Entre Dois Reinos - Suleika Jaouad
Entre Dois Reinos - Suleika Jaouad
Entre Dois Reinos - Suleika Jaouad
LUA DE PAPEL
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
Capa
Ficha Técnica
Nota da Autora
PRIMEIRA PARTE
1 A COMICHÃO
2 MÉTRO, BOULOT, DODO
3 CASCAS DE OVO
4 VIAJAR NO ESPAÇO E GANHAR VELOCIDADE
5 NA AMÉRICA
6 BIFURCAÇÃO
7 CONSEQUÊNCIA
8 MERCADORIA COM DEFEITO
9 RAPARIGA NA BOLHA
10 TEMPO EXTRA
11 PRESA
12 A MELANCOLIA DO ENSAIO CLÍNICO
13 O PROJETO DOS CEM DIAS
14 TANGO PARA TRANSPLANTE
15 NAS EXTREMIDADES OPOSTAS DE UM TELESCÓPIO
16 A ESTALAGEM DA ESPERANÇA
17 CRONOLOGIA DA LIBERDADE
18 O RAFEIRO
19 SONHAR EM AGUARELAS
20 UMA TROPA FANDANGA
21 AMPULHETA
22 OS LIMITES DE NÓS
23 A ÚLTIMA NOITE BOA
24 ESTÁ FEITO
SEGUNDA PARTE
25 O LUGAR INTERMÉDIO
26 RITUAIS DE PASSAGEM
27 REENTRADA
28 PARA AQUELES QUE FICAM PARA TRÁS
29 A LONGA INCURSÃO
30 ESCRITO NA PELE
31 O VALOR DA DOR
32 SALSA E OS SOBREVIVALISTAS
33 “FAZER COMO O BROOKE”
34 IR PARA CASA
Epílogo
Agradecimentos
SULEIKA JAOUAD
ENTRE DOIS REINOS
Para escrever este livro, baseei-me nos meus diários, em registos médicos
e em entrevistas que realizei com muitas das pessoas que aparecem na
história, bem como na minha própria memória. Também incluí excertos de
cartas, alguns dos quais foram ligeiramente editados, para os tornar mais
concisos.
Para manter o anonimato de algumas pessoas, modifiquei pormenores
que as identificavam e alterei os nomes que se seguem, e que indico por
ordem alfabética: Dennis, Estelle, Jake, Joanie, Karen, Sean e Will.
PRIMEIRA
PARTE
1
A COMICHÃO
Nos meses que se seguiram, senti-me como que perdida no meio do mar,
quase a afundar-me, desesperadamente à procura de qualquer coisa capaz
de manter-me à tona. Durante um tempo, consegui. Acabei o curso e
juntei-me aos meus colegas num êxodo em massa para Nova Iorque.
Encontrei na Craiglist um anúncio de um quarto vago num grande loft em
Canal Street, por cima de uma loja de artigos artísticos. Estávamos no
verão de 2010 e uma vaga de calor tinha sugado o oxigénio da cidade
inteira. Quando saía do metro, o pivete do lixo a apodrecer atingia-me
como uma bofetada na cara. Os suburbanos e as hordas de turistas em
busca de malas de estilistas a preços de arrasar acotovelavam-se nos
passeios. O apartamento era num terceiro andar sem elevador e quando
consegui arrastar a mala até à porta da frente, o meu top branco já estava
transparente por causa da transpiração. Apresentei-me aos meus novos
colegas de quarto. Eram nove. Andavam todos na casa dos vinte anos e
eram aspirantes a qualquer coisa: três atores, dois modelos, um chef, um
designer de joias, um aluno em pós-graduação e um analista financeiro.
Oitocentos dólares por mês pagavam, para cada um de nós, uma fração
sem janelas, separada das outras por uma divisória finíssima que um
especulador imobiliário erguera para retirar do seu investimento o máximo
possível.
Eu tinha conseguido um estágio de verão no Centro de Direitos
Constitucionais e quando apareci, no primeiro dia, senti-me diminuta ao
partilhar a sala com alguns dos mais temerários advogados de direitos
civis do país. O trabalho transmitia a sensação de ser importante, mas o
estágio não era pago e viver em Nova Iorque era como andar com um
buraco enorme na carteira. Depressa estoirei os dois mil dólares que tinha
poupado ao longo do ano escolar. Estava a conseguir sobreviver com
dificuldade, mesmo com os trabalhos de babysitting e os turnos da noite
em restaurantes.
Enchia-me de terror imaginar o futuro, em que estava tudo em aberto,
mas vazio. Nos momentos em que me permitia sonhar acordada, isso
também me enchia de entusiasmo. As possibilidades – quem me podia
tornar e onde podia chegar – pareciam-me infinitas, como uma fita a
desenrolar-se até onde os meus olhos não conseguiam alcançar. Pensei
numa carreira como correspondente internacional na África do Norte, de
onde é o meu pai e onde vivi em criança por um breve período. Também
me passou pela cabeça a ideia de fazer direito, o que parecia ser um
caminho mais prudente. Para ser sincera, precisava de dinheiro. Eu só
tinha conseguido frequentar uma faculdade da Ivy League porque tinha
ganho uma bolsa que pagou todas as despesas. Mas aqui, no mundo real,
não tinha o mesmo género de redes de segurança de muitos dos meus
colegas – fundos de educação, ligações familiares ou empregos em Wall
Street com rendimentos acima dos cem mil dólares anuais.
Era mais fácil pensar na incerteza que estava por diante do que enfrentar
outra mudança que seria ainda mais perturbante. No último semestre, para
combater o cansaço, tinha emborcado bebidas energéticas cheias de
cafeína. Quando deixaram de funcionar, um rapaz com quem andei pouco
tempo deu-me umas anfetaminas para sobreviver aos exames finais. Mas
depressa isso também deixou de resultar. No meu círculo de amigos, a
cocaína corria nas festas e aparecia sempre alguém a oferecer de graça
uma linha. Quando comecei a aceitar, ninguém disse nada. Os meus
companheiros de quarto em Canal Street também eram tipos que
gostavam de festas à séria. Comecei a tomar psicostimulantes da mesma
maneira que há pessoas que bebem cafés duplos – como um meio para
atingir um fim, uma maneira de superar a minha exaustão crescente. No
meu diário, escrevi: Ficar à tona.
*
A minha vida em Paris não era a fantasia que eu tinha imaginado, mas
comecei a engendrar uma versão diferente. A minha correspondência com
o Will começou de maneira inesperada: os SMS a dizer “olá-então-como-
vais?” transformaram-se em trocas de emails longos e cheios de humor, a
que se seguiram envelopes gordos cheios de cartas escritas à mão e de
recortes da New Yorker com anotações inteligentes. O Will enviou-me um
postal de uma cabana nas Montanhas Brancas de New Hampshire, onde
fora passar um fim de semana com amigos. Escreveu: “Eletricidade zero,
um fogão a lenha do início do século XX e nada de sons, exceto os
mochos, a lenha a crepitar e o vento. Fez-me querer andar pelas estradas
secundárias dos EUA. Queres fazer uma road trip?” A ideia de nós os
dois, em viagem pelos Estados Unidos, pôs o meu coração a dançar.
No fim das cartas, despedíamo-nos sempre da mesma maneira: “Não é
preciso responder com uma quantidade igual de palavras.” Mas, com a
passagem das semanas e dos meses, as nossas trocas de cartas tornaram-se
mais profundas e mais frequentes. Eu lia cada carta dele uma vez, e mais
uma, e depois outra, como se fossem mapas em código contendo pistas e
dicas secretas sobre a pessoa que empunhava a caneta. Contei ao Will
sobre o meu caminho um tanto transviado desde que tinha acabado o
curso e sobre a minha vida nova no estrangeiro: “Passei as minhas
primeiras trinta e seis horas em Paris em solidão total, com o meu portátil
e o telemóvel desligados. Caminhei por toda a cidade, até que um salto de
um sapato se partiu e tive de apanhar um táxi para casa.” Apesar de todas
as minhas tentativas para levar uma vida mais ascética, tinha encontrado
um novo grupo de amigos – Lahora, uma yogi viúva; Zack, um antigo
colega de faculdade que tinha aulas de mímica; Badr, um jovem homem
de negócios marroquino que adorava sair para ir dançar; e David, um
expatriado, mais velho, que se vestia como se fosse um playboy
internacional e organizava festas extravagantes. “Não se consegue impor a
solidão a uma alma que precisa de voar”, respondeu-me o Will. Com uma
resposta destas, era possível não ficar encantada?
Contei ao Will o meu sonho de me tornar jornalista e mostrei-lhe um
ensaio sobre o conflito israelo-árabe em que andava a trabalhar há meses.
Que coincidência, respondeu-me; ele também tinha ambições
jornalísticas. Tinha começado há pouco tempo como assistente de
investigação de um professor, mas estava à espera de encontrar uma vaga
como editor. Enviou-me várias indicações pertinentes sobre aspetos a
rever no meu trabalho. Apesar do tempo que tínhamos passado juntos na
minha última semana em Nova Iorque, estes pequenos momentos de
ligação foram para mim uma surpresa, porque foi apenas pelas cartas que
começámos realmente a conhecer-nos. Esta nossa correspondência
antiquada era uma alternativa mais honesta e mais segura aos jogos do
gato e do rato da sedução. Em pouco tempo, tinha-me afeiçoado de tal
maneira ao meu amigo das cartas que ele era a única coisa em que
pensava, com que sonhava e falava. Esperava que, para lá das linhas
escritas, pudesse ser uma pessoa tão maravilhosa como a que eu imaginara
a partir das palavras.
*
CASCAS DE OVO
Desde os dezassete anos que não estava solteira por mais de um mês ou
dois. Não era coisa de que me orgulhasse e nem sequer pensava que fosse
saudável, mas era assim que as coisas tinham acontecido. Na
universidade, estive a maior parte do tempo numa relação séria com um
rapaz de origem britânica e chinesa, um brilhante finalista de literatura
comparada. Foi o meu primeiro namorado a sério e levou-me a jantar fora
a sítios elegantes na cidade e de férias à praia de Waikiki, mas à medida
que os semestres foram passando eu fui ficando inquieta, a desejar ter tido
mais experiência antes de o conhecer. No verão antes do último ano, essa
relação acabou quando tive uma paixão intensa por um jovem cineasta
etíope. Depois disso, foi um tipo de Boston que encontrei no Cairo quando
estava a fazer investigação, numa pausa escolar de inverno. Ele tinha a
tendência para pregar partidas de grande dimensão, e para ativismo – e
acabara de ser preso depois de desfraldar uma bandeira palestiniana com
nove metros na face de uma das pirâmides. Uma semana depois, enquanto
bebíamos whisky de fabrico caseiro num bar com vista para o Mar
Vermelho, ele ligou aos pais.
– Falem com a rapariga com quem vou casar – anunciou, passando-me o
telefone antes que eu pudesse protestar. Acabei com ele não muito tempo
depois disso. Já perto do fim do curso, comecei a andar com o mexicano-
texano aspirante a argumentista. Namorámos durante dois meses
desastrosos em Nova Iorque, enquanto eu fazia trabalho de estágio e ele
servia à mesa num hotel da moda na baixa. Quando bebia tornava-se uma
pessoa má – e na maior parte do tempo estava embriagado.
Não havia nestas relações nada de casual. Quando as vivia, estava
completamente envolvida nelas, consumida pela ideia de uma vida em
conjunto. Mas, mesmo nos períodos mais intensos, tinha a consciência de
que à distância, a brilhar levemente, havia um sinal a dizer “saída” – e a
verdade é que eu estava sempre à beira de desatar a correr para ele. Estava
apaixonada pela ideia de estar apaixonada. Outra maneira de contar isto é
dizer que eu era jovem: demasiado impulsiva e destemida com as emoções
dos outros, muito centrada em mim e focada no que me esperava a seguir
para aceitar viver de promessas quebradas.
Com o Will, era diferente. Ele não era como nenhum dos homens com
quem eu tinha estado. Possuía uma estranha combinação de caraterísticas
– parte atleta, parte intelectual, parte palhaço da turma – e era tão capaz de
fazer um grande afundanço a jogar basquete como de recitar versos de
poemas de W. B. Yeats. A sua consideração pelos outros tocava-me, a
maneira como procurava sempre que todos os presentes numa sala se
sentissem à vontade. Cinco anos mais velho do que eu, tinha uma
sabedoria tranquila e da qual não fazia alarde e um espírito divertido que o
fazia parecer ao mesmo tempo bastante mais velho e mais novo do que a
idade que realmente tinha. No momento em que o Will voltou a aparecer à
porta do meu apartamento em Paris, agora com um enorme saco de lona
no qual tinha enfiado tudo o que tinha, o tal aviso de saída desapareceu
completamente do cenário. Eu estava completamente dentro daquela
relação.
*
Duas semanas mais tarde, o Will fez vinte e sete anos. Para celebrar a
mudança dele e o aniversário, tirei umas folgas e surpreendi-o com um
envelope com dois bilhetes de comboio para Amsterdão. Estávamos em
janeiro de 2011 e quando saímos da estação a nossa respiração fazia rolos
de vapor no ar frio da manhã. Queríamos explorar a cidade a pé. Havia
vários pontos no itinerário: uma visita à casa de Anne Frank, uma paragem
no mercado para provar arenque em picle e uma viagem de barco pelos
canais. Mas não fomos muito longe. Mais ou menos de quarteirão em
quarteirão eu tinha de parar. Uma tosse profunda sacudia-me o corpo,
deixava-me tonta e de cabeça à roda, com as têmporas a latejar como se
fossem diapasões.
Sentia-me tão arrasada que acabámos por passar a maior parte do fim de
semana no nosso hotel manhoso de duas estrelas no Red Light District. Os
lençóis da cama estavam marcados de queimaduras de cigarro, havia uma
janela sombria que dava para um canal e os estalidos de um radiador meio
avariado ecoavam pelos corredores sinistros. Mas estar apaixonado tem
uma coisa: podemos estar em qualquer lado e sentimos sempre que
estamos a viver uma aventura. Na verdade, quando chegámos, virei-me
para ele e disse, entusiasmada: “É o meu hotel favorito de sempre!”
Embora não estivesse a sentir-me bem, tinha decidido que esta nossa
primeira viagem em conjunto teria de ser memorável. Foi por isso que, na
tarde do dia de anos do Will, estava numa coffee shop numa cave, a
comprar uma lata de cogumelos psicadélicos a um miúdo branco
desengonçado com rastas.
– Vá lá, não sejas careta – disse ao Will, que nunca tinha experimentado
e parecia apreensivo.
– Pronto, está bem – acabou por aceitar. – Se os maias tinham razão,
este vai ser o último ano da humanidade. Vamos fazer isto como deve ser.
Andámos uns quarteirões e entrámos num restaurante etíope para jantar
e, quando o empregado não estava a ver, pus uma mão cheia de cogumelos
no guisado de lentilhas picantes.
– Sabes que és louca, não sabes? – Riu-se enquanto abanava a cabeça
para mim e comia as lentilhas com um bocado de injera.
Havia um nevoeiro baixo a pairar sobre a cidade quando regressámos ao
hotel depois do jantar. Caminhando muito devagar pelas ruas molhadas e
sobre pontes geladas, evitámos ciclistas que faziam soar as campainhas
quando passavam por nós. No Red Light District havia silhuetas a brilhar
por trás de janelas com cortinas. Um semáforo ficou cor-de-laranja,
vermelho, verde – e depois explodiu num arco-íris. De onde estávamos,
conseguia ver o nosso hotel, com o nome em letras de néon a piscar como
brasas. Apressámos o passo, procurando chegar ao quarto antes que a
droga batesse com a força toda. Quando entrámos, os poros da minha pele
tinham-se transformado em pequenas tochas que lançavam chamas.
Arranquei a roupa toda e estendi-me na colcha, tentando arrefecer.
Entretanto, o Will começou a construir um forte, com lençóis e almofadas,
erguendo uma tenda sobre a cama.
– Vem para aqui, é muito gezellig – disse-lhe, dando palmadinhas no
espaço ao meu lado. Gezellig, a intraduzível palavra holandesa, que quer
dizer mais ou menos “aconchegante”, tinha-se tornado a nossa nova
palavra favorita. O Will deslizou para debaixo do amontoado de lençóis e
deitou-se ao meu lado.
– Caramba, estás a arder – disse, pondo a palma da mão na minha testa.
Nesse momento, pensei que isso só queria dizer que a droga estava a
bater – e a bater bem. Mas nas horas que se seguiram a febre foi
aumentando, até parecer que o meu corpo ia entrar em combustão.
Comecei a tremer. Rios de transpiração acumulavam-se em poças nas
covas das clavículas e lembro-me de, pela primeira vez na vida, me ter
sentido frágil.
– É como se fosse feita de cascas de ovos – repeti vezes sem conta. –
Não vamos sair daqui, está bem?
O Will, cada vez mais preocupado, sugeriu que fôssemos às urgências.
– Deixa-me cuidar de ti – disse.
– Non merci, eu sou rija – respondi-lhe, mostrando-lhe os bíceps.
– Podemos apanhar um táxi para lá e num instante estamos de volta,
nem vais dar por isso.
Recusei, abanando a cabeça, até ele desistir. Não queria ser um daqueles
turistas idiotas que vão a Amsterdão, tomam uns cogumelos e acabam no
hospital.
Na tarde seguinte, apanhámos o comboio de volta para Paris. A febre e
as alucinações tinham passado, mas a sensação de fragilidade permanecia.
A cada dia que passava, sentia-me mais fraca, menos vibrante. Era como
se alguém andasse a apagar o meu núcleo vital com uma borracha.
A silhueta do meu velho eu ainda era percetível, mas as minhas entranhas
estavam em mutação – para se transformarem num palimpsesto
fantasmagórico.
4
Nos dois meses seguintes, tentei cumprir essa resolução: aperfeiçoei o CV,
enviei candidaturas e pedi conselhos a antigos professores e orientadores.
Mas, principalmente, dei comigo outra vez na sombria sala de espera da
clínica, onde regressei uma meia dúzia de vezes para ser tratada a várias
constipações, acessos de bronquite e infeções urinárias. Encaminhavam-
me sempre para um médico diferente. Tinha de repetir o historial clínico e,
a cada visita, a lista de males recentes ia aumentando. Andava a tomar o
suplemento de ferro que me fora receitado, mas sentia-me cada vez mais
débil, em vez de revitalizada. O facto de ser atendida por vários médicos
pôs-me a pensar: quem é tomava nota de todos os pormenores – quem é
que, afinal, tomava conta de mim, se é que havia alguém?
Uma tarde, quando fazia mais uma análise ao sangue “de rotina”, senti
os olhos encherem-se de lágrimas.
– O que se passa? – perguntou-me a analista.
Eu já não sabia bem o que se passava.
O problema de estarmos cansadas todo o dia, todos os dias, ao longo de
muitos meses, é que não reparamos que estamos a adoecer. Quando me
indicaram um médico no Hospital Americano de Paris, já estava tão fraca
que era um esforço enorme subir e descer a escada para chegar à minha
cama. Numa sexta-feira à tarde invulgarmente quente do fim de março saí
de casa para a consulta. O que devia ter sido uma viagem de métro de
meia hora demorou horas e acabei num bairro de Paris que não
reconhecia. Vagueei, aos círculos, à procura do hospital, até perceber que
tinha saído na paragem errada. Enquanto esperava por um autocarro que
me levaria a Neuilly-sur-Seine, o subúrbio ocidental de Paris onde fica o
hospital, senti-me atordoada. À minha volta, brilhavam ao sol grandes
casas e automóveis de luxo. Havia pássaros a flutuar entre as folhas de
uma tília, em forma de coração. Uma mãe levava pela mão duas crianças
louras pelo lado da rua que estava na sombra. A minha cabeça começou a
andar à volta. Comecei a ver pontos de luz e, de repente, as casas, os
automóveis e a mãe tornaram-se manchas douradas sobre um fundo negro
como breu. Num instante estava de pé, no instante seguinte estava caída
de lado, com a cabeça tombada no passeio.
– Ça va, mademoiselle? – perguntou-me, quando voltei a mim, uma
senhora de idade, com os lábios finos franzidos numa expressão
preocupada.
– Non – respondi-lhe, e comecei a chorar. Não conseguia contactar o
Will, que estava com a Mila na aula semanal de natação, e os meus pais
estavam a seis mil quilómetros de distância. Eu estava a viajar no espaço e
a ganhar velocidade, a girar cada vez mais para longe da Terra. Nunca me
tinha sentido tão só.
Já entardecia quando finalmente cheguei ao hospital. Um homem que se
apresentou como Dr. K viu-me rapidamente, numa marquesa, e decidiu
internar-me no hospital para realizar mais exames.
– Vous n’avez vraiment pas bonne mine – disse-me. (Tradução: Bem,
não estás nada com bom ar.) Um auxiliar levou-me escada acima, numa
cadeira de rodas, até uma sala branca com uma janela grande. O sol estava
a pôr-se e vi nuvens escuras cor-de-púrpura correrem pelo horizonte,
ameaçando chuva. A última vez que passara a noite num hospital foi
quando nasci.
*
Uns dias depois de ter tido alta, acordei com a boa notícia de que tinha
uma entrevista de emprego. Passara as últimas semanas a enviar
candidaturas para diversos jornais e revistas, com pouco êxito. Ao
contrário de outras carreiras, onde há caminhos bem definidos a seguir,
hierarquias empresariais a percorrer ou graus que é preciso alcançar, o
mundo do jornalismo era para mim tão intrigante como inacessível. Não
fazia ideia de como encontrar uma aberta para lá entrar. “Começa a
escrever e envia textos aos editores”, tinham-me dito, mas o meu emprego
não me deixava muito tempo para isso. E, mesmo que deixasse, eu não
conhecia editores e, ainda que conhecesse, não teria a confiança para me
expor. Então, em vez disso, tinha contactado o meu antigo professor de
jornalismo, que me sugeriu um contacto com o International Herald
Tribune, que tem sede em Paris, para saber se havia oportunidades de
acesso a lugares de princípio de carreira. Para surpresa minha,
responderam a dizer que tinham aberto uma posição para “stringer”, uma
espécie de colaborador básico para recolha de informação, com a função
de ajudar os jornalistas mais experientes a cobrirem a revolução que tinha
começado na Tunísia – e que ficou conhecida como Primavera Árabe.
Queriam que aparecesse imediatamente para uma entrevista.
No dia seguinte, enfiei-me num elegante vestido preto que tinha
comprado numa loja de descontos, domei os meus caracóis emaranhados
numa trança, apliquei uma camada extra de blush nas bochechas pálidas e
lá fui para a entrevista. Pela escada acima, a ofegar para chegar ao
escritório do Tribune, reparei que as tonturas familiares estavam a
regressar e que eu estava a ficar sem fôlego; mas, nesse dia, havia coisas
mais importantes em que me concentrar. O matraquear nos teclados enchia
o escritório, um espaço aberto com alguns gabinetes e secretárias com
grandes pilhas de livros, ecrãs de computador e canecas de café sujas.
Olhando em redor, para o grupo de repórteres experientes sentados à
secretária, não me permiti qualquer tipo de ilusões. Sabia que as minhas
hipóteses de conseguir o lugar eram muito reduzidas, mas, pela primeira
vez, estava a ver um caminho para uma profissão que me entusiasmava.
Percebi de repente que, sem querer, era para isto que me tinha estado a
preparar. Na escola, arranjava sempre maneira de preencher os meus
semestres com cursos de línguas – árabe, francês, espanhol, farsi – com a
ideia de que, um dia, isso tornaria mais fácil viver e trabalhar em lugares
distantes. Tinha passado todos os verões a estudar e a fazer investigação
no estrangeiro, o que me permitira viajar para toda a parte, de Adis Abeba
e das montanhas do Atlas, em Marrocos, até à Margem Ocidental. Quanto
à Tunísia, não era só um país que conhecia e de que gostava, era a pátria: o
meu pai era de lá e toda a família alargada ainda lá vivia; e era um país do
qual, orgulhosamente, tinha passaporte. Na entrevista falou-se disto tudo e
os editores com quem conversei pareceram encantados. Eu também. Saí
de lá a pensar que toda a minha vida adulta tinha trabalhado para aquele
instante – e depois ri-me. Afinal, estava a falar de quatro anos.
Nunca regressei ao escritório do Tribune. No espaço de uma semana,
estava de volta ao hospital. Desta vez, fui parar a uma maca, nas
urgências, com tantas dores que nem conseguia ver. O interior da minha
boca estava colonizado por feridas latejantes. A minha cor era cinzento
azulado, como carne morta. O Will apertou-me a mão quando a médica de
serviço disse: “Não quero assustá-la, mas passa-se claramente qualquer
coisa. A contagem de glóbulos vermelhos caiu significativamente.” Olhei
para ela, sem saber o que aquilo queria dizer. “Se cair ainda mais, não
poderá entrar num avião”, acrescentou. Pôs-me suavemente a mão no
braço e afirmou que tinha uma filha mais ou menos da minha idade e que,
se fosse minha mãe, havia de querer que eu embarcasse no próximo voo
para casa.
*
Arranjámos tudo para eu partir para Nova Iorque logo na manhã seguinte.
Também insisti em comprar um bilhete de regresso a Paris para duas
semanas depois. Precisava muito de acreditar que seria uma viagem de ida
e volta. O Will tinha-se oferecido para me acompanhar, mas na minha
cabeça isso não fazia sentido – ele tinha de tomar conta da Mila e eu
depressa estaria de volta. No aeroporto, quando nos despedimos, disse-lhe
para não se preocupar. A seguir, um homem mais velho numa farda azul-
marinho levou-me numa cadeira de rodas pelo aeroporto Charles de
Gaulle. Eu tinha as orelhas a arder enquanto ele atravessava os controlos
de segurança e passava à frente do enxame de famílias que esperavam
para embarcar e dos viajantes em negócios com as suas elegantes malas
em pele. Pensei que a médica das urgências tinha de certeza exagerado
quando insistiu que eu fosse de cadeira de rodas. Lembro-me de ter medo
que alguém gritasse a qualquer momento que eu era uma fraude. Mas as
pessoas que estavam na fila do embarque prioritário e olhavam para mim,
se reparassem sequer em mim, mostravam visivelmente pena.
O avião descolou. Enrolada em posição fetal, a ocupar dois lugares
vazios, tremia debaixo de um cobertor fino, incapaz de aquecer. Sempre
tinha adorado aviões, a sensação de pequenez que a altitude transmite, a
terra a ficar cada vez mais pequena até desaparecer debaixo das nuvens,
mas desta vez mantive a janela corrida. Estava demasiado cansada para
fazer fosse o que fosse – ver filmes ou comer os snacks que a hospedeira,
preocupada, continuava a oferecer-me. Mas, por muito cansada que
estivesse, as minhas bochechas, inchadas das feridas, tornavam difícil
conseguir adormecer. A médica das urgências tinha receitado codeína para
a viagem e engoli uns comprimidos, na esperança de conseguir aliviar um
pouco a dor. O meu corpo foi sacudido por ondas de náusea e o meu
espírito começou a perder e a recuperar a consciência.
Sonhei que o avião era uma penitenciária voadora suspensa sobre o
Atlântico e que eu estava a ser castigada por todas as bebidas, cigarros e
merdas más que tinha metido no corpo no último ano. Sonhei que estava
no encontro de antigos alunos da faculdade, cinco anos depois do fim do
curso, e que os meus amigos estavam de costas voltadas para mim, a rir e
a bebericar cocktails num relvado verde lima exuberante, com os edifícios
dos dormitórios visíveis ao longe, a brilhar sob um sol cor-de-laranja.
Chamei-os, mas, quando se voltaram, olharam como se eu não existisse.
Na lógica dos sonhos, isto fazia sentido. Talvez não me reconheçam,
pensei. Desde o fim do curso, tinha envelhecido – e mal. Sentada na
mesma cadeira de rodas do aeroporto, toda eu era ossos e um saco de pele,
só com umas farripas de cabelo prateado a caírem do crânio quase careca.
Tinha as pupilas brancas com cataratas e a boca era um buraco sem
dentes. Voltei a chamá-los. Sou eu, gritei, a Suleika. Mas desta vez
ninguém sequer se voltou.
Quando voltei a abrir os olhos, senti o embate das rodas do avião na
pista. Estava em casa.
5
NA AMÉRICA
Trato os meus pais pelos nomes próprios desde que aprendi a falar – uma
coisa que nenhum de nós achou estranha até sermos chamados à atenção
por um professor perplexo.
Anne, a minha mãe, uma mulher pequena com olhos azul gelo e a
compleição muscular de uma bailarina, vem de uma bucólica aldeia suíça
a cerca de uma hora de Genebra. Cresceu numa casa em pedra, cheia de
livros velhos, antiguidades e um gramofone que estava sempre a tocar
música clássica. As janelas da sala davam para uma praça dominada por
um castelo medieval e para um lago brilhante onde ela passava os fins de
semana a nadar e a fazer vela com os rapazes locais. Ela era um garçon
manqué, uma maria-rapaz, com o cabelo curto e o nariz sempre
mergulhado num romance. Luc, o pai dela, um físico e ativista ambiental,
era uma pessoa rigorosa, na fronteira com o militante, mas também à
frente do seu tempo. Recusava-se a ter carro por causa das emissões de
CO2 e proibia que se usasse plástico em casa. Tinha no sótão uma oficina
de carpinteiro, onde fazia à mão brinquedos para Anne e para os três
irmãos. A mãe, Mireille, era bibliotecária e não se interessava nada pelo
ativismo do marido. Adorava coisas belas, tinha uma coleção
impressionante de suéteres de caxemira e um jardim de rosas em expansão
e era conhecida pelas estupendas tartes de maçã que cozinhava. Mireille
dizia sempre que havia uma maneira certa e uma maneira errada de fazer
as coisas e dava aos filhos grandes lições de etiqueta. Na adolescência,
Anne viveu sujeita aos constrangimentos impostos pelas determinações
dos pais e pela atmosfera fechada da aldeia.
Depois de concluir o curso numa escola de Artes em Lausanne, a minha
mãe ganhou uma bolsa para ir estudar em Nova Iorque, onde ambicionava
tornar-se uma pintora famosa. Alugou um pequeno apartamento, daqueles
em que as divisões se sucedem umas às outras, numa linha reta, na East
Village, na esquina da 4th Street com a Avenida A. Nessa altura, em
meados dos anos 80, o bairro era uma sucessão de edifícios todos
grafitados e de lotes devolutos, cheios de entulho. As ruas pulsavam de
energia e havia por toda a parte escritores e músicos jovens que
irradiavam criatividade e ambição. Ela nunca tinha estado num lugar
assim.
*
BIFURCAÇÃO
CONSEQUÊNCIA
Seis anos mais tarde, nos dias que se seguiram ao meu diagnóstico, dei
comigo a fazer a mesma viagem de quatro horas até à cidade e a ficar na
casa dessa mesma amiga onde passava a noite quando era adolescente.
O compromisso, agora, era com a minha nova equipa médica. O médico
de Saratoga disse que a minha leucemia estava demasiado avançada para
ser tratada ali; era preciso transferir-me para um dos centros oncológicos
de Manhattan.
O pai de Caroline era um sobrevivente de cancro – por duas vezes – e
quando soube da minha doença telefonou logo aos meus pais para lhes dar
apoio. Encaminhou-nos para um dos mais reputados oncologistas da
cidade e insistiu generosamente que ficássemos no apartamento deles
enquanto fosse preciso. Eu depressa perceberia como tudo isto constituía
um privilégio extraordinário. Sem o seguro de saúde a que tive direito
através do empregador do meu pai, sem os pagamentos por incapacidade
vindos do meu emprego como estagiária, que ajudavam a custear as contas
médicas, já a crescer, e sem os amigos que nos ofereceram casa e
conhecimentos, a minha família teria enfrentado a ruína financeira – e eu
teria enfrentado uma morte certa.
*
RAPARIGA NA BOLHA
TEMPO EXTRA
PRESA
Viver com uma doença que me ameaçava a vida tornou-me uma cidadã de
segunda classe na terra do tempo. Os meus dias eram uma emergência
lenta, a minha vida decorria entre quatro paredes brancas, uma cama de
hospital e luzes fluorescentes, com o meu corpo perfurado por tubos e
com fios a ligarem-me a vários monitores e ao suporte dos sacos de
intravenosas. O mundo fora da minha janela parecia cada vez mais
distante, o meu campo de visão reduzia-se a um ponto muito pequeno.
O tempo era uma sala de espera – à espera dos médicos, à espera das
transfusões de sangue e do resultado dos exames, à espera de melhores
dias. Tentei concentrar-me na preciosidade do presente: nos momentos em
que estava suficientemente bem para andar pela unidade de oncologia com
os meus pais; no som da voz do Will quando me lia em voz alta, todas as
noites, antes de eu adormecer; nos fins de semana em que o meu irmão
vinha da faculdade para me ver; em nós todos juntos, naquele momento,
enquanto ainda era possível. Mas, por muito que tentasse, não conseguia
deixar de sentir uma culpa e uma dor incipiente quando os meus
pensamentos vogavam, inevitavelmente, para o que sucederia ao Will e à
minha família no caso de eu não sobreviver.
A infeção tinha causado um retrocesso de umas semanas, mas o ensaio
clínico estava pronto para ser iniciado assim que os meus médicos
considerassem que eu estava em condições. Nos Estados Unidos, eu era
um dos cento e trinta e cinco doentes participantes. Nos primeiros nove
dias de cada mês, receberia uma combinação de dois medicamentos
poderosos de quimioterapia, a azacitidina e o vorinostat, e a seguir teria
sensivelmente duas semanas para recuperar, antes de iniciar o ciclo
seguinte. O ensaio era ambulatório, o que queria dizer que, quando não
estivesse em Nova Iorque para consultas médicas ou no hospital por causa
de complicações, poderia ficar em casa, em Saratoga. Todo o processo
levaria seis meses – isto é, se tudo corresse como esperado.
À medida que as folhas do velho plátano nas traseiras de casa dos meus
pais passavam a um cor-de-laranja seco e queimado, um certo desconforto
começou a toldar os meus dias longos e herméticos com o Will. Ele fora o
meu companheiro constante desde o diagnóstico e era intenção dele
continuar assim ao longo do ensaio clínico. Eu, de uma forma egoísta,
adorava passar tanto tempo com ele. Mesmo confinada à cama, careca,
ocasionalmente incontinente, e a viver com os meus pais, o simples facto
de ter um namorado dava-me uma sensação de normalidade, de ainda ser
jovem, desejada, até bela. Mas uma parte de mim sabia que a situação era
insustentável. A terra dos doentes não é lugar para ninguém viver vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana. Eu nunca teria desejado isso
nem ao meu pior inimigo. E sabia que, se queria que a nossa relação
perdurasse, tinha de o incentivar a voltar a viver a sua vida.
– Vamos encontrar-te um emprego – disse-lhe suavemente uma tarde.
Tínhamos acabado o quinto jogo seguido de Scrabble.
Ele suspirou.
– Eu sei, eu sei. Também tenho andado a pensar nisso. Dava-me jeito
algum dinheiro, agora. Mas não quero que sintas que estás sozinha a lidar
com isto.
– Eu não vou melhorar, pelo menos não em breve – disse. Ele admitiu
que não podia continuar assim indefinidamente.
Will começou por procurar empregos próximos da casa dos meus pais,
mas não havia muita escolha, para além de servir em bares ou restaurantes
na baixa de Saratoga. Alargámos o raio de busca e quando vi uma vaga
para editor assistente numa grande organização noticiosa, em Manhattan,
fiz força para ele se candidatar. Ele hesitou. Saratoga ficava a três horas e
meia de carro – era demasiado longe para ir e vir todos os dias. Se ele
conseguisse o lugar, isso significaria estarmos separados durante a semana
de trabalho. Quando o Will levantou a questão da distância, em especial
quando o ensaio clínico se aproximava e a minha saúde estava tão débil,
minimizei essas preocupações. Eu queria que ele fosse feliz, mas uma
parte de mim também estava a viver indiretamente através dele. Era um
emprego que eu teria adorado ter, numa realidade alternativa em que o
meu corpo não estivesse a tentar destruir-me. Por isso, lancei mãos à
tarefa de o ajudar – a rever a carta de candidatura, a ensaiar a entrevista e
a encontrar-lhe um lugar para viver sem pagar, no apartamento de um
amigo, para o caso de conseguir o lugar. Quando o telefone tocou a
anunciar que o emprego era dele, abracei-o com toda a força que restava
nos meus frágeis ossos de pássaro.
– As coisas vão começar a melhor para nós – disse-lhe. E acreditava
nisso.
*
Com o Will ausente durante a semana, era tentador deixar-me tomar pela
autocomiseração, por isso, comecei à procura de qualquer coisa produtiva
para fazer com o tempo. Primeiro, decidi inscrever-me num curso de
escrita criativa em Skidmore, a faculdade que ficava ao pé de nossa casa,
onde o meu pai era professor no departamento de francês e o meu irmão
estava a fazer o último ano. Mas só consegui fazer o primeiro dia de aulas.
Nessa altura, o ensaio clínico já estava em marcha e, passadas duas
semanas, dei outra vez entrada no hospital, com outra neutropenia. As
feridas na boca multiplicaram-se e tornaram-se tão dolorosas que, quando
tive alta, os meus médicos me receitaram pensos de fentanil, um opioide
cem vezes mais potente do que a morfina.
Passava os dias na cama, reclinada em almofadas. Até o cancro me ter
atacado, sempre me orgulhara de ser uma pessoa ambiciosa. Os despojos
de triunfos passados que enchiam o meu quarto de infância – fitas, troféus,
prémios e diplomas – faziam agora troça de mim. Determinada a continuar
à procura de alguma coisa para fazer, decidi começar a estudar para o
GRE, o teste de admissão ao mestrado, com a ideia de que podia
candidatar-me a uma pós-graduação. Passei as semanas seguintes a
estudar álgebra, a fazer exercícios e à procura de cursos de Relações
Internacionais e Estudos do Médio Oriente. Antes de poder inscrever-me
no exame fui internada outra vez – agora por causa de uma infeção
provocada pelo cateter que tinha no peito, que foi removido por uma
cirurgia e substituído por outro –, mas assim que voltei para casa inscrevi-
me para fazer o GRE logo nessa semana, antes que outra complicação
qualquer pudesse deitar os meus planos por terra. Na manhã do exame, a
minha mãe fez-me um pequeno-almoço especial de “alimentos para
fortalecer o cérebro”: ovos mexidos com couve kale salteada à parte, aveia
com sementes de linhaça moídas e mirtilos. Mesmo sem apetite, fiz um
esforço para comer qualquer coisa. Quando ela me estava a levar ao centro
de exames, em Albany, adormeci no banco de trás, procurando conservar a
minha energia. Quando chegámos, um rececionista maldisposto disse-nos
que no exame eu não podia usar a touca tricotada que me tapava a cabeça
nua. A minha mãe explicou-lhe que eu estava a fazer quimioterapia, mas
ele não se comoveu: “Regras são regras.”
A tremer, debaixo do ar condicionado, com a cabeça careca a brilhar sob
as luzes vivas, eu estava decidida a acabar o maldito exame. Levei o
tempo todo: três horas e quarenta e cinco minutos. No fim, estava em
estado de delírio, com as pálpebras a fecharem-se de cansaço e os dentes a
baterem febrilmente. Mas acabei. Os resultados, que recebi umas semanas
depois, foram medíocres, mas eu estava determinada. No mês seguinte,
empreendi a tarefa de enviar várias candidaturas a pós-graduações em
todo o país: pedi cartas de recomendação a antigos professores, redigi os
ensaios que eram precisos para a admissão e preenchi as matrículas. Eu
estava à espera de me sentir triunfante quando finalmente carregasse no
botão para enviar cada candidatura, mas, no fundo, sabia que todos os
meus esforços tinham sido em vão. Mesmo que fosse admitida, não havia
hipótese de estar suficientemente bem para ir às aulas.
Depois disto, deixei de escrever no diário. Fui-me resignando à ideia de
que, de momento, tinha uma única preocupação central: continuar.
O ensaio clínico estava a refletir-se no meu corpo de uma maneira mais
dura do que alguém podia ter previsto. A toxicidade dos medicamentos era
tão intensa que no fim de cada ciclo era levada para as urgências e ficava
no hospital semanas a fio, a combater mais neutropenias febris e
complicações potencialmente fatais, que iam da colite à sepse. A minha
boca estava tão cheia de feridas que eu vivia numa dor perpétua, mesmo
com os pensos de fentanil e um cocktail extra de medicamentos. Comecei
a ter à mesa de cabeceira uma garrafa de morfina líquida e, sempre que a
dor me acordava a meio da noite, dava uns goles até voltar a adormecer.
Comecei a pensar se os efeitos secundários do ensaio clínico e dos
analgésicos que me receitavam não iriam matar-me antes da leucemia.
Pensei muitas vezes em desistir pura e simplesmente do ensaio. Creio que
o teria feito, não fossem as súplicas do Will e dos meus pais.
Numa das muitas hospitalizações desse outono, partilhei com os
médicos os meus planos para casar. Pensei que iam ficar entusiasmados
com a boa notícia, mas a reação deles foi mais de preocupação do que de
celebração. Passado muito pouco tempo, apareceu no quarto uma
assistente social, a pedir para falar comigo e com os meus pais.
– A meta é conseguir levá-la até ao transplante de medula óssea – disse-
nos. – Como estou certa que sabem, trata-se de um procedimento caro, um
transplante pode custar mais de um milhão de dólares. Felizmente, está
abrangida pelo seguro do seu pai, que vai cobrir a maior parte das
despesas, mas se casar pode pôr em risco a elegibilidade para continuar
abrangida pela apólice dele. Não pensamos que valha a pena o risco. Pelo
menos, não até estar fora de perigo.
Olhei fixamente para a assistente social. Era jovem, bonita, com cabelo
louro e comprido que lhe caía abaixo dos ombros. Num dedo magro,
imaculadamente tratado por uma manicura, usava um enorme anel de
noivado com um diamante. Eu sabia que ela era só o mensageiro, e
também sabia que ela tinha razão, mas não fui capaz de não a odiar.
O casamento foi adiado e juntou-se aos outros planos, objetivos e projetos
incontáveis que tinham sido atirados para o purgatório até um dia.
Ninguém voltou a falar dele.
Havia uma espécie de rutura a acontecer dentro de mim. De um lado, a
doente bem-disposta, jovem, corajosa e alegre, que lutava com todas as
ganas contra a doença, decidida a tirar o máximo partido das
circunstâncias terríveis em que se encontrava; e do outro, esta nova
versão, invejosa, irritável, que dormia dezasseis horas por dia e raramente
saía do quarto. Aos domingos à noite, quando o Will fazia a mala e se
preparava para ir embora de Saratoga para a semana de trabalho, eu queria
pôr uma cara alegre, de incentivo. Tentava. Mas foi-se tornando mais
difícil à medida que as semanas passavam e eu ficava mais doente. Era
injusto da minha parte ficar ressentida com ele por se ir embora – até
porque tinha sido eu a convencê-lo a aceitar o emprego –, mas crescia em
mim uma raiva como eu nunca tinha sentido, por agora contida, mas que
ameaçava consumir tudo à minha volta. O Will, a assistente social,
qualquer pessoa que fizesse parte do mundo – não eram o inimigo, a
doença é que era. Eu sabia isso, mas, a cada dia que passava, a cada sonho
adiado, era cada vez mais difícil fazer a distinção.
12
Quase um ano antes, pouco depois do diagnóstico, tinha ligado por Skype
ao Adam, o meu irmão, quando ele estava a estudar na Argentina. Tinha de
lhe contar que me fora diagnosticada uma leucemia e que – não te sintas
pressionado… – ele era a minha única hipótese de cura. Ele começou por
pensar que eu lhe estava a pregar uma partida mazinha e disse-me: “Isso
não tem piada.” Respondi-lhe: “Estou a falar a sério. Quem me dera estar
a brincar.” Eu e os meus pais tínhamo-lo mantido praticamente na
ignorância sobre o meu estado, sem querermos que ele se preocupasse e a
cara do Adam ficou lívida quando percebeu que era tudo menos uma
brincadeira. Sem hesitar, pediu uma licença para interromper o programa
de estudos no estrangeiro e, uns dias depois, já estava num avião para
Nova Iorque, para fazer os exames necessários.
Os resultados mostraram que o Adam era compatível – era, aliás, uma
compatibilidade perfeita, um dez na escala dos dadores – e celebrámos
isso, contentes por esta boa notícia. Na verdade, ficámos tão felizes que
até fomos capazes de descobrir algum humor nas circunstâncias. Não
passou muito tempo até o meu irmão me arranjar uma nova alcunha.
“Salut, Suleikemia”, era como ele me cumprimentava todas as manhãs.
Mas, depois, começou a impor-se a realidade do que estava para vir – ou
seja: de repente, toda a nossa família estava dependente do meu irmão.
O Adam insistia que estava feliz por poder ajudar, mas era uma pressão
enorme que ele tinha de suportar. Quando o ensaio clínico começou,
estava no último ano da faculdade. Enquanto os amigos se candidatavam a
empregos e saltitavam de festa em festa, nos últimos meses do ano
escolar, ele andava entre a universidade e Nova Iorque, para consultas
com a minha equipa de transplante. Além disso, os meus pais tinham
pavor que ele fizesse qualquer coisa que pusesse em risco a sua saúde e,
então, começaram a chateá-lo para não beber, nem fumar, nem sair até
muito tarde. Uma noite, ao jantar, a minha mãe disse qualquer coisa sobre
a quantidade de açúcar que ele ingeria e o Adam perdeu a cabeça. “O que
é isto?! Uma versão marada do Para a Minha Irmã4?!”, gritou, saindo da
sala. Nos meses seguintes, teve dificuldades em acompanhar os estudos e
adiou umas cadeiras. Começou a tomar medicamentos para a ansiedade e,
aos fins de semana, quando vinha a casa, eu ouvia-o às voltas no quarto,
que era ao lado do meu.
Tudo isto se ia acumulando à culpa, que tinha sido a minha companheira
secreta e permanente desde o diagnóstico. Sentia-me culpada pela
perturbação financeira que estava a causar à minha família. Pelas pilhas de
contas médicas e comparticipações. Pelo rendimento perdido. Quando eu
adoeci, a minha mãe deixou de se dedicar à pintura e passou a ser minha
cuidadora a tempo inteiro; o meu pai faltava a muitas aulas por causa das
minhas urgências médicas e até estava a pensar se no semestre seguinte
não devia parar mesmo. Eu sentia-me culpada sempre que tinha um golpe
de febre a meio da noite, porque sabia que um deles ia levar-me de carro
até Nova Iorque – eram três horas e meia a acelerar pela autoestrada para
chegar a tempo às urgências. Sentia-me culpada quando o meu pai
regressava com a cara inchada dos seus longos passeios à tarde pelos
bosques. Sentia-me culpada quando o Will recusou uma promoção no
emprego – ele nunca disse que era por minha causa, mas eu sabia que sim.
Ele já estava a abusar um bocado com o chefe, sempre a pedir-lhe para
trabalhar fora da redação para poder fazer-me companhia no hospital e era
visível o cansaço nos seus olhos, de todas as noites passadas numa cama
de campanha, com os apitos incessantes dos monitores a tornarem
impossível o descanso. Sentia-me culpada por causa do meu irmão, que
não falava muito sobre o que sentia, mas que uma noite confessou à minha
mãe que, como meu dador, se sentia responsável pelo resultado do meu
transplante de medula óssea. Eu sentia-me culpada pelo que a minha
doença tinha feito à minha família, pela dor e pelo stress que eu estava a
causar a todos, pela quantidade de “espaço” que o meu corpo, com os seus
problemas, ocupava. Era impossível não me sentir um fardo.
*
4 Filme realizado em 2009 por Nick Cassavetes, com Cameron Diaz e Abigail Breslin, sobre duas
irmãs, uma das quais com leucemia. (N. do T.)
6 Escritora
e professora norte-americana (n. 1945), galardoada em 1975 com um prémio Pulitzer
numa categoria de não-ficção. (N. do T.)
15
A parte mais difícil, como me tinha avisado a minha equipa médica, eram
os dias e as semanas por diante, enquanto esperava que as células do
Adam ganhassem raízes na minha medula. Regressei ao estatuto de
“isolamento”. As precauções na unidade de transplante eram muito mais
extremas do que qualquer coisa por que eu tivesse passado no Monte
Sinai. No quarto, um ventilador especial filtrava quaisquer impurezas no
ar. Toda a minha comida era bombardeada até à exaustão para eliminar
quaisquer potenciais germes. Quem quer que entrasse no quarto tinha de
lavar as mãos e de vestir um fato parecido com os dos que manipulam
materiais perigosos – luvas de plástico, bata cirúrgica, máscara facial e
proteções a cobrir os sapatos. Um beijo, um aperto de mão, frutas e
vegetais frescos, uma constipação banal ou um corte com papel – tudo
isso eram coisas que podiam matar-me até que o meu sistema imunitário
voltasse a funcionar. Até eram proibidas flores, mas como teria sido
presunçoso dizer isto a familiares e amigos, havia ramos de flores
acumulados à porta do meu quarto.
A meta era chegar ao Dia 100, ou “Dia do Exame”, o primeiro grande
marco para avaliar como é que o doente está a recuperar. Tentei manter a
noção do tempo, confinada à cama, onde passava deitada os dias e as
noites, num ângulo de quarenta e cinco graus, para impedir que os meus
pulmões se enchessem de fluido, mas as horas misturavam-se umas nas
outras. A máquina das intravenosas pairava sobre a minha cama como se
fosse um dossel, carregando a minha dose diária de fluidos,
imunossupressores, medicamentos anti náusea, três tipos diferentes de
antibióticos – além de morfina sempre a gotejar. No teto, o ventilador
lançava ar frio com um assobio, uma banda sonora constante e causadora
de ansiedade.
Passei assim quase duas semanas, sem um incidente digno de nota. Até
que, às primeiras horas do Dia 14, alguém começou a gritar, um gemido
tão profundo e constante que me acordou. O quarto estava às escuras.
Havia um alarme a soar. Eu tinha tubos enrolados à minha volta como se
fossem cobras. Tinha o peito pegajoso. Sentia que havia qualquer coisa a
sair de debaixo da clavícula e a escorrer-me pelos lados do corpo. No
instante seguinte, a porta do quarto abriu-se e apareceu por cima de mim a
cara de uma enfermeira. Ela apertou-me o ombro e foi só então que
percebi que o grito partia de mim. “Grande merda!”, exclamou a
enfermeira, olhando horrorizada para mim. Tinha tido um pesadelo:
dezenas de insetos percorriam-me o corpo e mordiam-me a pele. Em
pânico, atordoada pelos medicamentos, tinha arrancado o cateter do peito.
*
A ESTALAGEM DA ESPERANÇA
Quando saí do hospital para a York Avenue numa cadeira de rodas, ergui o
rosto para o sol e deixei-o aquecer a minha pele emaciada. Era uma tarde
de maio amena, mas eu estava enfiada num casacão de esqui, tinha um
chapéu de lã e, mesmo assim, os meus dentes batiam como de costume.
A cadeira de rodas ficou a empatar no passeio à frente da entrada principal
do hospital, enquanto a minha mãe e o Will chamavam um táxi. Os peões
desviavam-se, espetadores acidentais da nossa pequena coreografia. Antes
de entrar no táxi, os meus pés tocaram por um instante no passeio.
Tinha passado pouco mais de um mês desde o transplante. Os médicos
tinham-me dito que, embora o meu sistema imunitário ainda não existisse,
exames preliminares mostravam que as células do Adam estavam por fim
a fixar-se na minha medula óssea. Eu apresentava sinais de progresso: nos
últimos dias, tinha deixado de ser alimentada por um tubo e já conseguia
comer umas bolachas de água e sal. Além disso, já era capaz de dar uns
passos – devagar, mas quase sempre sem ajuda. A contagem de glóbulos
também estava a subir na direção certa. Seriam precisas mais umas
semanas antes de sabermos se o transplante tinha resultado – o Dia 100
ainda estava bem lá para a frente –, mas, por agora, estava focada numa
pequena vitória: ter alta.
Os médicos enviaram-me para a Hope Lodge7, uma espécie de
residência intermédia para doentes com cancro, bem na Midtown de
Manhattan, onde eu viveria nos três meses seguintes. Era um prédio de
cimento cinzento com sessenta quartos, a um quarteirão de Penn Station, e
com um supermercado Jack’s 99-Cent Store por perto. No futuro
previsível, teria de andar de máscara e de luvas onde quer que fosse. Nada
de metro, nada de lugares públicos, nada de germes, avisaram-me os
médicos. Fui do táxi até à entrada em cadeira de rodas, atravessando o
passeio cheio de peões. Puxei a máscara mais para junto da boca.
Eu estava grata por existir um lugar como a Hope Lodge e pela
generosidade dos estranhos que tinham angariado dinheiro para o abrir,
mas num mundo ideal não teria de todo de ali viver. Num mundo ideal,
teria um lugar só meu. Teria ido para o primeiro apartamento da minha
mãe, em East Village, que ela tinha mantido estes anos todos e até há
pouco tempo alugara a inquilinos de longa duração. Mas o meu sistema
imunitário ainda estava demasiado frágil para viver num apartamento de
rés-do-chão de um edifício de antes da guerra, com os contentores do lixo
por perto. Mais do que isso, a casa era demasiado pequena para poder lá
viver com a minha mãe e com o Will. Pouco depois do transplante, tinha
ficado bem claro que ser cuidador de um recém-transplantado era uma
tarefa que ocupava em permanência o dia inteiro – e que a minha mãe e o
Will tencionavam partilhar. Por isso, decidimos que eu ficaria na Hope
Lodge e que eles usariam o apartamento conforme precisassem, como
uma espécie de posto avançado dos cuidadores. Naquelas circunstâncias,
era o melhor plano que conseguíamos imaginar.
Só que esse plano caiu por terra logo que chegámos à Hope Lodge. Um
rececionista cumprimentou-nos e entregou-nos uma chave do quarto e um
dossiê de informações. O Will e a minha mãe começaram a seguir-me até
ao elevador, para subirem ao quarto, mas o rececionista veio logo atrás de
nós, informando que só era permitida a presença de um cuidador de cada
vez nos andares residenciais – e não havia exceções. Tentámos protestar,
observando que os protocolos assim rígidos não levavam em contra as
exigências e a imprevisibilidade da doença. Mas regras eram regras e
ficou bem claro que seria impossível concretizar a minha esperança de que
o Will e a minha mãe partilhassem os deveres de cuidadores de uma forma
fluida e em conjunto, como uma família. Não haveria espontaneidade,
nem espaço para os dois me apoiarem em conjunto ou para se apoiarem.
Eu teria de escolher constantemente entre um e o outro.
Estava dividida. Precisava do tipo de apoio que, na verdade, só se pode
pedir a um pai – mas também sentia que eu e o Will andávamos à deriva e
não queria estar afastada. Desde o primeiro dia do diagnóstico, o meu
grande medo, para além de morrer, fora perdê-lo e agora, que estava mais
doente do que nunca, o meu instinto era mantê-lo por perto. Sugeri então
que o Will vivesse comigo na Hope Lodge e que a minha mãe me visitasse
de dia, quando ele trabalhava. Na altura, pareceu um bom compromisso.
*
Menos de uma semana depois de ter ido para a Hope Lodge, convidaram-
me para uma entrevista sobre a minha coluna, no programa Talk of the
Nation, da NPR, a rádio nacional pública. Era um grande dia: a primeira
saída a sério desde que tivera alta. Quando terminei as infusões de
intravenosas, eu e a minha mãe apanhámos um táxi para a NPR, do outro
lado de Bryant Park. Nunca fora entrevistada antes e estava a rebentar de
excitação.
Eu ainda não conseguia perceber muito bem porquê, mas desde que a
coluna começara tinha recebido todos os tipos de pedidos de entrevista.
Havia leitores que me abordavam na sala de espera do hospital e alguns
até vinham ter comigo na rua, para me dizerem o quanto gostavam da
coluna e como estavam a torcer para que tudo me corresse bem. Era uma
atenção lisonjeira, um pouco esmagadora até e, às vezes, deixava-me um
tanto desconfortável. O cancro tinha-me transformado num símbolo, sem
eu dar conta disso.
O entusiasmo não era partilhado por todos. A coluna depressa se tornou
uma fonte de tensão com o Will. Ele preocupava-se com o preço que ela
cobrava à minha saúde e queixava-se que eu punha no trabalho toda a
pouca energia que tinha. Não estava errado. Era verdade que eu sentia a
minha ambição debater-se contra os limites do meu corpo. O meu cérebro,
inundado por toxinas de todos os medicamentos que tinham sido lançados
para o meu sistema, sentia-se desfeito. Eu, que em tempos fora capaz de
me lembrar com grande pormenor de grandes quantidades de informação
inútil, da cor da blusa da minha professora do terceiro ano no primeiro dia
de escola a passagens completas dos meus livros favoritos, debatia-me
agora para me recordar dos nomes dos meus amigos mais próximos ou até
do meu próprio número de telemóvel. Antes do transplante, a escrita fora
para mim um refúgio; agora, o mais frequente era acabar em frustração e
em lágrimas. Mas eu estava decidida a fazer o que pudesse enquanto fosse
capaz, ainda que isso significasse levar o meu corpo para lá dos limites do
que era prudente.
Na noite anterior à entrevista apareceu-me uma febre baixa e passei a
madrugada a tremer debaixo dos cobertores, com uma tosse feia a sacudir-
me os pulmões com poucos minutos de intervalo. O Will e a minha mãe
pediram-me que adiasse para outro dia, mas eu recusei. Não sabia quanto
tempo estas oportunidades me estariam abertas – ou se me sentiria
suficientemente bem para as voltar a fazer. Ia mesmo à entrevista e não
havia nada que ninguém pudesse dizer para me convencer a não ir.
Depois de me ter instalado na cabine de gravação do estúdio da NPR e
de ter feito o teste de som eu já estava exausta. As mãos tremiam-me ao
pegar num copo de plástico com água e a minha voz era um murmúrio
frágil e irregular. Procurei responder o melhor possível às perguntas do
apresentador e dos ouvintes que telefonaram, mas não consigo recordar-
me de uma palavra do que disse. Só me lembro é de carregar no botão do
quadro de controlo, apropriadamente assinalado TOSSE, para silenciar os
sons da minha agitação peitoral quando os meus pulmões procuravam ar
desesperadamente. Devo ter carregado naquele botão umas cinquenta
vezes.
No fim da entrevista, estava quase estendida na cadeira, desfeita pelo
esforço de ter tido de falar e de estar sentada direita. O apresentador tinha
uma última pergunta. “Só nos restam uns segundos”, disse. “Neste ponto,
tem presente a questão da morte?”
Fiquei devastada. A minha mortalidade era qualquer coisa em que,
evidentemente, tinha pensado muito tempo, mas era a primeira vez que
alguém me punha a questão diretamente. Ouvi-la assim, em voz alta, na
rádio nacional, fez com que eu sentisse a ameaça da morte mais presente e
iminente do que nunca. Fez-me perceber que o apresentador, os ouvintes,
as pessoas que liam a minha coluna, estavam todos provavelmente a
pensar na mesma coisa: ela vai viver ou vai morrer? A minha
sobrevivência tinha-se transformado, sem querer, numa narrativa de
suspense; havia estranhos a acompanhar a minha história com uma
curiosidade mórbida sobre o que trariam as semanas seguintes. A ideia
perturbou-me. Recompus-me, decidida a terminar a entrevista numa nota
forte, mas quando falei a minha voz tinha a espessura de papel. Nada
convincente, sussurrei: “Sinto muita esperança no futuro.”
Fosse o que fosse que naquele dia estava a crescer nos meus pulmões,
depressa dominou o meu sistema imunitário. Nesse fim de semana, no Dia
da Mãe, em vez de tomar o brunch e ver um filme com a minha mãe na
Hope Lodge, como tínhamos planeado, acabei dobrada numa maca nas
urgências, com ela ao lado. Tinha a tensão muito baixa e a pulsação
perigosamente alta. Apesar dos meus protestos, os médicos voltaram a
internar-me. “Chamei o azar sobre mim”, disse à minha mãe, lembrando-
me das últimas palavras na entrevista. “Devia ter dito que sentia uma
esperança cautelosa no futuro.”
*
Era a manhã do Dia 100. Eu estava sentada numa das cabines de plástico
azul na cozinha comunitária enquanto o Will preparava o pequeno-
almoço. Para lhe agradar, ia mexendo com uma colher os flocos de aveia,
fingindo que comia, mas os meus pensamentos estavam noutro lado.
Íamos sair para o hospital daí a minutos, para receber os resultados dos
vários testes e biópsias realizados na semana anterior. Na minha cabeça,
havia dois desfechos potenciais: os resultados mostravam que o
transplante tinha resultado e que eu acabaria por ficar bem ou, então,
indicavam que o transplante falhara e que a leucemia ia voltar – e agora
com a promessa de morte iminente. Não me ocorreu que podia haver uma
terceira possibilidade.
Enquanto o Will lavava os pratos, eu percorria ansiosamente os emails
por ler, enviados por leitores, procurando distrair-me. Houve uma
mensagem em especial que me chamou a atenção. O assunto dizia: “a
dificuldade de fazer a transição para o antigamente”. Em anexo, estava a
fotografia de um jovem sem camisa, num quarto de hospital. Tinha
ombros largos, musculados e a cara rosada parecia projetar um brilho
radioativo. A cabeça era, como a minha, lisa e careca, mas impressionou-
me a confiança que ele aparentava. Passei o telefone ao Will para lhe
mostrar a fotografia. Will assobiou.
– Caramba. Tem um ar bem melhor do que eu. Se eu não soubesse,
ainda dizia que tinhas arranjado um namorado com cancro para me
substituir.
O nome do rapaz era Ned. O email dele começava com uma história.
Em 2010, ele estava a meio do último ano de faculdade, na abençoada
ignorância do que o esperava quando concluísse o curso. Estava atarefado
a escrever a tese e tinha começado a namorar uma rapariga linda. Tinha-se
candidatado a uma bolsa Fulbright para Itália, onde esperava viver depois
de terminar o curso. Até que, quando estava em Boston, nas férias de
inverno, fez uma TAC que mostrou que tinha o baço inchado. Ao fim de
mais alguns testes, os médicos confirmaram: tinha leucemia. Não era a
primeira vez que o Ned adoecia. Três anos antes, tinha-lhe sido
diagnosticado um cancro nos testículos, mas ele referia-se a isso como se
não tivesse sido uma preocupação: “Cancro light. Bastou uma cirurgia.”
Eu conhecia bem esta história. Era a minha história. Era a história dos
outros incontáveis jovens doente de cancro que eu ouvira desde que
começara a coluna, histórias que me tinham trazido amparo, mostrando
que havia muitos de nós na mesma situação, uma comunidade invisível,
escondida dos olhares em quartos de hospital e acorrentada a suportes de
intravenosas.
Mas, depois, a história de Ned guinou numa direção inesperada. “O que
me inspirou a escrever foi uma coisa de que eu sei que falará muito em
breve – fazer a transição de volta ao mundo real, à ‘normalidade’”,
escreveu ele. “Tenho tido uma enorme dificuldade em voltar a montar no
cavalo.” Ao ler aquilo, percebi que aquela mensagem não era sobre cancro
na juventude. Era sobre o que acontecia quando o cancro se ia embora.
A noção de uma vida depois do cancro não era, ou pelo menos ainda não
era, uma coisa em que eu pudesse pensar. Ainda estava presa na Hope
Lodge; ainda precisava de uma cadeira de rodas para me mexer; ainda
estava demasiado doente para pensar noutra coisa que não fossem os
iminentes resultados da biópsia à medula – quanto mais numa vida pós-
cancro.
Uns minutos depois, o Will e eu descemos ao átrio. A minha mãe estava
à nossa espera e saímos os três, chamámos um táxi e seguimos. Tinha
trazido uns copos de plástico para o caso de enjoar na viagem, mas desta
vez o que me dava voltas ao estômago era o nervoso, não era a náusea. No
hospital, subimos em silêncio no elevador até à unidade de transplante de
medula óssea. Estávamos demasiado ansiosos para falar.
O rececionista chamou o meu nome e fomos levados para um quarto nas
traseiras. Sustive a respiração quando a minha equipa médica entrou: uma
enfermeira seguida pelo médico responsável pelo transplante, que era
forte, usava óculos e mantinha uma expressão perpetuamente rígida que
disfarçava uma maneira de ser simpática.
– A boa notícia é que a sua última biópsia não revela a presença de
células cancerosas na medula óssea – disse ele. – O transplante parece
estar a funcionar, para já, mas terão de passar muitos meses e muitos mais
dias de diagnóstico iguais a este antes de podermos ter a certeza.
– E as más notícias? – perguntei. Claro que estava à espera de que não
houvesse más notícias, mas nesta altura eu já sabia o suficiente sobre a
maneira como os médicos enquadram as conversas deste género para
suspeitar que não seria assim.
– Bom, as más notícias são que há um risco elevado de recaída. Por
causa das anormalidades cromossómicas na sua medula e de não nos
termos conseguido ver completamente livres da leucemia antes do
transplante, há uma forte probabilidade de a doença regressar. Eu gostava
que iniciasse imediatamente um regime experimental de quimioterapia de
manutenção, assim que estiver suficientemente forte.
Sentada na mesa de exame, abracei os joelhos e levei-os ao peito.
Estava mergulhada em desespero. Era o tipo de desespero que me fazia
sentir como se estivesse a afogar-me e tornava as vozes pequenas e
distantes, como que ouvidas debaixo de água. O meu cérebro saltou para
partes da carta do Ned que tinha lido nessa manhã. “O que poderá haver
de tão difícil na transição para a normalidade?”, pensei com amargura.
“Eu só quero é normalidade. Será uma sorte ver-me livre um dia destes
quartos de hospital.” O meu cancro era teimoso como um cão de guarda
rafeiro. Talvez estivesse contido por agora, mas era mau, rosnava e
ameaçava escavar por baixo do arame farpado e fugir. Eu ia ter de travar
uma luta tremenda para o manter para lá da vedação. Teria de passar por
mais tratamentos experimentais e, depois disso, por exames sem fim, ao
longo de meses e anos, avaliando os progressos no caminho para uma
cura. Haveria sempre mais uma ressonância à minha espera. Haveria
sempre uma próxima biópsia.
– Quanto tempo vou ter de fazer a químio de manutenção? – perguntei
ao médico, preparando-me para a resposta. – Muito tempo – disse-me,
suavemente. – Mais um ano, talvez mais.
Olhei para o Will. O rosto dele tinha assumido a expressão sumida e
desesperada dos homens encurralados. Não podia culpá-lo. E, no entanto,
olhando para trás, vejo agora que foi isso que fiz.
CRONOLOGIA DA LIBERDADE
Para pessoas como eu, o conceito de casa é um tanto indefinível. Eu, com
doze anos, já tinha andado em seis escolas em três continentes. Do sétimo
ano em diante, ficámos quase sempre quietos em Saratoga, mas nunca
cresci a sentir que fosse de lá – ou, já agora, de qualquer lado. Quando
ficava no mesmo lugar por mais de um ou dois anos, sentia-me inquieta,
com medo de ficar parada, como uma lapa agarrada ao casco de um navio.
É esta a maldição dos filhos de casais mistos, que crescem no espaço entre
culturas e países, credos e costumes: demasiado brancas, demasiado
morenas, com um nome demasiado exótico, demasiado ambiguamente
“outras” para pertencerem completamente a algum lado.
Desde o diagnóstico, a minha vida não tinha sido menos nómada. No
último ano, Will e eu, em conjunto, tínhamos passado um total de seis
meses a viver em quartos de hospital. Tínhamos vivido no meu quarto de
infância em Saratoga; em quartos para as visitas em casa de amigos; e,
mais recentemente, na Hope Lodge, onde as regras ditavam que podíamos
ficar um máximo de três meses. Mas, pelo final do verão, eu já estava
curada da minha tendência para andar a mudar. O que eu queria, mais do
que tudo, era uma casa.
No fim de agosto de 2012, o Will e eu mudámo-nos para o apartamento
que era da minha mãe na esquina da 4th Street com a Avenida A, em East
Village – o mesmo apartamento onde ela vivera, duas décadas antes,
quando imigrou para Nova Iorque. Desde que o Will e eu ganhássemos o
suficiente para cobrir as despesas de manutenção, os consumos e os
impostos, o apartamento seria nosso pelo tempo que quiséssemos.
Tinha mudado muita coisa desde a minha última visita ao edifício –mas,
ao mesmo tempo, também mudara muito pouco. Assim que cheguei,
alguém exclamou bem alto “La bébé!” e vi o Jorge, que à tarde trabalhava
como porteiro. O Jorge estava velhote, grisalho e ligeiramente curvado,
mas ainda se lembrava do dia em que os meus pais me tinham levado,
recém-nascida, do hospital. Todas as portas do prédio ainda estavam
pintadas na mesma cor de verde-mar e os corredores decorados com
lambris dourados e candeeiros art deco. O elevador avariava-se com
frequência e, de vez em quando, a água que saía das torneiras vinha
acastanhada. O apartamento tinha o tamanho de uma caixa de fósforos e
ficava no rés-do-chão, com janelas que davam para o depósito dos
contentores de lixo no pátio. Os pais do Will compraram-nos um
escorredor para a loiça e copos, os meus emprestaram-nos roupa de cama
e um velho tapete tunisino maravilhoso, e um amigo deu-nos uma
estrutura de cama. Também andámos por lojas de segunda mão à procura
de uma velha arca, como a que usávamos em Paris a fazer de mesa de
jantar. Uma casa, mesmo que pequena, com pouca luz ou mobilada ao
acaso, representava um novo tipo de liberdade – e nós sentíamo-nos
tremendamente afortunados.
Na nossa primeira noite no apartamento, o Will pôs a mesa na arca e
acendeu umas velas. A última refeição completa e a sério de que me
lembrava ter sido capaz de comer fora a do jantar de Páscoa, na unidade
de transplante. Até há pouco tempo eu ingeria os alimentos por tubos ou
então eram pedacinhos muito bem passados que eu conseguia comer e
manter no estômago na Hope Lodge. O meu peso nunca fora tão baixo e o
meu apetite era zero, mas estava decidida a desfrutar do nosso primeiro
jantar na nossa nova casa. Liberdade queria dizer ser capaz de comer meia
tigela de esparguete feito em casa – e, a seguir, lutar toda a noite para o
manter no estômago.
Liberdade significava também ter paciência com o Will nas semanas
seguintes, enquanto ele procurava estar à altura do pessoal médico do
hospital e da minha mãe, que, entretanto, regressara a Saratoga. Ele ficou
com o essencial das tarefas domésticas, cozinhar e limpar, e
acompanhava-me às urgências quando, com umas semanas de intervalo,
eu voltava a ter febre ou sofria uma nova complicação. Eu estava tão fraca
que até ir a pé à farmácia, que ficava a um quarteirão, era um desafio, por
isso, passava na cama a maior parte dos dias, sozinha, a dormir, tentando
escrever e atordoando-me com a televisão. Contava as horas até ao meio-
dia, quando o Will vinha a casa, de bicicleta, na pausa de almoço, para ver
como é que eu estava e preparar-me qualquer coisa para comer, antes de
regressar ao trabalho. E depois contava as horas até às sete, quando ele
voltava para casa. Como ainda não estava autorizada a ir a sítios com
muita gente, a comer comida de restaurante ou a apanhar transportes
públicos, à noite ficávamos sempre em casa. Tinha diminuído a distância a
que eu sentira que ele e eu estávamos nos tempos da Hope Lodge. Agora,
estávamos os dois entusiasmados com a perspetiva de começar de novo,
num lugar nosso. Liberdade significava podermos partilhar uma cama pela
primeira vez desde o transplante – e aprender a lidar com um corpo novo
que parecia ter-se esquecido de como falar a linguagem da intimidade
física.
*
O RAFEIRO
SONHAR EM AGUARELAS
Estar num hospital pode parecer-se imenso com viver numa cidade
grande. Há atividade a girar à nossa volta: os doentes andam pelos
corredores, os médicos fazem as visitas da manhã, as enfermeiras
conversam em grupinhos ao pé da máquina de café. E, no meio de tudo
isto, podemos sentir-nos profundamente isolados, alienados.
Já sem ninguém que me acompanhasse às consultas, as horas de tédio só
eram aliviadas pelas mensagens de leitores que continuavam a inundar o
meu email. A minha coluna já tinha sido vendida para revistas e jornais e
ganhava um número respeitável de seguidores. Eu não tinha forças para
escrever uma coluna nova todas as semanas, mas ia escrevendo todos os
dias, lentamente, nem que fosse só um parágrafo. Nunca pensara em levar
os encontros com leitores para além da ocasional conversa numa sala de
espera ou nos “olás” de quem se cruzava comigo na rua. Mas estava a
precisar de conversar com alguém com quem pudesse sentir uma ligação,
de um antídoto contra a solidão. Sentada na sala de espera, preparando-me
para começar o terceiro ciclo de químio de manutenção, li uma mensagem
no Facebook de uma rapariga chamada Melissa Carroll, que também
estava a ser tratada no Sloan Kettering. Respondi-lhe, perguntei-lhe se
queria encontrar-se comigo, e uns minutos depois ela disse-me que nesse
dia também estava no hospital e perguntou-me se eu queria estar com ela
um bocado.
Depois de terminar a químio na unidade de transplante de medula óssea
apanhei o elevador e subi para almoçar com a Melissa durante o
tratamento dela. Com trinta anos, ela era uma das doentes mais velhas na
unidade de cancro pediátrico. Tinha sarcoma de Ewing, um tipo
particularmente agressivo de cancro ósseo que, em geral, afeta crianças
pequenas e adolescentes. É por isso que tinha ido parar ao nono andar.
A enfermaria pediátrica era um mundo. As paredes estavam decoradas
com pinturas murais e recortes divertidos de animais. As luzes
fluorescentes, que no resto do hospital eram cruas e agressivas, aqui eram
mais quentes e lançavam um brilho acolhedor. Era a semana antes do
Halloween e todos os médicos e enfermeiras tinham posto disfarces. Até
as máscaras faciais eram a propósito – havia-as de todas as cores e
algumas tinham sorrisos e bigodes pintados. Em frente à secretária da
receção, havia um enorme parque retangular cheio de brinquedos, casas de
bonecas e animais em peluche. Uma miúda com não mais de cinco anos,
de pele translúcida e uma cicatriz fina que serpenteava pelo centro do
crânio, punha e tirava uma boneca numa caixa de madeira. Quando olhei
mais de perto, percebi que a caixa era uma máquina de TAC de brincar.
Ao pé da criança, uma enfermeira sentada no chão, de pernas cruzadas,
explicava-lhe calmamente como é que funcionava, numa espécie de
versão distorcida da pré-primária.
Nos últimos meses, a minha demanda tinha sido tornar-me adulta, como
se ser adulta fosse um exame para o qual podia estudar, dar as respostas
certas e passar. Tinha vinte e quatro anos. Tinha um cachorro para criar,
renda para pagar e colunas para escrever. Tinha um namorado com quem
ia casar quando acabasse os tratamentos e ia sozinha às sessões de químio.
Mas ao ver-me ali, entre paredes de cores alegres e frascos de chupa-
chupas, desejei muito estar na pediatria, onde a minha idade era mais
próxima da de muitos doentes, e não uns andares abaixo, na unidade de
transplante de medula óssea, juntamente com a brigada do reumático.
Contornei o parque e fui até ao fundo da enfermaria, onde a Melissa
estava num sofá de reclinar, em frente a uma fileira de janelas. A sua
peruca morena e comprida, que ela penteava em ondas suaves, fazia um
enorme contraste com a pele branco-pergaminho e com os lábios pintados
de cor-de-rosa. Mas eram os olhos – enormes, com pupilas como vidro
verde-marinho, rodeadas por grandes pestanas pretas – que tornavam
impossível esquecer o seu rosto. Um saco de intravenosas pairava sobre
ela, a pingar veneno para os braços tatuados. Quando me viu, bateu
palmas e sorriu. “Suleika!”, disse, com um ligeiríssimo ciciar. Não nos
abraçámos, respeitando as rigorosas regras de contacto zero entre doentes
com problemas imunológicos. “É fixe aqui, não é?”, disse. “Há imensa
luz.”
Ajeitei-me no sofá ao lado do dela e, quando chegou a hora de almoço,
pedimos sanduíches de manteiga de amendoim e gelatina cortadas em
forma de estrela – Melissa informou-me que eram o seu prato favorito no
menu das crianças. Comemos a olhar pelas janelas e fiz-lhe dezenas de
perguntas. Queria saber tudo sobre a minha nova misteriosa companheira
de hospital. A Melissa contou-me que tinha nascido na Irlanda, de onde
era o pai, um músico, mas crescera numa pequena localidade em New
Hampshire. Disse-me que aprendera a tocar bateria no início da
adolescência e que formara e tivera, por pouco tempo, uma banda de indie
rock a que chamara Mystic Spiral. Depois de acabar o curso numa escola
de artes, tinha-se mudado para Brooklyn, onde passara cinco anos a
trabalhar como assistente de Francesco Clemente, um pintor
contemporâneo famoso.
“O ano de 2010 foi bom para mim”, disse-me a Melissa, com nostalgia
nos olhos. Tinha um namorado, uma vida social trepidante e os quadros
dela começavam a ser exibidos em galerias. Até que, uma noite, saiu com
uma amiga para beber um copo, em Williamsburg. No escuro do bar, a
amiga pisou-lhe acidentalmente um pé com a perna metálica de um banco.
Inicialmente, a Melissa pensou que tinha tido uma distensão, mas semanas
depois a dor continuava e apareceu-lhe no peito do pé um alto redondo.
Ela, que nessa altura não tinha seguro, foi finalmente a uma clínica de
preços reduzidos, onde uma radiografia mostrou que o terceiro osso do
metatarso estava esmagado. Também mostrou que o alto no pé não era só
inchaço, mas uma massa anormal. Uma biópsia revelou que essa massa
era maligna e que o cancro já se espalhara para os nódulos linfáticos
pélvicos e para o joelho. “Claro que não se apanha cancro com um banco
de um bar”, observou a Melissa. “Se a minha amiga não me tivesse pisado
naquele local exato, talvez não tivesse descoberto o cancro. Bastante fora,
não é?”
Depois do diagnóstico, a Melissa não teve outra hipótese a não ser
regressar a New Hampshire para viver com os pais. Iniciou um regime
intensivo de químio e quando, o cabelo lhe começou a cair, fechou-se na
casa de banho e rapou a cabeça com uma máquina. A mãe levou-a depois
a uma loja em Boston para encontrar uma peruca que se parecesse com o
seu cabelo entrançado preto com nuances avelã. Nessa mesma noite,
colocou-a, meteu-se num comboio de volta para Nova Iorque e foi a uma
festa em Bushwick. “Mostrei a peruca aos meus amigos e saltei
imediatamente para a piscina do pátio”, disse-me com um trejeito
irreverente. A Melissa era assim: efervescente e com paixão por se
divertir, rápida a rir e sempre sorridente, até nas circunstâncias mais
sombrias. Na presença dela, as coisas alegravam-se e brilhavam.
Esta era a segunda vez que a Melissa estava em tratamento. Da primeira
vez, tinha passado por dezassete ciclos de químio e múltiplas cirurgias e,
no fim, os exames vieram limpos. Mas apenas um ano e meio depois do
diagnóstico, o cancro tinha regressado e ela decidiu transferir os seus
cuidados para o Sloan Kettering, onde havia mais opções de tratamento.
Quando soube da recaída, ficou devastada. Sentou-se no alpendre de casa
dos pais e abriu o bloco de esboços. Até aí, tinha trabalhado com tintas de
óleo em grandes telas, mas agora os vapores causavam-lhe enjoos e, por
isso, começou a fazer experiências com aguarelas, realizando a primeira
de uma série de pinturas aterradoras, intitulada Autorretrato com Máscara.
“Gosto da incerteza e dos acidentes felizes que nos acontecem com
aguarelas. Gosto de não ter o controlo absoluto, é como na vida”, disse-
me. “Se quiseres aparecer um dia, eu faço o teu retrato.”
Fiz que sim com gosto. A Melissa era o género de pessoa com quem eu
podia ter saído antes do diagnóstico e estava encantada por ter feito uma
nova amiga que também procurava formas de lidar com a doença de uma
maneira criativa. Estávamos as duas a forjar carreiras improváveis: a
Melissa pintava autorretratos na cama; eu escrevia autorretratos na cama.
Aguarelas e palavras eram os medicamentos que preferíamos para a nossa
dor. Aprendíamos que, às vezes, a única maneira de suportar o sofrimento
era transformá-lo em arte.
*
Nesse inverno, mais para a frente, uns meses depois de nos conhecermos,
a Melissa descobriu que o cancro alastrara aos pulmões. A resposta dela
foi comprar um bilhete de avião para a Índia. “Não é tanto uma lista de
coisas a fazer antes de morrer, é mais uma lista que-se-foda”, disse-me,
em casa dela, sentada à mesa da cozinha, a dar uma passa num charro.
Tinha encontrado na Internet uma organização sem fins lucrativos
chamada A Fresh Chapter, que oferece a sobreviventes de cancro viagens
ao estrangeiro e oportunidades de voluntariado, com o objetivo de os
ajudar a encontrar, depois do tratamento, um novo sentido e rumo.
– A Índia sempre foi o meu sonho, as cores, a cultura, dão-me vontade
de pintar – disse a Melissa. – O cancro levou-me tanta coisa que preciso
disto. Só quero voltar a sentir inspiração.
Os meus olhos abriram-se de preocupação quando a imaginei num país
em que, é sabido, até os viajantes saudáveis adoecem.
– E se tiveres uma neutropenia febril? E se precisares de ser internada
enquanto lá estiveres? – perguntei-lhe.
– Qual é o pior que pode acontecer? – respondeu. – Suleika, pela
primeira vez, sinto que vou morrer. Vou morrer desta merda desta doença.
Sentámo-nos muito quietas, com um silêncio pesado a tornar espesso o
ar à nossa volta.
Demasiado doente para me deslocar a algum lado para lá de um raio de
oitenta quilómetros do hospital, quanto mais para me juntar a ela na Índia,
foi na cama que me despedi da Melissa quando ela partiu, em março. E fui
viajando com ela pelas fotos e relatos que me enviava com poucos dias de
intervalo. Durante duas semanas gloriosas, a Melissa não foi uma mulher
doente com cancro – foi Melissa, a Artista, que dava aulas de pintura e
desenho numa escola primária em Deli, ao abrigo de um programa de
voluntariado. Parou no Templo de Lótus e fez uma oração sentida. Num
dos muitos mercados ao ar livre, encontrou marionetas maravilhosas
pintadas à mão e comprou tantas que precisou de outra mala para as trazer
para casa. O ponto alto da viagem foi uma visita ao Taj Mahal, que era
mais belo do que alguma coisa que ela já tivesse visto. Por um breve
momento, viajar à Índia tinha iludido o espetro da sua própria
mortalidade. Um dia, tinha no telefone uma mensagem dela a dizer:
“Nunca me senti tão viva.”
*
O sexo tinha sido sempre uma parte importante da minha relação com o
Will, mesmo depois de me ter sido diagnosticada a doença. Se isso fez
alguma coisa, foi intensificar a nossa paixão, enchendo-nos de um
estranho desejo faminto um pelo outro. Tínhamos estudado
cuidadosamente como podíamos foder num quarto de hospital sem sermos
apanhados, embora as nossas táticas nem sempre fossem cem por cento
infalíveis. (No Monte Sinai, fomos apanhados mais do que uma vez pelas
enfermeiras, que depois, antes de entrarem, passaram a bater alto e bom
som à porta do quarto e a perguntar “Estão todos vestidos?”) Mas, nos
últimos meses, as coisas tinham mudado.
A nossa primeira tentativa de intimidade depois do transplante
aconteceu numa noite, já tarde, em que ainda estávamos na Hope Lodge.
O Will tinha estado num encontro com antigos colegas e entrou na minha
cama aos beijos. Desde o transplante, eu tinha perdido quase todo o desejo
físico – comer, andar, tocar ou ser tocada. A minha pele estava áspera e
sensível e os esteroides que me davam para tratar a DEcH deixavam-me
inchada e irritável. Sentia-me sempre desconfortável e com náuseas – e
também com sentimentos de culpa por não estar disponível. Foi por isso
que não disse que não quando ele se pôs em cima de mim. Eu queria que
as coisas voltassem ao normal – mas não voltaram. O meu cérebro toldou-
se de dor. Senti como se o meu interior se abrisse, se fendesse e rasgasse.
Gritei várias vezes, mas o Will tomou esses gritos por manifestações de
prazer e eu não o corrigi. Queria fazer o papel de namorada; dar-lhe
aquilo, quando tinha tão pouco mais para dar. A seguir, fui à casa de banho
e tranquei a porta. Fiquei lá sentada muito tempo, o tempo suficiente para
o sangue que cobria o interior das minhas coxas secar.
Eu não conseguia compreender o que estava a acontecer ao meu corpo.
Não sabia porque é que a minha pele de repente parecia em chamas, a
escaldar como uma chaleira, ao ponto de ter de atirar para trás os
cobertores a meio da noite e pôr a cabeça debaixo da torneira da água fria.
Não sabia como controlar os meus humores, que mudavam e oscilavam,
me faziam gritar de frustração num minuto e me punham eufórica no
minuto seguinte. Não sabia porque é que de repente me ia abaixo e
começava a chorar quando estava na fila da mercearia ou sentada no
parque dos cães. Desde que o Will e eu nos tínhamos mudado para o
apartamento de East Village e voltado a partilhar uma cama, eu tinha-me
tornado uma especialista em evitá-lo – virava-lhe as costas à noite,
murmurava umas desculpas sobre estar muito cansada ou fingia estar a
dormir. Nas raras ocasiões em que houve intimidade, transformei-me no
género de mulher que fixa o olhar numa fenda no teto e abandona o seu
corpo, à espera de que tudo acabe depressa.
Durante o tratamento, ninguém da minha equipa médica tinha alguma
vez aflorado o tema do cancro e da saúde sexual. Ninguém me avisou de
que a menopausa é um efeito secundário comum do tratamento que eu
fizera. Ninguém me tinha aconselhado sobre os medicamentos disponíveis
para me ajudarem com os afrontamentos e com as dores. Tinha esperado
que o período regressasse depois do transplante; nunca reapareceu. Com
vinte e quatro anos, menopausa não era sequer uma palavra no meu
vocabulário. O que fiz foi manter-me calada sobre as mudanças no meu
corpo, acreditando que devia haver qualquer coisa errada comigo. Não
contei a ninguém o que estava a sentir – nem à equipa médica, nem ao
Will, nem à minha mãe. A ninguém – até àquele momento.
Na nossa última noite em Las Vegas, a minha garganta embargou-se
quando comecei a fazer confidências às minhas amigas. Falei-lhes da dor
que tinha sentido naquela noite na Hope Lodge e da frustração e confusão
que sentira a seguir. Para minha surpresa, a Melissa e a Kaylin fizeram
coro comigo, afirmando que também para elas o sexo se tinha tornado
doloroso e que se interrogavam sobre se não seria um efeito secundário
das radiações que tinham recebido na zona pélvica. A Kirsten disse que,
desde que terminara a químio, tinha tantas dores que simplesmente não era
capaz de fazer sexo. A Erika falou do evidente desconforto do seu
oncologista quando lhe fez perguntas sobre métodos de contraceção.
“Senti que estava a conversar com o meu tio”, disse-nos. Por isso, depois
da aventura com o chef foi à Internet à procura de saber se era seguro para
ela tomar a pílula do dia seguinte.
Nessa noite, fomos apenas um grupo de raparigas que tinham recebido
pouca ou nenhuma informação sobre os efeitos secundários da nossa
doença a nível sexual e que procuravam encontrar o sentido das coisas e
encaixá-las. A seguir, chorei, sucumbindo a uma estranha combinação de
emoções: desgosto pela nossa perda partilhada e um alívio profundo –
alegria até – por termos, em conjunto, quebrado o silêncio e ultrapassado a
vergonha.
AMPULHETA
Uma semana mais tarde, o Will fez-me sentar na sala e disse-me que ia
para a Califórnia. A ideia era fazer uma pausa – que desta vez seria maior,
para ele poder recarregar baterias e passar um tempo com os pais, que já
não via há meses. Trabalharia online, da casa deles em Santa Barbara.
Seria um mês, dois no máximo. Além disso, eu podia ir lá visitá-lo. Talvez
até pudéssemos fazer aquela viagem pela Califórnia com que eu tinha
andado a sonhar. “Os casais estão sempre a dar espaço um ao outro. Penso
que isto pode ser mesmo bom para nós”, disse-me.
Olhei para ele de boca aberta. A ideia parecia extremamente simples e
natural – e até seria, no universo alternativo em que nós fôssemos um
casal normal. Mas a nossa realidade não era essa. Nós éramos namorado e
namorada, mas também cuidador e doente. Eu recriminava-o por me
obrigar a dizer isto em voz alta – por me fazer enumerar todas as maneiras
como eu dependia dele.
Essa lista de coisas incluía as obras de renovação na cozinha do nosso
apartamento que estavam prestes a começar – obras que eu passaria a ter
de acompanhar sem a presença dele. A ajuda de que precisava quando
estava doente. Passear o cão, fazer as compras, cozinhar, ir aviar receitas à
farmácia, ir às urgências à noitinha e por aí fora. O nosso pequeno
apartamento ficava a três horas e meia de distância dos meus pais e, não
havendo um quarto livre para eles, não era possível instalarem-se
confortavelmente mais do que umas noites. Teria de mudar-me para o meu
quarto de infância em Saratoga enquanto o Will estivesse fora – o que não
tinha vontade nenhuma de fazer – ou então aguentar-me sozinha.
– Vais-te embora porque tenho de fazer mais químio? – perguntei-lhe.
– Claro que não – reagiu o Will. – Como é que podes dizer uma coisa
dessas? Eu tenho sacrificado tudo por ti.
Senti-me imediatamente culpada. Claro que ele tinha razão quanto aos
sacrifícios, mas, mesmo assim, eu queria saber.
– Então, porque te vais embora?
– Preciso de concentrar-me em mim mesmo. Não me sinto feliz e,
profissionalmente. não estou onde quero. Passo o dia inteiro a editar o
trabalho de outras pessoas, ajudo a tornar realidade o sonho delas, e
depois venho para casa e tomo conta de ti.
– Mas porque é que não podes concentrar-te em ti aqui? – perguntei-lhe.
– Eu posso ajudar.
– Entre os teus tratamentos ao cancro e a tua carreira, ocupas bastante
espaço nesta relação.
Havia verdade nas palavras do Will. No último ano, a popularidade da
coluna levara a que o meu perfil aparecesse em revistas e fora convidada
para ir à televisão e para falar em conferências. Num momento surreal, até
tinha ganho um Emmy na categoria Notícias e Documentário, por causa
dos vídeos que acompanhavam a coluna. Quando fui à cerimónia
cintilante, no Lincoln Center, senti-me ao mesmo tempo excitada e
deslocada, com as bochechas inchadas dos esteroides e o meu cabelo
muito curto. Sempre que me surgira uma oportunidade, eu aceitara,
querendo aproveitar o momento enquanto ele existia, enquanto podia. Mas
a força de vontade e a ambição puras só podem levar-nos até a um certo
ponto. Eu estava a sentir a carga de trabalho e todos os que estavam à
minha volta – a minha família e amigos, o Will, os meus médicos – se
preocupavam pelo custo que isso tinha para a minha saúde.
O Will tinha dado o seu apoio a partir do primeiro dia e eu aceitara-o
com gratidão – em retrospetiva, com demasiada ânsia. Ele tinha feito um
número incontável de diretas a ler e rever textos, ajudou-me a negociar
contratos e a preparar-me para entrevistas. A primeira vez que fui
convidada como oradora principal, numa reunião médica em Atlanta, ele
gastou dias de férias para me acompanhar, pois eu estava demasiado
doente para viajar sozinha. Empurrou a minha cadeira de rodas pelos
controlos do aeroporto, carregou com as nossas malas e cuidou de mim
depois de eu ter apanhado um vírus no avião. O dinheiro extra tinha-nos
permitido viver mais confortavelmente e eu dividia com ele o que
ganhava, insistindo que ele merecia ser compensado, já que não havia
maneira de eu fazer nada daquilo sem ele. Mas o que tinha começado por
ser um trabalho por amor tinha-se também transformado num grande
trabalhão. Nas últimas semanas, eu tentara fazer-me mais pequena,
pedindo menos, dizendo menos e incentivando-o a focar-se nos seus
próprios projetos criativos, mas isso não pareceu importar. Eu não
conseguia deixar de sentir que estava a consumir demasiado oxigénio na
sala. Mas, até agora, nunca ouvira o Will confirmar isso em voz alta.
– A tua infelicidade? Os teus desapontamentos profissionais? Sou eu
que tenho culpa disso? – perguntei-lhe. As minhas mãos estavam a
começar a tremer. Peguei no frasco de comprimidos de Xanax que estava
na bancada da cozinha e desfiz entre os molares um par dos comprimidos
azuis. Faziam efeito mais depressa se os mastigássemos em vez de os
engolirmos inteiros. Queria evitar outra explosão como a do globo de
vidro, mas era demasiado tarde. – Vai-te foder – atirei-lhe num sussurro
baixo. – Vai-te foder por me fazeres sentir um fardo maior do que eu já me
sinto.
Ser doente é entregar o controlo – à equipa médica e às suas decisões,
ao próprio corpo e aos seus colapsos sem aviso. Por tabela, os prestadores
de cuidados sofrem um destino semelhante. Mas há diferenças cruciais
entre os dois. Mais do que nunca, eu queria fugir: dos protocolos e dos
calendários de tratamento sempre a mudar, do cansaço e da humilhação de
ter de estar sempre a pedir ajuda. Mas, enquanto doente, estava condenada
a essa confusão toda, à minha maldita medula. Como cuidador, o Will
tinha estado comigo por amor e, talvez, também por um sentimento de
obrigação. Os refrões contínuos de “És um santo por ficar ao lado dela –
um homem bom, um companheiro modelo” não atenuaram de certeza a
pressão que ele deve ter sentido. Mas estar ali, passar por tudo comigo, era
uma escolha. A verdade é que ele podia ir-se embora. E foi isso que
acabou por fazer.
*
OS LIMITES DE NÓS
O agente da polícia deve ter pensado que éramos mais duas miúdas da
pesada com um péssimo comportamento. Estávamos vestidas com blusões
de cabedal negro a condizer. Eu tinha um corte de cabelo à escovinha, o
eyeliner muito grosso e uma grande tatuagem de uma cobra píton
sobressaía no pescoço. O cabelo da Melissa caía até à cintura, uma dúzia
de anéis prateados adornavam-lhe os dedos e as pupilas estavam dilatadas
pela erva que, por esses dias, ela fumava quase de hora a hora.
O que o agente não podia saber era que a tatuagem no meu pescoço era
falsa, que a Melissa estava com uma peruca e que tinha sabido
recentemente que o seu sarcoma de Ewing era terminal. No início dessa
semana, os médicos tinham-lhe dito que não havia mais nada que
pudessem fazer por ela. Para ganhar tempo, ela tinha começado à procura
de opções clínicas, mas o prognóstico era sombrio. Para a animar, propus-
lhe sairmos. Então, tínhamos ido a um festival de motos e tatuagens e, a
seguir, dançámos nas nossas cadeiras sob as luzes brilhantes de uma bola
disco num show burlesco de drag queens. E agora estávamos aqui – frente
a frente com um polícia numa plataforma do metro em Coney Island, já
com as primeiras sugestões da alvorada a intrometerem-se na noite.
Uns minutos antes, tínhamos saltado o torniquete, mesmo tendo cartões
do metro nas nossas carteiras. Quando se está perante a morte, a expressão
“só se vive uma vez” ganha um novo significado. Mas o polícia disse-nos
que tínhamos infringido a lei e ameaçou levar-nos à esquadra. Sem hesitar,
a Melissa arrancou a peruca e revelou a cabeça careca. Os olhos
encheram-se de lágrimas quando se lançou numa tirada impressionante
sobre a pressa que tinha de chegar a casa para tomar os medicamentos
para o cancro. A atuação funcionou e o polícia deixou-nos ir – mas com
uma multa de duzentos dólares a cada. Até pediu desculpa por ter de nos
multar, mas disse que não podia fazer nada, uma vez que tínhamos sido
filmadas pelas câmaras.
– Parceiras no crime – disse-me a Melissa em voz baixa enquanto o
polícia nos desejava felicidades e nos mandava seguir.
– Más até ao tutano. Literalmente doentes – respondi-lhe. Quando
entrámos no metro e as portas se fecharam atrás de nós, caímos à
gargalhada nos braços uma da outra.
Foi a última noite boa que passámos juntas, mas não o sabíamos.
Raramente se sabe.
*
A morte nunca chega em boa altura, mas termos uma sentença de morte
quando somos novos é uma violação do contrato com a ordem natural das
coisas. Ao fim de anos de estarmos doentes, a Melissa e eu tínhamos
aprendido a coexistir o melhor que podíamos com uma ameaça de morte.
A mortalidade era um fedor que não conseguíamos eliminar, por muito
que tentássemos. Falámos demoradamente sobre isso. Às vezes, até
brincávamos com isso. A Melissa dizia que queria que todos chorassem
imenso no funeral dela. Eu disse que gostava que o meu tivesse a seguir
uma festa louca. Até chegámos ao ponto de elaborar uma lista de
convidados e de indicar os cocktails a servir.
Mas nada podia preparar-me para a perder realmente. O número incrível
de vezes que tínhamos flirtado com a morte e conseguido recuperar tinha,
de uma forma estranha, feito com que nos sentíssemos invencíveis.
Mesmo depois de a Melissa ter partido de Nova Iorque; mesmo depois de
ter deixado de responder às minhas mensagens, com o espírito dela já a
viajar para o espaço aquoso entre os vivos e aquele outro lugar; mesmo
depois de os pais dela me terem escrito a dizer que, nas últimas horas, ela
esteve rodeada pela família e por dezenas de objetos, peças de bricabraque
e pelas marionetas pintadas à mão – mesmo assim, não conseguia aceitar.
Ainda não consigo.
A amiga com quem podia falar com a máxima sinceridade sobre tudo
tinha partido. Mas partido para onde?
E porquê?
A mágoa é um fantasma que nos visita sem aviso. Vem pela noite e
arranca-nos do sono. Enche-nos o coração de estilhaços de vidro.
Interrompe-nos a meio de uma gargalhada quando estamos numa festa e
castiga-nos por nos termos esquecido, ainda que tenha sido por um só
momento. Assombra-nos até se tornar uma parte de nós, persegue-nos a
cada golfada de ar que inspiramos.
24
ESTÁ FEITO
O dia em que tive alta foi o dia em que o Will saiu de casa. Quando
cheguei ao apartamento, a carregar um grande saco de plástico do hospital
a dizer “Pertences do doente”, estava tudo em silêncio, fazia impressão.
Devias chorar, disse a mim mesma, ainda à porta, mas estava demasiado
cansada para isso. Andei pelo apartamento, com o Oscar, confuso, a
seguir-me, inspecionando os armários e as gavetas vazias com um
estranho pormenor metódico. Numa das gavetas descobri um velho maço
de cigarros. Sabia muito bem que não o devia fazer, mas acendi um.
Sentei-me no chão da cozinha e fumei-o devagar, ainda com a pulseira do
hospital posta.
O andaime interior que me tinha suportado desde o diagnóstico
desmoronara-se. Enquanto andava em tratamento, tinha estado rodeada
pela melhor cavalaria do mundo: o meu namorado, a minha família e
amigos e uma brilhante equipa médica que trabalhara incansavelmente
para me manter viva. A meta tinha sido libertar-me do cancro. Mas, agora
que tinha despachado a parte da doença “cortar, envenenar, queimar”,
encontrava-me sentada sozinha no meio dos escombros, sem saber como
avançar, a pensar para onde é que tinham ido todos e o que fazer a partir
dali.
*
O LUGAR INTERMÉDIO
“Todo aquele que nasce possui dupla cidadania: no reino dos saudáveis e
no reino dos doentes”, escreveu Susan Sontag em A Doença Como
Metáfora. “Todos nós preferimos usar apenas o passaporte bom, mas,
mais cedo ou mais tarde, somos todos obrigados, pelo menos por um
instante, a identificar-nos com os cidadãos do outro lugar.”
Quando cheguei ao último dia de químio, tinha passado a maior parte da
minha idade adulta nesse outro reino: o reino dos doentes, onde ninguém
quer viver. A princípio, agarrei-me à esperança de que seria uma estada
curta, de que nem haveria necessidade de desfazer as malas. Resisti ao
rótulo de “doente cancerosa” e acreditei que podia continuar a ser a pessoa
que tinha sido. Mas, à medida que fui ficando mais doente, vi como o meu
velho eu ia desaparecendo. Em vez do meu nome, deram-me um número
de doente. Aprendi a falar com fluência “mediquês”. Até a minha
identidade molecular passou por uma fusão: quando as células da medula
óssea do meu irmão se enraizaram na minha medula, o meu ADN sofreu
uma mutação irreversível. Com a cabeça careca, a palidez e o meu porte, a
doença era a primeira coisa em que as pessoas reparavam em mim.
Quando os meses se transformaram em anos, adaptei-me o melhor que
pude aos costumes desta nova terra, fiz amizade com os seus habitantes,
até delineei uma carreira dentro dos seus confins. Tinha construído uma
casa no seu solo, aceitando não só que podia ter de ficar um tempo, mas
que, provavelmente, nunca de lá sairia. Era o mundo exterior, o reino dos
saudáveis, que se tinha tornado estranho e assustador.
Mas, para mim, como para todos os pacientes, a derradeira meta é, um
dia, deixar o reino dos doentes. Em muitas enfermarias oncológicas há
uma campainha que os doentes fazem soar no seu derradeiro dia de
tratamento, um instante cerimonial a marcar uma transição. É o momento
de dizer adeus à fluorescência arrepiante e imutável dos quartos de
hospital. É o tempo de regressar à luz do sol.
É aí que me encontro agora, no limiar entre um velho estado familiar e
um futuro desconhecido. O cancro já não vive no meu sangue, mas
permanece de outras maneiras, dominando a minha identidade, as minhas
relações, o meu trabalho e os meus pensamentos. Despachei a químio,
mas ainda tenho o meu cateter central, que os médicos esperam para
remover, até que eu me tenha “afastado mais da floresta”. Continuo a
perguntar como hei de repatriar-me para o reino dos saudáveis – e nem sei
se alguma vez o conseguirei completamente. Não há protocolos de
tratamento ou instruções de alta que possam orientar esta parte do meu
percurso. O caminho em frente terá de ser definido unicamente por mim.
*
Nesse inverno, numa manhã cedo, estou a passear o Oscar, com o olhar
desolado e zombie de alguém que divide o tempo entre a Terra e um outro
lugar qualquer, mais sombrio. Quando subo a Avenida A, vou de encontro
a um homem que reconheço vagamente do café do bairro onde muitos
freelancers se sentam a trabalhar – penso que é um romancista. Está
vestido com elegância, com um sobretudo de tweed com cotoveleiras de
cabedal e leva uma pasta. Eu estou de pijama e a fumar um cigarro avulso
que comprei na loja da esquina por 50 cêntimos.
– Acorda, princesa – diz-me ele, olhando-me de cima a baixo. – A morte
é o último recurso.
Sinto uma vergonha tão grande, ali, no meio da rua, sob o olhar fixo
dele e debaixo do brilho branco do sol de inverno. Passei a melhor metade
dos meus vinte anos a lutar para sobreviver, e acabei por me tornar uma
pessoa tão derrotada que até merece um comentário na rua de um estranho
preocupado. Enquanto estava em tratamento, tinha somente uma
convicção simples: Se sobreviver, tem de ser para alguma coisa. Não
quero apenas uma vida – quero uma vida boa, uma vida aventurosa, uma
vida com significado. Se não for assim, de que vale? E, no entanto, este
lugar onde cheguei é o oposto. Agora, que me foi permitida a
possibilidade de uma vida boa, não estou a vivê-la – pior, estou a esbanjá-
la. A culpa acumula-se com a vergonha: sei a sorte que tenho por estar
viva, quando tantos que eu amo não estão. Dos dez jovens camaradas de
cancro com quem fiz amizade no hospital, só cá estamos três.
Ao caminhar para casa, torna-se claro: não posso continuar assim.
Alguma coisa tem de mudar – ou talvez tudo.
26
RITUAIS DE PASSAGEM
Levar as cinzas da Melissa ao lugar de que ela mais gostava não diminuiu
a dor de a perder, mas mostrou-me uma maneira pela qual posso começar
a lidar com a minha mágoa. Revelou-me o papel do ritual no luto – as
cerimónias que nos permitem suportar sentimentos complicados e
enfrentar a perda; que abrem espaço para o ato, aparentemente paradoxal,
de reconhecer o passado como um caminho para o futuro. Leva-me a
pensar sobre as outras formas como marcamos a passagem de limiares,
sejam aniversários, casamentos, batizados, bar mitzvahs e quinceañeras.
Estes rituais de passagem permitem-nos migrar de uma fase das nossas
vidas para outra, impedem que nos percamos no caminho. Mostram-nos
uma maneira de honrar o espaço entre o que já não é e o que ainda não é.
Mas eu não tenho rituais predeterminados. Sou livre de os criar.
Com vários continentes pelo meio, sou capaz de ver a minha vida com
um olhar mais límpido. Há demasiado tempo que sou uma espécie de
abelha aprisionada numa janela, a bater com a testa no vidro, num
desespero crescente, numa tentativa fútil para escapar. As duas últimas
semanas deram-me um alívio temporário, mas receio que assim que voltar
a casa, em Nova Iorque, regresse ao mesmo estado de tristeza e
imobilidade. Sinto que preciso de fazer qualquer coisa de drástico para
garantir que isso não aconteça.
No longo voo de regresso a casa, imagino-me a fazer sozinha uma
peregrinação, mas sem saber qual a forma que ela poderá ter. Quero estar
em movimento – descobrir uma maneira de me tirar do pântano, de me
lançar pelos confins mais vastos do mundo. Não porque tenha uma ânsia
particular por explorar, mas precisamente porque me tornei receosa do
mundo e da minha capacidade para andar sozinha nele. Não quero esperar
nada. Não quero pedir nada. Não quero depender de ninguém. Quero
descobrir o que está do outro lado do lugar intermédio. Quero começar a
viver outra vez.
*
Ainda não possuo a visão, a força ou os recursos para me lançar numa
viagem épica e, por isso, começo a minha jornada com uma série de saídas
curtas, preliminares. Umas semanas depois de regressar a casa, apanho um
comboio para Vermont, onde a minha família tem uma pequena cabana em
madeira perto das Montanhas Green. Nunca me tinha sentido
suficientemente bem para aqui vir sozinha. Mas, agora, aprender a estar
sozinha parece-me ser um primeiro passo necessário para o que vier a
seguir, seja o que for. Preciso de confiar na minha capacidade para ser
independente. Preciso de me tornar a cuidadora de mim mesma. Demorei
algum tempo até ser capaz de dizer que tinha cancro. Depois, durante
muito tempo, fui isso e só isso – uma pessoa doente. Chegou o momento
de descobrir quem sou agora.
A cabana fica mesmo dentro do bosque, não tem rede de telemóvel e a
localidade mais próxima está a vinte e cinco quilómetros, por uma estrada
desolada, que atravessa campos de milho de um amarelo deslavado,
maciços densos de árvores e, de vez em quando, uma quinta. Não conheço
ninguém a não ser uma vizinha, a Jane, que está reformada e vive com o
marido um pouco mais abaixo na estrada de terra, a um quilómetro e
meio. Como continuo sem ter carta de condução, a Jane oferece-se para
me ir buscar à estação de comboio. Leva-me ao supermercado, para poder
abastecer-me de provisões, e deixa-me na cabana, onde fico até a comida
acabar.
– Querida, tens a certeza de que vais ficar bem aí sozinha? – pergunta-
me ela, com a preocupação estampada no rosto. Para além do Oscar, sou
só eu, os veados que comem erva debaixo da macieira e as encostas
íngremes das montanhas à distância.
– Gosto da solidão – respondo-lhe, com um ar de falsa confiança.
A verdade é que tenho pavor do que possa acontecer quando me encontrar
a sós com os meus pensamentos.
Quando a Jane se vai embora, desfaço a mala antes de me sentar numa
cadeira de braços junto da lareira de pedra e de começar a ler. Mas sinto-
me ansiosa e não consigo concentrar-me. O silêncio e o isolamento têm
um efeito de amplificação e vejo mais claramente do que nunca até que
ponto me tornei uma pessoa receosa e frágil. Dou saltos com os barulhos
de pássaros e outros animais, que vêm dos bosques, e a meio da noite
levanto-me várias vezes para confirmar que a porta da frente está fechada
e que não há um serial killer à espreita por trás do poste do alpendre. Na
minha vida a.c. – antes do cancro – eu era uma pessoa teimosamente
independente e tinha orgulho na minha determinação, quer estivesse a
estudar no Egito, a mandar histórias da Faixa de Gaza ou à boleia no
deserto da Jordânia. Muitas vezes, as minhas escapadas já entravam no
domínio da imprudência. Mas viver tanto tempo com uma doença
potencialmente fatal alterou a minha relação com o medo. Treinou-me
para estar em alerta máximo para os incontáveis perigos potenciais que
espreitam, no meu corpo e para além dele.
Sinto-me inquieta e desconfortável em praticamente todos os minutos
desta primeira viagem a Vermont, mas obrigo-me a viver segundo uma
regra: ter medo não me autoriza a ir-me embora. Nos momentos em que só
quero fugir para a cidade, tomo a decisão de ficar mais uma noite, depois
duas, e depois três. Decido acreditar que aquilo que parece desconhecido e
assustador se tornará em breve familiar e seguro. Digo que, com o tempo,
vou cansar-me de ir verificar três vezes se a porta está mesmo fechada ou
de perder o sono por causa de predadores imaginários. Pode mesmo
começar a tornar-se verdade a mentira que disse à Jane – que gosto de
estar sozinha. Ao quarto dia, quando regresso à cidade, ainda não estou
bem nesse ponto, mas vou-me aproximando.
Nos meses seguintes, regresso a Vermont com a maior frequência
possível. De cada vez que vou para a cabana sozinha, começo a sentir um
pouco mais de domínio sobre mim mesma, um tudo-nada mais corajosa,
um pouco mais curiosa sobre tudo aquilo que está para lá da janela. Faço
caminhadas cada vez maiores com o Oscar, que corre à minha frente, me
leva por estradas rurais tortuosas, por entre estábulos em ruínas, correntes
de água borbulhantes e margens atapetadas com musgo cor de esmeralda.
Aprendo a acender a lareira e aventuro-me mais nos bosques, para
encontrar ramos. Um dia, um urso preto entra na propriedade e o Oscar
salta do alpendre e ladra-lhe com a ferocidade de um leão. O urso fica tão
surpreendido que tropeça e cai, depois larga a correr e desaparece para lá
das árvores. “A coragem das crianças e dos animais é uma consequência
da inocência”, escreveu em tempos Annie Dillard. “Deixamos os nossos
corpos seguirem os nossos medos.”
*
Passam-se dias inteiros sem ver uma pessoa que seja. Telefono ao Jon de
vez em quando, mas ele está atarefado, de volta à estrada. Também parece
compreender – sem que eu alguma vez lho tenha explicado – que estou a
empreender uma tarefa que é imensa e assustadora e que aquilo de que
mais preciso é de tempo sozinha. A minha solidão só é interrompida por
visitas esporádicas de um rapaz chamado Brian, que vem para cortar a
erva que cresceu no caminho e, quando o tempo aquece, para ajudar com
o jardim. Um dia, pomo-nos a conversar e, quando ele descobre que eu
não sei conduzir, oferece-se para me ensinar. Em troca das lições, escuto-o
com compreensão, enquanto ele me conta as dificuldades de se assumir
como gay no Vermont rural e as suas várias aventuras numa app gay
chamada GROWLR. Trocamos ideias para o perfil dele. – Tímido, de
barba, 115 quilos, aparência normal. Coração enorme, romântico
incorrigível. Flor favorita: cebolinha – diz o Brian.
– Gémeos, bem apetrechado – sugiro-lhe.
Ele desata a rir.
– Na verdade, sou Leão.
O Brian é o mais próximo de um amigo que tenho por aqui e anseio pela
companhia dele – mas não propriamente pelo momento em que tenho
mesmo de saltar para trás do volante.
Aprender a conduzir foi um momento importante dos tempos do liceu
para a maior parte dos meus amigos que, na manhã do dia em que faziam
dezasseis anos, corriam para o Departamento de Veículos Motorizados
para pedir a licença de aprendizagem. Para eles, e para a maior parte dos
adolescentes norte-americanos, conduzir constituía o ritual de crescimento
definitivo. Queria dizer andar aos beijos, noite fora, no banco de trás do
automóvel, dar boleias aos amigos até ao centro comercial e ir a concertos
em caravana. Era um sinónimo de independência. Mas, para mim,
conduzir soava como uma responsabilidade terrível e esmagadora. Alguns
ensaios desastrosos na carrinha dos meus pais confirmaram o que eu já
suspeitava: se eu não aprendesse de todo, os peões, ciclistas e os outros
condutores ficariam a ganhar. Não foi uma coincidência ter escolhido ir
para a faculdade numa pequena localidade, onde não era necessário ter
carro e, depois de me formar, viver em cidades grandes onde o transporte
por excelência era o metro.
No entanto, estar em Vermont sem carta é mais do que incómodo. Eu
não gosto nada de ter de pedir boleia, isso só me lembra a minha
dependência. Quando fico sem café, ou sem leite, quero poder conduzir os
trinta quilómetros até ao mercado dos agricultores. Não é que tenha
deixado de ter medo, o que acontece é que o medo está aos poucos a ser
suplantado por uma ânsia de liberdade.
Ao longo do verão, o Brian dá-me lições. Aprendo a percorrer as
estradas secundárias e treino o estacionamento em paralelo, entre
pinheiros. À medida que vou ganhando mais confiança ao volante, uma
ideia difusa começa a cristalizar-se num grande projeto. O tempo que
estive na Índia mostrou-me como é que viajar nos pode afastar de velhos
hábitos e criar condições para surgirem outros novos. É cada vez mais
evidente para mim que preciso de sair do que é familiar, mas não quero
fazê-lo completamente sozinha – quero procurar outras pessoas que
possam dar uma perspetiva ao meu dilema, que ajudem a orientar a minha
passagem. Quando, por fim, passo no exame de condução, o passo
seguinte é óbvio: vou partir para a estrada em viagem e visitar os que me
apoiaram quando estive doente.
*
REENTRADA
Ao fim da tarde, deslizo para trás do volante e vou buscar o Ned para
irmos jantar. O automóvel avança pela autoestrada e o céu vai ganhando
uma tonalidade de carvão cada vez mais escura. É a primeira vez que
conduzo numa autoestrada à noite e sabe bem ter por navegador alguém
que não o Oscar. O Ned orienta-me para o restaurante e dá-me indicações
quando é preciso mudar de faixa. Quando chegamos, sinto-me confiante,
estaciono, saio do carro e começo a dirigir-me para o restaurante. Mas o
Ned continua especado no passeio. “Sinto a necessidade de te chamar a
atenção para uma coisa: o teu carro está estacionado em diagonal, a
ocupar dois lugares”, grita atrás de mim. Vê-se que está a conter-se para
não desatar a rir. “Ora, como estamos em frente de uma loja de bebidas,
talvez ser prudente arrumá-lo melhor, antes que alguém chame a polícia
por causa daquilo que parece ser um condutor já muito bem bebido.”
Com o carro devidamente estacionado, dirigimo-nos então para o sinal
de néon vermelho a dizer SEOUL B.B.Q. & SUSHI. Enquanto esperamos
pelos aperitivos, o Ned vai à mochila e tira uma pasta. Fá-la deslizar sobre
a mesa. Quando a abro, descubro uma pilha de poemas, todos anotados a
lápis.
– Uma das coisas que aprendi no meio disto – diz-me – é que a poesia
me alimenta. Vejo a minha experiência entranhada naquilo que leio e isso
torna-se a linguagem que uso para a captar. Compilei alguns dos meus
favoritos. Pode ser que te digam qualquer coisa na fase em que te
encontras nesta altura, na fase em que estamos agora os dois.
O Ned fecha os olhos e começa a recitar umas linhas de um poema de
Stanley Kunitz chamado The Layers10.
Tal como sucede com o Ned, desde criança que ler e escrever têm sido
para mim ações essenciais. Depois do diagnóstico, foi a escrita que me
permitiu guardar um sentido de mim, mesmo quando a condição física se
ia degradando – e até quando já não me reconhecia no espelho. Deu-me
uma ilusão de controlo quando eu tinha de entregar tanto aos que tratavam
de mim. Tentar descrever essa experiência com palavras tornou-me uma
melhor ouvinte e observadora, não só dos outros, mas também das
mudanças subtis do meu próprio corpo. Ensinou-me a verbalizar e a
defender-me. (Os meus médicos diziam a brincar que, de cada vez que
eles cometiam um erro, eu escrevia isso no The New York Times.) Narrar a
minha experiência concedeu-me uma maneira de transmutar sofrimento
em linguagem. Também criou uma comunidade – trouxe-me aqui para
conhecer o Ned.
Não creio que seja um exagero afirmar que a escrita me salvou. Fosse o
que fosse que me ia acontecendo, eu ia produzindo sempre palavras,
mesmo que não passassem de algumas frases.
Exceto neste último ano.
Depois de regressar ao meu quarto de motel, continuo a pensar no
poema que o Ned recitou – na ideia de uma essência que persiste e que
atravessa o passado, o presente e o futuro. Na conversa com o Ned, reparei
que ele, subconscientemente, se referia a si próprio como dividido em três:
o Ned de antes do diagnóstico, o Ned doente e o Ned em recuperação.
Percebo que, sempre que falo da minha vida, faço o mesmo. Talvez o
desafio seja encontrar um fio condutor que una estes três eus. Parece-me
que será um desafio mais concretizável no papel.
Pela primeira vez em meses, abro o diário e começo a escrever. Decido
fazer isto diariamente, seguir o fio até onde ele me leva.
*
Entre o Ned e a pessoa que vem a seguir na minha lista há mais de mil
quilómetros de autoestrada. Um condutor mais experiente, ou alguém com
uma reserva de energia mais profunda, podia ser capaz de os percorrer
numa tirada de doze horas. A mim, vai levar-me quase duas semanas. Na
manhã do Dia 3, acordo em Farmington com a garganta a arranhar de uma
forma suspeita. Gostava de acampar, mas parece que estou a constipar-me
e a meteorologia avisa que está a chegar uma tempestade.
Nuvens ameaçadoras, negras e púrpura, marcam o céu quando paro num
parque de campismo em Middleborough, Massachusetts. Logo que saio,
sinto uma gota de chuva, e a seguir outra. A perspetiva de dormir com um
cão numa tenda à chuva quando já estou doente parece-me péssima. Na
receção, decido então alugar uma das cabanas. Estão dispostas num
semicírculo numa área arborizada, dominada por duas dezenas de
autocaravanas estacionadas em longas filas num campo de relva
amarelecida. Não é propriamente a experiência de vida selvagem que fui
criando na minha imaginação.
Tiro as coisas do carro e sento-me cá fora na mesa de piquenique. É o
primeiro dia de outono verdadeiramente frio e estou de jeans, sweatshirt,
um blusão preto quente e um chapéu de lã. O Oscar está a dormir no meu
colo e aquece-me as pernas enquanto estudo o mapa. Estou distraída, a
pensar no percurso que vou fazer na semana seguinte, quando o Oscar
salta de repente para o chão, a rosnar e a mostrar os dentes a um carro que
acaba de parar na cabana mesmo ao lado. Do automóvel saltam dois cães
pequenos com laços cor-de-rosa iguais. A seguir saem os donos, um casal
jovem, na casa dos trinta anos, que se encaminham logo para mim.
– Eu sou o Kevin e ela é a Candy – diz o homem, com o cabelo
penteado para cima com gel e uma corrente de prata ao pescoço.
– Suleika – apresento-me. – Muito gosto.
– Su-quê?
– Su-lei-ca – soletro.
– Que raio de nome é esse? – diz Kevin. Uma espécie de latido de riso
escapa-lhe dos lábios. – Não és americana, pois não?
Não tenho bem a certeza se é uma pergunta sincera, uma piada ou uma
tirada racista. Sem saber o que hei de dizer, também me rio – e detesto-me
um bocado por causa disso.
– Estás aqui sozinha? – pergunta a Candy.
Respondo que sim sem pensar e lamento instantaneamente não lhes
dizer que estou com o meu namorado Buck, que foi caçar bisontes e vai
voltar a qualquer momento com as suas armas. A esse pensamento, segue-
se logo outro. Não preciso de um homem para me sentir segura na estrada:
só preciso de ter cuidado com quem travo conhecimento e como. No caso
presente, isso quer dizer desejar educadamente aos meus novos vizinhos
um bom resto de dia e voltar à minha cabana. Pela janela com rede, vejo a
Candy e o Kevin regressarem ao carro e, para meu alívio, irem-se embora.
Assim que eles partem, volto lá para fora e empilho uns troncos no sítio
da fogueira. Estão húmidos. O fogo só pega ao fim de várias tentativas,
mas quando isso acontece fico feliz a ver as chamas subirem e saltarem no
ar frio. A chuva parou e tiro a trela ao Oscar, para o deixar correr à solta.
Deito-me na relva ainda húmida, estico os braços e acaricio as folhas com
as pontas dos dedos. O cheiro do fumo da madeira a arder invade-me as
narinas.
Adormeço e quando acordo já está escuro. Há uma lua em quarto
crescente pendurada no céu, lembra-me uma unha cortada esbranquiçada.
Estou outra vez demasiado cansada para experimentar o fogão da cabana,
por isso, preparo mais uma sanduíche de manteiga de amendoim e
compota e sento-me na mesa de piquenique com o envelope de poemas
que o Ned me deu. Mas, antes de poder começar a ler, sou distraída pelo
som de ramos a partirem-se. Espreito para o bosque e vislumbro um cão
grande e um homem grande com uma camisa de flanela esticada por cima
de uma barriga saliente. Ele arrasta um oleado enorme com – será o quê?
Talvez sejam só provisões para o campismo, penso. Em alternativa, pode
ser um cadáver. Carrega a carga para o alpendre da cabana à minha
direita, sem sequer me dizer olá. Senta-se nos degraus, abre uma cerveja e
começa a dar conta de uma caixa de doze com uma velocidade notável;
sinto-me desconfortável. A expetativa de uma noite tranquila à volta do
fogo evapora-se. Pego nos poemas e no que resta da minha sanduíche e
vou para dentro.
Preferia ficar fechada até de manhã, mas a cabana não tem canalização e
a casa de banho fica a uns setenta metros. Antes de me deitar, pego numa
lanterna e na bolsa, para dar um salto rápido à casa de banho, mas assim
que abro a porta o Oscar corre entre as minhas pernas e desaparece na
noite.
– Oscar – murmuro uma vez, e depois outra, mais alto. – Oscar, que
raio, vem cá.
Ando de um lado para o outro na relva alta e aponto a lanterna para a
orla do bosque, chamando-o com uma frustração crescente.
– O seu cão fugiu?
O meu vizinho das cervejas e do oleado materializou-se atrás de mim.
A voz dele faz-me dar um salto.
– Sim, mas está tudo controlado.
– Precisa de ajuda a procurar? – pergunta. Parece que não ouviu uma
palavra do que eu disse.
– Está tudo bem – repito com mais firmeza, afastando-me.
Vivo há tanto tempo no mundo constrangido da doença que não é só na
segurança do meu corpo que não confio, mas também na do mundo.
É difícil saber o que é o medo razoável – em que se pode confiar e em que
não se pode. Por muito que adore o Oscar, não estou para andar à procura
dele no bosque com um estranho inquietante. Dou a volta e regresso à
cabana. É aí que ouço o bater de uma cauda agitada no alpendre. Claro
que é o Oscar, com os dentes à mostra no focinho sujo. “Devia mandar-te
de volta para o canil”, resmungo, enxotando-o para dentro e fechando a
porta à chave atrás de mim.
Na manhã seguinte, estou pior da constipação. Dói-me o corpo todo e
parece que tenho a cabeça cheia de areia prensada. É difícil não me sentir
desanimada perante a ideia de que a maior parte da viagem pode ser
exatamente isto – noites de ansiedade, doença intermitente e cansaço a
perseguirem-me estrada fora. Arrasto-me para a mesa de piquenique lá
fora, onde mexo no fogão de campismo até que finalmente o ponho a
funcionar. Chamas azuis aquecem uma panela com cereais e, quando estou
a tomar o pequeno-almoço, o meu vizinho e o cão reaparecem.
– Bom dia – diz o homem, dando um toque no boné de camionista que
usa a esmagar um molho de caracóis oleosos. – Não tive a oportunidade
para me apresentar. Eu chamo-me Jeff e este é o Diesel – diz, apontando
para o labrador preto. – Quero pedir-lhe desculpa pela noite passada, sou
surdo e não ouvi o que me disse. Hoje já tenho o aparelho. Ainda bem que
conseguiu encontrar o seu cão.
À luz do dia, vejo-o melhor. Tem as unhas pretas e a cara está coberta
por uma barba de uma semana, mas os olhos são doces. Sinto uma
pontada de culpa: nos últimos anos tenho sido vítima de uma série de
preconceitos, por isso, devia ter mais cuidado em não fazer o mesmo.
Uma vez, em Manhattan, num dia de inverno com neve, um homem gritou
comigo num autocarro porque eu não dei o lugar a uma senhora mais
velha. Oiça, eu sei que pareço nova, mas estou doente, vou agora à
quimioterapia, queria ter-lhe explicado. Mas não disse nada. O que se
passou foi que eu, debaixo de vários olhares de censura, corei de vergonha
e cedi o lugar.
– Está a acampar há quanto tempo? – pergunto ao Jeff, fazendo um
esforço para ser amigável.
– Ando há umas semanas a dormir numa tenda, mas a chuva pôs-se
mesmo ruim, por isso, a noite passada mudei-me para uma cabana.
– Caramba… Umas semanas? – digo, impressionada. – Eu também
estou numa aventura demorada.
– Acho que podemos chamar a isto aventura… Tive de vender a minha
casa e estou com dificuldade em encontrar um sítio que possa pagar, por
isso, para já, isto é a minha casa. Há muitas pessoas no parque na mesma
situação. São tempos duros, mas não me queixo.
O Jeff e eu conversamos mais um bocado. Ele fala-me das praias em
Plymouth, uma cidade na costa, ali ao pé.
– É um sítio muito bonito. Devia ir lá espreitar – diz-me.
O dia hoje está mais quente e, como não tenho nada planeado, é mesmo
isso que faço. Enquanto caminho na praia, sobre as pedras, penso no Jeff e
no Diesel, em como é que vão conseguir suportar os meses de inverno
sem ter casa. Penso no Ned e nas alunas. Penso em todas as pessoas e em
todos os quilómetros de estrada que ainda tenho pela frente. O Oscar
persegue as ondas à beira da água. Grandes faixas rosa e laranja correm
sobre o oceano, enquanto o sol se afunda mais e mais no horizonte.
*
11 Caminhei por muitas vidas, algumas das quais me pertenciam, e não sou quem era, embora
persista uma essência de ser, da qual luto para não me desviar.
28
Vou atrás da minha mãe para a cozinha, onde fazemos chá de curcuma e
levamos as canecas lá para cima, para o estúdio dela. Há som de música
clássica a flutuar de uma coluna velha e toda manchada de tinta que está a
um canto. Os parapeitos das janelas estão cobertos de conchas, ramos,
penas e ossos de animais que ela apanha nos passeios diários pelo bosque
com o meu pai. Nas paredes estão penduradas as suas últimas criações:
pinturas gigantes a preto e branco do que parecem ser ninhos de pássaros
abandonados.
Sentamo-nos no grande estirador encostado a uma janela. Está coberto
de blocos de notas, frascos com pincéis e dezenas de tubos de tinta e,
quando a minha mãe abre um espaço para pormos as canecas, reparo nas
mãos dela. Anos de pintura e de jardinagem deixaram-nas gastas, com os
dedos cheios de nós, como gengibre, e as palmas ásperas como casca de
árvore. São as mãos que pegaram em mim logo depois de eu nascer. São
as mãos para as quais eu olhava com um ressentimento irritado quando
todas as noites chegava o momento de levar a injeção de químio durante o
ensaio clínico. São as mãos que mudavam os lençóis ensopados em urina
quando estive tão doente que molhava a cama. Estas mãos e eu temos uma
longa história.
– Maman – digo. – Merci.
– Pourquoi?
– Por cuidares sempre tão bem de mim.
– Não precisas de me agradecer. É o que os pais fazem. – Parece hesitar
um momento e depois acrescenta: – Sabes o que é estranho? Em termos da
minha vida diária, eu funcionava quase melhor quando tu estavas muito
doente. Estávamos em modo de emergência e eu tinha um foco: cuidar de
ti. Não conseguia admitir o medo que tinha de que não conseguisses
sobreviver. É só agora, que estás melhor, que estou a permitir-me sentir
esse medo, que estou a dar mais atenção a tudo o que a situação
significou.
É a primeira vez que a minha mãe partilha comigo qualquer coisa deste
género – é o meu primeiro relance daquilo que os últimos quatro anos
representaram para ela. Desde o dia do meu diagnóstico, ela e o meu pai
estiveram ao meu lado. O meu sofrimento tem sido o deles, os meus
desapontamentos, desgostos e incertezas também. Imagino que passará
muito tempo até serem capazes de sacudir a preocupação de que pode
voltar a acontecer. Na minha família, não sou a única pessoa que tenta
seguir em frente.
– Não podemos continuar e fazer as mesmas coisas de antes quando
tudo na nossa vida foi virado de pernas para o ar – diz a minha mãe. –
Ainda não encontrei uma viagem como aquela que estás a fazer para me
ajudar a recuperar o foco.
*
A LONGA INCURSÃO
ESCRITO NA PELE
O VALOR DA DOR
A maneira como nos curamos nem sempre se parece com uma cura. Há
quarenta dias, quando saí de casa, via esta viagem como uma
oportunidade para começar a viver de novo. Pensava que, quanto mais
conduzisse, mais me afastaria dos corredores de hospital por onde
flutuara, numa bata de algodão, a murmurar comigo mesma, atordoada da
morfina; mais longe me sentiria do quarto na Hope Lodge onde esperava
pelo Will, acordada na cama, com um medo frio a crescer-me na barriga;
mais distante ficaria do micro apartamento na Avenida A onde
construímos um lar – e depois o arrasámos.
Já está na hora de seguir em frente!, digo a mim mesma. Deixa isso
para trás! Mas quantos mais quilómetros interpunha entre mim e o Will,
mais perturbada ia ficando com o que nos acontecera. O desfazer da nossa
relação parece-me pior depois de ver como o Bret e a Aura encontraram
uma maneira de continuar juntos e fazem planos para ter um bebé, apesar
de os problemas de saúde dele serem permanentes.
Por estes dias, para onde quer que olhe vejo o fantasma do Will:
silhuetas de homens altos, desajeitados, com queixos quadrados e cabelo
solto, que fazem a minha pulsação acelerar. Irracionalmente, penso se não
será mesmo ele que está ali sentado ao balcão de um restaurantezinho
familiar no Iowa rural, a devorar douradinhos de galinha e batatas fritas,
ou a pescar truta nas margens relvadas de um rio nas Sandhills, no
Nebraska, onde passei um fim de semana a acampar. Estas aparições são
essencialmente na minha cabeça, mas há dias em que alguém ou alguma
coisa me lembra inesperadamente o nome dele, e as partes escondidas do
passado que vivem em mim sobem-me aos olhos, surgem como uma
inundação em espiral de desgosto e raiva, até eu não conseguir ver outra
coisa. Passei tanto tempo a tentar sepultar a memória dele, e a nossa, que
parece inevitável um ajuste de contas.
*
Sigo por Pine Ridge, uma das mais pobres reservas de nativos americanos
do país, com arbustos secos a rolarem pela estrada. A terra é despida e
árida. O ar é tão parado que parece assentar em tudo como se fosse um
sedimento – nas autocaravanas, nas barracas feitas de bocados de madeira
e oleado, nas pilhas enferrujadas de carros desmembrados. Na noite
passada, fiquei a dormir no chão da sala de um motociclista de rabo-de-
cavalo em Lead, no Dakota do Sul. Ele já tinha trabalhado nesta reserva e
disse-me que valia a pena uma visita. Antes de eu partir, pôs-me em
contacto com o pessoal do Thunder Valley, um projeto comunitário de
recuperação na “rez”, como todos chamam aqui à reserva.
No parque de estacionamento vazio do Thunder Valley, o vento assobia
e uiva e o frio pica-me a cara com a força de uma bofetada. Sou recebida
por um jovem da nação Oglala Lakota, que se apresenta como o diretor e
fundador. É um tipo forte e com cara de bebé, de pele escura coberta por
tatuagens e uma trança negra brilhante que lhe serpenteia pelas costas
abaixo. Apresenta-se – “Nick” –, dá-me um aperto de mão firme e leva-me
a uma das casas-contentores onde o Thunder Valley tem a sua sede.
Sentamo-nos a uma mesa e Nick começa a falar-me do trabalho que
fazem aqui. Tudo me interessa – o projeto piloto de habitação sustentável
com fardos de palha, a horta comunitária para suprir a falta de alimentos
frescos na reserva –, mas parece que não sou capaz de me concentrar. Há
qualquer coisa de familiar no Nick, aliás, todo este lugar é familiar e as
sinapses do meu cérebro vão disparando sinais e distraem-me.
– Já nos encontrámos antes? – interrompo-o.
– Estava precisamente a pensar a mesma coisa – responde. – Importa-se
de repetir o seu nome?
Repito o primeiro e último nome, articulando mais devagar a sequência
de vogais.
Inclinando-nos um pouco para a frente nas nossas cadeiras, olhamos um
para o outro, tentando encontrar um dossiê esquecido há muito tempo nos
ficheiros da memória. E depois dá-se um clique. “O Will”, dizemos os
dois.
*
SALSA E OS SOBREVIVALISTAS
“Queridos Todos,
O meu cancro está de volta aos meus pulmões e garganta e amanhã vou
ser operado no Cedars Sinai em Los Angeles. Não se sabe qual vai ser o
tempo de recuperação desta cirurgia – não sabemos o grau de
dificuldade de acesso aos tumores. Também não sabemos neste
momento se o tratamento imunitário que eu fiz foi de algum modo
eficaz, ou se não foi nada eficaz. A cirurgia tirará tudo isto a limpo e
ajudar-nos-á a planear os próximos passos.
Se precisarem de entrar em contacto comigo, ou de me enviarem
alguma coisa, em princípio terei acesso ao email, mas sabe-se lá o
estado de consciência em que me encontrarei… Por favor, não façam
muitas perguntas sobre como vai ser a logística, ou sobre onde e quando
eu estarei onde e quando – não temos maneira de saber isso neste
momento e não saberemos por mais algum tempo. POR EXEMPLO:
Mensagem boa: “Só para desejar as melhoras ao Max! Não é preciso
responder!”
Mensagem má: “Quando é a próxima vez que o Max vai à casa de
banho, e em que cidade – gostava de levar lá o meu schnauzer a visitá-
lo; é um schnauzer de massagens curativas da Irlanda, portador de boa
sorte. O Max vai morrer? Quantas vezes vai o Max morrer? Será que ele
pode ir à minha inauguração daqui a quatro meses?”
Adoro-vos a todos e agradeço extremamente o vosso apoio.
*
A noite cai depressa e há uma faixa de luz pálida sobre o caminho de terra
quando encosto junto aos portões de madeira de uma casa em Humboldt
County. Eu não tinha planeado esta visita. Quando disse a Brent, o
pescador, que estava à procura de um lugar para ficar no norte da
Califórnia, ele deu o meu número ao genro, que por sua vez o deu a um
amigo chamado Rich, que me telefonou esta manhã e me pôs à disposição
uma cabana na sua propriedade, para eu passar a noite.
O Rich recebe-me com um sorriso amplo e caloroso, que lhe aumenta os
pés-de-galinha à volta dos olhos cinzentos. A mulher dele chama-se Joey e
a essa hora está no ensaio do coro, por isso, seremos só nós os dois ao
jantar.
– Espero que não tenha problemas com comida vegan – diz-me,
enquanto entro em casa atrás dele.
Enquanto se afadiga na cozinha, o Rich conta-me que é um psicólogo
reformado e agora, no tempo livre, faz esculturas. Há várias peças feitas
por ele espalhadas pela casa, estatuetas contorcidas em madeira. Uma
delas toca-me especialmente. É estranhamente bela, ao mesmo tempo
carnal e etérea – uma figura que se contorce, que se abre, no meio de uma
metamorfose. O Rich diz-me que a criou a partir do tronco de um carvalho
enorme. Ele chama-lhe O Ovo de Koschey e explica-me que, na tradição
popular eslava, Koschey era um feiticeiro que, para se manter imortal,
escondia a alma em objetos maiores, como por exemplo um ovo de pato
enterrado sob as raízes de uma árvore imponente. Diz-me que vai buscar
muitas coisas à sua experiência como psicólogo.
– Interessa-me saber como é que pessoas que são destruídas por coisas
que lhes acontecem na vida são empurradas para um lugar onde as
respostas estão para lá das nossas capacidades racionais e emocionais.
Faço que sim com a cabeça. São palavras que sem dúvida me tocam.
Estamos sentados na sala, ao pé de uma grande lareira em adobe. Ao
longo da nossa refeição de abóbora grelhada, salada de couve-galega e
azeitonas kalamata, o Rich vai-me contando histórias da viagem que fez
pela Europa, em meados dos anos 80, numa carrinha, com a mulher e os
filhos. Ele tem uma teoria: sempre que viajamos, fazemos na verdade três
viagens. Primeiro, há a viagem de preparação e antecipação, de fazer as
malas e de imaginar coisas. Depois, há a viagem que realmente fazemos.
E, depois, há a viagem de que nos lembramos.
– O segredo é procurar manter as três o mais separadas possível – diz. –
O segredo é estar presente onde quer que se esteja no momento.
Este é um conselho que, mais do que outro qualquer, guardo comigo.
*
Faço uma última paragem antes de deixar Los Angeles. Por entre smog e o
trânsito intenso de hora de ponta, vou até Brentwood, um bairro abastado
com vivendas protegidas por portões e relvados impecavelmente
desenhados, tratados por equipas de jardineiros. É a primeira vez que vou
a casa dos pais do Max e, quando bato, a mãe dele, a Ari, aparece à porta,
com um caniche ao lado. Enquanto fazemos conversa de circunstância
num átrio luxuoso, o Max desce a escada. Está muito pálido. Parece
terrivelmente magro, com a cara encovada, o que faz com que os seus
olhos azuis, já ampliados pelos óculos, pareçam ainda maiores. Diz-me
olá num tom cavo de barítono, explica-me que tem a voz assim rouca por
causa dos tumores no peito e encaminha-me para o quarto dele, para
podermos falar a sós. Senta-se na beira da cama e eu à frente dele, na
cadeira da secretária. Inclino-me nervosamente para a frente e para trás,
até que ele estende os braços e me faz parar.
Olho para o tapete, mordo os lábios, tenho medo de desatar a chorar
convulsivamente se o olhar nos olhos.
– Sei que não te tenho ajudado nada – digo-lhe, com a voz a tremer.
Também lhe conto a quantidade de vezes que nas últimas semanas quis
pegar no telefone e ligar-lhe. Digo-lhe que sei muito bem como as coisas
são, que já estive do outro lado deste tipo de silêncio, e que percebo
perfeitamente se ele não conseguir perdoar-me.
– Não há desculpa para ter sido tão cobarde. Peço-te imensa desculpa.
O Max não deixa que eu me safe. Não é o seu estilo.
– Eu reparei que te afastaste – diz-me, com sinceridade. – Não estou
zangado. Só quero perceber porquê. Saber que eu estou a morrer
incomoda-te?
– Se me incomoda? Não – respondo. – Aterra-me.
Digo ao Max que não sabia que era possível ter uma amizade com tanta
profundidade e entendimento e que é muito provável que nunca mais volte
a ter outra assim. Ele é a única pessoa a quem posso ligar a meio da noite
quando há uma próxima biópsia que me preocupa – ou a quem posso
expor as virtudes de um elixir bucal antibacteriano sem precisar de
explicar mais nada. Ele esteve no velório da Melissa, esteve comigo todos
os dias da minha última hospitalização, esteve todas as noites na primeira
semana depois de o Will ter saído de casa.
– Tu conheces-me suficientemente bem para me apareceres à
porta mesmo quando eu digo que não quero visitas. Em especial quando
eu digo que não quero visitas – digo-lhe. – Tu tornas-me responsável, até
neste momento. És a pessoa mais divertida, inteligente e estranha que eu
conheço. A ideia de te perder é insuportável.
– Eu percebo – diz o Max, inclinando-se para mim e tocando-me. – Eu
imaginei que seria isso. Perdoo-te. Mas agora preciso de ti.
Abraça-me com força, com todos os tecidos e músculos do corpo,
aquele género de abraço que nos esmaga os pulmões, mas de uma maneira
boa. O Max sempre deu os melhores abraços.
Quando voltamos a sentar-nos, pergunto-lhe como está a sua saúde e ele
conta-me que começou a tomar um novo medicamento que é suposto ter
efeitos secundários realmente ligeiros.
– Mas todos nós sabemos como as coisas são – diz. – Tenho sentido as
piores dores da minha vida e não consigo estar funcional mais de duas ou
três horas por dia. Mas, nessas duas ou três horas, sou o Max, e ser o Max
é bom.
Nas horas que se seguem, a nossa conversa é uma torrente ininterrupta.
Ele faz-me perguntas sobre todas as pessoas que encontrei e os lugares
que conheci. Eu pergunto-lhe como é que vai a vida de casado e trocamos
recordações sobre o casamento dele, há uns meses. Tal como eu e o Jon, o
Max e a mulher, a Victoria, conheceram-se em adolescentes, num
acampamento de verão. Foram amigos próximos quase uma década antes
de se tornarem um casal. Embora estivesse a meio da quimioterapia, o
Max soube logo, poucas semanas depois de começarem a relação, que ia
pedir à Victoria para casar com ele no aniversário da primeira vez que
tinham saído juntos. O Max é um mestre da inconstância e lembro-me da
admiração que senti pela esperança radical e pelo otimismo que a decisão
de pedir a Victoria em casamento revelava, apesar do prognóstico da
doença. Senti-me honrada quando ele me perguntou se queria fazer parte
do grupo de padrinhos e madrinhas. O casamento foi em Topanga Canyon,
numa estalagem rodeada por velhos sicómoros, quedas de água e flores
campestres. A cerimónia foi oficiada pela sua mentora, a poeta Louise
Glück14.
O Max conta-me que tem estado a ler um livro de Louise, Averno, e que
é uma obra-prima – o género de livro que só a sabedoria de décadas pode
produzir, uma coisa que exige morrer muitas vezes para se conseguir criar.
– Sempre que tive um trauma significativo, a minha escrita cresceu, eu
cresci – diz. – Penso que, se tivesse vivido até aos cinquenta anos, teria
escrito uma obra-prima. Se tivesse mais tempo. – Há uma tensão na sua
voz, uma dureza que nunca ouvi antes. – Estou amargo – reconhece. –
Dei-me conta há pouco tempo de como é estranho ser assim novo e saber
que vou morrer. É muito, muito solitário.
Faz uma pausa e parece-me mais triste do que alguma vez o vi. Diz que
tem tido uma vida rica e acelerada – com a melhor família, os melhores
amigos, a melhor mulher e o seu primeiro livro de poemas a sair daí a uns
meses.
– Tem sido fantástico ver tudo florescer tão depressa – afirma. – Não
falta nada. Mas eu teria preferido muito mais uma combustão lenta.
A voz do Max tornou-se ainda mais rouca e ele parece cansado.
– Neste momento, quero enrolar um charro, ver um episódio de The
Bachelorette e comentar contigo à gargalhada como aquilo é mau, mas
provavelmente é melhor fazer uma sesta – diz.
Levanto-me para me ir embora, digo ao Max que o adoro e prometo-lhe
ligar de poucos em poucos dias para lhe dizer como vão as coisas na
estrada.
– Para mim, é incrível poderes estar tanto tempo a sós com os teus
pensamentos no carro, quando passaste pelo que passaste – observa. – Há
anos que as pessoas andam a fazer experiências em ti e tu tens os tomates
para fazer experiências contigo, para te fazeres crescer. Ora, a isso é que
eu chamo força.
– Oh, Max – digo. Sinto o coração apertado de uma forma dramática. –
Não sei o que teria feito sem o teu apoio.
– És uma inspiração enorme – diz-me.
– Deus não te dá mais do que aquilo que consegues suportar – respondo.
– Cada dia é uma dádiva – diz.
Com essa frase dá-me um último abraço, longo e esmagador, antes de eu
sair.
*
14 Poeta e ensaísta norte-americana, galardoada com o Nobel da Literatura em 2020. (N. do T.)
34
IR PARA CASA
16 Gansta Quin, de nome verdadeiro Quintin Philippe Jones, condenado à morte em 1999 por ter
morto à pancada uma tia-avó, foi executado no Texas em 19 de maio de 2021, aos 41 anos, depois
de o governador do estado ter ignorado uma campanha global pelo seu indulto na qual a autora
deste livro foi uma das principais promotoras. Antes de entrar na câmara de execução, Quintin
telefonou a Suleika Jaouad uma última vez, para agradecer a todos os que lutaram por ele. Após a
execução, a autora, no Instagram, assinalou: “Há muitos Quins no nosso país - há demasiados.
A questão com que fico, no meio disto tudo, é: que sociedade queremos nós ser?”. (N. do T.)
EPÍLOGO
Sempre que acordo a sentir a falta dos meus amigos, visito-os nas suas
palavras e aguarelas.
O meu sistema imunitário continua com falhas. Ainda exijo demais do
meu corpo. Sou hospitalizada por causa de complicações de uma gripe que
se tornam uma sepse. Sou obrigada a aceitar as minhas limitações e a
lentidão – é uma lição que tenho de aprender uma vez, e outra, e outra.
Desanimo. Deixo de escrever estas páginas. Descanso, recupero,
recomeço.
Demora mais um bom bocado, e há mais uns desvios, mas o Jon e eu
acabamos por levar as coisas para a frente. Mudamo-nos para um
quarteirão sossegado de Brooklyn, com árvores à volta. Na primeira noite,
celebramos com comida entregue em casa, à luz de velas, entre caixotes
de mudanças. Desembrulho o meu contrabaixo, limpo-lhe o pó pela
primeira vez em vários anos, e o Jon vai afinando o piano. Começamos a
tocar juntos.
O meu irmão, que é agora professor do quarto ano, vive no meu antigo
apartamento em East Village e voltou a pintar as paredes com as suas
próprias histórias, recordações e desgostos. Os meus pais mudaram-se
temporariamente para a Tunísia e eu volto lá para os visitar, pela primeira
vez desde a faculdade. Como o famoso cuscuz da minha tia Fatima,
convivo com os meus primos e festejo o Ano Novo no deserto do Sara.
O meu pai está a preparar a reforma e, quando esse momento chegar, tem
planos para fazer a sua própria viagem pelo país, seguindo o meu exato
itinerário. A minha mãe, que deixou de ser mãe e cuidadora a tempo
inteiro, voltou a desviar as suas energias para a pintura e reatou a carreira
de artista, com êxito e com um sentido de urgência que ela imaginava ter
passado há muito tempo.
Há certos sonhos que não consigo sonhar, porque nunca os julguei
possíveis. Na semana a seguir ao meu trigésimo aniversário, completo
uma meia-maratona. Regresso a Ojai, onde passo três meses como
professora convidada na escola da Katherine. Inspirada pela experiência
de conhecer o Lil’ GQ, escrevo a minha primeira reportagem, não a partir
da cama, mas do terreno, sobre um hospital-prisão no norte da Califórnia.
Uma tarde, enquanto procrastinava para concluir estas páginas, descobri à
venda uma carrinha Volkswagen de 1972 da cor da Sunshine. Escrevo ao
proprietário, um oficial da Força Aérea na reforma, que por acaso está a
ser tratado no Sloan Kettering e que reconhece o meu nome das colunas
no The New York Times escritas há tantos anos. “Diz um preço e é tua”,
diz-me. “Nunca ninguém comprou uma destas senhoras por ser uma coisa
prática.”
Guardo a carrinha na cabana de Vermont e tento aprender a conduzir
com mudanças. Apanho irritações sucessivas e dou murros no volante, de
frustração, com a quantidade de vezes que deixo o motor ir abaixo. Vou
experimentando nos caminhos à volta da cabana, passo de primeira para
segunda, com o motor a tossir e a queixar-se enquanto subo ao topo de um
monte próximo que ainda tem vestígios de neve. Quando chego ao cimo, a
estrada torna-se macia e plana. Sigo por uma estrada de terra, ganho
velocidade, vejo as árvores com pedaços de gelo desfilarem por mim.
O Oscar vai no banco ao meu lado, a ver as árvores passar. Pus na
geladeira um frango, uma garrafa de vinho e um livro. Já faz um tempo
que não conseguimos dar uma escapadela e, durante uns dias, somos só
nós os dois. Onde quer que eu esteja, onde quer que vamos, o lar será
sempre o lugar intermédio – um lugar desabitado que me acostumei a
amar.
17 “Na verdade, o Céu não passa de um hospital para almas. / Quando lá chegar, lá chegarei / e não
será complicado. / No Céu eu não estou assim tão doente.”
AGRADECIMENTOS
Estou eternamente grata a Richard Pine, rei dos agentes, e a Carrie Cook,
que me ajudou a transformar um guardanapo de bar num livro. Ao meu
editor, Andy Ward, pelo seu cuidado enorme, gentileza e orientação, e a
Susan Kamill, essa lenda falecida, por acreditar desde o início. Ao meu
velho companheiro e editor-assistente, Sam Nicholson, e às muitas outras
pessoas maravilhosas na Penguin Random House: em especial, Susan
Mercandetti, Carrie Neill e Paolo Pepe, bem como aos meus editores
internacionais, especialmente Andrea Henry. Um agradecimento particular
a Ben Phelan, que partilhou a tarefa desafiante de fazer o fact-checking
deste livro – e que o fez com uma sensibilidade sem paralelo, com
compaixão e com boa disposição.
Tenho uma grande dívida para com a Lizzie Presser, minha querida
amiga, que é sempre a primeira a ler e que defendeu este livro muito antes
de eu ter a confiança para o escrever. Para com a Carmen Radley,
brilhante companheira, escritora e leitora de quarentena, que me foi
empurrando até acabar. Para com a incomparável Lindsay Ryan, que
tornou estas páginas incomensuravelmente melhores, e para com Vrinda
Condillac, que viu aquilo que faltava e me ajudou a desfazer os nós.
E muitos agradecimentos aos primeiros leitores e aos meus mentores:
Glenn Brown, Lisa Ann Cockrel, Chris McCormick, Jenny Boully, Peter
Trachtenberg, Esmé Weijun Wang, Lily Brooks-Dalton, Katherine Halsey
e Bonnie Davidson. Ao meu grupo de escrita, por serem uma companhia
espetacular nesta empreitada sempre árdua e às vezes solitária: Jordan
Kisner, Jayson Greene, Frank Scott e, em especial, Melissa Febos e Tara
Westover, que me deram conselhos de um valor incalculável.
Pela dádiva do tempo e do silêncio, quando eram mais necessários,
agradeço à Fundação Ucross, ao Projeto Kerouac, à Biblioteca Pública de
Nova Iorque, à bolsa Anacapa e à Quinta Stone Acres, bem como à cabana
em Vermont, onde muitas destas palavras foram tecidas. Aos seminários
de escrita Bennington, por darem forma a uma comunidade querida. Um
agradecimento profundo a Christina Merrill, pela sua inexcedível
generosidade, a Gideon Irving, por me confiar o seu carro, e às famílias
Presser, Nelson-Greenberg e Ross por me darem apoio e abrigo quando
mais precisava. Os meus agradecimentos também a Erin Allweiss, Marissa
Mullen, Lindsay Ratowsky e Maya Land, pelos seus esforços incansáveis
nos bastidores.
Uma última e profunda vénia aos que tornaram possível o meu mundo.
Aos meus pais – o meu amor mais profundo e o maior dos agradecimentos
– e ao meu irmão, Adam, por literalmente me salvarem a vida. Aos
doutores Holland, Navada, Silverman, Castro e Liebers, e às minhas
enfermeiras Alli Tucker, Abbie Cohen, Sunny e Younique, bem como a um
número sem fim de outros profissionais de saúde, porque sem eles eu não
estaria aqui. A Jon Batiste, que me ensinou a acreditar de novo e que
enfrentou com resiliência e paciência os grandes períodos em que tive de
me ausentar. A Tara Parker-Pope, que me deu a primeira oportunidade, e
ao meu professor Marty Gottlieb, por nos apresentar. Para a Mara, a
Natalie, a Kristen, a Erika, a Michelle, a Lilli, a Behida, a Ruthie, a Azita,
a Kate, a Sylvie e muitas outras mulheres, demasiado numerosas para
mencionar aqui, que me encorajaram com a sua amizade. E, por fim, aos
meus guardiões da estrada, por me abrirem as suas casas e por partilharem
comigo as suas histórias. Obrigada por me guiarem pela mais difícil das
passagens.
FIM