
Parecia ofendido.
O m‚dico disse:
Em casos como este somos obrigados a informar
a polícia.
Doreen viu que um dos agentes era uma mulher.
Teve uma vontade louca de declarar que Willie fora
alvejado num trabalho a mando de Tony Cox: este fi-
caria tramado. Mas os seus quinze anos de casamento
com um ladrão tinham-na feito ganhar o hábito de en-
ganar a polícia. E lembrou-se, mal teve a ideia, de
que Willie nunca lhe perdoaria ter dado com a língua
nos dentes.
Não podia contar … polícia. Mas, de repente, soube
a quem falaria do acontecido.
Declarou:
Preciso de fazer um telefonema.
UMA DA TARDE

23
Kevin Hart subiu as escadas a correr e entrou na re-
dacção do Evening Post. Um paquete envergando uma
camisa Brutus e sapatos com tacão alto passou por
ele, carregando uma resma de jornais: a edição da
uma da tarde. Kevin surripiou-lhe o exemplar do topo
e sentou-se a uma secretária.
A sua história vinha na primeira página.
O cabeçalho dizia: PATRŽO DE PETRõLEO DESMAIA.
Kevin deteve-se por instantes diante das palavras deli-
ciosas ®por Kevin Hart¯. Depois, prosseguiu a leitura.
®O ministro Tim Fitzpeterson foi hoje encontrado
inconsciente no seu apartamento em Westminster.
A seu lado havia um frasco de soporíferos vazio.
Mr. Fitzpeterson, ministro do Departamento de
Energia e responsável pela política ligada …s questões
petrolíferas, foi rapidamente transportado para o hos-
pital.
Desloquei-me ao seu apartamento para o entrevis-
tar, ali encontrando o agente da polícia Ron BowIer,
que fora investigar as causas que levaram o ministro a
faltar … reunião de uma comissão.
Encontrámos Mr. Fitzpeterson deitado de bruços
sobre a sua secretária. Chamámos imediatamente uma
ambulância.
177

Um porta-voz do Departamento de Energia decla-


rou: "Tudo indica que Mr. Fitzpeterson tomou, aci-
dentalmente, uma dose excessiva de barbitúricos. Está
a decorrer um inqu‚rito rigoroso."
Tim Fitzpeterson tem 41 anos. � casado e pai de
três filhos.
No hospital informaram, mais tarde: "Está fora de
perigo. " ¯
Kevin voltou a ler o artigo na íntegra, incapaz de
acreditar nos seus olhos. A história que ditara ao tele-
fone fora alterada a pontos de ficar irreconhecível.
Sentiu-se vazio e cheio de amargura. Algum subeditor
sem escrúpulos estragara aquele que devia ser o seu
momento de glória.
E quanto … informação anónima de que Fitzpeter-
son tinha uma namorada? E o telefonema do próprio
homem, afirmando estar a ser alvo de chantagem? Os
jornais tinham por missão relatar a verdade, ou não
era?
A sua raiva aumentou. Não escolhera aquela profis-
são para se tornar um pau-mandado. O exagero era
uma coisa - não hesitaria em transformar uma rixa
de bêbados numa guerra de gangsters só para ter uma
história para publicar num dia sem novidades -, mas
suprimir factos importantes, ainda por cima ligados a
políticos, não era jogada que se fizesse.
Se um repórter não podia insistir na verdade, quem
diabo podia?
Levantou-se, dobrou o jornal e dirigiu-se … redac-
ção.
rthur Cole acabava de pousar o auscultador do te
lefone. Ergueu o olhar para Kevin.
Kevin colocou-lhe o jornal debaixo do nariz.
Que ‚ isto, Arthur? Temos uma tentativa de suí-
cídio por parte de um político chantageado e o Eve-
ning Post diz que ele tomou acidentalmente uma dose
excessiva de barbitúricos?
178
Cole não lhe ligou nenhuma.
- Barney - chamou. - Chegue aqui um instante.
Kevin perguntou:
Que se p assa, Arthur?
Cole fitou-o.
Ora, vá-se lixar, Kevin - disse.
Kevin ficou a olhar para ele.
Cole disse ao repórter chamado Barney:
- Ligue para a polícia do Essex e pergunte se fo-
ram alentados para irem atrás da carrinha em fuga.
Kevin afastou-se, aturdido. Preparara-se para discu-
tir, argumentar, at‚ mesmo brigar; mas não para uma
atitude de desprezo e indiferença tão declarada. Vol-
tou a sentar-se, no canto mais afatado da sala, de cos-
tas voltadas para a redacção, de olhos fixos no jornal,
mas sem o ver. Teria sido sobre aquele tipo de ocor-
rência que os conservadores provincianos o tinham
alertado ao referirem-se … Fleet Street? Seria sobre
aquele gênero de problema que os esquerdistas fala-
vam na faculdade, ao afirmarem que a Imprensa era
uma prostituta?
®Eu nem sequer sou um idealista idiota¯, pensou.
®Sempre defenderei as nossas indiscrições e o nosso
sensacionalismo, e direi, como os melhores de entre
eles, que as pessoas têm os jornais que merecem. Mas
não sou completamente cínico, ainda não, por amor
de Deus. Acredito que estamos nesta função para des-
cobrir a verdade e depois para a imprimiras
Começou a ter dúvidas sobre se desejava, de facto,
ser jornalista. Na maior parte das vezes, era um traba-
lho monótono. De vez em quando havia momentos al-
tos, em que algo corria bem, se arranjava uma histó-
ria interessante que dava direito a um artigo assinado;
ou quando aparecia repentinamente uma história sen-
sacional, em que seis ou sete membros do pessoal se
punham ao telefone, numa corrida contra a oposição
e uns contra os outros - algo de parecido com o que
179

se passava naquele momento, um assalto a um carre-


gamento de papel-moeda, por‚m, Kevin estava fora
da jogada. No entanto, nove d‚cimos do tempo eram
passados … espera: … espera de que os detectives saís-
em das esquadras da polícia, … espera de que os júris
s 1
regressassem as salas dos tribunais com os seus vere-
dictos; … espera da chegada de celebridades; … espera,
simplesmente, de que alguma história rebentasse.
Kevin imaginara a Fleet Street diferente do jornal
vespertino das MidIands para onde fora trabalhar
quando saíra da faculdade. Contentara-se, nos seus
tempos de repórter estagiário, em entrevistar vereado-
res obscuros e petulantes, em publicar queixas exage-
radas de inquilinos de habitações camarárias, e em es-
crever artigos sobre peças de teatro de amadores, cães
abandonados e vagas de vandalismo banal. Mas tam-
b‚m lhe acontecera fazer, ocasionalmente, trabalhos
de que se orgulhara bastante: uma s‚rie sobre os imi-
grantes da cidade; um artigo controverso sobre a ma-
neira como a câmara desperdiçara certa verba; a co-
bertura de um inqu‚rito prolongado e complexo sobre
planeamento. A mudança para um dos jornais da
Flect Street, segundo imaginara com alguma emoção,
significaria dedicar-se a casos importantes a nível na-
cional e abandonar por completo as trivialidades.
Descobrira que, em vez disso, todos os tópicos s‚rios
- política, economia, indústria, artes - eram entre-
gues a especialistas; e que os intermediários desses es-
pecialistas eram pessoas inteligentes e talentosas como
Kevin Hart.
Precisava de arranjar maneira de sobressair - algo
que levasse os executivos do Post a reparar nele e a
dizer: ®O ovem Hart ‚ eficiente - não estaremos
a subaproveitá-lo?¯ Um bom furo podia fazê-lo: uma
notícia muito importante, uma entrevista exclusiva,
um acto de iniciativa espectacular.
Pensara ter encontrado essa oportunidade naquele
180
dia, mas enganara-se. Agora tinha dúvidas de que tal
viesse alguma vez a acontecer.
Levantou-se e foi aos lavabos masculinos. ®Que mais
poderei fazer¯, pensou. ®Posso sempre meter-me nos
computadores, ou na publicidade, ou mesmo nas rela-
ções públicas ou na gestão de vendas a retalho. Mas
quero abandonar os jornais numa posição de sucesso,
não de fracasso.¯
Estava a lavar as mãos quando Arthur Cole entrou.
O homem mais velho falou a Kevin por cima do om-
bro. Para espanto deste, disse:
- Desculpa aquela minha reacção, Kevin. Sabes
como as coisas de vez em quando ficam ali na redac-
ção.
Kevin puxou uma porção de papel. Não sabia bem
o que dizer.
Cole acercou-se do lavatório.
- Não ficas chateado?
- Não estou ofendido - disse Kevin. - Não me
importo de te ouvir praguejar. Nem sequer que me
chames o maior filho da puta … superfície da Terra.
Hesitou. Não pretendera dizer semelhante coisa. Fi-
cou a olhar para o espelho por um momento, depois
entrou a matar.
Mas quando a minha história aparece no jornal
sem metade dos factos, começo a perguntar a mim
mesmo se não hei-de tornar-me programador de in-
formática.
Cole encheu o lavatório de água fria e refrescou o
rosto. Tacteando, procurou a toalha de papel e secou-
-se.
A história que publicámos no jornal consistia no
que nós sabemos e nada mais do que isso. Nós sabe-
mos que Fitzpeterson foi encontrado inconsciente e
levado apressadamente para o hospital, e sabemos que
tinha um- frasco vazio ao lado, porque tu viste tudo is-
so. Estavas no lugar certo na hora certa, o que, a pro-
181

pósito, ‚ um talento importante num repórter. Agora


vejamos, que mais sabemos? Sabemos que recebemos
uma chamada anónima a dizer que o homem passara
a noite com uma prostituta; e que algu‚m ligou afir-
'E
mando ser Fit.zDeterson e declarando que estava a ser
chantageado por Laski e Cox. Muito bem, se impri-
mi rmos esses dois factos, não estamos a fazer outra
coisa que não seja inferir que essas pessoas estão liga-
das ao excesso de barbitúricos tomados; mais propria-
mente, que ele tentou matar-se com a overdose por
estarem a fazer chantagem com ele por causa da pros-
tituta.
Kevin disse:
Mas essa implicação ‚ tão óbvia que certamente
estaremos a enganar as pessoas se não a publicarmos!
Então e se as chamadas não passarem de brinca-
ia e o homem
deira, os comprimidos forem para a az
estiver em corria diab‚tico?... E nós tivermos arruina-
do a carreira dele?
- Isso não ‚ um pouco improvável?
ou noventa por cento certo
- Podes crer. Kevin, est
de que a verdade está na forma original que a tua his-
tória apresentava. Mas não estamos aqui @ara publicar
as nossas suspeitas. Agora, voltemos ao trabalho.
Kevin passou a porta e atravessou a redacção atrás
de Arthur. Sentia-se como a heroína do filme que diz:
®Estou. tão confusa, não sei o que fazer.¯ Sentia-se va-
gamente tentado a dar razão a Arthur; mas tamb‚m
sentia que as coisas não deveriam passar-se assim.
Um telefone tocou numa secretária que estava va-
zia. Kevin atendeu.
- Redacção
- O senhor ‚ repórter?
Era uma voz de mulher.
- Sou, sim, minha senhora. Chamo-me Kevin Hart.
Que deseja9
e se
- O meu marido levou um tiro e eu quero qu
faça justiça.
182
Kevin suspirou. Um disparo dom‚stico significava
uni caso de tribunal, o que, por sua vez, era equiva-
lente a o jornal não poder fazer grande uso da histó-
ria. Calculou que a mulher lhe fosse comunicar o no-
me de quem disparara sobre o marido, pedindo-lhe
que publicasse a notícia. Mas quem decidia quem ma-
tara quem eram os jurados, não os jornais. Kevin per-
guntou:
- Importa-se de me dizer o seu nome, por favor?
- Doreen Jolinson, moradora no número cinco da
Yew Street, leste. O meu Willie levou um tiro no tal
trabalho do dinheiro em papel. - A voz da mulher
enrouqueceu. - Ficou cego. - Começou a gritar. -
Foi um trabalho a mando de Tony Cox, publique isso!
Desligou.
Kevin pousou o auscultador lentamente, tentando
assimilar o que acabara de ouvir.
Estava a tornar-se um dia diabólico em termos de
chamadas telefónicas.
Pegou no seu bloco de apontamentos e dirigiu-se
para a secretária da sala de redacção.
Arthur perguntou:
Alguma coisa de especial?
Não sei - retorquiu-lhe Kevin. - Era uma niu-
lher. Deu-me o nome e a morada. Disse que o marido
estava metido no assalto ao carregamento de notas, e
que levou um tiro na cara que o cegou; e que foi um
trabalho a mando de Tony Cox.
Arthur ficou de boca aberta.
Cox? - perguntou. - Cox?
Algu‚m chamou:
- Arthur!
Kevin ergueu os olhos, aborrecido com a interrupção.
A voz pertencia a Mervyn Glazier, o editor do jornal
na City, um indivíduo jovem e entroncado de sapatos
de camurça gastos e camisa manchada de suor.
183
Glazier acercou-se mais e informou:
E possível que esta tarde tenha uma história
para
as tuas páginas. Possível colapso de um banco. � o
Cotton Bank da Jamaica e pertence a um tipo chama-
do Felix Laski.
Arthur e Kevin entreolharam-se.
Arthur perguntou:
Laski? Laski?
Kevin exclamou:
Jesus Cristo!
Arthur franziu o sobrolho, coçou a cabeça e
per-
guntou com ar estupefacto:
ue diabo se passa?!
24
O Morris azul continuava no encalço de Tony
Cox.
Este localizou-o ao sair, no parque de
estacionamento
do bar. Esperava que eles não se lembrassem de brin-
car aos agentes de trânsito e lhe medissem o índice
de
álcool no hálito: bebera três canecas de litro a
acom-
panhar as suas sanduíches de salmão fumado.
Os detectives saíram do recinto poucos segundos
depois do Rolls. Tony não se sentia preocupado. Já
naquele dia os fizera perderem-lhe o rasto uma vez e
j podia voltar a repetir a façanha. A maneira mais
sim-
ples de o fazer seria encontrar uma faixa rápida de
es-
trada e carregar no acelerador. Mas preferia que
eles
não p
ercebessem que tinham perdido o controlo sobre
fl 1:
o seu paradeiro, tal como acontecera naquela
manhã.
Não seria difícil.
Atravessou o rio e entrou no West
End. Ao abrir
caminho por entre o tráfego, tentou
imaginar quais
seriam os motivos que a Velha Ordem tinha para o
mandar vigiar.
184
Tinha a certeza de que era apenas uma forma de o
hatearem. Que nome ‚ que os advogados lhe davam?
Molestamento. Calculavam que, se o seguissem du-
rante tempo suficiente, ele acabaria por se tornar im-
paciente ou descuidado e cometer alguma imprudên-
cia. Mas essa era apenas a justificação: o verdadeiro
motivo tinha provavelmente a ver com a política rei-
nante na Scotland Yard. Talvez o comissário adjunto
(Crime) tivesse ameaçado tirar a firma Tony Cox … C1
e entregá-la … Flying Squad, daí que a CI tivesse en-
veredado pela vigilância a fim de poder apresentar
serviço.
Desde que não o chateassem demasiado, Tony não
se importava. Já o tinham feito uma vez, alguns anos
atrás. Nessa altura, a firma de Tony ficara sob o olhar
de águia do C1D1 da Central de West End. Tony tivera
um entendimento particular com o detective-inspector
encarregado do seu caso. Certa semana o DI recusara
o dinheiro do costume e avisara Tony de que o jogo
chegara ao fim. A única maneira que Tony arranjara
de resolver a situação fora sacrificar alguns dos seus
soldados. Ele e o DI armaram uma cilada a cinco ban-
didos de importância mediana acusados de extorsão.
Os cinco foram para a cadeia, a imprensa louvou o
CID por acabar com o poderio do bando em Londres,
e os negócios prosseguiram como sempre. Malograda-
mente, o DI acabara depois por tamb‚m ir dentro por
vender haxixe a um estudante: um fim lamentável pa-
ra uma carreira promissora, achara Tony.
Parou o automóvel num parque de estacionamento
com vários andares, no Solio. Deteve-se por breves
momentos … entrada, levando muito tempo a tirar o
bilhete da máquina e observando o Morris azul pelos
seus espelhos. Um dos detectives apeou-se rapida-

'CID Departamento de Investigação Criminal (Scotland


Yard).
(N. da T)
185

mente e atravessou a rua a correr a fim de ir cobrir a


entrada de peões. O outro encontrou um local para
estacionar, a alguns metros de distância - posição da
qual podia ver os carros a saírem do edifício. Tony
abanou a cabeça, satisfeito.
Guiou at‚ ao primeiro piso e parou o RoUs em fren-
te do escritório. No interior deste deparou-se-lhe um
jovem que não conhecia.
Disse:
Sou Tony Cox. Quero que me estaciones o carro
e depois me arranjares uma dessas carripanas que fi-
cam aqui muito tempo, uma que provavelmente já
não venham buscar hoje.
O homem franziu o cenho. Tinha cabelo encaraco-
lado e despenteado, e vestia uns jeans manchados de
óleo com fundilhos coçados. Respondeu:
- Não posso fazer semelhante coisa, amigo.
Tony bateu o p‚ impaciente.
Não gosto de repetir as coisas, filho. Eu sou To-
ny Cox.
O jovem deitou a rir. Levantou-se com ar de quem
achava piada e declarou:
- Estou-me nas tintas para quem você ‚, seu...
Tony atingiu-o no est“mago. O seu punho enorme,
ao embater no rapaz, fez um baque abafado. Foi co-
mo socar uma almofada de penas. O empregado do-
brou-se sobre si, gemendo e arquejando com falta de
ar.
- Estou com pressa, rapaz - disse Tony.
A porta do escritório abriu-se.
Que se passa? - perguntou um indivíduo mais
velho, de bon‚ de basebol na cabeça, entrando. -
Oli, ‚s tu, Tony. Algum problema?
- Onde estiveste... a fumar na retrete? - obser-
vou Tony asperamente. - Quero um carro que não
possa ser identificado com a minha pessoa, e estou
com pressa.
186
Não há problema - disse o homem mais velho.
Tirou um molhe de chaves de um gancho preso … pa-
rede forrada a amianto. - Tenho um belo Granada
aqui, por uma quinzena. Mudanças automáticas, uma
linda cor bronze...
- Quero lá saber da cor que tem - declarou Tony,
agarrando nas chaves.
- Está al‚m. - O homem apontou. - Eu estacio-
no o teu.
Tony saiu do escritório e meteu-se no Granada. Co-
locou o cinto de segurança e arrancou. Fez uma pe-
quena paragem junto do seu próprio carro, dentro do
qual o homem do bon‚ se sentava naquele momento.
Como te chamas?
- Davy Brewster, Tony.
- Muito bem, Davy Brewster. - Tony puxou da
carteira, de onde retirou duas notas de dez libras. -
Toma medidas para que o puto não dê com a língua
nos dentes, okay?
- Não tem problema. Muito obrigado.
Davy aceitou o dinheiro.
Tony seguiu caminho. Entretanto, p“s óculos escu-
ros e o seu bon‚ de pano. Quando saiu para a rua, viu
o Morris azul … sua direita. Pousou o cotovelo direito
sobre o peitoril da janela, ocultando o rosto, e guiou
com a mão esquerda. O segundo detective, … esquer-
da de Tony, estava de costas voltadas para a rua de
maneira a poder ver a saída dos peões. Fazia de conta
que examinava a montra de uma livraria de publica-
ções religiosas.
Tony olhou pelo espelho retrovisor enquanto acele-
rava. Nenhum deles o vira.
- Foi canja - comentou em voz alta.
Seguiu em direcção ao Sul.
O carro era bastante agradável de conduzir, com
mudanças automáticas e direcção controlada. Tinha
um gravador. Tony escolheu entre as cassetes, encon-
187

trou um álbum dos Beatles e introduziu-o. Depois,


acendeu um charuto.
Em menos de uma hora, estaria na quinta a contar
o dinheiro.
Valera plenamente a pena cultivar a amizade de F‚-
lix Laski, pensou Tony. Tinham-se conhecido no res-
taurante de um dos clubes de Tony. Os casinos Cox
serviam a melhor comida de Londres. Nem podia ser
de outra maneira. O lema de Tony era: ®Quem serve
amendoins tem macacos por clientes.¯ Queria gente
rica nos seus clubes de jogo, não labregos a pedirem
cerveja barata e batatas fritas de cinco níqueis. Pes-
soalmente, não apreciava a comida requintada, mas
na noite em que conhecera Laski banqueteava-se com
um enorme e raro bife em forma de T, numa mesa ao
lado da que o financeiro ocupava.
O chefe de cozinha fora surripiado ao Prunier. To-
ny não conhecia o tratamento que ele dava aos bifes,
mas o resultado era sensacional. O homem alto e ele-
gante sentado na mesa ao lado da sua atraiu a sua
atenção: era um indivíduo com muito bom aspecto pa-
ra a idade que tinha. Acompanhava-o uma rapariga
que Tony identificou imediatamente como uma pega.
Tony terminara o seu bife e iniciara o seu bolo re-
cheado de creme e frutas quando o incidente ocorre-
ra. O empregado servia canelloni a Laski, e um movi-
mento descuidado fez cair uma garrafa de vinho tinto.
A pega soltou um gritinho e levantou-se com um pu-
lo, e a impecável camisa branca de Laski ficou salpica-
da com umas gotas de vinho.
Tony agiu imediatamente. Levantou-se, deixando
A cair o guardanapo em cima da mesa, e ordenou a
pre-
sença de três criados e do malte d'h“tel. Primeiro, fa-
lou com o empregado causador do distúrbio.
Vá mudar de roupa. Apresente as suas contas na
sexta-feira.
Em seguida, voltou-se para os outros.
Ai
3
188
-Bernardo, uma toalha. Gitilio, outra garrafa de
vinho. Monsieur Charles, outra mesa, e este cavalhei-
ro não paga a conta.
Por fim, falou aos clientes.
Sou Tony Cox, o proprietário. Por favor, jantem
por conta da casa, com as minhas desculpas, e espero
que peçam os pratos mais caros do menu, a começar
por uma garrafa de Don Perrignon.
Foi então que Laski falou.
São coisas que acontecem quando menos se es-
pera. - A sua voz era profunda e com um sotaque li-
geíro. - Mas ‚ agradável receber um pedido de des-
culpas tão generoso e … moda antiga.
Sorriu.
- Não acertou no meu vestido - observou a pega.
O sotaque desta confirmou a conjectura de Tony
quanto … sua profissão: ela era da mesma zona de
Londres que ele.
O ~tre d'h“tel disse:
Monsieur Cox, temos a casa cheia. Não há mesa
alguma disponível.
Tony apontou para a sua própria mesa.
- Que tem aquela de inconveniente? Prepare-a
imediatamente.
- Por favor, não ‚ necessário - objectou Laski. -
Não queremos privá-lo da sua mesa.
- Insisto.
- Então faço questão em que nos acompanhe.
Tony olhou para os dois. A ideia não agradava niti-
damente … pega. Estaria o cavalheiro apenas a ser de-
licado ou haveria sinceridade no seu oferecimento?
Ora, Tony estava praticamente no fim da refeição,
portanto, se a coisa não corresse bem, sempre podia
retirar-se passado pouco tempo.
- Não quero incomodar...
- Não o fará - disse Laski.
-me a ganhar na roleta.
189
E poderá ensinar-

@1I1 lí1

Isso mesmo - retorquiu Tony.


Ficou junto deles o resto da noite. Ele e Laski de-
ram-se …s mil maravilhas e depressa ficou claro que a
opinião da rapariga não contava. Tony contou histó-
rias de vilanias no mundo dos clubes de jogo, e Laski
fez parelha com ele, anedota por anedota, com relatos
de golpadas astutas na Bolsa de Valores. Veio … tona
que Laski não tinha a mania do jogo, mas que gostava
de levar pessoas ao clube. Ouando foram at‚ ao casi-
no, comprou fichas no valor de cinquenta libras e deu-
-as todas … rapariga. A noite terminou quando Laski,
já muito embriagado, observou:
Acho que só me resta levá-la para casa e forni-
cá-Ia.
Depois dessa ocasião, encontraram-se várias vezes
nunca por combinação pr‚via - no clube, acaban-
do sempre por apanhar uma bebedeira juntos. Passa-
do algum tempo, Tony permitiu que o outro homem
soubesse que ele era homossexual, e como Laski não
teve nada a objectar, concluiu que o . nanceiro era um
heterossexual tolerante.
A Tony agradava fazer amizade com algu‚m da ca-
tegoria de Laski. A cena no restaurante fora a parte
mais fácil e não lhe tinham sido poupados ensaios: os
gestos imponentes, a postura de comando, a cortesia
insistente, e uma moderação consciente do seu sotaque.
Mas manter o contacto com algu‚m tão inteligente e
rico e acostumado a movimentar-se em círculos quase
aristocráticos como Laski, parecia um feito deveras
importante.
Foi Laski quem tomou a iniciativa no sentido de
uma relação mais profunda. Tinham passado as pri
meiras horas da manhã daquele domingo em fanfarro-
nices proprias de bêbados, at‚ que , a certa altura,
Laski falou do poder do dinheiro.
Desde que disponha de dinheiro suficiente - de-
clarou - sou capaz de descobrir o que muito bem en-
190
tender na City, at‚ mesmo a combinação do cofre sub-
terrâneo do Bank of England.
Tony redarguiu:
- O sexo ‚ melhor.
- Que quer dizer?
- O sexo ‚ uma arma mais eficaz. Não há nada em
Londres que eu não possa descobrir atrav‚s da utiliza-
ção do sexo.
Tenho grandes dúvidas de que assim seja - re-
torquiu Laski, cujas necessidades sexuais estavam
muito bem controladas.
Tony encolheu os ombros.
- Está bem. Lance-me um desafio.
Foi nessa altura que Laski fez a sua jogada.
- Relativamente … licença de exploração do lençol
pe trolífero de Shield. Descubra quem vai ficar com
ela... mas antes de o Governo anunciar o nome.
Tony reparou no brilho dos olhos do financeiro e
calculou que toda a conversa tivesse sido planeada.
t - Por que não me pede algo complicado? - con-
rap“s. - Os políticos e os funcionários públicos são
demasiado fáceis.
Servirão - disse Laski com um sorriso.
Muito bem. Mas agora desafio-o eu.
Os olhos de Laski estreitaram-se.
- Vamos a isso.
Tony disse a primeira coisa que lhe veio … cabeça.
Descubra o programa de entregas de notas usa-
das … fabrica de destruição de dinheiro do Bank of
England.
-Nem sequer me custará dinheiro - disse Laski
confiadamente.
E fora assim que tudo começara. Tony sorriu, en-
quanto conduzia o Ford atrav‚s da zona sul de Lon-
dres. Não soubera como Laski conseguira manter a
sua parte do combinado; a parte de Tony, no entanto,
191

li falirei]

fora canja. Quem tem a informação que pretende-


mos? O ministro. Como ‚ ele? Aquilo que mais se
aproxima de uma virgem, um marido fiel. Satisfaz as
suas necessidades com a esposa? Nem por isso. Cairá
no ardil mais velho do mundo? Que nem um pati nho.
A fita chegou ao fim e Tony p“-la a correr do outro
lado. Calculou quanto dinheiro levaria a carrinha do
banco - cem mil? Quem sabe se um quarto de mi-
lhão. Muito inais que isso seria embaraçoso. Não se
podia entrar no Barclays Bank com sacos a abarrotar
de notas usadas de cinco sem levantar suspeitas. O ideal
seria uma centena e meia das grandes. Cinco delas para
cada um dos rapazes, mais algum para despesas, e
cerca de cinquenta mil sub-repticiamente acrescenta-
dos naquela noite aos provemos de vários negócios le-
gítimos. Os clubes de jogo davam muito dinheiro para
ocultar rendimentos ilícitos.
A rapaziada sabia o que fazer com cinco mil. Paga-
riam algumas dívidas, comprariam um segundo auto-
móvel, colocariam algum a render em duas ou três
contas bancárias, ofereceriam um casaco novo … mu-
lher, emprestariam um par deles … sogra, passariam
uma noite num bar e pronto, estava tudo gasto. Mas
era dar-lhes vinte mil que eles desatavam a ter ideias
parvas. Quando começava a constar que trabalhado-
res no desemprego e free-lancers de tarefas esquisitas
tinham villas no Sul de França, aí a lei começava a
desconfiar.
Tony sorriu para si mesmo. ®Devia preocupar-me
por ter tanto dinheiro¯, pensou. ®E de problemas de
sucesso que eu gosto.¯ Jacko costumava dizer que não
se devia contar com as garotas antes de as levar para a
cama. E a carrinha podia estar cheia de moedas de
1.
meio pem para derreter.
Isso ‚ que teria graça.
Estava quase a chegar. Começou a assobiar.
192

7@@7 7@
25
Felix Laski, sentado … sua secretária no escritório,
olhava para um ecrã de televisão e rasgava um envelo-
pe amarelo em tiras estreitas. A televisão de circuito
fechado era o equivalente moderno da fita de papel
de teleimpressora; e Laski sentia-se como o corretor
preocupado num velho filme sobre a queda da bolsa
de 1929- O aparelho passava notícias contínuas sobre
0~inercado e as oscilações de preços em acções, obriga-
ções e moeda corrente. Não houvera menção … licença
de exploração petrolífera. As acções da Hamilton ti-
nham descido cinco pontos na v‚spera, e as transacções
apresentavam-se moderadas.
Deu por finda a destruição do envelope e atirou os
bocados de papel para um cesto metálico. A licença
de exploração petrolífera devia ter sido anunciada há
uma hora atrás.
Pegou no telefone azul e ligou o 123: ®Ao terceiro
sinal serão treze horas, quarenta e sete minutos e cin-
quenta segundos.¯ A comunicação estava com mais
de uma hora de atraso. Ligou para o Departamento
de Energia e pediu para falar com o Gabinete de Im-
prensa. Uma mulher informou-o:
- O secretário de Estado chegará mais tarde.
A conferência de imprensa começará mal esteja pre-
sente, e a comunicação será logo no início.
®Para o diabo com os vossos atrasos¯, pensou Las-
ki. ®Tenho uma fortuna em jogo.¯
Carregou no botão do intercomunicador.
Carol? - Não houve resposta.
Berrou:
Carol!
A rapariga enfiou a cabeça pela abertura da porta.
Desculpe, estava na sala de arquivo.
Traga-me caf‚.

Com certeza.
Tirou do seu tabuleiro de ®entradas¯ uma pasta de
arquivo cujo cabeçalho dizia: ®Tuba em de Precisão
9
Relatório de Vendas, 1.0 Trimestre¯. Tratava-se de
um trabalho de espionagem industrial sobre uma em-
presa que era sua intenção passar a controlar. Defen-
dia a teoria de que a injecção de capitais tendia a ser
bem empregue quando se adivinhava uma queda brus-
ca. Mas teria o material de precisão capacidade de ex-
pansão? Tinha dúvidas.
Olhou para a primeira página do relatório, pestane-
jou perante a prosa indigesta do director de vendas e
atirou o dossier para o lado. Quando se metia num jo-
go e perdia, era capaz de aceitar o facto com sereni-
dade. O que o punha fora de si era algo correr mal
por razoes desconhecidas. Sabia que não conseguiria
concentrar-se em mais nada at‚ a questão de Shield
estar resolvida.
Tacteou a prega bem delineado das calças e pensou
em Tony Cox. Afeiçoara-se ao jovem malfeitor apesar
da homossexualidade manifesta do outro, porque sen-
tia nele o que os Ingleses chamam de alma gêmea. Tal
como Laski, Cox subira de uma situação de pobreza
para uma de riqueza graças … sua determinação, ao
seu oportunismo e ao seu modo de agir implacável.
Tamb‚m … semelhança de Laski, esforçara-se por li-
mar as arestas das suas maneiras próprias da classe
baixa. Laski saía-se melhor nesse aspecto, mas apenas
porque praticava há mais tempo. Cox queria ser como
Laski e chegaria lá - quando alcançasse a casa dos
cinquenta, seria um distinto cavalheiro de cabelos gri-
salhos da City.
Laski compreendeu que não dispunha de uma única
razão sólida para confiar em Cox. Havia o seu instin-
to, evidentemente, o qual lhe dizia que o jovem era 1
honesto para com as pessoas que conhecia: mas os To-
ny Cox deste mundo eram dissimuladores experientes.
194
I,'
Teria ele inventado, muito simplesmente, toda a histó-
ria acerca de Tim Fitzpeterson?
O televisor voltou a mostrar o preço das acções da
Hamilton: tinham descido mais um ponto. Laski teria
desejado que não utilizassem aquele maldito tipo de
letra de computador, tudo em linhas horizontais e ver-
ticais: fatigava-lhe os olhos. Começou a calcular quan-
to perderia se a Hamilton não obtivesse a licença.
Se conseguisse vender as 510 000 acções imediata-
mente, não perderia mais do que alguns milhares de
libras. Mas não seria possível desfazer-se desse total
ao valor do mercado. E o preço continuava a baixar.
Cifrar-se-ia, digamos, numa perda de vinte mil, por
alto. E num rev‚s psicológico, um prejuízo para a sua
fama de homem bem sucedido.
Estaria algo mais em risco? O que Cox tencionava
fazer com a informação que Laski lhe fornecera era,
sem dúvida, criminoso. Contudo, como Laski não ti-
nha verdadeiro conhecimento do facto, não podia ser
condenado por conluio.
Havia ainda o decreto sobre os Segredos Oficiais
Britânicos - brando pelos padrões do Leste europeu,
mas, ainda assim, uma lei que impunha respeito.
Qualquer abordagem a um funcionário público, com a
finalidade de obter dele informações confidenciais,
era ilegal. Seria difícil imputar semelhante acção a
Laski, mas não era de todo impossível. Ele pergunta-
ra a Peters se contava com um dia atarefado pela fren-
te, e o homem respondera: ®Vai ser um dos tais.¯ De-
pois Laski dissera a Cox: ®� hoje.¯ Bem, se Cox e
Peters fossem persuadidos a testemunhar, nesse caso
Laski seria condenado. Mas Peters nem sequer sabia
que dera a conhecer um segredo, e ningu‚m se lem-
braria de lho perguntar. Mas e se Cox fosse preso?
A polícia britânica dispunha de meios para obter in-
formações das pessoas sem que para tal precisasse de
recorrer a matracas. Cox poderia dizer que obtivera a
195

ffifOriliação de Laski, depois eles investigariam os pas-


S(S dados por este no dia em questão, e quem sabe
(leNcoi)rii-i@iiii que tomara caf‚ com Peters...
Era uina possibilidade bastante remota. Laski esta-
va inais preocupado em despachar o negócio com a
1 1a11111toli.
O telef(me tocou. Laski atendeu.
- Fala de ThreadneedIe Street... E Mr. Ley - co-
iiiunicou ('miro[.
-- S1III?
Laski falou com impaciência.
- Ilrovavelmente, ‚ acerca do Cotton Bank. Passa-o
Jolies.
- Ue já falou para o Cotton Bank, mas Mr. Jones
Iiiiiizi ido para casa.
_Tifflia ido para casa? Está bem, eu atendo.
Ouviu Carol dizer:
- Vou passar-lhe Mr. Laski.
- Liski?
A voz cra aguda e o sotaque aristocraticamente
arrastado.
Sim.
Fala Lev. Bank of England.
Como está?
Boa tarde. Vejamos, meu caro...
Laski rolou os olhos nas órbitas ao ouvir a frase.
pas,,ou um cheque avantajado … Fett e Com-
palillia.
Laski eíiii)@ilideceu.
\Meu Detis, não me diga que já o meteram...
Sim. beni, calculo que a tinta ainda esteja húmi-
Cri. Agora. a questão ‚ que foi passado ao Cotton
Bai1k. como o senhor obviamente sabe, e o pobrezi-
iffio do Cotion Bank não tem capacidade para o co-
brir. Lsiã a compreender?
Claro que compreendo. - O estupor do homem
l'alava como se se dirigisse a uma criança. - Ao que
196
vejo, as instruções que dei quanto ao providenciamen-
to desses fundos não foram respeitadas. No entanto,
talvez eu possa argumentar que o meu pessoal possi-
velmente pensou que dispunha de um pouco de tempo
para o fazer.
_ Minin. O certo ‚ que ‚ muito bonito ter os fun-
dos preparados antes de se assinar um cheque, como
sabe, para só jogar pelo seguro, não acha?
Laski raciocinou com rapidez. Raios, aquilo não te-
ria acontecido se tivessem feito a comunicação a tem-
o. E onde raios andava Jones?
p - Como deve calcular, o cheque destina-se ao pa-
gamento das acções da Hamilton Holdings. Penso que
essas acções representarão uma segurança...
- Oli, que maçada, não - interrompeu Ley. - Isso
não pode ser. O Bank of England não se mete em es-
peculações financeiras no mercado de acções.
®Talvez não¯, pensou Laski, ®mas se a comunicação
tivesse sido feita e vocês soubessem que a Hamilton
Holdings tem agora um poço de petróleo, não esta-
riam a fazer este chinfrim.¯ Ocorreu-lhe que talvez
soubessem e que a Hamilton não obtivera o poço de
etróleo; daí o telefonema. Sentiu-se furibundo.
p - Olhe, vocês são uma instituição bancária - dis-
se. - Pagar-vos-ei o juro de vinte e quatro horas so-
bre o dinheiro...
- O banco não tem o hábito de se meter no merca-
do monetário.
Laski começou a falar mais alto.
-Sabe perfeitamente que tenho possibilidades de
cobrir esse cheque sem problemas, desde que me
dêem um pouco de tempo! Se o devolver, fico com a
minha reputação arruinada. Vai dar cabo de mim por
não poder esperar pela mis‚ria de um milhão de um
dia para o outro e por causa de uma tradição idiota?
O tom de voz de Ley tornou-se muito frio.
Mr. Laski, as nossas tradições existem especifica-
197

mente para arruinar pessoas que assinam cheques que


não podem pagar. Se este levantamento não puder ser
satisfeito hoje, pedirei ao tomador que o volte a apre-
sentar. Tal significa, com efeito, que o senhor tem
uma hora e meia para fazer um depósito de um mi-
lhão de libras na ThreadneedIe Street. Bom dia.
- Raios o partam!- gritou Laski, mas a ligação já
fora cortada. Atirou o auscultador para o descanso,
rachando o plástico do telefone. Raciocinou vertigino-
samente. Tinha de haver uma maneira de arranjar um
milhão imediatamente... ou não haveria?
O seu caf‚ chegara quando se encontrava ao telefo-
ne. Não reparara na entrada de Carol. Bebeu um gole
e fez uma careta.
Carol! - gritou.
A jovem abriu a porta.
Sim?
Corado e tr‚mulo, atirou a delicada chávena de
porcelana para o cesto de pap‚is metálico, onde se
partiu ruidosamente. Berrou:
O maldito caf‚ está frio!
A rapariga voltou-se e fugiu.
DUAS DA TARDE

26
O jovem Billy Johnson andava … procura de Tony
Cox, mas esquecia-se constantemente do facto.
Depois de todos terem regressado do hospital, saíra
de casa o mais depressa que lhe fora possível. Sua
mãe barafustara muito, vira uns polícias por perto e
Jacko fora levado numa carrinha para a esquadra, a
fim de responder a umas perguntas. Os parentes e vi-
zinhos, que não paravam de chegar, aumentavam ain-
da mais a confusão. Billy apreciava o sossego.
Ningu‚m parecia disposto a arranjar-lhe o almoço
ou a prestar-lhe o mínimo de atenção, pelo que co-
meu um pacote de bolachas de gengibre e saiu pelas
traseiras, dizendo a Mrs. Glebe, que morava três por-
tas a seguir … sua, que ia at‚ casa da tia ver televisão a
cores.
Enquanto caminhava, foi-se apercebendo de certas
coisas. Andar ajudava-o a pensar. Quando se sentia
confuso, sempre podia olhar para os carros, as lojas
e as pessoas durante um bocado, para descansar a
cabeça.
A princípio seguiu em direcção … casa da tia, at‚
que se lembrou de que, de facto, não era para lá que
desejava ir; só o dissera para impedir que Mrs. Glebe
arranjasse complicações. Portanto, tinha de pensar
para onde queria ir. Parou, ficando a olhar para a
199

montra de uma loja de discos, lendo, muito a custo,


os nomes nas capas e tentando associá-los …s canções
que ouvira na rádio. Tinha um gira-discos, por‚m,
nunca arranjava dinheiro para comprar discos, e os
gostos dos pais não coincidiam com os seus. A mãe
gostava de músicas meladas, o pai de orquestras de
metais, quando para Billy não havia nada como o
rock-and-rofl. A única outra pessoa sua conhecida
apreciava esse tipo de música era Tony Cox... que
Isso mesmo. Ele andava … procura de Tony Cox.
Seguiu na que pensava ser, mais ou menos, a direc-
ção de Bethrial Green. Conhecia o East End muito
bem - cada rua, cada loja, todas as bombas de gaso-
lina, faixas de terreno descampado, canais e parques,
mas esse conhecimento era parcelar. Passou por um
pr‚dio em demolição e lembrou-se de que a avó Par-
ker vivera ali, ficando obstinadamente sentada no seu
quarto da frente enquanto as velhas casas que ladea-
vam a sua eram demolidas, at‚ apanhar uma pneumo-
nia e morrer, livrando o Departamento de Habitação
do Município de Londres de resolver o problema por
ela levantado. Billy acompanhara a história com inte-
resse. Parecia uma fita de televisão. Sim, ele conhecia
todos os cantos do East End; só não conseguia estabe-
lecer ligação entre eles mentalmente. Estava familiari
zado com a Cominercial Road e a Mile End Road,
mas ignorava que estas se encontravam em Aldgate.
Apesar disso, conseguia sempre dar com o caminho
para casa, mesmo que …s vezes levasse mais tempo do
ue seria de esperar; e se realmente se perdesse, o
Velho Bill levá-lo-ia a casa num dos carros da esqua-
dra. Não havia polícia que não conhecesse o seu pai.
Quando chegou a Wapping já se esquecera nova-
mente do destino que levava: mas pensou que prova-
velmente ia ver os barcos. Entrou por um buraco
aberto numa vedação: o mesmo buraco que ele utili-
zara juntamente com o Brancote e o Tom Gorducho
200
no dia em que tinham apanhado um rato e os outros
haviam dito a Billy que o levasse para casa e o entre-
gasse a inae, p ois ela ficaria contente e cozinhá-lo-ia
para o chá. Claro que a mãe não achara graça nenhu-
iria: dera um pulo, deixara cair um pacote de açúcar e
gritara; depois pusera-se a chorar e a dizer que eles
não tinham o direito de fazer pouco de Billy. Era cos-
tunie as pessoas pregarem-lhe partidas, mas ele não se
importava porque era bom ter amigos.
Deambulou pelo local durante algum tempo. Tinha
a impressão de que nos seus tempos de criança costu-
mava. haver mais barcos naquele sítio. Naquele dia
não via mais que um. Era dos grandes, em água muito
rasa, com um nome escrito de lado que ele não conse-
uia ler. Os homens estavam a instalar um tubo entre
9
o navio e um armaz‚m.
Ficou a observar durante algum tempo, a seguir
perguntou a um dos trabalhadores:
Que há aí dentro?
O homem, que usava bon‚ de pano e um colete, fi-
tou -o.
- Vinho, amigo.
Billy ficou surpreendido.
- o arco. Tudo vinho? Cheio?
- Isso mesmo, amigo.
Château Moroco, colheita
mais ou menos da quinta-feira passada.
Todos os homens deitaram a rir, por‚m, Billy não
entendeu a piada. Mas tamb‚m riu. Os homens traba-
lharam durante mais um bocado, depois, o que falara
perguntou:
-Mas, agora, diz lá o que estás tu aqui a fazer?
Billy reflectiu durante um momento, depois respon-
deu:
Esqueci-me.
O homem fitou-o com ar s‚rio e insistente, imirimi-
rando depois algo a um dos colegas. Billy ouviu parte
da resposta:
201

pode muito bem cair dentro da maldita bebida.


O primeiro homem entrou no armaz‚m.
Passado um bocado, apareceu um agente que pro-
cedia ao policiamento da doca. Perguntou aos ho-
mens:
Este ‚ que ‚ o moço?
Os homens anuíram e o polícia falou directamente a
Billy.
- Andas perdido?
- Não - retorquiu Billy.
- Para onde vais? 1
Billy ia a dizer que não ia a parte nenhuma, por‚m,
a resposta não parecia conveniente. De repente, lem-
brou-se.
- Betimal Green.
- Está bem, vem comigo que eu ensino-te o cami-
nho certo.
Sempre disposto a optar pela atitude de menor re-
sistência, Billy encaminhou-se, ao lado do polícia, pa-
ra o portão da doca.
-Então onde ‚ que vives? - perguntou-lhe o
agente.
Na Yew Street.
-A tua mãe sabe que estás aqui?
Billy achou que o polícia era outra Mrs. Glebe e
que se impunha dizer uma mentira.
- Sabe. Vou at‚ casa da minha tia.
- Tens a certeza de que conheces o caminho?
- Tenho .
Tinham chegado ao portão. O polícia fitou-o aten-
tamente, depois decidiu-se.
Está bem, então toca a andar. Não te ponhas no-
vamente para aí …s voltas pelas docas, ficas melhor do
lado de fora.
- Obrigado - agradeceu Billy.
Quando estava na dúvida, agradecia …s pessoas.
P“s-se a andar.
202
Começava a tornar-se fácil lembrar-se. O pai estava
no hospital. Ia ficar cego, e a culpa era de Tony Cox.
Billy conhecia um cego - bem, dois, se fizesse conta
com Thatcher o Vesgo, que só era cego quando ia at‚
… zona oeste com o seu acordeão. Mas verdadeira-
rnente cego só havia Hol)craft, que vivia sozinho nu-
ma casa mal cheirosa na Ilha dos Cães e usava uma
bengala branca. Teria o pai de usar óculos escuros e
andar muito devagar, tacteando o passeio com uma
bengala? A ideia entristeceu Billy.
As pessoas normalmente consideravam-no incapaz
de se entristecer porque ele nunca chorava. Fora assim
que tinham descoberto, ainda era beb‚, que ele era
diferente: quando se magoava, não vertia uma lágri-
ma. As vezes a mãe dizia: ®Ele sente as coisas, mas
nunca o demonstram
O pai costumava dizer que, com frequência, a mãe
se preocupava que chegasse por dois.
Quando aconteceram coisas verdadeiramente horrí-
veis, como a partida do rato que o Brancote e o Gor-
ducho lhe tinham pregado, Billy deu consigo todo a
ferver por dentro, e teve vontade de fazer al o de
drástico, como gritar, mas tal não chegou a acontecer.
Ele gostara do rato, e isso ajudara. Pegara nele com
uma mão e com a outra batera-lhe na cabeça com um
tijolo at‚ o animal deixar de se contorcer.
Faria algo de parecido a Tony Cox.
Lembrou-se de que Tony era maior que um rato -
maior, de facto, do que Billy. O facto confundiu-o,
portanto, afastou-o da mente.
Ao chegar ao fim da rua, parou. A casa de esquina
tinha uma loja no r‚s-do-chão. Era uma daquelas ca-
sas antigas onde vendiam montes de coisas. Billy co-
nhecia a filha do dono, uma linda jovem de cabelos
compridos chamada Sharon. Há alguns anos atrás, ela
deixara-o apalpar-lhe as mamas, mas depois fugira de-
le e nunca mais voltara a dirigir-lhe a palavra. Duran-
203

Itália
e dias a fio, não pensara em mais nada a não ser nos
pequenos altos arredondados que lhe apalpara por
obre a blusa, e na maneira como se sentira ao tocar-
-lhes. Acabou por se compenetrar de que a experiên-
cia era das tais coisas agradáveis que nunca se repe-
tiam.
Entrou na loja. A mãe de Sharon encontrava-se atrás
do balcão, de bata …s riscas. Não reconheceu Billy.
Este sorriu e cumprimentou:
olá.
-Que desejas? - perguntou a mulher, pouco …
vontade.
Billy perguntou:
- Como vai Sharon?
- Optima, obrigada. Neste momento não está. Co-
nhece-la?
sim. - Billy olhou em volta, mirando a varieda-
de de produtos alimentares, ferramentas, livros, arti-
gos de fantasia, tabaco e guloseimas. Apeteceu-lhe di-
er: ®Uma vez ela deixou-me apalpar-lhe as mamas¯,
as sabia que não estaria certo. - Costumava brincar
com ela.
Devia ser a resposta que a mulher queria ouvir: pa-
receu ficar aliviada. Sorriu e Billy reparou que tinha
os dentes manchados de castanho, tal como os do paí
Ela perguntou:
Queres alguma coisa daqui?
Ouviram-se passadas ruidosas nas escadas e Sharon
entrou na loja pela porta que ficava atrás do balcão.
Billy ficou admirado: ela parecia muito mais velha.
Usava o cabelo curto e tinha as mamas muito grandes,
a balançarem sob um T-shirt. Tinha as pernas compri-
das e usava jeans apertados. Estava cheia de pressa.
Adeus, mãe.
Billy disse.
Olá, Sharon.
204

IN
A jovem parou e fitou-o. A expressão do seu rosto
niostrou que o reconhecera.
Oh, olá, Billy. Não me posso demorar.
E desapareceu num ápice.
A mãe mostrou-se embaraçado.
Desculpa, esqueci-me de que ela ainda lá estava
em cima...
Não faz mal. Eu tamb‚m me esqueço de muitas
coisas.
Bom, desejas alguma coisa daqui? repetiu a
mulher.
Quero uma faca.
A ideia surgira na cabeça de Billy sem que este per-
cebesse como, mas compreendeu imediatamente que
estava certa. Não fazia sentido bater na cabeça de um
homem forte como Tony Cox com uma pedra - ele
retribuiria na mesma moeda. Portanto, havia que es-
petar-lhe uma faca pelas costas. Como um índio.
- Para ti ou para a tua mãe?
- Para mim.
- Para que a queres?
Billy soube que não devia dar-lhe as suas razões.
Franziu o cenho e respondeu:
- Para cortar coisas. Fios e assim.
- Oh.
A mulher enfiou a mão na montra e pegou numa
faca embainhada, parecida com a que os escoteiros
costumavam usar.
Billy tirou o dinheiro do bolso das calças. De di-
nheiro não percebia grande coisa - deixava sempre
os lojistas tirarem o que fosse preciso.
A mãe de Sharon olhou e exclamou:
- Mas tu só tens oito pence.
- Chega?
A mulher suspirou.
Não, lamento.
- Bem, então posso levar pastilhas elásticas?
205
A mulher voltou a colocar a faca na montra e tirou
um pacote de pastilhas elásticas de uma prateleira.
Seis pence.
Billy apresentou a mão cheia de moedas, de onde a
lojista tirou algumas.
- Obrigado - agradeceu Billy.
Saiu para a rua e abriu o pacote. Gostava de meter
tudo na boca ao mesmo tempo. Caminhou, mastigan-
do com prazer. De momento, esquecera o objectivo
que levava.
Parou para ver uns homens a cavarem um buraco
no pavimento. O topo das cabeças ficava ao nível dos
p‚s de Billy. Este viu, com interesse, que a parede da
trincheira mudava de cor … medida que descia. Pri-
meiro, havia o pavimento, depois, um material preto
qualquer parecido com alcatrão, depois, terra casta-
nha solta, a seguir, argila húmida. No fundo estendia-
-se um cano feito de cimento novo e limpo. Porque
colocariam eles canos debaixo do chão? Billy não fa-
zia ideia. Inclinou-se e perguntou:
- Porque estão a meter um cano debaixo do chão?
Um operário olhou para cima e respondeu:
- Estamos a escondê-lo dos Russos.
- Oli. - Billy anuiu, como que compreendendo.
Passados instantes, continuou em frente.
Sentia fome, no entanto, tinha de fazer uma coisa
antes de voltar para casa para almoçar. Almoço? Co-
mera um pacote de bolachas porque o pai estava n
hospital. Isso tinha alguma coisa a ver com a razão
que o levara a Bethrial Green, por‚m, não conseguia
estabelecer a ligação.
Dobrou uma esquina, olhou para o nome da rua
que estava na tabuleta presa bem no alto de uma pa-
rede, e viu que se encontrava na Quill Street. Já se
lembrava. Era ali que Tony Cox vivia - no número
dezanove. Bater-lhe-ia … porta...
Não. Não sabia porquê, mas o certo ‚ que tinha a
206
certeza de que devia entrar …s escondidas pela porta
das traseiras. Havia um re a o por tr s o terraço.
Billy atravessou-o at‚ chegar junto das traseiras da ca-
sa de Tony.
A pastilha elástica perdera já todo o sabor, pelo
que tirou-a da boca e atirou-a para longe, antes de
abrir com cuidado o fecho do portão e entrar furtiva-
mente.

27
Tony Cox conduziu lentamente ao longo do carreiro
enlameado e coberto de sulcos, tendo mais em aten-
ção o seu próprio conforto do que os interesses do do-
no do carro ®emprestado¯. A ruela, que não tinha no-
me, estabelecia ligação entre uma estrada e uma casa
de quinta com celeiro. Este, a casa vazia e em mau es-
tado, assim como o acre de terra f‚rtil que os rodea-
va, eram propriedade de uma empresa com a designa-
ção Empreendimentos de Terras, Lda.: pertencia, na
realidade, a um jogador viciado que devia muito di-
nheiro a Tony Cox. O celeiro era ocasionalmente uti-
lizado para armazenar lotes de mercadorias danifica-
dos por incêndio e comprados a preços mínimos, de
modo que já era habitual ver uma carrinha ou um au-
tomóvel entrarem pelo pátio da quinta.
O portão de cinco traves, que ficava … entrada do
terreno, encontrava-se aberto, e Tony entrou por ele
com o carro. Não se via sinal da carrinha azul, no en-
tanto, Jesse estava encostado … parede da casa da
quinta, a fumar um cigarro. Aproximou-se para abrir
a porta do carro a Tony.
- Não correu bem comunicou imediatamente.
Tony apeou-se.
27

- O dinheiro está aqui?


- Na carrinha - disse Jesse, indicando o celeiro
com um movimento da cabeça. - Mas não correu na-
da bem.
Entremos... aqui fora está demasiado calor.
Tony empurrou a porta do celeiro com esforço e en-
trou. Jesse seguiu-o. Um terço do chão da área estava
ocupado com caixotes de embalagens. Tony leu os ró-
tulos de dois deles: continham excedentes de unifor-
mes e casacos de corporacões militares. A carrinha
azul estava em frente da porta. Tony reparou que ha-
via matrículas amarradas com cordel sobre as origi-
nais.
- Que andaste a fazer? - perguntou com incredu-
lidade.
- Caramba, Tony, espera at‚ eu te contar aquilo
que fui obrigado a fazer.
- Então acho bem que me contes!
- Bem, dei uma trancada, sabes... nada de espe-
cial, apenas uma batida. Mas o gajo saltou do carro e
queria chamar a polícia. Portanto, pus-me na alheta,
está bem de ver. Mas ele não me saiu da frente do
carro, e levou um traulitada.
Tony blasfemou suavemente.
O medo transparecia agora no rosto de Jesse.
Bem, eu sabia que a bófia se poria … minha pro-
cura. Parei então numa garagem, dei a volta por tras
at‚ … retrete, e gamei um par de matrículas e este fa-
to-macaco. - Acenou ansiosamente com a cabeça,
como que a conceder a sua própria aprovação …s suas
acções. - Depois vim para aqui.
Tony fitou-o estupefacto, em seguida desatou a rir.
Seu estupor maluco - exclamou no meio do riso.
Jesse mostrou-se aliviado.
Fiz o melhor que havia a fazer, não fiz?
O riso de Tony desapareceu.
208
Seu estupor maluco - repetiu. - Tu ali, com
urna fortuna em dinheiro roubado na carrinha, e pá-
ras--- - encheu o peito de ar e esvaziou-o em nova
revoada de gargalhadas - ... e paras numa garagem e
gamas um fato-macaco!
Jesse tamb‚m sorriu, não de divertimento mas pelo
prazer de um temor desaparecido. Depois, voltou a
falar com seriedade.
- No entanto, tamb‚m há más notícias.
- Raios partam, que mais9
- O motorista da carrinha tentou armar em herói.
- Não me digas que o mataste? - perguntou Tony
ansiosamente.
- Não, só lhe dei uma pancada na cabeça. Mas a
pistola de Jacko disparou-se no meio da pancadaria
e Willie o Mouco levou um balázio. Em plena cara.
Não está nada bem, Tone.
- Oh, merda. - Tony sentou-se subitamente num
velho banco de três pernas. - Oh, pobre Willie. Le-
varam-no para o hospital, não foi?
Jesse anuiu.
- � por isso que Jacko não está aqui. Foi levá-lo.
Se ‚ que chegou lá com vida...
- Foi assim tão grave?
Jesse acenou afirmativamente com a cabeça.
- Oh, raios. - Ficou em silêncio durante um mo-
mento. - O pobre Wilhe não tem sorte nenhuma. Já
per deu um dos ouvidos, o filho ‚ atrasado mental e a
mulher parece o Henry Cooper... e agora acontece is
to. - Deu um estalo de comiseração com a língua. -
Dar-lhe-emos a parte dele a dobrar, mas isso não lhe
sarará a cabeça.
vantou-se.
Jesse abriu a carrinha, aliviado por ter transmitido
as más notícias sem sofrer a ira de Tony.
Tony esfregou as mãos uma na outra.
Muito bem, vamos lá dar uma vista de olhos ao
que nos calhou.
209

No compartimento de carga da carrinha havia nove


caixas de aço. Faziam lembrar pastas quadradas de
metal, todas elas dotadas de alças laterais e seguras
or um cadeado duplo. Eram pesadas. Os dois ho-
mens descarregaram-nas, uma a uma, alinhando-as no
meio do celeiro. Tony mirou-as cobiçosaninte. A sua
expressão denotava um prazer quase sensual. Comen-
tou:
Amigos, faz lembrar o Ali Babá e os Quarenta
Ladrões.
A um canto do celeiro, Jesse tirava explosivo plásti-
co, fios e detonadores de dentro de uma mochila.
Quem me dera ter Willie aqui para se encarregar
dos estouros.
Tony disse:
Quem me dera que ele estivesse aqui, e pronto.
Jesse preparou-se para abrir as caixas atrav‚s de ex-
plosões. Colocou explosivo, de consistência gelatino-
sa, em volta das fechaduras, ínseriu-lhe detonadores e
fios, ligando depois cada uma das bombas minúsculas
a um detonador tipo pistão.
Observando-o, Tony declarou:
- Dá a impressão de que sabes o que estás a fazer.
- Vi o Willie fazer isto vezes suficientes. - Sorriu.
Talvez possa tornar-me o arrombador de cofres da
firma...
O Willie não morreu - interrompeu Tony aspe-
ramente. - Pelo menos tanto quanto sabemos.
Jesse puxou o detonador para cima e, estendendo
os fios, levou-o para o exterior. Tony foi atrás dele.
Disse:
Leva a carrinha para fora do celeiro, não va a
gasolina explodir, percebes o que quero dizer?
- Não há perigo...
- E a primeira vez que fazes um rebentamento e
eu não quero correr o risco.
Jesse fechou as portas de trás da carrinha e fê-la re-
cuar at‚ ao pátio da quinta. Depois, abriu a capota do
veículo e, servindo-se de umas pinças, ligou o detona-
dor … bateria.
Disse:
- Não respirem.
E carregou no pistão.
Ouviu-se uma explosão abafada.
Os dois homens voltaram para dentro do celeiro.
Os cofres continuavam alinhados, agora com as tampas
soltas, formando ângulos bizarramente contorcidos.
Fizeste um bom trabalho - elogiou Tony.
As caixas tinham um recheio muito bem arrumado
e estavam completamente cheias. Os maços de notas
estavam agrupados em tamanhos exactamente iguais;
mil deles por caixa. Cada maço continha cem notas.
O que perfazia cem mil notas por caixa.
As primeiras seis continham notas de dez xelins,
obsoletas e sem valor.
Tony exclamou:
- Jesus H. Cristo!
A seguinte tinha apenas notas de uma libra, mas
nem sequer estava completamente cheia. Tony contou
oitocentos maços. A penúltima caixa tamb‚m deu a
contar notas de uma libra, mas apresentava-se com-
pletamente cheia. Tony observou:
- Assim está melhor. Uma bela maquia.
A última abarrotava de notas de dez libras.
Tony murmurou:
Deus nos ajude!
Jesse tinha os olhos muito abertos.
- Quanto está aí, chefe?
- Um milhão e cento e oitenta mil libras esterli-
nas, meu filho.
Jesse soltou um brado de alegria.
Estamos ricos! Estamos podres dele!
211

O rosto de Tony ensombrou-se.


Acho que seria melhor queimar todas as notas
de dez.
- Que estás para aí a dizer? - espantou-se Jesse,
tando-o como se o achasse louco. - Que queres di-
zer, queimá-las? Estás maluco?
Tony voltou-se e agarrou no braço de Jesse, aper-
tando-o violentamente.
- Escuta. Imagina que vais ao Rose and Crown,
pedes meia caneca de cerveja e uma tarte de carne,
depois pagas com uma nota de dez; se o fizeres todos
os dias durante uma semana, que achas que eles pen-
sarão todos?
- Pensarão que dei uma golpaça. Estás a aleijar-
-me no braço, Tone.
E quanto tempo levará um daqueles bisbilhotei-
ros ranhosos que por lá andam a chegar-se a um polí-
cia e a contar-lhe? Cinco minutos? - Largou-o.
1
E demasiado, Jesse. O teu problema ‚ não pensares.
1
E uma quantidade enorme de dinheiro que tens de
guardar em qualquer lado... e se a guardares em qual-
quer lado, o Velho Bill pode dar com ela.
Jesse considerou o ponto de vista demasiado radical
para digerir.
- Mas não se pode deitar dinheiro fora.
- Não estás a ouvir o que te digo, pois não? Eles
têm Willie o Mouco, não têm? O motorista deles liga-
rã Willie ao assalto, não ‚ verdade? E eles sabem que
Willie está na minha firma, portanto, tamb‚m têm co-
nhecimento de que quem fez o trabalhinho fomos nos,
certo? Podes ter a certeza de que os tens lá em tua ca-
sa esta noite, a rasgarem-te o colchão e a escavarem-
e a plantação de batatas. Agora, cinco notas de il
-t m
podem ser economias feitas por mim, mas cinquenta
delas em notas de dez não podem deixar de ser incri-
minadoras, não ‚ verdade?
Nunca pensei na questão dessa maneira - reco-
nheceu Jesse.
212

-,M-- IR _M
- Chama-se a isso morrer de fartura.
- Calculo que não possas meter tanto dinheiro no
Abbey National. Qualquer pessoa pode ter uma noite
proveitosa nas corridas de cães, mas se a massa for
demasiada, faz desconfiar, estás a ver? - explicou
Jesse por sua vez a Tony, como que a demonstrar que
comp@eendia. - E assim, não ‚?
E.
Tony desinteressara-se da lição. Tentava pensar nu-
ma tramóia que lhe permitisse arrecadar uma vasta
quantidade de dinheiro roubado.
-E tu não podes entrar no Barclays Bank com
mais de um milhão de libras e pedir para abrir uma
conta, pois não?
- Estás a perceber tudo - observou Tony sarcasti-
camente. De repente, olhou insistentemente para Jes-
se. - Ali, mas quem pode entrar no banco com uma
pilha de dinheiro sem despertar suspeitas?
Jesse ficou sem perceber.
- Bem, ningu‚m pode.
- Estás a ver aquilo? - perguntou Tony, apontan-
do para as caixas de roupas excedentes das Forças Ar-
madas. - Abre um par dessas caixas. Quero-te vesti-
do … marinheiro da Marinha Real. Acabei de ter uma
ideia danadamente esperta.

28
Era raro o editor fazer uma reunião … tarde. Era
costume ouvir-lhe dizer: ®As manhãs são de alegria,
as tardes de trabalho.¯ At‚ … hora de almoço, os seus
esforços eram despendidos na produção de um jornal.
Quando as duas da tarde chegavam, era demasiado
tarde para fazer algo de significativo: o conteúdo do
213

jornal estava mais ou menos determinado, a maior


parte das edições do dia tinham sido imprimidas e dis~
tribuídas, e o editor incidia a sua atenção no que de-
signava de mixórdias administrativas. Mas tinha de es-
tar por perto, não fosse dar-se o caso de aparecer algo
que exigisse uma decisão a alto nível. Arthur Cole
achava que acabara de surgir uma dessas ocasiões.
Cole, o redactor-chefe, encontrava-se sentado em
frente da enorme secretária do editor. A esquerda de
Cole, estava o repórter Kevin Hart; … sua direita, via-
-se Mervin Glazier, o editor da City.
O editor acabou de assinar uma resma de pap‚is e
ergueu os olhos:
- Qual ‚ o ponto da situação?
Cole informou:
- Tim Fitzpeterson viverá, a declaração sobre a ex-
ploração petrolífera está atrasada e os assaltantes ao
carregamento de dinheiro escapara m mais de um
milhão de libras.
- E?
- E passa-se alguma coisa.
O editor acendeu um charuto. A verdade ‚ que
adorava ver a porcaria administrativa interrompida
por algo excitante como uma história.
- Continue.
- Recorda-se de Kevin ter interrompido a reunião
da manhã ligeiramente excitado por causa de um tele-
fonema alegadamente de Tim Fitzpeterson?
O editor sorriu indulgentemente.
Se os repórteres jovens não se excitam, como se-
rão quando chegarem a velhos?
- Pois bem. ‚ possível que Kevin tivesse razão ao
dizer que era u ma das grandes. Lembra-se das pessoas
acusadas de chantagear Fitzpeterson? Cox e Laski. -
Cole virou-se para Hart. - Faça favor, Kevin.
Hart descruzou as pernas e inclinou-se para a frente.
214
Chegou novo telefonema, desta vez de uma mu-
lher que forneceu o nome e a morada. Afirmou que o
niarido, Wilham Johnson, esteve no assalto … carrinha
do dinheiro, foi ferido e cegou, e que fora um traba-
lho a mando de Tony Cox.
O editor exclamou:
Tony Cox! Confirmou a fonte?
No hospital está um William. Jolinson com feri-
mentos no rosto. E tem um detective … cabeceira, …
espera de que ele volte a si. Fui ver a mulher, mas ela
recusou-se a falar.
O editor, que nos seus tempos fora repórter do cri-
me, disse:
- Tony Cox ‚ um peixão importante. Da parte de-
le tudo se pode esperar. Não ‚ um tipo nada agradá-
vel. Continue.
Cole disse:
A próxima ‚ de Mervyn.
Há um banco em dificuldades - comunicou o
editor da City. - O Cotton Bank da Jamaica. Trata-
-se de um banco estrangeiro com sucursal em Lon-
dres. Faz muitos negócios com o Reino Unido. Seja
como for, ‚ propriedade de um indivíduo chamado
Felix Laski.
- Como ‚ que sabemos? - perguntou o editor. -
Quero dizer... que está em dificuldades.
Bom, recebi uma dica de um contacto. Liguei
para ThreadneedIe Street a fim de confirmar. Clam,
eles não dão uma resposta directa, no entanto, os ba-
rulhos que fizeram deram a impressão de confirmar a
informação.
- Conte-me exactamente o que foi dito.
Glazier puxou de um bloco de notas. Era capaz de
escrever taquigrafia a 150 palavras por minuto, e os
seus apontamentos eram sempre impecáveis.
Falei com um homem chamado Ley, que ‚ pro-
vavelmente quem está a tratar do assunto. Por acaso,
conheço-o, pois...
215

Salte o anúncio, Mervyri - interrompeu o edi-


tor. - Todos nós sabemos como os seus contactos são
eficazes.
Glazier sorriu.
Desculpe. Primeiro, perguntei-lhe se sabia algu-
ma coisa acerca do Cotton Bank da Jamaica. Ele res-
pondeu: ®O Bank of England sabe bastante acerca de
todos os bancos londrinos.¯ Eu disse: ®Então está a
par da viabilidade que o Cotton Bank tem neste mo-
mento.¯ Ele disse: ®Evidenternente. O que não signi-
fica que lho vá dizer. ¯ Eu disse: ®Eles estão … beira da
bancarrota, verdadeiro ou falso?¯ Ele respondeu:
®Passo.¯ Eu insisti: ®Vá, Donald, não estamos no
Mastermind, lidamos com dinheiro de pessoas.¯ Ele
retorquiu: ®Sabe que não posso pronunciar-me sobre
esse gênero de assuntos. Os bancos são nossos clien-
tes. Respeitamos a confiança que depositam em nós.¯
Eu disse: ®Vou publicar um artigo a dizer que o Cot-
ton Bank está prestes a falir. Está ou não a dizer-me
qu e essa história poderá ser falsa?¯
Glazier fechou o bloco de notas.
- Se o banco estivesse em boa situação, ele tê-lo-ia
dito.
O editor concordou com a cabeça.
Nunca gostei desse tipo de raciocínio, mas neste
caso provavelmente tem razão. - Sacudiu o charuto
no enorme cinzeiro de vidro. - A que conclusão po-
demos chegar?
Cole resumiu.
Cox e Laski chantagearam Fitzpeterson. Fitzpe-
terson tenta suicidar-se. Cox faz um assalto. Laski vê-
-se metido em maus lençóis. - Encolheu os ombros.
Passa-se algo.
Que pretendem fazer?
Descobrir. Não ‚ com esse objectivo que esta-
mos aqui?
O editor levantou-se e foi at‚ … janela, como que a
216
ganhar tempo para reflectir. Procedeu a um pequeno
ajustamento nas suas persianas e a sala ficou ligeira-
mente mais clara. Na alcatifa azul forte apareceram
faixas de luz solar, que lhe ressaltaram o padrão. Vol-
tou para a sua secretária e sentou-se.
- Não - declarou. - Vamos deixar tudo como es-
tá, e vou dizer-vos porquê. Uni: não podemos prever
a bancarrota de um banco porque bastará essa previ-
são para provocar precisamente essa situação. Era só
fazer perguntas acerca da viabilidade do banco para a
City tremer. Dois: não podemos tentar localizar os
responsáveis pelo assalto … carrinha do dinheiro. Essa
tarefa compete … polícia. Seja como for, tudo quanto
possamos descobrir não pode ser publicado, pois pode
prejudicar um possível julgamento. Ou seja, se sabe-
mos que foi Tony Cox, a polícia deve ser informada; e
a lei diz que se estivermos informados da iminência de
uma detenção ou algo do gênero, a história torna-se
sub judice. Três: Tim Fitzpeterson não morrerá. Se
cometermos a asneira de andar por Londres a inquirir
sobre a sua vida sexual, não tardará que apareçam
perguntas no Parlamento acerca dos repórteres do
Evening Post que andam a percorrer o país … procura
de imoralidades ligadas a políticos. Deixamos esse ti-
po de acção para pasquins de domingo.
Apoiou as mãos sobre a secretária, de palmas volta-
das para baixo:
- Lamento, rapazes.
Cole levantou-se:
- Muito bem, voltemos ao trabalho.
Os três jornalistas saíram. Ao chegarem … sala da
redacção, Kevin Hart comentou:
Se ele fosse editor de The Washington Post, Ni-
xon ainda estaria a ganhar eleições com o lema ®Lei e
Ordern¯.
Ningu‚m riu.
217

TRES DA TARDE

29
Tenho Smith and
Bernstein ao telefone para fa-
larem consigo, Mr. Laski.
- Obrigado, €arol.
Passa. Viva, George!
- Felix, copia estás?
Laski colocou um sorriso na
voz. Não foi fácil.
Com a melhor das
disposições. O teu desempe-
nho melhorou alguma coisa?
George Berristein jogava
t‚nis.
Absolutamente nada. Sabes
que andei a ensinar
George Júnior a jogar?
Não me digas.
Pois, agora ‚ ele a
vencer-me.
Laski riu.
- E como vai Rachel?
- Nem um quilo a menos.
Ainda ontem … noite fa-
lámos sobre ti. Ela disse-me que tu devias
casar-te.
1X
Eu respondi-lhe: ®Não
sabias que Felix ‚ gay'?¯ Ela
respondeu: Gay? Então
porque não hão-de as pessoas
alegres casar?¯ Eu
retorqui: ®Não, quero dizer que ele
‚ homossexual, Rachel.¯ Ela
deixou cair o tricot. Ela
acreditou em mim, Felix! Já
viste semelhante coisa?

Em inglês. -qY tem o


significado de ®homossexual¯ (maricas. na gíria)
ou ®alegre¯. (N. da T)

219

77@7 777 77

aski forçou nova gargalhada. Não sabia quanto


L
tempo mais conseguiria manter aquela situação.
-Estou a pensar nisso, George.
Casamento? Não o faças! Não o faças! Foi para
me dizeres isso que telefonaste?
Não, essa ‚ apenas uma pequena ideia que paira
no meu subconsciente.
- Então qual a razão do telefonema?
- Não ‚ nada de especial. Preciso de um milhão de
libras por vinte e quatro horas, e pensei em ti.
Laski susteve a respiração.
Houve um silêncio breve.
- Um milhão. Há quanto tempo anda Felix Laski
no mercado financeiro?
Desde que descobriu como ter óptimos lucros de
um dia para o outro.
o?
- Importas-te de me contar o segred
- Está bem. Depois de me emprestares o dinheiro.
A s‚rio, George: podes fazê-lo?
posso. Que ofereces como garantia?
Claro que
Há... com certeza não se pedem garantias por
um empr‚stimo de vinte e quatro horas, pois não?
O punho de Laski apertou-se em torno do ausculta-
dor at‚ os nós dos dedos ficarem brancos.
Tens razão. Mas tamb‚m não ‚ normal empres-
tar somas como esta a bancos como o teu.
Está bem. A minha garantia são as quinhentas e
d ez mil acções da Hamilton Holdings.
Só um minuto.
aski visualizou George Bernstein:
Fez-se silêncio. L
um homem corpulento de cabeça grande, nariz volu-
oso e de sorriso permanentemente rasgado; sentado
m
a sua velha secretária num escritório acanhado com
vista para St. Paul; a verificar números em The Finan-
tial Times, os seus dedos a movimentarem-se com li-
geireza sobre o teclado de um computador.
Bernstein voltou … linha.
220
-Ao preço de hoje, não chega, Felix.
-Ora, deixa-te de formalidades. Sabes que não
tenciono lixar-te. Sou eu, Felix, o teu amigo.
Limpou a testa com a manga.
- Eu teria muito gosto em fazê-lo, mas acontece
que tenho um sócio.
O teu sócio dorme tão profundamente que cor-
rem rumores de que morreu.
- Um negocio como este acordava-o nem que esti-
vesse enterrado. Experimenta Larry Wakely, Felix.
Pode ser que ele possa ajudar-te.
Laski tentara já, Larry Wakely, mas não o disse.
- Está bem. Q�e, tal um jogo este fim-de-semana?
-Adoraria! - C@ alívio na voz de Bernstein era
óbvio. - Sábado de@manhã no clube?
- Dez libras por jogo?
- Será um desgosto arrebanhar o teu dinheiro.
- Isso ‚ o que vamos ver. Adeus, George.
- Um abraço.
Laski fechou os olhos por um momento, deixando o
auscultador baloiçar na sua mão. Tivera a certeza de
que Bernstein não lhe emprestaria o dinheiro: mas na-
quele momento recorria a todas as possibilidades. Es-
fregou a cara com os dedos. Ainda não estava derro-
tado.
Carregou no descanso e obteve o sinal de linha.
Discou com um lápis roído.
O número tocou durante muito tempo. Estava pres-
tes a ligar novamente quando atenderam.
- Departa mento de Energia.
- Gabinete de Imprensa - pediu Laski.
- Vou tentar estabelecer a ligação.
Ouviu-se nova voz de mulher.
- Gabinete de Imprensa.
- Boa tarde - cumprimentou Laski.
formar-me para quando está previsto o secretário de
Estado comunicar a atribuição da licença de explora-
ção petrolífera...
221
Pode in-

O secretário de Estado encontra-se atrasado


interrompeu a mulher. - A secretaria da vossa redac-
cão foi informada do facto e o telex do comunicado …
imprensa esclarece totalmente a situação.
E desligou.
13 Laski recostou-se na sua cadeira. Começava a
assus-
tar-se, o que não lhe agradava. O seu papel era
domi-

1@@
nar as situações daquele gênero: gostava de ser o úni-
co a saber dos factos, o manipulador que fazia todos
os que o cercavam correrem de um lado para o outro
a tentarem adivinhar o que se passava. Pedinchar em-
r‚stimos não se adequava ao seu estilo.
p
O telefone voltou a tocar. Carol anunciou:
Está em linha um senhor chamado Hart.
� algu‚m meu conhecido?
Não, mas ele diz que o assunto tem a ver com o
dinheiro de que o Cotton Bank necessita.
- Passa. Está, fala Laski.
- Boa tarde, Mr. Laski. - Era a voz de um jo-
em. - Fala Kevin Hart, do Evening Post.
v
Laski sobressaltou-se.
Creio que a minha secretária falou do... não
in-
teressa.
Do dinheiro de que o Cotton Bank necessita.
Sim, bem, um banco em dificuldades precisa de di-
nheiro, não ‚ verdade?
Laski retorquiu:
Não me parece que queira falar consigo, meu jo-
vem.
Ia a desligar quando Hart disse:
Tim Fitzpeterson.
Laski empalideceu.
- O quê?
- Os problemas do Cotton Bank têm alguma rela-
cídio de Tim Fitzpeterson?
ão com a tentativa de sui
ç
®Como diabo ‚ que eles sabiam?¯ Laski raciocinou
celeremente. Talvez não soubesse. Poderiam estar a
222
deitar-se a adivinhar - a lançarem uma bisca, como
lhe chamavam; a pretenderem saber algo de maneira
a ver se a pessoa negava. Laski respondeu:
O seu editor tem conhecimento deste seu telefo-
nema?
Hum... claro que não.
Algo na voz do repórter deu a entender a Laski que
lhe tocara num ponto fraco. Aproveitou a circunstân-
cia.
Não sei que jogada ‚ a sua, jovem, mas se volto
a ouvir mais algum disparate como este, saberei onde
os boatos começaram.
Hart perguntou:
- Qual ‚ a relação que tem com Tony Cox?
- Quem? Adeus, jovem.
Laski desligou.
Consultou o relógio de pulso: passava um quarto de
hora das três da tarde. Nunca conseguiria levantar um
milhão de libras em quinze minutos. Tudo indicava
que não havia nada a fazer.
O banco iria … falência; a reputação de Laski ficaria
pelas ruas da amargura; e, provavelmente, ver-se-ia
envolvido num processo criminal. Pensou em abando-
nar o país naquela tarde. Não poderia levar nada con-
sigo. Começar de novo, em Nova lorque ou Beirute?
Estava demasiado velho. Se ficasse, conseguiria salvar
o suficiente do seu imp‚rio para viver o resto dos seus
dias. Mas que raio de vida infernal seria?
Fez a cadeira girar e espraiou o olhar pela janela.
O dia arrefecia; afinal de contas, não se estava no Ve-
rão. Os edifícios altos da City lançavam sombras com-
pridas, e ambos os lados da rua, que se estendia em
baixo, estavam mergulhados na semiobscuridade. Las-
ki observou o trânsito e pensou em Ellen Hamilton.
Precisamente naquele dia, decidira casar com ela.
Era uma ironia dolorosa. Passara vinte anos a esco-
lher as mulheres que lhe interessavam: modelos, actri-
223
zes, debutantes, at‚ princesas. E quando, finalmente,
optava por uma, falia. Um homem supersticioso to-
maria tal como um augúrio para que não se casasse.
A capacidade de escolha poderia passar a ficar-lhe
vedada. Felix Laski, playboy, milionário, era uma coi-
sã; Felix Laski, falido, ex-condenado, era outra com-
pletamente diferente. Tinha a certeza de que o tipo de
relação que mantinha com Ellen não era daqueles que
conseguiriam sobreviver a uma catástrofe de tal di-
mensão. O amor que nutriam um pelo outro era sen-
sual, comodista, baseado no prazer, completamente
diferente da devoção eterna referida no Livro da Ora-
ção Comum.
Pelo menos assim se tinham passado as coisas. Lãs-
ki sempre defendera a teoria de que a afeição perma-
nente poderia vir, mais tarde, do simples facto de vi-
verem juntos e partilharem tudo; no final de contas, a
luxúria quase insana que os juntara acabaria, certa-
mente, por se desvanecer com o tempo.
Não devia estar com conjecturas, pensow ®Na-@-
ri lia idade, já tinha obrigação de ter a certeza.¯
Naquela manhã, a decisão de se casar com Ellen
parecera-lhe uma opção que ele podia tomar fria, in-
diferente, at‚ mesmo cinicamente, calculando o que
poderia lucrar com o facto, como se se tratasse de
mais,uma jogada no mercado de acções. Mas agora
que a situação deixara de estar sob o seu comando,
compreen eu - e a ideia atingiu-o como um golpe fí-
sico - que precisava desesperadamente de Ellen. Ele
queria uma devoção eterna: queria algu‚m que se
preocupasse com a sua pessoa, que apreciasse a sua
companhia, e que lhe tocasse no ombro com afecto ao
passar; algu‚m que estaria sempre ali, algu‚m que lhe
diria ®amo-te¯, algu‚m que partilharia a velhice com
ele. Vivera sempre sozinho: já bastava de solidão.
Depois de admitir todos esses factos a si próprio,
foi mais longe. Se pudesse tê-la, não se importaria de
224
ver o seu imp‚rio ruir, o negócio com a Hamilton
Holdings ir por água abaixo, a sua reputação destruí-
da. Estaria mesmo disposto a ir para a cadeia junta-
mente com Tony Cox, se a soubesse … sua espera
quando saísse.
Desejou nunca ter conhecido Tony Cox.
Laski imaginara ser fácil controlar um bandido de
meia-tigela como Cox. O homem poderia ser imensa-
mente poderoso dentro do seu pequeno mundo, mas
com certeza não podia tocar num homem de negocios
respeitável. Talvez não: mas quando esse mesmo ho-
mem de negócios fazia uma sociedade - ainda que
informal - com esse bandido, deixava de ser respei-
tável. Quem ficava comprometido com a associação
era Laski, não Cox.
Laski ouviu a porta do gabinete abrir-se e deu meia
volta na cadeira giratória, deparando-se-lhe Tony Cox,
que acabava de entrar.
Laski ficou de boca aberta. Era como ver um fan-
tasina.
Carol aproximou-se apressadamente atrás dele,
acossando-o como um terrier. Disse a Laski:
Pedi-lhe que esperasse, mas não quis... Entrou
sem mais nem menos!
- Deixe estar, Carol, eu trato do assunto - disse
Laski.
A rapariga saiu e fechou a porta.
Laski explodiu:
Que raio está você a fazer aqui? Nada poderia
ser mais perigoso! Já tenho os jornais … perna a per-
guntare in-ine que relação tenho consigo e com Tim
FitzPeterson... Sabia que ele tentou suicidar-se?
Tenha calma. Não se amofine - disse-lhe Cox.
Acalmar-me? Toda a situação ‚ um perfeito de-
sastre! Perdi tudo, e se me vêem consigo, acabo na
prisão...
Cox deu uma passada enorme em frente e agarrou
Laski pela garganta, sacudindo-o.
225

Cale essa boca - ordenou com maus modos.


Atirou-o novamente para a cadeira. - Agora oiça.
Quero a sua ajuda.
- Nem pensar - murmurou Laski.
- Cale-se! Quero a sua ajuda e você vai dar-ma,
caso contrário não descansarei enquanto não o meter
na cadeia. Muito bem, como sabe, esta manhã fiz o
tal trabalhinho, da carrinha do dinheiro.
Eu não sei de nada.
Cox fez de conta que não o ouviu.
Bem, não tenho sítio onde esconder o dinheiro.
portanto vou metê-lo no seu banco.
Não seja ridículo - retorquiu Laski imediata-
mente. Depois franziu a testa. - Quanto ‚?
- Pouco mais de um milhão.
- Onde?
- Lá fora, na carrinha.
Laski p“s-se de p‚ com um pulo.
Tem um milhão de libras em dinheiro roubado
aqui em frente, no raio de uma carrinha?
- Exacto.
- Você ‚ doido. - Laski raciocinava celeremente.
Qual ‚ a forma em que está o dinheiro?
- Notas usadas de valores variados.
- Estão todas dentro dos contentares originais?
- Não sou assim tão parvo. Foram transferidos pa-
ra malas.
Alteraram a sequência dos números de s‚rie?
-At‚ que enfim percebeu. Se não se despacha
ainda multam a carrinha por estacionamento numa li-
nha amarela.
Laski coçou a cabeça.
Como ‚ que o carregarão para dentro do cofre
subterrâneo?
- Tenho seis rapazes ali fora.
- Não posso deixar seis dos seus cascas-grossas
carregarem todo aquele dinheiro para dentro do meu
cofre subterrâneo! O pessoal desconfiaria...
226
Estão uniformizados casacos, calças, camisas
e gravatas da Marinha. Parecem guardas de seguran-
ça, Felix. Se quer brincar …s perguntas e respostas,
deixe isso para depois, há?
Está bem, vamos a isto.
Apressou Cox para fora da sala e seguiu-o só at‚ …
secretária de Carol.
Ligue para o cofre subterrâneo - ordenou … ra-
pariga. - Diga-lhes que se preparem para receber
imediatamente um depósito de dinheiro … vista. Eu
próprio tratarei da papelada. E passe-me uma linha
para o telefone.
Voltou para o seu gabinete, pegou no auscultador e
ligou para o Bank of England. Consultou o relógio.
Eram três e vinte e cinco da,,,@arde. Pediu que o puses-
sem em ligação com Mr. Ley'----
- Fala Laski - disse.
- Ali, faça favor - disse o banqueiro cautelosa-
mente.
Laski fez um esforço para falar com calma.
Resolvi o pequeno problema que tinha, Ley.
O dinheiro necessário está no meu cofre subterrâneo.
Posso tratar de o transferir de imediato, como sugeriu
inicialmente; ou pode inspeccioná-lo hoje e aceitar a
mudança para amanhã.
- Hum. - Ley reflectiu por instantes. - Não
creio que seja necessário, �aski. Não nos seria nada
conveniente termos de contar tão grande quantidade
de. dinheiro esta tarde. Se puder entregá-lo logo ao
principio da manhã, daremos luz verde ao cheque no
mesmo dia.
Obrigado. - Laski decidiu deitar sal na ferida.
Desculpe ontem tê-lo irritado tanto.
Talvez eu tenha sido um pouco brusco. Adeus,
Laski.
Laski desligou. Continuava a raciocinar celeremen-
te. Calculou que poderia reunir … volta de cem mil li-
227

bras de um dia para o outro. Cox provavelmente con-


seguiria arranjar quantia igual nos seus clubes. Troca-
riam esse dinheiro por duzentas mil libras das notas
roubadas. Era apenas mais uma precaução: se todas
as notas que entregasse no dia seguinte se apresen-
tassem demasiado usadas para serem reemitidas, al-
gu‚m poderia achar curiosa a coincidência de um
roubo num dia e de um depósito no outro. Uma lufa-
da de notas em bom estado desvaneceria semelhante
suspeita.
Parecia-lhe não ter descorado nenhuma questão.
Permitiu-se descontrair por um momento. ®Consegui
de novo¯, pensou. ®Ganhei.¯ Deixou escapar uma
gargalhada de puro triunfo.
Agora, havia que supervisar os pormenores. Era
melhor ir at‚ ao cofre subterrâneo a fim de sossegar o
seu pessoal, sem dúvida estupefacto. E queria certifi-
car-se de que Cox e os seus capangas se afastavam ra-
pidamente do local.
Depois telefonaria a Ellen.

30
Ellen Hamilton estivera o dia inteiro em casa. A ida
…s compras de que falara a Felix fora inventada: preci-
sara apenas de uma desculpa para ir vê-lo - era uma
mulher muito entediada. A deslocarão a Londres não
lhe tomara muito tempo; ao chegar, mudara de roupa,
reajeitara o cabelo e demorara mais tempo que o ne-
cessário a preparar um almoço de requeijão, salada,
fruta e caf‚ simples, sem açúcar. Lavara a loiça utili-
zada, dispensando a máquina automática para tão
poucas peças, e mandara Mrs. Tremiett para o piso de
cima aspirar. Assistiu ao noticiário e a uma telenovela
228
na televisão; começou a ler um romance histórico,
mas p“-lo de parte passadas cinco páginas; andou pela
casa, de divisão em divisão, arrumando coisas que não
precisavam de ser arrumadas; e desceu … piscina para
um mergulho, acabando por mudar de ideias no últi-
mo minuto.
Naquele momento, de p‚, nua, no chão de tijoleira
do recinto fresco da piscina, com o fato de banho nu-
ma mão e o vestido na outra, reflectia: ®Se não sou
capaz de me decidir se quero ou não nadar, como
conseguir ei alguma vez arranjar força de vontade sufi-
ciente para abandonar o meu marido?¯
Deixou cair as roupas e os ombros baixaram-lhe de
desalento. Havia um espelho de corpo inteiro na pare-
de, mas não olhou para ele. Cuidava da sua aparência
por escrúpulo, não por vaidade: achava os espelhos
bastante dispensáveis.
®Qual será a sensação de nadar nua¯, pensou. Era
das tais questões que nem sequer se punham nos seus
tempos de juventude: al‚m disso, fora sempre inibida.
Ciente do facto, não o combatia, pois, na verdade,
gostava das suas inibições - proporcionavam ao seu
estilo de vida a aparência e a uniformidade de que ne-
cessitava.
O chão estava deliciosamente fresco. Sentiu-se ten-
tada a deitar-se e a rolar sobre ele, sentindo o contac-
to dos ladrilhos frios na pele quente. Calculou o risco
de Pritchard ou Mrs. Treirilett entrarem e apanharem-
-na em tais propósitos, e achou que era demasiado
grande. Voltou a vestir-se.
A piscina coberta ficava numa elevação de terreno
considerável. Da sua porta, era possível ver a maior
parte do terreno circunstante - nove acres dele. Era
um jardim delicioso, criado no início do s‚culo ante-
rior; fora desenhado com imaginação e plantado com
várias esp‚cies de árvores diferentes. Proporcionara-
-lhe grande prazer, mas ultimamente, … semelhança de
tudo o mais, pouca graça lhe achava.
229

O lugar apresentava-se no seu melhor na frescura


da tarde. Uma brisa ligeira fez o vestido de algodão
estampado de Ellen esvoaçar como uma bandeira.
Afastou-se da piscina e enveredou pelo meio d e um
bosquedo, onde as folhas filtravam a luz do sol, tra-
çando desenhos moveis na terra seca.
Felix chamara-a de desinibida, mas claro que se en-
ganava. Ela delineara simplesmente uma área da sua
vida em que a uniformidade fora sacrificado ao pra-
zer. Al‚m disso, era de bom tom ter um amante, des-
de que se procedesse com discrição; e ela era extre-
mamente discreta.
O problema residia no facto de apreciar o gosto da
liberdade. Apercebia-se de que chegara a uma idade
perigosa. As revistas femininas que folheava (mas nunca
chegava a ler verdadeiramente) diziam-lhe constante-
mente que era naquela altura que a mulher somava os
anos que lhe restavam, concluía que eram chocante-
mente poucos e decidia preenchê-los com todas as coi-
sãs de que se abstivera at‚ então. As escritoras da mo-
da, jovens e liberais, alentavam para a desilusão que
poderia encontrar quem seguisse tal caminho. Como
poderiam saber? Deitavam-se apenas a calcular, como
todos os outros.
Ellen desconfiava que, no seu caso, o problema n a-
da tinha a ver com a idade. Quando chegasse aos se-
tenta, poderia ainda encontrar algum homem de no-
venta anos que a desejasse, se nessa idade ainda e
com tais questões. Tão-pouco tinha alguma
lação com a menopausa, que já deixara bem p rã
r‚ a
trás. Acontecia simplesmente que cada dia achava De-
rek um pouco menos atraente e Felix um pouco mais.
Chegara a um ponto em que a comparação era dema-
siado acentuada para a suportar.
Comunicara a ambos, no seu estilo indirecto, eni
que p‚ a situação se encontrava. Sorriu ao recordar a
expressão pensativa com que os dois tinham ficado
230
depois de ela lhes lançar o seu ultimatum. Conhecia os
dois homens: ambos analisariam o que ela dissera,
epois compreenderiam e congratular-se-iam
pouco d
com a sua perspicácia. Nenhum se daria conta da
ameaça velada.
Saiu do meio do bosquedo e apoiou-se a uma cerca
que ficava … beira de um campo. O pasto era partilha-
do por um burro e uma ‚gua velha: o burro estava ali
por causa dos netos e a ‚gua porque fora, outrora, a
preferida de Ellen para as caçadas. Para eles estava
tudo bem - ignoravam que envelheciam.
Atravessou o campo e subiu a pequena vertente que
conduzia …s linhas de caminho-de-ferro fora de uso.
Locomotivas a vapor tinham passado ali, esfurnaçan-
do, no tempo emque ela e Derek eram jovens mun-
danos, dançando ao som de música jazz, bebendo de-
masiado champanhe, dando festas que na realidade
fugiam …s suas posses. Caminhou no meio dos
carris
e nferrujados, saltando de chulipa em chulipa, at‚ algo
pequeno e peludo se escapulir de debaixo da madeira
escura em decomposição, assustando-a. Desceu preci-
picadamente a vertente e voltou para casa, seguindo o
curso do riacho por entre o arvoredo agreste. Não ti-
nha voltade de voltar a ser uma jovenzinha volúvel;
mas continuava a querer estar apaixonada.
Bem, o certo ‚ que pusera as suas cartas na mesa
com ambos os homens. Derek fora informado de que
o seu trabalho estava a afastar a mulher da sua vida e
que
teria de mudar esta, se quisesse conservá-la. Felix
for alertado de que não manteria o seu petisco para
sempre.
Ambos os homens poderiam curvar-se … sua vonta-
de, o que a deixaria, mais uma vez, perante o proble-
ma da escolha. Ou quem sabe os dois decidiriam que
podiam passar sem ela, em cujo caso só lhe restaria fi-
car d‚sol‚e, qual heroína de um romance de Françoise
Sagan; e ela sabia que não era situação que lhe agra-
dasse.
231

Bem, partindo do princípio de que ambos se propu-


nham fazer-lhe a vontade: quem escolheria ela? Ao
40 da
r a volta … esquina da casa, pensou: ®Felix, prova-
velmente.¯
Apercebeu-se, com um choque, que o carro estava
em frente da porta de entrada e que Derek se apeava
naquele momento. Porque teria ele voltado para casa
tão cedo. O marido acenou-lhe. Parecia contente.
Ellen atravessou o piso coberto de cascalho e, asso-
berbada de sentimentos de culpa, beijou-o.

31
Kevin Hart devia sentir-se preocupado, por‚m, não
estava capaz de reunir forças suficientes para tal.
O editor fora bastante claro ao ordenar-lhes que não
investigassem o Cotton Bank. Kevin desobedecera, e
Laski perguntara: ®O seu editor tem conhecimento des-
te telefonemas A pergunta era frequentemente feita
por entrevistados ofendidos e a resposta era invaria-
velmente ®Não¯, a não ser, claro, que o editor tivesse
proibido a chamada. De modo que, se Laski decidisse
ligar ao editor - ou mesmo ao Presidente -, Kevin
estava em maus lençóis.
Portanto, por que razão não se sentiria preocupado?
Concluiu que já não atribuía tanta importância
…quele emprego como acontecera de manhã. O editor
tinha bons motivos para abafar a história, como era
evidente; havia sempre boas razões para a cobardia.
Todos pareciam aceitar que ®‚ ilegal¯ era um argu-
ento definitivo; mas os grandes jornais do passado
sempre tinham infrigido as leis: leis sem dúvida aplica-
das com mais dureza e rigidez do que as de hoje. Ke-
232
vin achava que os jornais deviam ser publicados e pro~
cessados ou at‚ mesmo suspensos. Para ele era fácil
ter semelhante opinião, pois não estava na pele de ne-
nhum editor.
De modo que, sentado na sala de redacção, perto
da mesa, ia beberricando chá de máquina e lia a sua
rópria coluna de mexericos do jornal, compondo o
p
discurso heróico que gostaria de ter feito ao editor.
No que dizia respeito ao jornal, era a ponta final do

dia. Agora, só um assas n rtante ou um desas-


o
tre com várias mortes e i@i"a ornal. Metade dos
sí p
ntr no
repórteres - os que trabalhavam em turnos de oito
horas - voltara para casa. Kevin trabalhava dez ho-
ras, quatro dias por semana. O correspondente para
as questões industriais, depois de ter bebido oito co-
pos de cerveja ao almoço, dormia a um canto. Uma
única dactilógrafa batia desinteressadamente … máqui-
na, enquanto uma repórter, de jeans, escrevia uma
história não datada para a primeira edição do dia se-
guinte. Os registadores de notícias discutiam futebol e
os subeditores compunham legendas cómicas para fo-
tografias presas ao pico de metal, rindo ruidosamente
com os ditos espirituosos um do outro. Arthur Cole
andava de um lado para o outro, lutando contra a ten-
tação de fumar e desejoso de que houvesse um incên-
dio em Buckingham Palace. De vez em quando para-
va e folheava uma resma de folhas dactilografadas
presas ao seu pico metálico, como que receando ter
deixado escapar a grande história do dia.
Pouco depois, Mervyn Glazier saiu do seu pequeno
reino pessoal. Tinha as fraldas da camisa de fora. Sen-
tou-se ao lado de Kevin, acendeu um cachimbo de bo-
quilha metálica e descansou um sapato com muito uso
no rebordo do cesto dos pap‚is.
O Cotton Bank da Jamaica
preâmbulo. Falava calmamente.
Kevin sorriu.
233
disse … maneira de

Não me digas que tamb‚m andaste a


portar-te
mal?
Mervyn encolheu os ombros.
- Não tenho culpa de que as pessoas liguem para
mim a dar informações. Seja como for, se o banco es-
tava em perigo, já deixou de estar.---_
- Como ‚ que sabes?
- Foi o meu contacto reservadíssimo da Thread-
needle Street: ®Tenho prestado uma atenção mais es-
pecial ao Cotton Bank desde o teu telefonema, e con-
cluí que a sua saúde financeira está em perfeitas con-
dições. Não ‚ para citar.¯ Por outras palavras, foi
socorrido … socapa.
Kevin terminou o seu chá e amachucou ruidosa-
mente a chávena de papel plastificado.
- Grande coisa.
- Tamb‚m ouvi de uma fonte completamente di-
versa, não muito afastada do Conselho da Bolsa de
Valores, que Felix Laski comprou as acções de con-
trolo da Holdings Hamilton.
Nesse caso algum dinheiro ‚ coisa que não lhe
deve faltar. O Conselho está interessado?
- Não. Eles sabem, mas não se importam.
- Achas que nos entusiasmámos com coisa pouca9
Mervyn abanou a cabeça lentamente.
De forma nenhuma.
Eu tamb‚m penso que não.
O cachimbo de Mervyn apaga@a-se. Este sacudiu-o
no cesto dos pap‚is. Os dois jornalistas entreolharam-
-se com ar desamparado por um momento, em segui-
da Mervyn p“s-se de p‚ e afastóii-se.
'!TV" Kevin voltou a fazer incidir a sua atenção
sobre a
coluna de mexericos, por‚m, não conseguia concen-
trar-se. Leu um parágrafo quatro vezes sem o perce-
ber, depois desistiu. Aquele dia fora palco de um
grande golpe fraudulento, e ele ansiava por descobrir
do que se tratara; tanto mais, por se encontrar … beira
de o perceber integralmente.
234

J
Arthur chamou-o.
- Senta-te aqui enquanto vou aos lavabos, está
bem?
Kevin deu a volta … mesa da redacção e sentou-se
diante dos vários telefones e pain‚is de controlo do
editor da redacção. Não se sentiu particularmente en-
tusiasmado: ficara naquele posto porque, …quela hora
do dia, pouca importância tinha. Ele era apenas o ho-
mem desocupado mais … mão.
A falta de ocupação era inevitável nos jornais, re-
flectiu Kevin. Num dia de grandes notícias, o pessoal
tinha de ser em quantidade suficiente para fazer face
…s necessidades, daí que fossem em excesso num dia
normal. Em alguns jornais, davam tarefas idiotas aos
jornalistas, só para mantê-los ocupados: punham-nos
a escrever histórias a partir de notas publicitárias dis-
tribuídas … imprensa e comunicados … imprensa das
autarquias locais, material que núnca sairia nos jor-
nais. Era desmoralizante, uma perda de tempo, e so-
mente os executivos mais inseguros dos jornais o exi-
giam.
Da sala do telex chegou um paquete com uma his-
tória da Press Association numa longa folha de papel.
Kevin tirou-lha e lançou-lhe uma vista de olhos.
Leu-a com uma sensação crescente de choque e jú-
bilo.
®Grupo económico liderado pela Hamilton Hol-
ngs ganhou hoje a licença de perfuração no último
campo petrolífero existente no mar do Norte, Shield.
Mr. Carl Wrightment, secretário de Estado para a
Energia, anunciou o nome do vencedor numa confe-
rência de imprensa ensombrada pelo adoecimento sú-
bito do seu ministro júnior, Mr. Tim Fitzpeterson.
� de esperar que a comunica … çao proporcione um
benefício …s acções em baixa do grupo impressor Ha-
milton, cujos resultados semestrais, ontem publicados,
foram muito inferiores ao esperado.
235

Calcula-se que Shield contenha uma reserva petrol


fera que poderá ascender … produção de meio milhão
de barris por semana.
Entre os sócios que compõem o grupo Hamilton
constam a Scan, o gigante da engenharia, e os Quími-
cos Orgânicos Ingleses.
Mr. Wrightment, depois de proceder … comunica-
çao acrescentou: "E com tristeza que sou obrigado a
informar-vos da doença súbita de Tim Fitzpeterson,
cujo trabalho na política petrolífera do Governo tem
sido inestimável."¯
Kevin leu a história três vezes, mal acreditando nas
suas implicações. Fitzpeterson, Cox, Laski, o assalto,
a crise bancária, a tomada de posse - tudo conduzin-
do, num círculo vasto e assustador, a Tim Fitzpeter-
son.
Não pode ser - exclamou em voz alta.
Que ‚ que tens aí? - perguntou Arthur por trás
dele. - Vale como notícia de última hora?
Kevin passou-lhe a história e desocupou a cadeira.
Penso - declarou lentamente - que essa histó-
ria fará o editor mudar de ideias.
Arthur sentou-se e leu. Kevin observou-o ansiosa-
mente. Queria que o homem mais velho reagisse; que
desse um pulo e gritasse: ®Reservem a primeira pági-
na¯, ou algo do gênero; Arthur, por‚m, continuou im-
passível.
A certa altura pousou a folha de papel em cima da
mesa. Fitou Kevin com frieza.
- E depois? - disse.
- Salta … vista, não ‚? - exclamou Kevin com en-
tusiasmo.
-Não. Diz-me tu.
Repara. Laski e Cox fazem chantagem com Fitz-
peterson para que este lhes diga quem ganhou a licen-
ça de Shield. Cox, provavelmente com a ajuda de
236
Laski, assalta a carrinha do dinheiro e obt‚m um ini-
lhão de dólares. Cox dá o dinheiro a Laski, que o uti-
liza para comprar a empresa que obteve a licença de
exploração petrolífera.
- Portanto, que queres tu que façamos relativa-
mente a isso?
- Por amor de Deus! Podíamos mandar umas bo-
cas, ou montar uma investigação, ou contar … polícia,
pelo menos contar … polícia! Somos os únicos a saber
de toda essa maquinação, não podemos permitir que
os malandros escapem a uma dessas!
Será que não sabes nada? - perguntou Arthur
com azedume.
- Que queres dizer?
Arthur falou com voz imensamente sombria.
- A Hamilton Holdings ‚ a empresa proprietária
do Evening Post. - Fez uma pausa, antes de olhar
Kevin nos olhos. - Felix Laski ‚ o teu novo patrão.

QUATRO DA TARDE

32
Sentaram-se … pequena
mesa redonda que ocupava
a sala de jantar diminuta,
em frente um do outro, e
ele disse:
Vendi a
empresa.
Ellen sorriu e observou
calmamente:
Derek, fico tão
contente.
Depois, contra a sua
vontade, sentiu lágrimas su-
birem-lhe aos olhos e, pela
primeira vez desde o nas-
cimento de Andrew, o seu
autocontrolo inabalável
fraquejou e cedeu. Reparou,
atrav‚s das lágrimas, no
choque visível na expressão
do marido ao aperceber-
-se do quanto a sua acção
significara para ela. Ellen
levantou-se e abriu um
armário, dizendo:
Acho que o acontecimento merece uma
celebra-
ção.

Recebi um milhão de libras por ela - esclareceu

Derek, sabendo que o facto não interessava … mulher.


-
E um bom preço?
- Por acaso at‚ ‚. Mas
o mais importante ‚ que
basta para que vivamos com
todo o conforto at‚ ao
fim dos prováveis dias de
vida que temos.
Ellen preparou um gin com água tónica para
si.
- Que queres beber?
- Uma Pertier, se
fazes favor. Decidi abster-me por
uns tempos.
239
J

Ellen entregou-lhe a água e sentou-se novamente


em frente dele.
- Que foi que te fez tomar essa decisão?
- Nada em particular. Derivou da conversa que ti-
ve contigo e com Nathaniel. - Tomou um gole da sua
água mineral. - Sobretudo da que tive contigo. Os
comentários que fizeste acerca do nosso estilo de vida.
Quando ‚ que tudo fica despachado?
Já está. Nunca mais voltarei ao escritório. -
Desviou o olhar de Ellen, espraiando-o pelo relvado
que se estendia no lado de fora da anela francesa.
Demiti-me ao meio-dia, e desde então nunca mais
voltei a sentir a úlcera. Não ‚ maravilhoso?
�. - Ellen seguiu o olhar do marido e viu o sol
a brilhar em tons de vermelho por entre as ramadas
da sua arvore preferida, o pinheiro escocês. - Já tra-
çaste alguns planos?
Pensei que poderíamos fazê-los juntos. - Sor-
riu-lhe directamente. - Mas levantar-me-ei tarde; e
tomarei três pequenas refeições por dia, sempre a ho-
ras certas; e verei televisão; e tentarei descobrir se
ainda me lembro de como se pinta.
Ellen anuiu. Sentia-se desconcertada; o sentimento
era comum a ambos. De repente, viam-se perante
uma nova relação entre os dois, de modo que se sen-
tiam indecisos, inseguros quanto ao que dizerem ou
como se comportarem. Para ele, a situação era sim-
ples: fizera o sacrifício por ela pedido, dando-lhe a
sua alma; e agora queria que ela reconhecesse o facto,
aceitasse a oferenda com algum gesto. Mas, para ela,
o gesto significaria afastar F‚lix da sua vida. ®Não
posso fazê-lo¯, pensou; e as palavras soaram-lhe den-
tro da cabeça como o eco das sílabas de uma mal-
dição.
Derek perguntou:
Que gostarias que fiz‚ssemos?
Dava a impressão de estar a par do dilema em que
240
a mulher se debatia e de querer forçá-la a uma deci-
são, fazê-la falar acerca dos dois como uma unidade.
Gostaria que levássemos muito tempo a decidir -
retorquiu Ellen.
- Boa ideia - disse Derek, pondo-se de pe.
Vou mudar de roupa.
Subo contigo.
Ellen pegou no seu copo e seguiu o marido. Este
pareceu surpreendido e, na verdade, tamb‚m ela se
sentia ligeiramente estupefacta: ia para trinta anos
que tinham perdido o hábito de se ver um ao outro
despidos.
Atravessaram o vestíbulo e subiram juntos a esca-
daria principal. Derek ofegou com o esforço, e disse:
Daqui a seis meses subo estas escadas a correr.
Encarava o futuro com tanto optimismo; ela com
tanto receio. Para ele, a vida estava a começar de no-
vo. Se ao menos tivesse tomado aquela iniciativa antes
de ela conhecer Felix!
Derek abriu a porta do quarto para Ellen passar, e
esta sentiu um baque no coração. Aquele gesto fora,
outrora, um ritual; um sinal entre ambos: um código
de amantes. Principiara quando eram jovens. Ellen
reparara que ele ficava quase embaraçantemente cor-
tês quando se sentia concupiscente, e comentara … laia
de brincadeira: ®Só me abres as portas quando queres
fazer amor.¯ A partir daí, claro, pensavam em sexo
sempre que ele lhe abria uma porta, tendo-se tornado
a sua maneira de lhe dizer que sentia vontade de tal.
Eram sinais cuja falta era sentida naqueles tempos:
presentemente, Ellen sentia-se bastante feliz por dizer
a Felix:
-Façamo-lo no chão.
Derek recordar-se-ia? Es@aria ele a dizer-lhe naque-
le momento que era aquela a confirmação que queria?
Já lá iam anos; e ele estava tão gordo. Seria possível?
Derek foi para a casa de banho e abriu as torneiras
241

da banheira. Ellen sentou-se em frente do seu touca-


dor e escovou o cabelo. Pelo espelho, viu-o sair da ca-
sa de banho e começar a despir-se. Ainda o fazia da
mesma maneira: primeiro, os sapatos, depois, as cal-
ças, finalmente o casaco. Dissera-lhe uma vez que era
assim que devia ser, porque as calças iam para o cabi-
de antes do casaco, e os sapatos não podiam estar nos
p‚s para que as calças saíssem. Ela respondera-lhe
que os homens ficavam com um ar muito esquisito só
de camisa, gravata e meias. Ambos tinham rido.
Derek tirou a gravata e desabotoou o colarinho
com um suspiro de alívio. Nunca gostara de colari-
nhos. Talvez não precisasse de voltar a usá-los abotoa-
dos.
Despiu a camisa, depois as meias, a seguir a c
1
ami-
sola interior e, finalmente, as cuecas. Depois reparou
que ela o mirava pelo espelho. No olhar que lhe retri-
buiu havia um certo desafio, como se dissesse: ®Este ‚
o aspecto que um velho tem, portanto, mais vale que
te habitues.¯ O olhar de Ellen cruzou-se com o dele
por um momento, antes de esta o desviar. Derek en-
trou na casa de banho e ela ouviu o rumorejar da
1
agua quando ele entrou na banheira.
Agora, que já não o tinha ali ao p‚, sentia-se mais
livre para pensar, como se anteriormente ele pudesse
ouvir-lhe os pensamentos. O dilema dela apresentara-
-se da maneira mais brutal: poderia ela, ou não, enca-
rar a ideia de ter relações sexuais com Derek? Há al-
guns meses atrás ela poderia - não, não ®poderia¯,
mas ®teria¯, e avidamente -, mas depois disso tocara
no corpo firme e musculoso de Felix, e redescobrira o
seu proprio corpo na pura sensualidade física da sua
relação. Obrigou-se a visualizar o corpo nu de Derek:
o pescoço entroncado, os peitorais gordos com tufos
de pêlos acinzentados nos mamilos, o ventre bojudo
com a sua seta de pêlos a alargar para a zona das viri-
lhas, e aí - bem, ao menos aí ele e Felix eram muito
parecidos.
242
Imaginou-se na cama com Derek e pensou na ma-
neira como ele lhe tocaria e a beijaria, e o que ela lhe
faria a ele - e de repente apercebeu-se de que podia
fazê-lo e retirar prazer do acto, por causa do signifi-
cado que tinha: os dedos de Felix podiam ser hábeis
e experientes, mas os de Derek pertenciam a mãos a
que ela se agarrava há anos; ela podia arranhar os
ombros de Felix no paroxismo da paixão, mas sabia
que podia apoiar-se nos de Derek; Felix era extrema-
mente bem-parecido, mas no rosto de Derek havia
anos de benevolência e conforto, de bondade e com-
preensão.
Talvez ela amasse Derek. E talvez fosse apenas de-
masiado velha para mudar.
Ouviu-o levantar-se na banheira e sentiu pânico.
Não tivera tempo suficiente; ainda não estava prepa-
rada para tomar uma decisão irrevogável. Não podia,
ali e agora, aceitar a perspectiva de nunca mais sentir
Felix dentro de si. Era demasiado cedo.
Tinha de falar com Derek. Havia que mudar de
assunto; alterar a atmosfera que se instalara entre am-
bos. Que poderia ela dizer? Ele saíra do banho; na-
quele momento esfregava-se com a toalha e dentro de
instantes@\e1staria ali.
Ellen perguntou em voz alta:
Quem foi que comprou a empresa?
A resposta dele foi inaudível; e, nesse momento, o
telefone tocou.
Ao atravessar o quarto, para atender, repetiu:
- Quem foi que comprou a empresa?
Ergueu o auscultador.
Derek gritou:
Um tipo chamado Felix Laski. Já to apresenta-
ram. Lembras-te?
Ellen ficou rígida, com o auscultador no ouvido,
sem falar. Eram demasiados elementos para interiori-
zar: as implicações, a ironia, a traição.
243

A voz que soava atrav‚s do telefone disse-lhe ao


ouvido:
Está? Está?
Era Felix.
Ellen sussurrou:
- Oh, Deus, não.
- Ellen? - perguntou Felix.
- Sim.
- Tenho muitas coisas para te dizer. Podemos en-
contrar-nos?
Ellen gaguejou:
- Não... não creio.
- Não sejas assim. - A voz profunda, shakespea-
riana, era como a música de um violoncelo. - Quero
que cases comigo.
- Meu Deus!
- Ellen, responde-me: casas comigo?
De súbito, Ellen soube o que queria e com a cons-
tatação principiou a tranquilidade. Respirou fundo.
- Não, de certeza absoluta que não o farei - de-
clarou.
Lenta e pensativamente, Ellen despiu-se por com-
pleto e colocou ordenadamente as roupas em cima de
uma cadeira.
Depois, enfiou-se na cama e deixou-se ficar deita-
da, … espera do marido.

33
Tony Cox era um homem feliz. Ligou o rádio, en-
quanto seguia lentamente para casa no seu Rolls, atra-
v‚s das ruas da zona leste de Londres. Pensava na facili-
dade com que tudo decorrera e esquecera e pusera já
para trás das costas o que acontecera a Willie o Mou-
244
�s tu?
co. Tamborilou com os dedos no volante, ao ritmo de
uma música pop de toada forte e ruidosa. Já estava
mais fresco. O sol ia baixo e viam-se fiadas de nuvens
brancas altas no c‚u azul. A medida que a hora de
ponta se aproximava, o trânsito tornava-se mais difí-
cil, mas Tony dispunha, naquele fim de tarde, de toda
a paciência do mundo.
Afinal de contas, tudo correra bem. Os rapazes ti-
nham recebido os seus quinhões, e Tony explicara como
o resto do dinheiro fora escondido num banco, e por-
quê. Prometera-lhes novo pagamento para daí a um
par de meses, o que os deixara satisfeitos.
Laski aceitara o dinheiro roubado com maior pron-
tidão do que Tony esperara. Talvez o gajo, esperta-
lhão, contasse arrebanhar algum dele: ele que experi-
mentasse. Os dois teriam de cozinhar um esquema
qualquer para ocultar a verdadeira natureza de quais-
quer levantamentos que Tony fizesse sobre os fundos.
Não devia ser difícil.
Nessa noite, nada poderia ser difícil. Perguntou a si
mesmo o que iria fazer nas próximas horas. Talvez
fosse at‚ um bar gay engatar um amigo para a noite.
Vestir-se-ia a rigor, poria algumas jóias elegantes e
enfiaria um maço de notas de dez no bolso. Encontra-
ria um jovem alguns anos mais novo do que ele e iria
cumulá-lo de benesses: uma refeição maravilhosa, um
espectáculo, champanhe - depois iriam para o apar-
tamento da Barbican. Daria umas palmadas ao rapaz
ó para o abrandar, e depois...
Seria uma noite esplêndida. Pela manhã, o rapaz ir-
-se-ia embora com os bolsos cheios de dinheiro, ma-
goado mas feliz. Tony adorava tornar as pessoas feli-
zes.
Obedecendo a um impulso, parou o carro em frente
de uma loja de esquina e entrou. Era uma agência de
notícias, decorada em estilo bem moderno e com as
paredes cobertas de prateleiras contendo revistas e li-
245
vros. Tony pediu que lhe dessem a maior caixa de
chocolates que houvesse no estabelecimento.
A jovem que estava ao balcão era gorda e tinha
manchas no rosto bochechudo. P“s-se na ponta dos
p‚s para chegar aos chocolates, fazendo com que a
bata de nylon lhe subisse quase at‚ ao traseiro. Tony
desviou o olhar.
Mas então quem ‚ a felizarda? - perguntou-lhe
a rapariga.
ia
A minha mãe.
Vá contar essa a outro.
Tony pagou e saiu rapidamente. Não havia nada
mais repulsivo do que uma mulher repulsiva.
Enquanto se afastava, pensou: ®Na verdade o meu
milhão de dólares devia permitir-me algo mais do que
passar simplesmente uma noite na cidade.¯ Mas não
havia mais nada que desejasse. Podia comprar uma
casa em Espanha, mas naquele país fazia demasiado
calor. Possuía carros suficientes; os cruzeiros mundiais
aborreciam-no; não queria nenhuma mansão no cam-
po; não coleccionava nada. Encarava a questão da se-
guinte maneira: tornara-se milionário de um dia para
o outro e a única veleidade que lhe viera … cabeça fo-
ra a compra de uma caixa de chocolates de três libras.
Dinheiro era segurança, pensou. Se assasse
um
p
mau bocado - mesmo que, Deus o livrasse, fosse
dentro por algum tempo -, podia olhar pela rapazia-
da mais ou menos em termos permanentes. Dirigir a
firma podia, por vezes, revelar-se dispendioso. Ao to-
do, eram uns vinte gajos, todos eles a pedirem-lhe
umas librazitas todas as sextas-feiras, quer fizessem ai-
gum serviço ou não. Suspirou. Sim, a partir daquela
altura as suas responsabilidades pesariam menos. Só
isso fazia com que valesse a pena.
Estacionou em frente da casa da mãe O relógio do
painel mostrava que eram quatro e t nta e cinco da
tarde. A mãe devia estar quase a preparar o chá: tal-
246
ve z umas torradas com queijo, ou um prato de feijões
cozidos; depois um bocado de bolo de frutas ou Bat-
tenberg; e para terminar, peras enlatadas com leite
condensado. Ou quem sabe a mãe lhe preparara o seu
pit‚u preferido: bolos aquecidos com compota. De-
pois, mais para o fim da noite, comeria mais qualquer
coisa. Sempre tivera bom apetite.
Entrou em casa e fechou a porta da frente. O vestí-
bulo estava desarrumado. O aspirador ficara abando-
nado a meio das escadas, no meio do chão de ladri-
lhos via-se uma gabardina que se desprendera do
cabide, e pela porta da cozinha notava-se que reinava
grande desordem dentro desta. Era como se a mãe ti-
vesse sido chamada a outro lugar de repente: esperava
que não fossem más notícias.
Pegou na gabardina e pendurou-a no cabide. A ca-
dela tamb‚m não estava em casa; nao se ouvira ne-
nhum latido de boas-vindas.
Foi … cozinha e estacou imediatamente … entrada.
A confusão era tremenda. A princípio não foi capaz
de perceber do que se tratava. Depois, chegou-lhe o
cheiro de sangue.
Estava por toda a parte; paredes, chão, tecto; no
frigorífico, no fogão e no lava-loiças. O odor a mata-
douro encheu-lhe as narinas, provocando-lhe vómitos.
Mas de onde viria ele'? O que lhe dera origem? Olhou
ansiosamente em volta, procurando alguma pista, mas
não viu nada; apenas o sangue.
Atravessou a cozinha com duas passadas enormes e
peganhentas, e escancarou a porta das traseiras.
Foi então que compreendeu.
A sua cadela jazia, de barriga para o ar, no meio do
pequeno pátio de cimento. Ainda tinha a faca espeta-
da - a mesma faca que ele afiara demasiado naquela
nhã. Tony ajoelhou- e ao lado do corpo mutilado.
ma s
Este parecia ter encolhido, como um balão com uma
fuga.
247

Dos lábios de Tony saiu uma fiada de imprecações


blasfemas. Ficou a olhar para os golpes múltiplos e
para os pedaços de roupa agarrados aos dentes visí-
veis do animal, e sussurou:
- Deste boa luta, rapariga.
Foi at‚ ao portão do jardim e olhou para fora, co-
mo se o matador ainda lá udesse estar. Nada mais
p
viu do que uma massa cor-de-rosa de pastilha elástica
no chão, descuidadamente deitada fora por alguma
criança.
Obviamente, a mãe estivera fora quando aquilo
acontecera, o que fora uma sorte. Tony decidiu limpar
tudo antes de ela regressar.
Foi buscar uma pá ao telheiro. Entre o pátio e o
portão do jardim havia uma pequena faixa de terra
pouco f‚rtil que o velhote costumava cultivar intermi-
tentemente. Naquela altura estava coberta de mato.
Tony despiu o casaco, desenhou um pequeno quadra-
do no chão e começou a cavar.
Não precisou de muito tempo para fazer a sepultu-
ra. Era forte e tamb‚m estava cheio de raiva. Mane-
jou a pa vigorosamente e pensou no que faria ao ma-
tador se alguma vez o descobrisse. Seria outra coisa
que não deixaria para mãos alheias. O malandro fizera
aquilo por despeito e quando as pessoas faziam coisas
daquelas tinham de se gabar sobre o facto, ou antes
ou depois, caso contrário só provariam o seu ponto de
vista a si próprios, o que nunca bastava. Ele conhecia
o gênero. Algu‚m ouviria alguma coisa e contaria a
um dos rapazes na mira de uma recompensa.
Lembrou-se de que o Velho Bill poderia estar por
trás do assunto. Era improvável: não era o estilo.
Quem, então? Tinha muitos inimigos, mas nenhum
deles possuía simultaneamente o ódio e a coragem pa-
ra praticar uma acção daquelas. Quando Tony encon-
trava uma pessoa com tal genica, normalmente con-
tratava-a.
248
Embrulhou a cadela morta no casaco e depositou
suavemente o fardo no buraco. Voltou a tapá-lo e ali-
sou a superfície com uma das faces da pá. Não se di-
zíam orações pelos cães, pois não? Não.
Voltou para a cozinha. A confusão era horrível. Ele
nunca conseguiria limpar tudo sozinho. A mãe devia
estar a chegar a qualquer momento - era at‚ mesmo
um milagre que demorasse assim tanto. Precisava de
ajuda. Resolveu telefonar … cunhada.
Atravessou a cozinha, tentando não salpicar de san-
gue o que estava … volta. Parecia uma quantidade
enorme de sangue, mesmo para uma cadela boxer.
Foi … sala para se servir do telefone, e foi então que a
viu.
Devia ter tentado chegar ao aparelho. Entre a porta
e o corpo, que estava estendido a todo o comprimento
sobre a alcatifa, via-se um rasto fino de sangue. Fora
esfaqueado apenas uma vez, mas o golpe fora fatal.
A expressão de horror que se fixara no rosto de To-
ny alterou-se lentamente, … medida que as suas fei-
ções se contorciam, como uma almofada amachucado,
at‚ denotarem desespero. Ergueu os braços lentamen-
te e premiu as palmas das mãos contra as faces. A bo-
ca abriu-se-lhe.
Por fim, as palavras saíram e Tony rugiu como um
touro:
Mãe! - gritou. - Oh, mãe!
Caiu sobre os joelhos ao lado do corpo e chorou:
soluços violentos e devastadores, como os que soltaria
uma criança no mais completo desespero.
Lá fora, na rua, em frente da janela da sala de es-
tar, começara a juntar-se uma multidão, no entanto,
ninguem se atrevia a entrar.

34
O clube de t‚nis da City era um estabelecimento
que nada tinha a ver com o t‚nis e tudo a ver com as
bebidas da tarde. Kevin Hart sentia-se muitas vezes
confundido com a inverosimilhança do nome daquela
casa. Situado numa área com início na Fleet Street,
comprimido entre uma igreja e um bloco de escritó-
rios, mal dispunha de espaço para que se jogasse pin-
gue-pongue, quanto mais t‚nis a s‚rio. Se o pretendi-
do era uma desculpa para servir bebidas depois de os
bares fecharem, pensou Kevin, certamente poderiam
ter encontrado algo mais credível como, por exemplo,
filatelia ou modelos de comboios. Naquele caso, o as-
pecto mais próximo que conseguiam exibir relativa-
mente ao t‚nis era uma máquina de moedas que apre-
sentava um campo de t‚nis miniatura num ecrã de
televisão: os jogadores eram movimentados por meio
de um botão.
Em contrapartida, possuía três bares e um restau-
rante, e era um lugar óptimo para conhecer gente do
Daily Mail ou do Mirror, que um dia, nunca se sabia,
poderia arranjar um lugar lá no jornal.
Kevin chegou ao local pouco faltava para as cinco
da tarde. Foi ao balcão buscar uma caneca de cerveja
e sentou-se a uma mesa a cavaquear ociosamente com
um repórter do Evening News que conhecia superfi-
cialmente. A sua mente, por‚m, encontrava-se algu-
res, que não ali: por dentro, ainda fervia. Pouco de-
pois, o repórter retirou-se e Kevin viu Arthur Cole
entrar e dirigir-se para o bar.
Para surpresa de Kevin, o subchefe da redacção le-
vou a bebida at‚ … sua mesa, … qual se sentou.
A laia de saudação, comentou:
Que dia.
Kevin aceno u afirmativamente com a cabeça. Na
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realidade, não desejava a companhia do outro: queria
estar só, a fim de destrinçar o que lhe ia no íntimo.
Arthur emborcou metade da sua cerveja e a seguir
pousou os óculos com um suspiro de satisfação.
Hoje ao almoço não bebi nenhuma - explicou.
Kevin, só para ser delicado, observou:
Tem estado a aguentar o forte sozinho.
� verdade. - Cole puxou de um maço de cigarros
Re-
e de.um isqueiro, que pousou em cima da mesa.
cusei-me a ceder a esta tentação durante todo o dia.
Não sei por quanto tempo mais conseguirei aguentar.
Kevin olhou sub-repticiamente para o seu relógio
sem saber se havia de se mudar para El Vino.
Arthur observou:
Provavelmente, está a pensar que cometeu um
erro em se m eter nesta profissão.
Kevin sobressaltou-se. Não julgara Cole capaz de
anta perspicácia.
- Estou.
- Talvez tenha razão.
� muito encorajador.
Cole suspirou.
Esse ‚ o seu problema, sabe. Está sempre a sair-
-se com essas observações irónicas.
- Se sou obrigado a lamber botas, então estou
mesmo na profissão errada.
Arthur pegou nos cigarros, depois mudou de ideias.
Hoje, aprendeu alguma coisa, não foi? Começou a
compreender como ‚ a realidade, e se algum proveito
lhe fez foi ajudá-lo a adquirir um pouco de humildade.
Kevin ficou furioso com o tom paternalista.
Espanta-me que depois do que hoje aconteceu não
haja ningu‚m que tenha uma sensação de fracasso!
Cole riu amargamente e Kevin apercebeu-se de que
tocara num ponto sensível; a sensação de fracasso de
Cole devia ser mais ou menos permanente.
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O homem mais velho disse:


Vocês pertencem a uma nova casta, e calculo que
precisamos de vós. O velho m‚todo, fazer com que to-
dos começassem de baixo e fossem subindo lentamente
… custa do próprio esforço, era mais eficaz na forma-
ção de repórteres do que de executivos. Deus sabe a
falta de c‚rebros que existe na direcção dos jornais.
Espero que não se deixe ir abaixo. Vai outra caneca?
Obrigado.
Arthur foi ao bar. Kevin sentia-se vagamente estu-
pidificado. Nunca recebera nada de Cole al‚m de cri-
ticas, no entanto, o homem pedia-lhe que continuasse
na imprensa e que integrasse a direcção. Tal não esta-
va nos seus planos, mas apenas porque nunca pensara
no assunto. Não era o que desejava: gostava, isso sim,
de descobrir coisas, escrever, trabalhar em prol da
verdade.
Não sabia bem o que fazer. Iria pensar na questão.
Quando Arthur voltou com as bebidas, Kevin per-
guntou:
-Se isto ‚ o que acontece quando arranjo uma
história importante, como ‚ que alguma vez chegarei
a algum lado?
Arthur voltou a soltar a gargalhada amarga de há
pouco.
Pensa que está só? Já se deu conta de que ainda
hoje eu era subchefe de redacção? Ao menos para si
haverá outra história.
Pegou no maço de cigarros e, dessa vez, acendeu
um.
Kevin viu-o inalar o fumo. ®Sim¯, pensou, ®para
mim haverá outra história.¯
Para Arthur ‚ que não.

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