Entre Dois Reinos - Suleika Jaouad

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Ficha Técnica

Título: Entre Dois Reinos


Título original: Between Two Kingdoms
Autor: Suleika Jaouad
Revisão: Patrícia Cascão
Fotografia da capa: Daniel Schechner
Adaptação da capa: Alexandra Costa
ISBN: 9789892352428

LUA DE PAPEL
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© 2021, Suleika Jaouad


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Índice

Capa
Ficha Técnica
Nota da Autora
PRIMEIRA PARTE
1 A COMICHÃO
2 MÉTRO, BOULOT, DODO
3 CASCAS DE OVO
4 VIAJAR NO ESPAÇO E GANHAR VELOCIDADE
5 NA AMÉRICA
6 BIFURCAÇÃO
7 CONSEQUÊNCIA
8 MERCADORIA COM DEFEITO
9 RAPARIGA NA BOLHA
10 TEMPO EXTRA
11 PRESA
12 A MELANCOLIA DO ENSAIO CLÍNICO
13 O PROJETO DOS CEM DIAS
14 TANGO PARA TRANSPLANTE
15 NAS EXTREMIDADES OPOSTAS DE UM TELESCÓPIO
16 A ESTALAGEM DA ESPERANÇA
17 CRONOLOGIA DA LIBERDADE
18 O RAFEIRO
19 SONHAR EM AGUARELAS
20 UMA TROPA FANDANGA
21 AMPULHETA
22 OS LIMITES DE NÓS
23 A ÚLTIMA NOITE BOA
24 ESTÁ FEITO
SEGUNDA PARTE
25 O LUGAR INTERMÉDIO
26 RITUAIS DE PASSAGEM
27 REENTRADA
28 PARA AQUELES QUE FICAM PARA TRÁS
29 A LONGA INCURSÃO
30 ESCRITO NA PELE
31 O VALOR DA DOR
32 SALSA E OS SOBREVIVALISTAS
33 “FAZER COMO O BROOKE”
34 IR PARA CASA
Epílogo
Agradecimentos
SULEIKA JAOUAD
ENTRE DOIS REINOS

Between Two Kingdoms


Traduzido por
J. C. Silva
Para a Melissa Carroll e para o Max Ritvo –
eles são a razão por trás de tudo.

E para todos os outros


que atravessaram o rio demasiado cedo.
“Até à morte, é tudo vida.”
MIGUEL DE CERVANTES
NOTA DA AUTORA

Para escrever este livro, baseei-me nos meus diários, em registos médicos
e em entrevistas que realizei com muitas das pessoas que aparecem na
história, bem como na minha própria memória. Também incluí excertos de
cartas, alguns dos quais foram ligeiramente editados, para os tornar mais
concisos.
Para manter o anonimato de algumas pessoas, modifiquei pormenores
que as identificavam e alterei os nomes que se seguem, e que indico por
ordem alfabética: Dennis, Estelle, Jake, Joanie, Karen, Sean e Will.
PRIMEIRA
PARTE
1

A COMICHÃO

Começou com uma comichão. Não era uma daquelas comichões


metafóricas que revelam o desejo de fazer uma viagem à volta do mundo
ou uma crise qualquer de um-quarto-de-idade. Era mesmo uma comichão
física, literal. No meu último ano de faculdade apareceu-me uma
comichão daquelas que nos deixam loucos, que nos fazem arranhar a pele
e não nos deixam dormir à noite. Surgiu primeiro na parte de cima dos pés
e foi subindo pelos calcanhares e pelas coxas. Tentei resistir à tentação de
coçar, mas era uma comichão constante, espalhava-se pela superfície da
pele como se fossem as picadas de mil mosquitos invisíveis. Sem eu dar
conta do que fazia, a minha mão começava a descer pelas pernas e as
minhas unhas raspavam as calças de ganga, à procura de alívio – até que a
punha dentro das calças e arranhava diretamente a pele. Tinha comichão
durante o meu part-time no laboratório fotográfico da universidade. Tinha
comichão sentada à grande secretária de madeira do meu canto na
biblioteca. Tinha comichão quando dançava com amigos sobre o chão
pegajoso de caves de cervejarias. Tinha comichão quando dormia. Não
demorou até as minhas pernas apresentarem uma série de marcas, crostas
e cicatrizes, como se tivessem sido açoitadas com ramos de uma roseira.
Eram os sinais sangrentos de uma batalha, cada vez mais intensa, que se
travava dentro de mim.
“Pode ser um parasita que apanhou quando esteve a estudar no
estrangeiro”, disse-me um ervanário chinês, antes de me despachar com
uns suplementos malcheirosos e uns chás amargos. No centro de saúde da
universidade, uma enfermeira pensou que podia ser um eczema e
recomendou um creme. Um médico de clínica geral supôs que a comichão
estaria relacionada com stress e deu-me umas amostras de um
medicamento contra a ansiedade. Mas ninguém parecia saber ao certo, por
isso, tentei não dar muita importância ao caso. Esperei que desaparecesse
por si.
Todas as manhãs abria devagar a porta do meu quarto no dormitório,
espreitava para o corredor e corria para a casa de banho comum
embrulhada na toalha, antes que alguém me visse as pernas. Passava um
pano molhado pela pele e via os fios escarlate a escorrerem para o ralo do
chuveiro. Cobria-me de poções de supermercado feitas à base de
hamamélis e apertava o nariz quando bebia as misturas de chás amargos.
Quando a temperatura ficou demasiado alta para usar jeans todos os dias,
investi numa coleção de collants pretos opacos. Comprei lençóis de cores
escuras para disfarçar as manchas cor-de-ferrugem. E quando fazia sexo
era com as luzes apagadas.
Com as comichões, vieram as sestas. Eram sestas que duravam duas
horas, depois quatro e depois seis. Parecia não haver uma quantidade de
sono capaz de saciar o meu corpo. Comecei a passar pelas brasas em
ensaios da orquestra e entrevistas de emprego e a falhar prazos a cumprir e
jantares – e, quando acordava, sentia-me ainda mais esgotada. “Nunca me
senti tão cansada na vida”, confessei um dia aos meus amigos quando
íamos para as aulas. “Eu também, eu também”, queixaram-se eles.
Andávamos todos cansados. No último semestre, já tínhamos assistido a
mais nasceres do sol do que no resto das nossas vidas, resultado de uma
combinação de longas horas passadas na biblioteca a acabar as nossas
teses, em acumulação com festas regadas com muito álcool, que se
prolongavam até à alvorada. Eu vivia no coração do campus de Princeton,
no último piso de um dormitório em estilo gótico, coroado por torreões e
gárgulas que faziam caretas. No fim de mais uma noite comprida, os meus
amigos costumavam juntar-se no meu quarto para um último copo. Era um
quarto com grandes janelas, tipo catedral, e gostávamos de nos sentar nos
parapeitos, com as pernas a balançar sobre o vazio, a observar os
noctívagos embriagados que regressavam a casa e os primeiros raios de
luz âmbar a tocar nos pátios empedrados. Com o fim do curso à vista,
estávamos todos decididos a saborear essas semanas finais juntos, antes de
nos separarmos, mesmo que isso significasse levar os nossos corpos ao
limite.
E, no entanto, eu estava preocupada com a possibilidade de a minha
fadiga poder ser uma coisa diferente.
Sozinha, na cama, depois de todos terem saído, sentia que por baixo da
minha pele se desenrolava um grande banquete, que existia qualquer coisa
a abrir o seu caminho pelas minhas artérias, a devorar a minha saúde. Com
a minha energia a evaporar-se e a comichão a intensificar-se, tentei
convencer-me de que era o apetite do tal parasita que estava a aumentar.
Mas, no fundo, duvidava que houvesse um parasita. Comecei a pensar se o
verdadeiro problema não era eu.
*

Nos meses que se seguiram, senti-me como que perdida no meio do mar,
quase a afundar-me, desesperadamente à procura de qualquer coisa capaz
de manter-me à tona. Durante um tempo, consegui. Acabei o curso e
juntei-me aos meus colegas num êxodo em massa para Nova Iorque.
Encontrei na Craiglist um anúncio de um quarto vago num grande loft em
Canal Street, por cima de uma loja de artigos artísticos. Estávamos no
verão de 2010 e uma vaga de calor tinha sugado o oxigénio da cidade
inteira. Quando saía do metro, o pivete do lixo a apodrecer atingia-me
como uma bofetada na cara. Os suburbanos e as hordas de turistas em
busca de malas de estilistas a preços de arrasar acotovelavam-se nos
passeios. O apartamento era num terceiro andar sem elevador e quando
consegui arrastar a mala até à porta da frente, o meu top branco já estava
transparente por causa da transpiração. Apresentei-me aos meus novos
colegas de quarto. Eram nove. Andavam todos na casa dos vinte anos e
eram aspirantes a qualquer coisa: três atores, dois modelos, um chef, um
designer de joias, um aluno em pós-graduação e um analista financeiro.
Oitocentos dólares por mês pagavam, para cada um de nós, uma fração
sem janelas, separada das outras por uma divisória finíssima que um
especulador imobiliário erguera para retirar do seu investimento o máximo
possível.
Eu tinha conseguido um estágio de verão no Centro de Direitos
Constitucionais e quando apareci, no primeiro dia, senti-me diminuta ao
partilhar a sala com alguns dos mais temerários advogados de direitos
civis do país. O trabalho transmitia a sensação de ser importante, mas o
estágio não era pago e viver em Nova Iorque era como andar com um
buraco enorme na carteira. Depressa estoirei os dois mil dólares que tinha
poupado ao longo do ano escolar. Estava a conseguir sobreviver com
dificuldade, mesmo com os trabalhos de babysitting e os turnos da noite
em restaurantes.
Enchia-me de terror imaginar o futuro, em que estava tudo em aberto,
mas vazio. Nos momentos em que me permitia sonhar acordada, isso
também me enchia de entusiasmo. As possibilidades – quem me podia
tornar e onde podia chegar – pareciam-me infinitas, como uma fita a
desenrolar-se até onde os meus olhos não conseguiam alcançar. Pensei
numa carreira como correspondente internacional na África do Norte, de
onde é o meu pai e onde vivi em criança por um breve período. Também
me passou pela cabeça a ideia de fazer direito, o que parecia ser um
caminho mais prudente. Para ser sincera, precisava de dinheiro. Eu só
tinha conseguido frequentar uma faculdade da Ivy League porque tinha
ganho uma bolsa que pagou todas as despesas. Mas aqui, no mundo real,
não tinha o mesmo género de redes de segurança de muitos dos meus
colegas – fundos de educação, ligações familiares ou empregos em Wall
Street com rendimentos acima dos cem mil dólares anuais.
Era mais fácil pensar na incerteza que estava por diante do que enfrentar
outra mudança que seria ainda mais perturbante. No último semestre, para
combater o cansaço, tinha emborcado bebidas energéticas cheias de
cafeína. Quando deixaram de funcionar, um rapaz com quem andei pouco
tempo deu-me umas anfetaminas para sobreviver aos exames finais. Mas
depressa isso também deixou de resultar. No meu círculo de amigos, a
cocaína corria nas festas e aparecia sempre alguém a oferecer de graça
uma linha. Quando comecei a aceitar, ninguém disse nada. Os meus
companheiros de quarto em Canal Street também eram tipos que
gostavam de festas à séria. Comecei a tomar psicostimulantes da mesma
maneira que há pessoas que bebem cafés duplos – como um meio para
atingir um fim, uma maneira de superar a minha exaustão crescente. No
meu diário, escrevi: Ficar à tona.
*

Quando o verão estava a chegar ao fim, eu já tinha dificuldade em


reconhecer-me. O som abafado do despertador irrompia como uma faca
romba pelo meu sono sem sonhos. Todas as manhãs, arrastava-me para
fora da cama e punha-me em pé diante do espelho alto, a fazer um
inventário dos estragos. Havia arranhões e fios de sangue seco a cobrir as
minhas pernas em sítios novos. O meu cabelo caía até à cintura em ondas
sem jeito, caóticas, que eu estava demasiado cansada para escovar.
Debaixo de grandes olhos raiados de sangue, iam-se tornando mais e mais
profundas as olheiras escuras em meia-lua. Demasiado fatigada para
enfrentar a luz do sol, comecei a aparecer no estágio cada vez mais tarde,
até que, um dia, deixei de aparecer de todo.
Eu não gostava nada da pessoa em que estava a tornar-me – uma pessoa
que mergulhava de cabeça em cada dia, sempre em movimento, mas sem
qualquer sentido de direção; uma pessoa que, noite após noite, tinha de
reconstituir momentos de perda de consciência, como se fosse um detetive
privado; uma pessoa demasiado envergonhada para atender os
telefonemas dos pais. Pensava: Isto não sou eu, e olhava com repulsa para
a minha imagem. Precisava de mudar tudo. Precisava de encontrar um
emprego a sério, com um salário a sério. Precisava de alguma distância
dos meus colegas de faculdade e dos meus companheiros de casa.
Precisava como tudo de sair de Nova Iorque – e o mais depressa possível.
Numa manhã de agosto, uns dias depois de me ter despedido do estágio,
levantei-me cedo, levei o portátil para a escada de serviço e comecei a
procurar emprego. Tinha sido um verão sem chuva e o sol estava
escaldante, queimava-me a pele, deixava-me nas pernas pequenas
manchas, como braille, nos sítios onde coçar tinha deixado cicatrizes.
Chamou-me a atenção o anúncio para um emprego de assistente num
escritório norte-americano de advogados em Paris e decidi responder por
impulso. Passei o dia inteiro a trabalhar na carta de apresentação. Fiz
questão de sublinhar que o francês era a minha primeira língua e que
também falava árabe, esperando que isso me desse uma vantagem
competitiva. Não era o meu ideal de emprego – para dizer a verdade, nem
sabia bem quais eram as funções –, mas parecia o tipo de coisa que uma
pessoa sensata faria. Acima de tudo, pensei que a mudança de cenário
podia salvar-me de um comportamento cada vez mais imprudente.
Mudar para Paris não estava na minha lista de coisas a fazer: era o meu
plano de fuga.
Umas noites antes de deixar de vez Nova Iorque, dei por mim na minha
terceira festa do dia, onde banqueiros de investimento, de colarinhos
levantados, se acocoravam à frente de linhas de coca grossas como
lagartas, a transpirar, falando animadamente das suas carteiras de ações,
das casas que alugavam no verão em Montauk e coisas do género. Eram
cinco da manhã e esta não era a minha cena. Queria ir para casa.
Sozinha, no passeio, banhada pelo fumo azul do meu cigarro, vi o céu
noturno começar a clarear à minha volta. Manhattan dormia, nesse
brevíssimo momento de tranquilidade entre o fim da ronda dos camiões do
lixo e a abertura dos cafés. Estava à espera de um táxi há dez minutos
quando um rapaz que reconheci da festa passou por mim e me pediu um
cigarro. Era o último, mas dei-lho. Ele acendeu-o, fazendo uma concha
com a mão, grande como uma luva de beisebol, em volta da ponta. Sorriu
ao expelir o fumo, enquanto nós os dois trocávamos de um pé para o outro
e nos olhávamos timidamente e, depois, para a rua deserta.
“Queres partilhar?”, perguntou ele. Um táxi solitário encaminhava-se
para nós e a pergunta parecia bastante inocente, por isso, respondi “claro
que sim” e entrámos. Só depois de ter dado a minha morada ao motorista é
que me lembrei que ele me tinha pedido para partilhar a corrida de táxi
sem saber para onde é que eu ia.
Eu estava mais do que avisada para não entrar em carros com homens
desconhecidos. O meu pai, que tinha vivido em East Village nos anos 80,
quando a cidade estava infestada pelo crime, teria desaprovado
veementemente. Mas havia naquele rapaz qualquer coisa que transmitia ao
mesmo tempo segurança e mistério. O cabelo, desalinhado e aclarado pelo
sol, caía-lhe sobre olhos azuis e inteligentes. Magro, de queixo quadrado e
com uma covinha no rosto, era claramente bonito, mas tinha uma postura
terrível, movendo-se com uma humildade que sugeria que não tinha
consciência da sua aparência.
– Podes muito bem ser a pessoa mais alta que eu já conheci – disse-lhe,
estudando-o pelo canto do olho. Com quase um metro e 90, ele ia sentado
com os joelhos cravados nas costas do banco do motorista.
– Já ouvi dizer – respondeu. Falava com suavidade e, apesar do seu
tamanho, havia nele gentileza.
– Prazer em conhecer-te. Eu chamo-me…
– Falámos antes, lembras-te?
Encolhi-me, antes de lhe lançar um sorriso de desculpas.
– Tem sido uma noite comprida…
– Não te lembras de quando tentaste mostrar-me o interior da tua
pálpebra? Ou quando recitaste o Mary had a little lamb em latim? –
brincou. – E quando despejaste por cima da cabeça aparas de lápis e só
dizias cascarones! de uma maneira assustadora? Não te lembras de nada
disso?
– Ah, ah. Muito engraçado – afirmei, dando-lhe a brincar um soco no
braço. Foi aí que percebi que estávamos num jogo de sedução.
Ele inclinou-se para me apertar a mão.
– Chamo-me Will.
Fomos a falar todo o caminho para a baixa e a química entre nós ia
aumentando a cada quarteirão. Quando chegámos ao meu prédio, saímos
os dois do táxi e ficámos no passeio: eu a pensar se o devia convidar para
subir e ele demasiado educado para sugerir isso. Nunca tinha ido para a
cama com um estranho – já tinha tomado algumas decisões duvidosas,
mas sempre fora um tanto romântica e monógama em série. Mas estava
tentada. Pensei nisso por um instante.
– Tens fome? – perguntou o Will.
– Estou esfomeada – respondi. Aliviada, puxei-o para longe da porta de
entrada do prédio. Caminhámos por Canal Street, pelos grandes salões de
cabeleireiro ainda de portas fechadas, pelos patos assados pendurados nas
montras das charcutarias e pelos vendedores de fruta que iam montando as
bancas nos passeios. Entrámos no cafezinho do bairro. Éramos os
primeiros clientes do dia.
Entre café e bagels, o Will começou a contar-me que tinha chegado há
pouco da China, onde trabalhara para uma organização desportiva, a
promover programas de captação de atletismo para jovens. Fiquei
impressionada quando me disse que falava mandarim. Para já, estava a
ficar em casa dos padrinhos e ia pensar umas semanas no que havia de
fazer a seguir. Era sincero e brincalhão, com piadas um bocadinho patetas,
quase próprias de um pai. Mas, por baixo dessa fachada descontraída,
senti que o Will estava um pouco perdido – e mais do que um pouco
vulnerável. Duas horas depois ainda ali estávamos, sempre a falar. Quando
nos levantámos para sair, lembro-me que pensei: Gosto mesmo de ti. E o
segundo pensamento foi: É pena irmos viver em continentes diferentes.
Depois do pequeno-almoço, o Will e eu fizemos o caminho de volta
para o meu prédio e subimos as escadas para o meu quarto. Passámos o
dia inteiro na cama, a dormir, a conversar e a brincar. Estava habituada a
tipos que eram agressivamente assertivos e vinham armados com um
arsenal de frases de engate já muito testadas, mas o Will parecia feliz por
estar ali apenas deitado ao meu lado. Quando, ao fim de várias horas, ele
ainda não tinha tentado beijar-me, virei-me para ele e fiz o primeiro
movimento. Tivemos então a nossa one-night stand – só que acabaram por
ser duas noites, e depois três. Com ele, era diferente. Eu deixava as luzes
acesas. Não sentia a necessidade de esconder o que quer que fosse. Ele era
o género de pessoa que faz com que olhemos com mais benevolência para
aquelas partes de nós que detestamos. Era o tipo de pessoa que, se as
circunstâncias tivessem sido diferentes, eu teria dedicado tempo a
conhecer bem.
Na minha última manhã em Nova Iorque, havia uma luz cor de limão a
filtrar-se pela janela da cozinha enquanto eu fazia café. As buzinadelas
zangadas dos táxis e os suspiros dos autocarros eram audíveis muito,
muito ao fundo. Entrei com cautela no quarto, recolhi umas últimas peças
de roupa e enfiei-as na mala. Enquanto a fechava, olhei para a silhueta
esguia do Will, embrulhada nos lençóis, e para o seu rosto, que era o
reflexo de um sono angelical. Ali deitado, parecia numa tal paz que não
quis acordá-lo. Uma infância passada em mudanças tinha-me deixado
farta de despedidas. Antes de sair, deixei uma nota nos sapatos dele, onde
escrevi: “Obrigada por este divertimento inesperado. Os nossos caminhos
voltarão um dia a cruzar-se, inshallah.”
2

MÉTRO, BOULOT, DODO

Se Manhattan é o lugar para onde as pessoas vão para dar um empurrão às


suas carreiras, então Paris é o sítio para onde vão viver a fantasia de uma
vida diferente – e era exatamente isso o que eu tencionava fazer. Saí do
métro para as ruas do bairro de Le Marais a arrastar a minha mala
vermelha, bem cheia, parando de poucos em poucos metros para espreitar
os cafés, as padarias e as fachadas cobertas de hera do meu novo bairro.
Graças a um amigo de um amigo, tinha tido a sorte de encontrar um
estúdio mobilado para arrendar, num prédio do século XVIII da rua
Dupetit-Thouars. Meti-me no elevador de carga, em ferro forjado, e subi
ao terceiro andar. Quando abri a porta, o contraste entre Canal Street e a
minha nova casa fez-me querer dançar de alegria logo ali, no tapete de
entrada. Luz! Silêncio! Privacidade! Soalho em madeira! Uma banheira
cor-de-rosa gigante em forma de concha! O apartamento não teria mais de
quarenta metros quadrados, mas parecia-me um palácio – e era todo meu.
Passei o fim-de-semana a instalar-me, a desempacotar, a abrir uma conta
bancária, a comprar lençóis novos e a dar uma grande limpeza na cozinha.
Na segunda-feira de manhã, apanhei o métro para a firma de advogados,
que ficava numa vivenda elegante junto ao Parc Monceau, no oitavo
arrondissement. Umas estagiárias receberam-me no lobby e fizeram-me
uma visita de apresentação, com os saltos a baterem no chão de mármore
branco polido. Desde adolescente que eu já tinha tido todo o tipo de
trabalhos – passeadora de cães, babysitter, assistente pessoal, professora
de contrabaixo, empregada de restaurante –, mas esta era a primeira vez
que me encontrava num ambiente de empresa. O escritório tinha tetos a
seis metros, ombreiras de portas trabalhadas e molduras douradas, além de
uma grande escadaria que dava curvas. Os advogados estavam sentados às
secretárias de madeira, com um cigarro numa mão e um café expresso na
outra, o que me pareceu muito francês e muito chique. Ao meio-dia, fui
com um grupo ao café da esquina, para um almoço demorado: pedimos
bifes e duas garrafas de vinho, por conta da empresa. Quando regressei,
deram-me um BlackBerry de trabalho e mostraram-me o armário com o
material de escritório. Equipada com uma pilha de blocos amarelo-claro e
canetas sofisticadas, sentei-me à minha secretária, a sentir-me muito
crescida enquanto me reclinava na cadeira e acendia um cigarro, olhando
em redor deliciada.
Ao fim do primeiro dia de trabalho, em vez de apanhar o metropolitano,
decidi ir a pé para casa. Ao entardecer, as ruelas estreitas e retorcidas do
Marais ganhavam uma atmosfera medieval. Os candeeiros das ruas
tremelicavam e iluminavam-se. Enquanto deambulava, fantasiava sobre a
pessoa que podia agora tornar-me. Para trás, tinham ficado os amigos que,
na verdade, não eram realmente meus amigos – apenas pessoas com um
grande apetite por confusão e por noitadas. Até a comichão parecia ter
diminuído. Com um oceano a separar-me de tudo aquilo, imaginei-me a
passar fins-de-semana tranquilos e solitários a explorar a cidade, a fazer
piqueniques no Jardim das Tulherias e a ler um bom livro num pequeno
café que tinha descoberto mesmo ao virar da esquina. Ia arranjar uma
bicicleta com um cesto que encheria todos os domingos de mercearias
compradas no mercado ao ar livre da Place de la République. Começaria a
usar bâton vermelho e saltos altos, como as outras estagiárias. Aprenderia
a cozinhar o famoso cuscuz da minha tia Fatima e daria jantares na minha
casa nova. Decidida a gastar menos tempo a falar das coisas que queria
fazer e mais tempo a fazê-las de facto, ia inscrever-me num dos
workshops de escrita de ficção na Shakespeare and Company, a livraria
famosa nas margens do Sena. Talvez até arranjasse um cão, um King
Charles Spaniel gordinho; dava-lhe o nome de Chopin.
O problema é que eu não tinha tempo livre e, nos poucos domingos em
que consegui ir ao mercado, os produtos acabaram guardados no
frigorífico até apodrecerem cheios de bolor. O que se passou é que fui
atirada para uma vida que os franceses descrevem como “métro, boulot,
dodo” (metro, trabalho, sono). No fim da primeira semana de trabalho já
era para mim evidente que não tinha sido talhada para uma carreira na
área jurídica. Preferia a escrita criativa aos gráficos – e sandálias
Birkenstock a saltos altos. A firma era especializada em arbitragem
internacional, o que inicialmente até me tinha parecido interessante, mas
sempre que tentava ler os relatórios que chegavam à minha secretária o
jargão legal surgia-me como inescrutável e o seu conteúdo era de um
aborrecimento capaz de entorpecer o espírito. Eu passava a maior parte
dos dias no escritório da cave, a fazer revisões, prints e a reunir milhares
de documentos em pastas impecavelmente organizadas, para que os
advogados pudessem ajudar empresas sem alma a enriquecer ainda mais.
Como esperavam de mim disponibilidade total, vinte e quatro horas por
dia, sete dias por semana, dormia com o telemóvel de trabalho na
almofada e marcava o despertador para horas a meio da noite, para poder
ver se havia emails urgentes. Muitas vezes nem conseguia sair do
escritório; nós, estagiários, fazíamos tantas noitadas a trabalhar, que
começámos a contabilizar. Para cúmulo disto tudo, tinha um chefe
sinistro, que guardava na gaveta da secretária catálogos de sapatos de
mulher e que, quando pensava que eu não estava a ver, me fotografava os
pés com o telefone. Depois de fazer mais uma semana de noventa horas de
trabalho, a minha maneira de descontrair era pegar a correr numa
napolitana de chocolate e sair para dançar. No final de uma noite longa,
arrastava quem quer que estivesse comigo para um velho clube de jazz
chamado Aux Trois Mailletz, onde cantávamos desafinados ao piano e
bebíamos vinho até os lábios ficarem roxos.
*

A minha vida em Paris não era a fantasia que eu tinha imaginado, mas
comecei a engendrar uma versão diferente. A minha correspondência com
o Will começou de maneira inesperada: os SMS a dizer “olá-então-como-
vais?” transformaram-se em trocas de emails longos e cheios de humor, a
que se seguiram envelopes gordos cheios de cartas escritas à mão e de
recortes da New Yorker com anotações inteligentes. O Will enviou-me um
postal de uma cabana nas Montanhas Brancas de New Hampshire, onde
fora passar um fim de semana com amigos. Escreveu: “Eletricidade zero,
um fogão a lenha do início do século XX e nada de sons, exceto os
mochos, a lenha a crepitar e o vento. Fez-me querer andar pelas estradas
secundárias dos EUA. Queres fazer uma road trip?” A ideia de nós os
dois, em viagem pelos Estados Unidos, pôs o meu coração a dançar.
No fim das cartas, despedíamo-nos sempre da mesma maneira: “Não é
preciso responder com uma quantidade igual de palavras.” Mas, com a
passagem das semanas e dos meses, as nossas trocas de cartas tornaram-se
mais profundas e mais frequentes. Eu lia cada carta dele uma vez, e mais
uma, e depois outra, como se fossem mapas em código contendo pistas e
dicas secretas sobre a pessoa que empunhava a caneta. Contei ao Will
sobre o meu caminho um tanto transviado desde que tinha acabado o
curso e sobre a minha vida nova no estrangeiro: “Passei as minhas
primeiras trinta e seis horas em Paris em solidão total, com o meu portátil
e o telemóvel desligados. Caminhei por toda a cidade, até que um salto de
um sapato se partiu e tive de apanhar um táxi para casa.” Apesar de todas
as minhas tentativas para levar uma vida mais ascética, tinha encontrado
um novo grupo de amigos – Lahora, uma yogi viúva; Zack, um antigo
colega de faculdade que tinha aulas de mímica; Badr, um jovem homem
de negócios marroquino que adorava sair para ir dançar; e David, um
expatriado, mais velho, que se vestia como se fosse um playboy
internacional e organizava festas extravagantes. “Não se consegue impor a
solidão a uma alma que precisa de voar”, respondeu-me o Will. Com uma
resposta destas, era possível não ficar encantada?
Contei ao Will o meu sonho de me tornar jornalista e mostrei-lhe um
ensaio sobre o conflito israelo-árabe em que andava a trabalhar há meses.
Que coincidência, respondeu-me; ele também tinha ambições
jornalísticas. Tinha começado há pouco tempo como assistente de
investigação de um professor, mas estava à espera de encontrar uma vaga
como editor. Enviou-me várias indicações pertinentes sobre aspetos a
rever no meu trabalho. Apesar do tempo que tínhamos passado juntos na
minha última semana em Nova Iorque, estes pequenos momentos de
ligação foram para mim uma surpresa, porque foi apenas pelas cartas que
começámos realmente a conhecer-nos. Esta nossa correspondência
antiquada era uma alternativa mais honesta e mais segura aos jogos do
gato e do rato da sedução. Em pouco tempo, tinha-me afeiçoado de tal
maneira ao meu amigo das cartas que ele era a única coisa em que
pensava, com que sonhava e falava. Esperava que, para lá das linhas
escritas, pudesse ser uma pessoa tão maravilhosa como a que eu imaginara
a partir das palavras.
*

Numa tarde de fim de outono, depois de um dia invulgarmente parado no


escritório, estava a conversar com a Kamilla, a estagiária com quem
partilhava a secretária, sobre se devia convidar o Will a vir visitar-me a
Paris. Eu não sabia se o subtexto romântico nas nossas cartas estava só na
minha cabeça, mas preocupava-me que, se eu não tomasse uma iniciativa
depressa, a troca de correspondência se fosse esfumando. Demorei uma
hora inteira à volta de rascunhos de uma carta para o Will, tentando chegar
ao tom certo, qualquer coisa entre um entusiasmo genuíno e uma
descontração cool.
– Allez, ma chérie, courage, por este andar vais ficar aqui a noite inteira
– disse-me a Kamilla, fazendo-me uma festa na cara antes de se ir embora.
Quando me decidi por uma versão final, já estava escuro lá fora e o
escritório quase vazio. Contei até dez, sentindo-me mais do que imatura
enquanto hesitava em fazer Send. Quando finalmente reuni a coragem
para isso, senti uma enorme emoção – que foi rapidamente eclipsada pela
ansiedade de esperar pela resposta dele. O tempo parecia escoar-se
lentamente. Fumei meio maço de Gauloises, naveguei pela Internet,
reorganizei a secretária. Às nove, por fim, apanhei o métro para casa.
Verifiquei o email. Ainda nada. Enquanto preparava um jantar de torradas
com Nutella, a minha cabeça andava a mil à hora: tinha exagerado? Tinha
lido mal o que havia no ar? Resolvi tomar um banho antes de ir para cama
e então, se ainda não houvesse resposta, ia eliminá-lo da minha cabeça.
Olhei uma última vez para o email à meia-noite. Havia uma mensagem
na caixa de entrada. Quando a abri, vi que era uma confirmação de voo
reencaminhada. Destino: Paris, França.
*

O Will chegou um pouco menos de um mês depois, mesmo a tempo de


celebrarmos o Dia de Ação de Graças. Passei o fim de semana anterior
num frenesi de preparativos. Esfreguei a banheira até reluzir, eliminei do
soalho todos os vestígios de pó e levei os lençóis à lavandaria. Fui ao
Marché des Enfants Rouges e comprei um pão e um grande Camembert
cheiroso, mais um frasco de pepinos em conserva, arranjei produtos de
charcutaria e um ramo de alfazema seca. A caminho de casa ainda comprei
vinho e, à última hora, entrei no salão do outro lado da rua para um corte
de cabelo de que andava a precisar havia muito. Na manhã da chegada do
Will, levantei-me de madrugada e mudei de roupa nada menos de seis
vezes, antes de me decidir pelo meu melhor par de jeans, uma camisola
preta de gola alta, justa, e pelas minhas argolas da sorte. Quando fui para o
aeroporto, já estava quase uma hora atrasada.
Eu corria e os saltos das minhas botas batiam com força no passeio
molhado da rua Dupetit-Thouars, varrida por vento e neblina. Estava
quase na entrada do métro quando ouvi uma mensagem a entrar no
telefone. Era o Will, a dizer que o voo tinha chegado mais cedo e que
tinha apanhado um táxi direto para minha casa. Alguém lhe abrira a porta
do prédio e ele estava à minha espera à entrada do meu apartamento.
Sempre a correr, mas agora de regresso ao meu prédio, subi os degraus a
dois e dois e fiz uma pausa quando cheguei ao segundo andar, para me
recompor e ficar com um pouco de fôlego. O meu coração batia como um
metrónomo acelerado, a testa latejava, a respiração estava ofegante. Nas
últimas semanas, tinha notado que parecia cansar-me com mais facilidade.
Tomei nota mentalmente para me inscrever num ginásio. Sacudindo o
cabelo da cara, respirei muito profundamente e virei a esquina.
– Ei! Ei! – gritou o Will quando me viu, endireitando-se e abrindo um
grande sorriso, com os dentes à mostra. Hesitámos um momento antes de
nos abraçarmos, os dois subitamente demasiado tímidos para ensaiarmos
um beijo, até na cara. Envolvida nos braços de um homem que, não sendo
um estranho, não era muito menos do que isso, senti, pela primeira vez em
meses, que pisava terreno firme.
– Bienvenu – disse-lhe quando nos desabraçámos, e empurrei-o porta
dentro. O meu estúdio era pequeno. Tirando a cozinha e a casa de banho,
era só uma divisão.
– O quarto é aqui – disse, apontando para a cama no espaço aberto. –
A sala é aqui. – E apontei para o sofá vermelho vivo. – A sala de jantar é
aqui – acrescentei, mostrando-lhe a velha arca de porão que também fazia
as vezes de mesa de café, secretária e armário.
Este era o primeiro lugar em que tinha vivido sozinha e, embora fosse
um pouco espartano e eu ainda não tivesse tido tempo para comprar
cortinas, tinha orgulho nele.
– E voilà! – disse-lhe, ao abrir as janelas grandes para revelar uma
pequena varanda e concluir a visita guiada.
– O melhor – confirmou o Will.
O resto desse dia está envolvido numa névoa – e aparece-me em
instantâneos: a conversa nervosa na sala enquanto bebíamos café, as
dezenas de presentes, embrulhados um a um, que o Will pôs em cima da
arca, o passeio demorado à beira do Sena, onde rimos ao ver estudantes
dos Estados Unidos com boinas e a falarem um francês péssimo.
– Nem sequer penses beijar-me aqui – avisei-o, quando atravessámos a
Pont des Arts, onde casais de namorados prendem cadeados à rede. Foi só
no fim dessa noite, depois de uma garrafa de vinho tinto nos ter acalmado
os nervos, que ele me beijou.
Subimos a escada para a cama, uma estrutura barata e improvisada feita
de quatro postes de madeira e de uma instável plataforma de
contraplacado que o inquilino anterior tinha montado, e cuja segurança era
duvidosa. Quando nos deitámos lado a lado, a sensação foi diferente da
daquelas três noites que tínhamos partilhado em Nova Iorque. Havia no ar
uma ternura desajeitada no momento em que nos despimos. A luz do luar
entrava pela janela e dava uma tonalidade prateada às cicatrizes nas
minhas pernas. Por baixo de nós, os postes da cama abanavam.
– Maldito sejas, IKEA – exclamei.
– E se a cama cair? – O Will estava mesmo preocupado.
– Imagina o meu pai a ler amanhã os títulos dos jornais: CASAL DE
AMERICANOS NUS ENCONTRADO MORTO NUM MONTE DE
DESTROÇOS IKEA.
O Will desceu logo a escada.
– Só um segundo, preciso de inspecionar aqui isto.
Viu se os parafusos estavam bem apertados e, enquanto eu ria, abanou e
agitou a estrutura.
– É uma avaliação sísmica!
Ao fim da sua visita de duas semanas, o Will regressou a Nova Iorque,
mas apenas para fazer as malas e se despedir do emprego. “Ele vai mudar-
se para Paris para estar comigo”, escrevi no meu diário, várias vezes, até
que começou realmente a parecer verdade. Sentada no métro, a caminho
do trabalho, um sorriso idiota abriu-se no meu rosto. “A alegria é uma
emoção assustadora, não se deve confiar nela”, acrescentei nessa mesma
página. É que, debaixo da alegria, havia uma tempestade a ganhar força, o
presságio de uma turbulência, uma qualquer selvajaria húmida e escura a
desenvolver-se sob a minha pele.
3

CASCAS DE OVO

Desde os dezassete anos que não estava solteira por mais de um mês ou
dois. Não era coisa de que me orgulhasse e nem sequer pensava que fosse
saudável, mas era assim que as coisas tinham acontecido. Na
universidade, estive a maior parte do tempo numa relação séria com um
rapaz de origem britânica e chinesa, um brilhante finalista de literatura
comparada. Foi o meu primeiro namorado a sério e levou-me a jantar fora
a sítios elegantes na cidade e de férias à praia de Waikiki, mas à medida
que os semestres foram passando eu fui ficando inquieta, a desejar ter tido
mais experiência antes de o conhecer. No verão antes do último ano, essa
relação acabou quando tive uma paixão intensa por um jovem cineasta
etíope. Depois disso, foi um tipo de Boston que encontrei no Cairo quando
estava a fazer investigação, numa pausa escolar de inverno. Ele tinha a
tendência para pregar partidas de grande dimensão, e para ativismo – e
acabara de ser preso depois de desfraldar uma bandeira palestiniana com
nove metros na face de uma das pirâmides. Uma semana depois, enquanto
bebíamos whisky de fabrico caseiro num bar com vista para o Mar
Vermelho, ele ligou aos pais.
– Falem com a rapariga com quem vou casar – anunciou, passando-me o
telefone antes que eu pudesse protestar. Acabei com ele não muito tempo
depois disso. Já perto do fim do curso, comecei a andar com o mexicano-
texano aspirante a argumentista. Namorámos durante dois meses
desastrosos em Nova Iorque, enquanto eu fazia trabalho de estágio e ele
servia à mesa num hotel da moda na baixa. Quando bebia tornava-se uma
pessoa má – e na maior parte do tempo estava embriagado.
Não havia nestas relações nada de casual. Quando as vivia, estava
completamente envolvida nelas, consumida pela ideia de uma vida em
conjunto. Mas, mesmo nos períodos mais intensos, tinha a consciência de
que à distância, a brilhar levemente, havia um sinal a dizer “saída” – e a
verdade é que eu estava sempre à beira de desatar a correr para ele. Estava
apaixonada pela ideia de estar apaixonada. Outra maneira de contar isto é
dizer que eu era jovem: demasiado impulsiva e destemida com as emoções
dos outros, muito centrada em mim e focada no que me esperava a seguir
para aceitar viver de promessas quebradas.
Com o Will, era diferente. Ele não era como nenhum dos homens com
quem eu tinha estado. Possuía uma estranha combinação de caraterísticas
– parte atleta, parte intelectual, parte palhaço da turma – e era tão capaz de
fazer um grande afundanço a jogar basquete como de recitar versos de
poemas de W. B. Yeats. A sua consideração pelos outros tocava-me, a
maneira como procurava sempre que todos os presentes numa sala se
sentissem à vontade. Cinco anos mais velho do que eu, tinha uma
sabedoria tranquila e da qual não fazia alarde e um espírito divertido que o
fazia parecer ao mesmo tempo bastante mais velho e mais novo do que a
idade que realmente tinha. No momento em que o Will voltou a aparecer à
porta do meu apartamento em Paris, agora com um enorme saco de lona
no qual tinha enfiado tudo o que tinha, o tal aviso de saída desapareceu
completamente do cenário. Eu estava completamente dentro daquela
relação.
*

O Will tirou as roupas do saco, dobrou-as e colocou-as em pilhas muito


alinhadas na estante que eu tinha esvaziado para arranjar lugar para as
coisas dele. Vasculhando no saco, tirou uma coluna portátil e perguntou se
podia pôr uma música. Um hip-hop dos anos 90, com Warren G em alta
rotação, soou no apartamento. O riso crescia em mim enquanto ele ia
acompanhando a letra em jeito de rap, enquanto dançava sobre as tábuas
do chão. Pegou-me na mão e fez-me girar na cozinha, quase deitando ao
chão uma frigideira.
– Estás a distrair-me – disse, enxotando-o com um pano da loiça.
Estava a fazer para o almoço uma empada de carne, esperando
impressioná-lo com os meus dotes culinários. Com grande concentração,
cortei as cenouras, salteei as chalotas, alourei a carne e esmaguei as
batatas. Além de ovos mexidos, de uma tigela de massa de vez em quando
e do meu jantar de torradas com Nutella, este era o primeiro prato que eu
tinha tentado fazer desde o princípio – e, nessa manhã, tinha telefonado à
minha mãe a pedir-lhe a receita. A cozinha era do tamanho de um pequeno
armário e, sem janelas nem um exaustor, fazia um calor tremendo. Eu
limpava a testa com o pano da loiça e gotas de transpiração voltavam
imediatamente a aparecer. Pus os ingredientes todos num tabuleiro e
espalhei por cima um pouco de queijo antes de levar tudo ao forno.
Passado pouco tempo, já o apartamento cheirava a manteiga e ervas
frescas. Pela primeira vez, cheirava como uma casa a sério.
Na outra divisão, o Will punha a mesa em cima da arca. Fui ter com ele
e abri a janela para deixar entrar um pouco de ar. Tinha começado a nevar
e alguns flocos preguiçosos flutuaram para dentro de casa. Ele aproximou-
se da janela, abraçou-me pela cintura e puxou-me de encontro a si.
– Amanhã, começo à procura de trabalho – disse, mergulhando a cara no
meu cabelo. – Também devia procurar uma escola de línguas, um sítio
onde possa ter aulas, pelo menos até aprender francês suficiente para
conseguir dizer: “Dê-me por favor três baguettes e uma Orangina.”
Sentia nas minhas costas os músculos do seu peito, fortes e quentes.
Fechei os olhos, encaixei-me nele e tentei recordar-me da última vez que
me tinha sentido assim feliz. Não fui capaz.
– Não te mexas – disse o Will, recuando. Foi à estante, pegou na sua
máquina e fotografou-me em frente da janela, com a minha silhueta
recortada no céu de inverno. Quando me mostrou a foto, fiquei assustada
com o meu aspeto. A minha pele parecia tão pálida que era quase
translúcida. As minhas pálpebras estavam da cor de um daqueles ovos
azuis dos tordos, como se todas as veias tivessem ascendido à superfície.
Até os meus lábios pareciam exauridos da força da vida.
– São da cor de pérolas – afirmou generosamente o Will, e beijou-os.
*

Duas semanas mais tarde, o Will fez vinte e sete anos. Para celebrar a
mudança dele e o aniversário, tirei umas folgas e surpreendi-o com um
envelope com dois bilhetes de comboio para Amsterdão. Estávamos em
janeiro de 2011 e quando saímos da estação a nossa respiração fazia rolos
de vapor no ar frio da manhã. Queríamos explorar a cidade a pé. Havia
vários pontos no itinerário: uma visita à casa de Anne Frank, uma paragem
no mercado para provar arenque em picle e uma viagem de barco pelos
canais. Mas não fomos muito longe. Mais ou menos de quarteirão em
quarteirão eu tinha de parar. Uma tosse profunda sacudia-me o corpo,
deixava-me tonta e de cabeça à roda, com as têmporas a latejar como se
fossem diapasões.
Sentia-me tão arrasada que acabámos por passar a maior parte do fim de
semana no nosso hotel manhoso de duas estrelas no Red Light District. Os
lençóis da cama estavam marcados de queimaduras de cigarro, havia uma
janela sombria que dava para um canal e os estalidos de um radiador meio
avariado ecoavam pelos corredores sinistros. Mas estar apaixonado tem
uma coisa: podemos estar em qualquer lado e sentimos sempre que
estamos a viver uma aventura. Na verdade, quando chegámos, virei-me
para ele e disse, entusiasmada: “É o meu hotel favorito de sempre!”
Embora não estivesse a sentir-me bem, tinha decidido que esta nossa
primeira viagem em conjunto teria de ser memorável. Foi por isso que, na
tarde do dia de anos do Will, estava numa coffee shop numa cave, a
comprar uma lata de cogumelos psicadélicos a um miúdo branco
desengonçado com rastas.
– Vá lá, não sejas careta – disse ao Will, que nunca tinha experimentado
e parecia apreensivo.
– Pronto, está bem – acabou por aceitar. – Se os maias tinham razão,
este vai ser o último ano da humanidade. Vamos fazer isto como deve ser.
Andámos uns quarteirões e entrámos num restaurante etíope para jantar
e, quando o empregado não estava a ver, pus uma mão cheia de cogumelos
no guisado de lentilhas picantes.
– Sabes que és louca, não sabes? – Riu-se enquanto abanava a cabeça
para mim e comia as lentilhas com um bocado de injera.
Havia um nevoeiro baixo a pairar sobre a cidade quando regressámos ao
hotel depois do jantar. Caminhando muito devagar pelas ruas molhadas e
sobre pontes geladas, evitámos ciclistas que faziam soar as campainhas
quando passavam por nós. No Red Light District havia silhuetas a brilhar
por trás de janelas com cortinas. Um semáforo ficou cor-de-laranja,
vermelho, verde – e depois explodiu num arco-íris. De onde estávamos,
conseguia ver o nosso hotel, com o nome em letras de néon a piscar como
brasas. Apressámos o passo, procurando chegar ao quarto antes que a
droga batesse com a força toda. Quando entrámos, os poros da minha pele
tinham-se transformado em pequenas tochas que lançavam chamas.
Arranquei a roupa toda e estendi-me na colcha, tentando arrefecer.
Entretanto, o Will começou a construir um forte, com lençóis e almofadas,
erguendo uma tenda sobre a cama.
– Vem para aqui, é muito gezellig – disse-lhe, dando palmadinhas no
espaço ao meu lado. Gezellig, a intraduzível palavra holandesa, que quer
dizer mais ou menos “aconchegante”, tinha-se tornado a nossa nova
palavra favorita. O Will deslizou para debaixo do amontoado de lençóis e
deitou-se ao meu lado.
– Caramba, estás a arder – disse, pondo a palma da mão na minha testa.
Nesse momento, pensei que isso só queria dizer que a droga estava a
bater – e a bater bem. Mas nas horas que se seguiram a febre foi
aumentando, até parecer que o meu corpo ia entrar em combustão.
Comecei a tremer. Rios de transpiração acumulavam-se em poças nas
covas das clavículas e lembro-me de, pela primeira vez na vida, me ter
sentido frágil.
– É como se fosse feita de cascas de ovos – repeti vezes sem conta. –
Não vamos sair daqui, está bem?
O Will, cada vez mais preocupado, sugeriu que fôssemos às urgências.
– Deixa-me cuidar de ti – disse.
– Non merci, eu sou rija – respondi-lhe, mostrando-lhe os bíceps.
– Podemos apanhar um táxi para lá e num instante estamos de volta,
nem vais dar por isso.
Recusei, abanando a cabeça, até ele desistir. Não queria ser um daqueles
turistas idiotas que vão a Amsterdão, tomam uns cogumelos e acabam no
hospital.
Na tarde seguinte, apanhámos o comboio de volta para Paris. A febre e
as alucinações tinham passado, mas a sensação de fragilidade permanecia.
A cada dia que passava, sentia-me mais fraca, menos vibrante. Era como
se alguém andasse a apagar o meu núcleo vital com uma borracha.
A silhueta do meu velho eu ainda era percetível, mas as minhas entranhas
estavam em mutação – para se transformarem num palimpsesto
fantasmagórico.
4

VIAJAR NO ESPAÇO E GANHAR VELOCIDADE

Em Paris, fui a um médico – pela razão que em geral leva ao médico as


raparigas de vinte e dois anos: os contracetivos. A clínica era um labirinto
sujo de paredes com a tinta a descascar, salas de espera apinhadas e
lâmpadas fluorescentes a piscar no teto. Os doentes, que na maioria
pareciam imigrantes, também de origem norte-africana, falavam entre si
uma mistura de árabe e francês enquanto abanavam bebés agitados ou
folheavam revistas. Olhei em volta e bateram-me saudades de casa.
A transição do meu pediatra, que tinha sempre um chupa no bolso e que
me conhecera quase toda a vida, para esta clínica fria e degradada
recordava-me, de uma forma chocante, que eu, agora, estava por minha
conta. Já não era uma miúda, mas não me sentia pronta para enfrentar o
mundo burocrático e fluorescente da vida adulta.
Finalmente, chamaram o meu nome. Uma enfermeira analista enrolou-
me a manga da camisa e observou-me o braço à procura de uma veia boa.
Eu sempre tive um medo horrível de agulhas. Virei a cara para o lado,
fixei o chão e sustive a respiração enquanto a seringa perfurava a pele.
Pelo canto do olho, vi aparecer vermelho no tubo. Nada de especial,
pensei. Expirei, à medida que a seringa se ia enchendo. Estou quase
despachada.
Mais ou menos uma hora depois, levaram-me ao gabinete do médico,
onde um homem de bigode e de bata estava sentado a uma grande
secretária de madeira. Sentei-me à frente dele.
– O que a traz aqui hoje? – perguntou-me em francês.
– Gostava de começar a tomar a pílula – respondi.
– Não deve haver problema com isso. Olhou para uma folha de papel,
passou os olhos pelos resultados das análises ao sangue e fez uma pausa,
com a sobrancelha ligeiramente erguida. – Antes de falarmos das
diferentes possibilidades, pergunto-me se não tem andado a sentir-se
cansada?
Acenei que sim vigorosamente.
– A análise ao sangue mostra que está anémica, que a sua contagem de
glóbulos vermelhos é baixa. – Devo ter-lhe parecido perturbada. – Não se
preocupe – disse-me – a anemia é muito comum em mulheres jovens.
O seu fluxo menstrual é intenso?
Encolhi os ombros, sem ter a certeza do que seria “intenso”. “Talvez.”
Para mim, ao fim de uma década de dores, qualquer menstruação era
menstruação a mais.
– Então pode ser que seja isso – disse o médico. – Vou passar-lhe a
receita para a pílula e para um suplemento diário de ferro. Em pouco
tempo isso deve dar-lhe mais energia.
*

Na viagem de métro para casa, contei as paragens até à rua Dupetit-


Thouars, ainda tonta pela novidade de regressar a um apartamento e a um
homem que eram meus. Assim que entrei, com as bochechas rijas do frio,
dei um abraço ao Will e depois, enquanto abria uma garrafa de vinho,
contei-lhe da anemia e dos suplementos de ferro.
– É por isso que me tenho andado a sentir horrivelmente fatiguée. –
Sentia-me otimista e sorri-lhe. – Como foi o teu dia?
– A Mila esfolou o cotovelo no carrocel do Champs de Mars e chorou,
mas consegui acalmá-la e ficou tudo bem. Por isso, diria que foi uma
muito bonne journée. O Will tinha começado a ter aulas de francês e a
trabalhar como manny – uma nanny homem –, uma coisa que me proibira
expressamente de lhe chamar, mas que eu fazia sempre que podia. Todas
as tardes, enquanto eu estava no escritório de advogados, ele ia buscar a
Mila, de quatro anos, à pré-escolar e levava-a às suas diversas atividades.
Era uma miúda de bochechas gordinhas e com uma nuvem frisada de
caracóis castanhos. Do que ela gostava mais era de andar às cavalitas do
Will, de onde tinha uma vista aérea do que acontecia na rua, ao mesmo
tempo que mordiscava um croissant e gritava, a quem a quisesse ouvir,
“sou a criança mais alta de Paris!” Enquanto o Will me contava esta
última aventura, eu apanhava-lhe do cabelo migalhas de croissant.
Era uma ocupação temporária, só até ele se orientar em Paris, e embora
não estivesse a fazer uso do seu diploma, parecia não se importar com
isso. Como o dinheiro fixo que recebia era por baixo da mesa, não tinha
de pedir um visto de trabalho – e havia maneiras piores de passar as tardes
do que a descobrir uma cidade estrangeira com uma guia de quatro anos
de idade. Já eu estava menos otimista quanto ao meu trabalho. Tinha
dificuldade em chegar ao fim de cada dia no escritório. Desde que fora
para Paris, a comichão abrandara, mas o cansaço deixava-me tão exausta
que chegava a beber oito cafés expresso por dia. Comecei a ficar
preocupada com a possibilidade de o meu cansaço profundo ter outra
causa. Talvez não seja simplesmente capaz de vencer no mundo real,
escrevi no meu diário. Mas o médico da clínica tinha-me apresentado uma
explicação alternativa: anemia. Isso significava que a fadiga estava em
mim, não era sobre mim, uma distinção que eu agradeci.
Fazia-se tarde, e a garrafa de vinho em cima da arca já estava vazia.
Pus-me em pé e observei que já estávamos muito atrasados nas resoluções
de Ano Novo, que tínhamos prometido fazer semanas antes, na noite de
passagem de ano. Eu adorava o ritual anual de escrever resoluções:
sempre enchi blocos com listas de coisas a fazer e de sonhos. Qualquer
coisa semelhante a um plano, por ténue que fosse, servia para equilibrar a
confusão e a incerteza que sentia quanto ao futuro. Embora o Will não
fosse um grande planificador, fez-me a vontade: disse que na primavera ia
candidatar-se a um mestrado, talvez em Sciences-Po, o Instituto de
Ciências Políticas de Paris. Eu prometi encontrar outro emprego, um
trabalho que não me deixasse sem energia ao fim de cada dia e que fosse
mais do que fazer fotocópias ou andar a esconder os pés do meu chefe.
*

Nos dois meses seguintes, tentei cumprir essa resolução: aperfeiçoei o CV,
enviei candidaturas e pedi conselhos a antigos professores e orientadores.
Mas, principalmente, dei comigo outra vez na sombria sala de espera da
clínica, onde regressei uma meia dúzia de vezes para ser tratada a várias
constipações, acessos de bronquite e infeções urinárias. Encaminhavam-
me sempre para um médico diferente. Tinha de repetir o historial clínico e,
a cada visita, a lista de males recentes ia aumentando. Andava a tomar o
suplemento de ferro que me fora receitado, mas sentia-me cada vez mais
débil, em vez de revitalizada. O facto de ser atendida por vários médicos
pôs-me a pensar: quem é tomava nota de todos os pormenores – quem é
que, afinal, tomava conta de mim, se é que havia alguém?
Uma tarde, quando fazia mais uma análise ao sangue “de rotina”, senti
os olhos encherem-se de lágrimas.
– O que se passa? – perguntou-me a analista.
Eu já não sabia bem o que se passava.
O problema de estarmos cansadas todo o dia, todos os dias, ao longo de
muitos meses, é que não reparamos que estamos a adoecer. Quando me
indicaram um médico no Hospital Americano de Paris, já estava tão fraca
que era um esforço enorme subir e descer a escada para chegar à minha
cama. Numa sexta-feira à tarde invulgarmente quente do fim de março saí
de casa para a consulta. O que devia ter sido uma viagem de métro de
meia hora demorou horas e acabei num bairro de Paris que não
reconhecia. Vagueei, aos círculos, à procura do hospital, até perceber que
tinha saído na paragem errada. Enquanto esperava por um autocarro que
me levaria a Neuilly-sur-Seine, o subúrbio ocidental de Paris onde fica o
hospital, senti-me atordoada. À minha volta, brilhavam ao sol grandes
casas e automóveis de luxo. Havia pássaros a flutuar entre as folhas de
uma tília, em forma de coração. Uma mãe levava pela mão duas crianças
louras pelo lado da rua que estava na sombra. A minha cabeça começou a
andar à volta. Comecei a ver pontos de luz e, de repente, as casas, os
automóveis e a mãe tornaram-se manchas douradas sobre um fundo negro
como breu. Num instante estava de pé, no instante seguinte estava caída
de lado, com a cabeça tombada no passeio.
– Ça va, mademoiselle? – perguntou-me, quando voltei a mim, uma
senhora de idade, com os lábios finos franzidos numa expressão
preocupada.
– Non – respondi-lhe, e comecei a chorar. Não conseguia contactar o
Will, que estava com a Mila na aula semanal de natação, e os meus pais
estavam a seis mil quilómetros de distância. Eu estava a viajar no espaço e
a ganhar velocidade, a girar cada vez mais para longe da Terra. Nunca me
tinha sentido tão só.
Já entardecia quando finalmente cheguei ao hospital. Um homem que se
apresentou como Dr. K viu-me rapidamente, numa marquesa, e decidiu
internar-me no hospital para realizar mais exames.
– Vous n’avez vraiment pas bonne mine – disse-me. (Tradução: Bem,
não estás nada com bom ar.) Um auxiliar levou-me escada acima, numa
cadeira de rodas, até uma sala branca com uma janela grande. O sol estava
a pôr-se e vi nuvens escuras cor-de-púrpura correrem pelo horizonte,
ameaçando chuva. A última vez que passara a noite num hospital foi
quando nasci.
*

O Hospital Americano de Paris não se parecia com nenhum hospital norte-


americano que eu conhecesse. O meu quarto era de luxo, maior do que o
meu estúdio e as paredes eram banhadas por luz do sol. Eu ansiava pelos
tabuleiros com o pequeno-almoço que todas as manhãs chegavam à minha
cama, com os aromas de um croissant com manteiga e de um café au lait
a despertarem-me do sono. Com o pequeno-almoço vinha uma dose diária
de prednisona, um esteroide genérico que me fora receitado por motivos
que continuavam por esclarecer, mas que em setenta e duas horas me fez
sentir suficientemente enérgica para descer as escadas até ao pátio do
hospital, onde passava as tardes a escrever no diário, a cravar cigarros a
outros doentes embrulhados em roupões e a olhar fixamente para os
canteiros com flores. À noite, depois de meter a Mila na cama, o Will
vinha ter comigo. Trazia o Scrabble e ficávamos acordados até tarde,
fazendo jogos uns a seguir aos outros. Uma enfermeira tinha montado
uma cama de campanha para ele poder passar a noite.
– Obrigada por estares aqui – murmurei eu, meio grogue, ao
adormecermos nas nossas camas separadas.
– Estar contigo faz-me sentir a pessoa mais feliz do mundo. Estes têm
sido os meses mais felizes da minha vida – respondeu-me ele, pegando-
me na mão. – Não existe ninguém igual a ti. Não há ninguém que me faça
querer viver mais do que tu, que me faça querer ser eu mais do que tu.
O teu apetite por saber mais, e para te conheceres melhor, faz-me querer
ser melhor. O que estamos a construir juntos é grande. E depressa vais sair
daqui e podemos regressar à nossa vida.
Na semana que passei no hospital, os médicos realizaram-me todos os
exames imagináveis, do HIV ao lúpus ou à doença da arranhadura do gato.
Tudo negativo. Respondi a perguntas sem fim: não, não havia cirurgias ou
internamentos anteriores; nem historial de doenças; um avô morreu de
cancro na próstata, o outro de ataque cardíaco, mas fora isso não havia
uma história familiar de doenças; se incluirmos dançar em discotecas,
então, sim, faço exercício com regularidade. Quando o Dr. K viu ao
microscópio os meus glóbulos vermelhos, percebeu que estavam grandes
e mencionou qualquer coisa sobre a possibilidade de ser precisa uma
biópsia à medula.
– Quanto álcool bebe? – perguntou-me uma tarde, de pé ao lado da
minha cama.
– Demasiado – respondi-lhe. – Saí da faculdade há pouco tempo.
Vi que tomava notas num bloco ao sair do quarto. Acabou por decidir
que não havia necessidade de uma biópsia em alguém com a minha idade.
Confiei nele. No fim de contas, é suposto juventude e saúde andarem de
mãos dadas.
– Precisa de descanso – concluiu o Dr. K. – Ainda estou intrigado
quanto aos seus glóbulos vermelhos, mas não vejo motivo para alarme.
Vou agora de férias, mas quando regressar, daqui a umas duas semanas,
vamos reavaliar as coisas e ver como se sente.
E, deste modo, deu-me alta com um diagnóstico de qualquer coisa
chamada “síndroma de burnout” e passou-me um atestado para um mês de
baixa.
A caminho de casa, no métro, escrevi no diário:

Pormenores médicos importantes a reter:

1) O Dr. K usa óculos Prada.


2) O Will e eu fomos quase apanhados por uma enfermeira a fazer sexo na
casa de banho do quarto.
3) É possível encomendar para o quarto, da cafetaria do hospital,
champanhe e crème brûlée.
4) Tenho a certeza quase absoluta de que este sítio é um country club
disfarçado de hospital.
5) O que raio será “síndroma de burnout”?
*

Eu estava absolutamente entusiasmada por não ter de ir trabalhar um


mês inteiro, mas a verdade é que o resto não estava a bater certo. Sem a
dose diária de prednisona, senti logo que estava a ficar sem energia.
Tombada no frio banco de plástico do métro, a fazer um esforço para não
adormecer, lembrei-me de que o Dr. K talvez tivesse pensado que, no meu
caso, os únicos responsáveis seriam trabalho a mais e excesso de diversão.
Eu não sentia que ele, ou nenhum dos médicos que me tinham observado,
me estivessem a levar a sério. Mas também não posso dizer que eu
estivesse. Eu não falava das coisas. Em vez disso, afastava as dúvidas que
saltitavam dentro da minha cabeça. Eles é que tinham tirado o curso de
medicina, não era eu.
*

Uns dias depois de ter tido alta, acordei com a boa notícia de que tinha
uma entrevista de emprego. Passara as últimas semanas a enviar
candidaturas para diversos jornais e revistas, com pouco êxito. Ao
contrário de outras carreiras, onde há caminhos bem definidos a seguir,
hierarquias empresariais a percorrer ou graus que é preciso alcançar, o
mundo do jornalismo era para mim tão intrigante como inacessível. Não
fazia ideia de como encontrar uma aberta para lá entrar. “Começa a
escrever e envia textos aos editores”, tinham-me dito, mas o meu emprego
não me deixava muito tempo para isso. E, mesmo que deixasse, eu não
conhecia editores e, ainda que conhecesse, não teria a confiança para me
expor. Então, em vez disso, tinha contactado o meu antigo professor de
jornalismo, que me sugeriu um contacto com o International Herald
Tribune, que tem sede em Paris, para saber se havia oportunidades de
acesso a lugares de princípio de carreira. Para surpresa minha,
responderam a dizer que tinham aberto uma posição para “stringer”, uma
espécie de colaborador básico para recolha de informação, com a função
de ajudar os jornalistas mais experientes a cobrirem a revolução que tinha
começado na Tunísia – e que ficou conhecida como Primavera Árabe.
Queriam que aparecesse imediatamente para uma entrevista.
No dia seguinte, enfiei-me num elegante vestido preto que tinha
comprado numa loja de descontos, domei os meus caracóis emaranhados
numa trança, apliquei uma camada extra de blush nas bochechas pálidas e
lá fui para a entrevista. Pela escada acima, a ofegar para chegar ao
escritório do Tribune, reparei que as tonturas familiares estavam a
regressar e que eu estava a ficar sem fôlego; mas, nesse dia, havia coisas
mais importantes em que me concentrar. O matraquear nos teclados enchia
o escritório, um espaço aberto com alguns gabinetes e secretárias com
grandes pilhas de livros, ecrãs de computador e canecas de café sujas.
Olhando em redor, para o grupo de repórteres experientes sentados à
secretária, não me permiti qualquer tipo de ilusões. Sabia que as minhas
hipóteses de conseguir o lugar eram muito reduzidas, mas, pela primeira
vez, estava a ver um caminho para uma profissão que me entusiasmava.
Percebi de repente que, sem querer, era para isto que me tinha estado a
preparar. Na escola, arranjava sempre maneira de preencher os meus
semestres com cursos de línguas – árabe, francês, espanhol, farsi – com a
ideia de que, um dia, isso tornaria mais fácil viver e trabalhar em lugares
distantes. Tinha passado todos os verões a estudar e a fazer investigação
no estrangeiro, o que me permitira viajar para toda a parte, de Adis Abeba
e das montanhas do Atlas, em Marrocos, até à Margem Ocidental. Quanto
à Tunísia, não era só um país que conhecia e de que gostava, era a pátria: o
meu pai era de lá e toda a família alargada ainda lá vivia; e era um país do
qual, orgulhosamente, tinha passaporte. Na entrevista falou-se disto tudo e
os editores com quem conversei pareceram encantados. Eu também. Saí
de lá a pensar que toda a minha vida adulta tinha trabalhado para aquele
instante – e depois ri-me. Afinal, estava a falar de quatro anos.
Nunca regressei ao escritório do Tribune. No espaço de uma semana,
estava de volta ao hospital. Desta vez, fui parar a uma maca, nas
urgências, com tantas dores que nem conseguia ver. O interior da minha
boca estava colonizado por feridas latejantes. A minha cor era cinzento
azulado, como carne morta. O Will apertou-me a mão quando a médica de
serviço disse: “Não quero assustá-la, mas passa-se claramente qualquer
coisa. A contagem de glóbulos vermelhos caiu significativamente.” Olhei
para ela, sem saber o que aquilo queria dizer. “Se cair ainda mais, não
poderá entrar num avião”, acrescentou. Pôs-me suavemente a mão no
braço e afirmou que tinha uma filha mais ou menos da minha idade e que,
se fosse minha mãe, havia de querer que eu embarcasse no próximo voo
para casa.
*

Arranjámos tudo para eu partir para Nova Iorque logo na manhã seguinte.
Também insisti em comprar um bilhete de regresso a Paris para duas
semanas depois. Precisava muito de acreditar que seria uma viagem de ida
e volta. O Will tinha-se oferecido para me acompanhar, mas na minha
cabeça isso não fazia sentido – ele tinha de tomar conta da Mila e eu
depressa estaria de volta. No aeroporto, quando nos despedimos, disse-lhe
para não se preocupar. A seguir, um homem mais velho numa farda azul-
marinho levou-me numa cadeira de rodas pelo aeroporto Charles de
Gaulle. Eu tinha as orelhas a arder enquanto ele atravessava os controlos
de segurança e passava à frente do enxame de famílias que esperavam
para embarcar e dos viajantes em negócios com as suas elegantes malas
em pele. Pensei que a médica das urgências tinha de certeza exagerado
quando insistiu que eu fosse de cadeira de rodas. Lembro-me de ter medo
que alguém gritasse a qualquer momento que eu era uma fraude. Mas as
pessoas que estavam na fila do embarque prioritário e olhavam para mim,
se reparassem sequer em mim, mostravam visivelmente pena.
O avião descolou. Enrolada em posição fetal, a ocupar dois lugares
vazios, tremia debaixo de um cobertor fino, incapaz de aquecer. Sempre
tinha adorado aviões, a sensação de pequenez que a altitude transmite, a
terra a ficar cada vez mais pequena até desaparecer debaixo das nuvens,
mas desta vez mantive a janela corrida. Estava demasiado cansada para
fazer fosse o que fosse – ver filmes ou comer os snacks que a hospedeira,
preocupada, continuava a oferecer-me. Mas, por muito cansada que
estivesse, as minhas bochechas, inchadas das feridas, tornavam difícil
conseguir adormecer. A médica das urgências tinha receitado codeína para
a viagem e engoli uns comprimidos, na esperança de conseguir aliviar um
pouco a dor. O meu corpo foi sacudido por ondas de náusea e o meu
espírito começou a perder e a recuperar a consciência.
Sonhei que o avião era uma penitenciária voadora suspensa sobre o
Atlântico e que eu estava a ser castigada por todas as bebidas, cigarros e
merdas más que tinha metido no corpo no último ano. Sonhei que estava
no encontro de antigos alunos da faculdade, cinco anos depois do fim do
curso, e que os meus amigos estavam de costas voltadas para mim, a rir e
a bebericar cocktails num relvado verde lima exuberante, com os edifícios
dos dormitórios visíveis ao longe, a brilhar sob um sol cor-de-laranja.
Chamei-os, mas, quando se voltaram, olharam como se eu não existisse.
Na lógica dos sonhos, isto fazia sentido. Talvez não me reconheçam,
pensei. Desde o fim do curso, tinha envelhecido – e mal. Sentada na
mesma cadeira de rodas do aeroporto, toda eu era ossos e um saco de pele,
só com umas farripas de cabelo prateado a caírem do crânio quase careca.
Tinha as pupilas brancas com cataratas e a boca era um buraco sem
dentes. Voltei a chamá-los. Sou eu, gritei, a Suleika. Mas desta vez
ninguém sequer se voltou.
Quando voltei a abrir os olhos, senti o embate das rodas do avião na
pista. Estava em casa.
5

NA AMÉRICA

Trato os meus pais pelos nomes próprios desde que aprendi a falar – uma
coisa que nenhum de nós achou estranha até sermos chamados à atenção
por um professor perplexo.
Anne, a minha mãe, uma mulher pequena com olhos azul gelo e a
compleição muscular de uma bailarina, vem de uma bucólica aldeia suíça
a cerca de uma hora de Genebra. Cresceu numa casa em pedra, cheia de
livros velhos, antiguidades e um gramofone que estava sempre a tocar
música clássica. As janelas da sala davam para uma praça dominada por
um castelo medieval e para um lago brilhante onde ela passava os fins de
semana a nadar e a fazer vela com os rapazes locais. Ela era um garçon
manqué, uma maria-rapaz, com o cabelo curto e o nariz sempre
mergulhado num romance. Luc, o pai dela, um físico e ativista ambiental,
era uma pessoa rigorosa, na fronteira com o militante, mas também à
frente do seu tempo. Recusava-se a ter carro por causa das emissões de
CO2 e proibia que se usasse plástico em casa. Tinha no sótão uma oficina
de carpinteiro, onde fazia à mão brinquedos para Anne e para os três
irmãos. A mãe, Mireille, era bibliotecária e não se interessava nada pelo
ativismo do marido. Adorava coisas belas, tinha uma coleção
impressionante de suéteres de caxemira e um jardim de rosas em expansão
e era conhecida pelas estupendas tartes de maçã que cozinhava. Mireille
dizia sempre que havia uma maneira certa e uma maneira errada de fazer
as coisas e dava aos filhos grandes lições de etiqueta. Na adolescência,
Anne viveu sujeita aos constrangimentos impostos pelas determinações
dos pais e pela atmosfera fechada da aldeia.
Depois de concluir o curso numa escola de Artes em Lausanne, a minha
mãe ganhou uma bolsa para ir estudar em Nova Iorque, onde ambicionava
tornar-se uma pintora famosa. Alugou um pequeno apartamento, daqueles
em que as divisões se sucedem umas às outras, numa linha reta, na East
Village, na esquina da 4th Street com a Avenida A. Nessa altura, em
meados dos anos 80, o bairro era uma sucessão de edifícios todos
grafitados e de lotes devolutos, cheios de entulho. As ruas pulsavam de
energia e havia por toda a parte escritores e músicos jovens que
irradiavam criatividade e ambição. Ela nunca tinha estado num lugar
assim.
*

A caraterística que define a nossa família é a de fura-vidas. A minha mãe


tinha a ética de trabalho de um cavalo de carga e nunca parava, do nascer
ao por do sol. Ganhava dinheiro a pintar casas ou a vender rosas de mesa
em mesa em restaurantes e cafés, até ter o suficiente para alugar quer o
apartamento quer um estúdio que partilhava com outros artistas. Depressa
encontrou uma atividade mais lucrativa para pagar as contas: começou a
gerir um pequeno negócio a partir do seu apartamento. “International
Language School, como posso ajudar?” – era assim que ela atendia o
telefone, fingindo ser a secretária. A escola, se é que se lhe podia chamar
assim, era a minha mãe e os amigos, um grupo com origens na Europa
inteira. Contratava-os para darem aulas de francês, italiano, alemão e
espanhol a homens de negócios e a famílias endinheiradas que viviam na
zona bem da cidade. Poupou o suficiente para dar uma entrada para o seu
apartamento, que fora posto à venda por quarenta mil dólares, o que
naquele tempo parecia uma fortuna.
Cinco anos depois de Anne chegar a Nova Iorque, a sua energia, o
cabelo curto, o nariz aristocrático e as maçãs do rosto elegantes chamaram
a atenção do meu pai, Hédi, num clube de jazz da baixa. Para Hédi não foi
assim uma grande proeza conquistá-la: ele era alto, bronzeado, com um
feixe de cabelos encaracolados e uma falha encantadora entre os dentes da
frente. Tinha acabado de correr a maratona de Nova Iorque e estava na
melhor forma da sua vida. Vivia a uns quarteirões de distância, na 7th
Street, entre as Avenidas B e V, tão perto, na verdade, que em breve
estavam sempre um com o outro. A língua franca comum, o nomadismo e
o amor pela culinária, pelo cinema e pelas artes aproximavam-nos.
Tinham os mesmos valores boémios, gastavam o dinheiro em bons vinhos,
bilhetes para espetáculos e viagens, mas discutiam com frequência, porque
eram os dois demasiado teimosos e independentes. O meu pai ainda
hesitava entre ficar nos Estados Unidos ou regressar à Tunísia para
assentar e fazer vida aí. Ao fim de dois anos de namoro, fui concebida no
apartamento de Hédi em Tompkins Square Park. Um acidente, imaginei a
minha mãe a pensar, já a fazer o luto pela sua liberdade enquanto ainda
estava a fazer xixi sobre um teste de gravidez. (Mais tarde, ela revelou-me
o que sentiu: Uma surpresa, disse-me ela.)
Com quarenta anos, Hédi era quase dez anos mais velho do que Anne.
Era professor do secundário na Escola Internacional das Nações Unidas e
fazia trabalhos de freelancer como tradutor de francês e árabe. A gravidez
deixou-o entusiasmado, mas Anne tinha dificuldade em ver-se como mãe,
e o casamento não a convencia. Na sua terra, a Suíça, a maior parte das
amigas tinha companheiros e crianças sem se comprometerem
oficialmente. O casamento parecia-lhe asfixiante e antiquado. Insistiu que
não precisavam de uma folha de papel para legitimar a relação. Uns meses
depois, mudou de opinião, mas apenas para o meu pai poder partilhar sem
sobressaltos a notícia da gravidez com a mãe dele. Fizeram uma cerimónia
civil. Uma polaroid desse dia mostra-os nas escadarias da Câmara
Municipal, na baixa de Manhattan, de sorriso rasgado um para o outro,
vestidos com fatos uns números acima do tamanho certo e segurando a
sua versão de um ramo de flores: são dois galhos, ainda ornados com
algumas folhas, acabados de arrancar a uma despida árvore citadina.
Eu sei isto tudo porque eu e a minha mãe somos próximas – não há
temas tabu, nenhum momento importante da vida que fique por explorar.
Com o seu sotaque carregado, o corte de cabelo tipo duende, as axilas por
rapar e os macacões salpicados de tinta, ela era diferente de todas as outras
mães que eu conhecia. Aos treze anos, quando me apareceu o período, ela
foi a primeira pessoa a quem eu contei e, no dia seguinte, surpreendeu-me
com o almoço de celebração mais desajeitado do mundo, que incluiu
brindes emocionados à feminilidade que nascia em mim, enquanto o meu
pai e o meu irmão se mexiam com desconforto nas cadeiras. Em
adolescente, disse-lhe uma vez que estava a pensar conservar a virgindade
até ao casamento. “Não sejas idiota”, respondeu-me ela. “Precisas de
saber do que gostas antes de te comprometeres com uma coisa para toda a
vida.”
Nesses primeiros anos andávamos em mudança permanente – da East
Village para as Montanhas Adirondack, com passagens pela França, Suíça
e Tunísia, mas regressando sempre aos Estados Unidos, onde o meu pai
tinha garantido um lugar de professor fixo em Skidmore, uma pequena
faculdade privada de artes, liberal, em Saratoga Springs, Nova Iorque.
Apesar das suas hesitações iniciais, Anne adorava ser mãe e, depois de o
meu irmão nascer, decidiu diminuir o tempo dedicado à carreira para se
concentrar na nossa educação. Sempre abordou o processo de educar com
a mesma criatividade e dedicação que colocava nos seus quadros abstratos
de insetos, flores e favos de mel – que acabavam todos por se parecer mais
ou menos com vaginas. Nos invernos que cobriam de neve o norte do
estado de Nova Iorque, pegava nos esquis de cross-country, punha um
boné de beisebol e deslizava até à paragem de autocarro, a uns quarteirões
de distância, para nos ir buscar. Transformou em estúdio o sótão da nossa
casa, onde dava aulas de arte e onde passávamos as tardes sentadas no
chão de madeira, de pernas cruzadas, a brincar com conjuntos de guaches
e aguarelas. Ensinou-nos coisas sobre o pontilhismo, mostrando-nos
obras-primas de Georges Seurat e dando-nos cotonetes molhados em tinta
para podermos criar as nossas próprias paisagens pontilhadas.
Todas as noites, antes de adormecermos, lia-nos fábulas e contos de
fadas em francês. Se nos tivéssemos portado excecionalmente bem,
tínhamos direito a uma massagem com óleo de amêndoa. “O que é que
vamos jardinar hoje?”, costumava ela dizer enquanto nos amassava as
costas como se estivesse a mexer na terra, fazendo-nos dar guinchos
enquanto furava a carne por baixo das omoplatas para “plantar sementes”.
Tinha um sentido de humor deliciosamente negro e era conhecida pelas
partidas que fazia – e que, às vezes, iam longe demais. Uma vez, no
Primeiro de Abril, o Dia das Mentiras, que era o seu favorito do ano
inteiro, enviou-me a mim e ao meu irmão um email com a “notícia
terrível” de que o meu pai tinha perdido o emprego e que, por isso, nós
teríamos de desistir imediatamente da faculdade e arranjar um trabalho a
tempo inteiro. Depois esqueceu-se do que tinha feito e foi ao cinema,
deixando-nos horas em suspense. Era este sentido de travessura e audácia
que tornava a companhia dela tão libertadora e mágica. Tornava-a
acessível e não um desses adultos que estão constantemente a lembrar-nos
da nossa imaturidade. Quando saí de casa, acabei a faculdade e me mudei
para longe, o telefone tornou-se o nosso cordão umbilical. Falávamos
todos os dias – e com frequência várias vezes.
A minha relação com o Hédi era outra coisa. Ele era um mistério para
mim. Crescera no sul da Tunísia, em Gabès, uma cidade com um oásis, na
costa do Mediterrâneo, durante o domínio colonial francês. Nenhum dos
pais sabia ler ou escrever. O pai, Mahmoud, trabalhava na sala do correio
na câmara municipal. Era carinhoso, mas firme, acreditava absolutamente
no ditado “qui aime bien, châtie bien” – quem bem ama, bem castiga.
A mãe, Sherifa, era delicada e generosa, com uma tatuagem berbere no
queixo e tranças compridas, tingidas de henna, que mantinha tapadas com
um lenço. O meu pai dizia a brincar que, sempre que chegava da escola, a
mãe estava a dar à luz mais um filho. A família vivia com dificuldades e,
nesses anos do pós-guerra, de escassez e doenças, só sete dos treze filhos
sobreviveram. O meu pai, o segundo mais velho, não era o mais estudioso,
mas era o mais desembaraçado e decidido a vencer. Depois de acabar o
curso na universidade de Tunes, prosseguiu os estudos, primeiro em
Londres, depois em Paris, antes de emigrar para os Estados Unidos, onde
se doutorou em literatura francesa.
Eu venerava o meu professor-pai, com os seus fatos e fedoras brancos
elegantes, uma aparência que fazia virar cabeças e uma memória
estonteante para línguas, mas ele também me assustava um bocadinho. Era
um bon vivant, generoso e cheio de carisma, mas, tal como o seu próprio
pai, zangava-se com facilidade e parecia estar sempre à beira de perder a
paciência. Educou-me a mim e ao meu irmão, o Adam, da mesma maneira
que tinha sido educado, com dureza, no género “os elogios tornam-te
mole”. Não tinha paciência para brincadeiras de crianças. “As pessoas
interessantes não conversam sobre coscuvilhices ou futilidades, falam de
ideias”, dizia-me ele, sempre que eu falava demais ou começava a irritá-lo
de uma outra maneira qualquer.
Foi só no liceu, quando eu já começara a levar a sério os meus estudos,
que eu e o meu pai encontrámos algum terreno comum. Eu adorava
sentar-me na cadeira de braços do escritório dele, a ler os seus livros. Ele
tinha uma biblioteca do chão ao teto, cheia de centenas de livros –
clássicos, poesia, romance e teoria literária. Sempre que não conseguia
entender uma palavra, ia à procura num dos dicionários que estavam na
prateleira de baixo e acrescentava-a a uma lista de vocabulário na parte de
trás do meu diário. Sob a sua orientação, comecei a ler em francês,
descobrindo as obras de Baudelaire, Flaubert, Camus, Sartre e Fanon.
Embora eu tivesse aprendido algum árabe no tempo em que vivemos na
Tunísia quando era criança, já o tinha esquecido quase todo e decidi voltar
a aprender a língua do meu pai. Na faculdade, inspirada pelos interesses
académicos dele, fiz a especialização em Estudos do Médio Oriente, com
disciplinas em Francês e Estudos de Género. Enviei ao meu pai todos os
trabalhos que escrevi e ele passou horas a lê-los, enviando-me correções
assinaladas a caneta vermelha e sugestões de mais leituras. Para a minha
tese, fui à Tunísia para recolher as histórias orais de mulheres idosas,
incluindo a minha avó, e entrevistei-as sobre o Código de Estatuto
Pessoal, uma série de leis pós-coloniais progressistas que visavam
estabelecer a igualdade entre homens e mulheres. “Je suis fier de toi”,
disse-me o meu pai quando acabei o curso com as notas mais altas e
vários prémios atribuídos à tese. Foi uma rara manifestação vocal de
orgulho paterno.
Como presente de fim de curso, os meus pais deram-me uma mala
vermelho-carro-de-bombeiros, uma coisa grande e bojuda com rodas que
deslizavam na perfeição, comprada na zona dos saldos na T. J. Maxx.
Deu-me um grande jeito logo nesse verão, quando consegui o emprego em
Paris. Lembro-me de como os meus pais pareciam otimistas quando me
desejaram bon voyage. “Ton premier boulot! Ça va être super!”, disseram-
me quando me foram levar ao aeroporto. Insistiram em tirar uma última
fotografia comigo, com a mala, no passeio, e eu revirei para o céu os olhos
bem carregados de rímel, fazendo-lhes um sorriso idiota antes de largar a
correr para o terminal. Estava tão preocupada com o que tinha por diante
que quase me esqueci de me virar para trás e lhes fazer um último adeus.
Nenhum de nós imaginava que eu estaria de volta sete meses depois.
Dessa vez, ninguém estaria a tirar fotografias ou a tagarelar sobre os meus
planos futuros.
*

Uma assistente do aeroporto ajudou-me a recolher a mala e depois levou-


me até ao terminal de chegadas do aeroporto internacional John F.
Kennedy.
– A menina tem a certeza de que não há problema em deixá-la aqui?
Fiz que sim com a cabeça. Era o meu pai que ia buscar-me e estava
atrasado, como de costume. A pontualidade nunca foi o forte da nossa
família.
Enquanto esperava, as portas giratórias iam cuspindo em sucessão
viajantes cansados. Quase uma hora mais tarde, vi o meu pai a deambular
entre a multidão, com o chapéu preto inclinado para um dos lados da
cabeça extremamente careca. Os olhos, escuros e de pestanas grandes,
como os de uma vaca leiteira, perscrutavam o espaço, à procura de alguém
parecido com a filha.
– Hédi, aqui!
Observei o choque na cara do meu pai, a atenuar-se à medida que ele ia
tomando consciência das minhas maçãs do rosto inchadas, dos lábios
azulados e da sweatshirt que caía pendurada do meu tronco magro.
Baixou-se para me dar um beijo na cara.
– Salut ma belle. Desolé, mandaram-me fazer um desvio na autoestrada
– disse. Empurrando a cadeira de rodas com uma mão e puxando a mala
vermelha com a outra, encaminhou-me para o parque de estacionamento,
onde a velha carrinha da família nos esperava. Entrei para o banco de trás
e deitei-me, demasiado esgotada para dizer muita coisa nas três horas e
meia de viagem até Saratoga Springs.
*

Regressar a casa é uma coisa engraçada. Tudo cheira ao mesmo, parece o


mesmo e dá a sensação do mesmo, mas nós somos diferentes; o contraste
entre quem éramos quando partimos e quem somos agora é ampliado
diante do pano de fundo de velhos fantasmas. Quando estacionámos junto
à casa onde a minha família vivia desde os meus doze anos, a minha mãe
estava à frente, a cuidar do jardim. Abriu a porta da carrinha e ajudou-me
a levantar.
– Mon dieu – disse, com a mão a cobrir a boca, quando me viu bem. –
Porque não me disseste que era assim tão mau?
– É um novo look heroin-chic que ando a experimentar – respondi. Em
geral, podia contar com o sentido de humor louco da minha mãe, mas
desta vez ela não se riu.
– Ainda não viste o pior – disse o meu pai. – Sus, mostra-lhe a boca.
Puxei para baixo o lábio inferior, fazendo uma careta enquanto mostrava
três feridas novas, uma espécie de luas cheias leitosas, redondas e
inchadas, que tinham aparecido durante o voo. Os meus pais trocaram um
olhar que eu não consegui decifrar.
Arrastando-me para casa, subi logo as escadas para o meu quarto, com
os ombros a descontraírem de alívio assim que aspirei o cheiro familiar de
livros poeirentos e vi o cartaz amarelecido do lendário cantor tunisino Ali
Riahi pregado na parede. Estendi-me na cama e um sono pesado colou-me
à colcha. Passaram várias horas e acordei com o som do chocalho de vacas
suíças que a minha mãe tocava para chamar todos para baixo, para o jantar
– o que era uma homenagem às suas origens e uma fonte de irritação
profunda para o meu irmão e para mim. Tapei os ouvidos e tentei voltar a
adormecer. Quando não respondi, o meu pai veio e bateu à porta.
– Labess? – perguntou ele, o calão tunisino para “Que se passa?”
– Não tenho fome – grunhi, cobrindo a cabeça com a almofada.
– Há meses que não te vemos. Pelo menos vem sentar-te um bocadinho
ao pé de nós.
– Estou demasiado cansada – respondi.
– Estás a dormir há horas. Tens de fazer um esforço. Quando te
levantares, vais sentir-te melhor. Anda lá, vamos comer e dar uma volta ao
quarteirão.
– Hédi. Por favor.
Fiquei imóvel um bocado, depois de o meu pai desistir e se ir embora.
Uma mistura de culpa e dúvida impediu-me de voltar a adormecer. Eu
sabia que havia qualquer coisa errada, mas ainda havia momentos em que
pensava se não estaria a inventar tudo – se os meus sintomas eram reais ou
se não estaria tudo a passar-se na minha cabeça. Talvez precisasse mesmo
de me esforçar um pouco.
Levantei-me e fui até ao patamar no cimo da escada. A escadaria parecia
prolongar-se até ao infinito, enquanto eu me arrastava para baixo, sentindo
as pernas como se fossem contentores carregados de cimento. Quando
cheguei lá abaixo, estava tão esgotada que me sentei no chão e procurei
recuperar forças. Ouvia as vozes dos meus pais na cozinha. Apurei o
ouvido, era impossível resistir à velha tentação de infância de tentar ouvir
o que diziam.
– Eu deixei-a comprar um bilhete de volta a Paris para daqui a duas
semanas, mas duvido que esteja bem para ir – dizia a minha mãe. – Não
vai ser em breve.
– Em que é que pensas quando ouves os sintomas: feridas na boca,
perda de peso, infeções frequentes e contagens sanguíneas baixas? –
perguntou o meu pai.
A minha mãe ficou em silêncio.
– HIV – respondeu ele, parecendo que tinha pensado no assunto. – Bem
sei que os resultados dos exames vieram negativos, mas li online que o
vírus pode demorar vários meses a aparecer. Viste como ela e os amigos
bebiam na festa de graduação? E isso foi à nossa frente. Sabe-se lá o que
ela faz quando nós não estamos. Não fazemos ideia se anda a dormir com
uns e outros ou a consumir drogas.
Eu tinha a cara afogueada. Senti no peito um choque de adrenalina e
corri pelas escadas acima, com a pulsação aos saltos e as mãos a tremer,
fechando a porta do quarto com toda a força. Estava furiosa com o meu
pai por andar, nas minhas costas, a fazer suposições sobre o estado da
minha saúde e o meu comportamento. Também sentia uma vergonha
profunda. Ele não estava completamente errado; a minha vida longe de
casa tinha incluído algumas das coisas que ele temia. Mas o que me
aborrecia mais era que o meu pai, que era sempre duro e firme, parecesse
assustado por mim. Estava a tornar-se cada vez mais difícil acreditar na
frase que me diziam desde criança: Vai correr tudo bem.
6

BIFURCAÇÃO

Tinha passado uma semana desde o meu regresso a casa. A minha


lembrança de como passei esse tempo é apenas vaga. Fui a uma série de
consultas médicas, dormi imenso e falei por Skype com o Will. Arrastei-
me com relutância para dar uns passeios pelo quarteirão com os meus
pais. Mas do que me lembro mais é do silêncio ansioso que tinha caído
sobre a casa; da preocupação que enchia o ar; do medo e frustração
crescentes que sentia enquanto aguardava por esclarecimentos.
“Hoje foi Páscoa, mas dei cabo do dia”, escrevi no meu diário. “A Anne
passou seis horas a preparar uma refeição incrível para o pai e para mim.
Não só não comi nada, como só consegui ficar a olhar em silêncio para
eles os dois. Na quarta-feira tenho marcada uma biópsia à medula e estou
com um medo horrível disso.”
*

“Por precaução” – foi a expressão que o médico usou ao propor a biópsia.


Era um procedimento torturante e humilhante que envolvia estar deitada
de cabeça para baixo numa marquesa, com as calças de ganga descidas até
aos tornozelos. O médico limpou-me com Betadine a parte de baixo das
costas, enquanto explicava que o osso pélvico, rico em medula, era o local
preferido para a biópsia. Injetou-me lidocaína na parte de baixo das costas,
mergulhando a agulha cada vez mais fundo até atingir osso. O médico
avisou-me de que, embora as camadas da superfície da minha pele
estivessem anestesiadas, ia doer na mesma. Cerrei os dentes quando ele
enfiou uma seringa fina no osso e aspirou as células de medula com
movimentos rápidos e desagradáveis. A seguir veio uma agulha muito
maior – vinte e cinco centímetros de aço inoxidável brilhante – com um
manípulo de plástico em cima que ele usaria para perfurar mais. O médico
disse-me que eu tinha os ossos jovens e fortes, enquanto punha um pé em
cima da mesa de exame e gemia ao carregar no osso pélvico. Quando
retirou um pedaço de medula, pequeno e sólido, mordi a parte de dentro
da bochecha e senti o gosto de sangue. Quando o procedimento terminou,
fiquei ali sentada, atordoada, com um penso enorme a tapar o local da
biópsia e as costas a latejar. O médico assegurou-me que não estava à
espera de encontrar nada de anormal, mas que, como eu estava a piorar,
queria tomar todas as precauções.
*

Uma semana mais tarde, no dia 3 de maio de 2011, tínhamos uma


mensagem no atendedor automático. Os resultados preliminares da biópsia
tinham chegado e o médico queria que fôssemos vê-lo quanto antes.
Quando eu e os meus pais chegámos à clínica, o pessoal e os doentes já
tinham todos ido embora. Fora da hora de expediente, as luzes tinham sido
reduzidas, lançando sombras sobre as pilhas de revistas e as paredes
verde-ervilha. O médico veio receber-nos na sala de espera e sentou-se.
Não mastigou as palavras.
– A biópsia confirmou o que eu suspeitava, mas esperava que não fosse
o caso. Tem uma coisa a que se chama leucemia mieloide aguda. –
Enunciou o diagnóstico com lentidão, como se fosse um professor de uma
língua estrangeira a ensinar-nos uma nova palavra de vocabulário.
Eu não sabia o que era, mas tinha a certeza de que não era bom. Evitei
olhar para as caras devastadas dos meus pais. Paralisada na minha cadeira,
ia repetindo na cabeça o diagnóstico. Leu-ce-mia. Leu-ce-mia. Parecia
uma flor exótica, bela e venenosa.
– É uma forma de cancro agressiva que ataca o sangue e a medula –
explicou o médico, com os ombros um bocado caídos dentro da bata. –
Temos de atuar rapidamente.
Como é que se reage a um diagnóstico de cancro com vinte e dois anos?
Começa-se a soluçar?
Desmaia-se? Grita-se?
Nesse momento, uma sensação invadiu-me o corpo, inesperada e
perversa: alívio. Depois dos meses sucessivos de diagnósticos errados,
havia finalmente uma explicação para a comichão, para as feridas na boca,
para a sensação de que me estava a desfazer. Afinal, não era uma
hipocondríaca, a inventar sintomas. O meu cansaço não era uma
consequência de me divertir demais ou um sinal de incapacidade de me
encaixar no mundo real, mas uma coisa concreta, uma coisa pronunciável
e que eu podia verbalizar.
Tudo o que médico afirmou a seguir – que a situação era grave e que eu
precisava de começar os tratamentos imediatamente – se diluiu num
zumbido distante. Senti-me como se ele pairasse sobre mim empunhando
um bisturi, a definir a minha vida com um diagnóstico, a bifurcar a minha
mente em metades separadas: uma metade de mim a dançar com um
cantor de mariachis depois de beber uns shots de tequila no Don Juan, um
bar de Paris, pondo os meus amigos a assobiar e a aplaudir; a outra metade
a chorar todas as noites num quarto de hospital assético, depois de as
visitas se terem ido todas embora.
O diagnóstico tinha causado uma fratura irreparável: a minha vida antes
e a minha vida depois.
7

CONSEQUÊNCIA

Não somos daquelas famílias que choram em público. Nessa noite,


quando regressámos a casa, a minha mãe retirou-se para o seu estúdio e
fechou a porta. Eu fechei-me no meu quarto, enrolei-me em posição fetal e
puxei os cobertores por cima da cabeça. O meu pai foi dar um longo
passeio nos bosques ao pé de casa e voltou horas depois, com os olhos
vermelhos. O meu irmão, o Adam, no penúltimo ano da faculdade, estava
a estudar no estrangeiro, na Argentina, e eu e os meus pais decidimos
poupá-lo à notícia do diagnóstico até sabermos mais sobre o que
implicaria o tratamento. Quanto aos meus amigos, nem faziam ideia de
que eu não andava a sentir-me bem, ou de que tinha regressado aos
Estados Unidos. No Facebook, ainda me perguntavam se podiam ir
visitar-me a Paris.
Deitada na cama, senti o impulso de partilhar as notícias terríveis.
Pensei que, se dissesse em voz alta o que estava a passar-se, talvez
começasse a sentir que era real. Peguei no telefone e liguei ao meu amigo
Jake, que foi uma das primeiras pessoas que encontrei quando cheguei à
faculdade e que considerava um dos mais próximos de mim. Queria
ensaiar, antes de tentar encontrar as palavras certas para contar ao Will, e
acreditava que o Jake seria compreensivo, mas até hoje ainda não vi
ninguém despachar-se ao telefone tão depressa. Pediu-me desculpa, disse
que gostava de poder falar mais tempo, mas que tinha planos. Prometeu
ligar-me nessa noite. Não ligou. Passaram-se semanas sem ouvir notícias
dele. Foi a minha primeira indicação de como o cancro é desconfortável
para os que estão à nossa volta e de que, quando as pessoas não sabem o
que dizer, muitas vezes não dizem absolutamente nada.
Antes de perder o resto da coragem que me restava, telefonei ao Will.
Ainda estávamos nas primeiras fases da nossa relação. O que é que eu
esperava? Que ele largasse tudo e se mudasse outra vez – que viesse para
aqui, para Saratoga, e vivesse comigo e com os meus pais, que ele nem
sequer conhecia? Quando o telefone começou a chamar, acalmei-me
inspirando profundamente várias vezes.
– Chegaram os resultados da biópsia. Tenho uma coisa chamada
leucemia mieloide aguda – disse-lhe, com voz rouca. – Não faço ideia do
que vai acontecer. Sei que não foi para isto que te inscreveste.
Continuei. Expliquei-lhe que sabia pouco sobre o diagnóstico e que não
voltaria a Paris nos tempos mais próximos. No futuro previsível, a minha
casa seria o meu quarto de infância, até entrar no hospital para os
tratamentos de quimioterapia. Passou um segundo, talvez dois, mas o
silêncio pareceu uma eternidade. Ouvi passos e a porta de um armário a
fechar-se. Em Paris era de manhã e imaginei-o a andar pelo nosso
apartamento, ainda despenteado e com uma chávena de café na mão.
– Vou apanhar o primeiro avião para Nova Iorque – disse-me. – Estou já
a caminho do aeroporto. – Foi só nessa altura que comecei a chorar.
*

O cancro é excelente para a coscuvilhice. Em vinte e quatro horas, a


notícia da minha doença tinha-se espalhado pela nossa pequena cidade
como se fosse um fogo em mato seco. A luz do atendedor de chamadas em
casa dos meus pais estava sempre vermelha a piscar: no máximo da
capacidade. Havia uma mensagem de um vizinho a perguntar se a notícia
era verdadeira e, se fosse, como é que podiam ajudar. Outra, de uma
amiga de infância que não via há mais de uma década, perguntava se
podia visitar-me. Uma colega do meu pai dizia-nos que vinha deixar para
o jantar uma terrina de chili. E havia um homem, a quem a minha família
passaria a chamar “o Guru do Cancro”, a confirmar uma marcação de que
todos nós nos tínhamos esquecido.
Tínhamos feito essa marcação uns dias antes de saber o diagnóstico,
porque uma mulher que a minha mãe conhecia do ioga disse que ele era
bom a resolver enigmas médicos. “Talvez ele possa receitar-te uns
suplementos para te sentires melhor”, disse a minha mãe. Parecia
razoável. Quando o meu irmão e eu estávamos a crescer, ela tinha-nos
ensinado que a fast food, os refrigerantes e os cereais com açúcar eram
veneno. A loja de comida saudável, o especialista em acupunctura, o
ervanário chinês e o homeopata eram sempre as nossas primeiras paragens
– e um consultório médico normal era um último recurso. Em criança,
essa obsessão da minha mãe com as coisas saudáveis tinha sido uma fonte
de embaraços. (No Halloween, por exemplo, ela era a senhora do nosso
quarteirão que, em vez de doces, dava aos miúdos amendoins com casca,
maçãs e lápis número dois.) Mas, com os anos, eu absorvi este seu
envolvimento com a medicina alternativa e com as coisas orgânicas e
acabei por reconhecer-lhes valor.
Umas horas depois, ia sentada ao lado da minha mãe enquanto ela
conduzia por Saratoga e eu via desfilar os marcos da minha infância difusa
– aquele lugar na baixa onde em adolescente tinha tocado, a troco de notas
amarrotadas de dólar, a loja de livros em segunda mão onde tinha dado o
primeiro beijo, o jardim-escola onde cheguei sem dizer uma palavra de
inglês. Ela continuou, por estradas rurais com duas vias, até que
chegámos, quarenta e cinco minutos depois, a um pequeno parque de
atrelados no meio de árvores, nos arredores de uma cidade de que eu
nunca ouvira falar. Estacionámos ao pé de um atrelado duplo, junto do
qual a relva estava cheia de ornamentos, saímos do carro e batemos à
porta.
Quem abriu foi um homem de cabelo amarelado, com uma barriga
imponente que lhe caía por cima das calças de ganga. A minha mãe
contou-lhe imediatamente o diagnóstico. Antes sequer de eu tirar o casaco,
ele pôs-me uma mão grossa à volta do braço e debruçou-se sobre mim, tão
perto que senti na cara a sua respiração, fria e húmida.
– Antes de começarmos, quero deixar uma coisa muito clara – afirmou,
olhando-me profundamente nas pupilas. – Se avançares com tratamentos
tradicionais de quimioterapia, vais morrer.
O Guru do Cancro explicou que ia usar uma técnica de avaliação
muscular para ter uma ideia mais exata do que estava a acontecer. Isso
envolvia colocar-me na língua diversos extratos de flores e, a seguir,
avaliar a força com que o meu corpo respondia. Fiquei uma hora em pé na
sala do atrelado, como um espantalho, a trocar olhares de espanto com a
minha mãe, enquanto o Guru do Cancro empurrava para baixo os meus
braços esticados, brincava com centenas de tubinhos de vidro e
escrevinhava notas num papel.
– Já te podes sentar – disse, por fim. Exausta, afundei-me no sofá, ao
lado da minha mãe, ela e eu ansiosas por que a consulta acabasse. Mas o
Guru do Cancro só estava a começar. Dirigiu-se à minha mãe.
– Tenho boas notícias e tenho más notícias. A má notícia é que a sua
filha tem de facto leucemia. – Disse aquilo de uma forma solene, como se
até aí existissem dúvidas sobre o facto. – A boa notícia é que consigo curá-
la.
Nessa altura, o Guru do Cancro começou a pregar, batendo os pés e
agitando as mãos para sublinhar as palavras, como se fosse um tele-
evangelista movido a cocaína. Na hora e meia seguinte, bombardeou-nos
com histórias sucessivas de doentes de cancro que tinham ignorado os
seus conselhos e ido ao hospital para se tratarem.
– Nunca saíram de lá! – gritou numa voz trovejante. – Morreram em
agonia, mortes provocadas pela quimioterapia! Quer que isso lhe
aconteça? Quer?
Eu gostava de poder dizer que a minha mãe e eu interrompemos o Guru
do Cancro – e lhe dissemos onde é que havia exatamente de meter os
tubinhos de vidro com extratos de flores. Mas ter medo de perder a vida
pode baralhar os sentidos, pode emudecer a língua. Enquanto o Guru do
Cancro continuava a atirar-nos as suas teorias, eu e a minha mãe
encolhemo-nos nas almofadas de cornucópias com manchas, que cobriam
o sofá. Foi só quando ele nos levou à cozinha minúscula na parte da frente
do trailer e tentou tirar-me sangue sem sequer lavar as mãos que a minha
mãe bateu com a mão na mesa e afirmou, com a voz a tremer: “Penso que
está na altura de irmos embora.” Vestimos os casacos e saímos, mas não
antes de ele nos ter pressionado a comprar duzentos dólares de
suplementos vitamínicos e vários litros de sumo de aloé vera.
No caminho para casa, a minha mãe e eu seguimos num silêncio
espantado.
– Nem acredito que te fiz passar por isto – disse-me. – Sinto-me a pior
mãe do mundo. Lamento muito, mesmo muito…
Mais tarde, passaria a olhar para este episódio como um momento de
grande humor negro – tal como para muitos outros ocorridos ao longo da
viagem surreal que é fazer frente ao cancro. Mas, naquele momento,
pesava fortemente sobre mim um sentido de responsabilidade. Só tinham
passado quarenta e oito horas, mas o meu diagnóstico já tinha virado as
nossas vidas do avesso, lançando-nos por uma porta giratória para esta
terra estranha e confusa.
Por isso, antes que a minha mãe pudesse acabar, interrompi.
– A culpa é minha. Fui eu que nos meti nesta trapalhada toda.
*

De regresso a casa, na segurança do meu quarto, entrei em modo jornalista


de investigação. Ao fim de vinte minutos a pesquisar na Internet, descobri
que o Guru do Cancro não era na verdade cinesiologista de formação,
como nos afirmara, mas sim veterinário. Uma década antes, tinha sido
levado a tribunal, com uma acusação, em 71 pontos, por práticas médicas
e de dentista, sem licença, na espécie errada: a humana. Uma das
acusações descrevia em pormenor como usara agulhas sujas para injetar
urina em doentes. Estas alegações seguiram-se a uma investigação
anterior, em 1995, que o considerou culpado de prática médica não
autorizada, depois de ter aconselhado uma doente a beber mais de dez
litros de água e a consumir uma centena de suplementos por dia, o que
levou à hospitalização da mulher.
Prometi a mim mesma aprender tudo o que pudesse sobre a doença que
me fora diagnosticada: mergulhar de cabeça em publicações de
investigação, fazer uma lista de especialistas a entrevistar, esquadrinhar
todos os recantos da Internet à procura de informação. Precisava de
encontrar uma maneira de ganhar controlo sobre o que estava a acontecer-
me e decidi que, quanto mais soubesse sobre a minha doença, maiores
seriam as minhas hipóteses de sobreviver. Conhecimento é poder, certo?
Mas, nas horas que se seguiram, ao debruçar-me sobre a minha doença,
não me senti com mais poder. As estatísticas em que tropecei deixaram-me
o sangue gelado. O gelo tornou-se mais intenso quando fiquei a saber que
apenas um em quatro doentes com o meu tipo de leucemia conseguia
sobreviver cinco anos ao diagnóstico. Fiquei a pensar se os meus pais
saberiam isso. Rezei para que não soubessem.
*
Quarenta e oito horas depois do diagnóstico, de detrás das cortinas da
janela do meu quarto, vi um carro a parar em frente à casa, com os pneus a
chiar na gravilha do acesso. Era o Will, acabado de sair do avião de Paris.
Estacou no passeio, para avaliar o quarteirão verde, com as árvores
alinhadas, e a casa vitoriana, branca, com persianas verdes, ladeada pelos
arbustos de lilases, narcisos e corações-sangrentos de que a minha cuidava
todas as tardes. Por um momento, fiquei sem saber o que me punha mais
nervosa: o Will ir conhecer os meus pais ou a quimioterapia que ia
começar daí a uns dias. No passado, o meu pai tinha sido sempre de uma
dureza impiedosa com os meus namorados – embora fosse mais rigoroso
afirmar que mal reconhecia que eles existiam. Mas, desta vez, foi
diferente. Quando conheceu o Will, apertou-lhe a mão e agradeceu-lhe
repetidamente por ter vindo.
– Estou tão contente que esteja aqui… – disse-lhe o meu pai.
Pela primeira vez, os meus pais não montaram uma cama no estúdio
quando um rapaz veio passar a noite. Creio que tínhamos todos problemas
maiores para nos preocupar do que manter as aparências. O ambiente
estava húmido e quente quando o Will e eu fomos para a cama nessa noite
e o ar era como um cobertor de lã molhado que caía sobre nós. Despimo-
nos e fizemos sexo no meu quarto de infância, com as suas paredes cor-
de-rosa e posters, com todo o cuidado para não acordarmos os meus pais,
que dormiam no quarto ao lado. A seguir, o Will começou a chorar.
– Vão acontecer muitas coisas más – disse. – Precisamos de guardar a
nossa relação numa caixa e de a proteger com tudo aquilo que temos.
8

MERCADORIA COM DEFEITO

A minha mãe, uma pianista clássica com talento, ensinou-me as primeiras


escalas e pôs-me na música logo no jardim de infância, mas foi só na
quarta classe que escolhi música por minha iniciativa. A menina
McNamara, a professora de música na escola primária de Lake Avenue,
pôs-se em frente da turma com uma dezena de instrumentos de corda
alinhados junto à parede e convidou-nos: “Venham escolher o vosso
instrumento.”
A ideia de poder escolher o meu instrumento foi uma revelação. Os
violinos e violoncelos eram os mais procurados, mas eu tinha curiosidade
por aquele grande objeto de madeira na ponta da fila, encostado ao
quadro. O contrabaixo. Era mais alto do que eu – até era maior do que o
Richard Saxton, que era o miúdo mais alto da turma – e, mais do que isso,
a minha professora disse-me que eu era, que ela se lembrasse, das poucas
raparigas a ter mostrado interesse em tocá-lo. Senti-me estranhamente
atraída para o bojo do instrumento, para o seu tronco de madeira moldada
e para o pescoço comprido que se curvava para cima, enrolado. Dedilhei
as cordas, grossas como lagartas, e um resmungo de notas musicais, baixo
e agradável, escapou-se dos orifícios em forma de f. Com um nome
impronunciável e pais imigrantes, eu sempre me tinha sentido uma
inadaptada na escola e pareceu-me que, à sua maneira, o contrabaixo
também era uma espécie de pária. Nessa tarde, levei o instrumento para
casa e dei-lhe um nome: Charlie Brown. Eu ia ser contrabaixista. “OK,
muito bem”, disse-me a minha mãe, “desde que prometas continuar com
as aulas de piano.”
Com 16 anos, ofereceram-me uma bolsa para o programa pré-
universitário na Julliard School, em Nova Iorque. Nos dois anos seguintes,
todos os sábados, levantei-me às quatro da manhã e o meu pai levou-me
de carro a Albany, uma viagem de quarenta e cinco minutos, para poder
apanhar o comboio para a cidade – três horas no Amtrak –, o que mal dava
para chegar a tempo da aula de teoria da música das nove da manhã. Ao
fim de um dia comprido com ensaios de orquestra, master classes e
audições, carregava com o contrabaixo até ao autocarro M66 e seguia para
o Upper East Side, onde passava a noite com a minha amiga Caroline e
com a família, antes de regressar a casa de comboio na manhã seguinte.
Para onde quer que fosse, o meu contrabaixo ia comigo. Atraía olhares – e,
às vezes, ofertas de ajuda indesejadas de homens esquisitos. Carregá-lo
pelo metro, pelo autocarro e pelas ruas de Manhattan não era brincadeira –
em especial para uma adolescente que insistia em usar sapatos pouco
práticos –, mas valia a pena. Quando chegava a algum lado para tocar,
sentia que já tinha feito o aquecimento.
*

Seis anos mais tarde, nos dias que se seguiram ao meu diagnóstico, dei
comigo a fazer a mesma viagem de quatro horas até à cidade e a ficar na
casa dessa mesma amiga onde passava a noite quando era adolescente.
O compromisso, agora, era com a minha nova equipa médica. O médico
de Saratoga disse que a minha leucemia estava demasiado avançada para
ser tratada ali; era preciso transferir-me para um dos centros oncológicos
de Manhattan.
O pai de Caroline era um sobrevivente de cancro – por duas vezes – e
quando soube da minha doença telefonou logo aos meus pais para lhes dar
apoio. Encaminhou-nos para um dos mais reputados oncologistas da
cidade e insistiu generosamente que ficássemos no apartamento deles
enquanto fosse preciso. Eu depressa perceberia como tudo isto constituía
um privilégio extraordinário. Sem o seguro de saúde a que tive direito
através do empregador do meu pai, sem os pagamentos por incapacidade
vindos do meu emprego como estagiária, que ajudavam a custear as contas
médicas, já a crescer, e sem os amigos que nos ofereceram casa e
conhecimentos, a minha família teria enfrentado a ruína financeira – e eu
teria enfrentado uma morte certa.
*

Na ala oncológica do hospital Monte Sinai era tudo da cor de papa de


bebé: alcatifas beges, paredes beges, cadeiras em vinil beges. A sala de
espera estava apinhada de doentes, muitos deles carecas, alguns em
cadeiras de rodas, outros a vaguear amparados em andarilhos. Os meus
pais e o Will foram comigo à primeira consulta e, quando nos sentámos,
não consegui deixar de reparar que eu era, com décadas de diferença, a
doente mais nova na sala. Junto da secretária da receção havia uma
máquina com gelado gratuito, o que era um pormenor bem pensado, e
servi-me um de morango. O frio adormeceu a meia dúzia de feridas que
infestavam o interior da minha boca. No canto da sala havia uma televisão
ligada, a cintilar, mas sem som. No ecrã, reparei numa cara familiar, uma
loura voluptuosa que mostrava como fazer uma salada de melancia e
queijo feta, enfeitada com pedacinhos de hortelã. Reconheci-a. Tinha
andado comigo na faculdade, um ano à minha frente, e agora,
aparentemente, apresentava um programa de culinária na televisão. Ah, e
também parecia estar grávida – debaixo do avental via-se a protuberância
de uma barriguinha. Pensei, incrédula, como era estranho estar ali, naquela
sala, enquanto os meus pares andavam lá fora, a iniciar carreiras, a ter
bebés, a viajar pelo mundo e a cumprir todas as outras etapas de um jovem
adulto.
Ao fim de quase duas horas de espera, fomos levados a uma sala
assética e recebidos por um homem mais velho com uma bata branca e
uma gravata de seda azul.
– Sou o Dr. Holland – disse, com um sorriso largo e caloroso. Tinha
cabelo branco bem penteado, sobrancelhas espessas e nariz proeminente.
Embora já curvado pela idade, possuía uma presença imponente. – Regra
número um, nada de apertos de mão, a ninguém – indicou sem rodeios,
deixando-me de braço estendido. – A sua baixa contagem de glóbulos
torna-a extremamente vulnerável a germes e a partir de agora precisa de
ter muito cuidado.
O Dr. Holland era o responsável principal de oncologia no hospital
Monte Sinai. Era considerado um dos pais fundadores da quimioterapia e
fora pioneiro em tratamentos que salvaram a vida a um número imenso de
doentes de cancro. Nos anos 50, quando concluiu o curso de medicina, a
leucemia ainda era considerada uma condenação à morte. Alguns colegas
tinham-lhe chamado a ele e aos seus colaboradores “cowboys da
investigação”, por tentarem curar a doença incurável com a administração
de vários medicamentos de quimioterapia em simultâneo, em vez de
sequencialmente. O ensaio clínico para conter a leucemia, que o Dr.
Holland dirigira, tinha-se revelado bem-sucedido e, desde então, tinha-se
tornado o tratamento-padrão para doentes como eu. Agora, apesar de já
estar nos oitenta e muitos anos, ainda trabalhava cinco dias por semana,
tanto a ver doentes como a realizar investigação. Os seus olhos, ampliados
por óculos enormes com aros de metal, não deixavam passar nada,
enquanto me estudava e aos meus acompanhantes.
– Devem ser a mãe e o pai – disse, fazendo um gesto com a cabeça aos
meus pais. – E o senhor é? – perguntou, voltando-se para o Will.
– O namorado – respondeu o Will.
– Muito bem. Estou contente por estarem todos aqui – disse o Dr.
Holland. – A Suleika vai precisar do vosso apoio, de muito apoio. E vocês
vão precisar de se cuidar muito bem, para poderem estar fortes para ela.
Na meia hora seguinte, o Dr. Holland preparou-nos para o que viria a
seguir, enquanto a minha mãe tomava diligentemente notas. Eu seria
internada no hospital no dia seguinte ou no próximo e ficaria lá
aproximadamente três semanas, enquanto era submetida a um ciclo
agressivo de quimioterapia. A meta era eliminar o maior número possível
de células da leucemia – ou linfoblastos, em linguagem médica. Estes
monstros grandes, imaturos, que se multiplicam rapidamente, queriam
dizer que o cancro estava presente na minha medula. O regime de
quimioterapia, descrito como “sete mais três”, consistia em dois
medicamentos intravenosos muito poderosos, a citarabina e a
daunorrubicina, que me seriam administrados ao longo de sete dias. Todos
estes novos termos eram esmagadores – e desejei então ter estado com
mais atenção nas aulas de ciências no liceu.
– Se tudo correr bem, depressa estará em casa a recuperar e poderá
desfrutar do resto do verão – afirmou com otimismo, mas tendo o cuidado
de não fazer promessas.
O Dr. Holland pediu-me para subir para a marquesa de exame. Viu-me a
boca, estalou a língua quando viu as feridas e falou de receitar uma coisa
mais forte para as dores. Auscultou-me o coração e os pulmões e palpou a
minha barriga vazia. A meio do exame, fomos interrompidos por dois
médicos, um homem de meia-idade com bigode grisalho e uma mulher
jovem com brincos esmeralda compridos.
– Desculpem interromper – disse um deles. – Chegaram os resultados
que faltavam da biópsia dela e precisamos que os veja imediatamente.
Os três médicos saíram apressados, deixando-nos sós. O Will, os meus
pais e eu ficámos em silêncio, a trocar olhares preocupados.
Quando regressaram, uns minutos depois, a boca do Dr. Holland tinha-
se tornado um travessão – direito e triste. Explicou que os exames
adicionais tinham revelado que a minha leucemia era bem mais
complicada do que se podia prever. Tinha uma desordem rara na medula,
chamada síndroma mielodisplásica, conhecida como pré-leucemia, que
não tinha sido diagnosticada. Provavelmente, já a tinha há bastante tempo,
o que explicava o aparecimento lento dos sintomas que sentira no último
ano – a comichão, o cansaço, a anemia, a falta de ar e as constipações
frequentes –, antes de o meu estado se ter tornado mais agudo e passado a
uma leucemia total. A síndroma mielodisplásica afeta em geral doentes
com mais de sessenta anos, explicou o Dr. Holland. Não tinha uma causa
conhecida, embora estivesse ligada à exposição a produtos químicos
tóxicos como benzeno, pesticidas e metais pesados, como o chumbo.
– Quando eras bebé, costumava levar-te para o meu estúdio e pintava
contigo presa ao meu peito numa funda – disse a minha mãe, com a cara
hirta de culpa. – É possível isto ter sido causado pela exposição aos
vapores da tinta?
– Isto não é culpa de ninguém – disse suavemente o Dr. Holland. – Às
vezes, estas coisas simplesmente acontecem e não sabemos porquê. Não
deve culpar-se.
Até este momento, o meu conhecimento sobre medula resumia-se à
cuisine francesa – boeuf à la moelle, o prato exótico servido às vezes com
baguete torrada. O Dr. Holland explicou que a medula, um órgão situado
mesmo no núcleo do corpo, era um tecido vivo, como uma esponja, que
preenchia quase todos os ossos. Numa pessoa saudável, era responsável
pela produção de todas as células sanguíneas: os glóbulos brancos que
combatem as infeções, os vermelhos que fornecem oxigénio e as plaquetas
que estancam a perda de sangue. Numa pessoa com síndroma
mielodisplásica, este processo era perturbado. Em vez de se
desenvolverem normalmente, as células sanguíneas morriam na medula ou
logo depois de entrarem na corrente sanguínea. Até com quimioterapia
intensa, eu acabaria eventualmente por chegar a um ponto conhecido
como “falência de medula”. Outros termos tenebrosos que eu ainda não
compreendia, como “anomalias cromossómicas múltiplas”, “monossomia
do cromossoma sete” e “prognóstico pobre”, também foram mencionados.
Tudo isto queria dizer que, para além da quimioterapia, eu poderia
precisar de um transplante de medula. Era uma operação perigosa e
complicada, com uma taxa de mortalidade elevada, mas era a minha única
hipótese de cura, como explicou o Dr. Holland. Só seria elegível para um
transplante se a quimioterapia conseguisse reduzir a percentagem de
linfoblastos leucémicos na minha medula a menos de 5 por cento – e,
claro, se conseguisse encontrar um dador compatível. Sem dador, o
caminho para a cura tornava-se muito menos certo, ou mesmo impossível.
Encontrar a compatibilidade era particularmente difícil para minorias sub-
representadas nos registos de medula. Sendo uma norte-americana de
primeira geração e de origem étnica mista, estava numa posição
assustadora. Andar à procura de medula suíço-tunisina compatível ia
tornar mais moroso todo o processo. A minha melhor esperança era o meu
irmão, que ainda estava a estudar na Argentina. Era preciso que ele
largasse a escola e se metesse imediatamente num avião para Nova Iorque,
para fazer exames. Mas o Dr. Holland era cauteloso a temperar a
esperança com a realidade. Os irmãos eram a melhor hipótese de
compatibilidade, mas ela só existia em vinte e cinco por cento dos casos.
Eu tinha pensado que ter um diagnóstico representaria o fim de meses de
ansiedade. Estava enganada. Aprendia agora que, em casos como o meu, a
medicina era mais uma arte do que uma ciência.
O Dr. Holland suspirou, parecendo subitamente muito cansado.
– Temos pela frente um caminho longo e difícil. A leucemia é uma
doença para médicos jovens e eu sozinho não vou conseguir lidar com o
teu caso. Vou designar a Dra. Navada e o Dr. Silverman para ajudarem –
disse, apontando para os colegas. – Juntos, trabalharemos como uma
equipa para garantir que terás o melhor tratamento. Prometemos fazer
tudo o que pudermos para te ajudar a chegar ao outro lado.
Mais tarde, nessa noite, estava deitada no escuro, sem dormir. Eram três
da manhã e o Will ressonava levemente ao meu lado. Abri o portátil e
comecei a ler sobre transplante de medula, bem como sobre o regime de
quimioterapia que ia começar daí a uns dias. Na lista dos efeitos
secundários, mencionado entre vómitos, perda de cabelo, danos cardíacos
e falência de órgãos, vi uma coisa que me perturbou mais do que qualquer
uma das más notícias que já tinha tido: era muito provável que o
tratamento para o cancro que podia salvar-me a vida também me deixasse
infértil. Desde o diagnóstico, eu já tinha sentido alívio, e depois choque,
confusão e horror. E, agora, havia outra coisa: uma sensação dolorosa de
um capítulo a fechar-se.
*

O cancro é uma urgência e os oncologistas são quem presta os primeiros


socorros. São ensinados a derrotá-lo e tudo o resto tem de passar para
segundo plano. Quando o plano de tratamento estava a ser elaborado,
ninguém na minha equipa médica mencionou a infertilidade como efeito
secundário potencial. Foi só depois de eu ter feito perguntas sobre isso, na
nossa consulta do dia seguinte, que os meus oncologistas me falaram das
opções: podia submeter-me a tratamentos para preservação da fertilidade,
congelando óvulos ou embriões. Dependendo do ponto do ciclo menstrual
em que me encontrasse, isto podia demorar semanas, e teria de adiar a
quimioterapia, o que eles desaconselhavam vivamente. Mas, em última
análise, a escolha era minha.
Por muito que apreciasse o apoio deles, senti que a falta de comunicação
num ponto tão importante era como que uma quebra de confiança, logo no
início da nossa relação doente-médicos. A maior parte dos doentes com o
meu tipo de leucemia já tinham passado há muito a idade em que podiam
ter filhos. Embora a minha equipa médica estivesse focada em salvar-me a
vida, preservar a minha hipótese de um dia ser mãe parecia não ter estado
no seu radar. Foi a minha primeira indicação de que, por muito brilhantes
e dedicados que os meus médicos pudessem ser, eu teria de ser proativa e
aprender a agir em defesa dos meus interesses.
Com vinte e dois anos, o mais que tinha pensado na maternidade era
como não me tornar mãe antes de estar preparada para isso. Na faculdade,
das poucas vezes em que tive razões para comprar um teste de gravidez,
lembrava-me da descarga de alívio que sentira, sentada no meu quarto,
quando na vareta apareceu um tracinho, em vez de dois. Mas agora, ao
pensar na possibilidade de nunca ser capaz de ter filhos meus, sentia a
garganta apertada com mágoa. Em segredo, sempre pensara que, quando
fosse mais velha, se engravidasse, isso aconteceria como aconteceu com a
minha mãe: de uma forma orgânica e não planeada, mas uma boa
surpresa. Já não seria assim.
Depois da consulta com a equipa de oncologistas, eu, os meus pais e o
Will fomos almoçar a um restaurante próximo. Para onde quer que
olhasse, os passeios pareciam estar cheios de mulheres grávidas, de mães
jovens a empurrar carrinhos de bebé e de crianças com batas da escola a
saltar e a cantar a caminho de casa. Ao vê-las, senti uma onda de vontade
a percorrer-me, como se uma qualquer parte primordial de mim
despertasse. Embora ainda não tivesse certeza se queria filhos, soube
nesse momento que queria fazer tudo o que pudesse para manter essa
opção em aberto para o meu futuro eu.
*

A mini carrinha da família imobilizou-se junto do cruzamento da 59th


Street com a York. O Will esfregou-me a barriga com álcool e pegou com
firmeza na seringa. No banco da frente, os meus pais assistiam, estudando
em silêncio o jovem que conheciam há pouco mais de duas semanas.
A seringa continha gonadotropina, uma hormona que estimula os ovários
para produzir óvulos. Na clínica de fertilidade, uma enfermeira tinha-nos
ensinado a administrar as injeções, treinando numa almofada cor-de-carne.
Como eu tinha pânico de agulhas, ou o Will ou a minha mãe tinham
ajudado a dar as injeções, todas as manhãs e todas as noites nos últimos
dez dias, beliscando a pele da barriga e injetando-a com os frascos da
substância. Naquele dia, no fim da viagem entre Saratoga e Manhattan, era
a vez do Will.
O trânsito estava parado e estávamos atrasados para a minha última
consulta na clínica de fertilidade. A atmosfera era tensa. Assim que os
tratamentos de fertilidade estivessem concluídos, teria de ser internada no
hospital e começar com a quimioterapia. Não regressaria a casa antes de
algumas semanas. Na noite anterior, sentei-me à mesa do pátio das
traseiras e o meu pai fez umas lulas na grelha com molho picante, cheio de
harissa, que era o seu favorito desde miúdo. A minha mãe acendeu velas e
o Will ajudou a pôr a mesa. Eu devia estar a saborear os meus últimos dias
de liberdade, mas os medicamentos para a fertilidade deixavam-me
agitada. Punham-me irritadiça e inchada e a cintura das minhas jeans
apertava-me o estômago magoado. Olhei para o Will, sentado à mesa à
minha frente. Só nos conhecíamos há seis meses, mas aqui estávamos,
com os meus pais, a discutir os prós e contras de congelar embriões ou de
congelar apenas os meus óvulos. Por qualquer padrão objetivo, era
território muito incómodo.
– Estou a pôr a vida em risco ao adiar a quimioterapia – afirmei. –
Tomei a decisão de fazer esta coisa da fertilidade, por isso penso que devo
seguir a opção dos embriões, já que a hipótese de êxito é muito maior.
– Mas para teres embriões, precisas de… esperma – disse a minha mãe,
com o sotaque suíço a enrolar-se estranhamente à volta da palavra.
– Estava a pensar que podia arranjar um dador, tipo, num banco de
esperma.
– A sério? – perguntou ela. – Não saberias necessariamente quem é o
dador, como é que é, de onde é, qual poderia ser o historial médico da
família…
– Quem é mercadoria com defeito, aqui, sou eu – respondi. A frase saiu-
me mais dura do que eu queria e a minha mãe olhou para mim como se
fosse começar a chorar. Os olhos do meu pai mantiveram-se focados nas
lulas, porque a conversa tinha saído há muito tempo da sua zona de
conforto.
Voltando-se para mim, o Will disse: “Eu podia ser o teu dador de
esperma. Sei quanto isto é importante para ti, mas claro que é contigo.”
Neste momento, amei-o mais profundamente do que julgava possível
amar alguém. Amava que ele tivesse vindo para ao pé de mim na pior
semana da minha vida. Amava que ele se tivesse dado bem
instantaneamente com os meus pais e estivesse sempre a arranjar maneiras
de nos fazer rir a todos, apesar das circunstâncias terríveis em que nos
tínhamos reunido. E amava que ele estivesse disposto a discutir os temas
difíceis relacionados com óvulos, esperma e embriões, os meus futuros
filhos, talvez até os nossos futuros filhos, e como podiam ser trazidos a
este mundo. Amava, também, que ele fosse homem para falar disto tudo à
frente do meu pai, em vez de começar a fugir para a saída mais próxima.
*
Na clínica de fertilidade, as paredes eram despidas, com a exceção de um
cartaz que dizia: CRIANÇAS NÃO AUTORIZADAS. Várias mulheres,
umas sozinhas, outras com companheiros, estavam sentadas em cadeiras
reclinadas, à espera que a senhora de bata aparecesse a chamar o nome
seguinte. Pensei que a maior parte devia estar a pagar o preço máximo
para ali estar. Os tratamentos de preservação de fertilidade podem custar
até 25 mil dólares e muitas vezes não são cobertos pelos seguros. No meu
caso, a minha equipa médica tinha-me ajudado a conseguir um subsídio
para pagar a conta, através de uma organização chamada Fertile Hope1.
Na maior parte dos consultórios médicos é difícil saber porque é que a
pessoa estranha ao nosso lado ali se encontra, mas aqui estavam todas pelo
mesmo motivo. Havia tensão na sala. Ninguém falava, mas todos
pareciam avaliar-se uns aos outros. A maior parte das mulheres pareciam a
meio da casa dos trinta anos e algumas podiam estar nos quarenta. A partir
da forma como estavam vestidas, imaginei que teriam trabalhos para onde
regressar depois da consulta. Eu, ali sentada, ao lado dos meus pais e do
meu namorado, com a minha sweatshirt com capuz da faculdade, a dizer
CLASS OF 2010, senti-me profundamente deslocada.
Uma enfermeira chamou-me à sala de observação. Tirou-me sangue
para verificar os meus níveis de estrogénio e deu-me um copo de sumo de
maçã para beber. A seguir, tirei a roupa e vesti uma bata de algodão.
Deitei-me na marquesa, com o tecido de papel a restolhar debaixo de mim
enquanto encaixava os pés nos aros metálicos. O médico de fertilidade,
um homem com cabelo preto pintado, aplicou um grande preservativo de
borracha sobre uma sonda de ultrassons transvaginal. Encolhi-me quando
ouvi o esguichar do lubrificante a ser aplicado na extremidade do aparelho
e fechei os olhos quando ele mergulhou entre as minhas pernas. O médico
ligou o monitor, à procura dos meus ovários, até que apareceram os
folículos, os sacos cheios de fluído onde os óvulos amadurecem, parecidos
com uma escova de cabelo.
– Parabéns, parece que está madura para a colheita – disse o médico,
acenando para o ecrã. – Já decidiu se quer criar embriões ou apenas
congelar os óvulos?
– Neste momento, estou a pensar em embriões – respondi. – O meu
namorado, o Will, ofereceu-se para ser o meu dador de esperma.
– Estou a ver – respondeu o médico, sem emoção. – Nesse caso, penso
que era boa ideia vocês os dois falarem com a assistente social antes de se
irem embora, para preencherem a papelada que é precisa.
Os meus óvulos (eu e o Will já tínhamos começado a chamar-lhes
“totsicles”2) seriam recolhidos cirurgicamente no dia seguinte. Eu seria
anestesiada e o procedimento, que o médico me garantiu ser rápido e
quase indolor, não demoraria mais de meia hora. Os óvulos seriam depois
fertilizados com esperma numa placa de Petri para formar embriões e
guardados num banco criogénico.
Uns minutos depois, a assistente chamou-nos, a mim e ao Will, ao seu
gabinete. Desaconselhou-nos fortemente a opção pelos embriões,
apontando os obstáculos legais e emocionais imprevisíveis que
poderíamos ter pela frente: Como poderíamos estar a planear ter uma
criança se apenas há pouco tempo tínhamos começado a namorar? E se
nos separássemos? E o que sucederia se eu não sobrevivesse – a quem
pertenceriam então os embriões? Eu tentava pensar numa contra-
argumentação, mas não me saía nada. O Will estava sentado em silêncio,
de cabeça baixa, a olhar para os sapatos. Eu tinha adiado o mais possível a
decisão. O médico de fertilidade regressou, aguardando a minha resposta,
mas eu estava envolta nas minhas próprias dúvidas: Como é que podia
fazer uma escolha destas num espaço de tempo tão curto? Como é que
podia escolher entre a esperança que tinha para o nosso futuro juntos e o
facto indesmentível de que nada estava garantido? Entre o entusiasmo do
novo amor e a rigidez gélida da lógica? Os segundos iam passando e eu
tinha mesmo de dar uma resposta. Com mais do que um pouco de
relutância, disse ao médico para congelar apenas os meus óvulos.
A sequência disto tudo, como, de resto, de tudo o que se passara nos
últimos dias, parecia desesperadamente desordenada. Mas a minha nova
realidade era esta. Tanto quanto sabia, as mulheres que estavam na sala de
espera não tinham cancro, mas eu estava ligada a elas. Os meus peitos,
como os delas, estavam suaves e entumecidos, por causa das injeções de
hormonas. Os nossos corpos estavam a enviar-nos sinais para ficarmos
prontas para a gravidez, embora nenhuma de nós pudesse ter a certeza de
que ela ia acontecer. Embora não estivesse a fazer planos para ter um bebé
em breve, preservar a minha capacidade para ter um parecia ser a minha
única ligação vital a um futuro incerto.
1 Em português: esperança fértil. (N. do T.)

2 Designação informal de embriões concebidos por fertilização in vitro e criopreservados, num


trocadilho com a palavra "popsicle", que significa gelado de água. (N. do T.)
9

RAPARIGA NA BOLHA

A manhã de primavera no Upper East Side de Manhattan estava perfeita,


sob um céu cristalino, de um azul intenso. Estacionámos a carrinha e
fizemos a pé os dez quarteirões até ao hospital Monte Sinai, passando pela
sequência de porteiros de uniforme ao longo da Quinta Avenida. Reparei
numas nuvens que flutuavam levemente sobre nós, como se fossem lenços
de papel. Observei o Central Park, a explodir de cor, com os verdes
luxuriantes das folhas jovens que despontavam das árvores, as manchas
fúcsia das azáleas e as túlipas amarelo-pálido a brotarem da terra. Abri
mais os olhos, procurando absorver tudo, guardar na memória a sensação
do sol a bater no cabelo e a forma como a brisa primaveril me soprava na
nuca.
Quando chegámos às escadas da entrada principal do hospital, os meus
pais pararam, para me darem um brinco de prata com um amuleto
turquesa. “A cada nova etapa que atingires no teu tratamento, dar-te-ei
outro amuleto”, disse a minha mãe. A boca dela sorria, mas os olhos
estavam congelados numa tristeza que eu nunca vira antes. O Will também
tinha um presente: um bloco de notas Moleskine. No interior, onde dizia,
“Em caso de extravio, por favor devolva a:” ele tinha escrito a minha
alcunha de criança, “Susu”, e “recompensa de um milhão de dólares se for
entregue ao proprietário”. Antes de as portas de vidro se abrirem e de
entrarmos, inspirei uma última lufada de ar fresco e contive-a nos pulmões
o máximo que pude. Sabia que ia passar muito tempo até poder voltar a
sair outra vez.
Fui conduzida pela escada acima até à oncologia e levada para um
quarto despojado, com duas camas de hospital entre paredes brancas nuas.
Como estavam as duas vazias, escolhi a mais próxima da janela. Pendurei
no armário o meu vestido de verão favorito, como se fosse um atleta que
se despede da competição e guarda no cacifo a sua camisola, e vesti uma
bata de hospital sem costas. Puseram-me no pulso direito uma pulseira
eletrónica, uma precaução que tomam por causa de doentes que,
carregados de analgésicos ou perdidos num nevoeiro de demência, às
vezes tentam sair do hospital. Assinei tantos documentos que lhes perdi a
conta, incluindo um a designar a minha mãe como a pessoa responsável
pelas decisões relativas à minha saúde, em caso de incapacidade minha.
Também assinei um testamento vital. A seguir, levaram-me para a cirurgia,
onde me implantaram um cateter no peito, criando uma linha central pela
qual seriam administrados os fluidos da químio e intravenosos.
Quando acordei, na sala de recobro, olhei para o meu peito
ensanguentado. Havia um tubo de plástico a sair de uma ferida por baixo
do pescoço, com três tubos mais pequenos pendurados, como se fossem os
tentáculos de uma qualquer aberrante criatura marinha. Essa visão do meu
corpo alterado chocou-me. Debrucei-me sobre as grades da cama e
vomitei. Até aí, com a exceção das feridas na boca, a minha doença tinha
sido em geral invisível. Até certo ponto, estava agora a começar a perceber
que a minha vida de antes estava desfeita – e a pessoa que eu fora,
enterrada. Nunca mais seria a mesma. Até o meu nome tinha sido mudado,
embora não de propósito. Ao ser levada de volta para a enfermaria de
oncologia, reparei que na placa na porta do quarto estava escrito S.
JAQUAD – com um q onde devia estar um o. Estava a entrar numa nova
terra. E a cada passo que dava sentia-me menos Suleika.
Entraram no quarto duas enfermeiras com sacos intravenosos com
medicamentos de quimioterapia e anti náusea que, ao longo de toda a
semana seguinte, iam correr-me para as veias. A mais nova apresentou-se:
Younique. Parecia ter mais ou menos a minha idade, e o cabelo, preto e
frisado, estava atado atrás, num nó prático. Olhei para ela com o ar cético
de quem está prestes a permitir que uma estranha absoluta a envenene.
“Tenha cuidado com aquele pequenino”, avisou-me a Younique,
apontando para o mais pequeno dos dois sacos. Continha um dos
medicamentos da químio, da cor de um batido de frutas. “Alguns
chamam-lhe o Diabo Vermelho, porque os efeitos secundários podem ser
terríveis. Se precisar de alguma coisa, é só carregar no botão.”
O Will e os meus pais, sentados em cadeiras dobráveis, ficaram a
observar-me enquanto o sol, lá fora, passou de um branco quente a um
laranja esfumado. Eu ia preenchendo os silêncios com piadas idiotas e
uma corrente contínua de conversa avulsa. Tinha trazido de casa os meus
chinelos e o meu peluche favorito, tal como uma pilha de livros em que
tencionava avançar enquanto ficasse no hospital. “É como se me tivesse
mudado para um quarto no dormitório no primeiro dia de faculdade”,
disse com entusiasmo, pegando no Guerra e Paz de Tolstoi e folheando-o.
“Vou conseguir pôr a leitura em dia. Talvez até seja capaz de escrever
enquanto aqui estiver.”
Eu estava a falar a sério – queria mesmo avançar, tentar fazer alguma
coisa. Desde que soubera o diagnóstico que tinha andado a funcionar
numa estranha excitação, com o corpo carregado de adrenalina e medo,
com um otimismo desesperado a correr-me nas artérias. A doença fatal
que arrasava o meu sangue e medula, a tristeza espartana deste quarto de
hospital, os efeitos secundários aterrorizadores da químio que aí vinham…
eu tinha a certeza de que nada disto me deitaria abaixo. Se esta
experiência tivesse alguma consequência, seria deixar-me mais forte.
Quem sabe? Até talvez me tornasse um desses antigos doentes de cancro
que criam uma fundação de investigação ou correm ultramaratonas. Mas,
acima de tudo, eu queria atenuar a preocupação que toldava os rostos dos
meus pais e do Will – queria convencê-los de que ia correr tudo bem.
Enquanto eu ia falando, eles lançavam-me sorrisos ténues e murmuravam
palavras de encorajamento.
O céu ficou escuro. “Vão para casa e descansem”, disse-lhes. Os meus
pais e o Will estavam a ficar no apartamento do amigo da nossa família,
apenas a alguns quarteirões. Pareciam exaustos, mas não se mexeram. Só
se levantaram quando eu insisti. “Tens a certeza de que ficas bem
sozinha?”, perguntou a minha mãe, no vão da porta. “Estou ótima”,
respondi alegremente, mandando-os embora com a mão.
Foi só quando eles saíram que o rosto corajoso com que tinha andado
todo o dia começou a desmoronar-se e a fechar-se.
*

As enfermarias de oncologia, talvez mais do que qualquer outro sítio na


terra, são lugares sem música. Em vez de uma melodia a fluir, há bips sem
parar. De dia, ecoa pelos corredores um clamor constante, em ciclo, de
pedidos e de respostas: enfermeiras que gritam umas para as outras;
doentes que pedem morfina, às vezes aos gritos; enfermeiras que correm à
procura de médicos; visitas que procuram freneticamente uma enfermeira.
Mas, de certo modo, estes ruídos – por aborrecidos que sejam – são uma
distração bem-vinda, um lembrete de que a “máquina” hospitalar está a
funcionar saudavelmente. As horas mais assustadoras são aquelas depois
de escurecer, com os sons vazios do sofrimento em silêncio.
Younique tinha-me dado um Ambien antes de eu ir dormir. Passados uns
minutos, caí num torpor pesado, arrastada para um buraco mais escuro do
que a noite, sonhando com todos os doentes que antes de mim tinham
partilhado esta mesma almofada de hospital, com as suas caras emaciadas
a aparecerem-me em instantâneos durante o sono. Grogue e desorientada,
despertei pelas duas da madrugada, acordada pelo ruído de queixumes.
A princípio, pensei que estava a alucinar, mas quando acendi a luz
descobri que tinha uma companheira de quarto, uma mulher na casa dos
setenta anos que dera entrada nessa noite. Tinha os olhos fechados e
apertados e a boca contorcida, em sofrimento, enquanto arquejava de uma
forma curta e rápida pelos lábios gretados. Gemia e dava voltas, num
torpor induzido por medicamentos. A presença desta estranha, mergulhada
na sua dor, deu-me um relance do que estava para vir. Apaguei a luz e
corri a cortina verde translúcida entre as nossas camas. Não quis ver mais.
Fechei os olhos e procurei chamar a mim a força e o otimismo que sentira
no princípio do dia. Mas, em vez disso, só encontrei terror.
O mais silenciosamente que pude, peguei no telemóvel e liguei ao Will.
– O que se passa? – perguntou-me, com a voz ensonada. Tentei falar,
mas não me saiu qualquer som. – Vou apanhar um táxi e sigo já para aí –
disse.
Meia hora depois, a sua silhueta esguia recortou-se na porta. Passou em
bicos de pés pela cama da minha nova companheira e esticou-se ao meu
lado, com as pernas compridas a saírem da cama.
– Como é que fazem quando há jogadores da NBA com cancro? Têm de
encomendar camas de hospital extra compridas, feitas de propósito? –
sussurrei.
– Boa pergunta – respondeu ele. Puxei-me para cima, para ficarmos
testa com testa. Descontraí-me e deixei-me ir nos braços dele, respirando
o seu cheiro quente, a sabão, como uma pilha de rouba acabada de sair da
máquina de secar.
*

Na manhã seguinte, a minha companheira de quarto estava muito mais


bem disposta.
– Ei, Park Avenue! – chamou-me, quando me dirigia à casa de banho,
que ficava no lado dela do quarto. Era a quinta vez que ia nessa manhã.
A cirurgia para recolha de óvulos deixara-me com uma infeção urinária
dolorosa.
– Olá – disse-lhe, amparando-me ao suporte metálico da medicação. –
Chamo-me Suleika; muito gosto em conhecê-la.
– Sou a Estelle – respondeu, acenando-me da cama. – Muito prazer.
– Porque é que me chamou Park Avenue?
– Porque tem esse penteado todo elegante.
Inconscientemente, a minha mão viajou sozinha para o meu cabelo, com
um corte bob, a dar pelo queixo, a emoldurar-me o rosto. Uns dias antes
de ser internada, fui a um cabeleireiro e pedi que me cortassem o cabelo
enorme, que eu usava pela cintura. Foi uma espécie de ataque preventivo
contra a químio, que depressa levaria todo o meu cabelo, como se fosse
um troféu.
– Eu costumava usá-lo comprido – expliquei a Estelle. –Ainda pensei
em rapar a cabeça antes de vir, mas a minha mãe disse-me que não estava
preparada para me ver assim. Então, chegámos a este compromisso.
O cabeleireiro dera-me o cabelo cortado para levar para casa, uma
trança comprida castanho-avermelhada que eu pedi à minha mãe para doar
à organização Locks of Love. Meses depois, encontrei-a no estúdio dela,
guardada numa pequena caixa de madeira para joias.
– Bem, eu acho que lhe fica mesmo bem, mas se não se importa vou
continuar a chamar-lhe Park Avenue – disse Estelle. –A químio está a
atacar-me bastante o cérebro e sei que não vou conseguir lembrar-me do
seu outro nome.
Fiz que sim a rir.
– O que a traz aqui? – Eu queria perguntar-lhe que tipo de cancro é que
ela tinha, mas ainda não tinha a certeza de qual era a etiqueta entre
doentes.
– Cancro no fígado, fase quatro. E você? Uma menina como você não
devia estar aqui. Devia andar por aí a passear com o namorado. Pois, pois,
não pense que não ouvi os dois ontem à noite!
Corei.
– Leucemia, fase… não sei. Ainda não perguntei aos médicos.
– Cirurgia? Radiações? Químio? – perguntou a Estelle, como se
estivéssemos a discutir sabores de refrigerantes.
– Químio, primeiro ciclo. Dizem que vou ficar aqui mais ou menos três
semanas.
– Ups, é um ciclo comprido… É melhor ir dar uma volta pela unidade e
fazer um bocado de exercício enquanto ainda consegue.
*

A conselho da Estelle, ganhei o hábito de aproveitar cada momento


sempre que tinha energia suficiente para explorar. Usando o suporte
metálico dos sacos intravenosos como uma espécie de skateboard
improvisado, andava pela unidade de oncologia, a conversar com as
enfermeiras e com os outros doentes. Ao fim de uns dias, já tinha feito
uma mão cheia de amigos.
– A rainha infantil da oncologia – chamou-me o Will na brincadeira. Eu
era só um aninho demasiado velha para a pediatria, mas era décadas mais
jovem do que a maioria dos outros doentes da oncologia adulta. Sentia-me
deslocada, mas tentava aproveitar as circunstâncias o melhor possível.
Foi numa das minhas andanças de skateboard que conheci o Dennis,
que andava pelos quarenta e poucos anos e parecia nunca ter visitas.
Quando os tabuleiros com as nossas refeições continuaram a chegar com a
comida ainda congelada – um génio qualquer esquecia-se de as levar ao
micro-ondas –, o Dennis lançou um movimento de greve de fome – e
andou de quarto em quarto a reunir o apoio de outros doentes. Eu era toda
a favor do ativismo no hospital, mas também me preocupava com a saúde
dele. Ao fim de um ou dois dias, pedi ao Will que lhe trouxesse o batido
de chocolate mais delicioso que conseguisse encontrar no Upper East Side
– e depressa fiz a greve de fome chegar ao fim.
Tinha no quarto ao meu lado uma mulher que estava permanentemente a
dormir. Sempre que passava por lá e olhava de relance via-a na cama,
enroscada. Era tão magra que parecia quase cadavérica e a pele tinha um
tom amarelado, de cera. A filha, adolescente, ia visitá-la quase todos os
dias. Até que, uma tarde, ouvi um grito baixo, estrangulado, um uivo de
dor animal que trespassou a parede entre os nossos quartos. Saí da cama e,
da porta, vi as enfermeiras a ampararem a filha pelo corredor fora,
consolando-a no seu choro. Pouco depois, levaram o corpo sem vida da
mãe e apareceu uma funcionária para limpar o quarto. No dia seguinte, ao
meio-dia, já estava outro doente no lugar dela.
O meu novo vizinho era da Argélia. Chamava-se Yehya e estava a ser
tratado a um linfoma. Tinha a barriga inchada, o pescoço com nódulos
linfáticos inchados, do tamanho de ameixas, e as pernas mais magras que
eu já vira. Depressa nos tornámos amigos, conversando num patôis de
francês e árabe sobre as nossas fés e terras de origem e sobre a sorte de
termos adoecido nos Estados Unidos, onde tínhamos acesso a cuidados
médicos deste tipo. Estávamos no Ramadão e todas as noites a mulher
dele vinha ao hospital, trazendo um tupperware gigante cheio de iftar – a
refeição que os muçulmanos comem quando o sol se põe, para quebrar o
jejum. Mas ele raramente comia mais do que uma garfada.
Um dia, os médicos transferiram o Yehya para um quarto particular,
umas portas à frente, que tinha uma janela que dava para o Central Park.
Ele chorou em agradecimento e quis pôr-se de joelhos para rezar, mas caiu
por acidente e bateu com a cabeça no chão de linóleo.
– O que é isto?! – gritaram as enfermeiras quando ouviram o barulho,
aparecendo a correr e decidindo imediatamente que ele tinha de fazer uma
TAC ao cérebro. Yehya contou-me mais tarde que tinha mentido às
enfermeiras, afirmando-lhes que tropeçara.
– Não queria parecer uma espécie de maluquinho muçulmano – disse-
me. A doença complicava tudo, até, e talvez especialmente, a oração.
*

Tinha passado sensivelmente uma semana desde que entrara no hospital e


começara a quimioterapia. Estava a sentir-me relativamente bem, até com
boa disposição, por comparação com os outros doentes do meu andar,
muitos dos quais estavam confinados à cama ou precisavam de cadeiras de
rodas para se movimentarem. Embora fosse excessivo dizer que estava a
gostar de estar no hospital, também não me sentia infeliz. Quando não
estava com os outros ocupantes da enfermaria, o Will e eu jogávamos ao
Scrabble horas a fio. Os meus pais visitavam-me todos os dias e
estragavam-me com pequenos presentes e refeições cozinhadas em casa.
E, quando se espalhou a notícia do meu diagnóstico, também os amigos
começaram a aparecer, trazendo ramos de flores. Sentia-me em suspenso –
pela primeira vez na vida, ninguém esperava nada de mim. Tinha a
liberdade para passar o tempo como queria. Escrevi no meu diário e
inscrevi-me numa aula de artes e ofícios. Uma voluntária do hospital
estava a ensinar-me a fazer malha e eu comecei a trabalhar num cachecol
que tencionava oferecer ao Will.
De forma ingénua, talvez até um pouco arrogante, comecei a pensar que
tinha sido poupada aos efeitos secundários mais traiçoeiros da químio.
Para além do cansaço e das habituais feridas na boca, não me sentia
diferente. Todas as manhãs, examinava a cabeça ao espelho, à procura de
sinais de que o cabelo estava a começar a cair, mas ele mantinha-se forte,
brilhante e firmemente enraizado nos folículos. Pensei que talvez estivesse
entre a ínfima percentagem de doentes que não perdem o cabelo durante a
quimioterapia e lamentei o que parecia agora a decisão apressada de o
cortar mais curto. Até comecei a fantasiar com a ideia de me mudar com o
Will para um apartamento quando tivesse alta. Pelo fim do verão, talvez
estivesse suficientemente bem para começar outra vez a trabalhar.
Mas a ingenuidade tem um período de validade – e o meu não durou
muito.
Ao fim de cerca de dez dias, fui transferida para um quarto particular –
os médicos chamaram-lhe “isolamento” – e proibida de sair de lá sob
quaisquer circunstâncias. Não sabia que isto ia acontecer. Fiquei em
choque e um bocado irritada com as regras rigorosas que acompanhavam
esta nova situação, mas também aliviada por não ter companheiro de
quarto. Qualquer pessoa que entrasse no meu quarto, a que eu chamava “a
Bolha”, tinha de usar a armadura de proteção obrigatória – máscara, luvas,
bata cirúrgica. A contagem dos meus glóbulos mostrava que eles estavam
a ser dizimados pela químio, com a hemoglobina e as plaquetas a caírem
para níveis perigosamente baixos. Resultados de análises mostraram que
eu já não tinha quase glóbulos brancos – zero, disse o médico de serviço,
fazendo um 0 com as mãos para reforçar. As infusões de químio
chegariam em breve ao fim e, na semana seguinte, a minha medula,
desejavelmente livre de leucemia, começaria a recuperar e a contagem dos
meus glóbulos a subir. Quando já não precisasse de transfusões para
manter as contagens de glóbulos vermelhos e plaquetas, teria alta e
poderia regressar a casa. Mas, até lá, o meu sistema imunitário era
simplesmente inexistente e o médico avisou-me: um germe perdido ou um
espirro podiam liquidar-me.
Mais ou menos por essa altura, os efeitos secundários da químio
começaram a manifestar-se. O revestimento da minha garganta começou a
inflamar, um terrível efeito secundário da químio chamado mucosite, que
tornava impossível comer, beber ou falar mais alto do que um sussurro.
– Está pronta para a festa? – brincou a Younique da primeira vez que me
administrou morfina por via intravenosa. Abençoadas sejam as
enfermeiras com grande sentido de humor: tornam tudo melhor. Mas,
mesmo com a morfina, a dor era demasiado intensa para engolir muito do
que quer que fosse. Além das marcas de agulhas e das nódoas negras que
cobriam agora os meus braços, uma constelação de pequenos pontos
púrpura do tamanho de cabeças de alfinete apareceu-me no tronco e no
pescoço. Sem plaquetas, a componente do sangue que ajuda o corpo a
formar coágulos, os vasos capilares mais próximos da minha pele tinham-
se aberto e derramado sangue para a superfície. Eu evitava olhar-me ao
espelho.
E, por fim, aconteceu. Uma manhã, acordei e descobri na almofada uma
madeixa de cabelo. À hora do almoço já caía às mãos cheias, deixando
clareiras pálidas em todo o couro cabeludo. Eu passava compulsivamente
os dedos pelo crânio, apanhando mechas de cabelo e empilhando-as na
mesa de cabeceira, como se fossem pequenos ninhos. Perder o cabelo era
a confirmação do que eu sabia, mas que ainda não aceitara totalmente, e
passei o resto da tarde a tentar conter as lágrimas. Nessa noite, o Will
ajudou-me a tirar o resto com as suas mãos. Era como arrancar ervas de
um solo encharcado. À hora de ir dormir, já estava completamente careca.
*

Já tinham passado mais de quatro semanas desde que fora internada e


estava à espera que a contagem de glóbulos recuperasse da químio, mas,
para infelicidade minha, não registava qualquer melhoria. Os médicos
garantiam-me que não havia razões para preocupação – ou, pelo menos,
ainda não –, mas é claro que eu estava alarmada. Entretanto, o meu corpo
tinha-se tornado completamente dependente de transfusões. Corria-me nas
veias o sangue de estranhos, um saco a seguir ao outro, dia após dia. Às
vezes, punha-me a pensar quem seriam esses dadores – um professor, um
ator famoso, um leitor de cartas de tarô? Não conseguia imaginar quem
eram – mas estavam a manter-me viva.
Ser tocada, palpada e estar fechada num quarto dias a fio, sem uma data
de saída à vista, era de enlouquecer. As janelas não abriam. As lâmpadas
fluorescentes feriam-me os olhos. Doía-me o estômago, doía-me a cabeça,
doía-me tudo, até respirar. De cada vez que era picada com uma agulha ou
me davam banho com uma esponja, apetecia-me atirar contra a parede o
suporte dos sacos de intravenosas. Quando perdi tanto peso que já
conseguia tirar a pulseira eletrónica, comecei a fantasiar que fugia dali.
O Central Park, que eu via da janela, chamava-me. Quando caiu uma
enorme chuvada, senti uma vontade visceral de sair e de ficar a apanhar
com a chuva – nem que fosse um minuto. Por fim, num dia em que a
minha dor tinha diminuído aos poucos para um nível tolerável, escondi a
pulseira eletrónica debaixo da almofada e, quando as enfermeiras não
estavam a ver, escapuli-me pelo corredor e meti-me no elevador, sempre
agarrada ao suporte do soro. Cheguei até à cafetaria, no rés-do-chão.
Depois, fiquei paralisada. Era a hora de almoço e havia pessoas a passar
por mim em todas as direções, tocando-me e dando-me encontrões.
A minha ansiedade cresceu quando pensei em todos os germes que
estavam no ar. Senti dificuldade em respirar. E se caísse? E se desmaiasse?
Uns minutos depois, estava de volta ao quarto. Bip, bip, fez o monitor das
intravenosas. Por estranho que pareça, senti-me de novo em segurança.
Se alguém conseguia entender aquilo por que eu estava a passar, eram
os outros doentes, mas já não me deixavam interagir com eles, porque o
risco de germes era muito alto. Senti a falta da companhia deles e tentei
seguir os progressos que faziam em telefonemas que as enfermeiras
arranjavam. A Estelle tinha tido alta e estava a recuperar em casa, em
Staten Island. As últimas ressonâncias do Dennis tinham-se acendido
como se fossem a Via Láctea e mostravam uma constelação de novos
tumores nos pulmões. Ele também iria acabar por precisar de um
transplante de medula óssea. Quanto a Yehya, ele ainda passava pelo meu
quarto à tarde e, se ninguém estivesse a ver, abria a porta, fazia-me um
sinal com o polegar para cima e dizia-me que Alá estava a olhar por mim.
Ainda estava autorizada a receber visitas externas, mas até isso se tinha
tornado uma complicação. As pessoas com quem tinha jogado beer pong
na faculdade não tinham comunicado e, embora isso não fosse uma
surpresa, sentia-me ferida pelo silêncio delas. Tentei, por isso, concentrar-
me naqueles que apareceram mesmo – a minha amiga Mara, que vinha
ver-me quase todos os dias, e uma série de velhos companheiros de
infância e colegas que apareciam com presentes. Nos dias que se seguiram
ao diagnóstico, eu apreciava a companhia deles, até ansiava por ela. Mas,
com o tempo, tornei-me alérgica aos olhares de pena e aos campeões do
positivismo, que tentavam animar-me com os seus postais a desejar as
melhoras e com os mantras cansativos de “sê forte” e “continua a lutar”.
Comecei a sentir-me irritada com as queixas banais das pessoas – por
terem tido um dia stressante no escritório ou partido um dedo do pé, o que
as impedia de ir ao ginásio umas semanas –, e era difícil não me sentir
excluída quando os meus amigos me falavam de um concerto ou de uma
festa a que tinham ido.
Ainda piores eram os turistas da tragédia: aquelas pessoas que eu não
conhecia bem, mas emergiam da ombreira da porta, aparecendo sem
avisar, com uma vontade excessiva de ajudar ou para presenciar o
carnaval médico em que a minha vida se transformara. Fitavam
esgazeados a minha careca, com os olhos húmidos – e era eu que acabava
por ter de os consolar. Ou, então, bombardeavam-me com conselhos
médicos não solicitados, falando-me de um grande médico que conheciam
ou de um amigo de um amigo que curara o próprio cancro com coisas
como óleos essenciais, caroços de alperce, clisteres de café ou uma
desintoxicação com sumos. Eu sabia que a maior parte deles tinha boas
intenções, e por isso sorria e acenava que sim, mas, por dentro, estava
furiosa. À medida que fui ficando mais doente, começaram a aparecer
cada vez menos – e, quando apareciam, eu fingia que estava a dormir.
Apesar das minhas tentativas para me retirar do mundo, não estava
completamente só. O Dr. Holland vinha ver-me praticamente todos os dias
na pausa para almoço. Era gentil com as enfermeiras e com o pessoal
hospitalar. Ao contrário de outros médicos, que podiam ser bruscos e
condescendentes, tinha uma maneira de estar sempre calma, sem pressas,
e tratava-me com dignidade, com o cuidado de fazer com que eu me
sentisse em primeiro lugar uma pessoa e só depois uma doente. Quando
terminava o exame, sentava-se na cadeira ao lado da cama e falávamos de
tudo, de política a história da arte e dos nossos livros preferidos.
O Will, que ainda estava desempregado, praticamente vivia no meu
quarto e dormia todas as noites ao meu lado na cama reservada às visitas,
que era pequena para ele. Os meus pais faziam o turno de dia, revezando-
se ao lado da minha cama e tentando-me com todas as coisas que eu mais
gostava só para me levar a comer. Desde que entrara no hospital, tinha
passado de um saudável 38 para um 32 – o mesmo tamanho que vestia no
sexto ano –, mas muitas vezes tinha tantas dores que não era capaz de
engolir, quando mais de comer uma garfada de risoto de cogumelos.
Tentava mostrar-me animada quando eles estavam por perto, mas era
difícil ficar acordada mais de uns minutos. A minha mãe comprou um
poster de uma pintura de Vermeer e pendurou-a na parede, ao lado da
cama. Mostrava uma jovem a tocar alaúde num quarto escuro, com o rosto
voltado para a janela e uma expressão pensativa, mas atenta ao exterior.
– Ela lembra-me de ti – disse a minha mãe.
Eu sabia a sorte que tinha por estar rodeada por tamanho amor – havia
muitos pacientes na enfermaria que não tinham qualquer visita –, mas,
mesmo com os meus pais e com o Will ao lado, sentia-me dolorosamente
isolada. Há muito que a minha euforia pós-diagnóstico e todos os meus
planos majestosos se tinham evaporado. Já não tinha energia para
alimentar o meu diário. As agulhas de croché e o cachecol meio feito
estavam a ganhar pó. Nunca li o Guerra e Paz nem nenhum dos livros na
mesa de cabeceira. Sentia-me aborrecida, quase mortalmente aborrecida,
mas estava demasiado cansada para fazer o que quer que fosse quanto a
isso.
*

Uma tarde, ao fim de mais de cinco semanas no hospital, apareceu-me no


quarto uma equipa de médicos com máscaras azul-bebé. Pairaram sobre a
cama, a olhar para mim. Só via olhos e gravatas. E batas brancas.
– Receio que tenhamos más notícias – afirmou uma boca coberta por
uma máscara. – Quando entrou no hospital tinha trinta por cento de
linfoblastos na medula óssea. Os resultados da última biópsia mostram
que o número de linfoblastos mais do que duplicou, para cerca de setenta
por cento.
– Podem voltar quando a minha mãe aqui estiver? – sussurrei. De
repente, senti-me uma criança.
Mais tarde, com os meus pais ao meu lado, a minha equipa médica
explicou-me que estava a entrar em falência de medula óssea e que os
tratamentos-padrão não estavam a resultar em mim. O meu pai estava
desfeito. A minha mãe parecia que se iria abaixo a qualquer momento,
mas, quando me apanhou a olhar para ela, afastou rapidamente as lágrimas
e recompôs o rosto numa expressão mais estoica. Os médicos
recomendaram que eu participasse num ensaio clínico de fase II, o que
queria dizer que ainda não se sabia se o novo medicamento para
quimioterapia era seguro e eficaz, quanto mais se seria melhor do que o
tratamento-padrão. Num momento em que tudo já parecia tão incerto, não
queria um ensaio experimental. Ansiava por factos comprovados,
estatísticas e provas de que os meus tratamentos valiam o caos que tinham
infligido à minha saúde mental e física e às vidas dos meus entes queridos.
Por muito que fosse a favor da investigação científica, não tinha vontade
alguma de ser uma cobaia. O que eu queria era uma cura.
– Não seria melhor passar este tempo com vocês, ou a fumar erva numa
ilha tropical qualquer, ou fazer uma dessas coisas que é suposto fazer-se
quando se está a morrer? – perguntei aos meus pais. Nenhum deles sabia o
que havia de dizer. Os médicos também não tinham respostas para mim,
mas insistiam que o ensaio clínico era a minha melhor hipótese e que,
quanto mais esperasse, menos opções me restariam. Acabei por dizer que
sim.
*

No 4 de julho, a véspera do meu vigésimo terceiro aniversário, tive uma


autorização especial para deixar a Bolha por uns minutos. Foi a primeira
vez que saí do quarto em quase seis semanas, tirando a tentativa de fuga
abortada. Ouvira o boato de que se conseguia ver o fogo de artifício do
corredor de trás, ao pé dos elevadores. Depois de pôr a armadura de
proteção obrigatória, o Will e eu fomos pelo corredor fora, sempre a
arrastar o suporte. Passámos pelo quarto do Yehya, para ver se ele não
quereria juntar-se a nós. Estava demasiado cansado para se levantar, mas
na mesa de cabeceira tinha presentes para mim – uma pulseira de amizade
cor-de-rosa e uma placa de madeira pintada com cores vivas, primárias,
com a frase SOU UM GRANDE FÃ TEU!, que ele tinha pedido à mulher
para comprar na loja do hospital. O Will ajudou-me a pôr a pulseira e
pegou na placa. Depois, fomos buscar o Dennis, e caminhámos os três
para fora do serviço de oncologia, passando pela sala das enfermeiras.
Quando chegámos, já havia um grupo de doentes no corredor das
traseiras, a espreitar pelas janelas. Era difícil ver para lá do vidro espesso,
era como se fôssemos peixes a espreitar para fora de um aquário sujo. Mas
se nos inclinássemos para baixo e para a esquerda e curvássemos o
pescoço para a direita, conseguíamos ver, à distância, relances do fogo-de-
artifício. Eram vermelhos, azuis e dourados; explodiam bem alto no céu,
espalhando cor sobre os arranha-céus, mas estavam a quilómetros de
distância e por trás da nossa barreira à prova de som não conseguíamos
ouvi-los rebentar. O fogo-de-artifício, a cidade, os seus habitantes – o
mundo – pareciam tão distantes como a lua. Entretanto, o alarme no
monitor de intravenosas de um velhote tinha disparado e não se calava.
Era um barulho de enervar qualquer um.
– Desculpem falar mal – disse eu ao Will e ao Dennis –, mas isto é a
merda mais deprimente que eu já vi.
Os meus ombros sacudiram. A princípio, até pensei que fosse começar a
chorar, mas depois explodi de riso. E, de repente, estavam todos a rir.
Havia risinhos, gargalhadas e lágrimas oceânicas, por causa do absurdo
daquilo tudo.
10

TEMPO EXTRA

Ao fim de quase dois meses na Bolha, os meus médicos mandaram-me


para casa um par de semanas, para recuperar forças antes de iniciar o
ensaio clínico. A minha contagem de linfoblastos ainda era aterrorizadora
– tão alta que, se não fosse o estado de fraqueza em que me encontrava,
teria começado imediatamente com os novos medicamentos da
quimioterapia. Mas o risco de eles me matarem suplantava os riscos de os
linfoblastos continuarem a multiplicar-se na medula e no sangue. Portanto,
mais doente do que nunca, mas sem seguir qualquer tratamento, regressei
a Saratoga.
Quando pus os pés no alpendre, apreciei o luxo de mexer as pernas, de
inspirar e de expirar, do sol a tocar-me na pele. Como se fosse um
presidiário libertado depois de cumprir uma longa sentença, tudo me
encantava: uma chuva ligeira a salpicar-me o rosto; os pirilampos a
esvoaçar no jardim à noite; o cheiro fumado das costeletas a grelhar que
vinha do barbecue do vizinho, subia pela sebe entre as casas e passava
para o nosso lado.
Tentei aproveitar ao máximo esta liberdade reencontrada. Sempre que
me sentia suficientemente bem, embrulhava-me em cobertores, o Will
ajudava-me a chegar à carrinha e íamos dar grandes passeios estrada fora.
Se eu tivesse energia, até andávamos a pé. A baixa de Saratoga fica a oito
minutos a pé de casa; vinte para quem tem leucemia. O festival anual de
corridas de cavalos, que atrai todos os verões apostadores, turistas e
pessoas com grandes chapéus, estava no auge. A rua principal, a
Broadway, estava cheia de um contingente barulhento de motociclistas,
que estacionavam as Harley em filas compridas ao longo da rua, e de
jogadores batidos, que em vez de irem à pista preferiam os bares
manhosos onde podiam seguir as corridas na televisão.
Estar ao ar livre era uma mudança bem-vinda em relação à Bolha, mas
com a minha careca lunar, as pálpebras sem pestanas, as sobrancelhas a
desaparecer e a máscara na cara, depressa me dei conta de que as pessoas
ficavam a olhar para mim. Na enfermaria oncológica, eu era igual aos
outros todos. Agora, onde quer que fosse, destacava-me. O cancro falava
por mim antes de eu poder dizer a primeira palavra e fazia-se silêncio
quando eu entrava em algum lado. Mas também havia vantagens: nesse
verão, recebi à borla montes de cafés e gelados, com as empregadas de
olhos húmidos a dizerem-me “As melhoras, querida. Este é por conta da
casa.” Mas, outras vezes, os olhares faziam-me sentir uma aberração. Uma
tarde, quando eu saía da casa de banho da biblioteca pública, uma
miudinha apontou para mim e gritou.
O mais habitual era eu não me sentir em condições de me aventurar no
exterior. Um cansaço que me esmagava os ossos mantinha-me atrelada ao
velho sofá de couro da sala, com o Will ao meu lado. Ele tinha um jeito
especial para dar a volta aos meus dias maus. “Dia de filme!”, anunciava,
como se tivéssemos decidido passar dentro de casa as horas de sol. “Há
um grande buraco negro no teu conhecimento de cultura pop dos Estados
Unidos, por isso organizei uma lista para nós. Hoje, vamos abordar o fim
dos anos oitenta. Começamos com O Rei dos Gazeteiros, passamos a
O Clube e seguimos para Um Príncipe em Nova Iorque. Depois, fazemos
um intervalo para almoço.”
A vida do cuidador acaba por ser ditada pelo ciclo de degradação e de
exigências do corpo de outra pessoa. O Will tinha assumido o seu novo
papel com um entusiasmo e uma devoção que causava espanto geral.
Todas as manhãs, ajudava a minha mãe a preparar-me um arroz-doce, que
era a única coisa que eu conseguia suportar no estômago, e um chá de
verbena com folhas frescas de hortelã, que era suposto aliviar as náuseas,
e levava-me tudo ao quarto, num tabuleiro, para eu poder comer na cama.
Ajudava os meus pais nas tarefas da casa e, à tarde, jogava basquetebol
com o meu irmão, que viera a casa no verão. Organizava a minha caixa de
comprimidos, trocava o invólucro do meu cateter e acompanhava-me a
todas as consultas médicas. O Will nunca se queixava, mesmo quando não
podia ir sair com os amigos para as festas na praia. Garantia-me
repetidamente que não havia outro sítio onde preferisse estar a não ser ao
meu lado. Eu gostava de pensar que, se as nossas situações se invertessem,
eu teria tido a paciência e a generosidade para cuidar dele da maneira
como ele cuidava de mim, mas uma parte de mim duvidava que isso fosse
verdade.
*

Os pais do Will visitaram-nos nesse verão, viajando da Califórnia para nos


mostrarem o seu apoio. Era a primeira vez que os via e imaginei o que
pensariam eles quando me vissem, toda esbranquiçada e macilenta, com
tubos a sair do peito. Preocupava-me que uma parte deles desejasse que o
seu filho único tivesse como interesse especial uma pessoa diferente.
Alguém, por exemplo, como a ex do Will, que tinha a cabeça toda coberta
por cabelo louro e sedoso, escrevia numa revista de prestígio e cujos
ovários funcionavam – uma pessoa que, em vez de ter um prognóstico,
tivesse perspetivas.
Se os pais do Will pensavam assim, não o mostraram. Chegaram a nossa
casa aos risos e abraços. Ao fim de uns minutos, o pai, Sean, um irlandês
enorme com bigode branco e olhos azuis que brilhavam, chamou-me à
parte.
– Desde que a conheceu, o meu filho é um homem melhor – disse-me. –
Quero agradecer-lhe por aquilo que lhe fez, seja o que for.
A mãe, Karen, uma hippie loura radiosa que usava vestidos de linho e
joias com contas coloridas, tinha o mesmo jeito do filho para fazer com
que todos à sua volta se sentissem bem. Disse-me repetidamente que eu,
com a cabeça careca, ficava maravilhosa e ousada.
– Quando melhorar, mantenha o cabelo curto – observou.
As nossas famílias passaram o fim de semana juntas a explorar
Saratoga. Passeámos pelos jardins de rosas de Yaddo, uma colónia de
artistas famosa nos arredores da cidade. Fomos à pista de cavalos e
fizemos apostas de dois dólares nos cavalos com os melhores nomes.
(Seja lá porque for, perdemos sempre.) À noite, jantávamos no pátio das
traseiras sob a latada coberta pela videira, que a minha mãe tinha
enfeitado com fitas de luzes e balões de papel. Os nossos pais deram-se
tão bem que, ao jantar, era difícil nós conseguirmos dizer alguma coisa.
O Sean, jornalista e autor de documentários que tinha coberto a guerra no
Iraque, discutia com o meu pai política do Médio Oriente, e as nossas
mães estavam em comunhão no seu amor pelas artes. O Will e eu
trocávamos caretas e arregalávamos os olhos enquanto eles os quatro
continuavam a conversar.
No último dia da visita deles fomos todos a pé até ao mercado dos
agricultores, na cidade. O sol batia no meu chapéu de palha com uma fita
larga azul. Fiz um esforço para os acompanhar, enquanto saltitavam de
banca em banca, a experimentar compotas caseiras de amora, azeitonas e
queijos. Desculpei-me, afastei-me e fui-me sentar numa mesa de
piquenique, à sombra de uma árvore. O tanger de um violino e os gritos de
crianças a correrem pela relva umas atrás das outras giravam à minha
volta e deixavam-me tonta. Abanei-me com o chapéu, desejando ter o
poder de me teletransportar para o silêncio e para o fresco da minha cama.
Quando chegou a hora de voltarmos para casa, deixei-me ficar para trás
e tentei esconder que estava a coxear. Não queria estragar o que tinha sido
um fim-de-semana perfeito, mas quando chegámos a casa eu tinha as
pernas a tremer e o vestido empapado em suor. Despedi-me dos pais do
Will com um abraço, prometendo ir à Califórnia visitá-los quando me
sentisse melhor, e recolhi a casa.
– Como te sentes? – perguntaram-me os meus pais, depois de eu passar
horas no sofá sem me mexer.
– Está tudo bem – insisti, cerrando os dentes. Sentia entre as pernas uma
dor forte e insistente, como se fosse uma pulsação. Tinha vergonha de
explicar onde se localizava a dor, de dizer à minha mãe, ou ao meu
médico antiquado, de lacinho, ou a quem quer que fosse: dói-me o pipi, ou
outra descrição qualquer anatomicamente vaga. Estava à espera que a dor
desaparecesse. Mas, uns dias depois, já nem conseguia andar. O Will e a
minha família sentavam-se para jantar, enquanto eu jazia no sofá, com os
dentes a bater febrilmente. Quando a minha mãe me tirou a temperatura,
tinha 38,3 ºC.
– Não há discussão, vamos ao hospital – ordenou.
A minha mãe foi a guiar e o Will sentou-se ao meu lado no banco de
trás, a aninhar-me a cabeça no colo enquanto seguíamos pela autoestrada
mergulhada na escuridão. Mais ou menos de meia em meia hora, o Will
via-me a temperatura, que continuava a aumentar. A minha mãe acelerava,
de testa franzida com a preocupação. Três horas depois, quando chegámos
à ponte Tappan Zee, que atravessa o rio para Manhattan, ela ia trinta
quilómetros por hora acima do limite de velocidade e eu estava com 40 de
febre.
Era um domingo à noite nas urgências do Monte Sinai. A sala de espera
estava a abarrotar, com pessoas aglomeradas junto das máquinas de venda,
outras caídas, meio a dormir, em cadeiras de plástico ou a segurar
apêndices ensanguentados embrulhados em gaze, mães a embalar crianças
em pranto, diabéticos a arrastar-se em cima de pés inchados. Todos
aguardavam que os guardiões do portão – as enfermeiras de admissão e os
rececionistas – chamassem pelo seu nome. A triagem, o processo pelo qual
os especialistas clínicos determinam quem é visto em primeiro lugar, pode
gerar impulsos na linha da sobrevivência-do-mais-apto. Todos têm a
certeza de que a sua urgência é a prioritária, e se vemos as nossas
necessidades, quanto mais as necessidades dos nossos filhos, postas por
ordem com as de outros, isso pode provocar uma sensação de pânico. As
salas de espera das urgências completamente à pinha não trazem ao de
cima o que há de melhor nas pessoas.
– A minha filha tem leucemia e uma febre muito alta – rosnou ao
rececionista a minha mãe, que em geral é uma pessoa delicada, quarenta e
cinco minutos depois de chegarmos. – Tem imunodeficiência grave e se a
fizerem esperar terão sangue nas vossas mãos.
A ameaça funcionou e, por um breve momento, tivemos uma sensação
de triunfo, quando uma enfermeira nos veio buscar. Mas, do outro lado
das portas de aço basculantes da sala de urgência, o caos era ainda maior.
Havia macas por todo o lado. Havia doentes a gritar e a gemer, alguns a
uivar por ajuda. Uma mulher numa cadeira de rodas com um olhar perdido
e feral falava para ninguém em especial e dizia que os colegas de trabalho
a tinham envenenado.
Não havia para onde ir – e praticamente nem havia espaço para a minha
mãe e para o Will estarem de pé. Lembro-me de olhar para ele e de pensar
que parecia esmagado por aquilo tudo. A minha mãe deve ter pensado a
mesma coisa e sugeriu que ele fosse descansar se precisasse.
– Pois, parece-me que não faz muito sentido estarmos aqui os três –
respondeu o Will. – Sou capaz de ir ter com um amigo para tomar um
copo. – Uns minutos depois, saiu.
Deitaram-me numa cama quase colada à de um rapaz com rastas. Ele
estava deitado, sem se mexer, com os olhos fechados, e a sua roupa suja
fazia um grande contraste com o lençol imaculado. Um médico correu
uma cortina entre nós, para garantir alguma privacidade, mas mesmo
assim ouvi toda a conversa entre eles. Nos minutos seguintes, fiquei a
saber que o rapaz tinha SIDA e uma contagem de hemoglobina de 3,0.
– Quer uma transfusão de sangue? – perguntou o médico.
– Não – murmurou o jovem.
– Então compreende que vai morrer, certo?
– O.K.
Não muito tempo depois, um assistente hospitalar veio distribuir
sanduíches aos doentes. O rapaz estava demasiado fraco para segurar na
sanduíche e ela caiu no chão, entre as nossas camas, com a alface e umas
rodelas pálidas de um enchido qualquer a espalharem-se pelo linóleo.
– Ele está bem? É preciso alguém que o ajude – gritei para a minha mãe.
É a última coisa de que me lembro antes de perder os sentidos.
*

As doze horas seguintes desenrolaram-se numa sequência de perdas de


consciência febris, pontuadas por brevíssimos pontos de luz fluorescente.
Imagem Número Um: Acordei com um trio de médicos a espreitarem
por entre as minhas pernas com lanternas. Corei de humilhação. Tentei
juntar os joelhos, mas uma mão enluvada manteve-os separados.
“Pequeno corte no lábio interior”, disse uma voz por trás de uma máscara.
“Infeção, possível sepse”, disse outra. “Posso ver?”, perguntou uma
terceira. A pele em volta do corte estava necrosada, disseram.
Imagem Número Dois: “Onde estou?”, perguntei, em pânico. A boca
metálica de um elevador escancarou-se para um andar do hospital que eu
não reconheci. Levaram-me numa cadeira de rodas para um quarto que era
um pequeno cubo branco e claustrofóbico, com lâmpadas de um laranja
difuso. Uma enfermeira explicou-me que eu acabara de dar entrada na
unidade geriátrica. O hospital estava no máximo da lotação e eu teria de
passar ali a noite até que vagasse um quarto em oncologia. Isto pareceu-
me hilariante, de facto, o meu corpo sentia-se assim com uns vinte e três
anos a caminho dos oitenta, mas não tinha forças para explicar porque é
que estava a rir à gargalhada, como se alguém tivesse contado uma
anedota especialmente extraordinária.
Imagem Número Três: “Tenho tanto frio, tenho tanto frio, tenho tanto
frio”, repetia eu para a minha mãe; e sentia mais frio a cada cobertor que
ela me punha por cima. Não havia nada que me aquecesse. Os meus
dentes batiam violentamente e eu comecei a tremer sem controlo. “Podem
chamar aqui um médico?”, gritou alguém. Soube depois que estava a ter
uma coisa chamada “neutropenia febril”, o que significa que já não tinha
quase células de combate a infeções que travassem a batalha por mim.
Imagem Número Quatro: A minha febre disparou e foi subindo,
subindo, até o termómetro marcar 41 ºC. Quanto tentava falar, as palavras
saíam-me entarameladas, pareciam línguas estrangeiras. O meu corpo,
tomado por arrepios, abanava e sujava-se sozinho. O Will apareceu à porta
no preciso momento em que uma enfermeira tentava pôr uma arrastadeira
por baixo das minhas pernas nuas. “Pede-lhe que espera lá fora”, gemi
para a minha mãe, num instante súbito de lucidez, tapando a cara com as
mãos.
Imagem Número Cinco: O Dr. Holland, o meu oncologista
habitualmente sorridente, não estava a sorrir quando apareceu. “Telefone
ao seu marido e diga-lhe para vir ao hospital”, ouvi-o dizer à minha mãe.
Estávamos a meio da noite, o meu pai encontrava-se em Saratoga, a três
horas e meia de caminho. “Não pode esperar pela manhã?”, perguntou a
minha mãe. “Não quero assustá-lo.” O Dr. Holland pôs-lhe a mão no
ombro e olhou-a nos olhos. “Anne: chame o seu marido. Não sabemos
como é que isto vai correr.”
*

Quando cheguei ao dia seguinte, os meus olhos correram espantados pelo


quarto, tentando perceber onde me encontrava e o que tinha acontecido.
Os meus pais estavam sentados ao lado da cama – e pareciam várias
dezenas de anos mais velhos. Uma enfermeira inclinou-se sobre mim e
deu-me um copo de plástico com um comprimido de oxicodona. Minutos
depois, estava a vomitar para a bacia de plástico ao lado da cama. Os
medicamentos e a perceção de que estava viva atingiram-me como se
fosse atropelada por um comboio de mercadorias: a minha sensação de
alívio passou a fronteira para o lado da euforia.
Na unidade de geriatria, os quartos eram maiores e mais agradáveis do
que em oncologia. Eu gostava de estar ali, tirando a enfermeira de cabelo
louro platinado que falava demais.
– Eu costumava trabalhar na oncologia – disse ela, enquanto me punha
debaixo da língua a ponta prateada de um termómetro. – Lembro-me de
uma rapariga chamada Joanie. Era uma miúda querida, mais ou menos da
sua idade. De cada vez que ela aparecia com uma nova infeção, só me
apetecia chorar. Foi uma grande tristeza, quando ela morreu. Só de olhar
para si fico triste, faz-me pensar na Joanie. É por isso que agora trabalho
aqui, na geriatria.
A doença tinha-me tornado boa a separar os pensamentos. Havia as
palavras que eu guardava na cabeça – por favor, cala-te, não vês que já
estamos terrivelmente assustados – e as palavras que eu dizia em voz alta:
“A Joanie teve a felicidade de a ter como enfermeira.”
Nessa noite, o Will veio substituir os meus pais. Esticou-se
desajeitadamente na cadeira reclinável ao lado da cama e tapou-se com
um cobertor de algodão fino. Na unidade geriátrica já não havia camas
disponíveis para as visitas. Nessa noite, como em muitas outras noites, ele
sacrificaria o seu conforto para estar perto de mim.
– Penso que devíamos casar – disse eu, do nada, com a oxicodona a
soltar-me um bocadinho a língua. Eu tinha medo de que, se esperássemos,
acabássemos por nunca ter a oportunidade.
– Sou completamente a favor – disse imediatamente o Will.
Nessa noite, ficámos acordados até tarde, a debater com entusiasmo a
logística, a lista de convidados e a qual dos meus amigos músicos
pediríamos para atuar. Telefonei às minhas duas amigas mais chegadas,
dos tempos da faculdade, a Lizzie e a Mara, que ofereceram a sua ajuda e
entraram imediatamente em ação. A Lizzie e a mãe iriam com o Will à
procura de alianças no bairro das joalharias; a Mara ofereceu a casa da
família para celebrar a cerimónia. Seria um casamento pequeno, uma
celebração outonal e simples, no pátio, com uma mão cheia dos amigos e
familiares mais próximos. Esperávamos que fosse em breve – idealmente
nas próximas semanas –, se não houvesse mais internamentos de urgência.
*
Dias depois, houve uma vaga em oncologia e fui transferida para um
quarto no andar de cima. Três meses antes, a oncologia era como um país
estrangeiro. Agora, de uma forma perversa, sentia-me em casa entre o coro
dos monitores das intravenosas a apitar e os doentes carecas. Eu era dali.
Quando vi a Younique, cumprimentámo-nos como se fôssemos amigas
que se encontravam ao fim de muito tempo sem se verem.
– Então, olá, Miss Suleika! Ouvi dizer que tinhas voltado. Como é que
estás, mais esse teu belo homem?
– Vamos casar – respondi imediatamente.
Perguntei como é que iam os meus amigos daquele andar. A Younique
sentou-se na beira da minha cama, alisando suavemente o cobertor sobre o
meu corpo. O Yehya partiu.
– Não, não voltou à Argélia – corrigiu-me. Morreu no quarto com a
grande vista para o parque e com a mulher ao lado.
Quanto ao Dennis, estava a fazer progressos para conseguir aguentar um
transplante, mas uma tarde, os seus órgãos começaram a entrar em
falência uns atrás dos outros, numa sucessão rápida. Apesar de todos os
esforços, os médicos não conseguiram reanimá-lo. Ninguém apareceu a
reclamar o corpo.
Enquanto eu tentava processar as notícias, a Younique esfregava-me as
costas. Eu só conseguia pensar: A seguir sou eu.
11

PRESA

Sempre tive um diário. No meu quarto de criança, a estante está cheia de


dezenas de blocos de notas coloridos, cada um deles com um novo
capítulo da minha vida. As páginas lêem-se como se fossem conversas
comigo mesma, escritas a caneta, com traços largos e grossos: há visões
do futuro, febris e sonhadoras; mentiras sobre aventuras noturnas que
nunca tive, mas desejava ter vivido; contos autobiográficos levemente
disfarçados em que as protagonistas são jovens com aspirações; má
poesia; e listas, sempre listas – de coisas a fazer, a não fazer, e de sonhos.
O meu eu de doze anos tinha um tipo de conversa diferente do dos
dezasseis anos, ou do dos vinte. Mas todos partilhavam uma coisa em
comum: olhavam para a frente.
Estando a mortalidade em jogo, uma das atividades mais deliciosas da
vida quando somos novos – imaginar o nosso futuro – tinha-se tornado um
exercício assustador e que causava desespero. Em tempos, o futuro
parecera repleto de possibilidades infinitas. Agora, estava envolvido em
desgraça, era um espaço negro à minha frente, preenchido apenas com a
promessa de mais tratamentos venenosos e de desconhecidos
aterrorizadores. Pensar no passado causava uma nostalgia que eu preferia
não procurar, era uma lembrança dolorosa de tudo o que eu perdera e
estava a perder: os meus amigos; a minha juventude; a minha fertilidade; o
meu cabelo; o “colar das etapas” que os meus pais me tinham dado no
primeiro dia de quimioterapia e que se perdera em trânsito, algures entre o
hospital e a minha casa; a minha mente, porque a químio deixava-me o
pensamento turvo e lento; a minha fé em ser capaz de chegar ao
transplante.
*

Viver com uma doença que me ameaçava a vida tornou-me uma cidadã de
segunda classe na terra do tempo. Os meus dias eram uma emergência
lenta, a minha vida decorria entre quatro paredes brancas, uma cama de
hospital e luzes fluorescentes, com o meu corpo perfurado por tubos e
com fios a ligarem-me a vários monitores e ao suporte dos sacos de
intravenosas. O mundo fora da minha janela parecia cada vez mais
distante, o meu campo de visão reduzia-se a um ponto muito pequeno.
O tempo era uma sala de espera – à espera dos médicos, à espera das
transfusões de sangue e do resultado dos exames, à espera de melhores
dias. Tentei concentrar-me na preciosidade do presente: nos momentos em
que estava suficientemente bem para andar pela unidade de oncologia com
os meus pais; no som da voz do Will quando me lia em voz alta, todas as
noites, antes de eu adormecer; nos fins de semana em que o meu irmão
vinha da faculdade para me ver; em nós todos juntos, naquele momento,
enquanto ainda era possível. Mas, por muito que tentasse, não conseguia
deixar de sentir uma culpa e uma dor incipiente quando os meus
pensamentos vogavam, inevitavelmente, para o que sucederia ao Will e à
minha família no caso de eu não sobreviver.
A infeção tinha causado um retrocesso de umas semanas, mas o ensaio
clínico estava pronto para ser iniciado assim que os meus médicos
considerassem que eu estava em condições. Nos Estados Unidos, eu era
um dos cento e trinta e cinco doentes participantes. Nos primeiros nove
dias de cada mês, receberia uma combinação de dois medicamentos
poderosos de quimioterapia, a azacitidina e o vorinostat, e a seguir teria
sensivelmente duas semanas para recuperar, antes de iniciar o ciclo
seguinte. O ensaio era ambulatório, o que queria dizer que, quando não
estivesse em Nova Iorque para consultas médicas ou no hospital por causa
de complicações, poderia ficar em casa, em Saratoga. Todo o processo
levaria seis meses – isto é, se tudo corresse como esperado.
À medida que as folhas do velho plátano nas traseiras de casa dos meus
pais passavam a um cor-de-laranja seco e queimado, um certo desconforto
começou a toldar os meus dias longos e herméticos com o Will. Ele fora o
meu companheiro constante desde o diagnóstico e era intenção dele
continuar assim ao longo do ensaio clínico. Eu, de uma forma egoísta,
adorava passar tanto tempo com ele. Mesmo confinada à cama, careca,
ocasionalmente incontinente, e a viver com os meus pais, o simples facto
de ter um namorado dava-me uma sensação de normalidade, de ainda ser
jovem, desejada, até bela. Mas uma parte de mim sabia que a situação era
insustentável. A terra dos doentes não é lugar para ninguém viver vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana. Eu nunca teria desejado isso
nem ao meu pior inimigo. E sabia que, se queria que a nossa relação
perdurasse, tinha de o incentivar a voltar a viver a sua vida.
– Vamos encontrar-te um emprego – disse-lhe suavemente uma tarde.
Tínhamos acabado o quinto jogo seguido de Scrabble.
Ele suspirou.
– Eu sei, eu sei. Também tenho andado a pensar nisso. Dava-me jeito
algum dinheiro, agora. Mas não quero que sintas que estás sozinha a lidar
com isto.
– Eu não vou melhorar, pelo menos não em breve – disse. Ele admitiu
que não podia continuar assim indefinidamente.
Will começou por procurar empregos próximos da casa dos meus pais,
mas não havia muita escolha, para além de servir em bares ou restaurantes
na baixa de Saratoga. Alargámos o raio de busca e quando vi uma vaga
para editor assistente numa grande organização noticiosa, em Manhattan,
fiz força para ele se candidatar. Ele hesitou. Saratoga ficava a três horas e
meia de carro – era demasiado longe para ir e vir todos os dias. Se ele
conseguisse o lugar, isso significaria estarmos separados durante a semana
de trabalho. Quando o Will levantou a questão da distância, em especial
quando o ensaio clínico se aproximava e a minha saúde estava tão débil,
minimizei essas preocupações. Eu queria que ele fosse feliz, mas uma
parte de mim também estava a viver indiretamente através dele. Era um
emprego que eu teria adorado ter, numa realidade alternativa em que o
meu corpo não estivesse a tentar destruir-me. Por isso, lancei mãos à
tarefa de o ajudar – a rever a carta de candidatura, a ensaiar a entrevista e
a encontrar-lhe um lugar para viver sem pagar, no apartamento de um
amigo, para o caso de conseguir o lugar. Quando o telefone tocou a
anunciar que o emprego era dele, abracei-o com toda a força que restava
nos meus frágeis ossos de pássaro.
– As coisas vão começar a melhor para nós – disse-lhe. E acreditava
nisso.
*

Não muito tempo depois, numa manhã fresca de outono, dirigimo-nos à


estação de comboios de Saratoga, onde o Will apanhou o Expresso Ethan
Allen para iniciar a sua primeira semana de trabalho. Quando se voltou
para olhar para mim, lancei-lhe um sorriso cheio de energia e acenei-lhe
com entusiasmo até às portas se fecharem. Na plataforma, vi as rodas
deslizarem pelos carris, ouvi o comboio a apitar na curva e a desaparecer.
Sozinha, senti o meu entusiasmo diminuir – e depois ficar sombrio.
De volta a casa dos meus pais, subi para o quarto, fechei a porta à chave
e deitei-me na cama, com a cara na almofada. Fiquei assim um bocado, a
suster a respiração. Depois, gritei para a almofada – um grito cavo, de
fazer rebentar as veias, de frustração e inveja em relação ao Will, aos
meus amigos, a todos os que andavam por aí a começar a trabalhar, a
viajar, a descobrir coisas novas – sem qualquer preocupação com a saúde.
Parecia-me de uma injustiça inacreditável que as vidas de todos
estivessem a começar e que a minha tivesse acabado antes de ter
começado. Quando fiquei sem ar, com os pulmões a arder, levantei-me,
fui até à pequena secretária de madeira encostada à janela e abri o meu
diário.
“O mundo está a avançar e eu estou aqui presa”, escrevi.
*

Com o Will ausente durante a semana, era tentador deixar-me tomar pela
autocomiseração, por isso, comecei à procura de qualquer coisa produtiva
para fazer com o tempo. Primeiro, decidi inscrever-me num curso de
escrita criativa em Skidmore, a faculdade que ficava ao pé de nossa casa,
onde o meu pai era professor no departamento de francês e o meu irmão
estava a fazer o último ano. Mas só consegui fazer o primeiro dia de aulas.
Nessa altura, o ensaio clínico já estava em marcha e, passadas duas
semanas, dei outra vez entrada no hospital, com outra neutropenia. As
feridas na boca multiplicaram-se e tornaram-se tão dolorosas que, quando
tive alta, os meus médicos me receitaram pensos de fentanil, um opioide
cem vezes mais potente do que a morfina.
Passava os dias na cama, reclinada em almofadas. Até o cancro me ter
atacado, sempre me orgulhara de ser uma pessoa ambiciosa. Os despojos
de triunfos passados que enchiam o meu quarto de infância – fitas, troféus,
prémios e diplomas – faziam agora troça de mim. Determinada a continuar
à procura de alguma coisa para fazer, decidi começar a estudar para o
GRE, o teste de admissão ao mestrado, com a ideia de que podia
candidatar-me a uma pós-graduação. Passei as semanas seguintes a
estudar álgebra, a fazer exercícios e à procura de cursos de Relações
Internacionais e Estudos do Médio Oriente. Antes de poder inscrever-me
no exame fui internada outra vez – agora por causa de uma infeção
provocada pelo cateter que tinha no peito, que foi removido por uma
cirurgia e substituído por outro –, mas assim que voltei para casa inscrevi-
me para fazer o GRE logo nessa semana, antes que outra complicação
qualquer pudesse deitar os meus planos por terra. Na manhã do exame, a
minha mãe fez-me um pequeno-almoço especial de “alimentos para
fortalecer o cérebro”: ovos mexidos com couve kale salteada à parte, aveia
com sementes de linhaça moídas e mirtilos. Mesmo sem apetite, fiz um
esforço para comer qualquer coisa. Quando ela me estava a levar ao centro
de exames, em Albany, adormeci no banco de trás, procurando conservar a
minha energia. Quando chegámos, um rececionista maldisposto disse-nos
que no exame eu não podia usar a touca tricotada que me tapava a cabeça
nua. A minha mãe explicou-lhe que eu estava a fazer quimioterapia, mas
ele não se comoveu: “Regras são regras.”
A tremer, debaixo do ar condicionado, com a cabeça careca a brilhar sob
as luzes vivas, eu estava decidida a acabar o maldito exame. Levei o
tempo todo: três horas e quarenta e cinco minutos. No fim, estava em
estado de delírio, com as pálpebras a fecharem-se de cansaço e os dentes a
baterem febrilmente. Mas acabei. Os resultados, que recebi umas semanas
depois, foram medíocres, mas eu estava determinada. No mês seguinte,
empreendi a tarefa de enviar várias candidaturas a pós-graduações em
todo o país: pedi cartas de recomendação a antigos professores, redigi os
ensaios que eram precisos para a admissão e preenchi as matrículas. Eu
estava à espera de me sentir triunfante quando finalmente carregasse no
botão para enviar cada candidatura, mas, no fundo, sabia que todos os
meus esforços tinham sido em vão. Mesmo que fosse admitida, não havia
hipótese de estar suficientemente bem para ir às aulas.
Depois disto, deixei de escrever no diário. Fui-me resignando à ideia de
que, de momento, tinha uma única preocupação central: continuar.
O ensaio clínico estava a refletir-se no meu corpo de uma maneira mais
dura do que alguém podia ter previsto. A toxicidade dos medicamentos era
tão intensa que no fim de cada ciclo era levada para as urgências e ficava
no hospital semanas a fio, a combater mais neutropenias febris e
complicações potencialmente fatais, que iam da colite à sepse. A minha
boca estava tão cheia de feridas que eu vivia numa dor perpétua, mesmo
com os pensos de fentanil e um cocktail extra de medicamentos. Comecei
a ter à mesa de cabeceira uma garrafa de morfina líquida e, sempre que a
dor me acordava a meio da noite, dava uns goles até voltar a adormecer.
Comecei a pensar se os efeitos secundários do ensaio clínico e dos
analgésicos que me receitavam não iriam matar-me antes da leucemia.
Pensei muitas vezes em desistir pura e simplesmente do ensaio. Creio que
o teria feito, não fossem as súplicas do Will e dos meus pais.
Numa das muitas hospitalizações desse outono, partilhei com os
médicos os meus planos para casar. Pensei que iam ficar entusiasmados
com a boa notícia, mas a reação deles foi mais de preocupação do que de
celebração. Passado muito pouco tempo, apareceu no quarto uma
assistente social, a pedir para falar comigo e com os meus pais.
– A meta é conseguir levá-la até ao transplante de medula óssea – disse-
nos. – Como estou certa que sabem, trata-se de um procedimento caro, um
transplante pode custar mais de um milhão de dólares. Felizmente, está
abrangida pelo seguro do seu pai, que vai cobrir a maior parte das
despesas, mas se casar pode pôr em risco a elegibilidade para continuar
abrangida pela apólice dele. Não pensamos que valha a pena o risco. Pelo
menos, não até estar fora de perigo.
Olhei fixamente para a assistente social. Era jovem, bonita, com cabelo
louro e comprido que lhe caía abaixo dos ombros. Num dedo magro,
imaculadamente tratado por uma manicura, usava um enorme anel de
noivado com um diamante. Eu sabia que ela era só o mensageiro, e
também sabia que ela tinha razão, mas não fui capaz de não a odiar.
O casamento foi adiado e juntou-se aos outros planos, objetivos e projetos
incontáveis que tinham sido atirados para o purgatório até um dia.
Ninguém voltou a falar dele.
Havia uma espécie de rutura a acontecer dentro de mim. De um lado, a
doente bem-disposta, jovem, corajosa e alegre, que lutava com todas as
ganas contra a doença, decidida a tirar o máximo partido das
circunstâncias terríveis em que se encontrava; e do outro, esta nova
versão, invejosa, irritável, que dormia dezasseis horas por dia e raramente
saía do quarto. Aos domingos à noite, quando o Will fazia a mala e se
preparava para ir embora de Saratoga para a semana de trabalho, eu queria
pôr uma cara alegre, de incentivo. Tentava. Mas foi-se tornando mais
difícil à medida que as semanas passavam e eu ficava mais doente. Era
injusto da minha parte ficar ressentida com ele por se ir embora – até
porque tinha sido eu a convencê-lo a aceitar o emprego –, mas crescia em
mim uma raiva como eu nunca tinha sentido, por agora contida, mas que
ameaçava consumir tudo à minha volta. O Will, a assistente social,
qualquer pessoa que fizesse parte do mundo – não eram o inimigo, a
doença é que era. Eu sabia isso, mas, a cada dia que passava, a cada sonho
adiado, era cada vez mais difícil fazer a distinção.
12

A MELANCOLIA DO ENSAIO CLÍNICO

Nesse inverno, os meus pais ficaram convencidos de que eu estava com


uma depressão. Tinha-me habituado a pressionar com a maior frequência
possível o botão do dispensador de intravenosas que me lançava nas veias
uma dose de morfina. Ansiava por esse crepúsculo químico difuso, era um
descanso bem-vindo do funcionamento incessante do meu cérebro. Falava
cada vez menos, fechava-me. Às vezes, cheia de frustração e raiva, era
agressiva, e depois fechava-me ainda mais. Eu fitava o chamamento do
vazio, l’appel du vide. Os meus humores afundavam-se em buracos
escuros dos quais eu já não sabia como me erguer.
Quando não estava a dormir ou num estado de náusea provocada pelos
medicamentos do ensaio clínico, andava ocupada a estabelecer o recorde
mundial do número de episódios de Anatomia de Grey vistos
consecutivamente. Assim que acabava um, começava logo o seguinte, sem
pensar, desesperada por qualquer coisa que me distraísse do meu estado
físico e mental em degradação acelerada. Havia qualquer coisa de
estranhamente tranquilizante nas séries de televisão sobre médicos: feridas
horríveis a jorrarem torrentes de sangue falso; doentes quase a ficarem-se
na mesa de operações e a serem salvos por médicos lindos; frotas de
ambulâncias a travarem a fundo no parque de estacionamento do hospital,
depois de mais uma tragédia de proporções épicas na cidade. Inundar o
cérebro com estas imagens atordoava-me em relação ao meu próprio
drama clínico. Também me dava uma narrativa entusiasmante e alguns
enredos amorosos excitantes que eu podia projetar nas matilhas de jovens
estagiários que via pelos corredores. Um dia, quando estava no hospital,
perguntei a uma das estagiárias se a vida dela tinha alguma semelhança
com a dos médicos da série.
– Aqui, toda a gente é significativamente menos atraente – respondeu-
me. – Mas temos exatamente a mesma quantidade de sexo.
Quando não estava a consumir episódios de Grey uns atrás dos outros,
via e revia um filme chamado Um Pedacinho de Céu. Kate Hudson faz o
papel de uma jovem independente a quem é diagnosticado cancro no
cólon – ou “cancro no cu”, como ela lhe chama – e se apaixona pelo seu
belo oncologista. Spoiler: no fim, ela morre, mas há um funeral com
chapéus de chuva cor-de-rosa, fitas a esvoaçar, champanhe e até um
desfile. Segundo todos os relatos, o meu incluído, o filme é terrível, mas
foi uma das únicas representações de cancro na juventude com que me
cruzei e fez-me sentir um pouco menos isolada. De cada vez que o via – e
vi-o dezenas de vezes –, chorava sem consolo horas a fio, o que era um
alívio, porque nos últimos tempos estava a ser muito difícil sentir o que
quer que fosse. Permitia-me enfrentar a única questão de que a minha
família e os meus amigos se recusavam a falar, embora estivesse na
cabeça de todos: a hipótese de eu morrer – e em breve.
Perante tudo isto, não é uma surpresa que os meus pais andassem
preocupados – e diziam-no abertamente. “Porque é que não vais a um
grupo de apoio a doentes com cancro ou falas com alguns dos teus velhos
amigos de Saratoga?”, diziam-me. “Faz uma pausa da televisão, sai de
casa um bocado, faz qualquer coisa divertida. Não achas que seria bom?”
Eu não tinha qualquer interesse num grupo de apoio, mas fiz um esforço
para voltar a dar-me com alguns amigos de infância, pela mesma razão
pela qual autorizava ser repetidamente envenenada com medicamentos
farmacêuticos experimentais que ainda não tinham mostrado eficácia e
segurança: não queria que os meus pais ficassem mais preocupados do que
já andavam. Falei com a Molly, que conhecia desde a pré-primária e que
vivia a algumas localidades de distância, onde trabalhava numa
exploração de apicultura. Conversámos um dia ao telefone e combinámos
encontrar-nos no centro comercial, o único local de reunião para jovens
suburbanos com uma grande falta de coisas para fazer. Quando esse dia
chegou, peguei numa blusa amarrotada e num par de jeans pretas que
estavam na minha mala de Paris, ainda por desfazer num canto do quarto.
As roupas ficaram penduradas no meu corpo esquelético, mas eu não tinha
mais nada para vestir. Há muito tempo que trocara as minhas roupas civis
pela farda de doente: camisolas confortáveis, robes, pijamas e chinelos. Os
meus pés tinham-se tornado tão magros e ossudos que tive de pedir
emprestado à minha mãe um par de botas, que eram meio número abaixo
do meu. Cobri a cabeça nua com uma peruca rosa-choque, que compus ao
espelho. Espreitei para o meu saco de maquilhagem pela primeira vez em
muitos meses e ainda pensei em desenhar umas sobrancelhas, mas fui
interrompida pela minha mãe a agitar freneticamente o chocalho de vaca.
– Não te esqueças de que preciso de te dar as injeções antes de saíres! –
gritou-me do fundo das escadas.
O meu corpo ficou tenso quando ela apareceu à porta do quarto com
duas seringas na mão. As enfermeiras que conduziam o ensaio clínico
tinham-na ensinado a administrar as injeções de quimioterapia. Isto
parecera uma boa ideia, porque me permitia passar mais tempo em casa
antes de ir inevitavelmente parar ao hospital com outra neutropenia febril,
mas rapidamente passei a recear o ritual; um travo metálico de medo
cobria a minha língua assim que via as agulhas. Eu sabia a sorte que tinha
por ter uma mãe que tratava de mim com tanta dedicação e devoção.
Desde o diagnóstico, tomar conta de mim tornara-se o seu foco principal.
Tentei lembrar-me de que algumas pessoas, como o meu amigo Dennis,
não tinham simplesmente ninguém que cuidasse delas. Mas, naquele
momento, era difícil encontrar a minha gratidão.
A minha mãe sentou-se na beira da cama e começou a limpar a parte de
cima do meu braço com toalhetes embebidos em álcool, suavemente, em
círculos concêntricos.
– Desculpa, desculpa, desculpa… – disse-me, preventivamente. As
injeções estavam a tornar-se uma tortura maior a cada dia. Embora a
minha mãe tivesse o cuidado de ir alternando entre os braços, no fim de
cada ciclo do ensaio clínico a pele à volta das picadas das agulhas saía às
camadas. Por baixo destas picadas, formavam-se pequenos inchaços,
duros como pedra, e o mínimo toque fazia-me gritar de dor. Quando a
minha mãe enfiou no músculo a primeira seringa, primeiro fiz uma careta
e a seguir dei um guincho. Quando acabou de me dar a segunda, já nem
conseguia olhar para ela. O cérebro lógico procura lembrar-se de que, às
vezes, é preciso sofrer para ficar melhor. Mas o corpo tem a sua própria
memória: lembra-se de quem o magoou. A um nível irracional, eu sentia-
me enganada por aqueles que considerava que me tinham “envenenado”
(pessoas de bata, analistas, a minha própria mãe) e pelos que me tinham
incentivado a pensar positivamente sobre isso (os amigos, os cartõezinhos
a desejar melhoras, a secção de “livros sobre cancro” da Barnes & Noble).
Encontrar o lado positivo das coisas parecia fazer parte do castigo.
Muito mais tarde, a minha mãe partilhou comigo o que escreveu nesse
inverno no seu diário: “Telefonei à minha amiga Catherine a cancelar o
chá que tínhamos combinado para amanhã à tarde. Queria dizer-lhe:
‘Catherine, como é que nos está a acontecer uma coisa destas a nós, à
Suleika?’ E, em vez disso, digo isto e aquilo, faço-lhe perguntas sobre o
filho e o marido. Isso faz-me sentir ao mesmo tempo melhor e ferida,
porque não tenho mais nada para conversar, a não ser de transfusões,
cansaço e realidade. Há lágrimas no meu coração, mas elas nunca saem.
Só quando a Suleika não fala comigo é que perco toda a força.
Comunicação, amor, riso, a presença dela – é isso que torna tudo isto
suportável, que nos permite continuar, como Ulisses.”
Podia ter feito diferença se eu tivesse lido isto nessa altura – embora,
para ser completamente sincera, tenha dúvidas. O sofrimento pode tornar-
nos egoístas, cruéis. Quando estamos numa maca de hospital, podemos
sentir que não há mais nada para além de nós e da nossa raiva, do restolhar
do papel das camas de exame por baixo das pernas feridas, da maneira
como o coração bate, junto à boca, quando o médico entra com os últimos
resultados da biópsia. Mas, com sorte, não estamos sós, não somos a única
pessoa no quarto que está a sofrer, cuja vida foi interrompida pela nossa
doença.
A minha mãe foi logo deitar-se, como fazia com frequência depois de
me dar as injeções, e o meu pai levou-me ao centro comercial. Eu nunca
tinha tirado a carta de condução, mas, mesmo que tivesse, o estado em que
me encontrava não teria permitido que me pusesse ao volante. Um dos
efeitos colaterais de estar em tratamento a um cancro e a tomar uma
tonelada de analgésicos era uma capacidade motora e cognitiva diminuída;
outro eram os pais-helicóptero, que observavam tudo o que eu fazia e
pairavam sobre mim a cada momento, para o caso de o meu corpo decidir
que chegara o momento de desistir.
– Não queres que estacione para te acompanhar lá dentro? – perguntou o
meu pai, parando à entrada do centro comercial.
– Está tudo bem, pai – respondi-lhe, procurando disfarçar a frustração.
Eu odiava que, desde o diagnóstico, todos, em especial os meus pais, me
tratassem como um bebé.
Caminhei pela zona dos restaurantes à procura da Molly. Não a vi e
sentei-me em frente ao Burger King, inspirando profundamente para tentar
acalmar a sensação de aperto no estômago. Pensei que eram nervos.
A última vez que a Molly e eu tínhamos estado juntas fora no fim do liceu.
Num dia de grande calor houve um incidente, que envolveu uma garrafa
de vodca, tacos e muitas horas a apanhar sol, e que acabou com a Molly a
vomitar descontroladamente e com a mãe dela a gritar-me que eu era
“uma péssima influência”. Nunca mais tínhamos sido autorizadas a voltar
a sair juntas. Depois da faculdade, a Molly regressara a casa para tomar
conta da mãe, que tinha Alzheimer. Assim que soube do meu diagnóstico,
enviou-me um bilhete sentido, a perguntar se queria vê-la. Resisti, por não
querer aceitar uma oferta que eu pensava que tinha de certeza sido feita
por pena, mas quando estava à espera dela percebi que isso já não me
importava nada. Agora que estava aqui, no mundo, adorava ter feito
planos a um dia de semana com alguém que não fossem os meus pais ou o
elenco da Anatomia de Grey.
A Molly acabou por chegar, meia hora atrasada. Parecia igual, mas
estava mais alta, com cabelo louro solto que lhe caía pelas costas e botas
da tropa pretas que faziam as suas pernas altas parecer ainda mais
compridas. Pediu desculpa por me ter feito esperar.
– Fiz uma curta paragem a caminho daqui. Pensei que isto podia ajudar
com a químio. – Piscou-me o olho e entregou-me uma bolsinha com um
intenso cheiro a erva.
Fizemos conversa de circunstância enquanto nos dirigíamos para o
cinema; comprámos bilhetes para a sessão seguinte e instalámo-nos nos
cadeirões híper estofados da sala. Tentei prestar atenção ao filme, mas o
cheiro a pipocas e a suor velho pôs o meu estômago a dar ainda mais
voltas. Quando senti aquele pânico já conhecido a erguer-se do esófago,
lembrei-me de uma coisa: na pressa de me arranjar, tinha-me esquecido de
tomar a medicação para as náuseas antes das injeções da químio.
Levantei-me a correr e tentei chegar à casa de banho a tempo, mas não
passei do caixote do lixo ao pé das bilheteiras. Vomitei, vomitei e vomitei,
com o corpo a agitar-se violentamente. Um grupo de adolescentes que
estava na fila olhou para mim. “Blergh…”, fez uma delas, enojada. “A
gaja está acabada”, disse outra. Ignorei-as. Desde que começara o ensaio
clínico, não era a primeira vez que despejava em público o conteúdo do
meu estômago – e não seria a última. Estava cada vez mais acostumada a
perder a dignidade à frente de estranhos.
Regressei ao meu lugar como se nada se tivesse passado. Mesmo a
tremer e nauseada, ainda não estava preparada para ir para casa. Por uma
noite que fosse, queria fingir que era uma jovem normal a fazer aquilo que
as pessoas jovens normais fazem. Sentei-me, fechei os olhos e procurei
acalmar o estomago, até os créditos do filme começarem a passar no ecrã.
A seguir, a Molly levou-me a casa. Quando parou à frente da minha
porta, a rua estava escura, tirando uma luz pálida no piso térreo, que
iluminava as estantes vermelhas do escritório, que iam do chão ao teto.
O meu pai estava à secretária, dobrado sobre uma pilha de papéis, a ler
qualquer coisa. Talvez cenas médicas, pensei. Negociar com a companhia
de seguros e descodificar o jargão médico tinha-se tornado um trabalho a
tempo inteiro.
– Bonne nuit – disse ao meu pai, metendo a cabeça pela porta do
escritório antes de voltar a refugiar-me lá em cima no quarto.
– Como é que foi?
– Foi muito divertido – respondi. Não queria preocupá-lo com a
verdade.
O meu pai parecia exausto. Tinha grandes olheiras e a cara estava
amarelada e inchada em sítios onde não costumava estar. Senti o impulso
de o abraçar, de lhe dizer que o adorava, mas não tínhamos esse tipo de
relação.
– A Molly deu-me isto – disse, atirando-lhe para a secretária a bolsinha
cheia de erva. – Parece-me que tu estás a precisar mais disso do que eu.
13

O PROJETO DOS CEM DIAS

– Precisa de arranjar um hobby, qualquer coisa que consiga fazer dentro


das suas limitações físicas – disse-me a psicóloga que os meus pais me
tinham obrigado a começar a ver. Agora, as palavras dela parecem óbvias,
mas naquela altura senti-as como uma epifania. O casamento, o curso de
escrita criativa, o exame GRE, a candidatura à pós-graduação – eram tudo
coisas que teriam feito sentido no contexto da minha vida anterior.
Precisava de encontrar uma coisa que pudesse fazer a partir de casa ou da
cama do hospital. Não só tinha de aceitar as minhas limitações – o cansaço
e as náuseas, o nevoeiro no cérebro e os internamentos constantes – como
de encontrar uma forma de realizar qualquer coisa de útil a partir da minha
dor.
– Ouvi dizer que fazer pão pode ser muito calmante – sugeriu-me a
terapeuta. Deixei logo de a ouvir. Era muito frequente as pessoas fazerem-
me sugestões. No hospital, havia voluntários que propunham uma série de
atividades para fazer passar o tempo: tricotar, criar peças com contas,
compor quadros com os nossos objetivos e fazer espanta-espíritos. Tinha
amigos que me enviavam puzles, livros de colorir “para crescidos” e jogos
de tabuleiro. Mas nada disso tinha muito a ver comigo. A minha vontade
era dizer-lhes: “Eu estou doente – não estou reformada nem na pré-
primária.”
Mas, no fim, acabei por aceitar empreender uma coisa a que chamámos
o Projeto dos Cem Dias. Não sei quem foi a primeira a ter a ideia, mas o
objetivo era que a minha família, o Will e eu dedicássemos uns minutos
por dia a trabalhar num projeto criativo, nos cem dias seguintes. O projeto
devia constituir uma forma de organizar as nossas vidas em torno de um
pequeno ato de imaginação. Com o tempo, tornou-se muito mais do que
isso.
Para o seu Projeto dos Cem Dias, o Will decidiu enviar-me todos os dias
pequenos vídeos com relatos do que se passava no mundo, sobre tudo:
tanto podia ser o estado do tempo como a qualidade do café no bar do
hospital. “Hoje, estou ao vivo no Central Park”, dizia ele num desses
vídeos. “Quero que conheçam o meu vendedor de cachorros-quentes
preferido. Rafiki, pergunta à Suleika como é que ela está.” Sempre que me
sentia sozinha, eu via esses vídeos e voltava a vê-los. Às vezes,
preocupava-me pensar que a distância entre nós podia estar a tornar-se
inultrapassável, mas os vídeos ajudavam-me a sentir-me ligada a ele, ao
mundo para lá da janela.
Quanto à minha mãe, decidiu pintar todas as manhãs um azulejo feito à
mão. No fim do projeto, reuniu-os todos num grande mosaico multicolor
que pendurou na parede do meu quarto. Chamou-lhe “O Escudo da
Suleika” e disse-me que tinha poderes protetores. Tentou esconder na arte
a sua dor, mas interroguei-me sobre se as imagens, na maior parte de
pássaros em dificuldades – a cair, de cabeça para baixo, com os bicos
abertos em desespero –, não seriam um reflexo do seu estado de espírito.
Le couer qui saigne, o coração que sangra, escreveu ela num dos azulejos.
Para o seu projeto, o meu pai escreveu 101 memórias de criança, que
imprimiu e reuniu num pequeno livro que me deu na manhã do dia de
Natal. Foi a primeira vez que consegui realmente espreitar a sua infância.
Ele escreveu sobre as viagens anuais que a família, na Tunísia, fazia na
primavera para visitar o santuário do padroeiro Sidi Gnaw nas grutas de
Matmata. Escreveu sobre a minha trisavó Oumi ’Ouisha, a curandeira da
aldeia, que mandava o meu pai apanhar as ervas e plantas do deserto que
ela guardava debaixo da cama enquanto murmurava encantamentos ao
ouvido dos que a iam consultar. Escreveu sobre o choque que teve em
miúdo quando pela primeira vez foi visitar “a praia dos franceses”, no
outro lado da localidade, onde os colonos andavam de biquíni e fatos de
banho. “As nossas mulheres, quando tomavam banho no mar, o que
acontecia uma vez por ano, no Awossu, molhavam-se até ao joelho
completamente vestidas. Chamávamos-lhes ‘tendas flutuantes’.”
Uma das histórias andou comigo muito tempo depois de a ler. Era sobre
a irmã mais nova do meu pai, Gmar, a “do rosto belo”. Nunca tinha
ouvido falar dela – nem sequer tinha ouvido alguém da minha família
alargada pronunciar o nome dela, que em árabe quer dizer “lua”. Quando
li a história, percebi porquê. A Gmar tinha passado na cama a maior parte
da sua curta vida, enfraquecida por uma doença misteriosa, até que, numa
manhã abrasadora de verão, “expirou”, na expressão do meu pai. Ele tinha
quatro anos quando a Gmar morreu, mas ainda se lembrava do pranto da
mãe a ecoar pela casa. Nunca teve coragem para lhe perguntar qual fora a
doença de Gmar, com medo de despertar memórias dolorosas. Que eu
soubesse, não havia na minha família qualquer historial de cancro, mas
quando acabei de ler não pude deixar de pensar se a Gmar e eu não
teríamos a mesma coisa. Era estranho, mas havia algum conforto em
pensar que não era a única.
Quanto ao meu Projeto dos Cem Dias, decidi regressar àquilo em que
me tinha sempre apoiado em tempos difíceis: manter um diário. Prometi a
mim mesma que, por muito cansada ou enjoada que me sentisse, todos os
dias tentaria rabiscar qualquer coisa, nem que fosse só uma frase.
*

É frequente as pessoas reagirem à notícia de uma tragédia dizendo “não


tenho palavras”, mas as palavras não me faltaram naquele dia, nem no
seguinte, nem depois – na verdade, as palavras jorraram, primeiro
lentamente, depois com exuberância, como se a minha mente despertasse
de uma longa letargia e os pensamentos se atropelassem com uma
velocidade maior do que a minha caneta era capaz de acompanhar. Era
diferente de toda a escrita que eu fizera antes. Não havia nela nada de
olhar para o futuro. Cada frase estava centrada no agora. Sempre me tinha
imaginado como o género de escritora que ajudaria outras pessoas a contar
as suas histórias, mas senti-me cada vez mais a gravitar para a primeira
pessoa. A doença tinha voltado o meu olhar para o interior de mim.
Estão sempre a pedir-nos, enquanto doentes, que examinemos o nosso
corpo, que nos investiguemos e que contemos aquilo que descobrimos:
Como se sente? Numa escala de um a dez, como é a sua dor? Tem
sintomas novos? Sente-se pronta para ir para casa? Eu percebia agora
porque é que tantos escritores e artistas resolviam escrever memórias
quando estavam a viver em pleno a sua doença. Isso proporcionava uma
sensação de controlo, era uma maneira de moldar as circunstâncias nos
nossos próprios termos e nas nossas próprias palavras. “É isso que a
literatura dá – uma linguagem suficientemente poderosa para dizer como
são as coisas”, escreveu Jeanette Winterson3. “Não é um lugar onde nos
escondemos. É um lugar de descoberta.”
Claro que havia dias em que estava demasiado cansada para escrever
muito, mas manter um diário recordou-me do meu amor pelas palavras e
isso inspirou-me a voltar outra vez a ler seriamente. A minha mãe tinha-
me dado O Diário de Frida Kahlo numa edição em capa dura e mergulhei
nele. Comoveu-me descobrir que – numa idade não muito mais jovem do
que eu quando a leucemia me atingiu – Kahlo tinha frequentado um curso
de preparação para a faculdade de medicina, na Cidade do México. Um
dia, quando ia da escola para casa, o autocarro dela chocou com um
elétrico. Ela sofreu fraturas da clavícula, costelas, coluna, cotovelo, pélvis
e perna. O pé direito ficou esmagado e o ombro esquerdo deslocado. Foi
trespassada de cima a baixo por um varão metálico do elétrico, que lhe
entrou pelo lado esquerdo da anca e saiu pela pélvis. Os ferimentos
deixaram-na meses na cama.
Antes do acidente, Kahlo sonhara ser médica. Teve de pôr de parte esses
planos, mas estar presa em casa a convalescer empurrou-a para a
descoberta de uma nova paixão. “Nunca pensei em pintar até 1926,
quando fiquei de cama por casa de um acidente rodoviário”, disse. “Estava
aborrecida de morte na cama, cheia de gesso… por isso, decidi fazer
qualquer coisa. Então [roubei] ao meu pai umas tintas de óleo, a minha
mãe encomendou-me um cavalete especial, porque eu não conseguia estar
de pé, e comecei a pintar.”
Kahlo transformou o seu confinamento num lugar incandescente de
metáforas e significados. Usando um pequeno cavalete de colo e um
espelho pendurado no dossel da cama, para poder ver o seu próprio
reflexo, começou a pintar os autorretratos que a tornariam uma das mais
famosas artistas de todos os tempos. Mas o corpete de gesso que usava
para suster a coluna lesionada – o próprio corpo – foi a primeira tela de
Kahlo, uma tela à qual regressou uma e outra vez. Ao longo da vida, teve
dezenas de corpetes, ao mesmo tempo objetos de tortura e de beleza, de
prisão e de inspiração, que definiriam a trajetória da sua existência e da
sua carreira. Adornou cada um deles, cobrindo o gesso com pedaços de
tecido e imagens de macacos, pássaros de penas brilhantes, tigres e
elétricos. Às vezes, pintava as suas cicatrizes, até as suas lágrimas. “Pinto-
me a mim, porque estou muitas vezes sozinha”, afirmou. “Sou a minha
própria musa, sou o sujeito que conheço melhor. Sou o sujeito que quero
conhecer melhor.”
As cirurgias e as convalescenças de Kahlo, as suas paixonetas e
desgostos viveram nas suas pinturas para além da sua morte e ela acabou
por conquistar um estatuto quase mítico como padroeira de pessoas
inadaptadas e em sofrimento. Estas obras-primas poderiam ter sido
pintadas por alguém que estivesse bem? Eu tinha dúvidas. Poderiam ter
sido criadas por alguém que não tivesse sido obrigado a enfrentar a
terrível fragilidade do corpo humano? Eu não tinha a certeza.
Claro que eu não era uma Frida Kahlo, por isso, tinha dificuldade em
imaginar como que é que podia encontrar um envolvimento criativo com a
minha própria infelicidade. Mas a história dela acendera em mim qualquer
coisa. Comecei a investigar a longa linhagem de artistas e escritores
confinados à cama que tinham feito a alquimia do seu sofrimento,
transformando-o em matéria-prima criativa. Henri Matisse, ao recuperar
de cancro nos intestinos, tinha trabalhado no projeto da Capela do
Rosário, em Veneza, fazendo de conta de que o teto do seu quarto era a
capela e atando um pincel a um cabo comprido, o que lhe permitia
trabalhar da cama. Marcel Proust viveu deitado por causa de uma asma
grave e de uma depressão que o afligiam desde a infância e criou o épico
em sete volumes, Em Busca do Tempo Perdido, a partir de uma estreita
cama de latão, num quarto forrado de cortiça para o isolar dos sons do
mundo exterior. Roald Dahl acreditava que a sua dor crónica fora a tábua
de impulso da sua carreira como escritor: “Duvido que tivesse escrito
sequer uma linha, ou que tivesse a capacidade para escrever uma linha, a
menos que uma tragédia menor tivesse como que desviado a minha mente
para fora do trilho normal”, afirmou numa carta a um amigo. Em todos
estes casos, foram as simples limitações físicas, ou o facto de a vida estar
limitada por outras formas, que pareceram expandir a imaginação e
encorajar a produtividade. Como escreveu Kahlo: “Para que preciso de
vocês, pés, quando tenho asas para voar?”
*
Decidi reimaginar a minha sobrevivência como um ato criativo. Se as
feridas da químio na minha boca faziam com que fosse muito doloroso
falar, então, encontraria novas maneiras para comunicar. Enquanto
estivesse presa à cama, a minha imaginação tornar-se-ia o veículo que me
permitiria viajar para lá dos confins do meu quarto. Se o meu corpo se
tinha tornado tão débil que eu agora só tinha três horas funcionais por dia,
então, clarificaria as minhas prioridades e aproveitaria ao máximo o tempo
que possuía.
Com isto na cabeça, reorganizei o meu quarto de maneira a que tudo
aquilo de que precisasse estivesse ao alcance dos braços: uma pequena
mesa de cabeceira cheia de canetas, blocos e papel; uma estante com os
meus romances e livros de poesia favoritos; um tabuleiro de madeira que
punha em cima dos joelhos e fazia de secretária. Escrevia quando estava
em casa e escrevia todos os dias sempre que tinha de voltar ao hospital.
Escrevia até que a raiva, a inveja e a dor secassem – até deixar de ouvir os
apitos persistentes dos monitores, o assobio dos ventiladores, os alarmes
que estavam constantemente a disparar. Eu não tinha maneira de antecipar
todos os lugares onde o Projeto dos Cem Dias me levaria, mas aquilo que
sabia, nesse momento, era que começava a encontrar o meu poder.

3 Escritora britânica nascida em 1959. (N. do T.)


14

TANGO PARA TRANSPLANTE

Quase um ano antes, pouco depois do diagnóstico, tinha ligado por Skype
ao Adam, o meu irmão, quando ele estava a estudar na Argentina. Tinha de
lhe contar que me fora diagnosticada uma leucemia e que – não te sintas
pressionado… – ele era a minha única hipótese de cura. Ele começou por
pensar que eu lhe estava a pregar uma partida mazinha e disse-me: “Isso
não tem piada.” Respondi-lhe: “Estou a falar a sério. Quem me dera estar
a brincar.” Eu e os meus pais tínhamo-lo mantido praticamente na
ignorância sobre o meu estado, sem querermos que ele se preocupasse e a
cara do Adam ficou lívida quando percebeu que era tudo menos uma
brincadeira. Sem hesitar, pediu uma licença para interromper o programa
de estudos no estrangeiro e, uns dias depois, já estava num avião para
Nova Iorque, para fazer os exames necessários.
Os resultados mostraram que o Adam era compatível – era, aliás, uma
compatibilidade perfeita, um dez na escala dos dadores – e celebrámos
isso, contentes por esta boa notícia. Na verdade, ficámos tão felizes que
até fomos capazes de descobrir algum humor nas circunstâncias. Não
passou muito tempo até o meu irmão me arranjar uma nova alcunha.
“Salut, Suleikemia”, era como ele me cumprimentava todas as manhãs.
Mas, depois, começou a impor-se a realidade do que estava para vir – ou
seja: de repente, toda a nossa família estava dependente do meu irmão.
O Adam insistia que estava feliz por poder ajudar, mas era uma pressão
enorme que ele tinha de suportar. Quando o ensaio clínico começou,
estava no último ano da faculdade. Enquanto os amigos se candidatavam a
empregos e saltitavam de festa em festa, nos últimos meses do ano
escolar, ele andava entre a universidade e Nova Iorque, para consultas
com a minha equipa de transplante. Além disso, os meus pais tinham
pavor que ele fizesse qualquer coisa que pusesse em risco a sua saúde e,
então, começaram a chateá-lo para não beber, nem fumar, nem sair até
muito tarde. Uma noite, ao jantar, a minha mãe disse qualquer coisa sobre
a quantidade de açúcar que ele ingeria e o Adam perdeu a cabeça. “O que
é isto?! Uma versão marada do Para a Minha Irmã4?!”, gritou, saindo da
sala. Nos meses seguintes, teve dificuldades em acompanhar os estudos e
adiou umas cadeiras. Começou a tomar medicamentos para a ansiedade e,
aos fins de semana, quando vinha a casa, eu ouvia-o às voltas no quarto,
que era ao lado do meu.
Tudo isto se ia acumulando à culpa, que tinha sido a minha companheira
secreta e permanente desde o diagnóstico. Sentia-me culpada pela
perturbação financeira que estava a causar à minha família. Pelas pilhas de
contas médicas e comparticipações. Pelo rendimento perdido. Quando eu
adoeci, a minha mãe deixou de se dedicar à pintura e passou a ser minha
cuidadora a tempo inteiro; o meu pai faltava a muitas aulas por causa das
minhas urgências médicas e até estava a pensar se no semestre seguinte
não devia parar mesmo. Eu sentia-me culpada sempre que tinha um golpe
de febre a meio da noite, porque sabia que um deles ia levar-me de carro
até Nova Iorque – eram três horas e meia a acelerar pela autoestrada para
chegar a tempo às urgências. Sentia-me culpada quando o meu pai
regressava com a cara inchada dos seus longos passeios à tarde pelos
bosques. Sentia-me culpada quando o Will recusou uma promoção no
emprego – ele nunca disse que era por minha causa, mas eu sabia que sim.
Ele já estava a abusar um bocado com o chefe, sempre a pedir-lhe para
trabalhar fora da redação para poder fazer-me companhia no hospital e era
visível o cansaço nos seus olhos, de todas as noites passadas numa cama
de campanha, com os apitos incessantes dos monitores a tornarem
impossível o descanso. Sentia-me culpada por causa do meu irmão, que
não falava muito sobre o que sentia, mas que uma noite confessou à minha
mãe que, como meu dador, se sentia responsável pelo resultado do meu
transplante de medula óssea. Eu sentia-me culpada pelo que a minha
doença tinha feito à minha família, pela dor e pelo stress que eu estava a
causar a todos, pela quantidade de “espaço” que o meu corpo, com os seus
problemas, ocupava. Era impossível não me sentir um fardo.
*

Ao fim de cada ciclo do ensaio clínico, os médicos realizavam uma


biópsia à medula óssea, à procura de linfoblastos leucémicos ocultos, e a
agulha de vinte e cinco centímetros deixava mais uma cicatriz na parte
inferior das minhas costas. “Faltam só mais umas vezes”, dizia o Dr.
Holland no fim de cada ciclo. Isto foi assim ao longo de meses, até que,
finalmente, ao fim de biópsias sem fim, de complicações quase fatais e de
meses de hospitalizações, conseguimos chegar a um número mágico.
Embora o ensaio clínico não tivesse erradicado completamente a minha
leucemia, o número de linfoblastos na medula tinha descido abaixo dos
cinco por cento, o que era um nível suficientemente seguro para eu
avançar para o que todos esperávamos que fosse a fase final: o transplante.
O Dr. Holland fez o melhor possível para me preparar, e à minha
família, para o que vinha a seguir. Disse-nos que eu passaria cerca de oito
semanas na unidade de transplantes. Na primeira semana, seria submetida
a um regime intensivo de químio, destinado a eliminar a minha medula e o
meu sistema imunitário, a fim de que o meu corpo pudesse receber a
minha nova medula. As náuseas e os vómitos que acompanhavam a
químio eram-me familiares, mas o Dr. Holland avisou-nos: este tratamento
seria muito mais agressivo do que qualquer um que eu já tinha feito.
O meu corpo teria de combater febres e mucosites sem quaisquer glóbulos
brancos para me proteger. Era provável que precisasse de ser alimentada
por um tubo e estaria sempre, vinte e quatro horas por dia, ligada a um
saco de morfina.
Na semana anterior ao transplante, o meu irmão tomaria injeções para
estimular a produção de células estaminais, as células primordiais da
medula, que amadurecem e se tornam glóbulos vermelhos, glóbulos
brancos e plaquetas. Quarenta e oito horas antes do transplante, ele seria
internado para se proceder à colheita das suas células estaminais. Durante
aproximadamente nove horas, ficaria num quarto de hospital, com uma
agulha num braço, ligado a uma máquina que filtraria as células
estaminais do seu plasma sanguíneo, num processo conhecido como
aférese. Quando uma quantidade suficiente de células estaminais tivesse
sido recolhida em sacos de intravenosas, seriam então injetadas na linha
central implantada no meu peito. O meu destino estava nessas células
estaminais, na sua capacidade para se moverem pelo meu sangue e
encontrarem o caminho para a medula, onde, se tudo corresse bem,
começariam a crescer e a proliferar. As duas semanas a seguir ao
transplante seriam as mais difíceis, pois estaríamos à espera de ver se
tinha funcionado – isto é, se as células estaminais teriam ganho raízes na
minha medula. Partindo do princípio de que o transplante era bem-
sucedido, as células dadoras iriam aos poucos preencher a minha medula e
criar um novo sistema imunitário. Quando os números da minha contagem
sanguínea estabilizassem, e eu já não precisasse de transfusões, teria alta.
Teria de encontrar um lugar para viver que fosse próximo do hospital, para
poder ir lá todos os dias realizar exames de avaliação. O período de
recuperação seria de vários meses, até o meu novo sistema imunitário ser
tão forte que eu pudesse sair sem máscara e sem luvas.
Entre os doentes de cancro, um transplante de medula óssea é
considerado um renascimento, uma espécie de aniversário – mas só
quando funciona. O transplante em si é perigoso. Uma das maiores
complicações potenciais é a chamada doença do enxerto contra o
hospedeiro (DEcH), que acontece quando o enxerto (as células do dador)
não reconhece o hospedeiro (as células do doente) como tendo a mesma
origem. As células imunitárias atacam impiedosamente aquilo que é
estranho – é assim que o corpo erradica as infeções –, mas, no caso da
DEcH, o doente torna-se o alvo. Os primeiros sintomas, que surgem em
geral nos primeiros cem dias depois do transplante, podem ser ténues,
como uma erupção cutânea, mas também de uma gravidade muito maior,
devastando os pulmões, o fígado, os olhos e o trato gastrointestinal. Ainda
que o transplante funcionasse – ou seja, mesmo que não se manifestasse a
DEcH – eu estaria sempre extremamente suscetível a infeções e a diversas
outras complicações, incluindo falhas cardíacas e danos nos órgãos. Os
médicos disseram-me, e aos meus pais, que eu tinha trinta e cinco por
cento de hipóteses de sobrevivência a longo prazo. Trinta e cinco por
cento. Quando ouvi o número, ele percorreu e agitou todos os meus ossos.
E, mesmo sobrevivendo a “longo prazo”, os possíveis efeitos secundários,
que incluíam ironicamente um risco elevado de novos cancros no futuro,
também eram aterrorizadores. Senti que andava com uma arma carregada
encostada à têmpora. Uma espécie de jogo médico de roleta russa.
*

Antes de me ter sido diagnosticada a leucemia, a expressão “carpe diem”,


aproveita o dia, sempre me soara a lugar-comum, uma coisa que se ouvia
naquele filme choramingas com o Robin Williams ou nos discursos de fim
da faculdade. Agora, ao aproximar-se o momento do transplante, cada dia
parecia uma contagem decrescente de carpe diem. Eu sentia a necessidade
de tirar o máximo de cada coisa que fazia. Todas as horas de todos os dias
tinham um valor incalculável e não podiam ser desperdiçadas. O tempo
corria atrás de mim como se fosse um predador e eu fosse uma presa. Eu
não era a única a sentir isto. Pela primeira vez na vida, a minha mãe
arranjou tudo para que um fotógrafo profissional nos fizesse um retrato de
família. O Will e os meus amigos mais próximos organizaram-me uma
festa que era em parte de “boa sorte” e em parte um “adeus”. E o meu pai
começou a dizer-me todas as noites “je t’aime” quando eu ia para a cama.
Eu sempre sentira que o meu pai me amava intensamente, mas era a
primeira vez na vida em que me lembrava de o ouvir dizê-lo em voz alta.
Todos estes gestos me comoviam, mas também estava um pouco
assustada. Quando estamos diante da possibilidade de morte iminente, as
pessoas tratam-nos de maneira diferente: o seu olhar demora-se em nós,
grava cada sinal, toma nota da forma dos lábios, repara no tom exato dos
nossos olhos – é como se estivessem a pintar um retrato para pendurar na
galeria das recordações. Tiram-nos dezenas de fotografias e de vídeos com
os telemóveis, procuram congelar o tempo, engarrafar o som do nosso
riso, imortalizar momentos com significado que mais tarde podem ser
revisitados numa nuvem de memória. Esta atenção toda pode fazer-nos
sentir que nos estão a erguer um memorial ainda em vida.
Mas aquilo que me assustava mais do que o transplante, mais do que os
efeitos secundários debilitantes que o acompanhavam, mais do que a
possibilidade da própria morte, era a ideia de ser recordada por alguém
como uma pessoa com uma triste história de potencial por cumprir. Em
adulta, as minhas realizações mais significativas tinham sido ir buscar
cafés e fazer fotocópias, enquanto era estagiária na firma de advogados, e
dar o meu melhor para combater uma doença que nunca tinha desejado.
Ainda não tinha feito nada de que me orgulhasse. Tinha passado os meus
vinte e três anos neste planeta a preparar-me para uma vida: a fazer diretas
para poder ter as notas que me permitissem ganhar uma bolsa para uma
boa universidade e, um dia, ter uma carreira de que gostasse; a aprender a
cozinhar para os jantares que pensava ir organizar; a poupar para poder
fazer uma viagem algures a um sítio distante; a falar sobre tudo o que
queria escrever sem, na verdade, ter a coragem de mostrar ao mundo nada
do que tinha escrito. Eu sabia que provavelmente era demasiado tarde para
a maior parte destas coisas, mas estava decidida a aproveitar os dias que
me restavam. Enfrentar a mortalidade tinha-me despido de todas as
preocupações em ser cool e não sentia embaraço nem sinceridade em
excesso ao afirmar que esperava fazer a diferença. À minha maneira, por
muito pequena que fosse, queria contribuir com qualquer coisa para o
mundo. Deixar mais do que tinha tirado.
Ao fim de quase um ano em isolamento, a fazer viagens entre o hospital
e a casa dos meus pais em Saratoga, estava farta de me esconder. Adrienne
Rich5 escreveu: “É sempre aquilo que está sob pressão dentro de nós, em
especial sob pressão de ocultamento – que explode em poesia.” Eu queria
compreender o que me tinha acontecido, explorar o seu significado nos
meus próprios termos. Queria que a última palavra fosse minha.
Portanto, decidi começar um blogue.
A ideia era criar uma espécie de plataforma para um conjunto de
pessoas que são muitas vezes mal compreendidas e ignoradas: jovens
adultos com cancro. Ainda não fazia ideia de como seria, mas comecei a
documentar o meu tempo remetida à cama e no hospital. Com o apoio dos
meus pais e a ajuda do Will, lancei-me ao trabalho. Contactei um
fotógrafo meu amigo do liceu para fazer fotos; arranjei uma câmara de
vídeo barata e passei horas a filmar e a montar pequenos filmes; percorri
tutoriais do YouTube e aprendi sozinha a construir um site básico;
finalmente, preparando o grande lançamento do blogue, fiz rascunhos dos
primeiros posts, aproveitando coisas que escrevera para o meu Projeto dos
Cem Dias.
Levei-me a mim e ao meu novo blogue muito a sério. “Tenho um prazo
a cumprir”, dizia às enfermeiras quando elas vinham ver como eu estava
ou ajustar a medicação. Claro que eram prazos totalmente autoimpostos,
mas sabia tão bem ter um trabalho para fazer – ter um propósito que não
fosse só o de ser uma pessoa doente.
*

Quando lancei o blogue, no início de 2012, as minhas expetativas eram


baixas. Tinha quase a certeza de que os leitores se resumiriam ao Will e
aos meus pais, talvez à minha avó. Mas, para minha surpresa, o primeiro
post começou a ser partilhado, não só por familiares, mas também por
amigos, colegas e até pelo meu professor de jornalismo da faculdade, que
me escreveu a afirmar que estava impressionado e que tencionava
reencaminhar o site a alguns colegas. No dia seguinte, quando acordei,
descobri que o The Huffington Post tinha referenciado o primeiro post do
meu blogue, que tinha o título “Boa tarde, tem cancro”, logo na página de
abertura do site. “Hoje, quando me preparo para um transplante de medula
óssea, descobri que o meu maior desafio pode não ser físico”, tinha eu
escrito. “É suportar o aborrecimento, o desespero e o isolamento de estar
doente e confinada a uma cama por um período de tempo indeterminado.”
No espaço de horas, o meu humilde site registava milhares de visitas.
Coloquei um segundo post, este mais direto, chamado “Dez coisas a não
dizer a um doente de cancro”, uma espécie de guia de etiqueta para os
amigos dos que viviam com uma doença potencialmente fatal. Ao fim de
pouco tempo estava a receber mensagens de pessoas que não se
encontravam ligadas a mim por sangue ou por conhecimento – eram
estranhos absolutos, de toda a parte.
Uma das primeiras cartas que recebi foi de um jovem com o nickname
de Lil’ GQ, a dizer-me que a minha história tinha comovido, nas suas
palavras, “o coração de um condenado à morte”. Mas a verdadeira razão
pela qual estava a escrever era porque, de uma forma estranha, ele se
identificava com a minha provação. “Sei que as nossas situações são
diferentes”, escreveu ele numa letra desenhada, “mas a ameaça da morte
esconde-se nas nossas duas sombras.” Embora o Lil’ GQ nunca tivesse
estado doente, também ele se encontrava preso num limbo, a aguardar as
notícias sobre o seu destino.
Deitada na minha cama de hospital em Nova Iorque, a ler e a reler a
carta dele, era surreal imaginar Lil’ GQ na sua cela, a 2.500 quilómetros
de distância, no Texas. Havia tantas coisas que queria perguntar-lhe, tanto
que queria saber. Pensei se ele, como eu, já teria planeado a sua fuga.
Queria saber se o seu medo da morte era o mesmo medo da morte que eu
tinha. Ou se era diferente aguardar a nossa execução não por obra de uma
doença, mas às mãos dos guardas fardados e autorizados pela lei. Estava
ansiosa por conhecer mais pormenores sobre o passado de Lil’ GQ – por
saber como é que ele tinha acabado na ala dos condenados à morte. Como
é que se acorda todos os dias, como é que se continua, quando o futuro
encerra incerteza ou, pior, um fim certo?
Ensaiei algumas respostas, mas não consegui escrever-lhe de volta.
O blogue consumia a pouca energia que eu tinha. Demasiado fraca para
me sentar a uma secretária, escrevia na cama, amparada numa montanha
de almofadas. A químio tornara-me os pensamentos lentos e confusos e
trabalhava com interrupções, em espaços de dez minutos que se
prolongavam dia fora. Para ter uma energia extra, bebia cappuccinos
gelados. O batido xaroposo arrefecia-me a boca inflamada e a cafeína
ajudava-me a manter alguma lucidez. Quando estava demasiado doente
para teclar, ditava ao Will. Ele, sentado aos pés da minha cama, escrevia
no meu laptop, dava-me a sua opinião e encorajamento. Era um trabalho
árduo, cansativo, gratificante.
Duas semanas mais tarde, quando aguardava a realização de uma
biópsia final, antes de iniciar o processo de transplante, chegou um email.
Era de um editor do The New York Times que tinha lido o meu blogue e
queria saber se eu estava interessada em escrever um ensaio para o jornal.
Só de pensar que ia assinar um texto senti uma descarga de entusiasmo
pelo corpo. De repente, apeteceu-me dar saltos e fazer a roda no meu
quarto de hospital. Escrevi um email a responder e incluí o meu número
de telefone. Para minha surpresa, o editor ligou-me imediatamente.
– Interessada? – perguntou-me ele.
– Possivelmente – respondi eu, a fazer bluff.
Nunca tinha escrito nada para um jornal a sério. Nunca tinha trabalhado
com um editor. No primeiro ano da faculdade, não tinha sido aceite no
programa de escrita criativa e, para além das duas cadeiras de jornalismo
que fizera como opcionais, nunca tinha estudado formalmente escrita. Mas
em todas as muitas horas passadas a escrever no meu diário e a sonhar
com o meu blogue, havia sempre uma ideia a martelar-me na cabeça, cada
vez mais insistente, até já não ser capaz de pensar noutra coisa. Sofri para
encontrar a linguagem certa para descrever os misteriosos acontecimentos
nos meus ossos, os meses sem fim deitada na cama, obrigada a um estado
de reflexão solitária, todas as humilhações e todos os flirts com a
decadência, a experiência de assistir às sucessivas mortes de doentes como
eu – e também de partes de mim. Na verdade, não fazia ideia do que
estava a fazer e seguramente não sabia se estava suficientemente bem para
conseguir fazê-lo. Mas sabia que não tinha quase nada a perder. O cancro
tornara-me destemida.
– Aquilo que eu adorava mesmo escrever era uma coluna semanal sobre
a experiência da doença na juventude – disse.
Propor uma coluna ao The New York Times com vinte e três anos e sem
nada publicado era para lá de presunçoso. Eu sabia que, em vez de
canalizar para a escrita a pouca energia que tinha, devia era repousar o
corpo, preparar-me para o transplante e estar com a família. Devia ter
parado um instante para perguntar a mim mesma como é que partilhar em
tempo real os momentos mais difíceis da minha vida poderia ter um
reflexo na minha saúde, no meu futuro, nos meus entes queridos. Mas ali
estava eu, a andar de um lado para o outro no quarto, na minha camisa
azul de algodão, ao telefone, a apresentar a minha ideia ao editor, a
explicar como é que estava a pensar reunir tudo o que me sucedera desde
o diagnóstico e traduzir essas experiências em episódios semanais de mil
palavras. Propus que a coluna talvez pudesse ser acompanhada por vídeos,
explicando que eu sabia por experiência própria como podia ser difícil ler
quando se estava doente e observando que queria um projeto o mais
inclusivo possível.
– Muito bem – respondeu o editor. – Vamos experimentar publicar a
coluna algumas vezes e veremos como corre. Vou pô-la em contacto com
um dos nossos operadores de vídeo, para poderem discutir a possibilidade
de uma série de filmes. Avise-me quando acabar o rascunho da primeira
coluna.
Desliguei o telefone e explodi em lágrimas.
– O que se passa? – perguntou a minha mãe, alarmada.
– Acho que arranjei um emprego.
*

“Escreve como se estivesses a morrer” – é o conselho de Annie Dillard.6


Nesta terra somos todos doentes terminais – o mistério não é “se” a morte
vai aparecer no argumento, mas sim “quando”. Com a data do transplante
a aproximar-se, as palavras dela tiveram em mim um eco profundo.
A minha mortalidade era uma sombra sobre cada respiração minha, sobre
cada passo que dava, mais presente agora do que nunca. Uma energia
frenética percorria-me. Trabalhei um mês em contrarrelógio para escrever
treze colunas antes de entrar na unidade de transplantes, com a perfeita
consciência de que passaria muito tempo até estar suficientemente bem
para escrever, andar, ou outra coisa qualquer. Escrevemos sobre o quê
quando sabemos que podemos morrer em breve? Na cama, debruçada
sobre o portátil, viajei até ao lugar onde o silêncio se encontrava na minha
vida. Escrevi sobre a minha infertilidade e sobre como ninguém me
avisara para isso. Sobre aprender a navegar no nosso absurdo sistema de
saúde. Sobre o que significava apaixonar-se ao mesmo tempo que se
adoecia, e sobre como falamos – ou não falamos – de morrer. Escrevi
sobre a culpa. Também escrevi um testamento, para o caso de, no
transplante, cair do lado errado das probabilidades. Até hoje, nunca fui tão
produtiva. A morte pode ser uma grande motivadora.
Foi marcada para o dia 29 de março de 2012 a estreia da minha coluna e
da série de vídeo que a acompanhava – chamada “Life, Interrupted” (vida,
interrompida). Uns dias depois seria o transplante de medula óssea.
A confluência na minha vida destes dois marcos iminentes era de
enlouquecer: eram um sonho e um pesadelo a dançarem o tango.

4 Filme realizado em 2009 por Nick Cassavetes, com Cameron Diaz e Abigail Breslin, sobre duas
irmãs, uma das quais com leucemia. (N. do T.)

5 Poeta, ensaísta e feminista norte-americana (1929-2012). (N. do T.)

6 Escritora
e professora norte-americana (n. 1945), galardoada em 1975 com um prémio Pulitzer
numa categoria de não-ficção. (N. do T.)
15

NAS EXTREMIDADES OPOSTAS DE UM


TELESCÓPIO

Na minha primeira noite na unidade de transplante de medula óssea, vi-me


deitada na cama, de olhos bem abertos, debaixo de uma panóplia de sacos
pendurados com medicamentos intravenosos. O meu medo estava bem
vivo. Eu até era capaz de cheirar no quarto o seu pelo húmido e de sentir
na pele o bafo quente da sua respiração. Dobrei os cobertores e saí da
cama por cima do grosso emaranhado de tubos e fios que me ligavam a
máquinas várias. Deixei-me cair, apoiei-me nas mãos e nos joelhos, como
tinha feito o meu falecido companheiro Yehya – com o cuidado de não
bater com a cabeça no chão –, e encostei a testa ao linóleo frio. Com um
pai educado como muçulmano e uma mãe de educação católica, eu tinha
crescido no meio de uma mescla de crenças e tradições. Quando
estávamos com o nosso lado suíço da família, celebrávamos a Páscoa e
íamos à missa; quando estávamos com a nossa família tunisina, fazíamos
jejum no Ramadão e matávamos um cordeiro no Eid; e quando estávamos
nos Estados Unidos mantínhamos uma existência bastante secular, com a
exceção do Natal. Eu sempre tivera um grande interesse em religião, mas
nunca tinha realmente praticado nenhuma. Não sabia como rezar, ou a
quem, mas havia uma coisa que era para mim muito evidente: precisava
de toda a ajuda que pudesse ter.
O que estava eu a pedir, exatamente? Quantas outras pessoas
desesperadas tinham, neste mesmíssimo quarto de hospital, tentado
negociar com um poder superior? Começava a sentir-me tonta, as minhas
pernas muito magras tremiam sob o peso do meu corpo. Ergui-me, peguei
numa daquelas canetas que brilham no escuro, que uma amiga me tinha
oferecido, e consegui andar até à parede. Não tinha para partilhar nenhum
poema nem um manifesto eloquente. Só um desejo simples, animal:
“Deixa-me viver”, escrevi em letras minúsculas. Era em parte uma oração,
em parte uma súplica.
A intensidade daquele momento foi ampliada pelo novo ambiente em
que me encontrava. Depois de pesquisar as melhores unidades de
transplante, decidira passar do Monte Sinai para o Centro Oncológico
Memorial Sloan Kettering, que era considerado a melhor unidade de
transplantes na cidade, ou talvez do país. Mas continuava às voltas com
essa decisão. Procurar unidades de transplante de medula óssea tinha sido
um pouco como andar a visitar universidades – independentemente dos
catálogos bem-apresentados e das simpáticas sessões de boas-vindas, só o
tempo diria se a escolha fora acertada. Na unidade de transplante do Sloan
Kettering, com todos os seus monitores cheios de sinais sonoros,
equipamento futurista e caras desconhecidas tapadas por máscaras e de
bata, eu sentia-me como se tivesse entrado numa nave espacial
extraterrestre. Sentia a falta do Dr. Holland e da minha equipa médica –
das piadas só nossas, da sua genialidade de nerds e da sua tremenda
compaixão. No último ano, os meus médicos e enfermeiras tinham
começado a ser como que uma família alargada. “Promete que me vens
visitar quando estiveres melhor”, disse-me a Younique quando nos
despedimos.
A última semana tinha sido repleta de despedidas. Passei em Saratoga os
últimos dias antes de ingressar na unidade de transplante. Tinha feito a
minha mala vermelha antecipando uma estada de oito semanas no hospital
e, à última hora, pus lá dentro o Sleepy, o cão de peluche que eu adorava
em miúda. Na véspera não consegui dormir, por isso, levantei-me às cinco
da manhã e andei pela casa. Observei uma última vez o meu quarto de
infância, disse adeus às paredes cor-de-rosa, às estantes e aos meus velhos
posters favoritos. Passei a mão pela caixa de madeira do meu contrabaixo
e também lhe disse adeus. Despedi-me da mesa da casa de jantar, onde ao
longo dos anos, enquanto família, tínhamos partilhado um sem fim de
refeições, e dos canteiros gelados do jardim da minha mãe. O Will e os
meus pais desceram para o pequeno-almoço e levaram as nossas malas
para o carro. Quando a carrinha se afastou da casa, senti instalar-se em
mim uma tristeza e pensei se alguma vez regressaria. Para quem enfrenta a
morte, o luto começa no presente do indicativo, numa série de despedidas
privadas e por antecipação, que acontecem muito antes do último sopro do
corpo.
*

Na unidade de transplantes, estava rodeada por pessoas preocupadas, em


primeiro lugar e antes do mais, com aquilo que eu tinha – e não
necessariamente com quem eu era. Médicos e enfermeiras com máscaras
punham-se ao lado da minha cama, olhavam para mim lá do alto e
discutiam-me como se eu não estivesse presente. Davam à Doente uma
bata hospitalar. Falavam da Doente, olhavam para a Doente, sondavam a
Doente e murmuravam sobre a Doente. Tinham um só objetivo – curar a
Doente, para ela poder voltar a ser a pessoa que era. Havia nisto uma
estranha ironia: só passara um ano desde o meu diagnóstico, mas
dificilmente conseguia lembrar-me de como era ser eu.
Na semana que se seguiu, o meu sistema imunitário foi dinamitado com
vinte infusões de quimioterapia pesada – mais químio do que a que tinha
feito desde o diagnóstico. Em todo este processo, mantive impecável o
meu quarto do hospital impecável. Sempre tinha gostado de tudo
organizado e arrumado, mas a minha mania da limpeza tornou-se quase
obsessivo-compulsiva. Na mesa de cabeceira fazia pilhas e filas
direitinhas com os livros, as caixas de comprimidos e as garrafas de água.
Recusei vestir uma bata do hospital, preferindo o pijama, o robe e as
pantufas de pele de carneiro que eram meus. Levantava-me todas as
manhãs e ia para a cama desdobrável que havia no quarto e que eu tinha
feito de lavado. Trouxera de casa uma coluna de som portátil e, enquanto
revia as colunas para o The New York Times e respondia a emails, punha
bem alto James Brown ou Bach, para abafar os sons do hospital.
Trabalhava furiosamente, ansiosa por fazer o máximo possível antes de os
efeitos secundários da químio se intensificarem. Isso acabou
inevitavelmente por acontecer, por isso, passei a escrever no computador
com um balde amarelo debaixo do braço, para vomitar.
*
Na manhã do transplante – o Dia Zero, como lhe chamam –, os meus pais
e o Will apareceram no quarto com batas cirúrgicas amarelas e máscaras
azuis. O meu irmão veio a seguir, com o seu cumprimento habitual.
“Salut, Suleikemia”, disse-me, inclinando-se e batendo com o punho
fechado no meu, os dois com luvas de borracha. Ri-me e respondi:
“Espero nunca mais ter de ouvir isso.” Minutos depois, meia dúzia de
médicos e enfermeiras desfilaram para dentro do quarto – e dissipou-se
toda a ligeireza que havia no ar.
Dada toda a expetativa que havia, o procedimento acabou por revelar-se
um tanto anti climático. Estavam todos alinhados em duas filhas,
flanqueando a minha cama como se fossem um regimento de soldados, a
assistir, enquanto as células estaminais do meu irmão caíam gota a gota de
um saco de intravenosas pendurado no suporte. Senti-me calma quando as
últimas gotas me entraram nas veias, talvez porque, na verdade, não
estivesse realmente ali. Fechei os olhos e comecei a imaginar-me do outro
lado do oceano, noutro continente, sentada com o Will num café em Paris
e, depois, a percorrer as ruas de Tunes. Tinha o corpo forte e o cabelo
estava outra vez comprido.
Acabou tudo em poucos minutos e saíram todos do quarto, outra vez em
fila, para me deixarem descansar.
*

A parte mais difícil, como me tinha avisado a minha equipa médica, eram
os dias e as semanas por diante, enquanto esperava que as células do
Adam ganhassem raízes na minha medula. Regressei ao estatuto de
“isolamento”. As precauções na unidade de transplante eram muito mais
extremas do que qualquer coisa por que eu tivesse passado no Monte
Sinai. No quarto, um ventilador especial filtrava quaisquer impurezas no
ar. Toda a minha comida era bombardeada até à exaustão para eliminar
quaisquer potenciais germes. Quem quer que entrasse no quarto tinha de
lavar as mãos e de vestir um fato parecido com os dos que manipulam
materiais perigosos – luvas de plástico, bata cirúrgica, máscara facial e
proteções a cobrir os sapatos. Um beijo, um aperto de mão, frutas e
vegetais frescos, uma constipação banal ou um corte com papel – tudo
isso eram coisas que podiam matar-me até que o meu sistema imunitário
voltasse a funcionar. Até eram proibidas flores, mas como teria sido
presunçoso dizer isto a familiares e amigos, havia ramos de flores
acumulados à porta do meu quarto.
A meta era chegar ao Dia 100, ou “Dia do Exame”, o primeiro grande
marco para avaliar como é que o doente está a recuperar. Tentei manter a
noção do tempo, confinada à cama, onde passava deitada os dias e as
noites, num ângulo de quarenta e cinco graus, para impedir que os meus
pulmões se enchessem de fluido, mas as horas misturavam-se umas nas
outras. A máquina das intravenosas pairava sobre a minha cama como se
fosse um dossel, carregando a minha dose diária de fluidos,
imunossupressores, medicamentos anti náusea, três tipos diferentes de
antibióticos – além de morfina sempre a gotejar. No teto, o ventilador
lançava ar frio com um assobio, uma banda sonora constante e causadora
de ansiedade.
Passei assim quase duas semanas, sem um incidente digno de nota. Até
que, às primeiras horas do Dia 14, alguém começou a gritar, um gemido
tão profundo e constante que me acordou. O quarto estava às escuras.
Havia um alarme a soar. Eu tinha tubos enrolados à minha volta como se
fossem cobras. Tinha o peito pegajoso. Sentia que havia qualquer coisa a
sair de debaixo da clavícula e a escorrer-me pelos lados do corpo. No
instante seguinte, a porta do quarto abriu-se e apareceu por cima de mim a
cara de uma enfermeira. Ela apertou-me o ombro e foi só então que
percebi que o grito partia de mim. “Grande merda!”, exclamou a
enfermeira, olhando horrorizada para mim. Tinha tido um pesadelo:
dezenas de insetos percorriam-me o corpo e mordiam-me a pele. Em
pânico, atordoada pelos medicamentos, tinha arrancado o cateter do peito.
*

Há um ponto de viragem, um tipo especial de claustrofobia reservado para


hospitalizações longas, que chega pela segunda semana de se estar
confinado a um quarto. O tempo começa a alongar-se; o espaço dissipa-se.
Estamos a olhar para cima tantas horas que começamos a ver formas e
padrões, universos inteiros a aparecerem nas falhas e nas cavidades do teto
falso. As paredes começam a fechar-se à nossa volta. Quando o pingue-
pingue da chuva a bater na janela nos acorda de um torpor medicado,
ansiamos, como nunca antes ansiámos por nada, estar ao ar livre, sentir a
chuva a cair na nuca, inclinar a cabeça e sentir na língua o gosto do céu.
Tentamos abrir as janelas, mesmo sabendo muito bem que elas estão
seladas. O desespero começa a raiar a loucura.
A maior parte das pessoas não faz ideia do que é viver assim, fechada
num quartinho branco e sem data de saída à vista, a não ser, talvez, as que
estiveram presas. Enquanto estava na unidade de transplantes, lembrei-me
com frequência do Lil’ GQ, o condenado à morte que me escrevera umas
semanas antes. Pensei no que faria ele para passar todo esse tempo em
confinamento solitário. Pensei como é que teria conseguido manter a
sanidade – se é que tinha conseguido. Inspirada em parte por ele, comecei
uma coluna em que refletia sobre aquilo a que chamava o meu
“encancroceramento”.

“Para um doente com cancro, o vocabulário do prisioneiro parece


surgir de toda a parte. Os nossos movimentos são monitorizados.
Decisões tão básicas como o que comer, e quando, precisam de
aprovação prévia de uma ordem superior. Para já não dizer que a
quimioterapia se parece com um castigo semi letal. A equipa médica
faz de juiz. A qualquer momento, o médico pode pronunciar uma
sentença: liberdade condicional, prisão domiciliária, prolongamento
da estada na ‘cadeia’ e, para alguns, até pena de morte. Nunca tive
de ir a tribunal, mas imagino que a descarga de adrenalina é
semelhante à de quando um médico se prepara para ler o resultado
da nossa biópsia.”

O Lil’ GQ não foi o único estranho cujas palavras me fizeram


companhia nesses dias longos e delirantes na unidade de transplantes.
Todas as manhãs via o email e encontrava dezenas de mensagens de
leitores da minha coluna. Embora não pudesse sair do quarto, a escrita
dera-me um portal pelo qual podia viajar pelo tempo, pelo espaço e
atravessar continentes.
Recebia mensagens de todo o género de pessoas, muitas das quais
também tinham adoecido. Fiquei a saber de uma adolescente da Florida
chamada Unique, que estava a ser tratada a um cancro no fígado e me
enviou uma mensagem composta na maior parte por emojis. Fiquei a
saber de um historiador de arte no Ohio, chamado Howard, que tinha
vivido quase toda a vida com uma condição autoimune misteriosa e
crónica. “Você é uma jovem, eu sou um velho. Você está a olhar para
diante, eu estou a olhar para trás. É provável que só tenhamos em comum
a nossa mortalidade”, escreveu-me ele. “Não se encontra o sentido da vida
no reino material – jantares, jazz, cocktails, conversas, o que for. O sentido
é o que fica quando tudo o resto nos é tirado.” Fiquei a saber de muitas
pessoas que nunca tinham estado doentes um único dia das suas vidas,
mas que conseguiam entender a noção mais ampla de ter a vida
“interrompida”. Por exemplo, da mulher de um senador do Alabama que
estava a lutar com a infertilidade. De um jovem com transtorno bipolar
que, recentemente, tinha perdido a casa e vivia no carro, em Boston. De
Katherine, uma professora de liceu na Califórnia que estava a fazer o luto
pela morte do filho.
Na unidade de transplante, eu devia ter-me sentido mais sozinha do que
nunca, mas estes estranhos e as suas histórias depressa se tornaram os
meus canais de comunicação com o mundo exterior. Eu adorava
intensamente as cartas que recebia, embora raramente tivesse energia para
responder. Quando o fazia, a minha primeira prioridade era escrever aos
jovens adultos com cancro – afinal, eram eles a minha gente. Um deles era
o Johnny, um miúdo de dezanove anos do Michigan, que também tinha
leucemia e estava em tratamento no Sloan Kettering. Tinha lido a minha
coluna, enviou-me uma mensagem no Twitter e eu respondi
imediatamente. Era a primeira vez que falava com uma pessoa jovem com
o mesmo diagnóstico que eu. Partilhávamos o estatuto de “isolamento”,
sequestrados nas nossas respetivas bolhas, em andares diferentes do
mesmo hospital, e estávamos proibidos de nos ver cara a cara.
Conversávamos online, e as nossas trocas de ideias iam da patetice ao
sério, às vezes até numa mesma frase. As nossas cabeças estavam
carregadas de morfina, o que desprezava qualquer expetativa de
pontuação, grafia ou gramática – e isso era um alívio.

JOHNNY: Qual é a tua cena favorita no menu do hospital?


EU: As QUESADILLAS.
JOHNNY: SIM, ontem comi uma e soube-me ao céu.
EU: Tás internado?
JOHNNY: Acabaram de me transferir para a pediatria… Fiquei na cama
do meio e o outro tipo tem de passar por mim para ir à casa de banho e
além disso a vista não é tão boa.
JOHNNY: como te sentes pós tmo [transplante de medula óssea]
EU: rabugenta e irritada. as enfermeiras vêm pesar-me todos os dias às 5
da manhã.
JOHNNY: Não vejo a hora de me ver livre do cancro.
EU: também. sabes de alguns feitiços para acelerar o tempo?

Eu sentia uma empatia imensa pelo Johnny. A experiência que


partilhávamos era cruel, mas havia entre nós uma espécie de beleza
bizarra. Ali estávamos nós, dois estranhos absolutos, braços estendidos a
sair dos nossos ecrãs, envolvendo-nos num abraço íntimo.
*

Quase três semanas depois do transplante – no Dia Mais 20, como os


médicos e enfermeiras diziam –, o Will estava de costas para mim, a olhar
pela janela do quarto do hospital e a descrever-me o que via nessa manhã,
enquanto eu estava deitada na cama. Havia fractais de sol sobre o East
River. O topo de uma ponte a espreitar por cima de edifícios enegrecidos.
Táxis amarelos a descerem a York Avenue como se fossem peças de
Monopólio. Miniaturas de pessoas atarefadas, de fato, a irem para o
trabalho. Eu queria ir para junto dele, mas sentia-me demasiado cansada
para me levantar e arrastar o suporte das intravenosas até lá, que era a
metro e meio de mim. Sabia que ele se ia embora, para trabalhar, daí a uns
minutos, mas os medicamentos faziam-me pesar as pálpebras. Quando
voltei a acordar, ele já se tinha ido embora.
Este sono era uma espécie de refúgio, uma maneira de permanecer
atordoada aos efeitos secundários do transplante. O pouco cabelo que
tinha e que voltara a crescer durante o ensaio clínico estava a voltar a cair,
deixando-me a pela crua e sedosa, quase larvar. O meu peso tinha descido
a pique e o meu tronco, já esquelético, encolheu, mas as maçãs do rosto
ficaram redondas e inchadas, por causa de todos os esteroides e líquidos
que estavam a ser atirados para o meu sistema. Os doentes com cancro
chamam a isto cara de lua. Encolhida e esticada em todos os sítios
errados, com veias partidas a despontarem na superfície da pele como se
fossem pintadas com aguarelas, eu sentia-me medonha – mais monstro do
que cara de lua.
O meu sistema imunitário estava completamente aniquilado. Aguardava
que as células estaminais saudáveis do Adam ganhassem raízes, mas isso
estava a demorar mais do que o esperado. Adam estava a concluir as
últimas semanas da faculdade e devia estar focado nos últimos exames,
nas festas e na graduação. Mas, tal como os meus pais e quem quer que
entrasse nesta Bolha estéril, escondia a sua preocupação por trás de uma
máscara.
Horas depois, nessa tarde, acordei ao som das vozes dos meus pais.
Quando virei a cabeça para lhes dizer “olá”, senti qualquer coisa na minha
garganta rasgar-se e soltar-se como se fosse velcro. Dobrei-me para a
frente, com a boca a encher-se de sangue, enquanto cuspia uma enorme
massa de carne para o balde de plástico ao lado da cama.
– Que se passa?! – gritaram os meus pais, assustados, chamando a
enfermeira.
– A vossa filha acaba de vomitar o forro do esófago – explicou a
enfermeira, com uma voz de quem acabava de assistir a uma coisa
completamente banal, enquanto observava toda aquela porcaria. Os
medicamentos contra a dor e contra a náusea davam-me algum alívio, mas
eu passava a maior parte das horas em que estava acordada a fingir que era
uma estátua: tentava ficar sentada e quieta, na esperança de que isso
pudesse acalmar o meu estômago em convulsão. Quando os médicos
chegaram, cercaram a minha cama, criando um anel protetor amarelo de
batas clínicas, e ligaram-me a um tubo de alimentação, uma linha direta
para um saco de líquido amarelo-esverdeado que parecia uma bebida
energética.
O Will regressou nessa noite. Tinha faltado a um jantar de trabalho para
estar algum tempo comigo. Queria fazer-lhe perguntas sobre o seu dia.
Tinha feito alguma coisa interessante? Tinha almoçado no parque? Havia
fofoca nova na redação? Mas fomos interrompidos pela enfermeira, que
veio pendurar outro saco com medicação. Depressa voltaria a ficar
enjoada. O Will ofereceu-se para me ler, ou para abrir o tabuleiro de
Scrabble, nem que fizéssemos só uma ou duas jogadas. Já nem me
lembrava da última vez que tínhamos jogado.
Ele andava com a agenda cheia, do trabalho e dos campeonatos de
basquetebol e futebol em que se inscrevera na semana anterior a eu
ingressar na unidade de transplantes. Na maior parte das noites, quando
ele chegava ao hospital eu já dormia profundamente. Eu sabia que ele
precisava de um escape para lidar com o stress da nossa situação – todos
os cuidadores precisam –, mas não conseguia compreender porque é que,
de repente, ele estava assim tão ocupado. Sentia cada vez mais como se
nos olhássemos um ao outro pelas extremidades opostas de um telescópio.
Os meus dentes bateram quando o Will me envolveu num cobertor
aquecido. Deitou-me um pouco de água num copo de papel. Molhei a
língua e deixei o líquido frio percorrer-me a boca – um tónico
momentâneo para as minhas bochechas inchadas – antes de o cuspir. Não
queria ter qualquer ressentimento para com a mão que me dava a água. Eu
estava em guerra era com o meu corpo. Havia tanta coisa de que
precisávamos de falar, mas, de repente, senti-me dominada por um
cansaço profundo. As minhas pálpebras voltaram a ficar pesadas. O Will
sentou-se ao meu lado na cama. Demos as mãos, envoltas em luvas de
látex azuis, enquanto eu adormecia.
16

A ESTALAGEM DA ESPERANÇA

Quando saí do hospital para a York Avenue numa cadeira de rodas, ergui o
rosto para o sol e deixei-o aquecer a minha pele emaciada. Era uma tarde
de maio amena, mas eu estava enfiada num casacão de esqui, tinha um
chapéu de lã e, mesmo assim, os meus dentes batiam como de costume.
A cadeira de rodas ficou a empatar no passeio à frente da entrada principal
do hospital, enquanto a minha mãe e o Will chamavam um táxi. Os peões
desviavam-se, espetadores acidentais da nossa pequena coreografia. Antes
de entrar no táxi, os meus pés tocaram por um instante no passeio.
Tinha passado pouco mais de um mês desde o transplante. Os médicos
tinham-me dito que, embora o meu sistema imunitário ainda não existisse,
exames preliminares mostravam que as células do Adam estavam por fim
a fixar-se na minha medula óssea. Eu apresentava sinais de progresso: nos
últimos dias, tinha deixado de ser alimentada por um tubo e já conseguia
comer umas bolachas de água e sal. Além disso, já era capaz de dar uns
passos – devagar, mas quase sempre sem ajuda. A contagem de glóbulos
também estava a subir na direção certa. Seriam precisas mais umas
semanas antes de sabermos se o transplante tinha resultado – o Dia 100
ainda estava bem lá para a frente –, mas, por agora, estava focada numa
pequena vitória: ter alta.
Os médicos enviaram-me para a Hope Lodge7, uma espécie de
residência intermédia para doentes com cancro, bem na Midtown de
Manhattan, onde eu viveria nos três meses seguintes. Era um prédio de
cimento cinzento com sessenta quartos, a um quarteirão de Penn Station, e
com um supermercado Jack’s 99-Cent Store por perto. No futuro
previsível, teria de andar de máscara e de luvas onde quer que fosse. Nada
de metro, nada de lugares públicos, nada de germes, avisaram-me os
médicos. Fui do táxi até à entrada em cadeira de rodas, atravessando o
passeio cheio de peões. Puxei a máscara mais para junto da boca.
Eu estava grata por existir um lugar como a Hope Lodge e pela
generosidade dos estranhos que tinham angariado dinheiro para o abrir,
mas num mundo ideal não teria de todo de ali viver. Num mundo ideal,
teria um lugar só meu. Teria ido para o primeiro apartamento da minha
mãe, em East Village, que ela tinha mantido estes anos todos e até há
pouco tempo alugara a inquilinos de longa duração. Mas o meu sistema
imunitário ainda estava demasiado frágil para viver num apartamento de
rés-do-chão de um edifício de antes da guerra, com os contentores do lixo
por perto. Mais do que isso, a casa era demasiado pequena para poder lá
viver com a minha mãe e com o Will. Pouco depois do transplante, tinha
ficado bem claro que ser cuidador de um recém-transplantado era uma
tarefa que ocupava em permanência o dia inteiro – e que a minha mãe e o
Will tencionavam partilhar. Por isso, decidimos que eu ficaria na Hope
Lodge e que eles usariam o apartamento conforme precisassem, como
uma espécie de posto avançado dos cuidadores. Naquelas circunstâncias,
era o melhor plano que conseguíamos imaginar.
Só que esse plano caiu por terra logo que chegámos à Hope Lodge. Um
rececionista cumprimentou-nos e entregou-nos uma chave do quarto e um
dossiê de informações. O Will e a minha mãe começaram a seguir-me até
ao elevador, para subirem ao quarto, mas o rececionista veio logo atrás de
nós, informando que só era permitida a presença de um cuidador de cada
vez nos andares residenciais – e não havia exceções. Tentámos protestar,
observando que os protocolos assim rígidos não levavam em contra as
exigências e a imprevisibilidade da doença. Mas regras eram regras e
ficou bem claro que seria impossível concretizar a minha esperança de que
o Will e a minha mãe partilhassem os deveres de cuidadores de uma forma
fluida e em conjunto, como uma família. Não haveria espontaneidade,
nem espaço para os dois me apoiarem em conjunto ou para se apoiarem.
Eu teria de escolher constantemente entre um e o outro.
Estava dividida. Precisava do tipo de apoio que, na verdade, só se pode
pedir a um pai – mas também sentia que eu e o Will andávamos à deriva e
não queria estar afastada. Desde o primeiro dia do diagnóstico, o meu
grande medo, para além de morrer, fora perdê-lo e agora, que estava mais
doente do que nunca, o meu instinto era mantê-lo por perto. Sugeri então
que o Will vivesse comigo na Hope Lodge e que a minha mãe me visitasse
de dia, quando ele trabalhava. Na altura, pareceu um bom compromisso.
*

O quarto que o Will e eu partilhávamos na Hope Lodge era um bocado


sombrio – duas camas, mobília de motel e uma carpete acastanhada, com
muito pouca luz natural. Ao fundo do corredor havia uma cozinha comum
onde encontrávamos outros cuidadores e doentes e parávamos para as
conversas da praxe, como “Acabaste de chegar do hospital?” ou “Como é
que vai esse tumor no cérebro?” A atmosfera do edifício estava carregada
com o peso da tristeza. Todos os que ali estavam tinham deixado para trás,
algures, uma vida a sério.
O pessoal da Hope Lodge esforçava-se para levantar os ânimos. No
andar por baixo de mim, o sexto, havia uma sala de estar com lareira e um
amplo terraço ao ar livre onde os doentes podiam estar e receber as visitas
da família e de amigos. No lounge, havia aulas de coisas como meditação
Zen e culinária apropriada a neutropénicos e várias vezes por semana
apareciam voluntários a apresentar momentos especiais – podiam ser
concertos, espetáculos de humor ou jantares oferecidos por restaurantes
locais. Até existia uma “hora do chá” semanal organizada por um grupo de
senhoras de Manhattan. Todas as quartas-feiras à tarde, apresentavam-se
no lounge vestidas com conjuntos de casaco e calça Chanel, equilibradas
em saltos de dez centímetros e a arranjar pratos de bolinhos e pastelinhos.
Tenho a certeza de que estas mulheres tinham boas intenções, mas eu não
suportava a maneira como elas falavam aos doentes, muito alto, em frases
cadenciadas, as vozes a pingarem condescendência, como se nós não
estivéssemos apenas doentes, mas também não falássemos inglês.
Comecei a detestar muito rapidamente aquela hora do chá. Não queria a
caridade nem a piedade delas. Não queria ser a boa ação semanal de
ninguém.
A minha rotina pós-transplante consistia no essencial em dormir dezoito
horas por dia. Quando não estava a dormir, estava deitada na cama com os
olhos fechados, demasiado exausta para me erguer, para conversar ou para
ler. A única exceção, estranhamente, foram as Cinquenta Sombras de
Grey. Inalei a trilogia toda num único fim-de-semana. Era tão fora, tão
diferente da minha realidade de todos os dias, que parecia ficção
científica. Também era a única coisa tão absorvente e comicamente
terrível capaz de distrair-me da náusea que me dominava
permanentemente.
– Pergunta tipo “o que é que preferias?” – disse ao Will uma manhã. –
Leucemia mieloide aguda ou ler as Cinquenta Sombras?
– Leucemia – respondeu-me ele sem hesitar.
O Will estava a preparar-me o pequeno-almoço, como fazia todas as
manhãs, embora eu em geral pouco comesse. A seguir, antes de ir
trabalhar, passava-me à minha mãe. A parte do dia que eu mais receava era
ir diariamente da Hope Lodge ao hospital, para receber transfusões de
sangue, hidratação, magnésio e outros nutrientes que a químio tinha
eliminado. Estava sempre tão enjoada que raramente conseguia fazer os
vinte minutos de táxi por Nova Iorque sem vomitar. Um dia, perante um
ataque de vómitos particularmente sério, o motorista do táxi pensou que
eu estava embriagada e expulsou-me a mim e à minha mãe do carro. Antes
que eu conseguisse explicar, deixou-nos no passeio e arrancou.
*

Menos de uma semana depois de ter ido para a Hope Lodge, convidaram-
me para uma entrevista sobre a minha coluna, no programa Talk of the
Nation, da NPR, a rádio nacional pública. Era um grande dia: a primeira
saída a sério desde que tivera alta. Quando terminei as infusões de
intravenosas, eu e a minha mãe apanhámos um táxi para a NPR, do outro
lado de Bryant Park. Nunca fora entrevistada antes e estava a rebentar de
excitação.
Eu ainda não conseguia perceber muito bem porquê, mas desde que a
coluna começara tinha recebido todos os tipos de pedidos de entrevista.
Havia leitores que me abordavam na sala de espera do hospital e alguns
até vinham ter comigo na rua, para me dizerem o quanto gostavam da
coluna e como estavam a torcer para que tudo me corresse bem. Era uma
atenção lisonjeira, um pouco esmagadora até e, às vezes, deixava-me um
tanto desconfortável. O cancro tinha-me transformado num símbolo, sem
eu dar conta disso.
O entusiasmo não era partilhado por todos. A coluna depressa se tornou
uma fonte de tensão com o Will. Ele preocupava-se com o preço que ela
cobrava à minha saúde e queixava-se que eu punha no trabalho toda a
pouca energia que tinha. Não estava errado. Era verdade que eu sentia a
minha ambição debater-se contra os limites do meu corpo. O meu cérebro,
inundado por toxinas de todos os medicamentos que tinham sido lançados
para o meu sistema, sentia-se desfeito. Eu, que em tempos fora capaz de
me lembrar com grande pormenor de grandes quantidades de informação
inútil, da cor da blusa da minha professora do terceiro ano no primeiro dia
de escola a passagens completas dos meus livros favoritos, debatia-me
agora para me recordar dos nomes dos meus amigos mais próximos ou até
do meu próprio número de telemóvel. Antes do transplante, a escrita fora
para mim um refúgio; agora, o mais frequente era acabar em frustração e
em lágrimas. Mas eu estava decidida a fazer o que pudesse enquanto fosse
capaz, ainda que isso significasse levar o meu corpo para lá dos limites do
que era prudente.
Na noite anterior à entrevista apareceu-me uma febre baixa e passei a
madrugada a tremer debaixo dos cobertores, com uma tosse feia a sacudir-
me os pulmões com poucos minutos de intervalo. O Will e a minha mãe
pediram-me que adiasse para outro dia, mas eu recusei. Não sabia quanto
tempo estas oportunidades me estariam abertas – ou se me sentiria
suficientemente bem para as voltar a fazer. Ia mesmo à entrevista e não
havia nada que ninguém pudesse dizer para me convencer a não ir.
Depois de me ter instalado na cabine de gravação do estúdio da NPR e
de ter feito o teste de som eu já estava exausta. As mãos tremiam-me ao
pegar num copo de plástico com água e a minha voz era um murmúrio
frágil e irregular. Procurei responder o melhor possível às perguntas do
apresentador e dos ouvintes que telefonaram, mas não consigo recordar-
me de uma palavra do que disse. Só me lembro é de carregar no botão do
quadro de controlo, apropriadamente assinalado TOSSE, para silenciar os
sons da minha agitação peitoral quando os meus pulmões procuravam ar
desesperadamente. Devo ter carregado naquele botão umas cinquenta
vezes.
No fim da entrevista, estava quase estendida na cadeira, desfeita pelo
esforço de ter tido de falar e de estar sentada direita. O apresentador tinha
uma última pergunta. “Só nos restam uns segundos”, disse. “Neste ponto,
tem presente a questão da morte?”
Fiquei devastada. A minha mortalidade era qualquer coisa em que,
evidentemente, tinha pensado muito tempo, mas era a primeira vez que
alguém me punha a questão diretamente. Ouvi-la assim, em voz alta, na
rádio nacional, fez com que eu sentisse a ameaça da morte mais presente e
iminente do que nunca. Fez-me perceber que o apresentador, os ouvintes,
as pessoas que liam a minha coluna, estavam todos provavelmente a
pensar na mesma coisa: ela vai viver ou vai morrer? A minha
sobrevivência tinha-se transformado, sem querer, numa narrativa de
suspense; havia estranhos a acompanhar a minha história com uma
curiosidade mórbida sobre o que trariam as semanas seguintes. A ideia
perturbou-me. Recompus-me, decidida a terminar a entrevista numa nota
forte, mas quando falei a minha voz tinha a espessura de papel. Nada
convincente, sussurrei: “Sinto muita esperança no futuro.”
Fosse o que fosse que naquele dia estava a crescer nos meus pulmões,
depressa dominou o meu sistema imunitário. Nesse fim de semana, no Dia
da Mãe, em vez de tomar o brunch e ver um filme com a minha mãe na
Hope Lodge, como tínhamos planeado, acabei dobrada numa maca nas
urgências, com ela ao lado. Tinha a tensão muito baixa e a pulsação
perigosamente alta. Apesar dos meus protestos, os médicos voltaram a
internar-me. “Chamei o azar sobre mim”, disse à minha mãe, lembrando-
me das últimas palavras na entrevista. “Devia ter dito que sentia uma
esperança cautelosa no futuro.”
*

Nascemos a precisar de cuidados e morremos a precisar de cuidados, mas


era-me difícil aceitar como me tornara inútil. De volta à Hope Lodge,
depois de uns dias turvos de passagem rápida pelo hospital, estava mais
fraca do que nunca, reduzida a depender do Will e da minha mãe como se
fosse um bebé pequeno. Nas semanas seguintes fiquei ainda mais fraca e,
ao Dia 70, precisava da ajuda deles até para as ações mais básicas, como
tomar um duche ou fazer uma sanduíche. Demasiado frágil e nauseada
para caminhar, andava numa cadeira de rodas. Acordava a meio da noite e
sentia o bater irregular do coração contra o peito, a abrandar e a acelerar
de uma maneira que me perturbava e me dava uma hiperconsciência da
minha vulnerabilidade.
Até que, por volta do Dia 80, me apareceu na testa uma erupção cutânea
escura e entraram todos em pânico. Era o primeiro sintoma de DEcH, a
complicação do transplante potencialmente letal para a qual me tinham
avisado. Os médicos aumentaram a dosagem de esteroides e de
medicamentos anti rejeição e seguiram-me de muito perto, torcendo pelo
melhor.
A independência não era a única coisa que eu sentia estar a perder.
Desde que eu fora para a Hope Lodge, o Will tinha começado a chegar
cada vez mais tarde do trabalho. Telefonava à última hora a perguntar se
havia alguém que pudesse fazer o turno da noite e se eu dizia que, assim
com tão pouca antecedência, podia ser difícil, ele perguntava por que
razão não tínhamos mais apoio. Eu sabia que a Hope Lodge não era o
lugar mais divertido para estar e que as exigências impostas pelo meu
corpo eram grandes. Eu não tinha energia para lhe dar e, no entanto,
precisava dele mais do que nunca. Quando estávamos juntos, eu absorvia
o amor dele como se fosse uma esponja, desesperada por me voltar a
sentir próxima. Quando dizia ao Will que o sentia cada vez mais distante,
ele insistia que era só na minha cabeça. Mesmo assim, andava preocupada.
Uma noite, quando esperava que o Will regressasse do trabalho, recebi
uma mensagem dele: “Estou a tomar uns copos com amigos num bar em
Saint Marks. Queres aparecer?” Olhei fixamente para o telefone, a pensar
como havia de responder. Pode ser que ele me quisesse genuinamente ver
lá, mas nós os dois sabíamos que faltavam muitas semanas,
provavelmente meses, para estar suficientemente bem para poder ir a um
qualquer lugar público. Quanto mais a um bar em Saint Marks, um dos
lugares mais escuros e concorridos de Lower Manhattan. Os olhos
encheram-se-me de lágrimas enquanto tentava compor uma resposta.
Enterrei as unhas nas palmas das mãos e obriguei-me a não chorar.
“Desculpa, não consigo. Mas penso que sabes isso”, respondi-lhe.
A minha mãe estava a vestir o casaco e a preparar-se para se ir embora.
Era uma das raras noites em que ela tinha planos para jantar com um
amigo. Eu sabia que ela teria ficado mais do que feliz por continuar ali
comigo, mas não lhe pedi.
Sozinha na minha cama dupla, esperei pelo Will. A noite desceu e
mergulhou o quarto na escuridão, com as luzes da cidade a brilharem lá
fora. À medida que as horas foram passando, instalou-se na minha barriga
um medo visceral e frio. Precisava de comer qualquer coisa antes de tomar
os últimos medicamentos, mas estava demasiado fraca para ir até à
cozinha comum ao fundo do corredor, por isso, engoli com água a mão
cheia de comprimidos. Um erro de amador. Quando o Will chegou, já
passava da meia-noite. Eu estava dobrada sobre um caixote do lixo, com
os lençóis enrolados à minha volta, sujos de vómito, e o pijama
encharcado em transpiração. Ele imobilizou-se, paralisado, aos pés da
cama, com uma expressão de culpa no rosto. Quando pegou em mim e me
levou para o chuveiro, senti duas emoções concorrentes a chocarem no
meu coração: “Odeio-te” e “Preciso de ti.”
*

Era a manhã do Dia 100. Eu estava sentada numa das cabines de plástico
azul na cozinha comunitária enquanto o Will preparava o pequeno-
almoço. Para lhe agradar, ia mexendo com uma colher os flocos de aveia,
fingindo que comia, mas os meus pensamentos estavam noutro lado.
Íamos sair para o hospital daí a minutos, para receber os resultados dos
vários testes e biópsias realizados na semana anterior. Na minha cabeça,
havia dois desfechos potenciais: os resultados mostravam que o
transplante tinha resultado e que eu acabaria por ficar bem ou, então,
indicavam que o transplante falhara e que a leucemia ia voltar – e agora
com a promessa de morte iminente. Não me ocorreu que podia haver uma
terceira possibilidade.
Enquanto o Will lavava os pratos, eu percorria ansiosamente os emails
por ler, enviados por leitores, procurando distrair-me. Houve uma
mensagem em especial que me chamou a atenção. O assunto dizia: “a
dificuldade de fazer a transição para o antigamente”. Em anexo, estava a
fotografia de um jovem sem camisa, num quarto de hospital. Tinha
ombros largos, musculados e a cara rosada parecia projetar um brilho
radioativo. A cabeça era, como a minha, lisa e careca, mas impressionou-
me a confiança que ele aparentava. Passei o telefone ao Will para lhe
mostrar a fotografia. Will assobiou.
– Caramba. Tem um ar bem melhor do que eu. Se eu não soubesse,
ainda dizia que tinhas arranjado um namorado com cancro para me
substituir.
O nome do rapaz era Ned. O email dele começava com uma história.
Em 2010, ele estava a meio do último ano de faculdade, na abençoada
ignorância do que o esperava quando concluísse o curso. Estava atarefado
a escrever a tese e tinha começado a namorar uma rapariga linda. Tinha-se
candidatado a uma bolsa Fulbright para Itália, onde esperava viver depois
de terminar o curso. Até que, quando estava em Boston, nas férias de
inverno, fez uma TAC que mostrou que tinha o baço inchado. Ao fim de
mais alguns testes, os médicos confirmaram: tinha leucemia. Não era a
primeira vez que o Ned adoecia. Três anos antes, tinha-lhe sido
diagnosticado um cancro nos testículos, mas ele referia-se a isso como se
não tivesse sido uma preocupação: “Cancro light. Bastou uma cirurgia.”
Eu conhecia bem esta história. Era a minha história. Era a história dos
outros incontáveis jovens doente de cancro que eu ouvira desde que
começara a coluna, histórias que me tinham trazido amparo, mostrando
que havia muitos de nós na mesma situação, uma comunidade invisível,
escondida dos olhares em quartos de hospital e acorrentada a suportes de
intravenosas.
Mas, depois, a história de Ned guinou numa direção inesperada. “O que
me inspirou a escrever foi uma coisa de que eu sei que falará muito em
breve – fazer a transição de volta ao mundo real, à ‘normalidade’”,
escreveu ele. “Tenho tido uma enorme dificuldade em voltar a montar no
cavalo.” Ao ler aquilo, percebi que aquela mensagem não era sobre cancro
na juventude. Era sobre o que acontecia quando o cancro se ia embora.
A noção de uma vida depois do cancro não era, ou pelo menos ainda não
era, uma coisa em que eu pudesse pensar. Ainda estava presa na Hope
Lodge; ainda precisava de uma cadeira de rodas para me mexer; ainda
estava demasiado doente para pensar noutra coisa que não fossem os
iminentes resultados da biópsia à medula – quanto mais numa vida pós-
cancro.
Uns minutos depois, o Will e eu descemos ao átrio. A minha mãe estava
à nossa espera e saímos os três, chamámos um táxi e seguimos. Tinha
trazido uns copos de plástico para o caso de enjoar na viagem, mas desta
vez o que me dava voltas ao estômago era o nervoso, não era a náusea. No
hospital, subimos em silêncio no elevador até à unidade de transplante de
medula óssea. Estávamos demasiado ansiosos para falar.
O rececionista chamou o meu nome e fomos levados para um quarto nas
traseiras. Sustive a respiração quando a minha equipa médica entrou: uma
enfermeira seguida pelo médico responsável pelo transplante, que era
forte, usava óculos e mantinha uma expressão perpetuamente rígida que
disfarçava uma maneira de ser simpática.
– A boa notícia é que a sua última biópsia não revela a presença de
células cancerosas na medula óssea – disse ele. – O transplante parece
estar a funcionar, para já, mas terão de passar muitos meses e muitos mais
dias de diagnóstico iguais a este antes de podermos ter a certeza.
– E as más notícias? – perguntei. Claro que estava à espera de que não
houvesse más notícias, mas nesta altura eu já sabia o suficiente sobre a
maneira como os médicos enquadram as conversas deste género para
suspeitar que não seria assim.
– Bom, as más notícias são que há um risco elevado de recaída. Por
causa das anormalidades cromossómicas na sua medula e de não nos
termos conseguido ver completamente livres da leucemia antes do
transplante, há uma forte probabilidade de a doença regressar. Eu gostava
que iniciasse imediatamente um regime experimental de quimioterapia de
manutenção, assim que estiver suficientemente forte.
Sentada na mesa de exame, abracei os joelhos e levei-os ao peito.
Estava mergulhada em desespero. Era o tipo de desespero que me fazia
sentir como se estivesse a afogar-me e tornava as vozes pequenas e
distantes, como que ouvidas debaixo de água. O meu cérebro saltou para
partes da carta do Ned que tinha lido nessa manhã. “O que poderá haver
de tão difícil na transição para a normalidade?”, pensei com amargura.
“Eu só quero é normalidade. Será uma sorte ver-me livre um dia destes
quartos de hospital.” O meu cancro era teimoso como um cão de guarda
rafeiro. Talvez estivesse contido por agora, mas era mau, rosnava e
ameaçava escavar por baixo do arame farpado e fugir. Eu ia ter de travar
uma luta tremenda para o manter para lá da vedação. Teria de passar por
mais tratamentos experimentais e, depois disso, por exames sem fim, ao
longo de meses e anos, avaliando os progressos no caminho para uma
cura. Haveria sempre mais uma ressonância à minha espera. Haveria
sempre uma próxima biópsia.
– Quanto tempo vou ter de fazer a químio de manutenção? – perguntei
ao médico, preparando-me para a resposta. – Muito tempo – disse-me,
suavemente. – Mais um ano, talvez mais.
Olhei para o Will. O rosto dele tinha assumido a expressão sumida e
desesperada dos homens encurralados. Não podia culpá-lo. E, no entanto,
olhando para trás, vejo agora que foi isso que fiz.

7 Em português, a estalagem da esperança. (N. do T.)


17

CRONOLOGIA DA LIBERDADE

Para pessoas como eu, o conceito de casa é um tanto indefinível. Eu, com
doze anos, já tinha andado em seis escolas em três continentes. Do sétimo
ano em diante, ficámos quase sempre quietos em Saratoga, mas nunca
cresci a sentir que fosse de lá – ou, já agora, de qualquer lado. Quando
ficava no mesmo lugar por mais de um ou dois anos, sentia-me inquieta,
com medo de ficar parada, como uma lapa agarrada ao casco de um navio.
É esta a maldição dos filhos de casais mistos, que crescem no espaço entre
culturas e países, credos e costumes: demasiado brancas, demasiado
morenas, com um nome demasiado exótico, demasiado ambiguamente
“outras” para pertencerem completamente a algum lado.
Desde o diagnóstico, a minha vida não tinha sido menos nómada. No
último ano, Will e eu, em conjunto, tínhamos passado um total de seis
meses a viver em quartos de hospital. Tínhamos vivido no meu quarto de
infância em Saratoga; em quartos para as visitas em casa de amigos; e,
mais recentemente, na Hope Lodge, onde as regras ditavam que podíamos
ficar um máximo de três meses. Mas, pelo final do verão, eu já estava
curada da minha tendência para andar a mudar. O que eu queria, mais do
que tudo, era uma casa.
No fim de agosto de 2012, o Will e eu mudámo-nos para o apartamento
que era da minha mãe na esquina da 4th Street com a Avenida A, em East
Village – o mesmo apartamento onde ela vivera, duas décadas antes,
quando imigrou para Nova Iorque. Desde que o Will e eu ganhássemos o
suficiente para cobrir as despesas de manutenção, os consumos e os
impostos, o apartamento seria nosso pelo tempo que quiséssemos.
Tinha mudado muita coisa desde a minha última visita ao edifício –mas,
ao mesmo tempo, também mudara muito pouco. Assim que cheguei,
alguém exclamou bem alto “La bébé!” e vi o Jorge, que à tarde trabalhava
como porteiro. O Jorge estava velhote, grisalho e ligeiramente curvado,
mas ainda se lembrava do dia em que os meus pais me tinham levado,
recém-nascida, do hospital. Todas as portas do prédio ainda estavam
pintadas na mesma cor de verde-mar e os corredores decorados com
lambris dourados e candeeiros art deco. O elevador avariava-se com
frequência e, de vez em quando, a água que saía das torneiras vinha
acastanhada. O apartamento tinha o tamanho de uma caixa de fósforos e
ficava no rés-do-chão, com janelas que davam para o depósito dos
contentores de lixo no pátio. Os pais do Will compraram-nos um
escorredor para a loiça e copos, os meus emprestaram-nos roupa de cama
e um velho tapete tunisino maravilhoso, e um amigo deu-nos uma
estrutura de cama. Também andámos por lojas de segunda mão à procura
de uma velha arca, como a que usávamos em Paris a fazer de mesa de
jantar. Uma casa, mesmo que pequena, com pouca luz ou mobilada ao
acaso, representava um novo tipo de liberdade – e nós sentíamo-nos
tremendamente afortunados.
Na nossa primeira noite no apartamento, o Will pôs a mesa na arca e
acendeu umas velas. A última refeição completa e a sério de que me
lembrava ter sido capaz de comer fora a do jantar de Páscoa, na unidade
de transplante. Até há pouco tempo eu ingeria os alimentos por tubos ou
então eram pedacinhos muito bem passados que eu conseguia comer e
manter no estômago na Hope Lodge. O meu peso nunca fora tão baixo e o
meu apetite era zero, mas estava decidida a desfrutar do nosso primeiro
jantar na nossa nova casa. Liberdade queria dizer ser capaz de comer meia
tigela de esparguete feito em casa – e, a seguir, lutar toda a noite para o
manter no estômago.
Liberdade significava também ter paciência com o Will nas semanas
seguintes, enquanto ele procurava estar à altura do pessoal médico do
hospital e da minha mãe, que, entretanto, regressara a Saratoga. Ele ficou
com o essencial das tarefas domésticas, cozinhar e limpar, e
acompanhava-me às urgências quando, com umas semanas de intervalo,
eu voltava a ter febre ou sofria uma nova complicação. Eu estava tão fraca
que até ir a pé à farmácia, que ficava a um quarteirão, era um desafio, por
isso, passava na cama a maior parte dos dias, sozinha, a dormir, tentando
escrever e atordoando-me com a televisão. Contava as horas até ao meio-
dia, quando o Will vinha a casa, de bicicleta, na pausa de almoço, para ver
como é que eu estava e preparar-me qualquer coisa para comer, antes de
regressar ao trabalho. E depois contava as horas até às sete, quando ele
voltava para casa. Como ainda não estava autorizada a ir a sítios com
muita gente, a comer comida de restaurante ou a apanhar transportes
públicos, à noite ficávamos sempre em casa. Tinha diminuído a distância a
que eu sentira que ele e eu estávamos nos tempos da Hope Lodge. Agora,
estávamos os dois entusiasmados com a perspetiva de começar de novo,
num lugar nosso. Liberdade significava podermos partilhar uma cama pela
primeira vez desde o transplante – e aprender a lidar com um corpo novo
que parecia ter-se esquecido de como falar a linguagem da intimidade
física.
*

Era uma segunda-feira de manhã, pouco depois das nove. Eu estava à


porta do prédio e em todas as esquinas havia alguém a tentar chamar um
táxi. Sentei-me no passeio e decidi esperar uns minutos até o frenesi da
manhã acalmar. Tinha recomeçado a quimioterapia e, fizesse eu o que
fizesse – não tomar duche, pôr vários despertadores, deitar-me cedo na
véspera –, parecia que chegava sempre ao hospital meia hora atrasada.
Não estava com grande pressa – a minha almofada de atraso de trinta
minutos tinha-se tornado tão consistente que eu já quase me orgulhava
dela. Estava a horas, mas eram as minhas horas.
Secretamente, talvez também estivesse à espera de que, se aparecesse
muito tarde, me dissessem que podia não fazer a químio nesse dia.
A químio de manutenção era uma provação que me custava. Agora que
não tinha linfoblastos – que não havia cancro, só a ameaça de ele regressar
–, era mais difícil reunir a determinação necessária e submeter-me à
tortura, mesmo que o meu cérebro percebesse, pelo raciocínio lógico, as
razões para ela. O meu novo regime de tratamento envolvia uma infusão
intravenosa de azacitidina, um medicamento que eu já usara no ensaio
clínico. Tinha de o tomar todos os meses, cinco dias seguidos. Depois
parava três semanas. No papel, não parecia grande coisa. Mas a minha
experiência ensinara-me que o tempo de paragem não seria um tempo de
férias – nessas três semanas, ia andar a arrastar-me, carregada de produtos
químicos tóxicos; a seguir, exatamente quando já me estivesse a sentir
melhor, chegariam os outros cinco dias. No futuro previsível, a minha vida
seria isto.
Um táxi abrandou e eu fiz-lhe um sinal ténue para parar. O taxista era
um homem de alguma idade, com rastas já grisalhas e um forte sotaque
jamaicano. Quando íamos pela FDR Drive, a via rápida que corre pela
costa leste de Manhattan, vi de relance uma rapariga a andar de bicicleta
ao longo do East River. Parecia mais ou menos da minha idade, estava
bronzeada, tinha um porte atlético e o rabo-de-cavalo louro baloiçava ao
vento. Talvez um dia eu fosse capaz de ir de bicicleta para o hospital,
pensei. Quando já estivesse suficientemente bem.
– O-lá-á…? Está aí? – disse-me o motorista. Tínhamos chegado ao
hospital e eu estava perdida nos meus pensamentos. – Está tudo bem? –
Eu tinha sempre na cabeça esta piada: um dia, quando alguém me
perguntasse se estava tudo bem, eu despejava um monólogo sobre o meu
último relatório citogenético ou os resultados da biópsia, só para ver a
reação. Mas o motorista só estava a tentar ser simpático. Eu sabia
perfeitamente que ele não queria realmente que eu lhe explicasse como é
que um transplante de medula óssea pode deixar uma pessoa desorientada
e com o cérebro fraco. Ou que eu me tinha tornado quase-narcoléptica em
público. Por isso, fiquei calada, paguei e saí com um rápido “obrigada”.
O cheiro familiar de antissético tocou-me as narinas logo que entrei no
átrio principal do Sloan Kettering. Com os seus vinte pisos, elevadores de
aço brilhante e paredes adornadas com peças de arte, parecia-se com um
gigantesco navio de cruzeiro cheio de doentes com cancro e das pessoas
que tratavam deles. Até tinha gentilezas bizarras próprias de um cruzeiro,
ainda que em menor escala: um carrinho da Starbucks, um salão de jantar,
um concerto de música clássica de vez em quando e um piso recreativo,
com atividades artísticas e de trabalhos manuais e uma biblioteca onde os
doentes podiam ir buscar exemplares usados de romances cor-de-rosa.
O edifício era imaculado e possuía o equipamento mais moderno, mas
havia por todo o lado como que um cansaço, quase uma degradação. As
salas de espera tinham mobiliário dos anos setenta e o chão de linóleo a
imitar mármore estava desgastado pelos passos dados por médicos e
cuidadores ao longo de muitos anos. As urgências estavam sempre cheias
e os doentes, em cadeiras de rodas e em macas, transbordavam para o
corredor.
A primeira vez que fui ao Sloan Kettering foi uns dias depois do meu
diagnóstico, à procura de uma segunda opinião. Com o cabelo pela cintura
e uma argola no nariz, não me parecia nada com os outros doentes. Na
sala de espera, um homem de meia-idade com uma camisa sem mangas e
uma bandana na cabeça sem cabelo tinha-se inclinado para o meu pai, que
era careca desde os anos 90, e, partindo do princípio que era ele que estava
a fazer quimioterapia, ergueu o punho no ar. “Vive com força, irmão!”,
saudou. Lembro-me de ter ficado satisfeita, como se essa confusão fosse a
prova de que o meu lugar não era ali – de que eu era de algum modo
diferente desses doentes, nas suas várias fases de decadência. Mas, agora,
os doentes e o cheiro estéril do Sloan Kettering apaziguavam-me. Com o
meu curtíssimo cabelo louro, que ia crescendo aos tufos e muito
fraquinho, encaixava-me perfeitamente ali e sentia-me à vontade.
Compreendia os protocolos, falava um “mediquês” fluente e orientava-me
de olhos fechados na teia complexa de corredores. Era o mundo lá fora
que se tornara estranho, até um pouco assustador.
Carreguei três vezes no dispensador de desinfetante – era o meu ritual
de boa sorte – e esfreguei as palmas das mãos, depois enfiei um par de
luvas de borracha azuis, pus uma máscara nova e encaminhei-me para os
elevadores B. Tive um arrepio quando as portas se abriram no quarto piso.
A clínica de transplante de medula óssea para doentes externos era fria e
estanque como um frigorífico de carnes. Peguei num cobertor aquecido
que estava no balcão das enfermeiras – havia um dispositivo tipo forno
que os mantinha quentes – e sentei-me.
As horas nas salas de espera pareciam não ter fim – e corriam mais
depressa num estado de imobilidade ou a observar as outras pessoas. Com
o tempo, tinha-me tornado uma especialista no reconhecimento das
diferentes fases da Condição de Doente: os que tinham recebido o
diagnóstico recentemente eram muitas vezes acompanhados por um
séquito de amigos e familiares que transportavam flores e presentes; um
pai ou um filho cuja condição capilar já não fosse brilhante podia rapar a
cabeça em solidariedade, acreditando que merecia, com esse sacrifício,
uma medalha de honra. Ao fim de umas semanas, esse séquito emagrecia.
Familiares e amigos haviam de elaborar uma Escala de Acompanhantes à
Químio e estariam com a pessoa doente por turnos. Ao fim de seis meses,
já o doente teria ao seu lado um único cuidador – cujas responsabilidades
pesadas o poriam a rabujar com o parque de estacionamento cheio ou com
os “tempos de espera diabólicos”. Se o doente tivesse a infelicidade de
estar nessa situação mais de um ano ou dois, acabaria por ficar assente que
era capaz de se deslocar sozinho ao hospital.
Hoje, pela primeira vez desde o diagnóstico, tinha-me juntado às fileiras
destes últimos – embora não fosse a única. Reparei num rapaz que tinha
acabado de entrar e que estava a colocar as luvas e a máscara exigidas.
Parecia estar nos vinte e muitos, era alto e magro e tinha um chapéu de lã
a cobrir-lhe a cabeça. Parecia nervoso ao perscrutar a sala de espera cheia,
à procura de um lugar para se sentar. Acontece que a única cadeira vazia
era a que estava à minha direita e quando ele se aproximou trocámos
acenos com a cabeça.
– Suleika, certo? – disse-me, estendendo a mão. – Sou um grande fã da
sua coluna.
Apresentou-se. Chamava-se Bret e, enquanto esperávamos, contou-me
aquilo que descreveu como uma batalha perdida com um linfoma e como
ele e a mulher estavam a pensar desenraizar-se de Chicago e mudar para
Nova Iorque, para ele poder submeter-se a um transplante de medula
óssea. Ouvi-o e depois partilhei com ele os aspetos relevantes da minha
experiência. Disse-lhe que, se decidisse realizar o transplante ali, ia ser
bem tratado, e também me ofereci para o encaminhar para a Hope Lodge,
onde ele e a mulher podiam viver sem pagar. Quando o chamaram, Bret
tinha as mãos firmes e eu senti-me tocada pela conversa que tínhamos tido
– pela nossa ligação. Trocámos números de telefone e prometi procurá-lo
se alguma vez fosse a Chicago. Mas, assim que ele desapareceu atrás da
cortina, voltei a ficar entregue a mim.
Quando por fim me chamaram à sala da químio, encontrei a Abby, uma
das enfermeiras de que gostava mais.
– Tens os olhos vermelhos – disse-me, num tom preocupado.
– Estou só cansada – comecei a dizer, o que era em parte verdade.
Ultimamente não andava a dormir tão bem. A dose elevada de esteroides
que eu tomava para combater a DEcH fazia-me insónias e eu ficava
acordada até tarde a ver filmes na cama. Mas, antes de poder continuar,
dei por mim a chorar copiosamente. Esse acesso de choro surpreendeu-
me. Em casa, tinha-me transformado numa fonte de lágrimas ambulante,
mas raramente fazia isso à frente de outras pessoas.
Nos últimos tempos, o meu espírito andava em águas revoltas – desde
que soubera que precisava de mais químio – agitado, instável. Com o Will
ocupado a trabalhar e os meus pais em casa, em Saratoga, a liberdade
também era aprender a cuidar de mim. Era uma caixa enorme de
comprimidos com os dias da semana marcados e a responsabilidade de
tomar à hora certa dezenas de medicamentos. Liberdade era ir sozinha à
químio. Era compreender que estava nesta situação sozinha. De certo
modo, sempre tinha estado.
18

O RAFEIRO

Em miúda, enquanto o meu irmão e os amigos andavam entretidos a subir


às árvores e a correr atrás de bolas de futebol, eu esquadrinhava as ruas e
os arbustos à procura de animais abandonados. Nunca passei por uma
caixa de cartão atirada fora ou por um contentor sem espreitar lá para
dentro, em busca de ninhadas de gatinhos deitadas fora com o lixo.
Quando os adultos me perguntavam o que queria ser quando crescesse,
respondia com toda a sinceridade do mundo: a Madre Teresa dos animais
perdidos.
Nesses anos todos, pedi um cachorro aos meus pais, mas eles disseram-
me sempre que não. Mudávamos de casa com muita frequência e eles não
queriam ter essa responsabilidade extra. No quarto e no quinto anos, todos
os dias a seguir à escola, pegava na bicicleta e ia até ao veterinário local,
onde ajudava a limpar os canis, assistia a operações e reabastecia os
armários. Gastava a mesada em velhos livros científicos sobre veterinária
e em ração, leite para gatinhos e brinquedos para doar a organizações de
resgate animal. Memorizei todas as duzentas e setenta e quatro categorias
de cães reconhecidas pelo American Kennel Club e obriguei os meus pais
a fazerem-me perguntas sobre os seus traços de comportamento e
esperanças de vida. Com dez anos, pedi ao meu irmão, para o Natal, uma
incubadora. Na primavera, para grande desgosto dos meus pais, estava a
cuidar de perto de uma dúzia de pintainhos no meu velho carrinho das
bonecas. A seguir veio o negócio de criação de hamsters e, depois, uma
fase de tomar conta de animais. A meio do liceu, fazia peregrinações de
fim de semana ao abrigo para animais, onde passava os dias a conviver
com cães velhos e maltratados. Gostava especialmente dos rafeiros –
quanto mais sujo, bruto, feral e absolutamente não treinável, melhor. Em
certa medida, penso que me relacionava com eles – eram outsiders, à
procura de uma casa.
Segui este apelo mais um tempo e houve um breve período no liceu em
que ainda criei um gatinho recém-nascido, a que chamei Mohamed. Mas
as aulas ocupavam-me muito tempo e depressa tive de o passar a um dono
mais fiável. Com o tempo, vieram as viagens de verão, os ensaios da
orquestra, os namorados e as festas. No fim da universidade, não havia
espaço para um animal de estimação na minha vida adulta. Mal conseguia
tomar conta de mim.
No hospital Monte Sinai, um cão de terapia tinha vindo visitar-me nos
primeiros dias depois do meu diagnóstico. Era um spaniel pequeno e
enérgico, que tinha andado aos saltos à volta da cama e, brincalhão, a
puxar a manta que eu tinha no colo. Pela primeira vez desde que adoecera,
não sentia que me estivessem a tratar como se eu fosse feita de porcelana.
A visita do cão de terapia desencadeou uma nova onda de súplicas por um
animal de estimação, iguais às que fizera em criança, e tinha ficado cada
vez mais agarrada à ideia desde que me mudara para o apartamento com o
Will. Passei horas no computador a ver sites de adoção de animais. Mas
sabia muito bem qual era a realidade médica: o meu sistema imunitário
enfraquecido tornava impossível ter um cão. O médico responsável pelo
transplante nem pensou duas vezes antes de rejeitar a hipótese. Ainda
assim, passadas umas semanas, eu fazia questão de voltar a perguntar-lhe.
Numa manhã de outubro, quando estava no Sloan Kettering para um
checkup, fiquei a saber que o médico do transplante tinha tirado uma baixa
de curta duração. Na ausência dele, ia ser reencaminhada para outra
médica chamada – bastante auspiciosamente – Dra. Barker8. Decidi tentar
a sorte com ela.
– O que pensa de eu arranjar um cão? – perguntei-lhe logo na primeira
consulta, ao fim de uns minutos.
Ela pensou uns instantes.
– Sim – respondeu a Dra. Barker. – Não vejo porque não.
Explicou-me que o meu sistema imunitário estava mais forte – não tão
forte como podia estar, mas o suficiente – e observou que cuidar de um
animal de estimação podia ser terapêutico.
Não perdi muito tempo. Logo nessa tarde, convenci o Will a levar-me a
associações de resgate de animais no SoHo quando saísse do emprego –
“só para ver”. Fui direitinha a um cachorro. Era uma mistura feia de
terrier – um schnoodle, parte schnauzer, parte poodle – com um pelo
branco ralo que quase nem escondia a pele roxa manchada e as orelhas
caídas. Não resisti e pedi para lhe pegar. Era tão pequeno que cabia na
palma da mão. A rosnar, com uma espécie de barbicha despenteada e um
brilho malicioso nos olhos, parecia rabugento e ligeiramente perturbado,
mas cheio de personalidade. Foi amor à primeira vista. “Este cão é meu”,
disse.
O Will estava apreensivo, preocupado com a exposição a germes e com
o fardo acrescido de cuidar de um animal quando já tinha de tratar de mais
coisas do que era capaz. Implorei, prometendo tomar todos os cuidados
para proteger a minha saúde e despejando um fluxo inesgotável de
soluções. O cão iria à rua com proteções de plástico, para lhe manter as
patas o menos sujas possível. Prometi usar luvas quando lhe desse comida
e o limpasse, jurei que ele nunca dormiria na cama e fiz uma lista de
quatro amigos que podiam ajudar a tomar conta dele quando eu não
tivesse energia para isso.
– Tu não desistes… – disse o Will com um esboço de sorriso. Quando
disse à mulher da receção que estávamos interessados em adotar o cão, ela
informou-nos que havia uma lista de espera com uma dúzia de pessoas à
nossa frente que já se tinham candidatado a ficar com o mesmo cachorro.
Ela tinha de olhar para essas propostas todas e verificar as referências
antes de haver uma decisão. Hesitei um momento e depois implorei.
– Tem alguma ideia de quando é que isso se saberá? Estava à espera de
ter o cachorrinho antes do meu próximo ciclo de químio. Sabe o que
dizem… que os cães são o melhor remédio.
Foi a primeira vez, e a única, que usei o cancro como um trunfo, mas
queria desesperadamente aquele rafeiro. Visivelmente impressionada pela
intensidade da minha atuação, a mulher entregou-nos praticamente os
papéis de adoção. No táxi, de regresso ao apartamento, o rafeiro passou a
chamar-se “Oscar”.
Essa primeira noite com o Oscar foi a mais feliz de que eu me lembrava
desde o diagnóstico. No espaço de uma hora, ele já tinha feito xixi duas
vezes e deixado um cocó de proporções chocantes no velho tapete tunisino
da sala. O Will entrou rapidamente no espírito da coisa e, juntos, demos-
lhe banho, debruçados sobre ele como se fôssemos os pais de um bebé
recém-nascido. Por fim, o Oscar descansou, sobre o meu peito, com as
patinhas pretas a contorcerem-se como se estivesse a sonhar que andava a
perseguir coelhos. O calor do seu corpo e o bater ritmado do seu coração
contra o meu peito relaxaram-me e adormeci no sofá, com o Oscar
enroscado debaixo do meu braço.
A realidade instalou-se no dia seguinte, quando o Will foi trabalhar e eu
me vi sozinha com o Oscar pela primeira vez. Não estava pronta para a
tarefa de andar a correr para a rua meia dúzia de vezes por dia, com um
cachorrinho incontinente, que deixava um fio de urina pelo átrio fora antes
de conseguirmos chegar à porta. A químio e o transplante tinham-me
deixado sem qualquer energia e ainda precisava de muito descanso. Mas o
Oscar estava-se nas tintas para se eu estava demasiado enjoada ou com
dores para brincar com uma bola. Tratar dele depressa se tornou a parte do
dia que eu mais receava. Todas as manhãs, depois do Will sair, o Oscar
iniciava o processo de batizar os meus dedos dos pés com a língua até eu
acordar. Depois saíamos para um passeio. Ao fim de uns quarteirões, ele já
tinha aquecido e estava pronto para uma corrida, enquanto eu estava
exausta e pronta a arrastar-me de volta para a cama. Questionei se não
teria cometido um erro tremendo.
Mas, aos poucos, com o tempo, eu e ele começámos a acertar os nossos
ritmos. Viver com o Oscar não me deixava outra hipótese a não ser criar
uma estrutura para os meus dias que girasse em torno das necessidades
dele, e não das minhas. O Oscar deixou de usar o tapete da sala como casa
de banho privativa e eu deixei de dormir até ao meio-dia. O Oscar acabou
de tomar as suas vacinas e eu apanhei todas as vacinas de infância pela
segunda vez. (Com um transplante de medula óssea, o doente perde todas
as imunizações ganhas em criança.) Procurar acompanhar o Oscar também
acabou por se tornar uma boa reabilitação. Os meus músculos tinham
atrofiado de tanto tempo passado na cama, mas ao fim de umas semanas a
ser obrigada a dar vários passeios por dia, já subíamos e descíamos
escadas a dois e dois.
Pela primeira vez em muito tempo, não era o cancro que dominava os
meus dias. “Muito bem, amigo”, dizia eu, batendo palmas para chamar o
Oscar para o seu passeio. “Vai à frente.” Ele saltava, puxava a trela e
guiava-me para fora do prédio e para o passeio pelo parque Tompkins
Square, onde fizemos montes de novos amigos. Havia o Mochi, um
arraçado de terrier que gostava de lutar na areia com o Oscar; a Thelma e
a Louise, um casal de beagles tímidos que preferia ver os outros cães
brincar a alguma distância; e o Max, um coonhound gigante cuja atividade
preferida era atacar o debrum de pele dos casacos de senhora. Em vez de
ficarem paradas a olhar para a rapariga infeliz com a máscara na cara, as
pessoas que passavam por nós paravam para fazer uma festa ao Oscar e
para me dizerem como ele era querido. Os outros inquilinos do meu
prédio começavam agora por dizer “olá” ao Oscar antes de me
cumprimentarem. E, em vez de discutirmos os meus sintomas e o plano de
tratamentos para essa semana, o Will e eu estávamos ocupados com
treinos e aulas de obediência. Para variar, era bom não ser o centro das
atenções.
Eu ainda estava numa fase de remissão ténue, reservada aos doentes de
leucemia de “alto risco” no primeiro ano depois do transplante. Ainda
tomava todos os dias vinte e três comprimidos e passava a maior parte do
tempo na cama – fosse a dormir ou acordada. Ainda precisava de ir ao
hospital para checkups semanais e ainda me sentia ansiosa em cada
consulta, à espera de ouvir que a minha contagem de glóbulos estava bem.
E, uma vez por mês, ainda fazia um ciclo de químio de cinco dias.
O Oscar não podia mudar o que estava a acontecer na minha medula, mas
estava a realizar um género de magia diferente. Desde que o adotara, eu
sentia um ímpeto de energia, um sinal de ser outra vez normal.

8 To bark significa, em português, “ladrar”. (N. do T.)


19

SONHAR EM AGUARELAS

Estar num hospital pode parecer-se imenso com viver numa cidade
grande. Há atividade a girar à nossa volta: os doentes andam pelos
corredores, os médicos fazem as visitas da manhã, as enfermeiras
conversam em grupinhos ao pé da máquina de café. E, no meio de tudo
isto, podemos sentir-nos profundamente isolados, alienados.
Já sem ninguém que me acompanhasse às consultas, as horas de tédio só
eram aliviadas pelas mensagens de leitores que continuavam a inundar o
meu email. A minha coluna já tinha sido vendida para revistas e jornais e
ganhava um número respeitável de seguidores. Eu não tinha forças para
escrever uma coluna nova todas as semanas, mas ia escrevendo todos os
dias, lentamente, nem que fosse só um parágrafo. Nunca pensara em levar
os encontros com leitores para além da ocasional conversa numa sala de
espera ou nos “olás” de quem se cruzava comigo na rua. Mas estava a
precisar de conversar com alguém com quem pudesse sentir uma ligação,
de um antídoto contra a solidão. Sentada na sala de espera, preparando-me
para começar o terceiro ciclo de químio de manutenção, li uma mensagem
no Facebook de uma rapariga chamada Melissa Carroll, que também
estava a ser tratada no Sloan Kettering. Respondi-lhe, perguntei-lhe se
queria encontrar-se comigo, e uns minutos depois ela disse-me que nesse
dia também estava no hospital e perguntou-me se eu queria estar com ela
um bocado.
Depois de terminar a químio na unidade de transplante de medula óssea
apanhei o elevador e subi para almoçar com a Melissa durante o
tratamento dela. Com trinta anos, ela era uma das doentes mais velhas na
unidade de cancro pediátrico. Tinha sarcoma de Ewing, um tipo
particularmente agressivo de cancro ósseo que, em geral, afeta crianças
pequenas e adolescentes. É por isso que tinha ido parar ao nono andar.
A enfermaria pediátrica era um mundo. As paredes estavam decoradas
com pinturas murais e recortes divertidos de animais. As luzes
fluorescentes, que no resto do hospital eram cruas e agressivas, aqui eram
mais quentes e lançavam um brilho acolhedor. Era a semana antes do
Halloween e todos os médicos e enfermeiras tinham posto disfarces. Até
as máscaras faciais eram a propósito – havia-as de todas as cores e
algumas tinham sorrisos e bigodes pintados. Em frente à secretária da
receção, havia um enorme parque retangular cheio de brinquedos, casas de
bonecas e animais em peluche. Uma miúda com não mais de cinco anos,
de pele translúcida e uma cicatriz fina que serpenteava pelo centro do
crânio, punha e tirava uma boneca numa caixa de madeira. Quando olhei
mais de perto, percebi que a caixa era uma máquina de TAC de brincar.
Ao pé da criança, uma enfermeira sentada no chão, de pernas cruzadas,
explicava-lhe calmamente como é que funcionava, numa espécie de
versão distorcida da pré-primária.
Nos últimos meses, a minha demanda tinha sido tornar-me adulta, como
se ser adulta fosse um exame para o qual podia estudar, dar as respostas
certas e passar. Tinha vinte e quatro anos. Tinha um cachorro para criar,
renda para pagar e colunas para escrever. Tinha um namorado com quem
ia casar quando acabasse os tratamentos e ia sozinha às sessões de químio.
Mas ao ver-me ali, entre paredes de cores alegres e frascos de chupa-
chupas, desejei muito estar na pediatria, onde a minha idade era mais
próxima da de muitos doentes, e não uns andares abaixo, na unidade de
transplante de medula óssea, juntamente com a brigada do reumático.
Contornei o parque e fui até ao fundo da enfermaria, onde a Melissa
estava num sofá de reclinar, em frente a uma fileira de janelas. A sua
peruca morena e comprida, que ela penteava em ondas suaves, fazia um
enorme contraste com a pele branco-pergaminho e com os lábios pintados
de cor-de-rosa. Mas eram os olhos – enormes, com pupilas como vidro
verde-marinho, rodeadas por grandes pestanas pretas – que tornavam
impossível esquecer o seu rosto. Um saco de intravenosas pairava sobre
ela, a pingar veneno para os braços tatuados. Quando me viu, bateu
palmas e sorriu. “Suleika!”, disse, com um ligeiríssimo ciciar. Não nos
abraçámos, respeitando as rigorosas regras de contacto zero entre doentes
com problemas imunológicos. “É fixe aqui, não é?”, disse. “Há imensa
luz.”
Ajeitei-me no sofá ao lado do dela e, quando chegou a hora de almoço,
pedimos sanduíches de manteiga de amendoim e gelatina cortadas em
forma de estrela – Melissa informou-me que eram o seu prato favorito no
menu das crianças. Comemos a olhar pelas janelas e fiz-lhe dezenas de
perguntas. Queria saber tudo sobre a minha nova misteriosa companheira
de hospital. A Melissa contou-me que tinha nascido na Irlanda, de onde
era o pai, um músico, mas crescera numa pequena localidade em New
Hampshire. Disse-me que aprendera a tocar bateria no início da
adolescência e que formara e tivera, por pouco tempo, uma banda de indie
rock a que chamara Mystic Spiral. Depois de acabar o curso numa escola
de artes, tinha-se mudado para Brooklyn, onde passara cinco anos a
trabalhar como assistente de Francesco Clemente, um pintor
contemporâneo famoso.
“O ano de 2010 foi bom para mim”, disse-me a Melissa, com nostalgia
nos olhos. Tinha um namorado, uma vida social trepidante e os quadros
dela começavam a ser exibidos em galerias. Até que, uma noite, saiu com
uma amiga para beber um copo, em Williamsburg. No escuro do bar, a
amiga pisou-lhe acidentalmente um pé com a perna metálica de um banco.
Inicialmente, a Melissa pensou que tinha tido uma distensão, mas semanas
depois a dor continuava e apareceu-lhe no peito do pé um alto redondo.
Ela, que nessa altura não tinha seguro, foi finalmente a uma clínica de
preços reduzidos, onde uma radiografia mostrou que o terceiro osso do
metatarso estava esmagado. Também mostrou que o alto no pé não era só
inchaço, mas uma massa anormal. Uma biópsia revelou que essa massa
era maligna e que o cancro já se espalhara para os nódulos linfáticos
pélvicos e para o joelho. “Claro que não se apanha cancro com um banco
de um bar”, observou a Melissa. “Se a minha amiga não me tivesse pisado
naquele local exato, talvez não tivesse descoberto o cancro. Bastante fora,
não é?”
Depois do diagnóstico, a Melissa não teve outra hipótese a não ser
regressar a New Hampshire para viver com os pais. Iniciou um regime
intensivo de químio e quando, o cabelo lhe começou a cair, fechou-se na
casa de banho e rapou a cabeça com uma máquina. A mãe levou-a depois
a uma loja em Boston para encontrar uma peruca que se parecesse com o
seu cabelo entrançado preto com nuances avelã. Nessa mesma noite,
colocou-a, meteu-se num comboio de volta para Nova Iorque e foi a uma
festa em Bushwick. “Mostrei a peruca aos meus amigos e saltei
imediatamente para a piscina do pátio”, disse-me com um trejeito
irreverente. A Melissa era assim: efervescente e com paixão por se
divertir, rápida a rir e sempre sorridente, até nas circunstâncias mais
sombrias. Na presença dela, as coisas alegravam-se e brilhavam.
Esta era a segunda vez que a Melissa estava em tratamento. Da primeira
vez, tinha passado por dezassete ciclos de químio e múltiplas cirurgias e,
no fim, os exames vieram limpos. Mas apenas um ano e meio depois do
diagnóstico, o cancro tinha regressado e ela decidiu transferir os seus
cuidados para o Sloan Kettering, onde havia mais opções de tratamento.
Quando soube da recaída, ficou devastada. Sentou-se no alpendre de casa
dos pais e abriu o bloco de esboços. Até aí, tinha trabalhado com tintas de
óleo em grandes telas, mas agora os vapores causavam-lhe enjoos e, por
isso, começou a fazer experiências com aguarelas, realizando a primeira
de uma série de pinturas aterradoras, intitulada Autorretrato com Máscara.
“Gosto da incerteza e dos acidentes felizes que nos acontecem com
aguarelas. Gosto de não ter o controlo absoluto, é como na vida”, disse-
me. “Se quiseres aparecer um dia, eu faço o teu retrato.”
Fiz que sim com gosto. A Melissa era o género de pessoa com quem eu
podia ter saído antes do diagnóstico e estava encantada por ter feito uma
nova amiga que também procurava formas de lidar com a doença de uma
maneira criativa. Estávamos as duas a forjar carreiras improváveis: a
Melissa pintava autorretratos na cama; eu escrevia autorretratos na cama.
Aguarelas e palavras eram os medicamentos que preferíamos para a nossa
dor. Aprendíamos que, às vezes, a única maneira de suportar o sofrimento
era transformá-lo em arte.
*

Eu e a Melissa depressa nos tornámos inseparáveis. Fazíamos companhia


uma à outra nas sessões de químio. Passávamos tardes a vasculhar em
lojas de roupa em segunda mão, à procura de casacos de cabedal a
condizer e de trapos novos que servissem nos nossos corpos esqueléticos.
À tarde, ficávamos no apartamento dela em Brooklyn, que dava para o
Parque McGolrick e estava decorado com uma coleção espantosa de
bricabraque: um pato com duas cabeças embalsamado, que um dos seus
muitos admiradores lhe enviara, um lindíssimo cachimbo de água em
vidro, uma arca de madeira cheia de dezenas de frascos de comprimidos e
pincéis e, numa parede, um enorme quadro em cortiça, onde ela pregara
pulseiras de hospital, fotografias de amigos, bilhetes de avião e registos da
sua carreira. Para afastar a náusea, ela estava sempre a fumar erva e,
quando tinha fome, preparava-nos tigelas com gelado. Emprestou-me uma
das suas perucas e deu-me instruções de maquilhagem, ensinando-me a
desenhar a lápis as sobrancelhas e a colar pestanas falsas e grossas onde as
minhas tinham caído. A Melissa adorava dançar e quando tinha energia
para isso púnhamos o Thriller aos berros nas colunas e rodopiávamos pela
sala de estar, agitando as perucas ao ritmo da música até cairmos
esgotadas no sofá.
Um assunto muito mencionado nas nossas conversas intermináveis era o
amor. Encontrar o amor no meio de uma doença prolongada era aterrador
– para já não falar de conservar esse amor. Às vezes, podia parecer
completamente impossível. Eu era um dos poucos jovens adultos doentes
cujo namorado tinha ficado ao seu lado durante o tratamento. “Não o
deixes fugir. Nem sabes a sorte que tens”, dizia-me a Melissa. Uns meses
depois do diagnóstico dela, o namorado, com quem andava há bastante
tempo, tinha acabado com ela, mudara-se para a Costa Oeste e entrara
rapidamente numa nova relação com uma mulher muito mais nova. “Um
imbecil dos grandes”, rematava a Melissa.
Mas o assunto de que gostávamos mais de falar era de todos os lugares
onde iríamos quando estivéssemos melhores. Planeávamos itinerários para
terras distantes. A Melissa sonhava com palmeiras e mercados de
especiarias, com riquexós e elefantes. Eu imaginava-me em reportagem
nalgum lugar distante, ou então a acelerar pela costa da Califórnia num
descapotável todo transformado. As pessoas falam muitas vezes do cancro
como “uma viagem”. Mas nós não queríamos fazer uma treta de uma
“viagem do cancro” – queríamos era fazer uma viagem a sério, que fosse
capaz de nos tirar dos sons, dos cheiros e das tristes plantas de plástico das
enfermarias de oncologia e nos mergulhasse nas vidas destemidas que
desejávamos viver.
Éramos duas raparigas magricelas, só cotovelos e joelhos, maçãs do
rosto salientes e cabeças a fervilhar, cheias de sonhos desesperados para o
futuro – um futuro qualquer, desde que lá pudéssemos estar.
*

Nesse inverno, mais para a frente, uns meses depois de nos conhecermos,
a Melissa descobriu que o cancro alastrara aos pulmões. A resposta dela
foi comprar um bilhete de avião para a Índia. “Não é tanto uma lista de
coisas a fazer antes de morrer, é mais uma lista que-se-foda”, disse-me,
em casa dela, sentada à mesa da cozinha, a dar uma passa num charro.
Tinha encontrado na Internet uma organização sem fins lucrativos
chamada A Fresh Chapter, que oferece a sobreviventes de cancro viagens
ao estrangeiro e oportunidades de voluntariado, com o objetivo de os
ajudar a encontrar, depois do tratamento, um novo sentido e rumo.
– A Índia sempre foi o meu sonho, as cores, a cultura, dão-me vontade
de pintar – disse a Melissa. – O cancro levou-me tanta coisa que preciso
disto. Só quero voltar a sentir inspiração.
Os meus olhos abriram-se de preocupação quando a imaginei num país
em que, é sabido, até os viajantes saudáveis adoecem.
– E se tiveres uma neutropenia febril? E se precisares de ser internada
enquanto lá estiveres? – perguntei-lhe.
– Qual é o pior que pode acontecer? – respondeu. – Suleika, pela
primeira vez, sinto que vou morrer. Vou morrer desta merda desta doença.
Sentámo-nos muito quietas, com um silêncio pesado a tornar espesso o
ar à nossa volta.
Demasiado doente para me deslocar a algum lado para lá de um raio de
oitenta quilómetros do hospital, quanto mais para me juntar a ela na Índia,
foi na cama que me despedi da Melissa quando ela partiu, em março. E fui
viajando com ela pelas fotos e relatos que me enviava com poucos dias de
intervalo. Durante duas semanas gloriosas, a Melissa não foi uma mulher
doente com cancro – foi Melissa, a Artista, que dava aulas de pintura e
desenho numa escola primária em Deli, ao abrigo de um programa de
voluntariado. Parou no Templo de Lótus e fez uma oração sentida. Num
dos muitos mercados ao ar livre, encontrou marionetas maravilhosas
pintadas à mão e comprou tantas que precisou de outra mala para as trazer
para casa. O ponto alto da viagem foi uma visita ao Taj Mahal, que era
mais belo do que alguma coisa que ela já tivesse visto. Por um breve
momento, viajar à Índia tinha iludido o espetro da sua própria
mortalidade. Um dia, tinha no telefone uma mensagem dela a dizer:
“Nunca me senti tão viva.”
*

Entretanto, em Nova Iorque, a cidade tinha sido atingida por um nevão.


Grandes flocos de neve caíam do céu e cobriam os passeios, as árvores e
os prédios com um grande manto branco, que depressa ficava marcado
com pegadas, mas era lindo na mesma. Fechei as cortinas, mas a luz dos
candeeiros da rua refletia-se na neve e banhava o apartamento com uma
luz azulada aquosa. O Will tinha herdado de um amigo um velho televisor
e pusera-o em cima de uma mesa de jogo, para vermos filmes quando
estávamos deitados. Era um domingo à noite e estávamos estendidos ao
lado um do outro, eu com uma almofada elétrica a aquecer-me a barriga e
ele com uma lata de cerveja que ia esvaziando em grandes tragos.
Quando o Will se levantou para ir buscar outra cerveja, resisti ao
impulso de lhe dizer que abrandasse. Não queria aborrecê-lo, nem passar a
ser aquele género de namorada chata que pode aparecer numa sitcom.
Havia qualquer coisa que o estava a incomodar, mas eu tinha medo de
perguntar, por ter quase a certeza de que se relacionava comigo.
Ultimamente, quando voltava do trabalho, parecia inquieto e frustrado. Se
lhe pedia para ir passear o cão ou ir à rua buscar qualquer coisa, suspirava
fundo e fazia pequenas observações sobre como gostava de ter mais tempo
para ele ou para estar com os amigos. Eu odiava depender tanto dele e era
humilhante pedir ajuda a uma pessoa quando se sentia que ela, na verdade,
não a queria dar. Depois de adormecer, ouvia às vezes a porta a fechar-se
devagar e descobria que ele tinha saído para dar uma volta ou para ver um
jogo no bar de desporto ao lado de casa. Ficava acordada, à espera que ele
regressasse, à espera que o sol nascesse, sentindo a tensão que se infiltrara
lentamente na nossa relação, como bolor.
“Precisamos de mais ajuda”, dizia o Will repetidamente. A desempenhar
os papéis de namorado, cuidador, e de um tipo normal de vinte e poucos
anos a tentar descobrir quem era e o que queria fazer da vida, ele estava
esmagado e a vacilar sob o peso das suas muitas responsabilidades. Nunca
o afirmava de maneira direta, mas era óbvio que estava a ficar farto das
limitações e das exigências que a minha saúde nos impunha.
– Olha, há um pessoal lá do trabalho que vai amanhã a um festival de
música no Texas – disse-me o Will ao vir da cozinha com uma cerveja na
mão. – Estava a pensar que talvez pudesse comprar um bilhete de avião de
última hora e ir com eles uns dias. – O tom da voz dele era casual, mas o
rosto mostrava tensão.
– Tenho químio esta semana e cirurgia na sexta. – Iam substituir-me o
cateter que eu tinha arrancado do peito. – Preciso de ti cá. – O desespero
no meu tom de voz até me fez encolher.
– Eu sei, eu sei, desculpa – respondeu o Will –, mas preciso mesmo de
uma pausa. E talvez, enquanto lá estiver, consiga ter tempo para escrever
qualquer coisa minha.
Eu queria imenso ser a graciosa ninfeta leucémica capaz de dizer Faz as
pausas que quiseres, meu amor, tu mereces, faz uma viagem maravilhosa.
Mas, ao fim de um tempo, há uma exaustão espiritual que acompanha este
género de jogo. Enquanto doente, havia pressão para estar à altura, para
ser alguém que sofre bem, que age com heroísmo e que ostenta sempre
uma fachada de estoicismo. Só que, nessa noite, não estava com
capacidade para ouvir como é que a minha doença estava a ser dura para o
Will – de quanto ele precisava de uma pausa, quando eu não tinha a opção
de tirar uma pausa deste corpo, desta doença, desta nossa vida.
– Porque é que fazes pausas nos momentos em que preciso mais de ti? –
perguntei, embora, no essencial, fosse uma pergunta retórica.
– Mas há sempre qualquer coisa errada a acontecer contigo – respondeu-
me. – Será que existe alguma vez uma boa altura?
A minha visão turvou-se, como se fosse o princípio de uma dor de
cabeça violenta. Sem ter consciência do que fazia, peguei num globo de
vidro cheio de areia branca que tinha no parapeito da janela ao lado da
cama. A mãe do Will tinha-o comprado numa loja de presentes de um
museu, na última visita que nos tinham feito. O globo, com riscas cor-de-
rosa, lavanda e tangerina, lembrara-lhe os pores-do-sol em Santa Barbara
e tinha-mo dado para que eu me lembrasse disso, até estar suficientemente
bem para lá ir vê-los em pessoa. Com o globo na palma da mão direita,
admirei o rodopio iridescente da areia no seu interior. Depois, levantei-o
bem alto e atirei-o com toda a força de que fui capaz. Tenho uma pontaria
terrível e falhei o Will aí por um metro e meio – nem sequer chegou a
bater na parede do outro lado do nosso ínfimo apartamento, mas
mergulhou e explodiu no chão. Havia vidro partido e areia por todo o
lado. O chão ganhou um brilho bizarro, como se tivesse sido polvilhado
com purpurina. Senti um impulso libertador doce quando me apercebi da
confusão e a fúria no meu interior abrandou.
– Mas que raio!? – reagiu o Will, com a boca aberta de espanto.
– É o raio da minha vida! – respondi-lhe.
Levantei-me da cama, esmagando com os chinelos pedacinhos de vidro,
fui para a casa de banho e fechei a porta com toda a força. Dobrei-me
sobre o lavatório, salpiquei a cara com água fria e olhei-me no espelho.
Tinha um ar horrível – porque era horrível, pensei, com um acesso
nauseante de vergonha. Juntamente com a químio, corria-me nas veias
qualquer coisa muito feia. Pequenas violências. Ressentimento engolido.
Humilhações sepultadas. Fúria deslocada. E um cansaço muito profundo
de uma situação que se tinha arrastado por muito mais tempo do que
qualquer um de nós conseguia suportar. Eram estas coisas que infetavam o
afastamento crescente entre o Will e eu. Eram estas as coisas de que eu era
capaz de falar com a Melissa, que compreendia melhor do que ninguém a
bifurcação de personalidade que pode dar-se quando estamos doentes –
como é que a doença amplia o bom e o mau e revela novas partes de nós
que desejávamos não saber que existiam; como é que a doença nos pode
levar ao nosso eu mais selvagem.
Mas parecia impossível tentar explicar isto ao Will. Por isso, saí da casa
de banho e, sem uma palavra, metemo-nos na cama. Pelos cortinados
finos, conseguia ver a neve que ainda caía. Tinha ido demasiado longe e
desejava poder desfazer o que tinha feito. Procurei dizer Desculpa, mas
ele já estava a dormir.
Logo de manhã, o Will comprou um bilhete de avião de última hora, fez
uma mala e foi para o Texas.
20

UMA TROPA FANDANGA

A Melissa era a mulher mais bonita que eu já tinha visto ao perto – e eu


não era a única a pensar assim. Com as socas prateadas em padrão pele de
cobra, as tatuagens e a sofisticação de uma mulher mais velha,
rapidamente se tornou o centro de atração na oncologia pediátrica. Vários
dos rapazes adolescentes que lá estavam tiveram paixonetas terríveis por
ela – ao ponto de corarem quando passavam por ela a arrastar os suportes
com os sacos da medicação.
Um deles era o Johnny, o mesmo rapaz com quem eu tinha conversado
online quando estava a fazer o transplante. Era um miúdo do Michigan,
magro, com bom aspeto, moreno e de olhos cor de chocolate.
O diagnóstico de leucemia tinha encurtado o seu primeiro ano na
faculdade. Agora vivia na Casa Ronald McDonald, o equivalente
pediátrico da Hope Lodge, onde crianças doentes e os pais que vinham de
longe tinham a hipótese de ficar quase de graça. A mãe do Johnny, uma
colombiana devota com um sotaque muito carregado, ia com ele para todo
o lado, mas quando estava com a Melissa e comigo ele mantinha-a à
distância, na sala de espera, dizendo: “Mã-ãe…, não vês que estou aqui a
passar um bocado com as minhas amigas?...” O Johnny ficou apanhadinho
pela Melissa muito depressa e queria desesperadamente que nós
pensássemos que ele era um tipo cool – adorava falar sobre a república de
estudantes de que fizera parte pouco tempo, das grandes festas regadas a
cerveja, das raparigas. Nós não comprávamos necessariamente as histórias
que ele contava, que às vezes pareciam exageradas e difíceis de acreditar,
mas ele era um tipo sincero e doce e gostávamos dele como se gosta de
um irmão mais novo.
Outro fã da Melissa era um rapaz chamado Max Ritvo. Era um poeta, a
frequentar o último ano em Yale. Dividia o tempo entre a camarata em
New Haven e um apartamento que a família tinha arrendado para ele num
edifício todo elegante, com chão de mármore e um elevador com
ascensorista de luvas brancas, uns quarteirões a norte do hospital. Como
quase todos os que andavam por Sloan Kettering, Max era careca e pálido
como um ovo cozido, mas destacava-se dos outros doentes por causa do
quimono, que comprara numa loja de roupa em segunda mão, dos óculos
de tartaruga e da tatuagem de um pássaro que tinha num dos lados do
crânio. O Max, tal como a Melissa, tinha sarcoma de Ewing e andava em
tratamentos desde os dezasseis anos. Era brilhante e divertido, com um
cérebro que produzia aforismos e metáforas tão estranhas e intensas que
nos faziam parar a meio de uma conversa, para rir. O Max descrevia a
ressaca de morfina como “usar martelos e ácido para arranjar uma janela
que fecha aos soluços”. A angústia de um novo TAC era como “comer
uma piza e não ter a certeza se aquilo são grãos de pimenta ou pequenos
aranhiços vermelhos”. Perder a virgindade numa cama de hospital era
como “ter sexo numa jangada a ondular no meio de um mar de
antissético”. As frases dele eram tão boas a resumir as nossas dores
específicas que muitas vezes dei por mim a tomar nota delas em pedaços
de papel e a guardá-los no bolso de trás das minhas jeans, para não se
perderem.
*

Éramos uma espécie de tropa fandanga do cancro, que ia crescendo com o


passar dos meses. Havia a Kaylin, a designer de moda punk-rock com
tatuagens nos braços todos, que também tinha sarcoma de Ewing e que,
quando não conseguiu encontrar um lugar para viver, se mudou para o
apartamento da Melissa em Brooklyn e se tornou companheira de quarto
dela. Havia a Kristen, que tinha um linfoma e era dona de uma pequena
loja de skateboards na West Village. Havia a Erika, que estava a fazer um
mestrado no programa de Estudos Alimentares na New York University,
que tinha cancro da mama, um humor bizarro e aparecia sempre nos
nossos encontros com petiscos gourmet; e a Anjali, uma imigrante da
Índia com o mesmo diagnóstico que eu, que tinha uma atitude cáustica,
estava sempre a dizer palavrões e tinha a fama terrível de uma vez ter
posto uma enfermeira a chorar. Eu tinha encontrado a Anjali na sala de
espera para os doentes externos da clínica de medula óssea. Tinha trinta e
muitos anos, era bonita, de pele morena, com um nariz adunco como o
meu e andava sempre com a farda que era pedida aos doentes: um boné de
esqui tricotado a cobrir a cabeça careca e uma máscara a tapar as
bochechas emaciadas. Na primeira vez que nos vimos, ela acenou-me com
a cabeça e eu acenei-lhe de volta, ambas a darmos conta de uma visão
rara: outra mulher jovem num mar de caras brancas enrugadas. “Estou tão
farta de olhar para estes velhadas de merda”, disse-me, rolando os olhos
na direção dos outros doentes – e foi assim que ficámos amigas. O irmão
da Anjali, o seu potencial dador compatível, nunca tinha respondido aos
seus telefonemas. O transplante dela falhara.
Dentro do nosso grupo, tinha-se criado um sistema de acompanhamento
informal. Íamos umas com as outras às sessões de químio e
comparávamos notas de tratamento. Se estávamos demasiado cansadas
para falar, lançávamo-nos em maratonas a ver telenovelas e fazíamos
jogos de palavras quando a insónia tomava de assalto as nossas noites.
Aparecíamos com comida à porta umas das outras – e com Xanax quando
alguém tinha notícias clínicas más. Íamos juntas às compras quando as
roupas já não assentavam nos nossos corpos em mudança e pegávamos no
telefone a meio da noite quando apareciam ataques de ansiedade. Também
iríamos participar em velórios e planear funerais, só que ainda não
sabíamos.
*

Pouco depois de termos começado a sair umas com as outras, eu fui


convidada para falar numa conferência de jovens adultos com cancro, em
Las Vegas, e propus que aproveitássemos a ocasião para fazer uma viagem
de raparigas. A Anjali não estava suficientemente bem para se deslocar,
mas eu, a Melissa, a Kaylin, a Erika e a Kristen conseguimos luz verde
dos médicos e, numa sexta-feira de manhã cedo, embarcámos num avião,
equipadas com máscaras e um tupperware com brownies de canábis.
O átrio do Palms Resort, na baixa de Las Vegas, tinha candelabros
espampanantes, sofás de pele falsa, uma carpete vermelha a cobrir todo o
chão, e que tresandava a fumo, e dezenas de slot machines. Quando
fizemos o check-in, o rececionista disse-nos que tínhamos tido um
upgrade – para a penthouse. Sem acreditarmos na nossa sorte, apanhámos
o elevador para o último andar e abrimos de par em par as portas da suite,
descobrindo dois quartos enormes com janelas de alto a baixo, de onde se
via a cidade, toda iluminada e com os anúncios em néon a pulsar. No meio
da sala havia uma cabine em vidro, equipada com um varão de strip, e lá
andámos todas, às voltas, chorando a rir até as costelas nos doerem.
Desfizemos as malas e daí a pouco a mesinha da sala estava coberta de
perucas. No bar, alinhámos todos os nossos medicamentos, como se
fossem copos de shots; entre as cinco, tínhamos mais de cem frascos de
comprimidos.
Passámos a maior parte desse dia na piscina e depois fomos a um salão
de tatuagens com o nome de Precious Slut9. A Melissa fizera dezenas de
tatuagens desde o diagnóstico. Era uma tendência que eu tinha notado
entre doentes de cancro jovens: um desejo de reivindicar a posse do corpo
e de assumir o seu controlo, de fazer dele uma tela da vontade própria.
Para assinalar o nosso fim de semana em Las Vegas – as estranhas
circunstâncias que nos tinham reunido –, a Melissa e a Kaylin tatuaram
espadas a condizer nos antebraços e pediram-nos que fizéssemos o
mesmo. A Erika já tinha uma tatuagem, um carater chinês que fizera em
adolescente na parte de baixo das costas e que lamentava agora
profundamente, observando que, por força do tempo e da gravidade, a
tatuagem tinha caído até meio do rabo. A Kristen não era miúda para
tatuagens e eu, ainda que me sentisse tentada, ainda tinha muitos
problemas de imunidade.
Mais tarde, nessa noite, de volta ao hotel, encomendámos champanhe e
umas pizas e enroscámo-nos como gatas nos sofás brancos da sala.
Conversámos até de madrugada, sobre tudo – desde dicas para penteados
pós-químio e medos de uma recaída, até ao novo e sensual chef da Nova
Zelândia que a Erika tinha encontrado num site de encontros. “Queria dar
mais uma queca antes de eles me cortarem as maminhas”, disse a Erika,
que dentro de semanas se submeteria a uma dupla mastectomia. Na noite
que passou com o chef nunca tirou a peruca nem lhe disse que estava
doente, embora o tivesse apanhado uma ou duas vezes a olhar para a
pulseira da fundação Livestrong que tinha no pulso. Na semana seguinte
trocaram imensas mensagens, mas a Erika não sabia como havia de
continuar sem lhe dizer a verdade. Pegou no telefone e começou a ler em
voz alta o que lhe tinha enviado: “Olá, esta é provavelmente a pior
mensagem que vais receber na vida, mas sinto que tenho que te dizer,
porque penso que podes realmente gostar de mim. Tenho cancro e a única
razão pela qual não posso ver-te esta semana é porque estou a fazer
quimioterapia. Tenho muita pena. Por favor, nem te sintas obrigado a
responder!”
Encolhemo-nos todas, sem respirar.
– O que é que ele respondeu? – perguntou a Kaylin.
– Nada – disse a Erika. – Mas uma hora depois ouvi bater à porta. Era
um estafeta com um ramo de flores, umas flores artesanais maravilhosas
de uma loja na minha rua que eu adoro. Abri o cartão e dizia: “Isso não
muda nada. XOXO, Mike.”
– Muito bem, é evidente que é um tipo com quem vale a pena ficar. Mas
aquilo que queremos mesmo saber é: como é que foi o sexo? – perguntou
a Kristen.
Erika suspirou.
– Honestamente? Foi o melhor da minha vida.
– Estou com ciúmes – lancei.
– Mas tu e o Will são o casal perfeito – insistiu a Melissa. – Vocês os
dois são a única razão pela qual ainda acredito no amor.
A verdade do que estava a passar-se com o Will – a tensão e o
afastamento crescentes, a frustração e o ressentimento – era uma coisa que
eu não conseguia admitir a mim mesma. Por isso, em vez de o partilhar
com estas mulheres, com as quais era capaz de conversar sobre quase
tudo, só encolhi os ombros.
*

O sexo tinha sido sempre uma parte importante da minha relação com o
Will, mesmo depois de me ter sido diagnosticada a doença. Se isso fez
alguma coisa, foi intensificar a nossa paixão, enchendo-nos de um
estranho desejo faminto um pelo outro. Tínhamos estudado
cuidadosamente como podíamos foder num quarto de hospital sem sermos
apanhados, embora as nossas táticas nem sempre fossem cem por cento
infalíveis. (No Monte Sinai, fomos apanhados mais do que uma vez pelas
enfermeiras, que depois, antes de entrarem, passaram a bater alto e bom
som à porta do quarto e a perguntar “Estão todos vestidos?”) Mas, nos
últimos meses, as coisas tinham mudado.
A nossa primeira tentativa de intimidade depois do transplante
aconteceu numa noite, já tarde, em que ainda estávamos na Hope Lodge.
O Will tinha estado num encontro com antigos colegas e entrou na minha
cama aos beijos. Desde o transplante, eu tinha perdido quase todo o desejo
físico – comer, andar, tocar ou ser tocada. A minha pele estava áspera e
sensível e os esteroides que me davam para tratar a DEcH deixavam-me
inchada e irritável. Sentia-me sempre desconfortável e com náuseas – e
também com sentimentos de culpa por não estar disponível. Foi por isso
que não disse que não quando ele se pôs em cima de mim. Eu queria que
as coisas voltassem ao normal – mas não voltaram. O meu cérebro toldou-
se de dor. Senti como se o meu interior se abrisse, se fendesse e rasgasse.
Gritei várias vezes, mas o Will tomou esses gritos por manifestações de
prazer e eu não o corrigi. Queria fazer o papel de namorada; dar-lhe
aquilo, quando tinha tão pouco mais para dar. A seguir, fui à casa de banho
e tranquei a porta. Fiquei lá sentada muito tempo, o tempo suficiente para
o sangue que cobria o interior das minhas coxas secar.
Eu não conseguia compreender o que estava a acontecer ao meu corpo.
Não sabia porque é que a minha pele de repente parecia em chamas, a
escaldar como uma chaleira, ao ponto de ter de atirar para trás os
cobertores a meio da noite e pôr a cabeça debaixo da torneira da água fria.
Não sabia como controlar os meus humores, que mudavam e oscilavam,
me faziam gritar de frustração num minuto e me punham eufórica no
minuto seguinte. Não sabia porque é que de repente me ia abaixo e
começava a chorar quando estava na fila da mercearia ou sentada no
parque dos cães. Desde que o Will e eu nos tínhamos mudado para o
apartamento de East Village e voltado a partilhar uma cama, eu tinha-me
tornado uma especialista em evitá-lo – virava-lhe as costas à noite,
murmurava umas desculpas sobre estar muito cansada ou fingia estar a
dormir. Nas raras ocasiões em que houve intimidade, transformei-me no
género de mulher que fixa o olhar numa fenda no teto e abandona o seu
corpo, à espera de que tudo acabe depressa.
Durante o tratamento, ninguém da minha equipa médica tinha alguma
vez aflorado o tema do cancro e da saúde sexual. Ninguém me avisou de
que a menopausa é um efeito secundário comum do tratamento que eu
fizera. Ninguém me tinha aconselhado sobre os medicamentos disponíveis
para me ajudarem com os afrontamentos e com as dores. Tinha esperado
que o período regressasse depois do transplante; nunca reapareceu. Com
vinte e quatro anos, menopausa não era sequer uma palavra no meu
vocabulário. O que fiz foi manter-me calada sobre as mudanças no meu
corpo, acreditando que devia haver qualquer coisa errada comigo. Não
contei a ninguém o que estava a sentir – nem à equipa médica, nem ao
Will, nem à minha mãe. A ninguém – até àquele momento.
Na nossa última noite em Las Vegas, a minha garganta embargou-se
quando comecei a fazer confidências às minhas amigas. Falei-lhes da dor
que tinha sentido naquela noite na Hope Lodge e da frustração e confusão
que sentira a seguir. Para minha surpresa, a Melissa e a Kaylin fizeram
coro comigo, afirmando que também para elas o sexo se tinha tornado
doloroso e que se interrogavam sobre se não seria um efeito secundário
das radiações que tinham recebido na zona pélvica. A Kirsten disse que,
desde que terminara a químio, tinha tantas dores que simplesmente não era
capaz de fazer sexo. A Erika falou do evidente desconforto do seu
oncologista quando lhe fez perguntas sobre métodos de contraceção.
“Senti que estava a conversar com o meu tio”, disse-nos. Por isso, depois
da aventura com o chef foi à Internet à procura de saber se era seguro para
ela tomar a pílula do dia seguinte.
Nessa noite, fomos apenas um grupo de raparigas que tinham recebido
pouca ou nenhuma informação sobre os efeitos secundários da nossa
doença a nível sexual e que procuravam encontrar o sentido das coisas e
encaixá-las. A seguir, chorei, sucumbindo a uma estranha combinação de
emoções: desgosto pela nossa perda partilhada e um alívio profundo –
alegria até – por termos, em conjunto, quebrado o silêncio e ultrapassado a
vergonha.

9 Em português, vadia preciosa. (N. do T.)


21

AMPULHETA

O tempo tanto é lento como escorregadio quando estamos doentes, quando


os nossos dias são consumidos na tarefa de cuidar da máquina do corpo,
que está sempre a avariar. Embora tudo o que queiramos seja mais tempo
para viver, rezamos para que os analgésicos façam efeito depressa e para
que a noite chegue rápida, mas os minutos e as horas avançam
penosamente, levam o tempo que muito bem lhes apetece. E, no entanto,
as porções de tempo maiores – ou seja, as semanas e os meses de
sofrimento – passam a correr por nós, num turbilhão de consultas,
transfusões e idas às urgências.
Este paradoxo revelou-se especialmente verdadeiro no outono de 2013.
Quase sem dar por isso, tinha passado um ano inteiro desde que iniciara a
quimioterapia de manutenção pós-transplante e, numa sexta-feira de
manhã, preparava-me para o que seria o meu último dia de tratamento.
Arranjei-me para a ocasião e escolhi um vestido de algodão às flores que
estava a condizer com a minha disposição – animada, alegre, esperançosa.
O vestido mostrava o bronzeado com que viera de uma ida recente com
amigos à costa de Long Island, numa celebração antecipada – ainda que
um tanto prematura – deste dia. Ia para o hospital num autocarro M15,
sozinha numa fila de assentos plásticos azuis, entregue aos meus
pensamentos. Com a cara encostada ao vidro, observava o fluxo do
tráfego que enxameava a Primeira Avenida.
Para variar, cheguei a horas ao Sloan Kettering. Sentada na cama de
exame, com as pernas penduradas, puxei para baixo a alça do vestido, para
pôr à mostra o meu port, um pequeno objeto com a forma de um disco de
hóquei no gelo inserido sob a pele entre a clavícula e a mama direita. Fiz
uma careta quando uma enfermeira lá enfiou uma agulha, ligando-me ao
saco com a químio. Quando ela abriu a torneira, a sensação salina tocou-
me na parte de trás da garganta, com uma familiaridade salgada e
reconfortante. A seguir, ela pendurou o saco no suporte e ajustou a válvula
até atingir o ponto exato do gota-a-gota.
– Como é que se sente hoje? – perguntou-me. Tinha gloss cor-de-rosa
nos lábios, o cabelo louro enrolado no cimo da cabeça de uma maneira
descuidada e a cara era como uma bolachinha de açúcar – pálida, redonda,
doce.
– Não acredito que é o fim – respondi-lhe. – Dão-me uma campainha
para eu tocar? Ou há uma espécie de diploma para quem acaba a químio?
A enfermeira franziu os olhos para mim, com a testa contraída num sinal
de confusão.
– O Dr. Castro não lhe disse?
– Disse-me o quê?
– Oh… Ele falou disso com o resto da equipa de transplante. Com base
em novas linhas de orientação e investigação, eles pensam que precisa de
fazer mais nove meses de químio – só para ter a certeza de que está tudo
bem.
– Mais nove meses?
Não era uma sensação nova: ver a minha sensação de segurança desfeita
no espaço de tempo que leva a dizer uma frase. Tem leucemia. Os
tratamentos não estão a funcionar. Precisa de um transplante. Precisa de
mais químio. As palavras tinham sido a minha salvação desde que
começara a escrever a coluna e eu quase tinha esquecido quanto elas
podem magoar; como é que, com tanta facilidade, elas são capazes de
destruir os nossos planos para o futuro, para uma vida. As lágrimas vieram
automaticamente, quentes e rápidas, e caíram abundantes pela minha cara
abaixo.
– Posso falar com o Dr. Castro?
– Ele hoje não está – respondeu a enfermeira. Passou-me uma caixa de
lenços de papel e voltou a pedir desculpa pelo equívoco. Disse-lhe que
não se preocupasse. A culpa não era dela, não era de ninguém – ou,
mesmo que fosse, isso não importava. Eu concordar ou não com a
quimioterapia extra nem era uma questão – tinha chegado a este ponto e
continuaria a fazer o que fosse preciso para sobreviver.
– Vemo-nos daqui a três semanas – despedi-me, no fim da sessão.
Nessa noite, ganhei coragem para contar ao Will o que tinha acontecido
no hospital e procurei vislumbrar no seu rosto como é que ele estava a
reagir à notícia. Mais nove meses de consultas, de contas e de um cansaço
debilitante. Mais nove meses em que a minha saúde faria descarrilar a
vida dele. Fomos para a cama e o Will disse-me em voz baixa todas as
palavras certas de apoio. Disse-me que tinha muita pena, que era natural
eu estar zangada. Beijou-me a cara e limpou-me gentilmente o rosto com
as palmas das mãos quando as lágrimas voltaram a aparecer. Estes gestos
de ternura queriam dizer tudo, mas para mim era difícil saber como é que
ele realmente se sentia. O Will era tão opaco como eu era dada a
explosões emocionais. Se estava irritado, triste ou desapontado, eu quase
nunca dava conta disso até depois de ter acontecido. Quando ele
adormeceu, observei-o, a pensar no que estaria a passar-se por trás
daqueles olhos azuis fechados.
*

Uma semana mais tarde, o Will fez-me sentar na sala e disse-me que ia
para a Califórnia. A ideia era fazer uma pausa – que desta vez seria maior,
para ele poder recarregar baterias e passar um tempo com os pais, que já
não via há meses. Trabalharia online, da casa deles em Santa Barbara.
Seria um mês, dois no máximo. Além disso, eu podia ir lá visitá-lo. Talvez
até pudéssemos fazer aquela viagem pela Califórnia com que eu tinha
andado a sonhar. “Os casais estão sempre a dar espaço um ao outro. Penso
que isto pode ser mesmo bom para nós”, disse-me.
Olhei para ele de boca aberta. A ideia parecia extremamente simples e
natural – e até seria, no universo alternativo em que nós fôssemos um
casal normal. Mas a nossa realidade não era essa. Nós éramos namorado e
namorada, mas também cuidador e doente. Eu recriminava-o por me
obrigar a dizer isto em voz alta – por me fazer enumerar todas as maneiras
como eu dependia dele.
Essa lista de coisas incluía as obras de renovação na cozinha do nosso
apartamento que estavam prestes a começar – obras que eu passaria a ter
de acompanhar sem a presença dele. A ajuda de que precisava quando
estava doente. Passear o cão, fazer as compras, cozinhar, ir aviar receitas à
farmácia, ir às urgências à noitinha e por aí fora. O nosso pequeno
apartamento ficava a três horas e meia de distância dos meus pais e, não
havendo um quarto livre para eles, não era possível instalarem-se
confortavelmente mais do que umas noites. Teria de mudar-me para o meu
quarto de infância em Saratoga enquanto o Will estivesse fora – o que não
tinha vontade nenhuma de fazer – ou então aguentar-me sozinha.
– Vais-te embora porque tenho de fazer mais químio? – perguntei-lhe.
– Claro que não – reagiu o Will. – Como é que podes dizer uma coisa
dessas? Eu tenho sacrificado tudo por ti.
Senti-me imediatamente culpada. Claro que ele tinha razão quanto aos
sacrifícios, mas, mesmo assim, eu queria saber.
– Então, porque te vais embora?
– Preciso de concentrar-me em mim mesmo. Não me sinto feliz e,
profissionalmente. não estou onde quero. Passo o dia inteiro a editar o
trabalho de outras pessoas, ajudo a tornar realidade o sonho delas, e
depois venho para casa e tomo conta de ti.
– Mas porque é que não podes concentrar-te em ti aqui? – perguntei-lhe.
– Eu posso ajudar.
– Entre os teus tratamentos ao cancro e a tua carreira, ocupas bastante
espaço nesta relação.
Havia verdade nas palavras do Will. No último ano, a popularidade da
coluna levara a que o meu perfil aparecesse em revistas e fora convidada
para ir à televisão e para falar em conferências. Num momento surreal, até
tinha ganho um Emmy na categoria Notícias e Documentário, por causa
dos vídeos que acompanhavam a coluna. Quando fui à cerimónia
cintilante, no Lincoln Center, senti-me ao mesmo tempo excitada e
deslocada, com as bochechas inchadas dos esteroides e o meu cabelo
muito curto. Sempre que me surgira uma oportunidade, eu aceitara,
querendo aproveitar o momento enquanto ele existia, enquanto podia. Mas
a força de vontade e a ambição puras só podem levar-nos até a um certo
ponto. Eu estava a sentir a carga de trabalho e todos os que estavam à
minha volta – a minha família e amigos, o Will, os meus médicos – se
preocupavam pelo custo que isso tinha para a minha saúde.
O Will tinha dado o seu apoio a partir do primeiro dia e eu aceitara-o
com gratidão – em retrospetiva, com demasiada ânsia. Ele tinha feito um
número incontável de diretas a ler e rever textos, ajudou-me a negociar
contratos e a preparar-me para entrevistas. A primeira vez que fui
convidada como oradora principal, numa reunião médica em Atlanta, ele
gastou dias de férias para me acompanhar, pois eu estava demasiado
doente para viajar sozinha. Empurrou a minha cadeira de rodas pelos
controlos do aeroporto, carregou com as nossas malas e cuidou de mim
depois de eu ter apanhado um vírus no avião. O dinheiro extra tinha-nos
permitido viver mais confortavelmente e eu dividia com ele o que
ganhava, insistindo que ele merecia ser compensado, já que não havia
maneira de eu fazer nada daquilo sem ele. Mas o que tinha começado por
ser um trabalho por amor tinha-se também transformado num grande
trabalhão. Nas últimas semanas, eu tentara fazer-me mais pequena,
pedindo menos, dizendo menos e incentivando-o a focar-se nos seus
próprios projetos criativos, mas isso não pareceu importar. Eu não
conseguia deixar de sentir que estava a consumir demasiado oxigénio na
sala. Mas, até agora, nunca ouvira o Will confirmar isso em voz alta.
– A tua infelicidade? Os teus desapontamentos profissionais? Sou eu
que tenho culpa disso? – perguntei-lhe. As minhas mãos estavam a
começar a tremer. Peguei no frasco de comprimidos de Xanax que estava
na bancada da cozinha e desfiz entre os molares um par dos comprimidos
azuis. Faziam efeito mais depressa se os mastigássemos em vez de os
engolirmos inteiros. Queria evitar outra explosão como a do globo de
vidro, mas era demasiado tarde. – Vai-te foder – atirei-lhe num sussurro
baixo. – Vai-te foder por me fazeres sentir um fardo maior do que eu já me
sinto.
Ser doente é entregar o controlo – à equipa médica e às suas decisões,
ao próprio corpo e aos seus colapsos sem aviso. Por tabela, os prestadores
de cuidados sofrem um destino semelhante. Mas há diferenças cruciais
entre os dois. Mais do que nunca, eu queria fugir: dos protocolos e dos
calendários de tratamento sempre a mudar, do cansaço e da humilhação de
ter de estar sempre a pedir ajuda. Mas, enquanto doente, estava condenada
a essa confusão toda, à minha maldita medula. Como cuidador, o Will
tinha estado comigo por amor e, talvez, também por um sentimento de
obrigação. Os refrões contínuos de “És um santo por ficar ao lado dela –
um homem bom, um companheiro modelo” não atenuaram de certeza a
pressão que ele deve ter sentido. Mas estar ali, passar por tudo comigo, era
uma escolha. A verdade é que ele podia ir-se embora. E foi isso que
acabou por fazer.
*

Todos deram o máximo para me apoiar quando o Will partiu para a


Califórnia nesse outono. As minhas amigas fizeram um esforço renovado
para estar comigo e, de vez em quando, passavam a trazer-me comida. Um
vizinho ofereceu-se para passear o Oscar na semana de químio e os meus
pais arranjaram alguém para ir fazer a limpeza ao apartamento. À
distância, o Will também fez o seu melhor, telefonando-me várias vezes
por dia para saber como eu estava. Na maior parte das vezes, as nossas
conversas estavam cheias do calor e da boa disposição habituais, mas
houve momentos, em especial quando tive de voltar às urgências ou
quando estava stressada por ter de tomar conta de tudo sozinha, em que foi
difícil impedir que o ressentimento transparecesse na minha voz. Mas,
quase sempre, senti simplesmente a falta dele. Pensei muitas vezes nas
palavras do Will naquela primeira noite em Saratoga, a seguir ao meu
diagnóstico: “Há muitas coisas más que vão acontecer. Precisamos de
guardar a nossa relação numa caixa e de a proteger com tudo aquilo que
temos.” E ao princípio foi assim, com a doença a tornar-nos mais
próximos, mais próximos do que nunca. Mas, algures pelo caminho,
deixámos os dois de proteger a nossa relação – pior, voltámo-nos contra
ela, às vezes um contra o outro. Agora, a doença tinha-nos posto a cinco
mil quilómetros de distância.
Na ausência do Will, comecei a passar mais tempo com o pessoal do
cancro. Sem que eu tivesse de pedir nada, nem de explicar nada, elas
perceberam que eu estava muito em baixo. A Erika fez sweatshirts com
TEAM SUSU estampado à frente, naquelas letras universitárias, e a
Kristen acompanhou-me às urgências ou às consultas de químio para eu
não estar sozinha. O Max estava sempre a aparecer-me à porta com fatias
de piza de 99 cêntimos e uns charros enrolados na perfeição, e a Melissa
reunia as tropas, organizando noites de jogo, festas dançantes e, de vez em
quando, uma saída. Um soluço da genética tinha-nos reunido – estávamos
todos juntos por causa de células malignas rebeldes e por um sentimento
acrescido da nossa mortalidade –, mas a certa altura tínhamo-nos tornado
mais do que amigos circunstanciais. Éramos família.
*
Mais para o fim desse outono, numa tarde gelada, a Melissa e eu fomos
encontrar-nos com o Johnny na Casa Ronald McDonald, na rua 73 com a
Primeira Avenida. Nevava um pouco e estávamos a tremer quando
passámos por baixo do telheiro vermelho e cruzámos as portas rotativas.
O Johnny estava à nossa espera, de fato preto, muito largo por cima de um
corpo que desaparecia, e com uma gravata vermelha larga sobre uma
camisa branca. Os últimos ciclos de químio tinham-lhe dado à pele uma
tonalidade amarelada, de cera. Lembro-me de pensar como ele parecia tão
mais frágil desde que festejáramos o seu vigésimo primeiro aniversário, o
que fora apenas umas semanas antes. Por muito doente que estivesse,
tinha-se arranjado a preceito – e havia uma boa razão.
A Fundação Make-a-Wish tem por objetivo proporcionar a crianças e
adolescentes doentes a concretização de um desejo à sua escolha. Já
ouvira histórias de miúdos que tinham ido a Espanha para ver matadores
de fato de lantejoulas agitarem as capas cor-de-rosa à frente de touros
carregados de testosterona. Outros iam ao Disney World para andar na
montanha-russa com as suas celebridades favoritas. A outros era
concedido o desejo de umas férias na praia, com a família, em estâncias
no Havai. O desejo do Johnny, em comparação, era simples. Queria levar
o grupo do cancro a um belo jantar fora e a um espetáculo na Broadway,
mas suspeitei que eu fora convidada como pau de cabeleira. Sair sozinho
com a Melissa teria tornado demasiado evidente a sua queda por ela.
A mãe do Johnny estava lá, como de costume, e o pai tinha vindo do
Michigan passar essa semana. Tiraram-nos dezenas de fotografias,
enquanto nós os três fazíamos poses no átrio. O Johnny ficou entre mim e
a Melissa, todos de braço dado, como se estivéssemos a caminho do baile
de finalistas. À porta, aguardava-nos uma limusina preta. O motorista,
com um suéter preto sem mangas e um boné clássico de chauffeur, abriu a
porta com um floreado. “Primeiro, vocês”, disse o Johnny, afastando-se
para eu e a Melissa podermos entrar primeiro. “Oh la la! Que cavalheiro!”,
brincámos, pondo-lhe as orelhas cor-de-rosa vivo.
A limusina deslizou pelas ruas atarefadas de Midtown, passando por
arranha-céus iluminados de cores e multidões de turistas. Parámos à porta
de um edifício com um enorme cartaz à frente que dizia: BEM-VINDO
A FLAVORTOWN. Tínhamos chegado ao restaurante de Guy Fieri em
Times Square. Um chefe de mesa conduziu-nos por um labirinto de salas
forradas a madeira e a cheirar a tabaco. O Johnny estava visivelmente
entusiasmado ao abrir a carta gigantesca, enunciando os pratos que queria
experimentar desde a primeira vez que lera sobre este restaurante –
especificamente o Bacon Mac ’n’ Cheese Burger e uma coisa chamada
Awesome Pretzel Chicken Tenders. “Não é fantástico? Podemos
encomendar o que quisermos e o melhor de tudo… é que é tudo
GRÁTIS!”
Fiquei feliz por o ver tão contente. Ultimamente, o Johnny tinha tido
uma série de contratempos. Era filho único de um casal misto e não
conseguira encontrar um dador compatível. Para os doentes nesta situação,
a alternativa era um transplante de sangue do cordão umbilical, o que
implicava que a doença estivesse em remissão total antes do início do
procedimento. Mas, de cada vez que ele se aproximava de um estado de
remissão, surgiam infeções e complicações que faziam com que tudo
voltasse ao princípio. Recentemente, a leucemia deixara de todo de
responder aos tratamentos. O plano era agora ir ao MD Anderson, o
grande hospital oncológico de Houston, onde talvez pudesse participar
num novo ensaio clínico. Ele ia para lá daí a dias.
Pedimos champanhe e brindámos ao êxito do próximo ensaio clínico do
Johnny, ao nosso grupo, a dias melhores, ao gosto terrível do Guy Fieri
em… tudo. Trouxeram-nos meia dúzia de pratos, que cobriam a totalidade
da grande mesa lacada. O Johnny deu umas garfadas, mas quase não tocou
em nada. Ao longo do jantar, foi ficando cada vez mais calado. Quando
chegou a sobremesa – uma bola de gelado com cobertura caramelizada –,
parecia trémulo e pálido e tinha uma camada fina de transpiração a cobrir-
lhe a testa.
– Sentes-te bem? – perguntei-lhe.
– Estou bem… não, estou melhor do que bem. Esta foi uma das
melhores noites da minha vida e ainda nem sequer acabou. Ainda vamos à
Broadway ver um espetáculo – disse, com uma alegria forçada.
Quando chegámos ao teatro, o átrio estava cheio e o Johnny oscilava,
inseguro, enquanto abríamos caminho entre a multidão de corpos que se
comprimiam. Perguntámos-lhe outra vez se estava a sentir-se bem, e ele
não nos ligou, sempre a insistir que estava ótimo. Mas precisou de parar
várias vezes e de se encostar pesadamente ao corrimão quando subiu os
degraus alcatifados para a sala. Eu e a Melissa trocámos olhares
preocupados e seguimos discretamente atrás dele, de braços estendidos,
prontas a apanhá-lo no caso de ele desmaiar.
Chegámos sem problema à nossa entrada, mas ao darmos os bilhetes ao
arrumador houve um brevíssimo momento de embaraço quando
percebemos que só dois lugares é que eram juntos. O Johnny pareceu um
pouco constrangido e, depois, observou que os bilhetes tinham sido
conseguidos à última hora.
– Então, quem fica onde? – perguntou o arrumador.
– Melissa – perguntou o Johnny timidamente – queres ficar comigo?
O arrumador levou-os aos lugares, que eram uma fila a seguir à minha, e
à direita. Pouco depois, o espetáculo começou, com as luzes a apagarem-
se e as cortinas pesadas em veludo a afastarem-se ao som da música. Mas
eu não fui capaz de me concentrar no espetáculo. Em vez disso, inclinei-
me na cadeira, espreitando o Johnny, a ver se ele estava bem. Quando lhe
vi um sorriso de felicidade no rosto, ri-me, dominada ao mesmo tempo
por orgulho e por ternura. Sentado ao lado da rapariga mais bonita e mais
fixe de todas, o Johnny estava melhor do que bem.
A seguir, a Melissa e eu deixámo-lo na Casa Ronald McDonald. Quando
nos despedimos, sabíamos que havia uma possibilidade de não o
voltarmos a ver. Penso que ele também tinha noção disso. “Pessoal, adoro-
vos”, disse o Johnny, numa manifestação de afeto incarateristicamente
vocal. Depois, envolveu-nos num abraço sentido.
A mãe do Johnny telefonou-me do Texas três semanas depois.
– Pneumonia, paragem cardíaca. – As palavras saíam-lhe aos soluços. –
Não conhecemos ninguém aqui. Preciso de levar para casa o meu rapaz. –
Não era fácil perceber o que estava a passar-se. Até que ela disse: – O meu
Johnny boy está agora com Deus.
22

OS LIMITES DE NÓS

Quando o Will regressou da Califórnia, logo a seguir ao Natal, não sei


quem ficou mais aliviado, se eu ou o cão. Penso que pode ter sido o Oscar,
já que, com a excitação, fez xixi no tapete quando o Will abriu a porta.
Com ele ausente, eu tinha percebido algumas coisas. Uma, era que eu
andava a trabalhar e a escrever como se o tempo se me estivesse a acabar
e que, nesse processo, tinha estado a dar cabo de mim e da nossa relação.
Percebi também que não conseguia, e não queria, imaginar a vida sem o
Will. Uma última coisa que compreendi foi que, se não houvesse uma
mudança rápida, os danos na nossa relação seriam irreparáveis.
Ansiosa por passarmos um tempo de qualidade juntos, sugeri que
fôssemos para Saratoga. Como os meus pais andavam a viajar, teríamos a
casa só para nós. Fizemos uma mala e embarcámos os três num comboio.
Na manhã seguinte, quando acordámos, estava tudo coberto por trinta
centímetros de neve fresca, cintilante e imaculada. Enrolámo-nos como
múmias em chapéus e cachecóis, vestimos casacos e botas fortes e fomos
lá para fora. O Will começou a limpar o acesso com uma pá enquanto o
Oscar corria em círculos frenéticos pela neve, como louco. Observei-os
durante algum tempo, depois juntei alguma neve nas luvas, fiz uma bola e
atirei-a ao Will – o que provocou uma batalha generalizada e
entusiasmante com bolas de neve. “Sinto-me como o Kevin McAllister no
Sozinho em Casa!”, gritei, acertando-lhe na nuca.
Passámos desta maneira os dias seguintes, a apreciar a companhia um
do outro, a saborear a nossa pequena fuga. Na véspera de Ano Novo
fomos a uma festa em casa de um amigo, em Millbrook, uma localidade
vizinha. Enquanto o Will conduzia a carrinha pela autoestrada gelada,
conversámos sobre as nossas resoluções. Nesse ano, o ritual ganhava uma
importância acrescida, uma urgência de fazer as coisas bem. Concordámos
que precisávamos de ajuda e decidimos procurar terapia de casal. Também
falámos de arranjar uma mudança de cenário. Estávamos os dois
desesperados por sair da cidade, que se tinha tornado um sinónimo de
hospitais e de infelicidade. Fantasiámos com uma mudança para uma
pequena quinta no vale do Hudson, um sítio tranquilo com um grande
jardim nas traseiras, onde o Oscar teria espaço para correr à vontade e nós
podíamos plantar um jardim – e recomeçar. Ou, então, talvez
comprássemos um carro e vivêssemos na estrada um tempo, a explorar o
país e a acampar em parques nacionais até encontrarmos um lugar novo ao
qual pudéssemos chamar casa. “Vamos prometer apoiar-nos nestes
próximos meses”, disse o Will. “Não podemos deixar que tudo o que
aconteceu nos separe. Quando mais difíceis forem as coisas, mais
próximos devemos ser. É o nosso trabalho. O nosso trabalho mais
importante. Eu amo-te.”
Isto era tudo o que eu queria e precisava de ouvir e, quando chegámos à
festa, eu estava radiosa. Nas horas seguintes, fizemos o que era suposto –
comemos, bebemos e divertimo-nos. O dono da casa pegou numa guitarra
e cantámos em coro canções dos Beatles. Sentei-me no colo do Will, com
os nossos corpos a oscilarem juntos ao ritmo da música. A Lizzie estava
na festa e, a certa altura, chamou-me à parte: “Adoro ver-te a ti e ao Will
assim tão felizes. Há muito tempo que não vos via assim.” Lizzie contou-
me, então, que ela e uma mão cheia das minhas amigas mais próximas
tinham recebido há pouco tempo um email do Will. No essencial, ele
escrevera que, embora querendo respeitar a minha privacidade, também
pensava que elas precisavam de saber até que ponto o meu tratamento
tinha tido um custo na nossa relação. E interrogava-se sobre se elas não
podiam estar disponíveis como reforços extra, em especial nas semanas da
químio e logo a seguir, quando os efeitos secundários eram piores. O Will
sugeriu criarem uma corrente de emails, de modo a que, quando ele
estivesse a trabalhar ou não pudesse estar em casa à noite, alguém pudesse
substitui-lo. Terminava com uma nota otimista, agradecendo o apoio de
todas: “Acima de tudo, quero dizer, se já não o faço há algum tempo, que
vos adoro e que estou muito feliz por estarem a olhar pela Suleika. Ela
nem sempre mostra como as coisas são difíceis… Mas, como sabemos, ela
é forte.” O facto de o Will ter feito aquilo deixou-me ao mesmo tempo
aborrecida – por não me ter perguntado – e esperançosa. Mostrava que ele
levava a sério os nossos problemas, que já estava à procura de maneiras de
melhorar as coisas.
Quando a meia-noite se aproximou, alguém sugeriu que fôssemos
patinar no gelo. Pegámos numa garrafa de champanhe e em patins e fomos
pela neve até ao lago que ficava no extremo da propriedade. O Will
agarrou nas minhas mãos enluvadas enquanto deslizávamos sobre o gelo.
A gritar para a lua, fizemos todos uma contagem decrescente para 2014.
– A um ano melhor – disse-lhe, puxando-o para mim.
– A um ano melhor – repetiu ele. E beijámo-nos.
*

Quando regressámos à cidade, levámos por diante a resolução de fazer


terapia de casal. Encontrámos nas páginas amarelas a nossa primeira
terapeuta. O consultório tinha um sofá muito gasto e um tapete persa já no
fio. Tresandava a patchouli. Ela não parecia muito versada nas nuances de
manter uma relação no meio de uma doença prolongada e, além disso, não
aceitava seguro, por isso, decidimos mudar ao fim de umas poucas sessões
que nada ajudaram. A segunda terapeuta que vimos pertencia ao programa
de psico-oncologia do Sloan Kettering e estava coberta pelo meu seguro.
A Dra. T era uma pessoa simpática e uma boa ouvinte, mas na maior parte
das vezes saíamos do consultório mais zangados pelo que tinha sido dito e
com um peso maior por causa do que tínhamos sabido um do outro, o que
nos fazia sentir mais perdidos do que nunca.
Um dia, a Dra. T perguntou-nos se não nos importávamos que uma das
nossas sessões fosse presenciada por um grupo de estagiários. Eu
concordei logo. O Sloan Kettering era um hospital universitário e eu tinha
sempre estado aberta a que os estudantes observassem o que acontecia.
Parecia um sacrifício pequeno, se as nossas infelicidades pudessem acabar
por ajudar alguém. E também pensei que podia ser útil ouvir outras
perspetivas. Mas a sessão foi um desastre. O Will e eu sentámo-nos com a
Dra. T no meio de uma sala de reuniões grande, com uma fila de estranhos
encostados à parede a observar-nos e a tirar notas em pequenos blocos.
Era humilhante debater os pormenores mais dolorosos e pessoais da nossa
relação em frente a espetadores e ver esses detalhes dissecados em
momentos de ensino.
– A maior parte dos casais jovens, não casados, que seguimos ao longo
de um tratamento de cancro prolongado acabam por separar-se – disse-nos
um dos estagiários. – Nesta fase, o que seria uma ajuda para vocês?
– Se soubéssemos isso, não estávamos aqui – respondeu o Will, numa
rara manifestação aberta de irritação, com os tendões do pescoço salientes.
Havia uma nuvem negra a pairar sobre nós quando saímos da consulta.
“Nunca mais lá voltamos”, concordámos. Mas precisávamos
desesperadamente de orientação. Nenhum de nós sabia já como continuar,
separados ou juntos. E, no entanto, quanto mais orientação tínhamos, mais
derrotados nos sentíamos.
Os amigos e a família teriam ficado surpreendidos ao saber que nos
encontrávamos numa situação tão má, porque o Will e eu nunca
discutíamos ou implicávamos um com o outro em público. Na verdade,
era precisamente o contrário – em frente de outras pessoas, era tudo
carinho e afeto. Ele olhava para mim encantado, eu olhava para ele da
mesma maneira e estávamos a tocar-nos quase sempre, de mãos dadas ou
sentados ombro com ombro. Ele estava sempre a ser atencioso comigo –
tirava-me fotos, trazia-me copos de água e ajeitava-me a manta sobre as
pernas, ou então justificava a minha ausência quando eu tinha de cancelar
um plano qualquer porque precisava de descansar. Acabávamos as frases
um do outro sem dar por isso e estávamos ligados por uma história
partilhada que mais ninguém entendia. A nossa lealdade um ao outro era
oceânica.
Na privacidade do nosso apartamento, contudo, tínhamos as mesmas
discussões aos gritos noite após noite. “Porque é que estás tão distante?”
era a minha ladainha. “Preciso de uma pausa”, era a dele. O Oscar
acostumou-se a esconder-se debaixo do sofá até as nossas vozes
regressarem ao nível normal de decibéis. Eu comecei a tomar pequenas
mãos-cheias de Xanax de cada vez que pressentia que estávamos à beira
de uma discussão. Às vezes, por reflexo, tomava logo um comprimido
assim que sentia as chaves dele na porta. A minha raiva ia aos poucos
sendo substituída por uma resignação muda. Quaisquer sinais de
intimidade, sexual ou outra, tinham desaparecido. À hora de ir para a
cama, apagávamos as luzes e ficávamos de costas voltadas, numa angústia
silenciosa, preferindo comunicar com os nossos telemóveis do que um
com o outro.
O Will tinha de voltar ao trabalho e, quando nos despedimos, senti-me
dominada pela sensação de que havia qualquer coisa no ar. Abracei-o mais
demoradamente do que o habitual, não querendo deixá-lo partir, com um
nó de medo a formar-se na garganta. Era o medo de amar alguém que não
se suporta perder. De saber que o fim pode estar próximo.
Nesse dia, quando apanhei o autocarro para casa, lembrei a mim mesma
que o Will ainda estava ali, ao meu lado, ao fim de quase três anos de
tratamento. Procurei convencer-me de que a nossa relação ainda podia ser
ressuscitada. Queria acreditar que era simplesmente uma questão de lhe
dedicar mais esforço, de tentar mais e de encontrar uma ajuda melhor.
Pensei: O cancro é ganancioso. Devastou não apenas o meu corpo, mas
todas as pequenas coisas que julguei serem verdadeiras sobre mim, e
agora desenvolveu metástases na nossa relação, arruinando o que era
bom e puro entre nós.
Desejei mais do que tudo poder viajar para trás no tempo. Teria estado
mais alerta para a proteção do nosso amor. Teria começado terapia de
casal logo no próprio dia do diagnóstico. Teria recusado deixar que o Will
dormisse todas as noites ao meu lado no hospital e teria recorrido mais aos
meus pais. Teria tentado com mais força processar a raiva que, com o
tempo, sem válvula de escape, se tinha acumulado em mim e ganho
pressão. Mas não era possível fazer recuar os ponteiros do relógio e o
caminho por diante não era óbvio. A solução para os nossos problemas
parecia para lá do nosso alcance: um barco, perdido no nevoeiro, à deriva,
a afastar-se cada vez mais.
23

A ÚLTIMA NOITE BOA

O agente da polícia deve ter pensado que éramos mais duas miúdas da
pesada com um péssimo comportamento. Estávamos vestidas com blusões
de cabedal negro a condizer. Eu tinha um corte de cabelo à escovinha, o
eyeliner muito grosso e uma grande tatuagem de uma cobra píton
sobressaía no pescoço. O cabelo da Melissa caía até à cintura, uma dúzia
de anéis prateados adornavam-lhe os dedos e as pupilas estavam dilatadas
pela erva que, por esses dias, ela fumava quase de hora a hora.
O que o agente não podia saber era que a tatuagem no meu pescoço era
falsa, que a Melissa estava com uma peruca e que tinha sabido
recentemente que o seu sarcoma de Ewing era terminal. No início dessa
semana, os médicos tinham-lhe dito que não havia mais nada que
pudessem fazer por ela. Para ganhar tempo, ela tinha começado à procura
de opções clínicas, mas o prognóstico era sombrio. Para a animar, propus-
lhe sairmos. Então, tínhamos ido a um festival de motos e tatuagens e, a
seguir, dançámos nas nossas cadeiras sob as luzes brilhantes de uma bola
disco num show burlesco de drag queens. E agora estávamos aqui – frente
a frente com um polícia numa plataforma do metro em Coney Island, já
com as primeiras sugestões da alvorada a intrometerem-se na noite.
Uns minutos antes, tínhamos saltado o torniquete, mesmo tendo cartões
do metro nas nossas carteiras. Quando se está perante a morte, a expressão
“só se vive uma vez” ganha um novo significado. Mas o polícia disse-nos
que tínhamos infringido a lei e ameaçou levar-nos à esquadra. Sem hesitar,
a Melissa arrancou a peruca e revelou a cabeça careca. Os olhos
encheram-se de lágrimas quando se lançou numa tirada impressionante
sobre a pressa que tinha de chegar a casa para tomar os medicamentos
para o cancro. A atuação funcionou e o polícia deixou-nos ir – mas com
uma multa de duzentos dólares a cada. Até pediu desculpa por ter de nos
multar, mas disse que não podia fazer nada, uma vez que tínhamos sido
filmadas pelas câmaras.
– Parceiras no crime – disse-me a Melissa em voz baixa enquanto o
polícia nos desejava felicidades e nos mandava seguir.
– Más até ao tutano. Literalmente doentes – respondi-lhe. Quando
entrámos no metro e as portas se fecharam atrás de nós, caímos à
gargalhada nos braços uma da outra.
Foi a última noite boa que passámos juntas, mas não o sabíamos.
Raramente se sabe.
*

Oito semanas mais tarde, numa segunda-feira de manhã do início de


março, fui ao Sloan Kettering para o penúltimo ciclo de quimioterapia,
mas em vez de sentir alívio por estar quase a acabar, pensava
constantemente na Melissa. O cancro dela alastrava pelo corpo a uma
velocidade aterradora e os tumores eram implacáveis. Tinham fraturado a
coluna em dois pontos e estavam a pressionar o crânio, distorcendo-lhe as
feições delicadas e fazendo inchar um olho ao ponto de o fechar.
A Melissa dizia que se sentia feia e que não queria que ninguém a visse.
Tirando eu, o Max e algumas das amigas mais próximas, recusava todas as
visitas.
Quando as pessoas imaginam morrer, parecem ser atraídas por certas
histórias. Nas eulogias e nos obituários, usam expressões como ascendeu,
foi chamado a casa ou ganhou as suas asas de anjo. Estes eufemismos
fazem com que a morte pareça tão passiva e pacífica como deslizar para
uma sesta a meio do dia. As pessoas parecem pensar que, quando chega o
momento, quem vai morrer se sente de alguma maneira preparado. Com a
Melissa não era assim. À medida que a morte se tornava mais iminente, a
raiva dela crescia. “Não estou pronta”, dizia. “Ainda tenho muita coisa
para fazer.” Também estava aterrorizada, obcecada sobre como seria – e
como é que os pais aguentariam.
Todos os dias dessa semana, depois de acabar o meu tratamento,
apanhei o elevador para o décimo oitavo andar, onde ela estava internada.
Parecia sempre mais e mais doente. Um dia, antes de entrar no quarto, vi
os pais dela no corredor. “Os médicos estão sempre a dizer-nos para nos
prepararmos, que precisamos de nos preparar”, disse-me o pai, esfregando
os olhos inchados com os punhos fechados, como se tentasse despertar de
um pesadelo.
Quando fui ver a Melissa noutro dia, ela perguntou-me se a queria
acompanhar numa nova viagem à Índia. A ideia dela era ir depressa.
– Não tenho muito tempo – murmurou, com a voz entaramelada pela
morfina. Sentei-me em silêncio por um instante, à procura das palavras
certas para lhe responder. Nos últimos anos, tinha visto como os meus
amigos e familiares faziam sorrisos forçados e continham as lágrimas
quando se sentavam ao lado da minha cama de hospital. Agora, ao fazer a
mesma coisa, olhei para o teto e engoli em seco, mordi o lábio inferior e
tentei manter a compostura.
– A que sítio é que devemos ir em primeiro lugar? – perguntei.
Não havia hipótese de a Melissa conseguir embarcar num avião para
onde quer que fosse. Mas, de qualquer maneira, planeámos um itinerário,
imaginando uma viagem que ambas sabíamos que nunca iria acontecer: os
riquexós nos quais percorreríamos a baixa de Deli, todas as marionetas
pintadas que compraríamos no mercado para acrescentar à coleção dela,
uma visita ao Taj Mahal pelo nascer do sol. Sorri alegremente, fazendo
que sim enquanto ela falava, lançando aqui e ali sugestões e sons de
encorajamento. A Índia tinha-se tornado uma metáfora, mais do que um
destino.
Quando a Melissa começou a adormecer, levantei-me para me ir
embora. Apertei-lhe a mão e inclinei-me para lhe dar um abraço.
– Não estou pronta – disse ela, a chorar.
Aconcheguei-a, puxando para cima o cobertor do hospital, e corri as
persianas.
– Descansa um bocadinho – disse-lhe baixinho. – Amanhã volto cá para
te ver. – Parei à porta, só um instante, para a ver a dormir.
Na manhã do dia seguinte, a Melissa foi transferida de ambulância para
um centro de cuidados em Massachusetts, para poder estar mais perto de
casa. Pôs no Instagram uma fotografia tirada dentro da ambulância, com
duas janelas esbranquiçadas a mostrarem uma avenida cheia de trânsito.
“Adeus Nova Iorque. Tenho o coração partido”, escreveu na legenda.
Não consegui estar com ela antes de se ir embora. No instante em que a
ambulância se afastou, eu estava presa a um suporte de intravenosas, com
um último saco de veneno a pingar-me para as veias.
*

A morte nunca chega em boa altura, mas termos uma sentença de morte
quando somos novos é uma violação do contrato com a ordem natural das
coisas. Ao fim de anos de estarmos doentes, a Melissa e eu tínhamos
aprendido a coexistir o melhor que podíamos com uma ameaça de morte.
A mortalidade era um fedor que não conseguíamos eliminar, por muito
que tentássemos. Falámos demoradamente sobre isso. Às vezes, até
brincávamos com isso. A Melissa dizia que queria que todos chorassem
imenso no funeral dela. Eu disse que gostava que o meu tivesse a seguir
uma festa louca. Até chegámos ao ponto de elaborar uma lista de
convidados e de indicar os cocktails a servir.
Mas nada podia preparar-me para a perder realmente. O número incrível
de vezes que tínhamos flirtado com a morte e conseguido recuperar tinha,
de uma forma estranha, feito com que nos sentíssemos invencíveis.
Mesmo depois de a Melissa ter partido de Nova Iorque; mesmo depois de
ter deixado de responder às minhas mensagens, com o espírito dela já a
viajar para o espaço aquoso entre os vivos e aquele outro lugar; mesmo
depois de os pais dela me terem escrito a dizer que, nas últimas horas, ela
esteve rodeada pela família e por dezenas de objetos, peças de bricabraque
e pelas marionetas pintadas à mão – mesmo assim, não conseguia aceitar.
Ainda não consigo.
A amiga com quem podia falar com a máxima sinceridade sobre tudo
tinha partido. Mas partido para onde?
E porquê?
A mágoa é um fantasma que nos visita sem aviso. Vem pela noite e
arranca-nos do sono. Enche-nos o coração de estilhaços de vidro.
Interrompe-nos a meio de uma gargalhada quando estamos numa festa e
castiga-nos por nos termos esquecido, ainda que tenha sido por um só
momento. Assombra-nos até se tornar uma parte de nós, persegue-nos a
cada golfada de ar que inspiramos.
24

ESTÁ FEITO

No meu último dia de químio, os meus amigos e família felicitaram-me


porque, finalmente, estava “feito”. Ao fim de incontáveis biópsias,
antibióticos e baldes para vomitar era suposto eu voltar a reunir-me ao
grande grupo. Mas, na verdade, a parte mais difícil do meu tratamento ao
cancro começou quando terminou.
No mês seguinte, fui hospitalizada quatro vezes por causa de uma
infeção intestinal de Clostridium difficile, uma bactéria potencialmente
fatal, que apanhei por ter o sistema imunitário enfraquecido. Batizei esse
mês como o “carnaval dos horrores”, porque cada hospitalização arrastava
uma procissão implacável de acontecimentos surreais e perturbantes,
desfazendo-me aos bocadinhos até nada mais restar de mim para desfazer.
Na noite antes da primeira hospitalização, a Melissa morreu.
Na segunda hospitalização, a Erika e o chef casaram numa pequena
cerimónia no Colorado, mas em vez de ser a madrinha dela, como lhe
prometera, estava presa a um suporte de intravenosas.
Uns dias antes da terceira hospitalização, o Will começou a falar em
fazer uma pausa um bocado mais drástica. Disse que estava a pensar sair
do apartamento e arrendar a sua própria casa. A ideia era vivermos
separados, mas estando juntos. Ele disse que seria uma coisa temporária,
mas eu não acreditei.
Esta proposta do Will atingiu-me como uma facada nas costas. Havia
muito tempo que uma parte de mim se preparava para este momento, mas
ainda assim senti-me a perder o pé. Parecia-me imperdoável que ele
estivesse a fazer-me isto agora, quando eu ainda estava ferida pela morte
da Melissa e uma infeção me devastava as entranhas. Interroguei-me se
esta não seria a maneira de ele caminhar, com passos pequenos, para uma
separação permanente. Mesmo que, como ele dizia, fosse só um arranjo
temporário, e ele acabasse por regressar a casa, eu não via como é que isso
nos ia ajudar a resolver o que quer que fosse.
Eu sempre acreditara num mundo em que o amor era capaz de suplantar
tudo, de redimir o sofrimento e de transformar a brutalidade da vida em
qualquer coisa de suportável, bela até. Mas estava a deixar de confiar em
que, da próxima vez que as coisas ficassem difíceis, ele não voltasse a ir-
se embora. Estava a perder a fé em nós.
Numa derradeira jogada impossível, fiz o que as pessoas desesperadas
fazem: apresentei-lhe um ultimato. “Ou ficas e descobrimos como é que
ultrapassamos isto juntos, ou então mudas-te e acabamos”, disse-lhe.
“Assim, não consigo continuar.”
Vinte e quatro horas depois, o Will descobriu um apartamento em
Brooklyn, pronto a ocupar daí a duas semanas. Quando me disse que
estava a pensar arrendá-lo, não fiz nada para o impedir. Em vez disso,
empurrei-o: “Vai-te embora, não me importa nada”, disse-lhe, ainda que
cada centímetro de mim quisesse gritar-lhe o oposto. Antes de eu ser
capaz de processar completamente o que estava a acontecer, o Will
assinou o contrato e eu regressei às urgências com uma nova manifestação
de C. diff.
Era a minha quarta e última estada no hospital. Fui internada no décimo
oitavo andar e instalada num quarto ao lado daquele onde tinha visto a
Melissa pela última vez. Parecia uma anedota cruel que, entre as centenas
de quartos do Sloan Kettering, eu tivesse acabado ali. A Melissa e eu até
tínhamos a mesma enfermeira, uma mulher chamada Maureen, com um
cabelo cor-de-fogo e bâton a condizer. Implorei para ser transferida para
os pisos da leucemia ou dos transplantes, mas o hospital estava
sobrelotado, por isso, não havia mais nada que eu pudesse fazer. Havia um
fardo pessoal em ser obrigada a dormir a apenas uns metros de onde me
tinha despedido da minha maior amiga – era um castigo que me parecia
destinado a empurrar-me para lá do precipício.
*

O dia em que tive alta foi o dia em que o Will saiu de casa. Quando
cheguei ao apartamento, a carregar um grande saco de plástico do hospital
a dizer “Pertences do doente”, estava tudo em silêncio, fazia impressão.
Devias chorar, disse a mim mesma, ainda à porta, mas estava demasiado
cansada para isso. Andei pelo apartamento, com o Oscar, confuso, a
seguir-me, inspecionando os armários e as gavetas vazias com um
estranho pormenor metódico. Numa das gavetas descobri um velho maço
de cigarros. Sabia muito bem que não o devia fazer, mas acendi um.
Sentei-me no chão da cozinha e fumei-o devagar, ainda com a pulseira do
hospital posta.
O andaime interior que me tinha suportado desde o diagnóstico
desmoronara-se. Enquanto andava em tratamento, tinha estado rodeada
pela melhor cavalaria do mundo: o meu namorado, a minha família e
amigos e uma brilhante equipa médica que trabalhara incansavelmente
para me manter viva. A meta tinha sido libertar-me do cancro. Mas, agora
que tinha despachado a parte da doença “cortar, envenenar, queimar”,
encontrava-me sentada sozinha no meio dos escombros, sem saber como
avançar, a pensar para onde é que tinham ido todos e o que fazer a partir
dali.
*

Demorei um bocado a levantar-me daquele chão da cozinha – foi um ano


perdido que passei em estado de revolta, de dor e a lutar para encontrar o
meu caminho. Nesse dia particular e terrível, não consegui melhor do que
acabar o cigarro, fechar as persianas e rastejar para a cama. A Melissa foi-
se. O Will foi-se. O meu cancro foi-se. Repeti estes factos, para os
interiorizar, à espera de os sentir reais, mas em vez disso só me senti
entorpecida. Era como se as partes sencientes de mim tivessem sido
anestesiadas. Não sou capaz de vos dizer o que fiz no resto desse dia, ou
no dia seguinte, ou no que veio depois. Imagino que tenha passeado o cão,
bebido café e leite em grandes quantidades e respondido aos telefonemas
dos meus pais com a frequência suficiente para eles não me aparecerem à
porta, mas não tenho a certeza. Eu estava lá, mas, na verdade, era quase
como se não estivesse.
A única coisa que perfurava esse torpor era o espetro do Will. Ele tinha-
se ido embora, mas não completamente. Eu conseguia sentir a presença
dele – ou melhor, a ausência dele –, como se fosse um membro-fantasma.
O Will tinha sido o meu cuidador, o meu confidente, o meu amante, o meu
protetor social, o meu melhor amigo. Por vezes, tinha sido, literalmente, a
minha muleta, ajudando-me a caminhar, a comer e a tomar banho quando
eu não tinha força para fazer isso sozinha. Tinha sido demasiadas coisas
que uma pessoa pode ser para outra, mas eu não conseguia ainda ver isso
– só sabia que, sem o Will ao meu lado, não fazia ideia de como me
orientar sozinha no mundo.
Embora tivesse prometido a mim mesma não lhe telefonar, esse impulso
nunca estava muito distante. Uma semana depois de ele se ter ido embora,
cedi: “Podes aparecer?”, perguntei-lhe uma noite, quando já não
conseguia suportar o silêncio no apartamento. Uma hora depois ouvi as
chaves dele na porta. Abriu-a sem bater, como se ainda vivêssemos ali
juntos. Por uns minutos, fizemos de conta que nada tinha mudado e ele
andou a rebolar pelo chão com o Oscar, em brincadeiras, como fazia
sempre, antes de se pôr em pé para me abraçar. Depois encomendámos
comida no Lil’ Frankie’s da esquina e ensaiámos uma tentativa de
conversa civilizada até as coisas, inevitavelmente, descambarem.
Isto tornou-se a nossa rotina, dias de silêncio pontuados por visitas
tardias, que acabavam sempre de uma de duas maneiras: ou tínhamos uma
discussão aos gritos sobre quem tinha feito o quê para acabarmos na
confusão em que estávamos ou, então, o Will passava lá a noite. Nunca
fizemos sexo – isso já não acontecia há meses –, mas eu tinha pavor de
dormir sozinha e era reconfortante saber que ele ainda queria ficar.
Continuei com a esperança de que estarmos assim juntos, enroscados com
o cão, como nos velhos tempos, fizesse o Will perceber o que estava a pôr
em risco, pedir desculpa e regressar a casa de vez. Mas havia uma
sensação de vazio na nossa proximidade, no que restava dela. Sempre que
a manhã chegava e ele se levantava para ir embora, eu sentia-me
humilhada e magoada. Nunca mais, jurava, quando a porta se fechava
atrás dele, prometendo a mim mesma deixar de telefonar-lhe, de o
convidar para aparecer.
Outra vez sozinha no apartamento, ia alternando entre odiar o Will de
uma maneira fervorosa e má e ficar deitada no chão da cozinha, atordoada.
Na minha cabeça, reescrevia a nossa vida em conjunto como se fosse um
argumento simplista, e a história era mais ou menos assim: Eu adoeci e o
Will adoeceu com a minha doença, distanciando-se aos poucos, com o
tempo, até que um dia, de repente, saiu de casa, abandonando-me
enquanto eu estava no hospital. Para mim, era mais fácil pôr as coisas
desta maneira, atirar com a culpa toda para cima do Will, do que admitir
outras partes da história: todas as formas de como eu tinha falhado com
ele, levando-o ao esgotamento – levando-o a ir-se embora. A verdadeira
razão para termos acabado vinha à superfície e fervilhava, ainda
demasiado quente para ser tocada.
O Will era o meu grande amor – e eu tinha bastante certeza de que seria
sempre assim –, mas por muito que eu quisesse pensar que, com tempo e
espaço suficientes, acabaríamos por conseguir voltar a estar juntos, já não
acreditava que isso fosse possível. Tínhamos estado tanto tempo atolados
na dinâmica doente-cuidador que o ressentimento mútuo endurecera à
nossa volta, apanhando-nos como moscas aprisionadas em âmbar.
Continuar à espera do Will era convidar a probabilidade de mais mágoa,
mais dor e mais raiva – e eu não me julgava capaz de suportar isso. Pela
primeira vez na vida, tive a sensação clara de ter chegado a um precipício
que não sabia que ali estava até me encontrar mesmo à sua beira. Tinha
atingido o limite do que era capaz de suportar.
Tal como começava a ver as coisas, havia uma escolha a fazer: se queria
uma oportunidade para encontrar o meu lugar entre os vivos, precisava de
deixar de lutar por uma relação que tinha morrido há muito tempo.
Precisava de começar a lutar por mim.
SEGUNDA
PARTE
25

O LUGAR INTERMÉDIO

“Todo aquele que nasce possui dupla cidadania: no reino dos saudáveis e
no reino dos doentes”, escreveu Susan Sontag em A Doença Como
Metáfora. “Todos nós preferimos usar apenas o passaporte bom, mas,
mais cedo ou mais tarde, somos todos obrigados, pelo menos por um
instante, a identificar-nos com os cidadãos do outro lugar.”
Quando cheguei ao último dia de químio, tinha passado a maior parte da
minha idade adulta nesse outro reino: o reino dos doentes, onde ninguém
quer viver. A princípio, agarrei-me à esperança de que seria uma estada
curta, de que nem haveria necessidade de desfazer as malas. Resisti ao
rótulo de “doente cancerosa” e acreditei que podia continuar a ser a pessoa
que tinha sido. Mas, à medida que fui ficando mais doente, vi como o meu
velho eu ia desaparecendo. Em vez do meu nome, deram-me um número
de doente. Aprendi a falar com fluência “mediquês”. Até a minha
identidade molecular passou por uma fusão: quando as células da medula
óssea do meu irmão se enraizaram na minha medula, o meu ADN sofreu
uma mutação irreversível. Com a cabeça careca, a palidez e o meu porte, a
doença era a primeira coisa em que as pessoas reparavam em mim.
Quando os meses se transformaram em anos, adaptei-me o melhor que
pude aos costumes desta nova terra, fiz amizade com os seus habitantes,
até delineei uma carreira dentro dos seus confins. Tinha construído uma
casa no seu solo, aceitando não só que podia ter de ficar um tempo, mas
que, provavelmente, nunca de lá sairia. Era o mundo exterior, o reino dos
saudáveis, que se tinha tornado estranho e assustador.
Mas, para mim, como para todos os pacientes, a derradeira meta é, um
dia, deixar o reino dos doentes. Em muitas enfermarias oncológicas há
uma campainha que os doentes fazem soar no seu derradeiro dia de
tratamento, um instante cerimonial a marcar uma transição. É o momento
de dizer adeus à fluorescência arrepiante e imutável dos quartos de
hospital. É o tempo de regressar à luz do sol.
É aí que me encontro agora, no limiar entre um velho estado familiar e
um futuro desconhecido. O cancro já não vive no meu sangue, mas
permanece de outras maneiras, dominando a minha identidade, as minhas
relações, o meu trabalho e os meus pensamentos. Despachei a químio,
mas ainda tenho o meu cateter central, que os médicos esperam para
remover, até que eu me tenha “afastado mais da floresta”. Continuo a
perguntar como hei de repatriar-me para o reino dos saudáveis – e nem sei
se alguma vez o conseguirei completamente. Não há protocolos de
tratamento ou instruções de alta que possam orientar esta parte do meu
percurso. O caminho em frente terá de ser definido unicamente por mim.
*

Qual foi a minha primeira, e desaconselhável, etapa de recuperação?


A imolação. Quero incendiar tudo aquilo que ainda me liga ao Will. Quero
cauterizar a minha dor. Quero queimar o meu passado e limpar a terra,
para que possam crescer coisas novas. É assim, penso, que vou começar
de novo.
Para libertar o apartamento do fantasma do Will, queimo raminhos de
sálvia. Elevam-se no ar colunas espessas de fumo. Dou uma disposição
diferente aos móveis, faço com que as divisões pareçam novas. Recolho as
molduras com fotografias de nós os dois e guardo-as no roupeiro. Pego no
édredon que comprámos e atiro-o para o lixo. Se ele me telefona, não
respondo. Apago o número dele.
Quero desesperadamente ser uma rapariga normal de vinte e seis anos.
Como não faço ideia do que é que isso envolve, observo pessoas normais
com a minha idade, à procura de pistas. Um pouco menos de um mês
depois do Will ter saído de casa, a minha amiga Stacie, que é cantora,
convida-me para a ir ouvir ao elegante NoMad Hotel. Não há parte
alguma de mim que queira socializar, mas obrigo-me a ir. Mexo no cabelo
e procuro dar-lhe um ar um bocadinho menos pós-químio e mais punk.
À última hora, convido um velho amigo a vir comigo, alguém que me
conhece desde muito antes de eu estar doente. É um músico de jazz
chamado Jon.
Quando chego ao hotel, o Jon já está no átrio à espera. A nossa amizade
vem da adolescência, conhecemo-nos num campo de férias do liceu.
Nessa altura, o Jon era alto, magro e desajeitado, com aparelho nos dentes
e roupas largas que lhe assentavam mal, tão tímido que era quase mudo.
Transformou-se muito. Agora, com o seu sotaque arrastado de Nova
Orleães, as mãos virtuosas de pianista e um estilo impecável, tem o género
de presença magnética que, numa sala, faz virar cabeças e concentrar
atenções. Alto e elegante, vestido impecavelmente de fato e com botas de
cabedal, está tão giro que me surpreende. A pele, de um castanho-mel
escuro, parece luminosa e as feições – aqueles lábios, o nariz aquilino e os
ombros largos – dão-lhe o ar majestoso de um príncipe. O Jon vê-me do
outro lado do lobby e eu vacilo um bocadinho sob o seu olhar enquanto
caminho ao encontro dele.
Apanhamos o elevador para o segundo andar e entramos num clube
pequeno, tipo cabaré, com papel de parede decorado e mesas iluminadas
com velas. A Stacie, com um vestido vermelho comprido, entra em palco
quase logo a seguir. Quando sussurra para o microfone, a voz dela envolve
em sedução a sala escurecida. O Jon e eu estamos sentados num dos lados,
num belíssimo sofá de pele. Já não nos víamos há mais de um ano e temos
muita conversa para pôr em dia. As primeiras coisas que me pergunta são
pela minha saúde e pelo Will. Quando lhe digo que já não estamos juntos,
parece espantado.
– Vocês pareciam tão… sólidos – diz.
– Foi melhor assim – respondo com uma indiferença deliberada,
ignorando as últimas quatro semanas que passei no chão da cozinha.
– O que aconteceu? – pergunta-me. Parece mesmo surpreendido.
– A doença desgastou a nossa relação – digo. Se é para encontrar um
culpado, então a doença é o mais fácil de incriminar.
É a primeira vez que tenho de explicar isto a alguém. Faço-o como se
estivesse tudo firmemente no passado, como se já não houvesse nada para
resolver. Quero acreditar que é assim – que distanciar-me da relação com
o Will vai ajudar-me a distanciar-me da doença.
– E tu? – pergunto-lhe, ansiosa por mudar de assunto. – Andas com
alguém?
– Também solteiro – responde.
Ainda não tinha pensado em mim deste modo, como “solteira”.
Tecnicamente é verdade, mas ainda me sinto num limbo. Solteira. Soletro
a palavra em silêncio. Sinto-a estranha na minha língua.
Pelo ar do Jon, também é a primeira vez que ele olha para mim dessa
maneira. Há qualquer coisa a acontecer entre nós, o ar à nossa volta está
carregado de possibilidades. Passamos a outros assuntos, mas a nossa
conversa tocou num ponto sensível e o Jon parece ter de súbito recuado à
sua condição de adolescente tímido e sem graça.
– Qual é o teu desporto favorito? – pergunta-me a partir do nada,
baloiçando-se nervosamente no sofá, para trás e para a frente.
– O meu desporto favorito? – pergunto. Depois de uma pausa, atiro a
primeira coisa que me vem à cabeça. – Basquetebol, penso eu.
– Boa, também eu! Mais outra coisa que temos em comum! – O Jon diz
aquilo com tanto entusiasmo que não consigo deixar de me rir.
Embora conheça o Jon há metade da minha vida, parece que estamos
num blind date. É um momento desajeitado. Incrivelmente desajeitado.
Aceno ao empregado e peço um cocktail. Quando a bebida chega, dou
grandes goles. Com o avançar da noite, vou descontraindo um pouco e o
Jon parece recuperar da timidez. A música passa do jazz a uma batida de
baixo cadenciada e em breve toda a sala está a conversar, a rir e a levantar-
se para ir dançar. A Stacie vem ter connosco e outras amigas também.
Quando Jon não está a olhar dão-me cotoveladas, incentivam-me e dizem
que está na altura de me lançar outra vez “no mercado”. Pela primeira vez
desde que saí do hospital sinto-me até certo ponto humana, até atraente.
Já passa bem da meia-noite. Há uma eternidade que não saía até tão
tarde, mas não quero que a noite acabe. Quero que esta sensação me siga
até casa – preciso que ela me acompanhe. O Jon e eu ficamos um bocado
à conversa no passeio. Quando ele se despede com um beijo na cara, sinto
uma descarga. Lá bem no fundo, uma parte de mim sabe que não estou em
posição de pensar em mais do que amizade. É um breve momento de
consciência sobre o estado das coisas: A minha vida pessoal está uma
desgraça. O meu corpo está uma desgraça. Eu estou uma desgraça.
A minha doença deixou imensos danos colaterais à sua passagem. Só que
admitir essa devastação significa ter de lidar com ela, e eu não me sinto
com força suficiente para isso – nem agora, nem em breve. Mas, logo a
seguir, essa consciência das coisas passa – e já me vejo do outro lado.
Talvez as coisas não estejam tão más. Talvez andar com outras pessoas
faça parte do processo de seguir em frente. O meu espírito faz tudo o que
pode para evitar enfrentar a situação – confunde-se e contradiz-se até eu já
não ser capaz de distinguir o que é real do que não é; convence-me de que
estou bem quando, na verdade, não podia estar mais longe disso.
Não passa muito tempo até o Jon e eu conversarmos ao telefone quase
todas as noites, às vezes horas a fio. Ele anda em digressão com a sua
banda, mas, umas semanas depois, quando regressa à cidade, convida-me
para uma saída a sério – espetáculo de humor e jantar. A seguir, leva-me a
casa e beija-me – desta vez, na boca. A perspetiva de começar uma vida
nova parece muito menos aterrorizante com alguém ao meu lado.
Eu gosto de tudo no Jon. Gosto da maneira como o seu cérebro fervilha
com um milhão de ideias e de como os seus dedos correm pelas teclas do
piano. Gosto da sua ambição galáctica, que me faz querer expandir o
âmbito da minha própria ambição. Gosto do facto de ele manter a sua
energia ilimitada sem cafeína, o seu equilíbrio sem álcool, a sua sanidade
sem substâncias. Mas, mais do que tudo, gosto da maneira como me sinto
quando estou ao pé dele. O Jon trata-me como uma pessoa saudável,
normal, capaz – como a miúda indomável e malcomportada que eu era aos
treze anos, quando nos conhecemos. Trata-me como se eu nunca tivesse
estado doente e, embora isso não se conjugue necessariamente com a
maneira como eu me sinto, ou me vejo, faz-me querer desempenhar esse
papel. Durante um tempo, é mesmo isso que faço; e desempenho-o tão
bem que quase me engano a pensar que é a realidade.
Não sou capaz de o admitir a mim mesma, mas sou tão seduzida pelo
Jon como pela ideia de que uma nova relação apressará o meu regresso ao
reino dos saudáveis. Nas semanas seguintes, todo o tempo para estar com
ele foi pouco. Acompanhei-o em digressão um par de dias. Passeámos de
mãos dadas por cidades desconhecidas, a conversar durante horas seguidas
e a fazer declarações tímidas em bancos de jardim. Ficávamos toda a noite
acordados com os amigos dele, a saltar de clube de jazz em clube de jazz
até de madrugada. Nunca mostrei o meu cansaço, nunca disse que não,
decidida a provar que era capaz de estar como outra pessoa qualquer.
Mas, de regresso a Nova Iorque, ao passarmos a nossa primeira noite
juntos no meu apartamento, sentia-me trémula e insegura como um
cordeirinho. Uma coisa era a intimidade com o Will, que foi testemunha
de como o meu corpo passou pela metamorfose da doença; outra coisa,
completamente nova, era a intimidade com alguém de fora, com um civil.
Quando nos despimos, sinto-me exposta e insegura. O meu corpo revela
uma história diferente daquela que tenho contado: perdi quase dez quilos
com os vários episódios de C. diff., e as minhas costelas estão espetadas
na pele fina. Os meus braços estão cobertos por nódoas negras e marcas de
agulhas da medicação intravenosa, de injeções e de análises ao sangue. Há
cicatrizes a marcar o meu pescoço e o meu peito por causa dos múltiplos
cateteres que tive durante anos. E há o cateter venoso central implantável,
o meu port: sim, ainda o tenho.
É uma peça plástica redonda por baixo de tecido cicatrizado nodoso, vê-
se de uma forma evidente acima da minha mama direita e é duro ao toque.
Não sei se deva explicar ao Jon porque é que ainda o tenho, ou esperar que
ele, por acaso, não dê por isso no quarto às escuras. Há tantas coisas que
ele não sabe. Se tudo se tornar mais sério entre nós, terei de aflorar, entre
tantos outros, esses temas supremamente sexy que são a infertilidade e a
menopausa provocada pela quimioterapia. Só a perspetiva destas
conversas é suficiente para pensar seriamente na hipótese de celibato.
Inspira, expira. Não sei como fazer isto.
O Jon desliza um dedo desde os meus lábios ao meu pescoço e ao
remoinho de cicatrizes que tenho no peito. Inclina-se, toca ao de leve com
os lábios no meu port e diz: “És a mulher mais bela que já vi.”
*

A sensação desse verão é a de me apaixonar, não só pelo Jon, mas pela


promessa de uma vida diferente. Só há um problema: estou a edificar esta
nova existência sobre os alicerces da antiga, que estão desmoronados. No
fim de agosto, depois de não nos vermos há muitas semanas, o Will e eu
combinamos encontrar-nos. Vamos buscar cafés gelados ao nosso lugar
favorito para tomar o pequeno-almoço, do outro lado da rua, e instalamo-
nos no terraço do meu prédio.
– Preciso de te contar uma coisa – digo-lhe, quando nos sentamos a uma
mesa de piquenique.
– Também eu, mas começa tu – responde ele, sempre cavalheiro.
Encontrei-me com ele com a ideia de lhe contar sobre o Jon. O anúncio
não surgiria do nada. No início do verão, avisei o Will que estava a pensar
sair com outras pessoas, mas ele não era parvo – sabia muito bem que
“outras pessoas” queria dizer o Jon. Eu contara-lhe que tínhamos saído
umas vezes e lembro-me de o Will dizer “Quando estiveres farta do
namorado de substituição, avisa-me.” Parecia absolutamente confiante de
que não passava de uma atração temporária. A observação irritou-me, em
parte porque o Will não pareceu importar-se tanto como eu esperava e em
parte porque muitos dos pressupostos dele estavam certos – sobre a minha
raiva para com ele, sobre a minha incapacidade para estar sozinha. Mas,
desde aí, o que começara como uma substituição tornara-se numa relação
com sentido e senti que o Will merecia saber a verdade.
Tinha ensaiado na minha cabeça toda a manhã como é que lhe ia contar,
dizendo a mim mesma que o Will entenderia, se eu encontrasse as
palavras certas e as dissesse na perfeição. Seríamos capazes de nos
perdoar um ao outro e de encontrar uma maneira de terminar a nossa
relação, talvez até de lançar as bases para uma amizade duradoura. Mas
agora, frente a frente com o Will, é difícil manter a negação. Os meus
olhos saltam do rosto dele para o chão e voltam a subir. Qual é a verdade?
A verdade é que nossa situação é muito mais complicada do que eu
imaginei. Quero acreditar que acabámos, mas, no entanto, continuamos
profundamente envolvidos. O Will ainda é quem ainda está como
“contacto de emergência” em todos os meus documentos médicos, ainda é
a primeira pessoa a quem quero telefonar quando estou a sentir-me doente,
triste ou assustada. Mas o que estou prestes a dizer-lhe vai tornar a nossa
separação total e irrevogável e, por um momento, não sei se é isso que
quero.
Tento reunir a coragem para falar e faço uma contagem decrescente na
cabeça – três, dois, um… –, mas, quando finalmente formo as palavras, as
minhas explicações sensíveis e cuidadosamente ensaiadas evaporam-se.
O que lhe digo é isto: “É preciso que saibas que estou numa relação e que
é a sério.”
Os olhos azuis do Will estilhaçam-se. Quando vejo o choque alastrar no
seu rosto, sinto-me horrorizada por mim mesma. A negação permite-nos
funcionar num vazio, sem termos de pensar nas implicações das nossas
ações na nossa vida e na de outros. A dor no rosto dele deixa-me agoniada.
Mas também há uma parte vergonhosa de mim que se sente gratificada.
Existe um qualquer plano subconsciente, distorcido, no qual tenho estado
a desejar que o Will sinta um pouco da dor que eu tive quando ele saiu de
casa. Quero provar que não sou só a rapariga carente e impotente que me
sinto quando estou na presença dele. Quero que ele saiba que há outros
que me consideram desejável. Mas, até mais do que isso, quero que o
rosto dele, em toda a sua dor, valide aquilo por que eu anseio há muito:
uma prova de que ele ainda se interessa por mim.
O Will fica muito tempo em silêncio. Quando se recompõe, o olhar
endurece. Por fim, quando fala, diz-me que, depois de tudo aquilo que ele
sacrificou, eu sou uma traidora e uma cobarde por desistir de nós tão
depressa. Ninguém alguma vez me amará ou cuidará de mim como ele
fez, afirma. Seja como for, ele não acredita nesta minha nova relação.
Avisa-me de que, quando eu finalmente der conta do que se passa,
lamentarei os meus atos.
– Sabes o que é que tem piada? – pergunta-me. – Hoje vim aqui para te
dizer que estava pronto a voltar para casa, a dar outra hipótese à nossa
relação. Mas fizeste com que isso seja impossível.
– Como é que te atreves… – sussurro-lhe, irritada. – Não podes deixar-
me quando eu estou doente e voltar a entrar na minha vida quando
finalmente estou a ficar bem.
– Fixe, então acho que está tudo dito. Boa sorte para ti e para o meu
substituto – responde o Will, esticando os braços acima da cabeça e
bocejando de uma maneira exagerada.
Nós os dois tínhamos partido de pressupostos fatais: eu nunca acreditei
que ele se fosse embora quando lhe fiz o ultimato; o Will nunca pensou
que, depois de ir, eu seguisse em frente com a minha vida. Mas agora não
há como desfazer o que já aconteceu. Nenhum de nós consegue ignorar as
traições do outro. Estamos ambos magoados, mas a fingir-nos
indiferentes. Somos os dois demasiado orgulhosos para pedir perdão – ou
para perdoar.
Depois de o Will se ir embora, fico muito tempo no terraço. Sinto-me
desorientada e insegura em relação a tudo: o céu, os pombos, o apito das
sirenes ao longe. Mais do que tudo, estou insegura de mim. E, no entanto,
há uma coisa de que tenho a certeza: por muito que não seja capaz de
imaginar uma vida sem o Will, também não me imagino a continuar com
ele. Temos os dois de nos libertar desta codependência – dos nossos
velhos papéis como cuidador e doente –, mas não nos vejo a conseguir
isso juntos, pelo menos não em breve. Para conseguirmos forjar novas
identidades, temos de seguir caminhos separados.
Mesmo assim, estou espantada pela rapidez com que deixámos de ser
um casal, completamente envolvidos um com o outro e apaixonados, e nos
tornámos dois estranhos entrincheirados na dor e na raiva pessoais.
Quando iniciamos o processo de desmontar aquilo que resta de nós, a
sensação não é tanto a de uma etapa final de uma separação e mais a do
início de um divórcio arrastado e doloroso. O Will devolve as chaves do
apartamento. Fechamos a conta conjunta e cancelamos o plano telefónico
familiar. Dividimos bens que partilhávamos e, embora nunca lhes
tivéssemos pedido que o fizessem, os nossos amigos e famílias também se
dividem.
Quanto ao Oscar, concordamos numa custódia partilhada, segundo a
qual eu tomo conta dele durante a semana e o Will aos fins de semana.
Nas primeiras vezes, o Will toca à campainha e entra em casa para levar o
Oscar. Até que, um dia, repara nuns ténis Air Jordan de tamanho 47 no
armário da entrada. Depois disso, combinamos encontrar-nos em território
neutro para fazer a troca. Mas, rapidamente, o Will começa a não aparecer
aos fins de semana. Acaba por confessar que lhe custa muito. Também ele
precisa de seguir em frente.
Seguir em frente. É uma expressão que me obceca: o que quer dizer, o
que não quer, como é que realmente se faz. Ao princípio parecia fácil,
demasiado fácil, e começa a instalar-se em mim a ideia de que seguir em
frente é um mito – uma mentira que contamos a nós mesmos quando a
vida se tornou insuportável. É a ilusão de que é possível erguer uma
barricada entre nós e o nosso passado – de que somos capazes de ignorar a
nossa dor, de que conseguimos enterrar o nosso grande amor com uma
nova relação, de que pertencemos ao grupo daqueles poucos felizardos
que conseguem evitar o difícil trabalho que é fazer o luto, encontrar a paz
e reconstruir a partir daí – e que tudo isto, quando nos tocar, não nos vai
deitar abaixo.
*
Quando o verão se torna outono, começo a ficar impaciente com o meu
port, o último vestígio de cancro que posso tocar e ver no meu corpo.
A minha equipa médica insiste: é melhor mantê-lo até terem a certeza
absoluta de que não vão precisar mais dele. Mas eu quero poder vestir o
que me apetecer sem me preocupar com os olhares das pessoas para o
bizarro disco saliente que aparece por baixo da clavícula. Quero libertar-
me daquilo que sinto como a última barreira entre mim e a normalidade.
No meu exame seguinte no Sloan Kettering, puxo outra vez o assunto.
Afinal, já passaram cinco meses desde o meu último dia de químio. Desde
então já tive imensos pequenos sustos – de que resultaram três
colonoscopias e três endoscopias, um ou outro raio-X e uma biópsia à
medula óssea depois de uma queda alarmante e misteriosa na minha
contagem sanguínea – mas, em geral, a minha saúde tem permanecido
relativamente estável. Depois de debaterem o assunto, os meus médicos
concordam e marcam uma data na semana seguinte para retirarem a peça.
É um voto de confiança na minha capacidade não só para ser saudável,
mas para me manter saudável. Fico radiante.
Numa sexta-feira do final de outubro, o Jon e eu vamos ao Sloan
Kettering para o procedimento. Depois de ver em primeira mão como é
que a doença pode desgastar uma relação, tentei distanciá-lo de tudo o que
era clínico. Até escondo a caixa de comprimidos sempre que ele fica em
minha casa e tomo-os quando ele não está por perto. Não espero nem peço
muita coisa – dei cabo da minha última relação por precisar de demasiado
–, mas as regras do hospital obrigam à presença de um acompanhante para
me levar a casa.
– Aqui estão as máscaras e as luvas – explico ao Jon na sala de espera. –
Sim, também precisas de as usar; é para proteger os outros doentes que
têm sistemas imunitários enfraquecidos.
É estranho explicar-lhe coisas que para mim constituem uma segunda
natureza. Vou sempre olhando para ele, analisando a sua linguagem
corporal, à procura de sinais de que isto do cancro o deixa em pânico, mas
ele parece impassível.
Aparece uma enfermeira e faz-me umas perguntas prévias antes de me
conduzir à sala de operações. Entre as questões habituais – que
medicamentos está a tomar? Tem sintomas novos? Dores? –, introduz
algumas novidades.
– Estou a ver aqui nas notas que a sua última hospitalização foi por C.
diff. e possível DEcH nos intestinos – diz. – Continua a sentir enjoos
frequentes? Quantas vezes por dia vai à casa de banho? E a consistência
das suas fezes? Ainda mole?
Estou tão envergonhada nesta altura que até sinto impulsos assassinos,
mas o Jon, se está repugnado, não o mostra. Quando chega o momento de
me levarem, beija-me por cima da máscara e diz-me que estará lá quando
eu acordar.
Na mesa de operações, estou deitada, com uma bata hospitalar sem
costas, sob um clarão de luzes fluorescentes.
– Parabéns! – diz-me o cirurgião quando entra. – Dizem-me que hoje
vai ser deportada.
Está a fazer um trocadilho com a remoção do meu port, claro – o portão
por onde passaram dezenas de sessões de quimioterapia, antibióticos,
células estaminais e transfusões de sangue e de imunoglobulina que
entraram no meu corpo desde o diagnóstico. De certeza que já fez esta
piada dezenas de vezes, é uma rotina para fazer os doentes sorrirem. Por
duvidoso que o jogo de palavras seja, a verdade é que a sensação daquele
momento é mesmo a de uma expulsão oficial, um procedimento final que
me depositará com firmeza no reino dos saudáveis.
Colocam-me sobre o rosto uma máscara de anestesia e pedem-me que
comece no dez e conte para trás.
– Vemo-nos do outro lado – diz o cirurgião, antes de eu seguir à deriva
para um sono profundo e químico.
*

Acordo quarenta e cinco minutos depois na sala de recobro. Os meus


terminais nervosos agitam-se e formigam enquanto vou emergindo do
crepúsculo. As pálpebras abrem-se, as pupilas rolam pelo quarto como
berlindes, não percebo muito bem onde é que estou e porque é o Jon, e
não o Will, que está sentado na cadeira ao lado da minha cama. Depois
vejo a ligadura no peito e lembro-me do que aconteceu. Em vez de alívio,
sinto perda por ter ficado sem o port – e penso que as visitas ao Sloan
Kettering serão agora menos e mais espaçadas e que não vou ver tantas
vezes as minhas enfermeiras e médicos preferidos. Esta tristeza é o
começo de qualquer coisa demasiado complexa e desconfortável para eu
ser capaz de a perceber imediatamente. Por isso, atribuo-a aos efeitos da
anestesia.
Nessa noite, o Jon sugere uma saída, para celebrarmos. Ainda me sinto
em baixo, mas faço um esforço. Vestimo-nos e vamos a uma gala no
Apollo Theater. O Jon, que se tornou uma espécie de celebridade entre a
elite cultural do Harlem, está sempre a ser levado da nossa mesa por
pessoas que querem conversar ou tirar uma selfie com ele. Fico sozinha
uma boa parte da noite, a beber golinhos de chardonnay. Num dado
momento, a ligadura que tinha no peito solta-se, desce pelo vestido e
passa pelo umbigo antes de cair no chão. Dou-lhe um discreto pontapé
para debaixo da mesa, um espaço tapado pela toalha, e olho à volta para
ver se alguém reparou. Os pontos, sem proteção, frescos e em carne viva,
roçam no tecido do vestido. Tento ignorar a dor enquanto observo pares
que dançam, a rodopiar no chão de quadrados pretos e brancos, mas não
consigo. A visão das mulheres de vestido e dos homens de smoking a
brilhar sob uma bateria de luzes brancas faz com que as margens da sala,
onde estou sentada, pareçam mais sombrias, de algum modo mais
solitárias. Ao levar a mão à cara, fico espantada ao constatar que tenho a
pele pegajosa. Lágrimas misturadas com rímel caem-me pelo rosto em
gotas grandes e escuras.
– O que se passa? – pergunta o Jon, assustado, quando volta. É uma
pergunta que ele me fará repetidamente nos meses seguintes, chocado por
descobrir que a mulher feliz, confiante e pronta a tudo, pela qual se
apaixonou, não passa afinal de alguém que só tem a pretensão de ser isso.
– Estou bem – é a minha resposta.
Mas o que lhe quero dizer, sem saber que palavras usar é: “O meu port
foi retirado, mas não desapareceu. A ausência dele é um novo tipo de
presença, é um exemplo de todas as outras marcas da doença com as quais
ainda tenho de lidar. A devastação que os tratamentos causaram ao meu
cérebro, ao meu corpo, ao meu espírito. O preço de enterrar amigos
mortos uns a seguir aos outros e a dor que se tem acumulado em mim,
sem eu fazer nada quanto a ela. O desgosto de perder o Will e o medo de
ter cometido um erro ao não o aceitar de volta. O terror e a confusão total
que sinto quanto ao que farei a seguir.”
Ao fim de três anos e meio, estou oficialmente livre do cancro – se
contarmos com a comichão, foram mais de quatro anos. Pensei que,
quando chegasse a este momento, me sentiria triunfante. Pensei que ia
querer festejar. Mas, em vez disso, a sensação é a do início de um novo
tipo de ajuste de contas. Passei os últimos mil e quinhentos dias a
trabalhar sem descanso para um objetivo único – sobreviver. E agora, que
sobrevivi, estou a perceber que não sei como viver.
*

A jornada do herói é uma das mais antigas narrativas da literatura. Os


sobreviventes, como os heróis, enfrentaram um perigo mortal e passaram
por provações impossíveis. Desafiando todas as probabilidades,
perseveram, tornam-se melhores e mais corajosos com as suas cicatrizes
de batalha. Quando asseguram a vitória, regressam ao mundo banal
transformados, com uma sabedoria acrescida e com uma admiração
renovada pela vida. Nos últimos anos, fui bombardeada com esta narrativa
– em livros e em filmes, em campanhas de angariação de fundos e em
cartões a desejar as melhoras. É difícil não comprar estes clichés quando
eles se tornaram tão profundamente enraizados na cultura. Até pode ser
mais difícil não os interiorizar e sentir que é preciso estar à altura deles.
No outono, faço tentativas para viver esta narrativa, para regressar à
vida da maneira mais triunfante possível. Arrasto-me até ao ginásio na
cave do meu prédio um par de vezes por semana – o que é uma proeza, até
para a pessoa que eu era antes da doença. Compro uma batedeira e durante
um curto período obrigo-me a beber sumos detox de couve que me dão
vómitos. Todas as manhãs vou ao café da rua e tento escrever qualquer
coisa nova. Tenho momentos de riso e de descontração quando saio para
dançar com amigos, mas são breves e desaparecem tão depressa como
aparecem.
Mas é suposto estar melhor, repito incessantemente a mim mesma.
Afinal de contas, no papel, já não sou considerada doente. A torrente de
consultas, análises ao sangue e telefonemas de familiares e amigos
preocupados comigo abrandou e quase parou. Um dia destes, já nem ao
subsídio de incapacidade terei direito. Se conseguir ficar livre do cancro
mais alguns anos, até posso juntar-me às fileiras dos sobreviventes da
doença que são considerados “curados”. E, no entanto, nunca me senti
mais distante da rapariga saudável e feliz que esperava ser quando
passasse para o outro lado disto tudo.
Ainda engulo todas as manhãs uma mão cheia de comprimidos. Os
imunossupressores impedem que o meu corpo rejeite a medula do meu
irmão. Duas doses diárias de antivirais e antibacterianos protegem o
sistema imunitário frágil. A ritalina combate a fadiga crónica e a confusão
que nunca passaram desde o transplante. A levotiroxina faz as vezes da
minha tiróide, que a químio destruiu. E as hormonas de substituição
cumprem a função dos meus ovários secos.
Piores são as marcas psicológicas, na maior parte invisíveis aos outros e
para as quais não há soluções fáceis. A depressão abate-se como um
demónio, mantém-me prisioneira dias a fio, às vezes semanas. A angústia
surge quando aguardo os resultados de umas análises de rotina ao sangue.
O pânico domina-me de cada vez que vejo que tenho uma chamada não
atendida do consultório do médico ou descubro uma nódoa negra na parte
de trás do calcanhar. A dor continua a assombrar-me: no sono, noite após
noite, os olhos verde-Nilo da Melissa flutuam pelos meus sonhos.
Quanto mais tento encontrar o meu lugar entre os saudáveis, e viver de
acordo com as minhas expetativas da jornada do sobrevivente, mais sinto
uma dissonância entre aquilo que devia ser e aquilo que é.
Até reconhecer esta divisão parece impossível: já fiz os meus pais
passarem por tanta coisa que não quero preocupá-los com os desafios que
enfrento agora. Quanto à minha equipa médica, está focada no cancro, não
no que vem a seguir. Dolorosamente consciente de que as batalhas da
recuperação são um privilégio que muitos não chegam a ter, tenho medo
de parecer ingrata – ou, ainda pior, insensível aos que têm de lidar com
desconhecidos muito mais assustadores.
Mas as contradições deixam-me atolada em perguntas sem resposta:
O meu cancro reaparecerá? Que tipo de emprego posso ter, quando
preciso de dormir quatro horas a meio do dia, ou quando o meu sistema
imunitário defeituoso ainda me leva regularmente às urgências? A minha
editora está a aumentar a pressão para eu recomeçar a coluna; insiste que
os leitores querem saber como é que eu estou, querem saber sobre a vida
depois do cancro. Mas sempre que me sento para escrever, só me saem
mentiras. Quero dar aos leitores o tipo de desfecho pelo qual eles e eu
esperámos todos estes anos – ser capaz de lhes dizer que o Will e eu ainda
estamos juntos; que o nosso casamento, tanto tempo adiado, está
finalmente em marcha; que estou agora a treinar para correr uma
maratona; a escrever peças de investigação a partir de locais distantes; e a
ter um filho. Mas, claro, isso seria ficção.
Incapaz de reconciliar aquilo que eu imaginei que seria a remissão com
os factos da minha realidade, coloco a coluna num hiato permanente.
Financeiramente, mantenho-me à tona graças a algumas conferências que
me pedem e a um emprego em part-time numa imobiliária, que posso
fazer remotamente, da cama, mas o trabalho nem é sustentável nem é
realizador. Mal vejo amigos e, quando isso acontece, preparo-me para as
três perguntas tão temidas: como vai a minha saúde? Que se passou com o
Will e comigo? Que vou fazer a seguir? Acabo por deixar de sair de todo.
Entretanto, a carreira do Jon está a explodir. Ele sempre foi a pessoa
mais trabalhadora que eu alguma vez conheci e tenho um imenso orgulho
no seu êxito, mas é duro estar numa relação com um músico em digressão
que passa mais tempo na estrada do que em casa. Ainda não me sinto em
segurança no meu próprio corpo sem um companheiro ou um cuidador ao
meu lado e quando estou sozinha entro em descompensação. Mas, ao
mesmo tempo, quando o Jon está mantenho-o à distância. Estas
mensagens mistas são confusas e em breve ele começa a querer mais.
Quer saber para onde vai a nossa relação. Quer saber o que penso de
casamento e de filhos. Quer que eu me abra. Mas quanto mais perguntas
ele faz, mais se alarga o fosso entre nós.
Quando o Jon sai da cidade para ir tocar, eu atiro-me para a cama,
exausta pelo esforço de fingir que estou bem. Puxo o edredão por cima da
cabeça e enrolo-me na minha posição habitual: fetal. Choro à vontade –
com soluços feios, que me sacodem. Fico assim na cama dias seguidos,
com as cortinas fechadas, ignoro emails e telefonemas e só saio do
apartamento quando o cão chora. Adormeço todas as noites dizendo que
amanhã será o dia em que componho as coisas. Acordo todas as manhãs
tão triste e perdida que mal consigo respirar. Nos piores momentos,
fantasio que vou adoecer outra vez. Falta-me o sentido de propósito e a
lucidez que tinha quando estava em tratamento – a forma como olhar nos
olhos a nossa mortalidade simplifica as coisas e orienta o nosso foco para
o que realmente importa. Sinto a falta do ecossistema do hospital. Lá,
estava tudo avariado, como eu, mas aqui, entre os vivos, sinto-me uma
impostora, esmagada e incapaz de funcionar.
*

Nesse inverno, numa manhã cedo, estou a passear o Oscar, com o olhar
desolado e zombie de alguém que divide o tempo entre a Terra e um outro
lugar qualquer, mais sombrio. Quando subo a Avenida A, vou de encontro
a um homem que reconheço vagamente do café do bairro onde muitos
freelancers se sentam a trabalhar – penso que é um romancista. Está
vestido com elegância, com um sobretudo de tweed com cotoveleiras de
cabedal e leva uma pasta. Eu estou de pijama e a fumar um cigarro avulso
que comprei na loja da esquina por 50 cêntimos.
– Acorda, princesa – diz-me ele, olhando-me de cima a baixo. – A morte
é o último recurso.
Sinto uma vergonha tão grande, ali, no meio da rua, sob o olhar fixo
dele e debaixo do brilho branco do sol de inverno. Passei a melhor metade
dos meus vinte anos a lutar para sobreviver, e acabei por me tornar uma
pessoa tão derrotada que até merece um comentário na rua de um estranho
preocupado. Enquanto estava em tratamento, tinha somente uma
convicção simples: Se sobreviver, tem de ser para alguma coisa. Não
quero apenas uma vida – quero uma vida boa, uma vida aventurosa, uma
vida com significado. Se não for assim, de que vale? E, no entanto, este
lugar onde cheguei é o oposto. Agora, que me foi permitida a
possibilidade de uma vida boa, não estou a vivê-la – pior, estou a esbanjá-
la. A culpa acumula-se com a vergonha: sei a sorte que tenho por estar
viva, quando tantos que eu amo não estão. Dos dez jovens camaradas de
cancro com quem fiz amizade no hospital, só cá estamos três.
Ao caminhar para casa, torna-se claro: não posso continuar assim.
Alguma coisa tem de mudar – ou talvez tudo.
26

RITUAIS DE PASSAGEM

Há em nós o impulso de situar a origem de uma decisão monumental –


como, por exemplo, empreender uma longa viagem – numa única
epifania, num clarão inspirador. Esse plano de ação chega-nos já
perfeitamente definido, quando estamos deitados no chão, a rezar para que
alguém, ou qualquer coisa, mude.
Eu não tenho um momento desses.
A decisão de sair de casa e de me lançar estrada fora chegou-me por
etapas, mas começou com uma viagem que fiz por outra pessoa.
*

No dia do primeiro aniversário da morte da Melissa e do fim da minha


químio, estou numa fila para entrar no aeroporto internacional John F.
Kennedy, à espera que a segurança não vasculhe a minha mala. Com um
nome como o meu, Suleika Jaouad, não é propriamente invulgar ser
parada em fronteiras e na segurança dos aeroportos, mas, por uma vez,
tenho mesmo qualquer coisa a esconder. Enfiei na mala, embrulhado num
par de meias, um frasco de pó cinzento-esbranquiçado. Não se trata do
contrabando típico: o que acontece é que estou a transportar algumas
cinzas da Melissa num voo de quinze horas para a Índia.
Quando a Melissa morreu, os pais criaram uma bolsa com o nome dela
para proporcionar a jovens adultos com cancro uma viagem ao
estrangeiro. Não pensei duas vezes antes de aceitar a primeira bolsa – nem
quando os pais da Melissa me pediram para levar um pedacinho dela até à
Índia. Foi um lugar que teve um enorme significado para ela quando lá
esteve – e era para onde ela esperara viajar comigo um dia. A minha
decisão de ir à Índia é uma forma de celebrar a Melissa e essa viagem que
acabou por nunca acontecer. Também é um primeiro exercício para
confrontar os meus fantasmas.
Não foi fácil convencer os médicos a deixarem-me ir, por causa do meu
sistema imunitário débil. “O risco de uma infeção grave é demasiado
elevado”, disse o meu médico quando lhe falei na ideia pela primeira vez.
Mas ele acabou por ceder e, aos poucos, começou a retirar-me
imunossupressores, para o meu corpo poder repelir germes. Tive de fazer
uma série de vacinas, realizar uma bateria de análises ao sangue e obter
luz verde de todos os especialistas da equipa a confirmar que estava bem
para fazer a viagem.
Quando entro no avião da Air India, coloco uma máscara na cara e
esterilizo o banco, os braços e o tabuleiro com toalhetes antisséticos. Mas,
apesar das precauções, adoeço com um vírus poucos dias depois de chegar
a Deli. Ando fraca e febril na maior parte das duas semanas que lá passo, e
acabo por ter de ir a um hospital local para confirmar que não é nada de
grave. Começo a compreender que, por mais tempo que passe, o meu
corpo pode nunca recuperar completamente e regressar àquilo que foi – ou
seja, que não posso continuar à espera de estar “suficientemente bem”
para começar outra vez a viver. É uma admissão amarga, mas necessária.
Pode não ser possível “deixar para trás” a doença, mas tenho de começar a
tentar avançar com ela.
Mesmo sentindo-me péssima, arrasto-me todos os dias para fora da
cama e saio para explorar. Num bolso do casaco, guardo o frasco com as
cinzas da Melissa e ando com ele para todo o lado, sentindo a sua
presença a cada passo. Exploramos juntas as ruas poeirentas de Deli: os
intensos mercados de especiarias, as galerias de arte contemporânea e os
extensos jardins pontuados por ruínas. Andamos de riquexó por entre um
emaranhado caótico de autocarros, bicicletas e, de vez em quando, um
elefante. Enquanto deambulamos, assumo o olhar de pintora da Melissa e
admiro os tons vibrantes – os saris com cores de pedras preciosas, as
bancas de flores cheias de calêndulas e os pigmentos em Technicolor
atirados ao ar, às mãos cheias, pelos que celebram, a dançar, o festival
hindu de Holi. Tal como a minha bolsa determina, faço todas as tardes
trabalho voluntário no sanatório da Madre Teresa para os destituídos:
penduro roupa lavada em cordas feitas de arame de capoeiras e distribuo
aos acamados tabuleiros com refeições.
Guardo o Taj Mahal para o fim. Há duas semanas que transporto comigo
a Melissa e chegou a hora de me despedir. Chego uma manhã antes de o
sol nascer. Só há uma dezena de turistas em fila, à espera que o portão
abra. As ruas estão escuras e desertas, tirando uma cadela vadia que dorme
no meio da estrada com os cachorrinhos encostados a ela para se
aquecerem. Digo ao guia que tenho um frasco de cinzas para espalhar
quando lá estivermos dentro. O guia informa-me que isso é contra as
regras e que a segurança é muito apertada, que eles nunca autorizarão.
Conto-lhe então a história da Melissa e digo-lhe o quanto ela queria
regressar aqui. Quando acabo, o guia não só concorda como se oferece
para ser ele a entrar com o frasco.
O Taj surge como um poema flutuante na alvorada, um sonho branco,
cor da Lua, com pilares e minaretes em mármore. É um lugar que teve um
significado para a Melissa quando ela estava perante o fim da sua vida e,
ao ler a história do monumento, percebo porquê. Foi uma obra
encomendada pelo imperador mongol Shah Jahan para servir de memorial
à mulher, que morreu em 1631 ao dar à luz o décimo quarto filho. Diz a
história que o imperador foi tão tocado pela dor que ficou com o cabelo
grisalho de um dia para o outro. Prometeu imortalizar o amor entre eles
com um edifício mais belo do que qualquer outro que o mundo já tivesse
visto. Levou décadas a construir, mas, quando foi concluído, o imperador
conseguiu encontrar algum consolo. Ao deambular pelos jardins
ornamentais, penso em como o Taj representa ao mesmo tempo amor e
dor. Tal como a minha amizade com a Melissa. Estou a perceber que, na
vida, não se consegue um sem a outra.
Enquanto subo os degraus, vou absorvendo a caligrafia e as peças
semipreciosas – coral, jade, ónix – incrustadas em mármore. Dou a volta
para o terraço na parte de trás, que dá para o Yamuna, um rio sagrado em
cujas margens se vêm e ouvem as chamas dos crematórios onde os hindus
cumprem os últimos rituais devidos aos seus mortos. De olhos fixos no
rio, penso no último post que a Melissa pôs no Instagram. Era uma
fotografia dela na Índia, com a legenda: gate gate paraget parasangate
bodhi svaha. “Ter ido, ido, ido completamente, todos juntos terem ido
para a luz, aleluia.” Percorro o terraço com os olhos, à procura de
seguranças e, quando percebo que a costa está livre, passo por cima do
cordão e vou mesmo até à beira. Abro a palma da mão. Durante um
segundo, a luz brilha no frasco. A seguir ele desliza para a água do rio e
desaparece.
*

Levar as cinzas da Melissa ao lugar de que ela mais gostava não diminuiu
a dor de a perder, mas mostrou-me uma maneira pela qual posso começar
a lidar com a minha mágoa. Revelou-me o papel do ritual no luto – as
cerimónias que nos permitem suportar sentimentos complicados e
enfrentar a perda; que abrem espaço para o ato, aparentemente paradoxal,
de reconhecer o passado como um caminho para o futuro. Leva-me a
pensar sobre as outras formas como marcamos a passagem de limiares,
sejam aniversários, casamentos, batizados, bar mitzvahs e quinceañeras.
Estes rituais de passagem permitem-nos migrar de uma fase das nossas
vidas para outra, impedem que nos percamos no caminho. Mostram-nos
uma maneira de honrar o espaço entre o que já não é e o que ainda não é.
Mas eu não tenho rituais predeterminados. Sou livre de os criar.
Com vários continentes pelo meio, sou capaz de ver a minha vida com
um olhar mais límpido. Há demasiado tempo que sou uma espécie de
abelha aprisionada numa janela, a bater com a testa no vidro, num
desespero crescente, numa tentativa fútil para escapar. As duas últimas
semanas deram-me um alívio temporário, mas receio que assim que voltar
a casa, em Nova Iorque, regresse ao mesmo estado de tristeza e
imobilidade. Sinto que preciso de fazer qualquer coisa de drástico para
garantir que isso não aconteça.
No longo voo de regresso a casa, imagino-me a fazer sozinha uma
peregrinação, mas sem saber qual a forma que ela poderá ter. Quero estar
em movimento – descobrir uma maneira de me tirar do pântano, de me
lançar pelos confins mais vastos do mundo. Não porque tenha uma ânsia
particular por explorar, mas precisamente porque me tornei receosa do
mundo e da minha capacidade para andar sozinha nele. Não quero esperar
nada. Não quero pedir nada. Não quero depender de ninguém. Quero
descobrir o que está do outro lado do lugar intermédio. Quero começar a
viver outra vez.
*
Ainda não possuo a visão, a força ou os recursos para me lançar numa
viagem épica e, por isso, começo a minha jornada com uma série de saídas
curtas, preliminares. Umas semanas depois de regressar a casa, apanho um
comboio para Vermont, onde a minha família tem uma pequena cabana em
madeira perto das Montanhas Green. Nunca me tinha sentido
suficientemente bem para aqui vir sozinha. Mas, agora, aprender a estar
sozinha parece-me ser um primeiro passo necessário para o que vier a
seguir, seja o que for. Preciso de confiar na minha capacidade para ser
independente. Preciso de me tornar a cuidadora de mim mesma. Demorei
algum tempo até ser capaz de dizer que tinha cancro. Depois, durante
muito tempo, fui isso e só isso – uma pessoa doente. Chegou o momento
de descobrir quem sou agora.
A cabana fica mesmo dentro do bosque, não tem rede de telemóvel e a
localidade mais próxima está a vinte e cinco quilómetros, por uma estrada
desolada, que atravessa campos de milho de um amarelo deslavado,
maciços densos de árvores e, de vez em quando, uma quinta. Não conheço
ninguém a não ser uma vizinha, a Jane, que está reformada e vive com o
marido um pouco mais abaixo na estrada de terra, a um quilómetro e
meio. Como continuo sem ter carta de condução, a Jane oferece-se para
me ir buscar à estação de comboio. Leva-me ao supermercado, para poder
abastecer-me de provisões, e deixa-me na cabana, onde fico até a comida
acabar.
– Querida, tens a certeza de que vais ficar bem aí sozinha? – pergunta-
me ela, com a preocupação estampada no rosto. Para além do Oscar, sou
só eu, os veados que comem erva debaixo da macieira e as encostas
íngremes das montanhas à distância.
– Gosto da solidão – respondo-lhe, com um ar de falsa confiança.
A verdade é que tenho pavor do que possa acontecer quando me encontrar
a sós com os meus pensamentos.
Quando a Jane se vai embora, desfaço a mala antes de me sentar numa
cadeira de braços junto da lareira de pedra e de começar a ler. Mas sinto-
me ansiosa e não consigo concentrar-me. O silêncio e o isolamento têm
um efeito de amplificação e vejo mais claramente do que nunca até que
ponto me tornei uma pessoa receosa e frágil. Dou saltos com os barulhos
de pássaros e outros animais, que vêm dos bosques, e a meio da noite
levanto-me várias vezes para confirmar que a porta da frente está fechada
e que não há um serial killer à espreita por trás do poste do alpendre. Na
minha vida a.c. – antes do cancro – eu era uma pessoa teimosamente
independente e tinha orgulho na minha determinação, quer estivesse a
estudar no Egito, a mandar histórias da Faixa de Gaza ou à boleia no
deserto da Jordânia. Muitas vezes, as minhas escapadas já entravam no
domínio da imprudência. Mas viver tanto tempo com uma doença
potencialmente fatal alterou a minha relação com o medo. Treinou-me
para estar em alerta máximo para os incontáveis perigos potenciais que
espreitam, no meu corpo e para além dele.
Sinto-me inquieta e desconfortável em praticamente todos os minutos
desta primeira viagem a Vermont, mas obrigo-me a viver segundo uma
regra: ter medo não me autoriza a ir-me embora. Nos momentos em que só
quero fugir para a cidade, tomo a decisão de ficar mais uma noite, depois
duas, e depois três. Decido acreditar que aquilo que parece desconhecido e
assustador se tornará em breve familiar e seguro. Digo que, com o tempo,
vou cansar-me de ir verificar três vezes se a porta está mesmo fechada ou
de perder o sono por causa de predadores imaginários. Pode mesmo
começar a tornar-se verdade a mentira que disse à Jane – que gosto de
estar sozinha. Ao quarto dia, quando regresso à cidade, ainda não estou
bem nesse ponto, mas vou-me aproximando.
Nos meses seguintes, regresso a Vermont com a maior frequência
possível. De cada vez que vou para a cabana sozinha, começo a sentir um
pouco mais de domínio sobre mim mesma, um tudo-nada mais corajosa,
um pouco mais curiosa sobre tudo aquilo que está para lá da janela. Faço
caminhadas cada vez maiores com o Oscar, que corre à minha frente, me
leva por estradas rurais tortuosas, por entre estábulos em ruínas, correntes
de água borbulhantes e margens atapetadas com musgo cor de esmeralda.
Aprendo a acender a lareira e aventuro-me mais nos bosques, para
encontrar ramos. Um dia, um urso preto entra na propriedade e o Oscar
salta do alpendre e ladra-lhe com a ferocidade de um leão. O urso fica tão
surpreendido que tropeça e cai, depois larga a correr e desaparece para lá
das árvores. “A coragem das crianças e dos animais é uma consequência
da inocência”, escreveu em tempos Annie Dillard. “Deixamos os nossos
corpos seguirem os nossos medos.”
*
Passam-se dias inteiros sem ver uma pessoa que seja. Telefono ao Jon de
vez em quando, mas ele está atarefado, de volta à estrada. Também parece
compreender – sem que eu alguma vez lho tenha explicado – que estou a
empreender uma tarefa que é imensa e assustadora e que aquilo de que
mais preciso é de tempo sozinha. A minha solidão só é interrompida por
visitas esporádicas de um rapaz chamado Brian, que vem para cortar a
erva que cresceu no caminho e, quando o tempo aquece, para ajudar com
o jardim. Um dia, pomo-nos a conversar e, quando ele descobre que eu
não sei conduzir, oferece-se para me ensinar. Em troca das lições, escuto-o
com compreensão, enquanto ele me conta as dificuldades de se assumir
como gay no Vermont rural e as suas várias aventuras numa app gay
chamada GROWLR. Trocamos ideias para o perfil dele. – Tímido, de
barba, 115 quilos, aparência normal. Coração enorme, romântico
incorrigível. Flor favorita: cebolinha – diz o Brian.
– Gémeos, bem apetrechado – sugiro-lhe.
Ele desata a rir.
– Na verdade, sou Leão.
O Brian é o mais próximo de um amigo que tenho por aqui e anseio pela
companhia dele – mas não propriamente pelo momento em que tenho
mesmo de saltar para trás do volante.
Aprender a conduzir foi um momento importante dos tempos do liceu
para a maior parte dos meus amigos que, na manhã do dia em que faziam
dezasseis anos, corriam para o Departamento de Veículos Motorizados
para pedir a licença de aprendizagem. Para eles, e para a maior parte dos
adolescentes norte-americanos, conduzir constituía o ritual de crescimento
definitivo. Queria dizer andar aos beijos, noite fora, no banco de trás do
automóvel, dar boleias aos amigos até ao centro comercial e ir a concertos
em caravana. Era um sinónimo de independência. Mas, para mim,
conduzir soava como uma responsabilidade terrível e esmagadora. Alguns
ensaios desastrosos na carrinha dos meus pais confirmaram o que eu já
suspeitava: se eu não aprendesse de todo, os peões, ciclistas e os outros
condutores ficariam a ganhar. Não foi uma coincidência ter escolhido ir
para a faculdade numa pequena localidade, onde não era necessário ter
carro e, depois de me formar, viver em cidades grandes onde o transporte
por excelência era o metro.
No entanto, estar em Vermont sem carta é mais do que incómodo. Eu
não gosto nada de ter de pedir boleia, isso só me lembra a minha
dependência. Quando fico sem café, ou sem leite, quero poder conduzir os
trinta quilómetros até ao mercado dos agricultores. Não é que tenha
deixado de ter medo, o que acontece é que o medo está aos poucos a ser
suplantado por uma ânsia de liberdade.
Ao longo do verão, o Brian dá-me lições. Aprendo a percorrer as
estradas secundárias e treino o estacionamento em paralelo, entre
pinheiros. À medida que vou ganhando mais confiança ao volante, uma
ideia difusa começa a cristalizar-se num grande projeto. O tempo que
estive na Índia mostrou-me como é que viajar nos pode afastar de velhos
hábitos e criar condições para surgirem outros novos. É cada vez mais
evidente para mim que preciso de sair do que é familiar, mas não quero
fazê-lo completamente sozinha – quero procurar outras pessoas que
possam dar uma perspetiva ao meu dilema, que ajudem a orientar a minha
passagem. Quando, por fim, passo no exame de condução, o passo
seguinte é óbvio: vou partir para a estrada em viagem e visitar os que me
apoiaram quando estive doente.
*

É quase meia-noite e os troncos na lareira estão reduzidos a cinzas, mas


volto a atiçá-los e faço um café. Sentada no chão da cabana, abro uma
caixa de madeira feita à mão, que comprei há muitos anos num antiquário.
Lá dentro estão cartões de aniversário da minha avó, fotografias, bilhetes e
recordações clínicas macabras, como pulseiras e o meu port. Há velhos
envelopes enviados de terras distantes, mensagens amorosas rabiscadas
em guardanapos de bar, convites comprados em papelarias e prints de
emails que já mal se distinguem. Alguns foram-me enviados por pessoas
que conheço bem, como o pai do Will. Ele escreveu-me mais de duzentos
postais – um todos os dias no primeiro interminável verão depois do meu
diagnóstico e um todos os dias depois do transplante, até eu estar bem.
Mas a maior parte foi-me enviada por pessoas que nunca vi.
Diz-se que é nos momentos difíceis que se descobre quem são os nossos
amigos, mas a verdade é que, no essencial, eu descobri de quem é que
gostava de ser amiga. Algumas pessoas com as quais eu pensava que
podia contar desapareceram, enquanto outras que eu mal conhecia fizeram
mais do que eu alguma vez esperei. Fiquei absolutamente siderada pela
atenção destes estranhos – pessoas que liam a minha coluna, autores de
comentários anónimos na Internet, conhecidos de salas de espera de
hospitais e amigos de amigos que eu mal conhecia – que me enviaram
pequenas encomendas com coisas para eu me cuidar e emails bem-
dispostos, mensagens intimistas pelo Facebook e longas cartas escritas à
mão. Eram mais honestos e sinceros comigo do que muitas pessoas que eu
conhecia off-line. Partilhavam as suas próprias histórias sobre o que é ter a
vida interrompida, fosse pelo sobressalto de um diagnóstico ou por um
outro género de trauma ou desgosto. Ensinaram-me que, quando a vida
nos derruba, temos uma escolha: ou permitimos que a pior coisa que
alguma vez nos aconteceu tome conta do resto dos nossos dias, ou
fazemos tudo para regressar ao nosso caminho.
Desde o fim do tratamento, dei por mim atraída por aquela caixa. Havia
uma mensagem em especial que eu gostava de ler. Era um print de um
email do Ned, o rapaz de vinte e cinco anos que me escrevera em 2012
quando eu estava na Hope Lodge e me falara da dificuldade em voltar a
fazer a transição para “o mundo real”. Da primeira vez que a recebi, a
mensagem irritou-me. Chegou mais ou menos no momento em que eu ia
ter de recomeçar a quimioterapia, depois do transplante. Na altura, pensei:
O que é que pode ser tão difícil com a transição para a “normalidade”?
Eu só quero é normalidade. Mas quando emergi do nevoeiro do
tratamento, percebi que o Ned tinha razão. Enquanto eu própria tentava
encontrar o meu caminho difícil, peguei repetidamente nessa carta e
encontrei conforto nas palavras que lá estavam. Na vida real, conhecia
muito poucas pessoas que soubessem o que era estar aprisionada entre
dois mundos.
Houve muitas outras pessoas que me escreveram, e que por vezes me
abriram perspetivas sobre o significado de voltar a viver depois de uma
catástrofe. Havia, por exemplo, o Howard, o historiador de arte
reformado, do Ohio, que passara a maior parte da vida a combater um
estado de saúde debilitante e que, apesar disso, tinha conseguido edificar
uma vida vibrante. Havia o Bret, o jovem que eu conhecera da primeira
vez que fora sozinha a uma sessão de químio e que tentava agora
recuperar e recomeçar a sua vida em Chicago, a sua terra natal. Havia a
Salsa, a cozinheira de um rancho que me prometera encher o prato até não
caber mais comida se alguma vez a fosse visitar ao Montana. Havia a
Katherine, a professora de liceu da Califórnia que estava a tentar seguir
em frente com a sua vida depois de o filho se ter suicidado. E, claro está,
havia o Lil’ GQ, o condenado à morte do Texas cuja letra cuidada – com
os P e os Q em loop, em tinta azul sobre papel de linhas – continuava
tatuada na minha memória: “Sei que as nossas situações são diferentes,
mas a ameaça da morte esconde-se nas nossas duas sombras.”
Ao percorrer o conteúdo da caixa, faço uma lista de duas dezenas de
pessoas cujas palavras e cujas histórias têm permanecido na minha cabeça.
Faço rascunhos de cartas para cada uma delas. Explico-lhes que vou
começar uma viagem e pergunto-lhes se estarão dispostas a encontrar-se
comigo. Quando carrego na tecla para enviar as mensagens, não tenho a
certeza do que esperar. Na maior parte dos casos, já se passaram anos
desde o primeiro contacto deles e houve muitas vezes em que eu não
estava suficientemente bem para responder. Não faço ideia se se
lembrarão de mim – ou se ainda estarão vivos. Mas, para minha grande
excitação, ao fim de uns dias o meu email enche-se de um coro quase
unânime de respostas, com convites para os ir visitar.
Compro uma quantidade de mapas da estrada e espalho-os na mesa da
cozinha. O meu itinerário acende-se quando passo o dedo pelas linhas
púrpura das estradas interestaduais, pelas curvas azuis dos rios e pelas
manchas verdes dos parques nacionais. A viagem vai ser no sentido
contrário dos ponteiros do relógio, por todo o país, do Nordeste ao
Midwest, pelos estados das Montanhas Rochosas, pela costa ocidental,
pelo sudoeste e pelo sul e, depois, finalmente, pela costa leste acima. Vou
fazer mais ou menos 25 mil quilómetros, percorrer trinta e três estados e
visitar mais de vinte pessoas. O Oscar e eu iremos a um internato no
Connecticut, ao loft de uma artista em Detroit, a um rancho no Montana
rural, a uma casa de um pescador na costa do Oregon, ao bungalow de um
professor no vale de Ojai e a uma prisão cheia de problemas em
Livingston, no Texas. Iremos onde as cartas nos levarem e veremos o que
vamos encontrar.
*

Nas semanas seguintes, regresso a Nova Iorque para empacotar todas as


minhas coisas, pôr os caixotes num armazém e subarrendar o apartamento.
Não tenho dinheiro para comprar um carro, mas o meu amigo Gideon
empresta-me generosamente o seu velho Subaru. Com o rendimento extra
da renda do apartamento e os quatro mil dólares que, entretanto, poupei,
deve dar. A minha ideia é acampar e ficar em casas de pessoas sem pagar,
só excecionalmente alugando um quarto num motel. Vou à Craiglist à
procura de material de campismo em segunda mão e compro um fogão a
gás, um saco-cama aquecido, um tapete de espuma e uma tenda. Ponho
tudo na bagageira do carro, juntamente com um monte de livros, um saco
de comida de cão, um kit de primeiros-socorros e uma máquina
fotográfica. Antes de partir, faço um último exame com o meu
oncologista.
A minha viagem vai durar cem dias. É o intervalo máximo que a minha
equipa médica aceitou antes da consulta seguinte, mas prefiro pensar que é
outro Projeto de Cem Dias, um compromisso com a realização de gestos
diários novos, destinados a ampliar as fronteiras do ser. Será a minha
forma de me apropriar de um número que, na contagem decrescente do
Dia 100, depois de um transplante de medula óssea, representa um ponto
crítico no processo de recuperação. A diferença, desta vez, é que sou eu
que invento este ritual de passagem.
27

REENTRADA

No meio do caos matinal de Midtown Manhattan, acabo de pôr as minhas


coisas no carro e sento-me ao volante. O Oscar está atrás, a arfar de uma
forma angustiada e asmática, com o corpinho a tremer tanto que até oiço
as chapas dele a bater. Tento não levar muito a peito a tremedeira dele.
O Oscar não está muito habituado a automóveis – embora, em abono da
verdade, seja preciso dizer que eu também não. Sinal, verificar o espelho,
atenção aos ângulos mortos. Entoo as instruções do Brian como se fossem
um número de telefone que tenho medo de esquecer. Quando o motor
acorda, ronca baixinho e eu me meto no tráfego, consigo ouvir o sangue a
bater na parte de trás das minhas orelhas. Ao virar à direita, para a Nona
Avenida, passo por um caixote de lixo a transbordar, por bicicletas
abandonadas acorrentadas a um poste de iluminação e por um homem de
grande compleição e olhos esgazeados que está parado no meio da faixa
para as bicicletas. Parece que está a acenar-me. Parece-me estranho, ainda
que, pelos padrões de Nova Iorque, não seja nada de extraordinário.
Quando passo por ele, os gestos do homem intensificam-se e os seus
braços agitam-se freneticamente sobre a cabeça. Parece que está a tentar
avisar-me de qualquer coisa. Antes de eu ter tempo para pensar no quê,
começam os gritos e as buzinelas. E depois dou-me conta: os automóveis
estão a buzinar para mim. E estão a vir todos na minha direção.
Estamos no quinto minuto da minha viagem de 25 mil quilómetros e
encontro-me numa rua de sentido único a conduzir na direção errada. Viro
o volante para a esquerda. Carrego no acelerador. Numa rápida inversão
de marcha, dou uma volta no asfalto e evito à justa uma colisão frontal.
Quando encosto ao passeio, a adrenalina corre-me pelo corpo. Esta
viagem é uma péssima ideia, penso, enquanto vejo o trânsito passar por
mim. Não estou preparada. Não tenho experiência. Sou demasiado frágil
para sobreviver aí fora. O mais responsável é cancelar tudo. Mas,
enquanto digo isto, sei muito bem que não o vou fazer – que não posso
fazê-lo. Ficar é entregar-me para sempre à melodia do desespero. Partir é
criar uma nova história, minha. Na verdade, não há grande escolha.
Os despojos do meu passado cobrem as ruas de Manhattan. É a cidade
onde nasci e a cidade onde quase morri. É onde me apaixonei e onde, no
último ano, fiquei feita em pedaços. A cidade vai desaparecendo no
retrovisor e eu não sinto pena de a ver partir.
O meu destino para a primeira noite fica apenas a uns cento e sessenta
quilómetros a norte, mas só lá conseguirei chegar à hora do crepúsculo.
Engano-me e acabo na Garden State Parkway, o que significa que sigo
para sul. Ainda a aprender o conceito de “ângulos mortos”, faço várias
mudanças de faixa erradas, o que resulta em mais buzinadelas. Pelo menos
um condutor espeta-me agressivamente o dedo do meio. Esmagada,
decido continuar para sul e paro numa cidadezinha na costa de Jersey para
um encontro e almoço imprevisto com um amigo, e depois regresso à
autoestrada, agora, sim, em direção ao norte. Em hora de ponta, levo
muito tempo a atravessar a área da Grande Nova Iorque, até chegar por
fim aos espaços verdes e férteis do Connecticut. Conduzir não é em si um
desporto físico, mas eu sinto-me como se fosse. Doem-me os pulsos de
agarrar o volante. Tenho os tendões do pescoço a pulsar. A tarefa de estar
sentada, direita, e atenta às variáveis em mutação do trânsito exige um
grau de resistência que o meu corpo ainda não tem. É difícil imaginar
como é que vou realmente suportar mais 99 dias disto.
Quando me aproximo de Litchfield, os últimos raios tépidos de sol
filtram-se pelos pinheiros. Para ficar acordada, dou uma série de bofetadas
ligeiras na cara. Quando chego à quinta degradada onde vou ficar, é quase
noite. Estaciono debaixo de um velho chorão e cambaleio para fora do
carro, apanhando com o ar fresco outonal. Vou à bagageira, pego numa
lanterna, num saco-cama e nas provisões para essa noite. Desço com
alguma dificuldade por um caminho que conduz a uma fileira de pequenas
casas que dão para um riacho. A minha é despida e cheia de correntes de
ar. É uma divisão única mobilada com cadeiras de braços todas diferentes,
uma cama de campismo tapada com cobertores de lã e uma secretária.
O sítio é de um amigo de um amigo que não está na cidade e a pôs à
minha disposição. Deixou na secretária uma garrafa de vinho e uma nota a
dizer para fazer de conta que a casa é minha.
Ainda penso em beber um copo e em cozinhar um jantar a sério, mas
estou demasiado esgotada. Por isso, arranjo uma sanduíche de manteiga
de amendoim e compota e enfio-me no saco-cama. Mesmo em frente
tenho uma porta de vidro, deslizante, que dá para o campo, onde a
escuridão vai caindo. Observo a noite a abraçar todas as coisas. Os meus
olhos ajustam-se e distingo pequenos pormenores em que não tinha
reparado. A silhueta ténue de árvores a baloiçar ao vento. As estrelas que
vão surgindo no céu, uma a uma, como cabeças de alfinete brilhantes.
Conto-as, tentando tranquilizar a minha mente inquieta, mas o sono
escapa-me. Não consigo encontrar conforto no colchão, que é duro e
enrugado como uma pedra. Às voltas e voltas, suspirando pela minha
cama, pergunto-me porque é que ali estou – ou, já agora, porque é que me
lancei nesta viagem. À medida que as horas se vão arrastando, a escuridão
murmura-me aos ouvidos todo o género de preocupações, materializando
todas as coisas horríveis que podem correr mal nos próximos meses. Um
estrondo forte lá fora faz-me dar um salto e põe-me o coração a bater de
maneira selvagem, mas acabo por perceber que é só a porta de fora a bater
com o vento. Volto a deitar-me, sentindo-me uma imbecil – uma mulher
crescida de vinte e sete anos com medo do escuro.
O Oscar, entretanto, adormeceu logo. Está enroscado num sofá de
braços demasiado bojudo, e faz barulhinhos, “puf, puf, pffft”, enquanto
dorme. Tenho inveja desse estado de não-consciência de si, da confiança
total com que ele anda pelo mundo, aparentemente ignorante de que há
perigos e morte à espreita. Sussurro o seu nome e fico aliviada quando o
oiço levantar-se e saltar para o chão. Corre pela sala, com as unhas a bater
na tijoleira fria, e esfrega o nariz na minha mão. “Sobe”, digo-lhe, dando
uma palmada na cama. O Oscar não tem autorização para dormir na cama
e, por isso, fica espantado a olhar para mim. Bato outra vez na cama.
Agacha-se nas musculadas patas traseiras e lança-se pelo ar, aterrando no
colchão com um som pesado e nada elegante. Passo os dedos no pelo
sedoso atrás das orelhas, na zona áspera do pescoço e na pele da barriga,
com manchas cor-de-rosa. Ele suspira de satisfação e aninha-se no meu
peito. Ponho um braço à volta dele e aqui estamos nós, companheiros,
juntinhos no escuro do nosso acampamento improvisado. Através do
algodão fino da minha t-shirt sinto o calor que irradia dele. Fecho os
olhos. Quando volto a abri-los, já se eleva sobre o campo um halo cor-de-
laranja pálido. Chegou o Dia 2.
*

Ainda é alvorada quando deixo um bilhete de agradecimento, fecho a casa


e subo a estrada até ao carro, exausta e com os olhos pisados. Sigo por
estradas rurais e, uma hora e meia depois, chego à primeira morada da
minha lista, um internato só para raparigas chamado Miss Porter’s: casas
vitorianas em madeira branca assentes em relvados bem tratados. É tudo
tão imaculado e limpo que parece o cenário de um romance de Edith
Wharton. Os meus olhos vão observando ansiosamente magotes de
raparigas com mochilas pesadas a correr para as aulas, até que encontram
um rosto vagamente familiar.
Ver o Ned em carne e osso não bate certo. Tento fazer coincidir o
homem que tenho à minha frente com a fotografia que recebi há três anos
do doente de cancro careca, sentado, em tronco nu, na beira de uma cama
de hospital. O Ned dos dias de hoje tem uma cabeleira castanha espessa,
usa óculos, veste uma camisa azul de colarinho e calças enrugadas que lhe
dão o ar maduro e intelectual de alguém bastante mais velho do que os
seus vinte e nove anos. Custa-me a acreditar que esta pessoa já esteve
doente. Atravessa a rua para me cumprimentar e, quando o faz, sinto
dissipar-se rapidamente qualquer proximidade que tenha sentido com ele.
Percebo que, para além do brilho íntimo dos nossos ecrãs de computador,
não passamos de dois estranhos que se encontram, no meio da rua, pela
primeira vez.
Trocamos um abraço desajeitado.
– Estou tão entusiasmado por te conhecer – diz-me ele com um sorriso
tímido. – E as minhas alunas também!
O Ned é professor de inglês no décimo ano aqui na Miss Porter’s e,
quando estávamos a acertar os planos para a minha visita, ele perguntou-
me se eu aceitava falar com as alunas e conversar um pouco sobre a minha
viagem.
– Por aqui – diz, e conduz-me a um pequeno edifício, com o Oscar atrás
de nós, excitadíssimo.
Há umas dez raparigas sentadas em semicírculo à volta de uma mesa de
madeira, numa pequena sala de aula. São todas atléticas, elegantes e
graciosas, com rabos-de-cavalo compridos e brilhantes e blusões polares.
Sinto calor na cara e uma impressão no peito, como sucede sempre que
sou o centro das atenções. Olho à volta e penso: não pode haver público
mais intimidante do que alguém com quem nos correspondemos online e
um grupo de raparigas adolescentes.
– Bom dia, minhas senhoras – diz-lhes o Ned. – Quero apresentar-vos
uma convidada muito especial.
– Olá, chamo-me Suleika Jaouad – digo. – E este é o meu cão, o Oscar.
Quando ouve o seu nome, o Oscar ladra entusiasmado e começa a bater
com a cauda no chão. Um coro de ooohhs enche a sala, as raparigas
levantam-se, vão fazer-lhe festas, e eu agradeço em silêncio ao Oscar por
quebrar o gelo. Quando a excitação passa e o Ned consegue reencaminhar
as raparigas para os seus lugares, a atenção volta a concentrar-se em mim.
Vou passando o peso do corpo de uma perna para a outra, enquanto lhes
conto que estou numa longa viagem por todo o país – para ser exata, serão
cem dias. Saí de casa apenas ontem e esta é a minha primeira paragem.
A sala de aulas parece confinada e abafada e apetece-me estar lá fora, no
pátio, ao ar fresco. Sinto-me exposta, engulo em seco, e prossigo com a
história de como, logo a seguir à faculdade, me diagnosticaram uma
leucemia.
– Agora estou em remissão – digo. – Estou a aproveitar este tempo na
estrada para recuperar de tudo aquilo que passei e para refletir para onde
quero ir. Nestes meses na estrada, vou visitar algumas pessoas que me
escreveram quando eu estava doente. O vosso professor é uma delas.
O Ned conta então às raparigas que ele também passou por uma
experiência semelhante, aos vinte e poucos anos, e que, depois de um dia
descobrir a minha coluna, sentiu que tinha de me escrever.
– Lembro-me de estar encerrado num quarto de hospital e de me sentir
tão isolado e frustrado por causa de tudo o que tinha perdido – diz o Ned,
voltando-se para mim. – Acreditem ou não, passei imenso tempo a
imaginar que saía dali e começava a minha própria viagem. Só que tu
estás mesmo a fazer a isso. E, agora, estás mesmo aqui. É tipo surreal.
As raparigas olham fixamente para nós. Parecem espantadas, mas
também mais doces. É como se o Ned, de repente, lhes parecesse menos
professoral e mais uma pessoa com quem se podiam dar – um tipo que
não é muito mais velho do que elas, que tem uma vida fora da escola, que
adoece, que tem desgostos de amor e que anda pelo mundo a carregar os
seus segredos, tal como elas.
Na hora que se segue, as raparigas levantam a mão, uma a seguir à
outra, e fazem dezenas de perguntas sobre a minha viagem e a minha
escrita. Acenam vigorosamente enquanto falo, num sinal de
encorajamento, o que me ajuda a acalmar os nervos. Depois, começam a
partilhar as suas próprias histórias. Uma aluna externa cujos pais são do
Bangladesh fala das dificuldades de ter de lidar com culturas diferentes
em casa e na escola. Outra fala da morte súbita do pai e de como ela sente
a falta dele. Mais tarde, uma atleta de competição com sardas cor de mel
chama-me à parte para me contar que um ano antes lhe foi diagnosticado
um cancro. “Antes, se me perguntasses quem eu era, eu teria respondido
que era uma atleta”, diz com voz suave. “Mas agora não tenho tanta
certeza, porque o cancro te faz coisas estranhas. Pega em quem tu és e
naquilo que pensas que sabes e atira tudo para o lixo.”
Quando a campainha toca, há várias raparigas que ficam para conversar.
“Leve-me consigo”, diz-me uma delas. “Eu também quero ir”, junta-se
outra. Sinto-me profundamente grata ao Ned e às suas alunas. Viram-me a
tremer de nervosismo e ouviram-me, enquanto eu lhes dizia que não tinha
certezas sobre o que estava por diante. E, apesar disso, parecem acreditar
naquilo que me propus fazer e olham para a minha viagem como uma
coisa entusiasmante e que vale a pena. Não partilho a confiança delas, mas
deram-me o encorajamento de que eu estava a precisar muito. A abertura
delas mostrou-me o que pode acontecer quando ponho de lado toda a
atitude de faz de conta e assumo que não tenho certezas.
Depois da aula, o Ned e eu deixamos o Oscar no apartamento dele e
vamos até à cantina da escola. Passamos por uma parede de pinturas a
óleo, supostamente retratos de antigas diretoras, todas mulheres brancas e
austeras que parecem saídas diretamente do Mayflower para as telas. Os
internatos de elite da Nova Inglaterra são governados por regras e
tradições que alguém como eu, que andou toda a infância numa escola
pública, não consegue apreender na totalidade. O Ned, por outro lado,
nasceu neste tipo de ambiente. Enquanto comemos, conta-me como foi
educado no internato do Massachusetts onde os pais ensinavam – ser
professor está-lhe no sangue. Este lugar no Miss Porter’s é o primeiro
emprego que tem desde que saiu da universidade para começar o
tratamento. Quando lhe pergunto como é que as coisas estão a correr, o
seu rosto perde entusiasmo.
– Parece estar tudo bem – responde-me. – Os administradores estão
felizes. Mas preocupa-me não estar à altura do velho Ned. E isso faz com
que me sinta uma fraude.
– A esperança é essa? – pergunto-lhe. – Voltar a ser o velho Ned?
– Quero dizer, seria o ideal, mas não é realista – responde-me, abanando
a cabeça.
Abro a boca para falar, mas fecho-a. O que posso eu realmente
acrescentar? O Ned resumiu aquilo que a mim me levou quase um ano a
descobrir sozinha. Para pessoas como nós, não há restauro, não há um
regresso aos dias em que os nossos corpos não tinham marcas, em que a
nossa inocência estava intacta. A recuperação não é um período em que
tratamos de nós cuidadosamente e que nos devolve a um estado pré-
doença. A palavra até pode sugerir outra coisa, mas “recuperação” não tem
nada a ver com salvar o antigo. É sobre aceitar que temos de nos despedir
para sempre de um eu que nos é familiar e abraçar um que está a nascer.
É um ato de descoberta crua, aterradora.
No fim do almoço, o Ned leva-me a passear por ruas residenciais com
vedações, atravessamos campos de cereais e chegamos a um rio. Só o
conheço há umas horas, mas dou comigo a falar com mais franqueza com
ele do que com outra pessoa qualquer no último ano. Enquanto
deambulamos, falo-lhe sobre tudo – o Will, a Melissa, o Jon e a depressão
que me fez refém. Até lhe conto sobre fumar e sobre as minhas fantasias
de recaída. Até agora, estive sujeita à lei do silêncio, à omertà que parece
rodear a condição de sobrevivente, demasiado envergonhada para confiar
a verdade a outra pessoa. É um alívio saber não só que o Ned vai perceber,
mas que também ele enfrentou muitos destes desafios.
– Olha, tenho estado para te perguntar, o que é que fez quereres vir
visitar-me? – pergunta.
– Foi aquilo que me escreveste sobre fazer a transição quando se acaba
o tratamento e como ia ser difícil. Agora percebo – respondo.
Caminhamos em silêncio um bocado e depois acrescento: – Sei que não
podes voltar a ser a pessoa que eras antes do cancro. Mas estava à espera
de já ter reencontrado o caminho para a normalidade.
O Ned abranda enquanto me ouve. Falo-lhe dos reinos de Susan Sontag
e pergunto-lhe como é que tem sido para ele reentrar no reino dos
saudáveis. Ele endireita a cabeça, parece que foi atingido por qualquer
coisa.
– Eu gostava de te poder dizer que saltei por cima daquele arame
farpado e que regressei – diz. – Mas, honestamente, não sei se isso é
possível.
Esta resposta deixa-me tonta e, enquanto prosseguimos, percebo que
aquilo que estou a sentir é um desapontamento profundo. A noção de que
a reentrada é um processo permanente e difícil é em geral referida no
contexto de veteranos de guerra ou de antigos presidiários, não de
sobreviventes de uma doença. No último ano, imaginei o Ned já
regressado ao reino dos saudáveis, depois de ter ultrapassado as
preocupações manifestadas na sua longa carta, e em posição para me
orientar. Mas ele também anda, ainda, em busca do seu caminho, a lutar
para enfrentar o dano colateral da doença. De repente percebo: podemos
nunca deixar de estar nesta situação.
– Reparaste em qualquer coisa de estranho na forma como eu caminho?
– pergunta o Ned, apontando para um coxear ligeiro.
A primeira coisa em que reparei quando começámos a caminhar foi que
ele coxeava, mas como não me parece educado dizer-lhe isso, calo-me.
O Ned explica-me que um efeito secundário do seu regime de
quimioterapia foi uma erosão das articulações e que substituiu as duas
ancas há pouco tempo. Sofria de neuropatia e dor crónica, o que torna
difícil correr ou praticar desporto. E, tal como tantos antigos doentes, vive
num estado de alerta permanente, sempre atento a más notícias,
escrutinando o mínimo sinal de que a doença voltou a entrar na história.
Sei isto tudo muito bem – eu faço o mesmo. Antes de começar a
viagem, falei com um médico no Sloan Kettering que me explicou que eu
estava a sofrer de transtorno de stress pós-traumático, um diagnóstico que
eu sempre julgara que estava reservado a pessoas que tinham passado por
atrocidades violentas, indescritíveis. Fiquei a saber que alguns traumas se
recusam a ficar no passado e lançam o caos sob a forma de detonadores e
flashbacks, pesadelos e ataques de raiva, até serem processados e
colocados no devido lugar. Isto ajudou-me a compreender porque é que o
horror do meu cancro não terminou no último dia de tratamento, mas teve
um pico já depois. A sensação assustadora de que qualquer coisa terrível
pode voltar a acontecer a qualquer momento. Os pesadelos que me
arrancavam ao sono. Os ataques de pânico que me punham de joelhos,
numa busca desesperada de ar para respirar. A resistência que tinha a
forjar uma intimidade verdadeira. A vergonha privada que carregava e a
culpa que sentia por tudo isto afetar as pessoas à minha volta. A voz
irritante na minha cabeça a murmurar: Não te sintas muito à vontade
porque um dia eu vou voltar.
O reconhecimento do meu stress pós-traumático foi uma revelação, mas
a possibilidade daquilo que os psicólogos descrevem como “crescimento
pós-traumático” também. A minha doença tornou-me humilde, humilhou-
me e ensinou-me, deu-me um conhecimento que o meu eu egoísta de vinte
e dois anos pré-diagnóstico poderia ter levado décadas a adquirir. Mas
aquela velha frase de Hemingway – “o mundo parte toda a gente e depois
disso muitos ficam mais fortes nos sítios que foram partidos” – só é
verdadeira se vivermos de acordo com as possibilidades do conhecimento
recém-adquirido. Nem o Ned nem eu descobrimos ainda como fazer isto,
mas quando acabamos o nosso passeio e nos despedimos por essa tarde,
sinto-me reconfortada por saber que não sou a única.
*

Ao fim da tarde, deslizo para trás do volante e vou buscar o Ned para
irmos jantar. O automóvel avança pela autoestrada e o céu vai ganhando
uma tonalidade de carvão cada vez mais escura. É a primeira vez que
conduzo numa autoestrada à noite e sabe bem ter por navegador alguém
que não o Oscar. O Ned orienta-me para o restaurante e dá-me indicações
quando é preciso mudar de faixa. Quando chegamos, sinto-me confiante,
estaciono, saio do carro e começo a dirigir-me para o restaurante. Mas o
Ned continua especado no passeio. “Sinto a necessidade de te chamar a
atenção para uma coisa: o teu carro está estacionado em diagonal, a
ocupar dois lugares”, grita atrás de mim. Vê-se que está a conter-se para
não desatar a rir. “Ora, como estamos em frente de uma loja de bebidas,
talvez ser prudente arrumá-lo melhor, antes que alguém chame a polícia
por causa daquilo que parece ser um condutor já muito bem bebido.”
Com o carro devidamente estacionado, dirigimo-nos então para o sinal
de néon vermelho a dizer SEOUL B.B.Q. & SUSHI. Enquanto esperamos
pelos aperitivos, o Ned vai à mochila e tira uma pasta. Fá-la deslizar sobre
a mesa. Quando a abro, descubro uma pilha de poemas, todos anotados a
lápis.
– Uma das coisas que aprendi no meio disto – diz-me – é que a poesia
me alimenta. Vejo a minha experiência entranhada naquilo que leio e isso
torna-se a linguagem que uso para a captar. Compilei alguns dos meus
favoritos. Pode ser que te digam qualquer coisa na fase em que te
encontras nesta altura, na fase em que estamos agora os dois.
O Ned fecha os olhos e começa a recitar umas linhas de um poema de
Stanley Kunitz chamado The Layers10.

I have walked through many lives,


some of them my own,
and I am not who I was,
though some principle of being
abides, from which I struggle
not to stray.11

Tal como sucede com o Ned, desde criança que ler e escrever têm sido
para mim ações essenciais. Depois do diagnóstico, foi a escrita que me
permitiu guardar um sentido de mim, mesmo quando a condição física se
ia degradando – e até quando já não me reconhecia no espelho. Deu-me
uma ilusão de controlo quando eu tinha de entregar tanto aos que tratavam
de mim. Tentar descrever essa experiência com palavras tornou-me uma
melhor ouvinte e observadora, não só dos outros, mas também das
mudanças subtis do meu próprio corpo. Ensinou-me a verbalizar e a
defender-me. (Os meus médicos diziam a brincar que, de cada vez que
eles cometiam um erro, eu escrevia isso no The New York Times.) Narrar a
minha experiência concedeu-me uma maneira de transmutar sofrimento
em linguagem. Também criou uma comunidade – trouxe-me aqui para
conhecer o Ned.
Não creio que seja um exagero afirmar que a escrita me salvou. Fosse o
que fosse que me ia acontecendo, eu ia produzindo sempre palavras,
mesmo que não passassem de algumas frases.
Exceto neste último ano.
Depois de regressar ao meu quarto de motel, continuo a pensar no
poema que o Ned recitou – na ideia de uma essência que persiste e que
atravessa o passado, o presente e o futuro. Na conversa com o Ned, reparei
que ele, subconscientemente, se referia a si próprio como dividido em três:
o Ned de antes do diagnóstico, o Ned doente e o Ned em recuperação.
Percebo que, sempre que falo da minha vida, faço o mesmo. Talvez o
desafio seja encontrar um fio condutor que una estes três eus. Parece-me
que será um desafio mais concretizável no papel.
Pela primeira vez em meses, abro o diário e começo a escrever. Decido
fazer isto diariamente, seguir o fio até onde ele me leva.
*

Entre o Ned e a pessoa que vem a seguir na minha lista há mais de mil
quilómetros de autoestrada. Um condutor mais experiente, ou alguém com
uma reserva de energia mais profunda, podia ser capaz de os percorrer
numa tirada de doze horas. A mim, vai levar-me quase duas semanas. Na
manhã do Dia 3, acordo em Farmington com a garganta a arranhar de uma
forma suspeita. Gostava de acampar, mas parece que estou a constipar-me
e a meteorologia avisa que está a chegar uma tempestade.
Nuvens ameaçadoras, negras e púrpura, marcam o céu quando paro num
parque de campismo em Middleborough, Massachusetts. Logo que saio,
sinto uma gota de chuva, e a seguir outra. A perspetiva de dormir com um
cão numa tenda à chuva quando já estou doente parece-me péssima. Na
receção, decido então alugar uma das cabanas. Estão dispostas num
semicírculo numa área arborizada, dominada por duas dezenas de
autocaravanas estacionadas em longas filas num campo de relva
amarelecida. Não é propriamente a experiência de vida selvagem que fui
criando na minha imaginação.
Tiro as coisas do carro e sento-me cá fora na mesa de piquenique. É o
primeiro dia de outono verdadeiramente frio e estou de jeans, sweatshirt,
um blusão preto quente e um chapéu de lã. O Oscar está a dormir no meu
colo e aquece-me as pernas enquanto estudo o mapa. Estou distraída, a
pensar no percurso que vou fazer na semana seguinte, quando o Oscar
salta de repente para o chão, a rosnar e a mostrar os dentes a um carro que
acaba de parar na cabana mesmo ao lado. Do automóvel saltam dois cães
pequenos com laços cor-de-rosa iguais. A seguir saem os donos, um casal
jovem, na casa dos trinta anos, que se encaminham logo para mim.
– Eu sou o Kevin e ela é a Candy – diz o homem, com o cabelo
penteado para cima com gel e uma corrente de prata ao pescoço.
– Suleika – apresento-me. – Muito gosto.
– Su-quê?
– Su-lei-ca – soletro.
– Que raio de nome é esse? – diz Kevin. Uma espécie de latido de riso
escapa-lhe dos lábios. – Não és americana, pois não?
Não tenho bem a certeza se é uma pergunta sincera, uma piada ou uma
tirada racista. Sem saber o que hei de dizer, também me rio – e detesto-me
um bocado por causa disso.
– Estás aqui sozinha? – pergunta a Candy.
Respondo que sim sem pensar e lamento instantaneamente não lhes
dizer que estou com o meu namorado Buck, que foi caçar bisontes e vai
voltar a qualquer momento com as suas armas. A esse pensamento, segue-
se logo outro. Não preciso de um homem para me sentir segura na estrada:
só preciso de ter cuidado com quem travo conhecimento e como. No caso
presente, isso quer dizer desejar educadamente aos meus novos vizinhos
um bom resto de dia e voltar à minha cabana. Pela janela com rede, vejo a
Candy e o Kevin regressarem ao carro e, para meu alívio, irem-se embora.
Assim que eles partem, volto lá para fora e empilho uns troncos no sítio
da fogueira. Estão húmidos. O fogo só pega ao fim de várias tentativas,
mas quando isso acontece fico feliz a ver as chamas subirem e saltarem no
ar frio. A chuva parou e tiro a trela ao Oscar, para o deixar correr à solta.
Deito-me na relva ainda húmida, estico os braços e acaricio as folhas com
as pontas dos dedos. O cheiro do fumo da madeira a arder invade-me as
narinas.
Adormeço e quando acordo já está escuro. Há uma lua em quarto
crescente pendurada no céu, lembra-me uma unha cortada esbranquiçada.
Estou outra vez demasiado cansada para experimentar o fogão da cabana,
por isso, preparo mais uma sanduíche de manteiga de amendoim e
compota e sento-me na mesa de piquenique com o envelope de poemas
que o Ned me deu. Mas, antes de poder começar a ler, sou distraída pelo
som de ramos a partirem-se. Espreito para o bosque e vislumbro um cão
grande e um homem grande com uma camisa de flanela esticada por cima
de uma barriga saliente. Ele arrasta um oleado enorme com – será o quê?
Talvez sejam só provisões para o campismo, penso. Em alternativa, pode
ser um cadáver. Carrega a carga para o alpendre da cabana à minha
direita, sem sequer me dizer olá. Senta-se nos degraus, abre uma cerveja e
começa a dar conta de uma caixa de doze com uma velocidade notável;
sinto-me desconfortável. A expetativa de uma noite tranquila à volta do
fogo evapora-se. Pego nos poemas e no que resta da minha sanduíche e
vou para dentro.
Preferia ficar fechada até de manhã, mas a cabana não tem canalização e
a casa de banho fica a uns setenta metros. Antes de me deitar, pego numa
lanterna e na bolsa, para dar um salto rápido à casa de banho, mas assim
que abro a porta o Oscar corre entre as minhas pernas e desaparece na
noite.
– Oscar – murmuro uma vez, e depois outra, mais alto. – Oscar, que
raio, vem cá.
Ando de um lado para o outro na relva alta e aponto a lanterna para a
orla do bosque, chamando-o com uma frustração crescente.
– O seu cão fugiu?
O meu vizinho das cervejas e do oleado materializou-se atrás de mim.
A voz dele faz-me dar um salto.
– Sim, mas está tudo controlado.
– Precisa de ajuda a procurar? – pergunta. Parece que não ouviu uma
palavra do que eu disse.
– Está tudo bem – repito com mais firmeza, afastando-me.
Vivo há tanto tempo no mundo constrangido da doença que não é só na
segurança do meu corpo que não confio, mas também na do mundo.
É difícil saber o que é o medo razoável – em que se pode confiar e em que
não se pode. Por muito que adore o Oscar, não estou para andar à procura
dele no bosque com um estranho inquietante. Dou a volta e regresso à
cabana. É aí que ouço o bater de uma cauda agitada no alpendre. Claro
que é o Oscar, com os dentes à mostra no focinho sujo. “Devia mandar-te
de volta para o canil”, resmungo, enxotando-o para dentro e fechando a
porta à chave atrás de mim.
Na manhã seguinte, estou pior da constipação. Dói-me o corpo todo e
parece que tenho a cabeça cheia de areia prensada. É difícil não me sentir
desanimada perante a ideia de que a maior parte da viagem pode ser
exatamente isto – noites de ansiedade, doença intermitente e cansaço a
perseguirem-me estrada fora. Arrasto-me para a mesa de piquenique lá
fora, onde mexo no fogão de campismo até que finalmente o ponho a
funcionar. Chamas azuis aquecem uma panela com cereais e, quando estou
a tomar o pequeno-almoço, o meu vizinho e o cão reaparecem.
– Bom dia – diz o homem, dando um toque no boné de camionista que
usa a esmagar um molho de caracóis oleosos. – Não tive a oportunidade
para me apresentar. Eu chamo-me Jeff e este é o Diesel – diz, apontando
para o labrador preto. – Quero pedir-lhe desculpa pela noite passada, sou
surdo e não ouvi o que me disse. Hoje já tenho o aparelho. Ainda bem que
conseguiu encontrar o seu cão.
À luz do dia, vejo-o melhor. Tem as unhas pretas e a cara está coberta
por uma barba de uma semana, mas os olhos são doces. Sinto uma
pontada de culpa: nos últimos anos tenho sido vítima de uma série de
preconceitos, por isso, devia ter mais cuidado em não fazer o mesmo.
Uma vez, em Manhattan, num dia de inverno com neve, um homem gritou
comigo num autocarro porque eu não dei o lugar a uma senhora mais
velha. Oiça, eu sei que pareço nova, mas estou doente, vou agora à
quimioterapia, queria ter-lhe explicado. Mas não disse nada. O que se
passou foi que eu, debaixo de vários olhares de censura, corei de vergonha
e cedi o lugar.
– Está a acampar há quanto tempo? – pergunto ao Jeff, fazendo um
esforço para ser amigável.
– Ando há umas semanas a dormir numa tenda, mas a chuva pôs-se
mesmo ruim, por isso, a noite passada mudei-me para uma cabana.
– Caramba… Umas semanas? – digo, impressionada. – Eu também
estou numa aventura demorada.
– Acho que podemos chamar a isto aventura… Tive de vender a minha
casa e estou com dificuldade em encontrar um sítio que possa pagar, por
isso, para já, isto é a minha casa. Há muitas pessoas no parque na mesma
situação. São tempos duros, mas não me queixo.
O Jeff e eu conversamos mais um bocado. Ele fala-me das praias em
Plymouth, uma cidade na costa, ali ao pé.
– É um sítio muito bonito. Devia ir lá espreitar – diz-me.
O dia hoje está mais quente e, como não tenho nada planeado, é mesmo
isso que faço. Enquanto caminho na praia, sobre as pedras, penso no Jeff e
no Diesel, em como é que vão conseguir suportar os meses de inverno
sem ter casa. Penso no Ned e nas alunas. Penso em todas as pessoas e em
todos os quilómetros de estrada que ainda tenho pela frente. O Oscar
persegue as ondas à beira da água. Grandes faixas rosa e laranja correm
sobre o oceano, enquanto o sol se afunda mais e mais no horizonte.
*

Uns dias depois, quando o tempo e a minha constipação melhoraram,


procuro um lugar para experimentar a minha tenda, decidida a acampar a
sério antes de deixar o Massachusetts. Sigo costa acima e chego a
Salisbury, onde encontro o parque de campismo de Pines. Estaciono em
frente da cabine da receção. De trás da secretária ergue-se um capacete de
cabelo branco, armado por uma permanente. A dona está ligada a uma
botija de oxigénio portátil. Em cima do balcão está um maço de Marlboro
Reds.
– Posso ajudá-la? – pergunta com voz rouca.
Pergunto-lhe se há lugares vagos para montar uma tenda nessa noite e
ela passa-me um mapa do parque.
– Escolha o lugar que quiser – diz-me. – Não há mais ninguém aqui.
Os pinheiros pairam lá no alto, sobre a minha cabeça, quando serpenteio
entre autocaravanas vazias para chegar à ponta do parque. A tarde cai
rapidamente enquanto me apresso a tirar a tenda e a montá-la. Estendo um
oleado e o esqueleto da tenda no chão e recuo de braços cruzados a olhar
para o equipamento. Será que isto é muito difícil?
A resposta chega depressa, enquanto travo a minha batalha com as peças
metálicas. A minha tenda em segunda mão não veio com livro de
instruções. Ao fim de várias tentativas falhadas, desisto da noção
romântica de que a floresta é um refúgio da civilização, pego no telemóvel
e vejo um tutorial no YouTube. Um caçador vestido de camuflado, com a
mesma tenda que eu tenho – uma Big Agnes Fly Creek – vai debitando
instruções num sotaque arrastado, algures numa qualquer floresta dos
Estados Unidos. Vejo, ando para trás e vejo outra vez, esforçando-me por
prender o oleado com as estacas exatamente como ele faz.
Desde que saí de casa, há uma semana, não avancei muito no mapa e
poucas coisas correram sem sobressalto. Mas em cada situação de stress
estou a exercitar músculos novos. Tenho de acreditar que, se continuar a
procurar ser a pessoa que gostaria de me tornar – uma pessoa
autossuficiente e independente, capaz de acampar sem medo no bosque –,
vou ser capaz de lá chegar. Quando, por fim, monto a tenda, rastejo lá para
dentro com uma sensação exagerada de que realizei qualquer coisa. De
lanterna na testa, abro o diário e tiro a tampa da caneta. “Estou a acampar!
Numa tenda! Sozinha!”

10 Em português: as camadas. (N. do T.)

11 Caminhei por muitas vidas, algumas das quais me pertenciam, e não sou quem era, embora
persista uma essência de ser, da qual luto para não me desviar.
28

PARA AQUELES QUE FICAM PARA TRÁS

Acontecem coisas estranhas quando se anda sozinho numa viagem por


estrada. A monotonia da condução torna-se meditativa: o espírito
desenruga-se. As angústias e preocupações habituais vão desaparecendo e
os sonhos vão-se instalando. De vez em quando, do nada, surge uma
amostra de uma ideia – e vai-se logo a seguir, como se fosse uma miragem
difusa no deserto. Outras vezes, somos assaltados por uma avalanche de
recordações, libertadas por uma velha canção que passa na rádio ou por
uma paisagem que nos provoca uma sensação de déjà-vu. A interação
entre a geografia e a memória torna-se um diálogo. Elas provocam-se e
instigam-se uma à outra. Outras vezes, até levam a visitas não planeadas.
Quando entro no Novo Hampshire há um grande sinal azul onde está
escrito LIVE FREE OR DIE12. Fico curiosa em saber de onde vem o lema
do estado. Quando paro numa bomba de gasolina, uma busca rápida na
Internet mostra-me que a frase foi dita pelo general John Stark, um
famoso veterano da Guerra Revolucionária, em 1809. Um reumatismo que
o debilitava obrigara-o a recusar um convite para participar numa
cerimónia a assinalar um aniversário da batalha de Bennington, e ele então
enviara uma mensagem por correio: “Viver livre ou morrer. A morte não é
o pior dos males.” Como eu sou alguém que está a tentar largar uma vida
que deixou de parecer livre, a primeira parte da frase diz-me qualquer
coisa. Só que a morte me parece mesmo o pior dos males, em especial
para aqueles que ficam para trás e que podem nunca encontrar consolo
para a sua dor.
Lembro-me de que os pais da Melissa vivem perto. A casa deles fica
apenas a um curto desvio do meu trajeto. Não me parece bem aparecer
sem pelo menos os avisar, por isso, envio à mãe, Cecelia, uma mensagem
a dizer que estou ali por perto. “Pequeno-almoço de última hora?”,
propõe-me ela. “Conheço um lugar à beira da 93 em Windham. É bonito,
acolhedor e tem mesas cá fora, onde podemos sentar-nos com os nossos
cães.”
“Perfeito!”, respondo-lhe. “Consigo lá estar daqui a uma hora.”
No carro, enquanto as linhas da autoestrada passam por mim como fitas
brancas compridas, lembro-me da última vez que nos vimos. Foi há um
ano e meio, em Brooklyn, numa noite quente e muito ventosa de abril.
Reunimo-nos para o velório da Melissa, ao qual ela – bem ao seu jeito –
insistira que devíamos chamar “festa”. Antes de ir para lá, encontrei-me
com o Max, o poeta da ala pediátrica, num restaurante mexicano, onde
cada um de nós emborcou uma cerveja e um shot de tequila para ganhar
alguma coragem líquida. O local do velório ficava a uns quarteirões, era
um lugar cavernoso que em geral acolhia inaugurações artísticas,
gravações de vídeos musicais e espetáculos de moda. Lembro-me de o
Max me dar a mão enquanto abríamos caminho entre a multidão, para
chegar onde estava o nosso pessoal do cancro. A sala estava cheia, abafada
e quente. Um candelabro feito de decorações de jardim fluorescentes
lançava um halo escarlate e esfumado. Não havia um espaço nas paredes
que não estivesse coberto por um quadro da Melissa. De acordo com as
instruções que ela deixara, havia carregamentos de uísque, caixas de
cerveja e garrafas de bom vinho e, à medida que a bebida ia correndo, os
risos tornavam-se mais altos. Quando chegou o momento de todos se
sentarem – para recordarem por que motivo nos tínhamos reunido ali –,
uma sensação de pânico contido encheu a sala. Até aí, a ocasião podia ter
passado por uma festa de aniversário surpresa, mas, agora, era como se
todos começassem a dar conta de que a nossa convidada de honra nunca
chegaria.
Aquela noite tornou a ausência da Melissa real de uma forma que eu
nunca sentira até então. Também permitiu ver a devastação que a morte
dela infligira na família, nos amigos e nos conhecidos. O Max sentou-se
ao meu lado, de olhos muito abertos e a parecer um tanto débil. Tendo em
conta que ele e a Melissa tinham o mesmo diagnóstico, pensei no que
seria para ele estar ali. Embora nesse momento ele estivesse bem, o
sarcoma de Ewing é vingativo e é habitual regressar, repetidamente, para
pilhar o corpo até ao último sopro. Como se lesse os meus pensamentos,
o Max pôs-me um braço por cima dos ombros e eu inclinei a cabeça para
ele.
– Estou a ter uma sensação grotesca de como poderá ser o meu próprio
funeral – murmurou-me.
Iniciou-se então um programa de representações, leituras e brindes,
pontuado pelo som de soluços abafados. O pai da Melissa, Paul, falou em
primeiro lugar.
– Para um pai, não existe dor maior do que perder um filho – afirmou,
com o seu sotaque irlandês forte. – Mas conforta-nos o legado incrível que
a Melissa nos deixou através da sua arte e de todos os seus amigos
maravilhosos. Nos últimos três anos, passei uma imensa quantidade de
tempo com a Melissa enquanto ela combatia esta temida doença.
Considero-me o pai mais sortudo do mundo.
A seguir, recordou aquilo que descreveu como um dos melhores dias da
sua vida: foi numa bela tarde de verão e, apesar de estar a meio de mais
um ciclo de químio, a Melissa sentia-se bastante bem. Levou-o a um
museu, depois foram almoçar a Brooklyn e ver um amigo dela, o Chuck,
tatuador e artista. “Hoje vais fazer uma tatuagem”, disse a Melissa ao pai.
Paul contou que se decidiram os dois por tatuagens iguais do emblema
tradicional irlandês, o claddagh: duas mãos que agarram um coração com
uma coroa, um símbolo de amor, honra e amizade – três coisas que a
Melissa possuía em abundância. Dali foram a um bar do outro lado da rua,
onde uns amigos dela estavam a tocar bluegrass.
– Um dos tipos passou-me uma guitarra e começámos a tocar – disse
Paul com um grande sorriso. – A seguir, a Melissa agarrou-me pelo braço
e disse-me: “Pai, és mesmo fixe, não és?” E deixem-me dizer-vos uma
coisa: o pessoal de vinte e tal anos não diz isto aos pais.
O Paul pegou então numa guitarra e tocou e cantou uma velha toada folk
chamada “Dimming of the Day”, antes de se despedir com uma frase que
resumia tudo.
– Vou ter saudades dela para sempre.
Enquanto os presentes se iam levantando, um por um, para partilhar
uma recordação ou uma história favorita, o meu olhar continuava preso à
mãe da Melissa, que estava em pé, num dos lados da sala, e parecia em
estado de choque. Vestia um blazer e, em homenagem ao passatempo
favorito da filha, pusera na lapela um alfinete de peito dourado com uma
folha de marijuana. A expressão dela impressionou-me. Rosto vazio.
Queixo cerrado. Olhar metálico. Nunca chorou até ao fim, quando chegou
o momento de ser ela a pegar no microfone.
– A Melissa era simplesmente espantosa… – disse, com a voz a falhar.
E aí começou a chorar sem consolo. – Eu devia dizer mais coisas, mas
não… não sou capaz.
Chamamos “viúvos” aos que perderam os companheiros e “órfãos” às
crianças que perderam os pais, mas não há uma palavra na língua inglesa
para definir um pai que perdeu um filho. É suposto os filhos sobreviverem
muitas décadas aos pais, que só pela própria morte têm de enfrentar o
fardo da mortalidade. Testemunhar a morte de um filho é um inferno
demasiado pesado para a textura da linguagem. Não há, simplesmente,
palavras.
*

Nas últimas semanas de vida, a grande preocupação da Melissa tinha sido


o que iria acontecer aos pais quando ela partisse. Quando ela falava no
assunto, eu não sabia o que havia de lhe dizer. Na noite do velório, eu não
sabia o que havia de dizer aos pais dela. Para além de um abraço rápido e
de uma expressão apressada de condolências, mantive-me distante, com
medo de dizer a coisa errada ou de me ir abaixo à frente deles. O que
podia eu fazer para lhes aliviar a dor?
Agora, ao conduzir ao encontro da mãe da Melissa, para um pequeno-
almoço, continuo sem saber o que dizer. Nunca estivemos juntas sem ser
na presença dela. Até hoje, a maior parte dos nossos encontros foi em
salas de espera e corredores de hospital. Viro à direita na saída 3, passo
por um campo com vacas, por uma igreja com uma torre e por uma banca
de uma quinta com uma enorme pilha de batatas. Quando encosto junto da
Country Store and Kitchen do cruzamento de Windham, a Cecelia está à
minha espera no parque de estacionamento, vestida com um blusão de
ganga e botas pretas Converse. Parece tal e qual a filha, mas com óculos e
madeixas cinzentas no cabelo preto que lhe dá pelos ombros. Quando a
vejo, sinto um aperto no peito.
Pedimos café e sentamo-nos cá fora. O maciço de árvores que circunda
o café está a brilhar.
– É o fim de semana da mudança de cor das árvores – explica-me
Cecelia, enquanto admiramos a paisagem. Ela trouxe o cachorrinho
schnauzer que resgatou há pouco tempo de um canil e diz-me que ao ver
quanto o Oscar me tinha ajudado, decidiu adotar um para ela. – Eles
tornam tudo um bocadinho melhor, não é? – digo-lhe, enquanto os dois
cães começam a brincar.
– É verdade – responde-me. – Mas não te vou mentir: tem sido um ano
desgraçado. O Paul e eu até temos estado a pensar em mudar. Precisamos
de começar de novo. Estamos a pensar na Califórnia ou no Arizona, mas
sabe-se lá o que vai acontecer.
O meu rosto ilumina-se perante a ideia de os ver reformados num lugar
com palmeiras e onde o sol brilhe o ano inteiro.
– Porque não? – pergunto-lhe.
– Ainda não conseguimos arrumar a casa desde que a Melissa morreu –
confessa. – Está uma confusão, quase ao nível da acumulação, e é uma
vergonha. Foi por isso que te pedi para nos encontrarmos aqui. Queremos
mudar, mas temos tanta coisa que não sei por onde começar. O que devo
fazer ao velho cavalo de baloiço que era dela? E aos quadros dela? E às
roupas?
Não posso fingir que tenho soluções para as provações de Cecelia.
A tarefa de decidir o que é para guardar e o que é para dar já é tão difícil
com as nossas coisas, quanto mais com as de um filho que morreu. É uma
decisão que parece ir mesmo ao âmago do próprio significado de dor, à
batalha angustiada entre guardar e deixar partir, entre ficar preso no
passado e permitir que uns pedaços dele voguem para longe. Mas tenho a
certeza de que a Melissa não quereria que eles vivessem num mausoléu
com as coisas que tinham sido dela. Numa das nossas últimas conversas,
quando lhe perguntei se tinha medo de morrer, a Melissa respondeu-me:
“O meu maior medo é que as vidas dos meus pais fiquem arruinadas para
sempre.”
– A Melissa ia querer que a senhora e o Paul encontrassem uma maneira
de seguirem com a vossa vida. De serem felizes – digo-lhe.
– Não sei se alguma vez seremos felizes – responde Cecelia. –
É insuportável. Cada dia, cada hora, sem ela. A parte pior é que outros pais
nos tratam como se tivéssemos uma espécie de maldição, um contágio
qualquer. Creio que a dor incomoda as pessoas. Elas querem que nós
sejamos positivas, querem que deixemos de falar na filha que morreu,
querem que deixemos de estar tristes. Mas nunca deixaremos de estar
tristes. Então, o que podemos fazer?
*

Depois do pequeno-almoço, a Cecelia acompanha-me ao carro. Pergunta-


me para onde vou a seguir. Digo-lhe que estou a caminho do Ohio, mas
que antes de sair do nordeste ainda posso fazer uma paragem para ver os
meus pais.
– Bom, temos uma coisinha para te dar – diz, e entrega-me uma pequena
mochila para o Oscar, cheia de guloseimas e brinquedos e um cantil para
cães. Depois, leva a mão ao bolso, abre-a e mostra uma chave de prata
antiga. Explica que era da coleção de bugigangas da Melissa. O gesto
comove-me e sinto um nó a formar-se na garganta. Não quero chorar, por
isso contenho-me, pego nas chaves do carro que tenho no bolso e junto-
lhes a que ela me deu.
– Assim, a Melissa vai estar comigo enquanto eu ando pelo país – digo.
A silhueta da Cecelia a dizer adeus vai desaparecendo lentamente
enquanto me afasto de Windham. Logo que deixo de a ver, os olhos
enchem-se de lágrimas. Mais ou menos uma hora depois, quando entro em
Vermont, estou a chorar tanto que o asfalto e as árvores se misturam. Vejo
uma pequena clareira na beira da estrada, encosto e desligo o motor.
Nunca chorei pela Melissa desde o dia em que soube que ela tinha
morrido. E agora, que estou a chorar, parece que não consigo parar. Pensei
que estava em paz com a morte dela – pelo menos tanto quanto possível –,
mas neste momento sinto uma dor crua. Dizem que o tempo sara todas as
feridas. Mas a ausência da Melissa é uma ferida que não vai sarar – não
pode. Enquanto eu envelheço, ela continua morta.
O que dói mais é a certeza do nunca. Saber que nunca mais vou comer
com ela sanduíches de manteiga de amendoim e compota na enfermaria
pediátrica. Saber que nunca mais vamos dançar como loucas na sala dela,
abanando as perucas ao ritmo da música. Saber que nunca mais a vou ver
pintar outra obra-prima. Compreendo porque é que as pessoas acreditam
numa vida a seguir à morte, porque é que se apaziguam com a convicção
de que os que já não estão connosco ainda existem noutro lado,
eternamente, num reino celestial livre de dor. Quanto a mim, tudo o que
sei é que aqui, na Terra, não há maneira de encontrar a minha amiga.
Com as mãos a tremer, puxo a camisola para cima e limpo as lágrimas
com ela. Depois, arranco. Sigo pelas estradas secundárias de Vermont,
cobertas de folhas caídas. Passo por campos de cereais e por pontes
cobertas. Conduzo até chegar à cabana onde, no verão, imaginei esta
viagem absurda. Passo uns dias a dormir, a caminhar pelos bosques e a
chorar mais um pouco. Depois, volto à estrada.
Se o tempo mudou qualquer coisa desde a morte da Melissa é que, por
estes dias, o ato de recordar também permite momentos de alegria e não só
de tristeza. Enquanto o carro vai baloiçando pela estrada de acesso abaixo,
em terra batida, imagino a Melissa sentada no banco do passageiro, a
abanar a cabeça ao som da rádio, com os olhos verdes a brilhar ao sol do
outono. Peço-lhe opinião sobre os dilemas da vida – sobre a perda e sobre
a minha vida amorosa, sobre como transportar o passado para o futuro e
sobre o que é possível fazer com o meu cabelo pós-químio – e, na minha
imaginação, quando ela sorri ou abana a cabeça e diz que não, as respostas
tornam-se um pouco menos confusas.
*

Enquanto estava a conversar com a mãe da Melissa, um pensamento


tentava intrometer-se na minha cabeça: Se a minha história e a da Melissa
tivessem terminado de maneira diferente, podia ter acontecido que
Cecelia tivesse acabado a visitar os meus pais, consumidos pela dor.
É um pensamento que me enche de uma culpa tão avassaladora que me
domina. Não é só pelo facto de eu estar aqui e de a Melissa não, mas
também porque a minha reentrada no mundo me consumiu de uma forma
tal que não me lembrei de pensar na experiência dos meus próprios pais.
Imagino a minha mãe na posição da Cecelia, sentada no chão do meu
quarto de criança, rodeada por pilhas das minhas coisas – o meu cão de
peluche favorito, caixas de cartão cheias de notas da escola e velhas peças
de trabalhos manuais, o meu contrabaixo poeirento encostado a um canto
e as minhas roupas de bebé tricotadas à mão cuidadosamente dobradas e
embrulhadas em papel delicado, guardadas um dia para os netos. Claro
que os meus pais são afortunados, não perderam uma filha. Mas viverem
com essa possibilidade, e cuidarem de mim, representou para eles um
trauma.
Saratoga fica a uma hora da fronteira entre os estados de Nova Iorque e
Vermont e decido, à última hora, passar por casa dos meus pais e ficar
uma noite. Nem me lembro da última vez que lá fui e quando entro no
acesso a minha mãe sai logo para me cumprimentar. Ponho os meus
braços à volta dos ombros magros dela, inspiro a fragrância do creme que
pôs no rosto. Quero dizer-lhe que a adoro, que tenho tido imensas
saudades dela, mas a minha família sempre esteve mais à vontade com
discussões acesas à mesa de jantar do que com manifestações públicas de
afeto. É, no entanto, mais do que isso. No último ano, deixámos de
conversar com tanta frequência ou com tanta abertura como era habitual.
Na verdade, durante um tempo, nem falámos.
Eu parti sempre do princípio de que a nossa proximidade seria uma
constante, em especial dado tudo aquilo que passámos juntas. Mas, depois
de terminado o tratamento, surgiu uma estranha distância. Embora os
meus pais tivessem a noção de que a minha relação com Will andava
tensa, ninguém sabia a extensão absoluta da nossa infelicidade e a notícia
de que ele saíra de casa foi um choque terrível. Até ao transplante, o Will
viveu em casa dos meus pais perto de um ano. Passou connosco os
feriados e as festas e esteve horas sem fim sentado com os meus pais em
salas de espera de hospitais. Mesmo depois de nos termos instalado numa
casa só os dois, o Will manteve um contacto diário com os meus pais,
tendo sempre o cuidado de lhes enviar mensagens com as novidades sobre
a minha saúde e fotografias. Eles pensavam no Will como família, como
um genro honorário.
Ainda mais chocante do que a separação foi quando anunciei aos meus
pais que estava numa relação nova. Foram claros a manifestar a sua
desaprovação. Disseram que ainda era muito cedo para eu andar com outra
pessoa. Será que eu tinha a certeza de que aquilo que estava mal entre o
Will e eu não podia ser remediado? Passaram mais de seis meses até terem
aceitado jantar com o Jon. Aos poucos, deixaram de mencionar o Will com
tanta frequência e fizeram um esforço para mostrarem que me apoiavam,
mas eu pressentia uma preocupação latente. Onde eu via uma hipótese de
começar de novo, os meus pais viam perigo – a possibilidade de eu estar a
encaminhar-me para mais um desgosto amoroso, com um outro homem
que não percebia como a minha saúde era frágil.
E era aí que todas as conversas conduziam – ao pânico quanto à minha
saúde. Sempre que estava ao telefone com os meus pais e, por exemplo,
tossia, ou observava que andava cansada, as respostas vinham carregadas
de apreensão: “Estás doente? Não podes marcar uma consulta para ver
como estão as tuas análises de sangue? Porque é que não vens cá para casa
descansar?” A preocupação deles tinha-se tornado um tique que eles não
conseguiam evitar. Queriam proteger-me, mas a sua angústia conseguia
ser asfixiante. Não foi uma decisão consciente, mas aos poucos deixei de
lhes telefonar ou de os visitar com tanta frequência. Às vezes, passavam
dias antes de lhes responder a mensagens de texto ou emails; outras vezes,
nem respondia de todo. Sabia que isto os magoava, em especial à minha
mãe, que estava acostumada a um contacto diário, mas não sabia que outra
coisa podia fazer. Para dominar os meus próprios medos, eu precisava de
me distanciar dos medos deles.
*

Vou atrás da minha mãe para a cozinha, onde fazemos chá de curcuma e
levamos as canecas lá para cima, para o estúdio dela. Há som de música
clássica a flutuar de uma coluna velha e toda manchada de tinta que está a
um canto. Os parapeitos das janelas estão cobertos de conchas, ramos,
penas e ossos de animais que ela apanha nos passeios diários pelo bosque
com o meu pai. Nas paredes estão penduradas as suas últimas criações:
pinturas gigantes a preto e branco do que parecem ser ninhos de pássaros
abandonados.
Sentamo-nos no grande estirador encostado a uma janela. Está coberto
de blocos de notas, frascos com pincéis e dezenas de tubos de tinta e,
quando a minha mãe abre um espaço para pormos as canecas, reparo nas
mãos dela. Anos de pintura e de jardinagem deixaram-nas gastas, com os
dedos cheios de nós, como gengibre, e as palmas ásperas como casca de
árvore. São as mãos que pegaram em mim logo depois de eu nascer. São
as mãos para as quais eu olhava com um ressentimento irritado quando
todas as noites chegava o momento de levar a injeção de químio durante o
ensaio clínico. São as mãos que mudavam os lençóis ensopados em urina
quando estive tão doente que molhava a cama. Estas mãos e eu temos uma
longa história.
– Maman – digo. – Merci.
– Pourquoi?
– Por cuidares sempre tão bem de mim.
– Não precisas de me agradecer. É o que os pais fazem. – Parece hesitar
um momento e depois acrescenta: – Sabes o que é estranho? Em termos da
minha vida diária, eu funcionava quase melhor quando tu estavas muito
doente. Estávamos em modo de emergência e eu tinha um foco: cuidar de
ti. Não conseguia admitir o medo que tinha de que não conseguisses
sobreviver. É só agora, que estás melhor, que estou a permitir-me sentir
esse medo, que estou a dar mais atenção a tudo o que a situação
significou.
É a primeira vez que a minha mãe partilha comigo qualquer coisa deste
género – é o meu primeiro relance daquilo que os últimos quatro anos
representaram para ela. Desde o dia do meu diagnóstico, ela e o meu pai
estiveram ao meu lado. O meu sofrimento tem sido o deles, os meus
desapontamentos, desgostos e incertezas também. Imagino que passará
muito tempo até serem capazes de sacudir a preocupação de que pode
voltar a acontecer. Na minha família, não sou a única pessoa que tenta
seguir em frente.
– Não podemos continuar e fazer as mesmas coisas de antes quando
tudo na nossa vida foi virado de pernas para o ar – diz a minha mãe. –
Ainda não encontrei uma viagem como aquela que estás a fazer para me
ajudar a recuperar o foco.
*

Na manhã seguinte, eu e os meus pais tomamos o pequeno-almoço num


pomar de macieiras de um amigo que vive perto. A refeição decorre numa
atmosfera de esperança, mas consigo sentir uma corrente subterrânea de
preocupação – embora, desta vez, não seja por causa dos números das
minhas análises ao sangue, mas sim da minha capacidade para ligar o
pisca-pisca antes de mudar de direção. De regresso a casa, carrego o carro.
Gostava de poder ficar mais tempo, mas preciso de regressar à estrada.
– O meu Projeto dos Cem Dias vai ser falar contigo todos os dias – diz a
minha mãe, sem expressão, quando entro no carro. Está ao lado do meu
pai, que tem as mãos explicitamente atrás das costas. Quando começo a
descer o acesso, vejo-o pôr-se atrás do carro e lançar um copo de água
para o vidro de trás. É uma velha tradição tunisina que ele já fez antes
inúmeras vezes: atirar água para trás de um ente querido quando ele se
aventura numa viagem longa. É uma bênção, para assegurar que regressa
em segurança.

12 Em português: viver livre ou morrer. (N. do T.)


29

A LONGA INCURSÃO

Ou o meu GPS é um grande mentiroso ou eu sou uma condutora distraída,


mas a verdade é que parece que levo sempre o dobro do previsto a chegar
onde quero ir. “Vire à direita em – a fazer novo cálculo…”, diz,
condescendente, a voz robótica quando eu falho mais uma saída. O meu
destino seguinte, Columbus, no Ohio, será o mais longo percurso até
agora. O GPS prevê que, se eu seguir a sucessão de ordens exatamente
como ele as ditar, estarei lá em nove horas e vinte minutos. É improvável.
Por estes dias, sou eu quem dita os meus horários.
Duas semanas antes, quando comecei a viagem, estava tão tensa que de
vez em quando tinha de me lembrar de respirar. Cada minuto ao volante
apresentava cenários novos e esmagadores: sou eu que tenho prioridade?
Esta luz vermelha a piscar quer dizer o quê? Aquilo no sinal de trânsito era
um hieróglifo egípcio? As mudanças de faixa e as entradas na autoestrada
tinham-se revelado particularmente stressantes – era um jogo de
adivinhação existencial do tipo “vou sobreviver a isto ou não vou?” Mas
dia após dia estou mais confiante e já faz pelo menos setenta e duas horas
desde que outro condutor me buzinou, não sei se furioso ou espantado
com qualquer coisa que eu fiz. Antes de sair de Saratoga, esta manhã, o
meu pai mostrou-me como, se eu me inclinasse para a frente e espreitasse
pelo retrovisor lateral, a curva do espelho seria capaz de me mostrar os
automóveis escondidos no ângulo morto. Agora, a rodar pela
interestadual, os quilómetros passam com um novo à vontade. Até o Oscar
parece mais descontraído, a roer um osso no banco de trás.
Ao fim de cerca de três horas, começo a abrandar, um bocado tonta por
causa do sol quente que bate no vidro. Numa área de descanso, tiro os
sapatos, inclino o banco para trás o mais que é possível e estendo os pés
sobre o tablier. A fadiga continua a perseguir-me, mas em vez de a
combater ou de me punir por ir tão devagar, fecho os olhos debaixo dos
arcos dourados de um McDonald’s. Para variar, tento não apenas aceitar as
limitações do meu corpo, mas saborear as pausas que elas me impõem.
Estas paragens acabam por constituir alguns dos meus momentos favoritos
na estrada – desviam-me da minha mente, que funciona em espiral, e
transportam-me ao presente, ancorando-me neste novo corpo estranho e
em lugares novos onde, de outro modo, nunca teria ido.
Acordo meia hora depois, rejuvenescida. Ainda consigo fazer mais uns
duzentos quilómetros antes de decidir que chegou o momento de dar por
concluída a jornada do dia. Encontro um motel barato nos arredores de
Buffalo e, enquanto espero que a rececionista me traga a chave, passo os
olhos por folhetos que anunciam passeios de barco nas cataratas do
Niágara. O dia está cinzento e triste. O Oscar precisa de exercício, mas o
único espaço verde é uma estreita faixa de relva ressequida à volta da
propriedade. Damos umas corridas pelo parque de estacionamento, sempre
acompanhados pela banda sonora dos pneus a passarem por poças de água
na autoestrada próxima. Sem aviso, começa a cair-nos granizo em cima.
O Oscar levanta o focinho e começa a rosnar ao céu.
O quarto é surpreendentemente acolhedor, com uma luz quente e
convidativa. Preparo as tigelas de água e ração para o Oscar e penso no
que irei fazer a seguir. A cama fofa chama-me, tal como a perspetiva de
me enroscar com um livro, mas mesmo num dia de chuva e ao fim de
conduzir quase quinhentos quilómetros há uma nova parte de mim que
anseia por explorar. Lembro-me dos folhetos. As cataratas do Niágara só
ficam a meia hora e eu nunca lá fui. Faço uma festa na cabeça do Oscar e
meto-me no carro.
A caminho das cataratas, as minhas expetativas vão baixando a cada
hotel piroso e casino com luzes de néon por que passo. Na entrada do
parque, os estacionamentos estão cheios. Quando encontro finalmente um
lugar, já estou com dúvidas sobre se quero mesmo ficar, mas saio e ponho-
me na fila para comprar um bilhete para o Maid of the Mist, um barco de
passeios que sobe o rio, passa a base das cataratas do lado norte-
americano e segue para a bacia, em forma de U, do lado canadiano. Visto
uma parka de plástico e subo ao enorme ferry de dois pisos onde estão
centenas de outros turistas. Nunca na vida vi tantos paus de selfies.
Espremo-me entre a multidão e arranjo um lugar com uma vista decente
no deck de baixo, com as costelas pressionadas contra a amurada. Olho à
volta e não consigo deixar de reparar que pareço ser a única pessoa que
não está acompanhada por um familiar, um namorado ou um amigo.
Passear sozinha, em especial num ambiente com tantas pessoas, deixa-me
um tanto desconfortável. Apetece-me dizer aos casais que estão à minha
volta: “Juro que tenho amigos.” Claro que estão todos demasiado
ocupados a admirar a vista para repararem que estou sozinha, ou se
importarem com isso, mas ainda assim sinto-me um pouco só e a chamar a
atenção.
A sensação só dura uns minutos. Enquanto o barco desliza por águas
frígidas, o vento entorpece-me a cara e todo o meu desconforto se evapora
perante a dimensão da paisagem. A minha solidão começa é a parecer-se
com um luxo: posso estar totalmente presente, de uma maneira que não
conseguiria se estivesse a viajar acompanhada. Bandos de gaivotas passam
sobre as nossas cabeças. Quando as cataratas, ensurdecedoras, entram no
campo de visão, o casco do barco começa a vibrar. Aquilo que vejo diante
de mim é infinitamente mais majestoso do que qualquer coisa que eu
poderia ter imaginado. Litros infinitos de água derramam-se de um
rochedo colossal e esmagam, batem e comprimem o rio, transformando-o
numa massa agitada. Quando nos aproximamos, água gelada borrifa o
deck. A parka cola-se ao meu corpo como se fosse película aderente. Fico
encharcada e a tremer, mas não me mexo. Os meus sentidos estão
totalmente despertos, o mundo à minha volta é demasiado glorioso.
É impossível estar perante qualquer coisa de tão imenso e não sentir
respeito. O meu diagnóstico produziu um efeito semelhante e fez-me
pensar como é que nunca tinha reparado antes na beleza do que me
rodeava ou como é que pensava que a vida podia ser indiferente. Quando
estava a caminho do hospital Monte Sinai para a primeira sessão de
químio, sabendo que era a última vez em muitas semanas que estaria fora
de um quarto de hospital, reparei em todos os pormenores, das nuances do
céu à sensação do vento a bater-me na nuca. Pensei que esta nova forma
de admirar as coisas ficaria comigo para sempre, que nunca mais daria
nada por adquirido, agora que tinha visto e sabido como tudo podia mudar
num instante. Mas, com o tempo, o meu campo de visão estreitou-se até
ficar com a dimensão de uma enfermaria – e depois de uma cama. Isolada
do exterior, não tive outra escolha a não ser voltar o meu olhar para
dentro. Quando finalmente tive alta, perseguida pela ameaça de uma morte
iminente, ainda me fechei mais em mim. Deixei de estar atenta. Aqui, no
sopé das cataratas, estou de novo a orientar o meu olhar para o exterior.
*

Na manhã seguinte, com a luz macia de um dia de outono perfeito a


inundar o tablier, entro na Interestadual 90, que corre pelo norte dos
Estados Unidos, de Boston até Seattle, no outro lado. Por entre elevações,
tenho vislumbres das imensas águas azul-real do Lago Erie. Por volta do
meio-dia, quando atravesso para a ponta noroeste da Pensilvânia, o Oscar
começa a ganir, a pedir para sair. Saio da autoestrada e sigo os sinais até
ao Parque Estadual da Ilha de Presque, uma península estreita que faz um
arco para o interior do lago. O Oscar e eu passeamos por uma praia de
areia tranquila. O lago é enorme – é, na verdade, um mar – e a costa está
orlada por chorões, álamos e carvalhos. Os reflexos de folhas douradas
deixam na água um brilho tal que é como se fossem estrelas caídas.
Por muito que tenha estado a apreciar a solidão, agora desejo que o Jon
estivesse aqui, para partilharmos esta paisagem. Já não falamos há uns
dias e a distância está a deixar-me desligada dele. Puxo do telemóvel e
ligo-lhe.
– Ond’é qu’stás? – pergunta-me. É sempre a primeira coisa que ele diz.
Consigo distinguir em fundo o sopro de um trompete e a rouquidão de
uma tuba e concluo que está com a banda, a ensaiar.
– Estou bem – respondo, e fico surpreendida quando percebo que estou
mesmo. – Vou a caminho de Columbus, para ver um homem chamado
Howard Crane.
O silêncio do outro lado está repleto de palavras não ditas. Quando falei
pela primeira vez ao Jon do plano para viajar pelo país, ele não escondeu a
sua desaprovação. Reconhecia a minha necessidade de uma mudança
drástica, mas não gostava da ideia de eu viajar sozinha. Ficou ainda mais
preocupado quando percebeu que eu estava a pensar visitar uma dezena de
estranhos que, na maior parte, só conhecia pela Internet. Como o Jon
observou, nunca se consegue realmente saber as intenções de alguém, por
muito boas que elas sejam no papel.
– Tens de tomar cuidado contigo – avisa-me.
Eu resmungo, a revirar os olhos.
– Tu estás bem?
– ’Tou bem. A trabalhar sem parar. É difícil não te ter aqui – diz, soando
um bocadinho rejeitado. Mesmo antes de eu partir, o Jon tinha começado
um novo trabalho: chefe da banda de um talk-show da noite. Mas
precisamente quando ele conseguira um emprego a tocar cinco noites por
semana e que lhe permitia ficar em Nova Iorque e deixar de andar na
estrada, eu tinha partido na minha própria espécie de digressão. O som dos
instrumentos em fundo vai crescendo e eu tenho cada vez mais dificuldade
em ouvi-lo. – Olha, temos mesmo de arranjar uma ocasião em que
possamos realmente falar. Posso ligar-te depois de… – E a voz é cortada.
– Ainda estás aí? – pergunto. Ainda que saiba muito bem que não.
Volto ao carro desanimada. A questão não é só não estarmos em
contacto. É estarmos imobilizados, em modo de espera. O Jon continua lá,
para mim, à espera que eu, um dia, esteja pronta a levar a relação mais a
sério. Mas há um ano inteiro que a minha disponibilidade emocional tem
sido igual à de um saco de pedras. Por muito que queira, não sei como hei
de permitir-lhe o acesso.
Quando era miúda, sempre pensei que ia sentir um clique místico
quando encontrasse “o especial” – ia ter a certeza, sem sombra de dúvida,
de que era a pessoa certa para mim. Na minha última relação também
tinha tido esta convicção, pelo menos no início, mas, com o tempo, as
minhas certezas foram-se desmoronando. “Se a relação terminou, é porque
não era a relação certa para ti”, assegurou-me uma amiga. Mas a premissa
ainda me perturba. E se era mesmo a relação certa e fui eu que lixei tudo?
No último ano, eu e o Jon falámos de vez em quando de um futuro em
conjunto. Acho um bom entretenimento pensarmos como é que seriam os
nossos filhos?, mas eu entro em pânico quando chegamos ao ponto de
levar mesmo a sério um compromisso com uma dimensão dessas. Talvez
seja irresponsável eu pensar em compromissos a longo prazo, como
casamento ou filhos, dada a probabilidade de ter uma recaída.
Mas na raiz de tudo está uma incerteza mais profunda: talvez ainda
morra.
*

É o tipo de incerteza que o Howard Crane, a pessoa que vem a seguir na


minha lista, conhece bem. Enquanto rumo ao sul, à cidade onde ele vive,
pela região do Ohio que alberga a comunidade amish, a paisagem abre-se,
torna-se mais pastoral, mais suave. Passo por um homem de suspensórios
e chapéu de palha que vai a conduzir um carrinho puxado por um cavalo –
seguido por um segundo, e por um terceiro. Para além deles, a estrada está
vazia. À minha direita e à minha esquerda, estende-se terra cultivada, até
onde a vista alcança. Quando acelero, as rodas do automóvel levantam
uma nuvem de pó.
Quando me aproximo de Columbus, os meus pensamentos voltam-se
para a carta que o Howard me enviou três anos antes. Ele era um leitor
ávido do The New York Times e escreveu uma extensa resposta à minha
primeira coluna, “Enfrentar o cancro quando temos vinte anos”, que era
sobre as várias formas como a idade se torna uma parte inextricável de
como sentimos a experiência da doença. “Imagino que por esta altura se
encontre no hospital a começar o procedimento do transplante de medula
óssea que, se tudo correr bem, lhe devolverá a saúde e o bem-estar que a
maior parte dos jovens dão por garantido”, escreveu-me. “Também estou a
escrever porque quero partilhar consigo a minha experiência que, embora
sendo diferente de muitas maneiras, tem, apesar de tudo, na sua incerteza
e transitoriedade, alguns paralelos com a sua.”
A minha coluna tinha-lhe despertado recordações dos seus tempos de
doutoramento, com trinta e poucos anos, quando trabalhava em
escavações arqueológicas na Bacia de Sistan, no sul do Afeganistão.
“Como todos os jovens, pensava que era relativamente invulnerável, mas
ao fim de dois anos, subitamente, senti-me doente”, escreveu. “Ao
princípio, pensei que fosse um tipo de malária, mas ao terceiro dia já tinha
a certeza de que seria muito improvável sair vivo de Sistan. Sem entrar em
pormenores, através de uma série do que só consigo descrever como
acontecimentos incompreensíveis, fiz os novecentos quilómetros que me
separavam de Cabul e, a seguir, estive semanas num hospital na Alemanha
e, mais tarde, em Boston. Quanto tive alta, era fisicamente igual a um
homem de 80 anos.”
Howard tinha tido um conjunto de sintomas assustadores – urina preta
como alcatrão, cegueira temporária e danos permanentes na medula óssea
–, mas, nessa altura, os médicos não conseguiram acertar com um
diagnóstico. A expetativa era que ele não sobrevivesse. “Eu estava tão
doente que a perspetiva da morte não me assustava (ou talvez
simplesmente não parecesse real), mas em retrospetiva tenho pensado
muito nela. Sei que a ideia de que devíamos viver para o dia de hoje é um
cliché. E sei que talvez seja a coisa mais difícil do mundo. Pensamos
sempre para a frente, fazemos planos, temos esperanças. E, no entanto, e,
no entanto…”
As últimas linhas da carta deixaram-me em lágrimas: “Se eu acreditasse
na eficácia das orações, você estaria nas minhas. Mesmo não sendo um
crente, quero que saiba que os milagres abundam nesta vida, que o corpo
humano é capaz de passar por coisas que parecem insuperáveis.”
O sol vai caindo sobre uma fila de casas em estuque bege com relvados
acabados de aparar. Uma caixa de correio decorada com duas gruas
mostra-me que cheguei. Mas não saio logo do carro: preciso de uns
minutos para me compor. Prometi ao Jon que recolheria o máximo de
informação antes de cada visita, mas foi-me difícil encontrar qualquer
coisa sobre o Howard, para além daquilo que ele partilhou na carta.
Encontrei artigos académicos que ele publicou em revistas científicas e
um CV da universidade de Ohio State, mas mesmo assim ele continua a
ser um estranho absoluto. Reúno coragem, subo o caminho de acesso e
toco à campainha.
O Howard é alto e magro e tem uma barba com fios de neve. Gagueja
um bocadinho quando me dá as boas-vindas e me convida a entrar.
Percebo que ele também está um pouco nervoso, e isso ainda me deixa
mais nervosa.
– Muito obrigada por me receber – agradeço-lhe, seguindo-o para dentro
de casa.
– Fiquei absolutamente siderado quando recebi a sua carta – diz-me. –
Nunca esperei que me contactasse. Por isso, quando disse que vinha
visitar-me, para mim foi uma coisa absolutamente extraordinária.
O Howard veste uma camisola preta de caxemira e tem um cachecol. Se
a metade superior do corpo diz “intelectual aprumado”, a metade de baixo,
com chinelos e jeans caídos pelas ancas, diz “filho dos anos 60”.
– A minha mulher, a Meral, vem já ter connosco – diz-me, explicando
que ela está a ver um doente no consultório que tem em casa. – Entretanto,
vou mostrar-lhe onde vai ficar.
Conduz-me por uma escada íngreme abaixo e, quando chegamos ao
último degrau, os meus olhos apanham uma visão geral da cave. É ampla,
mas está completamente cheia. Há cartazes pintados à mão contra a guerra
no Iraque. Pilhas altíssimas do que parecem ser todos os números do The
New York Times alguma vez publicados. Paredes forradas com painéis de
madeira cobertos por dezenas de recortes de jornais e fotos emolduradas.
Uma meia dúzia de cadeiras e um grande sofá aberto, com almofadas
decoradas – que é onde eu e o Oscar vamos dormir.
– Nós guardamos tudo, mas espero que fique confortável – diz-me
Howard, fazendo um gesto com as mãos à volta da cave. Conta-me que é
aqui, neste espaço, que a Meral faz sessões de apoio para os seus doentes.
A atitude do Howard muda completamente quando fala dela; perde a
gaguez e o olhar difuso enche-se de orgulho. – Ela é uma das terapeutas
mais proeminentes para pessoas transgénero em todo o país – diz-me. –
Ela cresceu na Turquia, nos anos 40 e 50, num ambiente de muito maior
carência do que aquele que conhecemos aqui na América. Na escola
primária só escreviam a lápis, de modo a que, ao acabarem um trabalho,
pudessem apagá-lo e voltar a usar o papel. Eram coisas que, nessa altura,
não existiam pura e simplesmente na Turquia. Agora vivemos nesta
abundância toda, mas para ela ainda é muito difícil deitar fora o que quer
que seja. E para mim também. É evidente!...
Enquanto estamos a conversar, a Meral aparece a descer as escadas, toda
de preto e com um lenço de padrão leopardo. É mais afirmativa e
extrovertida do que o Howard: abraça-me e ralha com ele por não me ter
oferecido nada para beber.
– O meu Howard anda há semanas à espera do momento da sua visita –
afirma, com um sotaque quase impercetível. – Andamos os dois. E agora,
vamos jantar? Deve estar cheia de fome, minha querida. Há um
restaurante turco muito agradável relativamente perto daqui. O Howard
conduz.
*
Quando os aperitivos chegam, já a conversa entrou num bom clima.
Educados e curiosos, a Meral e o Howard cobrem-me de perguntas. Ficam
contentes por descobrir que eu também passei um tempo no Médio
Oriente. Falo-lhes de quando estive a estudar fora, no Egito, da minha
investigação sobre os direitos das mulheres no Norte de África pós-
colonial e da família que tenho na Tunísia. As pessoas raramente me
fazem perguntas sobre o que me interessava antes de ficar doente e, ao
falar-lhes dessas velhas paixões esquecidas, sinto-me como se estivesse a
discorrer sobre a vida de uma outra pessoa.
Um velho ditado tunisino diz que toda a nossa vida está inscrita na testa,
mas, no meu caso, é como se tudo o que aconteceu antes do diagnóstico
tivesse sido esfregado e apagado da minha testa. Não sei como é que isso
aconteceu, ou se podia ter sido evitado, mas num qualquer momento dos
últimos poucos anos toda a minha existência, a minha identidade, até a
minha carreira, ficaram ligadas à pior coisa que já me aconteceu. O meu
horizonte de interesses diminuiu na proporção direta do meu mundo. Um
ano após o fim do tratamento, a doença ainda domina a história e parece
expulsar as possibilidades de existência de qualquer outra coisa para além
dela.
*

Na manhã do dia seguinte, vou ter à sala com a Meral e o Howard.


Ficamos no sofá, a ver as notícias. O gato deles, um listrado já velhote,
está enroscado no colo do Howard. Os comentadores políticos discutem a
decisão da Administração Obama de manter tropas no Afeganistão, e o
Howard protesta e resmunga, diz que o mundo vai para o inferno.
– Está na hora de escrever outro artigo de opinião – diz.
– Sempre foi uma pessoa de escrever muitas cartas? – pergunto-lhe.
– Penso que pode dizer-se que é o meu passatempo – responde. Conta-
me que começou a escrever cartas quando conheceu a Meral. Viveram
afastados nos primeiros dois anos da sua relação: ela tinha acabado o liceu
e vivia em Berkeley; ele andava na universidade em Cambridge, a 4.500
quilómetros de distância. – Telefonar custava os olhos da cara e não
tínhamos dinheiro para isso. Só conseguíamos pagar uma carta com um
selo de três cêntimos.
– Cada um escrevia uma carta por dia – acrescenta a Meral. – Às vezes,
duas.
– Não sei como é que as enchíamos – observa o Howard, abanando a
cabeça em sinal de espanto. – Um dia, recebi uma carta dela com vinte e
sete páginas. O que é poderá ter acontecido no espaço de vinte e quatro
horas para encher vinte e sete páginas?
O Howard e a Meral continuaram a escrever cartas ao longo dos anos,
sempre que se separaram, incluindo o período em que ele esteve no
Afeganistão. Deitado numa cama de hospital em Cabul, o jovem Howard
ditou aquela que pensava que ia ser a sua última carta para a Meral.
Acreditava que nunca mais ia voltar a vê-la. Na verdade, acabou por
realizar uma recuperação extraordinária, mas não foi a última vez que se
viu perante a possibilidade da morte. Um dia, os médicos diagnosticaram-
lhe imunodeficiência comum variável. Tal como eu, o Howard tem um
sistema imunitário com falhas e, nas últimas décadas, teve de enfrentar
uma sequência ininterrupta de infeções, algumas delas potencialmente
fatais. Mas, ao contrário de mim, o Howard não permitiu que nada disso o
impedisse de amar e de ser amado. Ele não se limitou a lidar com a
incerteza, ele construiu uma vida inteira dentro dela; construiu-a e
reconstruiu-a as vezes que foram necessárias. Apesar dos problemas de
saúde, casou, teve dois filhos e desenvolveu uma carreira que encarou
sempre como infinitamente fascinante.
Claro que houve dificuldades. Conta-me como foi indicado para um
lugar de prestígio, o de diretor do departamento de história da arte da
universidade de Ohio State – e como teve de se demitir, ao fim de cinco
anos, porque estava muito mal. E, no entanto, teimou em encontrar formas
para ultrapassar as suas limitações.
– Para mim, o inverno era a pior estação do ano – disse-me, explicando
que era frequente apanhar uma pneumonia. – Tinha de hibernar, por isso,
comecei a dar aulas apenas nos meses mais quentes.
O Howard está reformado, mas passa os dias a ler, a dar longos passeios
no parque ao pé de casa e, de vez em quando, a disparar uma das suas
cartas ao diretor. Ele e a Meral já são avós. Celebraram há pouco tempo os
cinquenta anos de casados. E, uma vez por semana, vão juntos a uma aula
de dança.
Quando lhe pergunto se tem algum conselho para mim, ele desvia a
questão e diz-me que o melhor é perguntar à Meral, que é terapeuta.
– Ela é muito orientadora – explica. – Não acredita na ideia de as
pessoas encontrarem o seu caminho como que por magia, porque muitas
vezes não conseguem. Acabam por passar anos… vou dizer uma asneira, a
foder a cabeça – afirma, com um risinho.
– Vá lá, não deixo que se safe assim com essa facilidade – insisto.
Passado um momento, o Howard descontrai-se.
– Aos poucos, com paciência e persistência, vai voltar a mergulhar outra
vez na vida e, vá lá, a vida pode ser uma coisa tão boa… Mas penso que é
extremamente importante encontrar alguém com capacidade para estar ao
seu lado. Eu devo mais à minha mulher… – A voz embarga-se. – Bem,
não existem palavras para aquilo que eu lhe devo.
– Parece que preciso de encontrar uma Meral para mim – digo-lhe.
Vê-los aos dois juntos faz-me querer abrir ao futuro, mas por muito que
tente ainda não consigo imaginar-me a envelhecer, sozinha ou com
alguém. O meu trabalho constante é aprender a nadar no oceano do não-
saber. Eu não sei se não há uma célula cancerosa rebelde escondida
algures na minha medula. Eu não sou capaz de prever se o meu corpo vai
impedir a concretização de compromissos – comigo ou com outras
pessoas. Eu nem sequer tenho a certeza de querer assentar de uma forma
estável, mais convencional. Mas estou a começar a compreender uma
coisa: nunca sabemos. A vida é uma incursão no mistério.
30

ESCRITO NA PELE

É de manhã cedo em Eastern Market, um bairro industrial de Detroit.


Estou a ficar em casa da Nitasha, uma mulher de trinta e poucos anos, com
longos caracóis pretos e uma qualidade etérea, quase de feiticeira. De dia
trabalha em marketing digital para uma farmácia, à noite é artista – e a
todas as horas do dia é uma apaixonada por Frida Kahlo. A casa dela é um
grande loft aberto, com um pé alto de uns seis metros e paredes de tijolo
cobertas pelos seus quadros. Na noite passada, quando eu cheguei, ela
estava ao fogão, a mexer um molho de harissa, em homenagem à minha
origem tunisina. Enquanto cortávamos pedacinhos de pão e os
mergulhávamos na pasta picante de chili, disse-me que tinha ouvido falar
de mim há anos, quando seguia online a Melissa.
– Vi um retrato teu pintado por ela e fiquei mesmo impressionada pela
vossa amizade – disse-me. Inspirada parcialmente pelas nossas batalhas,
está a trabalhar num projeto para usar o loft como um espaço de exibição
para aquilo a que chama “O Museu da Cura”. Apresentará trabalhos de
artistas locais que exploram temas relacionados com doença, medicina e
recuperação.
Nessa manhã, a nossa primeira paragem é o mercado dos agricultores,
que fica a poucos quarteirões. A Nitasha conduz-me entre bancas ao ar
livre que vendem frascos de picles, alfaces exuberantes e sabonetes
artesanais de leite de cabra. Enquanto passeamos, ela fala-me do
dermografismo, uma doença de pele com a qual ela vive desde os oito
anos. Ela também sabe o que é ser atormentada por uma comichão.
– Coçar, coçar e coçar ainda mais, até desejar poder abrir um fecho
éclair e tirar a pele! – A mais pequena das comichões pode transformar-se
em ataques que podem durar meia hora.
Mas, tal como Frida Kahlo fez, a Nitasha transformou em arte este seu
sofrimento. Ao acaso, traça uns arcos com a unha no antebraço e eu vejo-
os a engrossar, tornando-se vincos vermelhos. Diz-me que é assim que
desenha na sua própria pele – umas vezes produz padrões geométricos
pormenorizados, outras vezes mensagens escritas – e depois vai buscar
inspiração ao que fica. Numa instalação a que chamou Skin Suit13, fez a
experiência de deixar objetos ferrugentos em cima de tecido e depois
tratou as manchas para criar padrões, imitando a aparência da pele vista
por uma lupa.
– Vejo o meu corpo como uma extensão do meu bloco de notas – diz-me
quando saímos do mercado hipster e começamos a atravessar ruas vazias,
passando por edifícios e armazéns abandonados. – Também dá muito jeito
para tomar nota de números de telefone – acrescenta, a rir.
Nessa tarde, a Nitasha leva-me a dar uma volta de carro pela cidade.
Passamos por uma casa abandonada onde os ramos de uma árvore
começam a sair pelas paredes. Atravessamos baldios que agricultores
urbanos transformaram em hortas de produção orgânica. Caminhamos
pelos passeios do Projeto Heidelberg, uma zona em que casas degradadas
foram transformadas em peças de arte pública pintadas com bolas
psicadélicas e nos relvados se erguem esculturas feitas com pedaços de
bonecas e outros objetos atirados fora. Paramos em frente da fachada de
tijolo de um armazém pintado a spray com nuvens de cor-de-laranja e
azul-marinho. No canto inferior direito, há uma inscrição do artista
Fel3000ft que é como um grito de apelo à reconstrução depois de uma
qualquer catástrofe:
“Fomos considerados muita coisa: uma cidade em decadência, uma
cidade em apuros e uma cidade sem esperança. No entanto, nunca
desistimos e nunca desistiremos. Somos guerreiros natos, erguemo-nos
das cinzas. Somos uma comunidade que acredita no nosso futuro, apesar
de tudo o que lancem contra nós. Somos Detroit!”
Estou a aprender a ler os estados de espírito das cidades, e estou em
sintonia com Detroit, mais do que com qualquer outra. É uma cidade com
muitas histórias. É um lugar movido pela indústria automóvel que fez
mover os Estados Unidos. É um lugar marcado pela segregação, mas
também por uma promessa tão grande que, durante a Grande Migração,
foram dezenas de milhares os americanos negros que aqui vieram
instalaram-se. É um lugar que quase morreu quando as empresas de
automóveis efetuaram cortes drásticos e se mudaram para outros sítios,
mas que não morreu, que se recusa a morrer. É um lugar onde o futuro
está pintado sobre o palimpsesto de um passado doloroso – pintado em
pele marcada por golpes, irada e bela, com uma beleza que transcende a
raiva, mas que também não seria possível sem ela. E não é sempre assim
que as coisas acontecem, quando a catástrofe obriga à reinvenção?
*

Antes de me ir embora de Detroit, a Nitasha leva-me a mais um sítio: uma


loja que tem um cartaz na montra a anunciar leituras de cartas de tarô e de
folhas de chá. Ela insiste comigo: este homem não é uma fraude, é um
vidente a sério, cuja especialidade é curar almas feridas. Nunca fiz nada
deste género na vida e o meu lado lógico pensa que é uma perda de tempo.
Mas aquele outro lado de mim, o que quer dissipar a incerteza que há na
minha vida, que quer agarrar a ilusão de saber o que me vai acontecer, não
consegue resistir.
Por trás da montra modesta há uma sala saturada de incenso onde se
alinham prateleiras de cristais, óleos e ervas, tudo à venda. O vidente, um
homem com uma t-shirt com lantejoulas colada ao corpo e jeans passadas
por ácido, leva-me à parte de trás da loja. Por trás de uma cortina pesada,
sentamo-nos à frente um do outro, com as minhas mãos nas mãos dele e
os nossos rostos banhados pela luz tremeluzente de velas votivas.
Passados uns minutos, o corpo dele começa a tremer e os olhos reviram-
se, ele fica possuído por aquilo que eu só posso pensar que são “visões”.
Olho para tudo com ceticismo e já lamento os cinquenta “paus” que vou
ter de pagar.
Quando ele abre os olhos, diz-me que recebeu a visita de um
antepassado – uma mulher, talvez uma tia, do lado paterno da minha
família. Inclina a cabeça para trás, como se fosse dar um grande gole de
água, os lábios abrem e fecham, as pálpebras tremem com a ferocidade de
um homem possuído. Quando reabre os olhos, diz-me que esta tia minha
estava muito doente antes de morrer. A seguir, pergunta-me se eu também
estive doente.
Tento manter a frieza e respondo-lhe que sim, que estive doente, e que
sim, que agora que penso nisso o meu pai tinha uma irmã, a Gmar, que
morreu muito jovem com uma doença misteriosa. Ele diz-me que a Gmar
passou muitas noites e muitas dias preocupada comigo e que fez tudo o
que pôde para me manter a salvo. Embora o meu corpo esteja livre de
perigo, eu agora estou a viver um tipo de odisseia diferente – um caminho
longo e difícil que me levará ao fundo do desconhecido antes de poder
descobrir a lucidez. Quando o oiço falar, os meus braços arrepiam-se.
Penso, por um instante: Disse-lhe o meu nome? Dei-lhe outra informação
qualquer? Foi o meu cabelo curto que lhe deu uma pista? Não creio que
tenha sido nada disso, mas já nada me importa. Chego-me à frente na
cadeira. Quero saber mais.
O vidente espalha sobre a mesa um baralho de cartas de tarô e convida-
me a escolher. A cada carta que tiro, ele vê mais sobre mim. Diz que vou
escrever um livro, um livro que me vai levar pelo mundo. Diz que vai ser
uma luta para eu me comprometer com um parceiro, mas que, após um
longo período de incerteza, acabarei por assentar, com uma mulher –
espera, não, com um homem, corrige – e a seguir murmura uma série de
palavras mágicas.
Sei que, provavelmente, ele está a dizer aquilo que pensa que eu quero
ouvir, mas eu vejo o meu futuro como um corredor comprido com portas
fechadas e, a cada uma das suas previsões, há uma porta que se abre e eu
vejo mais além. Até agora, para mim, o tempo foi medido em ligeiros
avanços – a próxima biópsia, a consulta médica seguinte. Imaginar o
futuro é um exercício assustador quando a nossa vida foi suspensa. Exige
esperança, o que parece arriscado, até perigoso. Mas, quando ele fala, e
me diz que o meu desígnio é uma vida longa e comunicativa, quando me
apresenta o futuro como uma inevitabilidade, isso começa a parecer
possível.
– E mais coisas? – pergunto-lhe, de rosto aberto, pronta a ser enganada.
*

No dia seguinte, a chuva cai por entre as árvores nuas. O céu é de um


cinzento mate, o ar está húmido e pesado. Em cidades que já ficaram para
trás, sempre interpretei o mau tempo como um sinal de que era chegado o
momento de seguir em frente – e sim, é verdade, estou pronta a partir.
Mas, mesmo no meio do gelo e com o aquecimento do carro no máximo
enquanto a chuva fustiga o para-brisas, custa-me sair de Detroit.
Na estrada, enquanto penso na próxima paragem, o meu espírito divaga
até à minha quarta e última ida ao hospital com um episódio de C. diff. Só
passou um ano, mas não me lembro de grande coisa – tentei apagar esses
últimos dias do tratamento e com o Will. Mas aquilo de que me recordo
com mais clareza é que senti um impulso incontrolável para me autoisolar,
como se fosse um coiote ferido que se afasta da matilha quando sente que
o fim está próximo. Não podia continuar estoica quando sabia que o Will
se preparava para sair do nosso apartamento. Mandei a minha mãe para
casa e não recebi visitas. Disse a todos que estava ótima, quando, na
verdade, precisava de privacidade para me desmoronar.
O Bret, ao encontro de quem conduzo agora, foi uma exceção à regra de
não receber visitas que vigorou nesse período. Ele foi uma das pessoas
que me abordou na sala de espera da clínica de transplantes,
reconhecendo-me da coluna no jornal. Lembro-me de pensar no acaso de,
nesse dia, termos acabado sentados ao lado um do outro. Era a primeira
vez que eu ia sozinha à quimioterapia, era a primeira vez dele no Sloan
Kettering e a presença de outro doente jovem representou um conforto
mútuo. Depois desse dia, continuámos em contacto, trocando de vez em
quando emails, telefonemas e conselhos médicos. Só voltámos a
encontrar-nos mais uma vez, mas de certa forma senti-me mais próxima e
mais ligada a ele do que à minha família e amigos. O trauma arranja uma
maneira de dividir a nossa visão do mundo em dois campos: o daqueles
que percebem e o dos que não percebem.
Na última vez que nos vimos, o Bret estava prestes a iniciar a sua
viagem por estrada. Os médicos tinham-lhe dito que estava
suficientemente estável para poder ser tratado num hospital mais perto de
casa e ele ia regressar a Chicago com a mulher, a Aura. Antes de se irem
embora, entraram os dois de rompante no meu quarto no hospital,
excitadíssimos com todas as possibilidades que se abriam diante deles.
Compraram-me um chapéu idiota numa estação de serviço – uma boina
branca com uma rede brilhante e cristais colados, que parecia totalmente
absurda na minha cabeça com o cabelo cortado curto. Fiquei imensamente
feliz ao ver que o Bret estava bem, e gostei instantaneamente da Aura,
cuja radiação enchia o quarto e que, por tudo aquilo que eu tinha ouvido,
merecia uma medalha de ouro pelo seu trabalho de cuidadora. A visita
deles animou-me, mas quando se foram embora voltei a sentir-me em
baixo. Vê-los assim, tão felizes juntos, apesar de tudo o que tinham
passado, era uma prova de que era possível o amor sobreviver a uma
doença prolongada. Mostrou-me como as coisas podiam ter funcionado de
maneira diferente comigo e com o Will – e levantou perguntas dolorosas
sobre o porquê de não terem funcionado.
*

No South Side de Chicago, estaciono em frente de uma casa de estilo


vitoriano num bairro tranquilo. O Bret mostra-me a casa e explica-me
como é que há um ano esticaram o orçamento para a conseguir comprar; é
a primeira casa deles. Ele tem tentado manter-se ocupado com pequenos
projetos de renovação e acabou de consertar uma infiltração no telhado.
Num futuro próximo esperam que chegue um bebé, mas, diz-me ele, ainda
há muito trabalho a fazer antes. Admiro os soalhos em madeira e as
grandes janelas da sala, a casa de jantar iluminada pela luz e o escritório,
sobre o qual ele me confessa que têm planos para o transformar num
quarto de criança. O modo adulto de tudo isto impressiona-me – a maneira
como bebem café gourmet no alpendre das traseiras, cuidam das plantas,
pagam uma hipoteca. Andam pelos trinta e poucos anos, são apenas um
pouco mais velhos do que eu, mas as vidas deles parecem tão mais
sofisticadas, o oposto de dormir em parques de campismo e em sofás, a
sobreviver de café de estações de serviço e de sanduíches de manteiga de
amendoim e compota.
A Aura é assistente social numa escola pública – e ainda está no
trabalho. O Bret conta-me como ela é dedicada aos alunos, muitos dos
quais são de bairros perigosos, de baixos rendimentos. No tempo livre,
quando não está a ajudar a tratar do marido, ela dedica-se a organizar
iniciativas e protestos sobre a reforma do ensino.
– A minha mulher trabalha estupidamente – diz-me o Bret. – O mínimo
que eu posso fazer é garantir que ela, quando chega, tem à espera uma
casa bonita e uma boa refeição. – Põe-se a preparar um caril de galinha
com caju, abre uma garrafa de vinho e põe a mesa para o jantar.
Para quem olha de fora, é fácil partir do princípio de que o Bret e a Aura
têm uma vida encantadora, mas quando nos sentamos os três à mesa
falam-me de tudo o que aconteceu no último ano – e que inclui um ataque
cardíaco que quase matou o Bret, provavelmente provocado por danos nos
vasos sanguíneos, causados pelas radiações recebidas no tratamento.
O Bret sofre igualmente de DEcH, que eu também enfrentei. No meu
caso, felizmente, foi ligeira, e está controlada, tirando a erupção cutânea
que às vezes me aparece na testa. Mas, no caso dele, piorou
consideravelmente desde a última vez que nos vimos: atacou-lhe os
pulmões e deu-lhe uma tonalidade vermelha viva aos olhos e à pele.
Antes, o Bret era realizador de cinema; agora tem um subsídio de
invalidez. Por causa dos imunossupressores, as mãos tremem-lhe e, por
isso, não é capaz de segurar uma câmara com firmeza. Não se sabe se
alguma vez voltará a estar suficientemente bem para poder trabalhar de
novo. No futuro previsível, terá de depender da assistência da mulher, não
só fisicamente, mas também financeiramente. Não conseguiria sobreviver
sem o seguro de saúde do trabalho dela.
– Já recebi tanto apoio e tanto amor que quero desesperadamente
contribuir para o mundo, mas não consigo – diz o Bret, num tom
subitamente sombrio.
Embora livre do linfoma que lhe atacou o corpo, o Bret está, de certa
forma, mais doente do que nunca.
– Passaram dois anos desde o transplante e ainda parece que estou no
inferno – confessa no fim do jantar, enquanto lava a loiça. – Doem-me as
mãos, os músculos e as articulações acordam-me às cinco da manhã. E a
minha caixa de comprimidos tem tanta coisa lá dentro que nem sou capaz
de lhe fechar a tampa.
A ironia cruel da medicina é esta: às vezes, os tratamentos que
recebemos para ficarmos melhores deixam-nos piores a longo prazo,
exigem mais cuidados e expõem-nos a mais complicações e efeitos
secundários. É um ciclo enlouquecedor.
*

– Consegui sobreviver ao transplante, fui capaz de superar o ataque


cardíaco, e estar vivo é uma porra de uma sorte – diz-me o Bret na tarde
do dia seguinte. Há granizo a bater nas janelas. A Tina Turner toca no gira-
discos. O Oscar e o Hodge, que é o cão deles, uma mistura de golden
retriever e de corgi, estão enrolados entre nós os dois no sofá. – Mas, de
cada vez que acontece alguma coisa, é um bocado mais difícil recomeçar,
sabes?
Aceno com a cabeça e murmuro que sim. Ele continua.
– É como os últimos assaltos de um combate de boxe. Já estamos para lá
de cansados e sabemos que as coisas provavelmente só vão piorar, e
mesmo assim temos de arranjar maneira de continuar a lutar. Mas, às
vezes, não consigo deixar de pensar: Para quê? Há tantas pessoas que
ficam melhores e depois apanham qualquer coisa ainda mais fatal. Tens
um linfoma e ele regressa como leucemia. O teu fígado está tão saturado
de toxinas que um destes dias entra em falência.
– E de certeza que há um cancro da pele aí a aparecer! – interrompo.
Rimos os dois.
O Bret e eu aprendemos os dois da pior maneira a prepararmo-nos para
receber más notícias. Os nossos corpos e, por conseguinte, as nossas
vidas, são capazes de entrar em implosão de um momento para o outro.
De certo modo, quando estávamos em tratamento era mais fácil lidar com
os reveses: encontrávamo-nos prontos para a possibilidade de as coisas
poderem dar para o torto. Mas quando o corpo nos trai repetidamente,
oblitera qualquer confiança nascente que possamos ter restaurado no
universo e no lugar que ocupamos nele. É cada vez mais difícil recuperar
o nosso sentido de segurança. Quando tivemos o teto a desabar sobre a
nossa cabeça – por doença ou por outra catástrofe qualquer –, não se dá
por garantida uma estabilidade estrutural. Há que aprender a viver sobre
linhas de falha.
*

Nessa noite, começo a pensar como é porosa a fronteira entre os doentes e


os saudáveis. Na vastidão da sobrevivência, não existem apenas pessoas
como o Bret e como eu. À medida que formos vivendo cada vez mais, a
vasta maioria de nós andará para a frente e para trás entre estes reinos, e
passaremos algures entre eles uma boa parte das nossas vidas. São estes os
termos da nossa existência. A ideia de procurar um estado de saúde belo e
perfeito? Isso lança-nos numa insatisfação eterna, é uma meta eternamente
fora do nosso alcance.
Estar bem agora é aprender a aceitar o corpo e a mente que tenho neste
momento, sejam eles quais forem.
13 Em português: fato de pele. (N. do T.)
31

O VALOR DA DOR

A maneira como nos curamos nem sempre se parece com uma cura. Há
quarenta dias, quando saí de casa, via esta viagem como uma
oportunidade para começar a viver de novo. Pensava que, quanto mais
conduzisse, mais me afastaria dos corredores de hospital por onde
flutuara, numa bata de algodão, a murmurar comigo mesma, atordoada da
morfina; mais longe me sentiria do quarto na Hope Lodge onde esperava
pelo Will, acordada na cama, com um medo frio a crescer-me na barriga;
mais distante ficaria do micro apartamento na Avenida A onde
construímos um lar – e depois o arrasámos.
Já está na hora de seguir em frente!, digo a mim mesma. Deixa isso
para trás! Mas quantos mais quilómetros interpunha entre mim e o Will,
mais perturbada ia ficando com o que nos acontecera. O desfazer da nossa
relação parece-me pior depois de ver como o Bret e a Aura encontraram
uma maneira de continuar juntos e fazem planos para ter um bebé, apesar
de os problemas de saúde dele serem permanentes.
Por estes dias, para onde quer que olhe vejo o fantasma do Will:
silhuetas de homens altos, desajeitados, com queixos quadrados e cabelo
solto, que fazem a minha pulsação acelerar. Irracionalmente, penso se não
será mesmo ele que está ali sentado ao balcão de um restaurantezinho
familiar no Iowa rural, a devorar douradinhos de galinha e batatas fritas,
ou a pescar truta nas margens relvadas de um rio nas Sandhills, no
Nebraska, onde passei um fim de semana a acampar. Estas aparições são
essencialmente na minha cabeça, mas há dias em que alguém ou alguma
coisa me lembra inesperadamente o nome dele, e as partes escondidas do
passado que vivem em mim sobem-me aos olhos, surgem como uma
inundação em espiral de desgosto e raiva, até eu não conseguir ver outra
coisa. Passei tanto tempo a tentar sepultar a memória dele, e a nossa, que
parece inevitável um ajuste de contas.
*

Sigo por Pine Ridge, uma das mais pobres reservas de nativos americanos
do país, com arbustos secos a rolarem pela estrada. A terra é despida e
árida. O ar é tão parado que parece assentar em tudo como se fosse um
sedimento – nas autocaravanas, nas barracas feitas de bocados de madeira
e oleado, nas pilhas enferrujadas de carros desmembrados. Na noite
passada, fiquei a dormir no chão da sala de um motociclista de rabo-de-
cavalo em Lead, no Dakota do Sul. Ele já tinha trabalhado nesta reserva e
disse-me que valia a pena uma visita. Antes de eu partir, pôs-me em
contacto com o pessoal do Thunder Valley, um projeto comunitário de
recuperação na “rez”, como todos chamam aqui à reserva.
No parque de estacionamento vazio do Thunder Valley, o vento assobia
e uiva e o frio pica-me a cara com a força de uma bofetada. Sou recebida
por um jovem da nação Oglala Lakota, que se apresenta como o diretor e
fundador. É um tipo forte e com cara de bebé, de pele escura coberta por
tatuagens e uma trança negra brilhante que lhe serpenteia pelas costas
abaixo. Apresenta-se – “Nick” –, dá-me um aperto de mão firme e leva-me
a uma das casas-contentores onde o Thunder Valley tem a sua sede.
Sentamo-nos a uma mesa e Nick começa a falar-me do trabalho que
fazem aqui. Tudo me interessa – o projeto piloto de habitação sustentável
com fardos de palha, a horta comunitária para suprir a falta de alimentos
frescos na reserva –, mas parece que não sou capaz de me concentrar. Há
qualquer coisa de familiar no Nick, aliás, todo este lugar é familiar e as
sinapses do meu cérebro vão disparando sinais e distraem-me.
– Já nos encontrámos antes? – interrompo-o.
– Estava precisamente a pensar a mesma coisa – responde. – Importa-se
de repetir o seu nome?
Repito o primeiro e último nome, articulando mais devagar a sequência
de vogais.
Inclinando-nos um pouco para a frente nas nossas cadeiras, olhamos um
para o outro, tentando encontrar um dossiê esquecido há muito tempo nos
ficheiros da memória. E depois dá-se um clique. “O Will”, dizemos os
dois.
*

Ainda parece inacreditável. Tenho tentado bloquear o passado com tanta


força que fiz o caminho todo até aqui – a Pine Ridge, ao Thunder Valley,
para encontrar o Nick – sem unir os pontos: o pai do Will, jornalista e
autor de documentários, fez um trabalho sobre esta reserva no início da
sua carreira. Ele contou-me como, no final dos anos 60, os nativos norte-
americanos, fartos de séculos de maus-tratos por parte do governo federal,
criaram uma organização de base, conhecida como Movimento Índio
Americano e lideraram protestos em todo o país, um dos quais acabou
num tiroteio mortal com dois agentes do FBI, em Pine Ridge, em 1975.
O pai do Will era o único jornalista não-nativo americano que estava
presente durante esse episódio. Encontrava-se no exterior de Jumping
Bull, um rancho no canto sudoeste da reserva, quando foram disparados
alguns tiros. Uma bala perdida atingiu-lhe a carrinha e ele escondeu-se
atrás do veículo, registando tudo o que se passava num gravador portátil
para ser transmitido na National Public Radio.
Nos meus primeiros tempos em Paris, quando o Will e eu estávamos na
fase de trocarmos cartas, ele contara-me como às vezes, em miúdo, tinha
acompanhado o pai em reportagens – e foi por isso que fez amizade com o
Nick e com a família dele. Até me enviou um artigo sobre o trabalho do
Nick no Thunder Valley. “Se alguma vez fizeres planos para vir aos
Estados Unidos mais de uma semana, nós podemos ir lá fazer uma visita”,
escreveu-me. “É uma parte do país onde poucas pessoas alguma vez vão.”
Ainda estávamos numa fase inicial da relação, e lembro-me de estar bem
menos interessada no artigo sobre o Thunder Valley do que em decifrar o
que significava aquele nós – que me dera a esperança de que ele também
visse que a nossa relação podia expandir-se para lá das cartas.
Eu e o Nick continuamos a abanar a cabeça, incrédulos, enquanto
procuramos juntar as peças todas, completamente estupefactos pela
estranheza de estarmos aqui os dois, hoje, frente a frente, sob
circunstâncias sem qualquer relação. Ele soube tudo sobre mim pelo Will
– tudo sobre a minha doença, sobre o que escrevo – e até sou amiga da
irmã dele no Facebook.
– Que mundo tão pequeno este… – espanta-se o Nick.
– Que mundo pequeno – repito, mais perturbada do que maravilhada.
– Bem, seja como for, como é que está o Will? – pergunta ele. – Há um
tempo que não falamos.
Os meus ombros caem quando tomo consciência de que o Nick não sabe
de nós. Ainda não faço a mais pequena ideia de como contar o que nos
aconteceu, a mim e ao Will, e, quando tento, consigo ouvir o rancor a
intrometer-se na minha voz, apesar de todos os esforços para o manter
distante. Sei que não é nada justo apresentar o Will como o vilão – não
mostra as muitas e incontáveis maneiras como ele me amou, esteve ao
meu lado, procurou ficar comigo –, mas mesmo assim não sou capaz de
contar a história de outra maneira.
– Não tenho bem a certeza do que ele anda a fazer agora – acabo por
dizer, procurando manter a voz firme. Mas a raiva está lá, a vibrar mesmo
sob a superfície.
– Oh… Não fazia ideia de que se tinham separado. É pá, lamento
imenso… – diz o Nick.
– Eu também tenho muita pena. – Limpo os olhos com o antebraço, num
gesto único, firme, antes de mudar de assunto. Estes céus limpos do Oeste
são demasiado grandes, o horizonte é amplo demais: faz-me sentir em
sobrexposição. Quando estamos num estado de doença profunda, sentimo-
nos assim: sem proteção e vulneráveis ao mundo.
*

Passo a noite na reserva, num motel chamado Lakota Prairie Ranch


Resort. O quarto dá para um parque de estacionamento e tem uma alcatifa
pegajosa e uma coberta de cama aos folhos. Na bancada da casa de banho
há uma pequena pilha de toalhas sujas de óleo ao pé de um cartão onde
está escrito: “À sua disposição: POR FAVOR, use estes trapos para limpar
líquidos derramados, sapatos, armas.”
Atiro a colcha para o chão, abro o saco-cama em cima do colchão e
passo as horas seguintes a tentar convencer-me de que estou a dormir
quando, na verdade, estou a pensar no Will. Lembro-me de que, a seguir
ao meu diagnóstico, o Nick convidou o Will a trazer-me a Pine Ridge para
uma cerimónia de cura chamada Dança do Sol. Lembro-me de como o
Will, depois de os meus médicos terem dito que eu não estava bem para
viajar, decidira ir a Pine Ridge sem mim. O facto de ele poder deslocar-se
e eu não, tinha sublinhado a diferença entre nós os dois – e entre mim e os
meus pares, entre mim e todas as pessoas capazes do mundo. Ainda não
conseguia perceber porque é que umas pessoas sofriam e outras não,
porque é que umas vidas eram tocadas pela infelicidade e outras eram
poupadas. Ser jovem e estar doente era injusto – e era tão injusto que às
vezes era absolutamente insuportável. Eu sempre tinha percebido, pelo
menos em teoria, que estar revoltada contra isto tudo era inútil – mais, era
até tóxico. Mas, mesmo assim, eu comparava as minhas limitações com as
liberdades de outros. Queria tanto a liberdade deles que os odiava pela
liberdade que tinham.
Por trás das minhas pálpebras fechadas arde um fogo de chamas de
remorso que me mantém acordada. Embora seja fácil destruir o passado, é
bastante mais difícil esquecê-lo. Continuo a lembrar-me, repetidamente,
da primeira grande discussão que eu e o Will tivemos. Tal como tantas
primeiras discussões, estavam lá as sementes da discórdia que, mais tarde,
floresceriam em força. Devíamos viajar daí a uns dias para Santa Barbara,
para o casamento de um amigo de infância do Will. Já não andávamos de
avião desde que o tratamento começara e eu estava ansiosa por mudar de
ambiente. Mas, à medida que a data de partida se aproximava, tornou-se
claro que eu não conseguiria ir se os números das minhas análises ao
sangue não melhorassem miraculosamente. No entanto, insisti até ao
último minuto que estava suficientemente bem.
Era frequente que a minha vontade desesperada de fazer parte do mundo
me levasse a tomar as piores opções, e isso significava que o Will tinha
com frequência de assumir o papel desagradável da pessoa que me
obrigava a fazer as coisas. E, umas noites antes da data de partida, ele teve
uma conversa a sério comigo.
– Falei sobre isto com os teus pais – disse-me suavemente, pondo um
braço à volta do meu ombro e puxando-me para ele. – Sabes como eu
quero que tu vás, mas nós estamos todos de acordo: não é absolutamente
nada seguro entrares num avião nesta altura. Tens de ficar em casa e
descansar.
Lembro-me de ficar esmagada pela vontade de gritar, cheia de uma
raiva tão grande que queria levantar-me e rasgar o céu. O Will tinha razão
– entrar num avião no meu estado era desafiar a morte. Eu sabia que ele
estava só a tentar proteger-me, mas não sabia para que outro lado havia de
orientar a minha raiva. Empurrei-o.
– Como é que te atreves a falar com os meus pais nas minhas costas?
Como se eu fosse uma criança incapaz de tomar decisões por mim. Como
se eu já não me sentisse suficientemente inútil. E deixa-me adivinhar uma
coisa: vais sem mim, certo?
Vi aquele homem desmoronar-se à minha frente – um homem que não
via a família nem os amigos há meses, um homem que não tinha saído de
ao pé de mim desde o meu diagnóstico, um homem que tinha passado um
verão de noites sem dormir numa cama de campanha montada ao lado da
minha cama de hospital.
– Sus, por favor não te enerves – implorou-me. – Eu preciso de uma
pausa.
– Ah, sim? E eu? Eu também preciso de uma pausa! – respondi-lhe de
imediato.
Acordei na manhã seguinte coberta de vergonha. Sabia como me tinha
comportado. Eu sabia como é importante para os cuidadores terem a
dádiva de momentos só para eles, livres de qualquer sentimento de culpa.
O Will não só precisava desesperadamente de uma pausa, como a merecia
– e eu disse a mim mesma que o facto de estar demasiado doente para sair
não queria dizer que ele também tivesse de ficar em casa. Com isto bem
presente, tentei conter a minha raiva quando o Will viajou e foi ao
casamento. Mas era difícil contê-la muito tempo. Por muito fundo que eu
a enterrasse, acabou por vir ao de cima.
Nos dias seguintes, à medida que fotografias do Will iam caindo no meu
feed do Facebook, comecei a ficar cada vez mais irritada. Cada nova
fotografia que eu via – o Will com amigos na praia, a jogar futebol, num
bar, a dançar – fazia a minha raiva ferver cada vez mais, até se aproximar
da superfície. No quarto, sozinha, o meu lado irracional apoderou-se de
mim: talvez o Will até estivesse secretamente aliviado por eu não estar
bem para o poder acompanhar. Sem mim, podia sair até às horas que
quisesse. Uma namorada doente era um peso, um aborrecimento, sempre a
ameaçar estragar a festa ou fazer a noite acabar mais cedo, porque estava,
outra vez, cansada.
Claro que o motivo principal para a minha fúria eram os maus
resultados das análises ao sangue que me tinham impedido de o
acompanhar, era o corpo que me mantinha amarrada à cama, era a
quimioterapia que teria de fazer no fim dessa semana e era a possibilidade
de a minha vida terminar antes mesmo de ter começado. Mas é difícil
canalizar a fúria para qualquer coisa tão nebulosa como é o cancro.
É preciso orientar a trajetória da nossa raiva, idealmente para uma tela ou
para um caderno, antes que ela se dirija a um alvo humano – só que eu,
nessa altura, não sabia como fazer isso. Quando o Will me telefonou, já a
meio da festa a seguir ao casamento, parecendo pateta, despreocupado e
um pouco tonto, eu arranjei um pretexto para começar uma discussão. Fiz
isto todo o fim de semana, impliquei com ele por todo o tipo de coisas
idiotas – por não telefonar logo quando tinha dito que ia telefonar ou por
não responder de imediato a uma mensagem minha.
No centro da minha raiva estava o medo de que, ao passar algum tempo
lá fora, no mundo, o Will se desse conta de tudo o que estava a perder.
O medo de que se fartasse de tomar conta de mim, de que me deixasse e
não regressasse.
Lamento não saber, nessa altura, que o medo descontrolado nos
consome e acaba por se tornar quem nós somos, até que aquilo que mais
receamos acontece mesmo.
Já para o fim da viagem do Will, fiz uma febre alta e regressei ao
hospital, onde fui internada por um período que se prolongaria por
semanas. O Will saiu direto do aeroporto para a enfermaria de oncologia,
onde me encontrou ligada a tubos e a máquinas, a respirar com
dificuldade, com o rosto cinzento e mais uma infeção a alastrar pelo
sangue. Sentado ao meu lado na cama, inclinou a cabeça entre as mãos e
chorou. “Eu nunca devia ter ido”, disse.
Uma confissão: nesse momento, senti um prazer secreto em ter ficado
tão doente quando ele se foi embora. Isso queria dizer que ele fora
obrigado a encurtar a viagem. Queria dizer que ele estava de volta à
Bolha, comigo, e que eu não estava sozinha. Queria dizer que ele pensaria
duas vezes antes de ir outra vez. Eu acreditava mesmo que se o
conseguisse manter próximo de mim, isso impediria que nos afastássemos.
Eu era tão nova…
*
Antes de deixar Pine Ridge, li sobre a Dança do Sol, uma cerimónia
curativa que acontece todos os verões desde há séculos. Começa com uma
equipa de mais de cem homens a trabalharem juntos para derrubar uma
árvore enorme numa floresta próxima. Usando um conjunto completo de
arneses, baixam a árvore, com cuidado para ela não tocar o solo, e
carregam-na na caixa de um camião. Depois de a árvore ser levada em
segurança para a reserva, os homens erguem-na no centro de uma espécie
de arena circular que fica numa clareira entre as montanhas e é conhecida
como Thunder Valley, o vale do trovão.
Nesta cerimónia, a árvore é a peça central – física e espiritual. Os seus
ramos são enfeitados com centenas de “laços de tabaco”, oferendas de
folhas de tabaco enroladas em panos multicolores, em que cada tom
representa uma oração diferente. Os homens perfuram a pele com agulhas
e, com cordas, ligam o seu tronco ao tronco da árvore. Prescindido de
qualquer alimento e bebendo apenas uma pequena quantidade de água,
cantam, dançam e rezam quatro dias seguidos sob um sol escaldante.
Muitos acabam por tombar no chão. Dor, calor, desidratação e fome não
são acasos: fazem parte do processo. Os dançarinos acreditam que, ao
simularem a morte, aliviam a dor e as penas tanto da comunidade como
dos seus antepassados. Não se trata aqui de penar, ou de glorificar o
sofrimento, mas de recriar e de honrar o ciclo da vida e da morte. Após um
derradeiro ritual de purificação, espera-se que regressem ao mundo
renovados, espiritualmente limpos e com uma força nova para lidar com
tudo o que têm por diante.
É uma lição sobre o valor da dor.
Estou a compreender que, se quero cruzar a distância entre a quase-
morte e a renovação, em vez de procurar sepultar a minha dor tenho de a
usar como um guia para me conhecer melhor. Ao confrontar o meu
passado, tenho de lidar não só com a dor de perder outras pessoas, mas
também com a dor que infligi a outros. Tenho de continuar a procurar
verdades e ensinamentos nestes longos e solitários trechos da autoestrada,
mesmo quando – e em especial quando – essa busca traz com ela
desconforto.
*
Algures entre o Dakota do Sul e o Wyoming, o frio outonal transforma-se
numa geada assassina e as árvores esvaziam-se de pássaros. Baixo o vidro
da janela, ponho o braço de fora e fico quase imediatamente com a mão
dormente. O ar está saturado com um cheiro húmido, a giz. Começa a
nevar, um floco aqui, outro ali, e o meu espírito põe-se a vaguear.
Enquanto vou avançando, às vezes parece que não sou mais do que
memória. Revivo episódios antigos da minha vida, deteto erros sem conta
e escolhas lamentáveis, sem poder fazer nada para os corrigir. Só consigo
entender melhor o que aconteceu.
Neste momento específico, estou a meio da recordação de uma conversa
telefónica que tive com o meu pai, já para o fim dessa estada no hospital.
Eu tinha acabado de lhe dizer que o Will ia sair de casa e que não pensava
que voltássemos a estar juntos. “Tu és minha filha e eu amo-te mais do
que tudo”, disse-me o meu pai. “Mas não tenho a certeza de que eu, com a
idade do Will, tivesse sido capaz de ficar ao teu lado como ele ficou.”
Lembro-me de me sentir magoada quando desligámos. Em vez de
elogiar o Will, o meu pai devia ter ficado preocupado por ele me ir deixar.
Nessa altura, ainda estava demasiado zangada para compreender o que ele
queria realmente dizer. Agora, enquanto conduzo, ainda tento perceber.
Na minha cabeça, perdoei ao Will por se ter ido embora, mas, no meu
coração, ainda me sinto traída. O Will e eu não nos falamos, mas de vez
em quando ele ainda me manda uma mensagem ou uma foto por email –
uma lista manuscrita dos meus medicamentos da quimioterapia, com
instruções que ele anotou num diário, uma fotografia em que estou deitada
numa maca com uma máscara de oxigénio na cara. Não sou capaz de dizer
se ele faz isto por nostalgia ou por hostilidade – como se me dissesse Vê
bem tudo aquilo que eu fiz por ti. Odeio a forma como estas mensagens
me recordam de quanto eu precisava dele – e me lembram o poder que ele
ainda tem sobre mim. Fico furiosa só de pensar nisso. “Vai-te foder, vai-te
foder, vai-te foder”, vou entoando enquanto conduzo. Quero que ele deixe
de me culpar pelos seus problemas. Quero que ele me peça desculpa por
todas as formas como me magoou – e, aí, posso finalmente deixar de estar
zangada. É o que digo a mim mesma.
Tenho no horizonte a cordilheira de Teton. Viro para a John D.
Rockefeller Jr. Memorial Parkway, um troço majestoso de autoestrada que
conduz ao parque nacional de Yellowstone, mas estou demasiado
mergulhada nos meus pensamentos para admirar o que me rodeia.
Lembro-me de que tenho vinte e sete anos, que é a idade que o Will tinha
quando eu adoeci. Nessa altura, a diferença de cinco anos entre nós
parecia abissal – como é natural quando se tem vinte e dois anos e cada
ano de vida pode muito bem assemelhar-se a uma década. Uma vez, a
brincar, quando vivíamos em Paris, chamei-lhe “mon vieux”.
Enquanto vou conduzindo por entre aquilo que se tornou um nevoeiro
rodopiante de neve, procuro imaginar o que é que eu faria se estivesse
agora na posição do Will. Tento imaginar o que seria apoiar alguém com
quem namorava apenas há uns meses e que acabava de receber um
diagnóstico fatal. Tento imaginar o que seria fazer as malas, viajar para
uma cidadezinha onde nunca estive antes e passar a viver com os pais
dele; estar meses da minha vida a dormir numa cama de campanha de
hospital; recusar promoções profissionais num momento em que a maior
parte dos meus amigos estavam focados em progredir nas carreiras.
Procuro imaginar como é que reagiria ao ser o alvo da sua ira. Procuro
imaginar como seria andar à procura de um anel de noivado sabendo que a
pessoa que amava talvez não sobrevivesse. Quando tento imaginar-me a
fazer isto tudo, venho-me abaixo. Não sou capaz. Duvido que tivesse sido
capaz de fazer uma fração daquilo que o Will fez por mim.
*

A verdade é que eu não fui capaz de escutar as necessidades do Will por


cima do clamor das minhas próprias necessidades. Eu precisava de uma
garantia constante de que as minhas necessidades não eram excessivas.
E quando elas se tornaram excessivas, tornei-lhe absolutamente
impossível fazer as pausas de que ele necessitava tão desesperadamente.
Nesses meses finais, sempre que ele me acompanhava a mais uma ida às
urgências, a expressão no seu rosto era a de uma obrigação exausta. Tomei
isto como a prova de que eu era de facto um fardo e de que ele estava a
cumprir um tempo de pena até poder, finalmente, ir-se embora. Mas, no
fim, não foi a doença que o afastou, fui eu. Foram os inúmeros pequenos
gestos com os quais, ao longo dos anos, o fui empurrando, o fui
desafiando a ir-se embora – até que, um dia, ele acabou por ir.
Lamento tanto, murmuro na escuridão.
Neva ainda com mais força e os limpa-brisas estão no máximo. Penso
que talvez seja o momento de parar por hoje e de encontrar um motel até a
tempestade acalmar, mas também receio que, quanto mais demorar esta
etapa da minha viagem para o Oeste, piores se tornem as condições do
tempo. Decido continuar até à fronteira com o estado de Montana. Sem
outros veículos à vista, os meus pneus deixam marcas no solo branco e
imaculado. Os pinheiros ponderosa que ladeiam a autoestrada estão
dobrados sob o peso da neve e há partículas de gelo pendentes dos seus
ramos. Tudo brilha sob a luz gélida e azul.
Ao longo da hora seguinte, esvai-se tudo o que resta da minha raiva para
com o Will. Em vez dela, consigo sentir aquilo que a raiva não me
permitiu sentir – e há muita coisa que quero dizer. O Will pode não ter
estado ao meu lado no fim, mas esteve lá quando era importante. Quero
pedir-lhe que me perdoe. Quero dizer-lhe como tenho saudades dele.
Se isto fosse um filme, eu telefonava ao Will agora, imediatamente, da
estrada. Talvez até encontrássemos uma maneira de voltar a ficar juntos.
Mas isto não é um filme. Da última vez que falámos, o Will tinha
conseguido um novo emprego, como editor de um site de desporto. Ouvi
dizer que ele anda com outra pessoa e que estão os dois felizes. Gostar do
Will neste momento é recordar com prazer memórias de nós os dois, sem
me deixar seduzir pelo seu canto da sereia. É resistir pegar no telefone.
É dar-lhe o espaço de que precisa para recuperar a sua vida. É fazer o mais
difícil: deixá-lo ir.
*

Quando me aproximo da fronteira com o Montana, passo por uma


cidadezinha daquelas que ficam ao lado da autoestrada e em que nem
reparamos se nos distrairmos e piscarmos os olhos. A rua principal está
vazia, exceto um carro solitário que me segue. Nos quarteirões seguintes,
o automóvel aproxima-se até ficar a uma distância desconfortavelmente
próxima. Por entre a neve, há um raio de luz vermelha a girar no seu
tejadilho, mas estou demasiado embrenhada nos meus pensamentos para
reparar nisso. É só quando oiço o bip bip de uma sirene que finalmente
percebo que estou a ser seguida por um carro da polícia.
É a primeira vez que a polícia me manda parar e o meu velho instrutor
de condução, o Brian, esqueceu-se de falar nisto nas nossas aulas.
Nervosa, guino para a berma e encosto e, numa tentativa profundamente
equivocada para mostrar respeito pela lei, abro a porta, pensando ir ter
com o agente algures a meio caminho entre os nossos carros. Mas, assim
que a ponta da minha bota toca no chão, percebo que cometi um erro
grave – um erro que, para pessoas que não têm a minha aparência nem os
meus privilégios, pode ser uma questão de vida ou de morte.
– Já para o carro! – grita o agente. – JÁ. PARA. O. CARRO.
Aterrorizada, atiro-me para dentro do carro e fecho a porta. O Oscar está
a ladrar altíssimo e eu a dizer-lhe para se calar, quando o agente aparece,
batendo na janela com os nós dos dedos enluvados.
– Desculpe – digo-lhe quando desço o vidro. – Pensei que devia ir ter
consigo lá fora. Pensei que era a coisa educada a fazer – explico-lhe,
pateta, a arfar um pouco.
O agente tem uma nuvem de sardas espalhadas pela cara e um ar jovem,
mas a sua expressão não é exatamente amistosa.
– Não volte a fazer uma coisa dessas – diz, olhando para mim com
dureza. – Sabe porque a mandei parar?
– Não, senhor.
– Ia oito quilómetros acima do limite de velocidade.
Abro a boca para pedir outra vez desculpa, mas o agente mostra-me a
palma da mão, num sinal para estar calada.
– Carta e livrete.
Rebusco o porta-luvas, que está cheio de porcarias – mapas, papéis
soltos, um bâton do cieiro e, inexplicavelmente, uma mola de brincar de
criança.
– Olhe, estou a ver, está ali – diz o agente, a apontar.
Regressa uns minutos depois com a minha carta e o livrete, e olha-me
pela janela aberta. Tem mais umas perguntas, entre as quais porque é que
eu, que acabei de tirar a carta, ando por aqui, no Wyoming, num veículo
com matrícula de Nova Iorque e registado no nome de outra pessoa.
– Na verdade, até é uma história com piada — digo-lhe, e lanço-me
numa longa explicação sobre cancro, reinos, uma viagem de cem dias por
estrada e o amigo que me emprestou o carro. Estou carregada de
adrenalina e é difícil perceber se o que digo faz algum sentido.
– Muito bem, menina, acalme-se – diz-me. Os cantos da boca dele
contorcem-se, ao conter um sorriso. – Vou deixá-la seguir com uma
advertência. Mas tenho de perceber uma coisa. Tem carta há pouco tempo.
Pediu o carro emprestado a um amigo. E está numa viagem.
Aceno que sim a cada frase.
– Mas por que raio, em nome de tudo o que é sagrado, vai a conduzir no
meio de uma tempestade de neve?
32

SALSA E OS SOBREVIVALISTAS

Ao avançar pela vastidão desolada de Montana, passam-se quilómetros e


quilómetros sem ver ninguém na estrada. A terra é imensa e está coberta
por um manto de neve até à altura do joelho, e o céu é tão vasto que me
faz sentir a única pessoa à face da terra. Há horas que conduzo em silêncio
quando o telefone toca. Dou um salto, um pouco espantada. Espreito e
vejo o nome do Jon a piscar no ecrã. Deixo ir para as mensagens.
Ultimamente, tenho andado com tanta coisa na cabeça que não sei como é
que hei de partilhar isso com ele. Quando falamos, as nossas conversas
pouco mais têm sido do que um tagarelar um pouco tenso. Será que já
deixámos de ter coisas para dizer um ao outro? Separados por meio
continente, é difícil recordar porque é bom estarmos juntos. O futuro da
nossa relação foi sempre um tanto precário e parece cada vez mais
improvável que aquilo que existe entre nós sobreviva à viagem.
A perda deixou-me alerta, desgastada – e não me refiro só à perda de
vidas que testemunhei nos últimos anos. São as perdas colaterais da
doença: a do Will, a da fertilidade e da maternidade tal como eu a tinha
imaginado, a da minha identidade e a da minha posição neste mundo. Às
vezes, o meu coração sente-se tão assombrado por fantasmas que não tem
espaço para os vivos – para a possibilidade de novo amor, de nova perda.
Ainda a noite passada recebi uma mensagem de alguém de que gosto e
que me deixou num estado de cautela profunda e desconfiada. Depois de
conduzir o dia inteiro debaixo do nevão, parei num bed and breakfast em
Gardiner, Montana, e decidi tomar um banho de imersão para relaxar e
descomprimir. Enchi a banheira quase até transbordar, descalcei as botas e
as meias de lã e tirei o resto da roupa. Mergulhei o corpo na água quente e
suspirei à medida que cada músculo se ia descontraindo. Depois de lá
estar um bocado, cheguei-me à beira e, com os dedos escorregadios,
peguei no telefone. Tinha vindo a acumular emails para responder e
pareceu-me que era uma boa altura para isso.
Ao passar pelas dezenas de mensagens não lidas, vi uma do meu amigo
Max. Fora enviada há uma semana e meia. O assunto – Novidades da
Saúde – deixou-me tensa. Há muitas pessoas doentes que enviam emails
para multidestinatários; é uma maneira de manterem a família e os amigos
a par do que se passa e nem sempre são mensagens com más notícias. Mas
eu conhecia o Max há quatro anos e ele nunca tinha enviado uma
mensagem para múltiplos destinatários. Eu sabia perfeitamente que as
notícias que estavam neste email, fossem elas quais fossem, não seriam
boas.
Fiquei um bocado a olhar para o telefone e depois pousei-o no chão de
tijoleira. Não queria ler a mensagem, não queria cruzar aquela porta.
Mergulhei a cabeça, abri os olhos, vi pequenas bolhas a soltarem-se dos
meus lábios e subirem à superfície. Voltei acima, com a água agitada à
minha volta. Quando a superfície voltou a ficar lisa, peguei outra vez no
telefone e comecei a ler.
*

“Queridos Todos,
O meu cancro está de volta aos meus pulmões e garganta e amanhã vou
ser operado no Cedars Sinai em Los Angeles. Não se sabe qual vai ser o
tempo de recuperação desta cirurgia – não sabemos o grau de
dificuldade de acesso aos tumores. Também não sabemos neste
momento se o tratamento imunitário que eu fiz foi de algum modo
eficaz, ou se não foi nada eficaz. A cirurgia tirará tudo isto a limpo e
ajudar-nos-á a planear os próximos passos.
Se precisarem de entrar em contacto comigo, ou de me enviarem
alguma coisa, em princípio terei acesso ao email, mas sabe-se lá o
estado de consciência em que me encontrarei… Por favor, não façam
muitas perguntas sobre como vai ser a logística, ou sobre onde e quando
eu estarei onde e quando – não temos maneira de saber isso neste
momento e não saberemos por mais algum tempo. POR EXEMPLO:
Mensagem boa: “Só para desejar as melhoras ao Max! Não é preciso
responder!”
Mensagem má: “Quando é a próxima vez que o Max vai à casa de
banho, e em que cidade – gostava de levar lá o meu schnauzer a visitá-
lo; é um schnauzer de massagens curativas da Irlanda, portador de boa
sorte. O Max vai morrer? Quantas vezes vai o Max morrer? Será que ele
pode ir à minha inauguração daqui a quatro meses?”
Adoro-vos a todos e agradeço extremamente o vosso apoio.
*

Sorri com a parte do “schnauzer de massagens curativas da Irlanda,


portador de boa sorte”. O Max via-se a si mesmo como um humorista e
estava sempre a tentar fazer rir toda a gente, até num momento destes, mas
quando acabei de ler pensei no que tudo aquilo queria dizer – ele tivera
recaídas múltiplas desde o primeiro diagnóstico, aos dezasseis anos, e,
apesar de todos os tratamentos, o cancro continuara a alastrar. O filho da
puta do cancro. A água da banheira parecia empurrar-me as pernas e os
braços para baixo. Voltei a mergulhar. Desta vez, fechei os olhos e gritei.
Talvez o maior teste ao amor seja a maneira como nos comportamos em
tempos de necessidade. É o momento de responsabilidade para o qual
todas as relações parecem dirigir-se. Sempre me orgulhei de ser uma boa
amiga em tempos difíceis, de ser capaz de enfrentar situações duras e de
estar acima do que é exigido para acompanhar alguém que vai aproximar-
se do fio da navalha. Nos últimos anos, enviei encomendas, ramos de
flores e telegramas musicais. Ajudei a realizar desejos da lista de coisas a
fazer antes de morrer, contribuí para a iniciativa Make-A-Wish, organizei
entregas de refeições, lancei angariações de fundos e estive à cabeceira de
moribundos.
Mas, ao pensar no Max, senti que o meu poço para gestos desta natureza
tinha secado. Nem sequer era capaz de encontrar em mim a capacidade
para responder. Quando saí da banheira e fui para a cama disse a mim
mesma: Amanhã.
E agora o “amanhã” chegou e eu continuo sem responder.
Carrego no acelerador e o pedal geme debaixo do meu pé. Não, não,
não. Não consigo voltar a passar por isto. É o que penso enquanto sigo
por um troço gelado de autoestrada. Não há crueldade maior do que
receber silêncio da parte de um amigo que pensávamos que seria dos
primeiros a dizer “Estou aqui, adoro-te, o que é que posso fazer?” Sei isso
por experiência própria. Mas o meu impulso, neste momento, é para a
autoconservação. É recuar, é proteger-me contra a dor de o perder também
a ele. Pensar em mais desgosto faz-me querer isolar. Desejo nunca mais
me tornar próxima de outra pessoa.
*

Sigo pela Autoestrada 141 para Avon, no Montana. É o género de


comunidade rural em que o número de cabeças de gado ultrapassa
largamente o de habitantes humanos. Vou visitar a Salsa, a cozinheira de
um rancho que me enviou uma encomenda quando eu estava no hospital e
prometeu alimentar-me com abundância se eu alguma vez viesse para
estes lados. Ela deu-me instruções detalhadas, ainda que um tanto
crípticas, sobre como chegar ao rancho da família. Quando lhe pedi uma
morada, ou coordenadas, sugerindo que seria mais fácil pôr essa
informação no GPS, a resposta da Salsa foi: “Deixa-te ir com Deus.”
Ando uns cinco quilómetros por uma estrada de terra. Quando vejo a
pequena cabana que a Salsa me descreveu – em madeira, com uma pintura
de um padrão azul e dourado num dos lados – viro logo à direita, fazendo
os pneus deslizar ligeiramente no gelo. O carro treme quando passo por
cima de uma grelha para o gado e entro noutra estrada de terra, na direção
da casa verde do rancho, no cimo do monte. Quando me aproximo, a Salsa
sai a correr da casa. Com bochechas redondas e rosadas e cabelo louro a
aparecer por baixo de um gorro, parece saída de um desfile natalício local
– onde seria a Mãe Natal. Está de anorak e botas e o sorriso abre-se
quando eu saio. Dá saltos e grita com um entusiasmo contagiante.
– Bem-vinda ao nosso estado importante e lindo! Temos andado todos
um bocado de bexiga apertada com a ideia de que ias aparecer – afirma,
enquanto me esmaga contra o peito.
A Salsa diz-me que anda há dias a preparar a minha visita e que fez
comida suficiente para alimentar uma equipa de cowboys – tabuleiros de
lasanha, fornadas dos seus famosos biscoitos com pepitas de chocolate
cozinhados no ponto e montanhas de pipocas caramelizadas para
comermos à noitinha. Varreu o quarto do rancho onde vou ficar, fez a
cama, cobriu-a com uma colcha feita à mão e acendeu o fogo na
salamandra para a temperatura estar confortável. Como se isso não fosse
suficiente, arranjou-me “um chapéu autêntico do Montana” – em pele, tipo
David Crockett, com uma cauda comprida, preta e castanha, atrás.
A Salsa é este género de pessoa: gosta dos outros a sério e não esconde
os sentimentos. Há dois anos tive uma primeira amostra do seu espírito
generoso quando nos encontrámos brevemente naquilo a que chamámos
um “acampamento do cancro”. Era um programa de uma semana de
aventura ao livre para jovens adultos com cancro, criado por uma
organização sem fins lucrativos, a First Descents.
A Salsa estava lá na qualidade de “mãe do acampamento” – como ela de
resto fazia questão de dizer às pessoas para lhe chamarem. Tinha-se
voluntariado para cozinhar três refeições por dia e para assegurar que,
nessa semana, seríamos bem tratados. A presença dela era reconfortante e
o seu sentido de humor brejeiro atraiu-me quase imediatamente. Sempre
que eu estava demasiado cansada para participar nas atividades do
acampamento, ia refugiar-me na cozinha, onde ela me estragava com
brownies, acabados de sair do forno, e me fazia chorar a rir quando
classificava os monitores – todos eles jovens desempoeirados habituados à
vida ao ar livre – por grau de atração sexual. Dava também goles de uma
garrafa de uísque ilícito que escondia das “autoridades do acampamento”
dentro de uma bolsinha com um fecho éclair decorada com versos da
Bíblia – o que me fez gostar ainda mais dela.
Adorei cada minuto naquele acampamento do cancro. Os monitores
ensinaram-nos a andar de caiaque e todos os dias passávamos horas a
vogar no rio. Cada batida dos remos na água fazia esquecer mais as
consultas com médicos e a quimioterapia. Deixei de estar obcecada com a
maneira como o meu corpo me tinha desamparado ou de me preocupar
com todas as formas como ele agora procurava aguentar-se e, em vez
disso, concentrei-me nas pequenas vitórias – ganhar coragem para saltar
de um rochedo para o rio, aprender a virar o caiaque e navegar entre
rápidos sem me voltar. No fim da semana, estava cansada e cheia de
nódoas negras, mas, pela primeira vez desde o diagnóstico, tinha orgulho
no meu corpo.
Quando regressei a casa, ia cheia de resoluções para ser uma pessoa “de
vida ao ar livre”, como proclamava a palavra de ordem do acampamento.
Tomei a decisão de sair da cidade aos fins de semana, para fazer umas
caminhadas, e propus ao Will irmos às montanhas Adirondacks fazer
campismo. Mas, pouco depois de regressar, fui internada com uma infeção
nos brônquios e estive dias ligada a uma botija de oxigénio. Não sei muito
bem como, mas a Salsa descobriu que eu estava no hospital e enviou-me
imediatamente uma encomenda com um lindíssimo pássaro em vidro para
eu pendurar na janela do quarto e um cartão a convidar-me para ir vê-la ao
Montana quando estivesse bem. “Podias vir ao rancho da minha filha,
conhecer uns cowboys a sério e andar a cavalo pela planície”, escreveu-
me. Ali deitada, na cama do hospital, imaginei o rancho. Vi montanhas,
maciços brancos a erguerem-se, imponentes. Imaginei-me a cavalo, a
galopar no meio dos bosques. O apito do monitor trouxe-me de volta à
realidade: tinha-se soltado a botija de oxigénio que, por um tubo, lançava
ar para as minhas narinas. O Montana era a muitos milhares de
quilómetros.
*

Minutos depois de chegarmos, o Oscar começa a perseguir as galinhas.


Correm à volta do estábulo. O Oscar corre o mais que pode, com as
orelhas a abanar ao vento, mas tem dificuldade em aguentar-se nas pernas
curtas. Há uma galinha em especial que lhe chamou a atenção, um pássaro
de porte altivo que cacareja enquanto lhe foge, aparentemente mais
irritada do que assustada com a perseguição.
– Desculpa. Acho que ele nunca viu uma galinha antes – digo à Salsa.
– Querida, não estou nada preocupada – responde-me. – Não leves a
mal, mas pelo ar do teu cachorro duvido que ele seja capaz de apanhar
alguma coisa. – A imagem do Oscar não era grandemente beneficiada pelo
facto de ele estar vestido com um casaco de inverno aos quadrados pretos
e vermelhos.
Erin, a filha da Salsa, junta-se a nós, e ficamos as três a olhar para o
espetáculo, a rir. Até os cães do rancho – rafeiros pastores rijos, a quem
faltam dentes da frente, de levarem coices do gado – parecem sorrir. Mas,
com o tempo, o Oscar vai ganhando velocidade, as patas pequenas vão
cortando o ar e os olhos castanhos brilham de determinação, à medida que
se aproxima cada vez mais da galinha. E, então, acontece: o Oscar voa
para diante num mergulho fantástico e apanha-a pelas penas da cauda.
– Oh, merda! Não, nãoooo, nãoooooo – grito, e desato a correr. Agarro o
Oscar pela coleira e volto a pôr-lhe a trela. Erin inspeciona a galinha, que
felizmente não está ferida.
– Ainda bem que o meu marido não está cá – diz. – Não há rancheiro
que não dê um tiro num cão que ande a perseguir uma galinha.
Enquanto a Salsa é gordinha e loura, a Erin tem olhos escuros e
luminosos, cabelo comprido cor de avelã e a compleição elétrica e
muscular de uma mulher que está sempre em movimento. Quando não
está a cuidar da casa, dos miúdos, a coser colchas à comissão e a orientar
grupos de estudo da Bíblia, Erin ajuda o marido a tratar do gado. Há cinco
gerações que o rancho é da família do marido, diz-me.
Apesar da zaragata com a galinha, a Erin e eu gostamos uma da outra
quase imediatamente. Vamos a pé até à casa verde do rancho que fica no
monte. Lá dentro, tiramos as botas e alinhamo-las junto à parede, perto de
uma salamandra acesa.
– Deixa-me mostrar-te a casa – diz, dando-me o braço. Sigo-a enquanto
ela me vai mostrando os quartos e o panorama sobre as montanhas e a
seguir descemos à cave, onde as prateleiras estão cheias de uma reserva
impressionante de comida enlatada, mantimentos vários e uísque – ou,
como lhe chamam, “hooch”. – Aqui, na nossa terra, caçamos, colhemos e
cultivamos praticamente tudo aquilo de que precisamos – diz a Erin com
orgulho.
Voltamos a subir à cozinha e procuro ter alguma utilidade enquanto a
Erin e a Salsa prepararam um soufflé de omelete e tiras grossas de bacon.
Atraídos pelos cheiros quentes, os quatro filhos da Erin aparecem na porta
da cozinha e espreitam-me curiosos. Andam numa escola com três salas,
mais abaixo na estrada, onde também estudam os filhos e as filhas dos
outros rancheiros. Usam botas na sala de aula, as atividades
extracurriculares são todas práticas e as piadas que dizem são sobre peidos
de vacas, diz-me a Salsa, despenteando o cabelo do rapaz mais novo, o
Finn.
Quando os miúdos já não estão a ouvir, a Erin diz-me que também tem
estado doente.
– Cancro do colo do útero – diz em voz baixa. Fico sempre surpreendida
com a quantidade de pessoas que conheço e que estão a travar uma batalha
pessoal. Quanto maior é a distância que percorro e quanto mais pessoas
conheço, mais convencida fico de que estas experiências humanas fazem
pontes entre experiências que, de outro modo, poderiam ser
inultrapassáveis.
Quando estou a pôr a mesa, chega o William, o marido da Erin. Está
com a roupa de trabalhar no rancho – boné de lã, lenço ao pescoço, um
blusão Carhartt justo, jeans e botas de pele. Tem uma barba
impressionante, tão comprida e macia que parece apropriada para um
ninho de pássaros. Bate amistosamente na ponta do boné, a cumprimentar-
me, e senta-se à cabeceira da grande mesa em madeira.
– Vamos agradecer – diz o William. O meu corpo fica tenso quando
todos estendem os braços para dar as mãos. Nunca na vida dei graças, mas
parece mal-educado não participar, por isso, inclino a cabeça e fecho os
olhos. O William diz uma oração curta e amorosa. – Obrigado, Senhor,
por este dia e por esta refeição, e abençoa-a para que seja alimento para os
nossos corpos. Ámen.
*

As mulheres dos rancheiros juntam-se todas as semanas para uma aula de


aeróbica na cidade, que é composta pela escola, pelo posto dos correios e
por um pequeno ginásio. A Erin convida-me a ir e a Salsa acompanha-nos.
O ginásio é bem iluminado, com um chão de madeira encerado que chia
debaixo dos ténis. Há cerca de uma dezena de mulheres, com idades que
abrangem várias décadas, em fatos de treino e blusões corta-vento. Olham
fixamente para mim quando sou apresentada. Fico com a ideia de que não
há muitas pessoas de fora a passar por aqui. Imagino que o meu nome
estrangeiro também não ajude muito. Mas quando a Erin começa a falar
sobre a viagem que estou a fazer, elas escutam com curiosidade e é
notório que os seus rostos se suavizam quando é pronunciada a palavra
“leucemia”.
– Bem-vinda – diz uma das mulheres. – Eu também sou uma
sobrevivente.
– Estamos contentes por a termos aqui connosco – diz-me outra.
– Já conheceu o irmão do William? – intervém uma terceira. –
É solteiro. E mesmo jeitoso.
– Espera aí! Se casares com o irmão do William, seremos irmãs! –
exclama a Erin.
– Já é altura de te arranjarmos um cowboy a sério, em vez de um ianque
da cidade, todo pipi – diz a Salsa em tom de brincadeira.
Quando chega a hora do exercício, as mulheres dos rancheiros não
brincam. Durante uma hora, percorremos todo o ginásio e, em cada
paragem do circuito, somos sujeitas a um novo tipo de exigência. De
quatro no chão, damos saltos até as pernas ficarem a tremer, fazemos
agachamentos até os glúteos queimarem e flexões até quase à exaustão.
Mas, para grande surpresa e satisfação minha, consigo acompanhá-las.
A seguir vou lavar-me e vejo no espelho um reflexo que recordo
vagamente. A minha pele costumava ter a palidez lunar de uma bétula,
mas agora tenho as bochechas rosadas e os meus olhos brilham. Há
endorfinas a percorrer o meu corpo como eletricidade e sinto-me forte,
cheia de energia. Aliso as pontas espetadas do cabelo, que já tem o
comprimento suficiente para o poder ajeitar para trás das orelhas – muito
Leonardo DiCaprio anos noventa, penso. Não me pareço nada com a
rapariga que saiu de casa há quase cinquenta dias. Sou uma viajante, uma
aventureira, uma guerreira da estrada, a fazer quilómetros atrás de
quilómetros, mesmo que todos os dias me deite desfeita de cansaço.
*

Nessa noite, ao jantar, o irmão do William aparece, bonitão como todas


tinham dito, e vai-me deitando olhares tímidos do outro lado da mesa. Lá
fora, a temperatura caiu bem abaixo de zero e a Salsa diz-me que não é
nada invulgar isso acontecer à noite. Aquecem a casa com uma
salamandra, com troncos que o próprio William cortou. Mas apesar do
fogo e de ter umas ceroulas por baixo das jeans, o frio é tal que penso se
alguma vez na vida voltarei a aquecer. Passam canecas com uísque e a
cada gole a bebida conforta-nos um bocadinho mais por dentro. Quando
os dois irmãos já aqueceram o suficiente, a sua timidez dissipa-se e
juntam-se à conversa.
– Então, o que é que usa para proteção? – pergunta o William, virando-
se para mim.
– Proteção, como? Método anticoncetivo? – pergunto.
A Salsa dá um soluço a rir e cospe a cerveja.
– Não – esclarece William, franzindo um pouco a testa. – Tipo uma
arma. Para segurança.
– Ah, não, nada disso. Nunca na vida toquei numa arma. Era mais certo
dar um tiro no próprio pé por acidente do que levantá-la para me defender.
Não, sou só eu e este rapazinho – digo, fazendo uma festa ao Oscar.
– E não tem medo? – pergunta o irmão do William. Parecem
perturbados pela ideia de que viajei estes quilómetros todos sem sequer ter
pelo menos um canivete. Insistem: uma mulher que anda a viajar com um
cão pequeno e castrado não deve andar desarmada. O William oferece-se
para me dar uma das armas dele para eu levar na viagem. Recuso, mas só
depois de chegarmos a um compromisso: não me irei embora dali do
rancho sem ter aprendido a acertar com um tiro numa lata a pelo menos
seis metros de distância – um desafio que me vai ocupar a maior parte da
tarde seguinte.
Para o jantar, fazemos um festim com salsichas de alce e, a seguir, com
um guisado de vaca da Erin. Informam-me: o alce foi morto pelo William
e as vacas foram criadas por eles.
– Não gosto de estar dependente de nada nem de ninguém – observa o
William. Enuncia as suspeitas que tem do governo, das escolas públicas,
até dos médicos. – Aqui temos tudo aquilo de que precisamos para
sobreviver e para nos protegermos.
A noite avança e o irmão do William passa para o sofá e senta-se ao meu
lado. Tem barba ruiva e olhos azuis e veste uma camisa de flanela. Não
fala muito, mas, mesmo assim, fico com a sensação de que é capaz de
gostar de mim. Consigo sentir os olhos dele a observar-me enquanto falo
e, quando o apanho a olhar, coramos os dois. Nos tempos que correm,
sinto-me sempre surpreendida quando os homens me dão um certo tipo de
atenção. Enquanto estive em tratamento, senti-me totalmente despojada da
minha sexualidade. Ninguém assobiava quando a minha mãe me levava
rua fora numa cadeira de rodas. Não havia olhares de admiração a
percorrer a minha silhueta esquelética, a menos que fosse para ver bem os
cateteres que me saíam da clavícula. Em geral, as pessoas evitavam olhar.
Agora, sempre que os homens entram num jogo de sedução comigo, não
me sinto obrigada a demarcar uma fronteira ou a observar que estou numa
relação. Adoro a atenção que me dão, na verdade, anseio por essa atenção.
Os nossos joelhos tocam-se e, por um momento, permito-me uma
fantasia absurda sobre uma vida com o irmão do William, ali no rancho.
Para mim, a estabilidade esteve sempre nos braços de alguém, por muito
efémera que fosse a situação. Sempre que me sinto perdida ou sem saída,
a minha tendência tem sido acabar com a relação em que estou e encontrar
imediatamente a bússola num novo homem. Tem sido sempre uma
maneira muito conveniente para evitar descobrir o que quero para mim ou
resolver os problemas que tenho pela frente. É mais fácil focar-me num
novo interesse amoroso do que enfrentar o que está realmente em jogo.
Mas sei como esse truque é uma ilusão, por isso, levanto-me, digo boa
noite ao meu pretendente cowboy e vou para a cama.
*

Na tarde do dia seguinte, vamos todos para uma clareira na orla do


bosque, onde o William alinha seis latas sobre um tronco caído. Pus o meu
novo chapéu de pele e não consigo deixar de me sentir um bocado ridícula
enquanto o William me ensina a carregar a arma e a disparar. Para treinar,
começo com uma pistola – também conhecida como “arma de senhora”,
segundo me dizem. Diz o William. Ao fim de uns tiros, ele considera que
estou pronta para o nível seguinte: uma espingarda. “Se não tiveres
cuidado, o coice faz-te saltar os dentes”, “Encosta-a bem ao ombro”. Ele
ajusta a minha posição.
É uma velha .22, a mesma espingarda que o William usou para ensinar
os filhos a apanhar esquilos antes de irem à caça do alce que rondava os
bosques. Quando puxo o gatilho, a explosão atira o meu ombro para trás e
as narinas enchem-se do cheiro ácido da pólvora. Ao fim de mais de umas
dez tentativas, consigo finalmente acertar numa das latas e a Erin e a Salsa
aplaudem alto. Os gritos delas enchem o bosque.
Regressamos a casa e vou arranjar as coisas para carregar o carro e ir-
me embora. A Salsa e a família juntam-se à minha volta para me dizer
adeus e dão-me mais biscoitos caseiros do que eu seria capaz de comer.
– Então, estivemos a falar entre nós – diz-me o William. – Estivemos a
falar e decidimos que podes entrar na nossa lista.
– Ah, sim? – respondo. – E que lista é essa?
– A lista de pessoas que não são da família e que podem juntar-se a nós
no rancho no Fim dos Tempos – diz o William. Parece muito a sério.
– Oh, ena, obrigada – digo. O meu pensamento dirige-se para o celeiro
deles, cheio de enlatados, mantimentos de emergência, recipientes com
água e uísque suficientes para durar literalmente uma vida. As suspeitas
que eles têm quanto à vida que a maior parte das pessoas leva, a
quantidade de armas que guardam e a insistência em que são capazes de
caçar, colher e criar tudo aquilo de que precisam na sua própria terra
fazem agora todo o sentido para mim. A Salsa e a família são
sobrevivalistas. Quando lhes pergunto isso, eles dizem-me que é menos
uma escolha de estilo de vida e mais um facto próprio da vida naquela
região do Montana. Mas quando o mundo, tal como o conhecemos,
implodir, eles estarão preparados.
– Todos os que estão na lista têm de contribuir de alguma maneira – diz
a Salsa. – Tu tens muito poucas aptidões práticas: não sabes nada de gado,
nem da vida do rancho, e não tens porra de jeito para disparar uma arma. –
Ri-se e dá-me com o cotovelo. – Mas talvez possas ser a nossa escriba.
Há qualquer coisa neste gesto, a ideia de que sou bem-vinda aqui,
apesar das nossas diferenças, que me comove. O instinto de
autossuficiência, de isolamento do mundo, de estar preparado para o pior
– bom, tudo isso são coisas com as quais até certo ponto consigo
relacionar-me. É o que tenho feito com o Jon, e agora com o Max, ao
proteger o meu coração de mais perda. Mas, para esta família, a ideia de
desastre alimenta proximidade e generosidade. Diante do medo da morte,
encontraram uma fonte não de alienação, mas de intimidade.
O telefone dá sinal quando estou a sair do rancho. É uma mensagem de
um número não identificado. O texto diz: “Vem visitar-nos outra vez – o
teu marido do Montana (o irmão do William).”
Eu estava à espera de me sentir esgotada, talvez até com saudades de
casa, quando completasse a última etapa da minha jornada para o Oeste.
No entanto, quando me dirijo a Seattle, não sinto nada dessas coisas, só
estou encantada pelas paisagens selvagens e pelas personagens vibrantes
desta terra, que me acolheram com tanta generosidade nas suas vidas.
Penso se esta sensação de espanto não quer dizer que me sinto outra vez
viva.
33

“FAZER COMO O BROOKE”

Na condição de mulher jovem a viajar sozinha, recebi muitos conselhos


espontâneos de estranhos. Em toda a parte – seja a comer num restaurante
de beira de estrada, à espera na fila para a casa de banho de um parque de
campismo ou na estação de serviço para pôr gasolina – encontro pessoas
com conselhos que gostam de partilhar.
Alguns desses conselhos revelaram-se mais do que inúteis. Ainda antes
de eu partir, um conhecido meu com muito dinheiro observou que seria
mais seguro se eu contratasse os serviços de “um chauffeur” para fazer a
minha viagem. (“Oh! Mas que grande ideia!”, respondi-lhe
educadamente.) Outros conselhos foram mais práticos. Fiquei uma noite
na costa do Oregon com um pescador chamado Brent que me deu grandes
dicas de condução. “Quando o para-brisas começar a ficar com vapor,
carregas na cena do desembaciador. Se não, não vais conseguir ver nada e
estás lixada”, disse-me ele. Outra pessoa que me recebeu, a Wendy, uma
atriz lendária de Portland, que era humorista e que se apresentava como
“uma cidadã idosa a combater a dependência de comida e o TCPJ –
Transtorno Crónico de Personalidade Judia”, deu-me indicações sólidas
sobre a maneira de ultrapassar uma situação difícil: “1) Escreve uma lista
de coisas que estás agradecida por ter; 2) Deixa-te de merdas e vai passear
ao ar livre; 3) Se não tens um distúrbio alimentar, atira-te a um chocolate
mesmo muito bom e a uma chávena de café.”
Há depois aquele género de conselho que é tão visionário que até
incomoda, do género que agita o nosso caleidoscópio interior e faz com
que as coisas assentem sob uma luz diferente. Tomemos por exemplo o
Isaac, um jovem que conheci em Seattle. Tinha acabado de ali chegar,
depois de vir a conduzir desde uma zona do Alasca rural, e transportava na
bagageira todos os seus bens terrenos. Estávamos na mesma pensão e ele
passou a maior parte do fim de semana à beira das lágrimas, a falar-me da
mulher, que acabara de o deixar. Era uma pessoa em privação, mas com as
ideias claras. “Perdoar é recusar blindar o nosso coração – recusar viver
num coração confinado”, disse-me, e pareceu-me que falava tanto para
mim como para ele. “Viver com essa abertura significa sentir dor. Não é
bonito, mas a alternativa é não sentir absolutamente nada.”
*

A noite cai depressa e há uma faixa de luz pálida sobre o caminho de terra
quando encosto junto aos portões de madeira de uma casa em Humboldt
County. Eu não tinha planeado esta visita. Quando disse a Brent, o
pescador, que estava à procura de um lugar para ficar no norte da
Califórnia, ele deu o meu número ao genro, que por sua vez o deu a um
amigo chamado Rich, que me telefonou esta manhã e me pôs à disposição
uma cabana na sua propriedade, para eu passar a noite.
O Rich recebe-me com um sorriso amplo e caloroso, que lhe aumenta os
pés-de-galinha à volta dos olhos cinzentos. A mulher dele chama-se Joey e
a essa hora está no ensaio do coro, por isso, seremos só nós os dois ao
jantar.
– Espero que não tenha problemas com comida vegan – diz-me,
enquanto entro em casa atrás dele.
Enquanto se afadiga na cozinha, o Rich conta-me que é um psicólogo
reformado e agora, no tempo livre, faz esculturas. Há várias peças feitas
por ele espalhadas pela casa, estatuetas contorcidas em madeira. Uma
delas toca-me especialmente. É estranhamente bela, ao mesmo tempo
carnal e etérea – uma figura que se contorce, que se abre, no meio de uma
metamorfose. O Rich diz-me que a criou a partir do tronco de um carvalho
enorme. Ele chama-lhe O Ovo de Koschey e explica-me que, na tradição
popular eslava, Koschey era um feiticeiro que, para se manter imortal,
escondia a alma em objetos maiores, como por exemplo um ovo de pato
enterrado sob as raízes de uma árvore imponente. Diz-me que vai buscar
muitas coisas à sua experiência como psicólogo.
– Interessa-me saber como é que pessoas que são destruídas por coisas
que lhes acontecem na vida são empurradas para um lugar onde as
respostas estão para lá das nossas capacidades racionais e emocionais.
Faço que sim com a cabeça. São palavras que sem dúvida me tocam.
Estamos sentados na sala, ao pé de uma grande lareira em adobe. Ao
longo da nossa refeição de abóbora grelhada, salada de couve-galega e
azeitonas kalamata, o Rich vai-me contando histórias da viagem que fez
pela Europa, em meados dos anos 80, numa carrinha, com a mulher e os
filhos. Ele tem uma teoria: sempre que viajamos, fazemos na verdade três
viagens. Primeiro, há a viagem de preparação e antecipação, de fazer as
malas e de imaginar coisas. Depois, há a viagem que realmente fazemos.
E, depois, há a viagem de que nos lembramos.
– O segredo é procurar manter as três o mais separadas possível – diz. –
O segredo é estar presente onde quer que se esteja no momento.
Este é um conselho que, mais do que outro qualquer, guardo comigo.
*

Na manhã seguinte, levanto-me cedo e começo a descer pela costa da


Califórnia, ainda com a teoria do Rich às voltas na cabeça – tentando
manter-me ancorada a esta viagem, sem deixar que os meus pensamentos
viajem pelo tempo. A chegada à Costa Ocidental marca um ponto de
viragem. Já fui o mais longe possível até atingir o oceano. É difícil não
pensar no que virá a seguir. É difícil não pensar no regresso a Nova Iorque
e no que acontecerá depois. Pensei que por esta altura já teria mais
respostas. Mas, afinal, o que tenho são mais perguntas.
Quando vejo numa berma um sinal a assinalar o parque estadual e
nacional de Redwood, encosto para deixar o Oscar sair. Vamos lá ver
então o que é assim tão extraordinário com estas sequoias, penso. Olho
para o cartaz com informações de percursos enquanto espero que o Oscar
faça chichi. Curiosa, decido fazer uma curta caminhada.
O nevoeiro oceânico do Pacífico entra pela floresta, baixo e em rolos.
O Oscar e eu seguimos por um caminho com quase cinco quilómetros e o
musgo absorve o som dos nossos passos. À medida que o trilho avança, as
árvores à nossa volta tornam-se mais altas e as suas folhas unem-se lá no
alto, formando uma cobertura densa. Paro em frente de uma sequoia
excecionalmente grande, que mostra as cicatrizes negras e queimadas de
um incêndio, e toco-lhe no tronco com as pontas dos dedos. Estas árvores
são a última espécie que resta de um género cuja origem foi datada até ao
jurássico. Não só conseguiram sobreviver e adaptar-se, mas também abrir
espaço para outras espécies, fazendo brotar e sustentando vida nova, um
novo crescimento: os jardins pendentes de fetos que caem dos seus ramos,
os fios de líquenes verde-pálido que lhes forram os troncos, os arbustos de
mirtilo que tiram força ao seu solo.
Quando chegamos ao fim do trilho, o Oscar para e salta para uma poça
de água, enquanto eu me sento numa rocha para recuperar o fôlego.
Inclino a cabeça para trás e olho para o céu. Com noventa metros de
altura, as sequoias parecem gigantes omniscientes e visionários, apontados
ao céu como setas, olhando sobre a terra inteira. Quero perguntar-lhes:
O que é que tu vês que eu não consigo? Daqui, para onde é que vou?
Enquanto ouço os ramos estalarem ao vento lá no alto, a minha respiração
torna-se mais lenta e mais profunda. Dou conta de que estas árvores
conseguiram, sem esforço ou sem ego, aquilo que eu tanto tenho
batalhado para obter. Fazem com que a existência, como eu a concebo – o
tempo calculado em medidas de cem dias –, pareça ridiculamente ingénua
e míope. No meio delas sinto-me imensamente pequena e sem raízes.
Neste momento, não sou sequoia nenhuma. Não passo de uma partícula,
de um esporo a vogar na brisa, sem rumo, suscetível de ser soprado em
qualquer direção, sem a menor ideia de onde aterrará.
Abro a mochila e tiro o diário. “Ultimamente, em cada novo lugar que
visito, fico a pensar se me encaixaria lá”, escrevo. “Será que podia mudar-
me para esta localidade, para esta cidade, para esta região, para este
estado? Seria este o lugar para eu, finalmente, me fixar? Ainda a noite
passada estive uma hora, antes de ir para a cama, a ver propriedades para
vender em Humboldt County e a sonhar comprar terra, um lugar qualquer
tranquilo e remoto, a que possa chamar meu. Nesta fantasia, vivo sozinha,
só com os meus livros e um par de cães que me fazem companhia.”
*

Nessa tarde, monto acampamento em Big Sur e abro a tenda na ponta de


um prado no parque estatal de Pfeiffer. O sol desce e a sua luz espalha-se
pelo oceano como a gema de um ovo partido. O ar está quente e, por isso,
não tenho de fechar imediatamente a tenda. Deito-me em cima do saco-
cama, de pernas abertas e estendidas, com as botas enlameadas fora da
tenda. O Oscar imita-me e deixa-se cair de costas, com as quatro patas no
ar. Inclino-me para lhe fazer festas na barriga e ele olha-me fixamente,
com um amor incontrolável. Andarmos juntos pela estrada vinte e quatro
horas por dia transformou-nos num velho casal que imita os gestos um do
outro e que sabe exatamente aquilo de que o outro precisa, sem ter de
perguntar. É difícil acreditar que já passaram mais de três anos desde que
o levei para casa. “Parabéns”, digo ao Oscar, virando-me para ele.
“Oficialmente, és até agora a relação mais longa e mais bem-sucedida da
minha vida adulta.” Ele dá-me uma lambidela no nariz.
Se todas as relações pudessem ser assim descomplicadas, penso.
Suspiro, enquanto os meus pensamentos se voltam para o Jon. Tenho
andado demasiado confusa para saber o que lhe dizer. Para além das
mensagens de texto que trocamos – em que ele pergunta se estou bem e eu
lhe respondo que sim, e eu pergunto se ele está bem e ele diz que sim –,
mal temos falado. As coisas entre nós parecem tensas e esticadas até ao
limite – é como se um dia destes fôssemos acabar.
Se isso fosse possível, eu alteraria a cronologia da nossa relação. Não
começaria a namorar com ele antes de ter encontrado o meu lugar no
mundo dos vivos – ou, no mínimo dos mínimos, antes de ter deixado de
chorar regularmente por causa do meu ex. Talvez, então, as coisas
tivessem acontecido de uma maneira diferente. Mas, é óbvio, este é
precisamente o tipo de pensamento-viagem-no-tempo para o qual o Rich
me alertou. Não sou capaz de alterar o que já aconteceu. Tenho é que
decidir o que vou fazer agora. A verdade é que não me sinto capaz de amar
o Jon como ele merece, muito menos de merecer o amor que ele me tem
mostrado. Não está certo da minha parte continuar a escapar aos
telefonemas de um homem – um homem bom, profundamente generoso e
paciente, que me deu o espaço de que eu preciso para resolver as cenas na
minha cabeça – que acredita que eu voltarei para ele quando esta viagem
acabar. Na maior parte da nossa relação, eu tenho estado em transição.
Começo a pensar se não era mais justo para ele acabarmos de vez.
Antes que a ideia me assuste, pego no telefone e envio uma mensagem
ao Jon a perguntar se podemos falar. Olho para o ecrã e vejo aparecerem e
desaparecerem os três pontinhos, sinal de que ele escreveu qualquer coisa
e depois a apagou. Sinto no ecrã a apreensão dele, à procura de uma
resposta. Por fim, decide-se por uma mensagem a dizer que está ocupado e
a perguntar se podemos conversar no fim de semana. Fico aliviada. Penso
que sabemos os dois o que resultará desta conversa – e nenhum de nós
está preparado para a ter esta noite.
*

Na manhã seguinte, entro na Autoestrada 1, que tem 1.055 quilómetros e


vai pela costa do Pacífico desde o norte de São Francisco até ao sul de Los
Angeles. É estreita, uma sucessão sem fim de curvas apertadas, sempre a
subir, onde só um rail patético impede os carros de se despenharem das
escarpas e de caírem no oceano, umas dezenas de metros lá em baixo.
Agarro o volante com as duas mãos, vocifero impropérios, olho pelo
retrovisor e vejo como descapotáveis vintage e carros desportivos todos
estilosos vão fazendo fila atrás de mim. Passo por campos de morangos,
praias douradas cheias de focas ao sol e penso que nunca senti uma
tamanha admiração e medo – nem me senti tão enjoada de andar de carro.
Ao fim de quatro penosas horas, saio da Autoestrada 1 e sigo para Ojai,
uma cidade aninhada nas montanhas, cento e vinte quilómetros a noroeste
de Los Angeles. À luz do crepúsculo, a paisagem torna-se psicadélica e a
paisagem lunar das montanhas está banhada por um brilho rosa
inquietante. Vou visitar a Katherine, que me escreveu a seguir ao suicídio
do filho, o Brooke. Escrever cartas, explicou-me ela, era um hábito
inspirado por ele. Uma vez, o Brooke tinha escrito uma carta a um
cientista, a dizer como gostava dele e como admirava a investigação que
ele fazia. Causou uma tal impressão que o cientista o convidou a visitá-lo
e acabou a oferecer-lhe um emprego. Depois disso, enviar cartas de
agradecimento a estranhos passou a ser conhecido na família como “fazer
como o Brooke”. A ideia era: se queremos ligar-nos a alguém, alguém que
está muito distante da nossa vida, alguém que até pode parecer impossível
de conhecer, não deixemos que a distância seja um obstáculo – dizemos
“que se lixe!” e escrevemos. Foi nesse espírito que a Katherine me
contactou, a agradecer-me pela minha coluna: “O poder da história é curar
e apoiar. E se tivermos a coragem suficiente para contar a nossa própria
história, então, perceberemos sempre, repetidamente, que não estamos
sós.”
Por entre uma nuvem de pó vermelho, paro junto de uma casa branca
pequena no sopé de um monte. A Katherine, que é professora de inglês e
francês no liceu, vem abrir a porta mosquiteiro, toda bienvenues. Atticus,
o border collie dela, lança-se para o carro, a bater a cauda em jeito de
boas-vindas. A Katherine parece elegante, com uma camisa branca sem
vincos por dentro das jeans, um chapéu de cowboy preto de abas direitas e
botas pretas de cowboy a condizer, com esporas. O cabelo escuro e
espesso, já com umas brancas, é tão comprido que lhe dá pela cintura.
Aceno agradecida quando ela propõe uma noite tranquila, só nós as
duas, os cães e um jantar de bifes de atum marinados. Levamos os pratos e
os copos de vinho para o alpendre das traseiras. Olhando para o vale que
escurece, temos uma conversa profunda, sem preâmbulos, e, enquanto
falamos, sinto que a conheço desde sempre. Reconheço-me na atitude
dela, na dor que lhe passa pelos olhos em alguns momentos. Reparo nas
palavras que escolhe e nas que omite. A ligação entre nós é instantânea, a
confiança é implícita.
Quando ela me pergunta como tenho passado, conto-lhe a verdade sem
qualquer disfarce: digo-lhe que tenho andado na estrada sempre
acompanhada pelo fantasma do meu ex, e que, apesar de todos os esforços
para viver o presente, me sinto perseguida pelo passado. Falo-lhe da
Melissa e dos outros que perdi. Falo-lhe do Max, que recupera de uma
operação na casa dos pais em Los Angeles, e digo-lhe como tenho sido
cobarde e não lhe tenho ligado. Falo-lhe da minha relação com o Jon e de
como decidi dizer-lhe, na próxima vez que falarmos, que está tudo
acabado.
A Katherine não pestaneja. Não desvia os olhos. Não tenta acalmar-me
com frases feitas ou orientar-me com conselhos. Escuta-me com o corpo
todo, inclina-se para a frente na cadeira, faz que sim ao de leve com a
cabeça enquanto eu falo. Quando me calo, diz-me que consegue perceber
tudo o que eu lhe disse e que está feliz porque o universo viu que era
apropriado os nossos caminhos cruzarem-se. “A dor não deve ser
silenciada, nem habitar no corpo e ser carregada sozinha”, diz-me.
Levantamo-nos e levamos para a cozinha os pratos e os copos vazios,
antes de nos instalarmos na sala, onde há estantes até ao teto a transbordar
de livros. Há um bandolim em cima da mesa e a Katherine diz que está a
aprender a tocar. Detenho-me a olhar para a prateleira sobre a lareira,
cheia de fotos emolduradas dos filhos – três raparigas e um rapaz. Aquele
então deve ser o Brooke, o rapaz do rosto bonito e inteligente iluminado
por velas.
*

Na tarde do dia seguinte, estou sentada com a Katherine nos estábulos ao


pé de casa, onde ela acabou de me dar um curso rápido para reaprender a
andar a cavalo. Ela é uma amazona experiente, às vezes vai semanas
inteiras para a Sierra Nevada em viagens com os alunos e com o seu
amado Blue, o cavalo castrado. Quando ela monta, parece extremamente
fácil. Eu não ando a cavalo desde adolescente e as botas de montar que ela
me emprestou são um tamanho acima do meu. Escorrego um pouco ao pôr
o pé no estribo e tento dar um salto, o que quase me catapulta por cima do
cavalo. Mas assim que me sento na sela a memória muscular toma o
controlo das coisas e depressa entro no ritmo certo, enquanto trotamos por
um laranjal, passamos pela casa dela e tomamos um trilho comprido e
serpenteante que nos leva às montanhas.
A Katherine diz-me que o Brooke adorava vir para aqui para pensar.
Aproximamo-nos de uma enorme formação rochosa em arenito – “o lugar
favorito dele”, diz-me. Ela desmonta, vai até lá e coloca a palma da mão
sobre uma placa com o nome do Brooke gravado.
– Como é que ele era? – pergunto.
– Ah, vocês os dois teriam sido grandes amigos – responde-me. – Ele
era uma alma extraordinária – um tipo que gostava de montanhismo e de
ar livre e também de linguística e de ciência, sempre alegre e
tremendamente inteligente.
Conta-me que ele falava fluentemente mandarim e se interessava por
tudo, desde fabricar pão a química orgânica. Quando acabou a
universidade, mudou-se para o Vermont, onde trabalhou como arborista e
bombeiro voluntário. Mas desde o primeiro ano da faculdade que o
Brooke travava uma batalha secreta com a depressão e, em Vermont, teve
uma crise grave, a que se seguiu o primeiro episódio maníaco. Foi uma
descida aterradora à loucura, que o atirou semanas para um hospital
psiquiátrico e, embora Brooke tenha tentado conter aquilo a que chamou a
sua “condição demoníaca”, acabou por perder a esperança de alguma vez
ser capaz de controlar as coisas – pelo menos, não de uma maneira de que
pudesse confiar e depender, e de que aqueles que gostavam dele pudessem
confiar e depender. O transtorno bipolar manifesta-se de forma diferente
em cada organismo do qual se apodera, diz-me a Katherine. Como sucede
com qualquer doença, alguns casos são mais virulentos do que outros e
alguns organismos são mais vulneráveis. Numa manhã fria de novembro
de 2009, o Brooke matou-se. Tinha vinte e seis anos.
Katherine está a olhar para o rochedo e o seu rosto irradia dor.
– Ele tinha um espírito extraordinariamente poderoso, que era
igualmente poderoso na doença – afirma, com lágrimas a correr pela cara.
– Se é tão doloroso, não temos de falar sobre isso – digo-lhe.
– Na verdade, para mim, falar do Brooke é uma cura e foi bom teres
perguntado por ele. As pessoas tratam o suicídio como um segredo de que
é preciso ter vergonha; a causa da morte não é mencionada no obituário, é
simplesmente apagada da história familiar. Mas falar sobre aqueles que
perdemos faz com que eles continuem vivos.
A Katherine diz-me que o Brooke escreveu uma carta antes de morrer.
Mais tarde, acaba por ma ler e eu fico esmagada: é uma espécie de corda
de salvação de compaixão e amor, na qual ele procura responder à
inevitável pergunta: porquê? A carta, que se lê quase como um documento
vivo, que servirá de apoio aos seus entes queridos em fases diversas da
sua dor, é lúcida e pormenorizada. O Brooke diz que sabe que eles se
interrogarão sobre se podiam ter feito mais – e assegura-lhes que fizeram
tudo o que podiam. Sabe que sofrerão, mas espera que não seja pior do
que aquilo por que teriam passado se ele tivesse ficado. Diz-lhes que, seja
o que for que aconteça, ele tem fé na capacidade para seguirem os seus
caminhos. Diz que lamenta e que os ama muito, muito – tantas vezes que
é impossível contá-las. É generoso, carinhoso e – ainda que ele estivesse
mergulhado na sua própria dor – é possível sentir como tenta chegar à
família superando uma imensa distância. É a sua maneira final de “fazer
como o Brooke”.
Perder um filho por suicídio é uma tragédia devastadora, inimaginável,
impossível de viver, uma perda de que eu nem consigo sequer ter a
dimensão, mas a história da Katherine não acaba aqui. Enquanto subimos
o trilho a trote, ela conta-me como, apenas quatro meses depois da morte
do Brooke, partiu uma perna quando andava a cavalo. Pouco depois, foi
fazer a primeira colonoscopia de rotina e soube que tinha cancro no cólon.
Diz-me que viveu uma experiência em que saiu do próprio corpo – um
daqueles momentos em que pensamos “é impossível que a minha vida seja
isto” –, mas, de certo modo também experimentou uma sensação de
coerência mística.
– A dor é uma experiência emocional, tal como física – diz-me. –
O facto de os meus ossos se terem partido e de o cancro ter aparecido nos
intestinos pareceu-me simbolicamente apropriado.
Katherine faz uma pausa quando lhe pergunto como é que lidou com
tudo – como é que suportou o peso de mágoas sucessivas. Abranda a
passada do cavalo.
– Estar presa à cama a descansar foi um convite para me desligar dos
ritmos diários do ensino e da responsabilidade e para sentir
verdadeiramente a minha dor – diz. Volta-se e aponta para uma carrinha
branca que se vê à distância, estacionada num dos lados de casa dela.
Voltar a casa sem o Brooke, depois do funeral, foi realmente difícil, diz.
Quando foi a Vermont buscar as coisas dele, decidiu pegar na carrinha
dele e levá-la para casa, percorrendo o país inteiro. Era uma forma de o
trazer para casa. A carrinha tinha uma matrícula dos bombeiros
voluntários a que ele pertencia, e nas estações de serviço e nos
restaurantes à beira da estrada as pessoas falavam nisso e faziam
comentários agradecidos. Sempre que isso acontecia, ela sentia-se inchada
– não de tristeza, mas de orgulho. Essa viagem também teve uma sensação
de ritual – tanto na enorme distância percorrida como no ritmo lento a que
foi feita. Deu-lhe o tempo essencial para entender que o impensável
acontecera mesmo e para começar a aceitar que a sua nova realidade era
essa.
A Katherine diz-me que a morte do Brooke alterou a relação dela com a
sua própria mortalidade. O cancro regressou duas vezes desde o
diagnóstico inicial e há pouco tempo tinha passado por outra cirurgia, uma
toracotomia para tirar um nódulo dos pulmões. É mais fácil agora pensar
que o cancro pode ser o fim da sua história.
– Se o meu filho pôde passar deste plano físico, então, eu de certeza
também sou capaz de descobrir como fazer isso. – Inclina a cabeça e
continua: – A parte da morte não me assusta. O sofrimento é que é difícil.
Para prosseguir o seu caminho, a Katherine recorda a si própria, dia
após dia, todas as maneiras como a sua vida foi enriquecida – abençoada
por Brooke e pela vida dele, pelas filhas e pelos netos, pelo Atticus e pelo
Blue e, finalmente, pela presença da própria dor.
– Os acontecimentos dos últimos poucos anos acabaram por ser uma
lição terrível sobre estar presente. E não só estar presente na minha
própria vida, mas estar presente nas vidas das pessoas que amo – diz-me.
– O amanhã pode acontecer, o amanhã pode não acontecer.
*

Nessa noite, já depois de os cavalos terem regressado aos estábulos, de os


cães terem sido passeados, de o jantar ter sido comido e a louça lavada,
retiro-me para o quarto. Estendida na cama, abro o diário e começo a
revisitar todas as formas como procurei fazer o oposto do que a Katherine
fez – ou seja, como tentei evitar sentir dor. Como procurei atordoar-me
com tudo, desde morfina a maratonas de Anatomia de Grey. Negar que as
coisas sequer existissem. Recusar permitir que as pessoas entrassem na
minha vida. Agora vejo que essas táticas não me libertaram do meu pesar,
apenas o transmutaram, o atrasaram. E se eu deixasse de pensar na dor
como uma coisa que tem de ser atordoada, consertada, evitada e da qual
tenho de proteger-me? E se eu tentasse honrar a sua presença no meu
corpo, acolhê-la no presente?
Eu costumava pensar que a cura era livrar o corpo e o coração de
qualquer coisa que doesse. Isso significava ultrapassar a dor, deixá-la para
trás. Mas estou a aprender que não é assim que funciona. A cura é
descobrir como coexistir com a dor que viverá sempre dentro de nós, sem
fingir que ela não está lá nem lhe permitir que tome conta dos nossos dias.
É aprender a enfrentar fantasmas e a carregar aquilo que fica. É aprender a
abraçar as pessoas de que gosto, em vez de me proteger de um futuro em
que sou devastada pela perda delas. A experiência da Katherine e a sua
perspetiva das coisas tocaram-me. Ela passou por uma coisa à qual
pensava não ser capaz de sobreviver e, no entanto, aqui está ela, a
sobreviver.
– É preciso sairmos da sombra e da tristeza e, em vez disso,
concentrarmo-nos naquilo que amamos – disse-me antes de ir para a cama.
– Perante estas coisas, não há mais nada que possamos fazer. Amar as
pessoas que estão à nossa volta. Amar a vida que temos. Não imagino que
haja uma resposta mais poderosa aos males da vida do que amar.
*
Fecho o diário e faço as duas coisas que ando a evitar há demasiado
tempo. Primeiro, escrevo um email ao Max. A seguir, telefono ao Jon. Ele
atende ao primeiro toque.
– A que distância estás de Los Angeles? – pergunta-me.
– A cerca de uma hora. Talvez duas. Porquê?
– Estou a marcar um bilhete de avião e amanhã estou aí. Devemos ter
esta conversa frente a frente.
Na manhã seguinte, visto a farda de andar na estrada – umas botas
gastas, Levi’s pretas, t-shirt branca, e um blusão de cabedal que adoro e
tenho desde o liceu. Partilho uma última caneca de café com a Katherine,
que me oferece como presente de despedida o seu velho almanaque das
estradas, e baixo-me para fazer umas festas atrás das orelhas ao Atticus.
– Obrigada por tudo – digo-lhe, ao entrar no carro. – Ajudaste-me mais
do que podes imaginar.
Conduzo até Los Angeles e, quando chego ao aeroporto, o Jon está à
minha espera na zona de recolha de passageiros, com um lenço de algodão
que lhe comprei na Índia, elegante como sempre. Vê-me na fila dos carros
e, embora tentemos afixar expressões de uma gravidade apropriada à
ocasião, acabamos por fazer um ao outro grandes sorrisos patetas. Quando
ele entra no carro, abraçamo-nos com força e esquecemos, por um
instante, porque é que ele fez esta viagem de última hora.
– Estou tão feliz por estares aqui.
– Estás? – pergunta o Jon, afastando-se. Pelo tom rígido da voz consigo
perceber que tem estado a sofrer e sinto um impulso de ternura para com
ele. Imagino que, com a sua agenda frenética, não lhe tenha sido fácil
fazer esta viagem. Mas também não me surpreende que ele tenha viajado
de um lado ao outro dos Estados Unidos para ter esta conversa em pessoa.
O Jon tem sempre estado ao meu lado nos momentos difíceis, até antes de
sermos um casal.
Temos tanta coisa para dizer um ao outro que, ao princípio, só o silêncio
é apropriado. Enquanto conduzo, penso como o Jon, quando soube do
diagnóstico, veio logo ao hospital ver-me, trazendo atrás a sua banda.
O Jon trouxera uma harmónica, o Ibanda uma tuba, o Eddie o saxofone e o
Joe, o baterista, andava com uma pandeireta. Ali mesmo, em pleno serviço
de oncologia, começaram a tocar para mim. Com o som de When the
Saints Go Marching In a encher os corredores, enfermeiras e doentes
começaram a sair dos quartos. Os doentes que conseguiam andar,
andaram; os que não conseguiam eram levados à porta em cadeira de
rodas por familiares ou por enfermeiras. Outros ficaram nas camas, a
ouvir. Cada pedacinho do serviço de oncologia ficou repleto de música.
Primeiro timidamente, e depois com entusiasmo, doentes, enfermeiras e
funcionários do hospital começaram a dançar e a bater palmas. Era como
se a enfermaria inteira desse um grande suspiro de alívio, com os seus
habitantes a celebrarem uma pausa temporária, rendendo-se à música. Por
baixo da minha máscara, eu estava radiante.
Quando me recordo disto tudo, deixo de ter certeza do que quero fazer.
Nas últimas semanas, sempre que pensei em acabar realmente com tudo
entre nós, houve qualquer coisa em mim que resistiu a pegar no telefone.
Agora, que estamos juntos, sinto-me ainda menos confiante, mas procuro,
como fiz nas últimas noites com a Katherine, dizer a verdade sem
qualquer disfarce.
– Eu sei que tenho estado distante – digo, enquanto avançamos
lentamente entre o tráfego. – Tem sido uma luta para perceber como estar
nesta relação, quando há tanta coisa que preciso de resolver sozinha. As
duas coisas estão em choque uma com a outra. Para ser honesta, passei
uma boa parte da viagem a pensar se não seria melhor acabarmos.
– Quero perguntar-te uma coisa – diz o Jon.
– O quê?
– Gostas de mim?
– Sim, claro que sim.
– Diz a verdade. Gostas de estar comigo?
– Gosto. Eu adoro-te – admito.
– Então, porque tem tudo de ser tão estupidamente complicado?
Ficamos os dois calados um bocado.
– Ouve – diz o Jon com mais suavidade – talvez não haja mal se não
tivermos imediatamente as respostas. Eu quero estar contigo. Mesmo que
isso signifique continuar a dar-te espaço. Para mim, isso não tem
problema. Mas aquilo de que preciso é que sejas aberta e honesta
enquanto formos descobrindo isso. Tens de parar de me afastar.
Nas últimas semanas, pus sobre mim uma pressão imensa para estar
completamente dentro da relação ou fora dela. Dediquei-me tanto a avaliar
os riscos, e a blindar-me contra eles, que não me ocorreu que havia uma
terceira via: deixar as coisas crescerem, mudarem e evoluírem, descobrir
ao longo desse caminho quem somos e o que queremos – viver num
terreno intermédio. Enquanto abrando num semáforo, estendo o braço e
aperto-lhe a mão.
– Estamos bem? – pergunta o Jon.
– Estamos bem – respondo.
– Não te safas assim – diz. – Anda cá. – E eu vou.
Beijamo-nos até o sinal ficar verde e os condutores atrás de nós
começarem a buzinar. Não tenho a certeza do que isto tudo significa. Não
é possível ter lucidez quando simplesmente ainda não se chegou a esse
ponto. Mas, desde que me lembro, o Jon tem-me ensinado que, às vezes,
tudo o que podemos fazer é aparecer. E, quando as coisas se tornam
difíceis, continuar a aparecer.
*

Faço uma última paragem antes de deixar Los Angeles. Por entre smog e o
trânsito intenso de hora de ponta, vou até Brentwood, um bairro abastado
com vivendas protegidas por portões e relvados impecavelmente
desenhados, tratados por equipas de jardineiros. É a primeira vez que vou
a casa dos pais do Max e, quando bato, a mãe dele, a Ari, aparece à porta,
com um caniche ao lado. Enquanto fazemos conversa de circunstância
num átrio luxuoso, o Max desce a escada. Está muito pálido. Parece
terrivelmente magro, com a cara encovada, o que faz com que os seus
olhos azuis, já ampliados pelos óculos, pareçam ainda maiores. Diz-me
olá num tom cavo de barítono, explica-me que tem a voz assim rouca por
causa dos tumores no peito e encaminha-me para o quarto dele, para
podermos falar a sós. Senta-se na beira da cama e eu à frente dele, na
cadeira da secretária. Inclino-me nervosamente para a frente e para trás,
até que ele estende os braços e me faz parar.
Olho para o tapete, mordo os lábios, tenho medo de desatar a chorar
convulsivamente se o olhar nos olhos.
– Sei que não te tenho ajudado nada – digo-lhe, com a voz a tremer.
Também lhe conto a quantidade de vezes que nas últimas semanas quis
pegar no telefone e ligar-lhe. Digo-lhe que sei muito bem como as coisas
são, que já estive do outro lado deste tipo de silêncio, e que percebo
perfeitamente se ele não conseguir perdoar-me.
– Não há desculpa para ter sido tão cobarde. Peço-te imensa desculpa.
O Max não deixa que eu me safe. Não é o seu estilo.
– Eu reparei que te afastaste – diz-me, com sinceridade. – Não estou
zangado. Só quero perceber porquê. Saber que eu estou a morrer
incomoda-te?
– Se me incomoda? Não – respondo. – Aterra-me.
Digo ao Max que não sabia que era possível ter uma amizade com tanta
profundidade e entendimento e que é muito provável que nunca mais volte
a ter outra assim. Ele é a única pessoa a quem posso ligar a meio da noite
quando há uma próxima biópsia que me preocupa – ou a quem posso
expor as virtudes de um elixir bucal antibacteriano sem precisar de
explicar mais nada. Ele esteve no velório da Melissa, esteve comigo todos
os dias da minha última hospitalização, esteve todas as noites na primeira
semana depois de o Will ter saído de casa.
– Tu conheces-me suficientemente bem para me apareceres à
porta mesmo quando eu digo que não quero visitas. Em especial quando
eu digo que não quero visitas – digo-lhe. – Tu tornas-me responsável, até
neste momento. És a pessoa mais divertida, inteligente e estranha que eu
conheço. A ideia de te perder é insuportável.
– Eu percebo – diz o Max, inclinando-se para mim e tocando-me. – Eu
imaginei que seria isso. Perdoo-te. Mas agora preciso de ti.
Abraça-me com força, com todos os tecidos e músculos do corpo,
aquele género de abraço que nos esmaga os pulmões, mas de uma maneira
boa. O Max sempre deu os melhores abraços.
Quando voltamos a sentar-nos, pergunto-lhe como está a sua saúde e ele
conta-me que começou a tomar um novo medicamento que é suposto ter
efeitos secundários realmente ligeiros.
– Mas todos nós sabemos como as coisas são – diz. – Tenho sentido as
piores dores da minha vida e não consigo estar funcional mais de duas ou
três horas por dia. Mas, nessas duas ou três horas, sou o Max, e ser o Max
é bom.
Nas horas que se seguem, a nossa conversa é uma torrente ininterrupta.
Ele faz-me perguntas sobre todas as pessoas que encontrei e os lugares
que conheci. Eu pergunto-lhe como é que vai a vida de casado e trocamos
recordações sobre o casamento dele, há uns meses. Tal como eu e o Jon, o
Max e a mulher, a Victoria, conheceram-se em adolescentes, num
acampamento de verão. Foram amigos próximos quase uma década antes
de se tornarem um casal. Embora estivesse a meio da quimioterapia, o
Max soube logo, poucas semanas depois de começarem a relação, que ia
pedir à Victoria para casar com ele no aniversário da primeira vez que
tinham saído juntos. O Max é um mestre da inconstância e lembro-me da
admiração que senti pela esperança radical e pelo otimismo que a decisão
de pedir a Victoria em casamento revelava, apesar do prognóstico da
doença. Senti-me honrada quando ele me perguntou se queria fazer parte
do grupo de padrinhos e madrinhas. O casamento foi em Topanga Canyon,
numa estalagem rodeada por velhos sicómoros, quedas de água e flores
campestres. A cerimónia foi oficiada pela sua mentora, a poeta Louise
Glück14.
O Max conta-me que tem estado a ler um livro de Louise, Averno, e que
é uma obra-prima – o género de livro que só a sabedoria de décadas pode
produzir, uma coisa que exige morrer muitas vezes para se conseguir criar.
– Sempre que tive um trauma significativo, a minha escrita cresceu, eu
cresci – diz. – Penso que, se tivesse vivido até aos cinquenta anos, teria
escrito uma obra-prima. Se tivesse mais tempo. – Há uma tensão na sua
voz, uma dureza que nunca ouvi antes. – Estou amargo – reconhece. –
Dei-me conta há pouco tempo de como é estranho ser assim novo e saber
que vou morrer. É muito, muito solitário.
Faz uma pausa e parece-me mais triste do que alguma vez o vi. Diz que
tem tido uma vida rica e acelerada – com a melhor família, os melhores
amigos, a melhor mulher e o seu primeiro livro de poemas a sair daí a uns
meses.
– Tem sido fantástico ver tudo florescer tão depressa – afirma. – Não
falta nada. Mas eu teria preferido muito mais uma combustão lenta.
A voz do Max tornou-se ainda mais rouca e ele parece cansado.
– Neste momento, quero enrolar um charro, ver um episódio de The
Bachelorette e comentar contigo à gargalhada como aquilo é mau, mas
provavelmente é melhor fazer uma sesta – diz.
Levanto-me para me ir embora, digo ao Max que o adoro e prometo-lhe
ligar de poucos em poucos dias para lhe dizer como vão as coisas na
estrada.
– Para mim, é incrível poderes estar tanto tempo a sós com os teus
pensamentos no carro, quando passaste pelo que passaste – observa. – Há
anos que as pessoas andam a fazer experiências em ti e tu tens os tomates
para fazer experiências contigo, para te fazeres crescer. Ora, a isso é que
eu chamo força.
– Oh, Max – digo. Sinto o coração apertado de uma forma dramática. –
Não sei o que teria feito sem o teu apoio.
– És uma inspiração enorme – diz-me.
– Deus não te dá mais do que aquilo que consegues suportar – respondo.
– Cada dia é uma dádiva – diz.
Com essa frase dá-me um último abraço, longo e esmagador, antes de eu
sair.
*

Despeço-me da Califórnia atravessando o deserto do Mojave, passando


por catos em flor e árvores yucca, sob um imenso céu negro pontilhado
por estrelas. Não sei o que vai ser da minha relação com o Jon, nem se vou
voltar a ver o Max, mas já não quero proteger o meu coração. Não há
forma de garantir que as pessoas não nos magoam ou não nos traem – isso
vai mesmo acontecer, seja uma separação ou qualquer coisa tão imensa e
absoluta como a morte. Mas, se tentarmos escapar ao desgosto, estaremos
a perder as nossas pessoas, o nosso propósito. Faço um pacto comigo e
partilho-o com o deserto: Possa eu estar suficientemente desperta para
reparar quando o amor surge e ser suficientemente corajosa para ir atrás
dele sem saber onde me leva.

14 Poeta e ensaísta norte-americana, galardoada com o Nobel da Literatura em 2020. (N. do T.)
34

IR PARA CASA

Debaixo de um nevão forte, o Oscar e eu aninhamo-nos na tenda e


dormimos com o peito encostado um ao outro, como se fôssemos gémeos
siameses. Acordo na manhã do Dia 66 num parque de campismo perto do
Grande Canyon. Levanto-me, aqueço o fogão com os dedos ainda
entorpecidos e faço café a tremer de frio. Acompanha-me sempre a
sensação de que me falta qualquer coisa. É uma sensação que me segue
quando enrolo a tenda pela enésima vez e carrego as coisas no carro. Nos
dias seguintes, essa sensação intensifica-se, enquanto conduzo pelas
paisagens marcianas do Sudoeste e celebro em Tijeras, no Novo México, o
meu primeiro Hanukkah em casa de uma pessoa que conheci pelo Twitter.
Deixa-me um pouco triste andar sozinha pelas ruas cobertas de neve de
Santa Fé – com as montras cheias de decorações com pinhas e os passeios
repletos de famílias a fazer compras para a quadra.
Acabo finalmente por tomar consciência de que, pela primeira vez desde
que me fiz à estrada, quero ir para casa. Quero ir para casa. Quero ir para
casa – é uma dor que acaba por se tornar uma espécie de cântico na minha
cabeça enquanto conduzo. Mas casa onde? Sem emprego, sem uma
família minha ou sem uma prestação da casa para pagar, o conceito parece
ínfimo e sem peso enquanto flutua na minha cabeça. Preciso de estar em
Nova Iorque por volta do Dia 100, para devolver o carro ao meu amigo e
ver os meus médicos – mas para lá disso nada é certo. Sinto uma
necessidade acrescida de utilizar sabiamente estes quilómetros finais, de
encontrar respostas entre as pessoas que vou ver e os lugares que visitar.
*
Entro no Texas e passo por postos fronteiriços desertos e rolos de
vegetação até chegar a Marfa, uma cidadezinha poeirenta, com um só
semáforo, no meio do deserto Chihuahuan, que nas últimas décadas se
tornou famosa como destino para amantes de arte e, mais recentemente,
por causa do Instagram. Marfa devia ser só uma escala, mas este lugar
bizarro e os seus residentes intrigam-me: são uma mistura de rancheiros,
escritores e pintores; acabo por ficar um pouco mais. Nos três dias
seguintes, travo conhecimento com todo o género de personagens: uma
herdeira texana que me oferece o quarto vago do seu bungalow; uma trupe
de um grupo de teatro de estudantes de liceu cuja peça acabo por ir ver
numa noite; e dois antiquários que calçam botas da tropa, que conheci
numa visita a um museu e me convidam para a autocaravana deles para
partilhar um cocktail de mescal letal. Sendo uma mulher que viaja
sozinha, sinto-me como aquilo que Gloria Steinem15 descreveu como
“empregada de bar celestial”: há estranhos que me recebem nas suas
casas, partilham comigo segredos que não revelariam a um psicólogo, me
convidam a participar nas tradições das suas famílias e se despedem de
mim oferecendo-me tartes caseiras.
Na última manhã em Marfa, encontro no exterior da biblioteca um casal
com uma idade semelhante à minha que me desperta a curiosidade.
– Chamamos-lhe Sunshine – dizem-me, apresentando a carrinha
Volkswagen de 1976 ainda antes de se apresentarem a eles próprios.
Apesar do seu quase meio século, a Sunshine parece ter um espírito tão
jovem e livre como os donos. É cor de tangerina, está enfeitada com
cortinas feitas a partir de um tecido com um padrão floral e tem o tabliê
forrado com penas. Tem duas camas, armários escondidos e uma cozinha
improvisada.
– Estão a fazer kombucha? – pergunto, apontando para um jarro gigante
com um líquido âmbar gasoso enfiado entre os bancos da frente.
– Posso ensinar-te. É tão fácil e faz tão bem – diz a jovem, que se
apresenta como Kit. Com uns olhos azuis intensos e flores campestres
entrelaçadas nos caracóis louros, tem um charme de elfo. O namorado, JR,
que está às voltas com o motor da Sunshine, usa rabo-de-cavalo e tem os
ombros largos de um jogador de futebol americano. Ostentam os dois um
grande bronzeado e são lindos, daquele género de fazer virar as cabeças.
Contam-me que têm vivido na carrinha nos últimos três anos.
Fico instantaneamente enfeitiçada pela Sunshine e pelos seus habitantes.
Quero saber tudo sobre as vidas deles. Para onde viajaram. As coisas que
viram e as pessoas que conheceram. O que fazem. Como chegaram ao
ponto de chamar casa a este autocarro cor-de-laranja.
– Foi amor à primeira mudança – brincam a Kit e o JR. Ela estudava na
universidade estadual Appalachian, nas montanhas da Carolina do Norte, e
a carrinha esteve meses parada num parque de estacionamento mesmo em
frente. No fim dos seus cursos, eles os dois, que namoravam desde o liceu,
compraram a carrinha por cinco mil dólares, mudaram-se para um
apartamento minúsculo em Venice Beach e arranjaram empregos – ela
como empregada num wine bar e ele como operador de vídeo num site de
surf. Sufocados pela vida na cidade e sem tirarem prazer algum das longas
horas que passavam a trabalhar, tomaram uma decisão por impulso:
largaram os empregos, entregaram o apartamento e experimentaram viver
na estrada. A Sunshine tornou-se não só um lar de viagem, mas um estilo
de vida, uma ideologia. Libertados da tirania das nove às cinco,
começaram a explorar os recantos mais remotos do país.
– Viajamos com as estações da agricultura – diz-me JR quando lhe
pergunto como é que arranjam dinheiro para encher o tanque de gasolina.
– Vivemos com muito pouco e sempre que precisamos de dinheiro
trabalhamos um mês ou dois como ajudantes em quintas ou como
trabalhadores migrantes. Apanhamos fruta, fazemos laticínios, damos feno
a cavalos, abrimos valas – pensa numa coisa qualquer, e nós já a fizemos.
Em vez de pagarem renda, a Kit e o JR ficam em parques nacionais,
florestas e desertos. Tomam banho em rios e fontes geotermais, cozinham
as refeições a partir do zero e comem alimentos produzidos pela terra.
Quando não estão a ordenhar cabras, a apanhar pêssegos ou a escalar
montanhas, passam os dias ocupados com projetos criativos. O JR faz
fotografia e trabalhos em madeira. Por causa da idade da Sunshine,
também se tornou uma espécie de mecânico amador. A Kit passa os dias a
cozinhar, a observar pássaros e a estudar metafísica. Adora escrever e
fazer cartoons e em conjunto criam pequenos fanzines com as suas
aventuras.
Impressiona-me que eles tenham descoberto como transformar esta
transição num modo de vida permanente. Contrariando os padrões
convencionais do êxito e das expetativas sociais, parecem ter encontrado
um propósito na promessa sem fim da estrada aberta. Vejo-os como uma
prova de que a casa não tem de ser um lugar ou uma profissão, que eu
poderei encontrá-la onde quer que vá.
O JR corta uma fatia de pão caseiro, um pedaço de queijo cheddar e
umas maçãs numa tábua de madeira, enquanto a Kit volta a encher os
nossos jarros de kombucha. Estamos sentados a comer qualquer coisa na
parte de trás da Sunshine quando vem ter connosco um surfista sorridente,
com o cabelo como palha. É o Mikey e anda a viajar com eles nessa
semana.
– Vamos para o parque nacional de Big Bend – dizem. – Porque não
vens e ficamos juntos uma noite?
Faço um cálculo mental rápido. Já passei em Marfa mais tempo do que
tinha planeado. Devia seguir hoje para Austin. Big Bend fica desviado,
uns cento e sessenta quilómetros para sul, e isso implica passar um
número assustador de horas ao volante nos próximos dias.
– Sim, vamos lá embora! – respondo.
*

Andamos o dia inteiro em caravana, com a Sunshine à frente e o meu


Subaru todo salpicado de lama atrás. Os meus novos amigos não usam
GPS e, à conta da Sunshine, não vão a mais do que setenta quilómetros
por hora, o que significa que evitamos a autoestrada. Usamos pequenas
estradas rurais que vão dar a lado nenhum e levam a territórios que
parecem não ter sido tocados pela civilização. Eles, como viajantes, são de
uma eficácia extraordinária, e sempre que uma coisa lhes desperta a
curiosidade, param para explorar. Se gostam do local, ficam um tempo,
dias inteiros, às vezes semanas.
Ao fim de umas horas aparece o Rio Grande, a fita serpenteante cor de
esmeralda que separa o Texas do México. Saímos da estrada principal,
tomamos um trilho de terra e estacamos num promontório sobranceiro ao
vale do rio. O solo é cor de cobre, todo estalado, o céu é azul e sem fim e à
nossa frente há uma ravina escarpada que se precipita para um mar
ondulado de vegetação dourada. Nessa tarde, parece que tudo aquilo nos
pertence, quando descemos a encosta pedregosa e caminhamos debaixo do
calor até chegarmos à beira da água. Passaram muitas horas desde que
vimos outra alma, tirando um casal de chaparrais e uma pequena família
de porcos-espinhos a farejar nos arbustos. Os meus novos amigos tiram as
roupas e saltam para a água. Eu hesito um instante, antes de ir atrás deles.
Faz demasiado calor para estar agora a ligar a cicatrizes feias e a curvas
mal feitas. O rio é fresco e viscoso, a sua cor e consistência transformam-
se em leite com chocolate, e nós os quatros estamos a chapinhar e aos
gritos, levantando lodo com os pés. Até o Oscar, que até hoje nunca foi
grande nadador, mergulha de focinho.
Com o sol a descer, avançamos mais um pouco, sempre fora da estrada,
até chegarmos a uma clareira protegida, na base de uma montanha com
escarpas vermelhas estriadas. Enquanto o JR e o Mikey vão à procura de
troncos para fazer uma fogueira, eu ajudo a Kit a preparar o jantar, no
fogão que eles têm, um Coleman com dois bicos. Ela procura num dos
armários e tira uma garrafa poeirenta de vinho que têm estado a guardar
para uma ocasião especial. O crepúsculo cai como fuligem sobre o nosso
pequeno acampamento quando nos juntamos para jantar, apertados nos
bancos de trás e com o Oscar enfiado aos nossos pés. Com as portas
laterais da carrinha abertas para uma fogueira exuberante, equilibramos
tigelas nos joelhos, mergulhamos pedaços de pão num guisado saboroso, e
falamos de tudo, da frequência ótima de lavagem do cabelo até à teoria da
preguiça – a filosofia que eles professam de que as nossas vidas devem ser
menos aceleradas e mais preenchidas com lazer, com dias exatamente
como este.
*

Por volta da meia-noite, despeço-me dos meus novos amigos. Cheia de


sono e cansada do sol, tropeço até ao carro no meio da escuridão. Estou
demasiado cansada para montar a tenda, por isso, levo a bagagem toda
para o banco da frente e rebaixo os de trás. No espaço vazio, estendo
cobertores e um saco-cama por cima de um tapete de espuma de acampar.
Fico contente ao descobrir que a minha cama improvisada é afinal
bastante confortável e que há espaço suficiente para esticar as pernas.
Com as janelas todas descidas e o tejadilho levantado, uma brisa ligeira
toca-me. Está tudo em silêncio, com exceção do oscilar da ramagem dos
cedros e dos gritos e uivos ocasionais dos coiotes, à distância. O céu
noturno está polvilhado por mais estrelas do que alguma vez vi na vida.
A olhar para a Via Láctea, lembro-me de quando tudo aquilo que eu
queria era exatamente aquilo que tenho neste momento. Sentada no chão
da cozinha do meu velho apartamento, mais doente do que nunca, eu tinha
precisado de acreditar que existia algures uma versão mais verdadeira,
mais expansiva e mais gratificante da minha vida. Eu não tinha interesse
algum em existir como mártir, como uma pessoa definida para sempre
pelas piores coisas que me tinham acontecido. Tinha de acreditar que,
quando a nossa vida se transforma numa jaula, nós somos capazes de
empurrar as grades e de recuperar a liberdade. Disse e repeti, até acreditar
nas minhas palavras: “Eu consigo alterar o curso daquilo em que me vou
tornar.”
Ajeito-me no saco-cama, com os dedos dos pés a apontar para o volante
e a cabeça apoiada no banco de trás, para conseguir uma visão perfeita da
Ursa Maior, que brilha por cima de mim. Ao fim de uns segundos, vejo
uma estrela cadente. A seguir outra. Em pouco tempo, são tantas que lhes
perco a conta. Quando vejo o céu agitar-se e brilhar, uma sensação quente
e eufórica atravessa-me os ossos – só consigo descrevê-la como alegria.
Estou viva – e estou tão bem quanto poderia esperar. Foi-me confiada uma
vida que estou a moldar como minha. A sensação desta noite é a mais
próxima que já tive de estar em casa dentro de mim.
Mas, assim que fecho os olhos, deixo de ver as estrelas cadentes e a
minha visão volta-se para dentro. E, então, as mesmas cenas voltam a
cruzar a minha cabeça. A última vez que eu e o Will nos vimos. Uma noite
quente de verão, claustrofóbica, umas semanas antes de ter iniciado esta
viagem. Lembro-me de ter desejado que tivesse passado o tempo
suficiente para nós atingirmos uma espécie de acordo de paz. A conversa
até começou com bastante cordialidade, mas ao fim de umas horas já
estávamos no passeio à porta de um bar na East Village a gritarmos
acusações um ao outro. Antes de nos despedirmos, chegámos a acordo
numa coisa, e só numa coisa: o melhor era não nos vermos nem falarmos
nunca mais.
O meu peito aperta-se cada vez mais. Quero ser libertada daquilo que
não me deixa ir. Quero uma alegria sem complicações. Mas vejo agora
que, sem o perceber, tenho estado à espera de autorização – da Melissa, do
Will, de todas as pessoas que desapareceram da minha vida – antes de
conseguir encerrar um capítulo. Quero a bênção deles para voltar a
apaixonar-me, para sonhar com um novo futuro, para seguir em frente.
Continuo à espera de uma espécie de sinal, de uma garantia de que está
muito bem passar dias inteiros sem pensar neles – que é preciso esquecer
um pouco se quero viver outra vez. Por muitas desculpas, atos de
contrição ou sacrifícios que faça, estou a perceber que preciso de aceitar
que há coisas que podem nunca estar resolvidas – com os vivos ou com os
mortos.
*

Na manhã do dia seguinte, tomo o pequeno-almoço com o pessoal da


carrinha e cada um segue o seu caminho, com a promessa de nos
mantermos em contacto. Nos dias seguintes, atravesso localidades-
fantasma, florestas de catos e enormes cartazes nas bermas que anunciam
coisas com trocadilhos como ONDE OS AMANTES DE BARBECUE
ENCARNAM. Atravesso Austin e a seguir dou com um spot para nadar
onde a água tem um azul tal que parece tratada com cloro. Continuo para
leste, Texas fora, por autoestradas intermináveis, até que começam todas a
convergir. Ao princípio de uma noite estaciono no parque do Best
Western, na Autoestrada 59, em Livingston, um troço deprimente de
restaurantes de fast-food e armazéns perto da fronteira com o Luisiana.
A rececionista, com uma camisola com padrão de chupa-chupas e unhas
de gel cor-de-rosa, entrega-me a chave. “Boa estada, minha querida”,
deseja-me.
Escolhi o Best Western porque é o hotel mais barato que encontrei e
porque fica a dez minutos da prisão. Amanhã de manhã tenho entrevista
marcada com o Lil’ GQ, o prisioneiro que foi um dos primeiros
desconhecidos a escrever-me. Em geral, os presidiários só têm direito a
uma visita de duas horas por semana, mas foi-me concedida o que é
designada uma “visita especial”, que consiste em duas visitas de quatro
horas divididas por dois dias, e é em geral reservada a amigos e família
próxima. Agora que aqui estou, a ideia de passar oito horas com o Lil’ GQ
faz-me roer as unhas. Oito horas parecem uma eternidade para falar com
alguém, quanto mais com um estranho, e ainda mais com um estranho que
passou os últimos catorze anos no corredor da morte.
No meu quarto, no segundo andar do Best Western, leio a primeira carta
que o Lil’ GQ me escreveu e revivo o espanto que senti, deitada na cama
do hospital, enquanto tentava imaginar uma pessoa numa cela de uma
prisão, à distância de meio país. Pensei muitas vezes nele durante essas
longas e enlouquecedoras permanências na Bolha. Queria saber o que ele
fazia para passar o tempo na solitária. Queria perguntar-lhe: como é que
consegues continuar quando a tua vida, como a conheces, terminou?
Como é que confrontas os fantasmas do teu passado? Como é que vives
no presente quando aquilo que está para a frente é terrivelmente
desconhecido?
O meu quarto dá para o parque de estacionamento. Da janela, consigo
ver o meu carro, coberto por uma película de pó fina e tão cheio de lama
que parece que andou à luta. Está a fazer-se tarde e ainda preciso de ir
buscar umas coisas ao porta-bagagens antes ir para a cama. Calço as botas,
saio e, já no parque de estacionamento, reparo num grupo de homens à
volta de umas carrinhas de caixa aberta. Há qualquer coisa neles que me
faz abrandar, uma sensação na barriga que me diz para dar meia-volta e
regressar ao quarto. É o mesmo desconforto instintivo que senti na
primeira semana na estrada, no camping no Massachusetts, quando vi o
meu vizinho Jeff a arrastar um oleado com o cão ao lado – só que, afinal,
o Jeff era não só inofensivo como um tipo bastante fixe. A pensar nele, e
em todas as vezes que tive medo sem razão e depois me senti uma idiota,
ignoro as campainhas de alerta na minha cabeça.
Estou a vasculhar a bagageira, à procura de um tubo de pasta de dentes e
de ração para o Oscar, quando oiço uma espécie de assobio de lobo, baixo
e gutural a cortar a escuridão.
– Anda cá, vem falar um bocadinho connosco – diz um dos homens.
Ignoro-o a ele e aos amigos. Digo a mim mesma que estão só a brincar.
– Estás sozinha? – pergunta-me ele, e os outros riem, um riso demasiado
alto que me diz que estiveram a beber. Mantenho a cabeça baixa, à
procura do resto das coisas, e fecho a bagageira. Quando me dirijo à
entrada lateral do hotel, a que está mais próxima do carro, o homem
afasta-se do grupo e caminha para mim. Apresso o passo, com as
campainhas de alarme na minha cabeça a soarem mais alto. Estou quase,
vou dizendo, mas quando chego à porta, ela não se mexe. Dou à alavanca
e percebo que é uma daquelas portas magnéticas onde é preciso passar o
cartão do quarto para a abrir. Consigo ouvir os passos do homem a
aproximarem-se e, quando olho para cima, a cara dele, inchada pela
cerveja, contorce-se numa careta.
– Olá, miúda – murmura, avaliando abertamente o meu corpo. – Não te
assustes. – O pânico domina-me, os meus movimentos tornam-se
desajeitados enquanto mexo na mala e, atrapalhada, deixo cair alguns
objetos. Quando me agacho, à procura da chave, um casal idoso aparece
do outro lado da porta. Quando a abrem, o homem recua e volta às
sombras do parque de estacionamento. Eu pego na mala e mergulho no
corredor. Tenho os pelos dos braços arrepiados.
De regresso à segurança do meu quarto, com a porta fechada e trancada
e o coração a bater no peito, digo a mim mesma que tenho de me
controlar. Procuro recordar-me do porquê de ter vindo a este sítio perdido,
de como o Lil’ GQ esteve sempre no topo da minha lista de pessoas a
visitar. Para entrar em contacto com ele, tive de criar uma conta online por
intermédio de uma empresa que nos permite comprar selos digitais e
enviar cartas online a presos em todo o país. Não sabia se o Lil’ GQ se
lembraria de mim – ou se ainda estaria no corredor da morte. Todos os
dias, nas semanas antes de partir, recordo-me de verificar ansiosamente o
email, à espera de uma resposta. Ao fim de duas semanas de silêncio,
enviei mais uma mensagem pelo site da empresa, mas sem êxito. Já quase
desistira de ter notícias dele quando de repente me lembrei de uma coisa:
tinha-me esquecido de incluir uma morada de resposta, partindo do
princípio, errado, de que pelo facto de eu poder enviar emails ao Lil’ GQ,
ele podia responder-lhes, o que na realidade não acontecia, pois ele não
estava autorizado a ter acesso a um computador.
Quando lhe escrevi uma terceira vez, explicando-lhe como podia
contactar-me, ele enviou-me imediatamente uma carta, afirmando que
estava encantado por saber que eu tinha sobrevivido e pela perspetiva de
me conhecer pessoalmente. “Dizer que fiquei surpreendido por me
contactar seria pouco. Para ser honesto, já tinha esquecido a carta que lhe
escrevi, porque parti do princípio de que a tinha lido e deitado fora.” Lil’
GQ perguntava depois se podíamos continuar a escrever um ao outro, até
à minha visita, para nos conhecermos melhor. Como eu estava então a
inventar a maior parte do meu itinerário, tivemos de ser criativos para nos
mantermos em contacto. Pedi-lhe que enviasse todas as cartas para a
morada dos meus pais em Saratoga. Os meus pais, por sua vez,
digitalizavam as cartas e enviavam-mas por email. Não seria o sistema
mais eficaz, mas funcionava. Quando cheguei a Livingston, já tínhamos
trocado mais de uma dezena de cartas.
Estendo-me na cama e começo a rever a pilha de cartas, antecipando a
visita, que está agora a um nascer do sol de distância. O Lil’ GQ fora
sempre um correspondente extraordinário: sincero, divertido, rápido a
responder. Tinha imensa prática, pois ao longo dos anos foi trocando
cartas com dezenas de pessoas. Dizia que era uma coisa que o ocupava e
que lhe dava qualquer coisa pela qual aguardar quando os guardas, todas
as noites, fizessem a “ronda do correio”. “Gosto de escrever cartas e de
aprender coisas novas de outras pessoas que fizeram muito mais do que
eu. Está a ver, eu estou preso desde os vinte anos e nunca acabei o liceu.”
A forma epistolar, confessava ele, também servia um propósito prático.
“Eu gaguejo, por isso, escrever cartas permite que me exprima sem me
sentir inseguro e aborrecido quando tenho dificuldades em dizer aquilo
que quero.”
O Lil’ GQ escrevia-me sobre todo o género de coisas. Sobre os seus
hobbies, por exemplo: “Os livros são os melhores amigos de um
prisioneiro em confinamento solitário.” Contou-me sobre o seu primeiro
carro, um Cadillac castanho roubado: “Costumava levantar-me de manhã
cedo, ficar sentado no capô e ver o bairro despertar.” No mês de
consciencialização para o cancro da mama, enviou-me um cartão feito à
mão, com uma fita cor-de-rosa desenhada, que dizia: “Coragem!
Sobrevivente! Amizade! Guerreira! Força!” O seu tom era quase sempre
alegre, mas às vezes eu conseguia sentir que ele me escrevia num
momento de derrota: “A vida por aqui tem sido a mesma velha rotina para
um mano.” Admitiu que havia dias em que era difícil encontrar motivação
para continuar, mas tinha sempre o cuidado de evitar ter pena de si
próprio: “Sei que há muitos tipos que gostariam de ter nas mãos tanto
tempo livre como eu, embora em circunstâncias diferentes.”
Ele tinha trinta e seis anos e passara quase metade da vida no corredor
da morte. Sabia que muita coisa tinha mudado “aí fora” e insistia em que
eu lhe contasse tudo sobre o mundo. Fiz o possível para o manter a par da
minha viagem. Escrevi-lhe de um Motel 6 no Iowa rural. Escrevi-lhe à
lareira de uma mansão moderna, de meados do século, em Jackson, no
Wyoming. Escrevi-lhe depois de falar a uma turma de miúdos do oitavo
ano numa escola pública em Chicago. Os alunos tinham escrito poemas
inspirados pelo mote “de onde sou” e quando contei isto ao Lil’ GQ ele
experimentou fazer o seu próprio poema: “Eu sou de onde nem sempre se
sentia muito amor em casa. Sou de onde não se vê mais nada a não ser
membros de gangues, traficantes de droga e viciados. Por toda a parte.
Sou de onde te estão sempre a dizer que não há teimoso que resista a uma
carga de pancada.”
Quando me aproximei do Texas, o Lil’ GQ colocou-me na sua lista de
visitantes e informou-me das regras: as visitas eram das oito da manhã às
três da tarde; seria uma visita sem contacto, o que significa que estaríamos
separados por uma divisória em acrílico e falaríamos por telefones.
Quando lhe perguntei se podia levar-lhe livros ou outra coisa de que
pudesse precisar, respondeu-me: “Para mim, o seu tempo e a sua presença
são suficientes. Considero-os um presente de Natal antecipado.”
*

A minha leitura é interrompida por gritos e berros do lado de fora da


janela. Pouso na cama a pilha de cartas e levanto-me. Abro as cortinas ao
de leve e vejo o grupo de homens de há bocado. Vieram de lá das
profundezas do parque de estacionamento para o pé do meu carro e há
dois que estão sentados no para-choques traseiro enquanto os outros
fazem um semicírculo à volta. Vejo o chefe do grupo, o mesmo tipo que
veio atrás de mim, lançar um urro de bêbedo enquanto despeja pela cabeça
abaixo os restos de uma garrafa grande de cerveja e a parte depois no
chão. Receosa, pego no telefone, ligo para a receção e explico o que se
passa. Minutos depois, vejo aparecer um guarda da segurança. Não
consigo ouvir o que ele diz, mas ao fim de uns minutos todos dispersam.
Fecho bem as cortinas, apago as luzes e meto-me debaixo dos
cobertores. Estou outra vez a ficar constipada e é difícil adormecer sem
ser capaz de respirar bem, por isso, levanto-me e procuro no saco um
frasco com uns restos de NyQuil. Dou uns goles e tapo a cabeça com o
edredão. Os meus pensamentos depressa ficam difusos. Não sei quanto
tempo passou, mas sou acordada a meio da noite por um som seco e
repetitivo que me ecoa nos sonhos. Resmungo, ponho-me de barriga para
baixo e puxo uma almofada para cima da cabeça. O som para por um
instante. Depois, volta: Bam. Bam. Bam. É como se fossem tiros. Sento-
me num movimento rápido e o Oscar salta da cama, a rosnar e a ladrar.
Não vejo nada sem as lentes de contacto e vou atrás dele meio cega.
O som parece vir da porta.
— Abre – diz uma voz de homem do outro lado. – Abre. A. Merda. Da.
Porta. – Reconheço esta voz de qualquer lado, a fala entaramelada, e
arrepio-me quando percebo que é do homem do parque de
estacionamento. Pego no Oscar ao colo e aperto-lhe o focinho, tentando
que não rosne.
– ABRE A PORTA. SE NÃO ABRES A MERDA DA PORTA… – Pela
primeira vez desde que estou em viagem, sinto um perigo iminente. Sei
perfeitamente que basta uma noite má, ou um mensageiro mau, para
alterar a maneira como nos lembramos de tudo o que acontece antes e
depois. O homem bate com o punho com uma força tal que a porta
estremece e grita com uma voz ainda mais alta e zangada. Agachada atrás
da porta, com o corpo todo a tremer, o meu cérebro procura
freneticamente avaliar a situação. O homem deve saber que fui eu que
chamei a segurança do hotel para o expulsar a ele e aos amigos. Talvez os
tenha colocado em apuros. É por isso que está tão zangado. Lembro-me da
latinha vermelha de spray pimenta que tenho guardada não sei bem onde,
mas não me lembro se a trouxe do carro. Quero acreditar que se o homem,
de uma maneira qualquer, conseguir entrar no quarto, eu serei capaz de o
repelir, se tiver de ser, mas parece que nem me consigo mexer, quanto
mais pensar com clareza.
– PABLO! ABRE A PORTA. ABRE A PUTA DA PORTA, PABLO! –
grita o homem. E só aí é que percebo: ele não veio atrás de mim, está à
procura de um dos amigos, um tipo chamado Pablo e, no seu estupor
alcoólico, veio por engano à minha porta. Depois de um murro final, e
furioso, desiste. Vejo-o pelo ralo, vai a cambalear pelo corredor. Fico ali
parada muito tempo. Está tudo bem, digo a mim mesma, apertando o
Oscar contra o peito. Estou bem, estou segura. Ele já se foi embora. Mas
parece que não consigo parar de tremer, sejam quais forem as palavras
tranquilizadoras que murmuro.
Ando a viajar sozinha há quase três meses, a dormir em parques de
campismo e paragens para camionista, a ficar na casa de conhecimentos
da Internet e com desconhecidos que fui encontrando na estrada. Em todas
as ocasiões, o mundo abriu-me os braços e tratou-me unicamente com
gentileza. A viagem fez renascer em mim uma sensação de força e de
independência que eu tinha pensado que nunca iria recuperar – e não seria
um exagero afirmar que reafirmou a minha confiança na humanidade. Nas
últimas semanas, senti-me mais lúcida, mais corajosa, mais aberta ao
desconhecido do que alguma vez na vida me tinha sentido. Mas, esta
noite, percebo que também tive sorte. Não consigo deixar de pensar nisso
quando volto para a cama.
*

A Unidade Allan B. Polunsky é a famigerada instalação prisional onde se


encontram os homens condenados à morte no Texas. Fica a uns oito
quilómetros de Livingston, numa área densamente arborizada conhecida
como Piney Woods e não é o tipo de lugar onde se vá parar por acidente.
Saio da autoestrada, viro à esquerda e sigo o GPS por terras lavradas,
passando por um parque para autocaravanas, uma meia dúzia de igrejas e
campos com cavalos e automóveis abandonados, tudo sob um céu
cinzento e liso.
Quando me aproximo da entrada da prisão, vejo uma vedação em metal
com rolos de arame farpado no topo e, à distância, uma série de edifícios
baixos em cimento, com centenas de minúsculas janelas-fresta. Algures,
por trás de uma dessas janelas, na sua cela, está o Lil’ GQ, a preparar-se
para o nosso encontro. Paro junto da cabine do guarda, onde um homem
fardado dá uma volta ao meu carro e bate com os nós dos dedos no vidro,
um sinal de que devo baixá-lo.
– Número de identificação do preso?
Não sei de cor o número do Lil’ GQ, nem o tenho escrito – é a primeira
de muitas asneiras minhas nesse dia. O guarda diz para não me preocupar
e que ele próprio vai ver qual é.
– Fez todo o caminho até aqui desde Nova Iorque? – pergunta-me,
examinando a carta de condução.
Faço que sim com a cabeça.
– Bom, isso é que é interesse – assobia. – Deve vir ver alguém
realmente especial.
– Pode dizer-se que sim – respondo.
– Eu fui uma vez a Nova Iorque. Fiz o serviço militar na Alemanha, nos
anos setenta, e passei pelo aeroporto. Não gostei muito. Sou um tipo do
campo. Você é mesmo da Big Apple?
– Sou mesmo – digo, sempre a fazer que sim.
– Parece ser uma rapariga demasiado simpática para ser de Nova Iorque.
Bom, aqui estamos nós. Uma nova-iorquina simpática e um texano
simpático. Quem diria?
O guarda aponta-me um lugar para estacionar no parque próximo e
deseja-me feliz Natal. A nossa troca de palavras anima-me, mas assim que
entro na prisão parece que não sou capaz de fazer nada direito. Logo que
ponho o pé no edifício principal, sou parada por uma mulher fardada com
cabelo ruivo vivo apanhado.
– Não pode trazer essa tralha toda cá para dentro – diz-me, apontando
para a caneta, o bloco de notas, a carta de condução e as chaves do carro,
que é o que trago. – Precisa de ir tudo para um saco transparente. Tem
um? – Abano a cabeça. Faz-me sinal para ir atrás dela e voltamos ao
parque de estacionamento, onde ela abre a mala do seu carro e tira uma
caixa de tamanho industrial com sacos transparentes. – Nós aqui, no
departamento de justiça criminal do Texas, ajudamos o negócio dos sacos
transparentes.
Outra vez na prisão, preencho uns formulários e sou levada, ao som de
sinais sonoros, por um labirinto de portas blindadas que conduz à área de
visitas. Quando entro, uma terceira guarda vem ter comigo: pega no meu
passe de visitante e olha-me de cima a baixo, semicerrando os olhos
quando fixa o meu saco transparente.
– O que tem aí? – pergunta, num tom levemente acusatório. – Não pode
ter caneta nem papel.
– Ninguém me disse isso – gaguejo.
– Se voltar a acontecer, fica proibida de fazer visitas – responde-me,
com dureza, antes de os confiscar. – Sente-se no R28. Já levam para lá o
preso.
Perturbada por este momento, entro numa sala com dezenas de
cubículos brancos, semelhantes a cabines telefónicas. Junto da porta há
uma árvore de plástico decorada com ornamentos e uma pequena área
para brincar, com um cavalo de baloiço e alguns brinquedos, que parecem
deslocados neste sítio e, de certo modo, ainda o tornam mais sombrio. Vou
até à R28 e sento-me. À minha esquerda há um auscultador de telefone e à
minha frente o separador em acrílico, tudo como o Lil’ GQ me descreveu.
Do outro lado está uma cabine que parece uma jaula e um banco onde,
presumo, ele se sentará. As cabines dão pouca privacidade e, enquanto
espero, ouço uma conversa murmurada. À minha esquerda estão sentadas
três crianças, que conversam timidamente com o pai. À minha direita está
um casal já a ficar grisalho que recorda as canções favoritas de Natal com
o filho. “Feliz Navidad, prospero año y felicidad”, cantam-lhe suavemente
por um auscultador.
Estou à espera há quase quarenta e cinco minutos quando uma porta se
abre de par em par do outro lado da parede de acrílico. O Lil’ GQ entra.
Dirige-me um sorriso nervoso enquanto um guarda lhe tira as algemas dos
pulsos e dos tornozelos. É mais baixo do que eu imaginava, mais ou
menos da minha altura, um metro e setenta, jeitoso e com um corte de
cabelo máquina dois feito há pouco tempo. Veste um macacão branco de
manga curta que deixa ver braços musculados cobertos de tatuagens.
Quando o guarda fecha a porta atrás dele, o Lil’ GQ senta-se e pega no
auscultador.
– Eu ga-ga-gaguejo quando me enervo e agora estou me-me-mesmo
nervoso, por isso, peço já desculpa se isto continuar a acontecer – diz-me.
– Também estou bastante nervosa – admito, o que parece pô-lo à
vontade. – Então, tenho andado para te perguntar isto: Lil’ GQ significa
exatamente o quê?
– Nós os pretos temos todos alcunhas e a minha é a abreviatura de
Gangsta Quin.16 Tu tens uma?
– Susu. É o que todos me chamavam em miúda, porque ninguém era
capaz de pronunciar o meu verdadeiro nome.
– Susu – repete, enquanto me fita nos olhos pela primeira vez. – Gosto
disso. Bem, Susu, antes de começarmos mesmo a sério com esta visita,
quero agradecer-te por arranjares tempo para aqui vir. Já passaram uns dez
anos desde a última visita que tive e tenho mesmo estado a contar os dias
para a tua chegada. A sério.
Nas horas seguintes, o Lil’ GQ começa a contar-me tudo sobre a sua
vida, com episódios e recordações a precipitarem-se pela boca fora, como
se eu fosse uma confessora e esta fosse a última vez que ele contasse a sua
história. Fala-me dos seus familiares, quatro ou cinco dos quais também
foram fechados em prisões em diversos lugares. Fala-me da mãe, que foi a
primeira pessoa a apontar-lhe uma pistola.
– Não havia muito amor partilhado entre nós.
Fala-me do bairro de habitação social onde vivia e da “Agg Land”, uma
zona no Southside de Fort Worth de onde vinha. Com os olhos baixos,
fala-me do familiar que abusou dele logo na primária – e de como
ninguém acreditou nele quando contou o que sucedera.
– Foi então que soube que, se queria sobreviver neste mundo, tinha de
começar a aprender a lutar por mim – afirma.
Encostando o antebraço ao acrílico, o Lil’ GQ mostra-me uma cicatriz
medonha, um bocado de pele repuxada com a forma da letra C – C de
Crip, o gangue de rua de péssima fama, esclarece. Conta-me como, logo
no jardim-escola, soube que era isso que queria ser quando crescesse.
– No bairro, os membros dos gangues é que são os mais respeitados.
Conta-me como, com doze anos, aqueceu na chama do fogão o arame
de um cabide para marcar a própria pele, num sinal de lealdade. Mostra-
me outra cicatriz, esta na mão, de quando, para se exibir e mostrar
coragem, disparou uma bala a atravessar a palma, sob os aplausos de
outros membros do gangue. Diz que queria provar que, apesar da idade e
de ser franzino, era um tipo mau.
– O que faz um tipo mau ser um tipo mesmo mau? – pergunto-lhe.
Responde-me com uma palavra.
– Violência.
Quando os guardas não estão a olhar, o Lil’ GQ desaperta a parte da
frente do macacão e mostra-me uma história completa de cicatrizes,
tatuagens e marcas de queimaduras no peito. Conta-me de outro ferimento
de bala que infligiu a si mesmo, este nas costelas. Mas, nessa ocasião, não
havia espetadores a aplaudir. Em vez de se tornar o gangster respeitado
que ele tinha imaginado, pelos quinze anos tinha-se transformado no que
me descreveu como “a mais baixa das formas de vida que habitam o
bairro” – um traficante de droga que se tornou viciado e que rouba os
próprios carregamentos. Um dia, quando ia sozinho pela rua, pegou na
própria arma, apontou-a ao peito e puxou o gatilho. Acordou nas urgências
do hospital, com a ferida a ser cosida.
– Porque é que fizeste isso? – pergunto.
– Se alguém em quem confiamos nos maltrata, ficamos confusos.
E quando permanecemos confusos começamos a odiar-nos a nós mesmos.
– Cala-se por um minuto, há uma nuvem que lhe passa pelo rosto.
Parece-me uma altura tão boa como outra qualquer para lhe perguntar
porque é que foi ali parar. O Lil’ GQ diz-me à queima-roupa que o
assassínio pelo qual se encontra na ala dos condenados à morte não é o
único que cometeu.
– Não me sinto mal quanto a esses outros assassínios, porque estavam
todos relacionados com os gangues – diz. – Quando se é de onde eu sou, a
lei da selva é assim: se tu não disparas, eles disparam. É assim que as
coisas são. Quanto ao último assassínio, aquele por que me apanharam,
esse foi mau, porque foi o de uma pessoa de quem eu gostava. Estava
cheio de drogas e precisava de mais. Mas não culpo as drogas por aquilo
que fiz. A culpa foi minha e acreditei durante muito tempo que merecia a
pena de morte.
Não sei quanto daquilo que o Lil’ GQ me está a contar é verdade. Não
estou à procura de inconsistências e omissões, nem de contradições e
repetições; estou só a ouvir. Este homem já foi julgado pelo que fez e, de
qualquer maneira, não foi por isso que aqui vim. Portanto, vou acenando
com a cabeça e, de vez em quando, faço uma pergunta ou observo “dizem
que sim”, mas na maior parte do tempo estou só a ouvir. Não posso fingir
que compreendo muita coisa da realidade de que ele me fala, mas entendo
que o Lil’ GQ tem necessidade de partilhar todas estas histórias e de tentar
entender porque é que todas estas coisas lhe aconteceram a ele, mesmo
agora, quando está na ala dos condenados à morte. Quando se é obrigado a
confrontar a própria mortalidade, seja por causa do diagnóstico de uma
doença ou de uma sentença de morte pronunciada pelo estado, há uma
urgência em reivindicar a vida, em moldar o nosso legado nos nossos
próprios termos, nas nossas próprias palavras. Contar histórias sobre a
nossa vida é recusar ser reduzido à inevitabilidade absoluta. Ali sentada, a
ouvir a conversa do Lil’ GQ, lembro-me de uma frase de Joan Didion:
“Contamos histórias a nós próprios para poder viver.” Só que, no caso do
Lil’ GQ, ele conta histórias a ele próprio para facilitar a passagem da
morte.
– Quantos apelos ainda te restam? – pergunto.
– Mais um – diz. Uma veia pulsa-lhe na testa enquanto me explica o
processo que conduz à execução. A notificação legal que é entregue na
cela, a indicar que foi fixada uma data. A unidade especial para onde são
transferidos os presos nos sessenta dias anteriores à execução, e onde
ficam sob uma vigilância permanente, dia e noite, por causa de todas as
tentativas de suicídio que acontecem. – Algumas pessoas pedem à família
para estar presente no momento da execução, mas eu não vou fazer isso.
Quero ser lembrado assim e não amarrado a uma mesa e abatido como um
cão. Ninguém precisa de ter essa imagem na cabeça. Cheguei ao mundo
sozinho e vou sair do mundo sozinho.
*

Na manhã seguinte, quando regresso, venho preparada. Tenho o número


de identificação prisional do Lil’ GQ escrito num post-it, uma bolsa de
plástico transparente para pôr a carteira e vinte dólares em moedas para as
máquinas, para o caso de precisar de comer qualquer coisa. Navego pelo
labirinto de corredores e pontos de controlo e, para grande alívio meu,
faço tudo de maneira a que nenhum guarda grite comigo. Tudo parece
correr sem problemas até que o Lil’ GQ aparece do outro lado da divisória
de acrílico engordurada. Parece perturbado e reparo que tem grandes
olheiras, que na véspera não existiam.
– Como estás? – pergunto-lhe.
– De verdade? Não dormi – responde-me, brincando com a corda do
telefone entre os dedos. – Ontem estava tão nervoso que comecei a dizer
coisas como um idiota, procurando impressionar-te e o raio. Quando te
foste embora, pensei que de certeza te tinha ofendido ou então que tinhas
ficado a pensar que eu era uma espécie de assassino perturbado louco –
diz. – Disse ao meu vizinho da cela ao lado que tinha a certeza de que já
não voltavas. Fiquei acordado a noite inteira a escrever as minhas ideias e
a organizá-las para ser capaz de me exprimir melhor no caso de, afinal,
voltares mesmo.
O Lil’ GQ dobra-se e tira do sapato um pedaço de papel dobrado num
quadrado muito pequeno. Abre-o e vejo que está coberto de notas.
Começa a ler uma lista de perguntas. Quer saber da minha saúde e da
minha família. Pergunta qual é o meu livro favorito, para também o poder
ler. Pergunta de que raça é o Oscar e qual é a música que prefiro. Pergunta
o que fiz em todo o tempo em que estive no hospital.
– Fiquei mesmo, mesmo boa no Scrabble – digo-lhe.
– A sério? Eu também! Quero dizer, não sou assim tão fantástico no
Scrabble, mas tento.– O rosto dele ilumina-se quando me explica como
ele e os prisioneiros das celas vizinhas criam os seus próprios tabuleiros
de jogo em papel e vão dizendo em voz alta os movimentos pelas
aberturas nas portas das celas por onde lhes passam os tabuleiros com as
refeições. Diz-me que conseguem jogar desta maneira todo o género de
jogos, até cartas e gamão.
O Lil’ GQ diz-me que nunca na vida esteve doente – começa o dia a
fazer mil flexões todas as manhãs –, mas que é capaz de perceber muita
coisa da minha experiência com o cancro. Compreende o que é sentirmo-
nos presos no purgatório, à espera de notícias sobre o nosso destino; a
solidão e a claustrofobia de estar confinado a um quarto pequeno por
períodos de tempo infindos; como é necessário tornarmo-nos inventivos
para nos mantermos sãos. Estes paralelismos inesperados foram o que o
impeliu inicialmente a escrever-me.
– Tu enfrentaste a morte na tua própria prisão pessoal, tal como eu
continuo a enfrentar a morte na minha – diz-me o Lil’ GQ. – No fim, a
morte é a morte, não importa a forma que toma.
Estamos a tentar com veemência chegar um ao outro com o acrílico pelo
meio, a encontrarmo-nos em território partilhado que ambos
compreendamos, mas os paralelismos que existem entre as nossas
experiências têm as suas limitações. Tentar encontrar eco na história de
alguém sem reduzir o nosso sofrimento a uma coisa idêntica é um
equilíbrio muito complicado. Para além das diferenças óbvias de cor de
pele e privilégios, de género e educação, o simples facto de eu estar a
visitar o Lil’ GQ enquanto faço uma viagem sublinha uma diferença
oceânica: o meu corpo está em movimento; o corpo dele está atrás das
grades. Mas, nesta visita, fingimos que não é assim, comportamo-nos
como se estivéssemos algures num café, só duas pessoas à conversa, a
tentar – ainda que de forma imperfeita – encontrar pontos de contacto uma
com a outra.
Um toque no ombro faz-me dar um salto. É um guarda a dizer-nos que
são três da tarde.
– Acabou o meu tempo – diz o Lil’ GQ. Antes de eu me ir embora, faz-
me uma última pergunta. – Se pudesses voltar atrás com tudo, farias isso?
Se eu pudesse voltar atrás com tudo? Estou espantada.
– Não sei – respondo-lhe, em voz baixa.
*

São os meus últimos quilómetros. Atravesso os pântanos de Luisiana, com


insetos a esmagarem-se contra o vidro. Na costa do Alabama sou
apanhada por uma tempestade, tenho problemas no motor quando me
esqueço de mudar o óleo e fico num impropriamente chamado Comfort
Inn perto de Daytona Beach, onde acordo e descubro que fui toda mordida
por pulgas. Recebo o novo ano com uma noite gloriosa de campismo em
Jekyll Island, na Geórgia, onde o som das ondas me embala o sono. Em
Charleston, fico com um antigo interesse amoroso e recebo a minha
primeira multa por excesso de velocidade – a minha mãe avisa-me logo
que é bom que seja a última. Antes de subir aos ziguezagues pela Costa
Leste, faço uma derradeira paragem para riscar um último nome na minha
lista: uma adolescente mínima chamada Unique, que passou a maior parte
da juventude a viver em quartos de hospital, mas que se prepara agora
para regressar ao mundo. Ao almoço, pergunto-lhe o que quer fazer a
seguir. Atira-me um sorriso tão radioso que parece a luz do sol.
– Quero ir para a universidade! E viajar! E comer alimentos esquisitos,
como polvo, que nunca provei! E ir visitar-te a Nova Iorque! E ir acampar,
mas tenho medo de insetos – mas mesmo assim quero ir!
Talvez seja o otimismo dela; talvez seja o cansaço da viagem; talvez
seja saber que o meu tempo na estrada está quase a acabar – mas quando
levo à boca uma batata frita com sal, penso que é a batata frita mais
deliciosa que alguma vez provei.
Enquanto conduzo, continuo a pensar na questão que o Lil’ GQ me
lançou. Vejo o Will a chegar à porta da minha casa em Paris, nós os dois
tão inocentes e cheios de esperança. Lembro-me do rosto devastado da
minha mãe quando o médico comunicou o diagnóstico e dos olhos
vermelhos do meu pai quando regressava dos seus passeios pelos bosques.
Penso nas notas fracas do meu irmão no último ano da faculdade, na
pressão que ele sentia por ser o meu dador, em como as necessidades dele
passavam invariavelmente para segundo plano, em função das minhas. No
silêncio, antes de adormecer, oiço ecos: os gemidos baixos do sofrimento,
os uivos de mágoa animais. Claro que eu faria tudo o que estivesse ao meu
alcance para poupar os meus entes queridos a toda a dor, terror e desgosto.
Claro que teria sido mais fácil se eu não tivesse adoecido.
Depois, o meu pensamento vai para todas as palavras que compus na
cama, para as cartas que recebi, para as amizades inesperadas que fiz.
Num semáforo, volto-me para trás para fazer uma festa ao Oscar, que
dorme no banco. Penso no Max, na Melissa – e em todos aqueles que
nunca teria conhecido se não fosse a solidão dos quartos de hospital e as
células malignas que nos uniram. Percorro o percurso que fiz nos últimos
três meses – os acertos de contas, as autoestradas e os parques de
campismo. Vejo o Ned, a Cecelia, o Howard, a Nitasha, o Bret, a Salsa, a
Katherine e todos os outros que me empurraram para explorar novas
profundidades. Oiço os troncos enormes das sequoias a estalar no ar frio
do oceano, os cacarejos de uma galinha gorda a ser perseguida às voltas de
um estábulo, o uivo do vento sobre as planícies de Pine Ridge e o estalar
bom das pinhas debaixo das minhas botas da primeira vez que montei a
tenda.
Embora os meus vinte anos tenham sido angustiantes, confusos, difíceis
– ao ponto de às vezes parecerem insuportavelmente dolorosos –, também
foram os anos mais formativos da minha vida, um tempo impregnado da
dádiva doce de uma segunda oportunidade, e de uma inundação de sorte,
se é que pode dizer-se que um conceito destes existe sequer. O entrelaçar
de tanta crueldade e de tanta beleza transformou a minha vida numa
paisagem estranha e dissonante. Deixou-me com uma consciência que não
desaparece do limiar da minha visão – num instante, tudo pode perder-se
–, mas também me deu o olhar de um joalheiro.
Se eu pensar só na minha doença – e ignorar o impacto que ela teve nas
pessoas à minha volta –, então a resposta é: não, se pudesse não reverteria
o meu diagnóstico. Não voltaria atrás com tudo o que sofri para ganhar
isto.

15 Jornalista, ensaísta e ativista feminista norte-americana, nascida em 1934. (N. do T.)

16 Gansta Quin, de nome verdadeiro Quintin Philippe Jones, condenado à morte em 1999 por ter
morto à pancada uma tia-avó, foi executado no Texas em 19 de maio de 2021, aos 41 anos, depois
de o governador do estado ter ignorado uma campanha global pelo seu indulto na qual a autora
deste livro foi uma das principais promotoras. Antes de entrar na câmara de execução, Quintin
telefonou a Suleika Jaouad uma última vez, para agradecer a todos os que lutaram por ele. Após a
execução, a autora, no Instagram, assinalou: “Há muitos Quins no nosso país - há demasiados.
A questão com que fico, no meio disto tudo, é: que sociedade queremos nós ser?”. (N. do T.)
EPÍLOGO

A vida não é uma experiência controlada. Não é possível marcarmos o


tempo exato em que uma coisa se transforma noutra, não conseguimos
quantificar quem nos influencia e como, não podemos isolar a combinação
de fatores que passa por uma transformação alquímica e se torna uma
cura. Não há um atlas que mostre aquela faixa solitária e escura de
autoestrada entre o ponto de onde partimos e em quem nos tornamos.
Mas, quando Nova Iorque me surge, com a sua silhueta louca e brilhante a
ofuscar as estrelas, alguma coisa em mim se transforma, talvez até a um
nível molecular.
Enquanto atravesso a ponte George Washington, a minha cabeça está
cheia de sonhos. Ainda que não consiga distinguir claramente as formas
que eles têm, ou pô-los em palavras, já há coisas que consigo ver por
antecipação. Entrego o carro, vou ver o meu médico e mudo-me para a
pequena cabana em Vermont, onde vivo vários meses e começo a escrever
estas páginas. Leio à lareira, vagueio pelos bosques e sento-me no
alpendre das traseiras. É lá, nesse alpendre, numa tarde mais para o fim do
Verão, que recebo a notícia de que o Max morreu. Num dos últimos
poemas, escreveu:

“Heaven is really just a hospital for souls.


When I get there, I will get there
and it will not be complicated
I am not that sick in Heaven.”17

Sempre que acordo a sentir a falta dos meus amigos, visito-os nas suas
palavras e aguarelas.
O meu sistema imunitário continua com falhas. Ainda exijo demais do
meu corpo. Sou hospitalizada por causa de complicações de uma gripe que
se tornam uma sepse. Sou obrigada a aceitar as minhas limitações e a
lentidão – é uma lição que tenho de aprender uma vez, e outra, e outra.
Desanimo. Deixo de escrever estas páginas. Descanso, recupero,
recomeço.
Demora mais um bom bocado, e há mais uns desvios, mas o Jon e eu
acabamos por levar as coisas para a frente. Mudamo-nos para um
quarteirão sossegado de Brooklyn, com árvores à volta. Na primeira noite,
celebramos com comida entregue em casa, à luz de velas, entre caixotes
de mudanças. Desembrulho o meu contrabaixo, limpo-lhe o pó pela
primeira vez em vários anos, e o Jon vai afinando o piano. Começamos a
tocar juntos.
O meu irmão, que é agora professor do quarto ano, vive no meu antigo
apartamento em East Village e voltou a pintar as paredes com as suas
próprias histórias, recordações e desgostos. Os meus pais mudaram-se
temporariamente para a Tunísia e eu volto lá para os visitar, pela primeira
vez desde a faculdade. Como o famoso cuscuz da minha tia Fatima,
convivo com os meus primos e festejo o Ano Novo no deserto do Sara.
O meu pai está a preparar a reforma e, quando esse momento chegar, tem
planos para fazer a sua própria viagem pelo país, seguindo o meu exato
itinerário. A minha mãe, que deixou de ser mãe e cuidadora a tempo
inteiro, voltou a desviar as suas energias para a pintura e reatou a carreira
de artista, com êxito e com um sentido de urgência que ela imaginava ter
passado há muito tempo.
Há certos sonhos que não consigo sonhar, porque nunca os julguei
possíveis. Na semana a seguir ao meu trigésimo aniversário, completo
uma meia-maratona. Regresso a Ojai, onde passo três meses como
professora convidada na escola da Katherine. Inspirada pela experiência
de conhecer o Lil’ GQ, escrevo a minha primeira reportagem, não a partir
da cama, mas do terreno, sobre um hospital-prisão no norte da Califórnia.
Uma tarde, enquanto procrastinava para concluir estas páginas, descobri à
venda uma carrinha Volkswagen de 1972 da cor da Sunshine. Escrevo ao
proprietário, um oficial da Força Aérea na reforma, que por acaso está a
ser tratado no Sloan Kettering e que reconhece o meu nome das colunas
no The New York Times escritas há tantos anos. “Diz um preço e é tua”,
diz-me. “Nunca ninguém comprou uma destas senhoras por ser uma coisa
prática.”
Guardo a carrinha na cabana de Vermont e tento aprender a conduzir
com mudanças. Apanho irritações sucessivas e dou murros no volante, de
frustração, com a quantidade de vezes que deixo o motor ir abaixo. Vou
experimentando nos caminhos à volta da cabana, passo de primeira para
segunda, com o motor a tossir e a queixar-se enquanto subo ao topo de um
monte próximo que ainda tem vestígios de neve. Quando chego ao cimo, a
estrada torna-se macia e plana. Sigo por uma estrada de terra, ganho
velocidade, vejo as árvores com pedaços de gelo desfilarem por mim.
O Oscar vai no banco ao meu lado, a ver as árvores passar. Pus na
geladeira um frango, uma garrafa de vinho e um livro. Já faz um tempo
que não conseguimos dar uma escapadela e, durante uns dias, somos só
nós os dois. Onde quer que eu esteja, onde quer que vamos, o lar será
sempre o lugar intermédio – um lugar desabitado que me acostumei a
amar.

17 “Na verdade, o Céu não passa de um hospital para almas. / Quando lá chegar, lá chegarei / e não
será complicado. / No Céu eu não estou assim tão doente.”
AGRADECIMENTOS

Estou eternamente grata a Richard Pine, rei dos agentes, e a Carrie Cook,
que me ajudou a transformar um guardanapo de bar num livro. Ao meu
editor, Andy Ward, pelo seu cuidado enorme, gentileza e orientação, e a
Susan Kamill, essa lenda falecida, por acreditar desde o início. Ao meu
velho companheiro e editor-assistente, Sam Nicholson, e às muitas outras
pessoas maravilhosas na Penguin Random House: em especial, Susan
Mercandetti, Carrie Neill e Paolo Pepe, bem como aos meus editores
internacionais, especialmente Andrea Henry. Um agradecimento particular
a Ben Phelan, que partilhou a tarefa desafiante de fazer o fact-checking
deste livro – e que o fez com uma sensibilidade sem paralelo, com
compaixão e com boa disposição.
Tenho uma grande dívida para com a Lizzie Presser, minha querida
amiga, que é sempre a primeira a ler e que defendeu este livro muito antes
de eu ter a confiança para o escrever. Para com a Carmen Radley,
brilhante companheira, escritora e leitora de quarentena, que me foi
empurrando até acabar. Para com a incomparável Lindsay Ryan, que
tornou estas páginas incomensuravelmente melhores, e para com Vrinda
Condillac, que viu aquilo que faltava e me ajudou a desfazer os nós.
E muitos agradecimentos aos primeiros leitores e aos meus mentores:
Glenn Brown, Lisa Ann Cockrel, Chris McCormick, Jenny Boully, Peter
Trachtenberg, Esmé Weijun Wang, Lily Brooks-Dalton, Katherine Halsey
e Bonnie Davidson. Ao meu grupo de escrita, por serem uma companhia
espetacular nesta empreitada sempre árdua e às vezes solitária: Jordan
Kisner, Jayson Greene, Frank Scott e, em especial, Melissa Febos e Tara
Westover, que me deram conselhos de um valor incalculável.
Pela dádiva do tempo e do silêncio, quando eram mais necessários,
agradeço à Fundação Ucross, ao Projeto Kerouac, à Biblioteca Pública de
Nova Iorque, à bolsa Anacapa e à Quinta Stone Acres, bem como à cabana
em Vermont, onde muitas destas palavras foram tecidas. Aos seminários
de escrita Bennington, por darem forma a uma comunidade querida. Um
agradecimento profundo a Christina Merrill, pela sua inexcedível
generosidade, a Gideon Irving, por me confiar o seu carro, e às famílias
Presser, Nelson-Greenberg e Ross por me darem apoio e abrigo quando
mais precisava. Os meus agradecimentos também a Erin Allweiss, Marissa
Mullen, Lindsay Ratowsky e Maya Land, pelos seus esforços incansáveis
nos bastidores.
Uma última e profunda vénia aos que tornaram possível o meu mundo.
Aos meus pais – o meu amor mais profundo e o maior dos agradecimentos
– e ao meu irmão, Adam, por literalmente me salvarem a vida. Aos
doutores Holland, Navada, Silverman, Castro e Liebers, e às minhas
enfermeiras Alli Tucker, Abbie Cohen, Sunny e Younique, bem como a um
número sem fim de outros profissionais de saúde, porque sem eles eu não
estaria aqui. A Jon Batiste, que me ensinou a acreditar de novo e que
enfrentou com resiliência e paciência os grandes períodos em que tive de
me ausentar. A Tara Parker-Pope, que me deu a primeira oportunidade, e
ao meu professor Marty Gottlieb, por nos apresentar. Para a Mara, a
Natalie, a Kristen, a Erika, a Michelle, a Lilli, a Behida, a Ruthie, a Azita,
a Kate, a Sylvie e muitas outras mulheres, demasiado numerosas para
mencionar aqui, que me encorajaram com a sua amizade. E, por fim, aos
meus guardiões da estrada, por me abrirem as suas casas e por partilharem
comigo as suas histórias. Obrigada por me guiarem pela mais difícil das
passagens.
FIM

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