Cumplicidade e Harmonia No Casal
Cumplicidade e Harmonia No Casal
Cumplicidade e Harmonia No Casal
Texto Bíblico:
Mt 19: 4 Jesus respondeu: — Por acaso vocês não leram o trecho das Escrituras que diz: “No começo o
Criador os fez homem e mulher”?5 E Deus disse: “Por isso o homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir
com a sua mulher, e os dois se tornam uma só pessoa.” 6 Assim já não são duas pessoas, mas uma só.
Portanto, que ninguém separe o que Deus uniu.
A Dualidade na percepção deste sentimento tão intrigante em todos nós tem se tronado o assunto preferido,
mais comentado e mais estudado nos últimos anos e podemos dizer que quanto mais se estuda este assunto
mais se afastam do verdadeiro amor que traz a mais profunda felicidade e a satisfação plena do nosso
coração. Isto porque os meios de comunicação e veiculação de propaganda fazem questão de confundir
AMOR com SEXO e todos nós sabemos que não são a mesma coisa, por isso trouxe para cá este texto que
diferencia a sexualidade e a afetividade de maneira que possamos aprender o caminho da verdadeira
felicidade.
Com as prédicas desta Quaresma, eu gostaria de continuar o esforço, iniciado no Advento, de trazer uma
pequena contribuição à reevangelização do Ocidente secularizado, que constitui nesta hora a preocupação
principal de toda a Igreja e, em particular, do Santo Padre Bento XVI.
Há um âmbito em que a secularização age de maneira especialmente difusa e nefasta, e é o âmbito do amor.
A secularização do amor consiste em separar o amor humano de Deus, em todas as formas desse amor,
reduzindo-o a algo meramente “profano”, onde Deus sobra e até incomoda.
Mas o amor não é um assunto importante apenas para a evangelização, ou seja, para as relações com o
mundo. Ele importa, antes de todo o mais, para a própria vida interna da Igreja, para a santificação dos seus
membros. É nesta perspectiva que se situa a encíclica Deus caritas est, do Papa Bento XVI, e é nela que nós
também nos colocamos para estas reflexões.
O amor sofre de uma separação nefasta não só na mentalidade do mundo secularizado, mas também, do lado
oposto, entre os crentes e, em particular, entre as almas consagradas. Poderíamos formular a situação,
simplificando ao máximo, assim: temos no mundo um eros sem ágape; e entre os crentes, temos
frequentemente um ágape sem eros.
O eros sem ágape é um amor romântico, mas comumente passional, até violento. Um amor de conquista, que
reduz fatalmente o outro a objeto do próprio prazer e ignora toda dimensão de sacrifício, de fidelidade e de
doação de si. Não é preciso insistir na descrição desse amor, porque se trata de uma realidade que temos
todo dia diante dos nossos olhos, propagandeada com estrondo pelos romances, filmes, novelas, internet,
revistas. É o que a linguagem comum entende, hoje, com a palavra “amor”.
Para nós é mais útil entender o que significa ágape sem eros. Na música, existe uma diferenciação que pode
nos ajudar a ter uma ideia: a diferença entre o jazz quente e o jazz frio. Eu li certa vez essa caracterização dos
dois gêneros, mas sei que não é a única possível. O jazz quente (hot) é o jazz apaixonado, ardente, expressivo,
feito de ímpetos, de sentimentos e, portanto, de improvisações originais. O jazz frio (cool) é o profissional: os
sentimentos se tornam repetitivos, o estro é substituído pela técnica, a espontaneidade pelo virtuosismo.
Com base nessa distinção, o ágape sem eros é um “amor frio”, um amar parcial, sem a participação do ser
inteiro, mais por imposição da vontade do que por ímpeto íntimo do coração. Um entrar num cenário
predefinido, em vez de criar um próprio, realmente irrepetível, como irrepetível é cada ser humano perante
Deus. Os atos de amor voltados para Deus parecem aqueles de namorados desinspirados, que escrevem à
amada cartas copiadas de modelos prontos.
Se o amor mundano é um corpo sem alma, o amor religioso praticado assim é uma alma sem corpo. O ser
humano não é um anjo, um espírito puro; é alma e corpo substancialmente unidos: tudo o que ele faz, amar
inclusive, tem que refletir essa estrutura. Se o componente humano ligado ao tempo e à corporeidade é
sistematicamente negado ou reprimido, a saída será dúplice: ou seguir adiante aos arrastos, por senso de
dever, por defesa da própria imagem, ou ir atrás de compensações mais ou menos lícitas, chegando até os
dolorosíssimos casos que estão afligindo atualmente a Igreja. No fundo de muitos desvios morais de almas
consagradas, não é possível ignorá-lo: há uma concepção distorcida e retorcida do amor.
Temos, então, um duplo motivo e uma dupla urgência de redescobrir o amor na sua unidade original. O amor
verdadeiro e integral é uma pérola encerrada entre duas conchas que são o eros e o ágape. Não podem ser
separadas, essas duas dimensões do amor, sem destruí-lo, como o hidrogênio e o oxigênio não podem ser
separados sem se privarem da água.
A reconciliação mais importante entre as duas dimensões do amor é prática. É aquela que acontece na vida
das pessoas, mas, para ser possível, ela precisa começar pela reconciliação entre o eros e o ágape inclusive
teoricamente, na doutrina. Isto nos permitirá conhecer finalmente o que é que se entende por estes dois
termos tão comumente usados e subentendidos.
A importância da questão nasce do fato de existir uma obra que popularizou em todo o mundo cristão a tese
oposta da inconciliabilidade das duas formas de amor. É o livro do teólogo luterano sueco Anders Nygren,
intitulado Eros e Ágape. Podemos resumir o pensamento dele nestes termos: eros e ágape designam dois
movimentos opostos. O primeiro indica ascensão e subida do homem para Deus e para o divino como próprio
bem e própria origem; o outro, o ágape, indica a descida de Deus até o homem com a encarnação e a cruz de
Cristo, e, portanto, a salvação oferecida ao homem sem mérito nem resposta de sua parte, a não ser a fé e
somente a fé. O Novo Testamento fez uma escolha precisa, usando, para exprimir o amor, o termo ágape, e
refutando sistematicamente o termo eros.
Foi São Paulo quem recolheu e formulou com mais pureza essa doutrina do amor. Depois dele, ainda segundo
a tese de Nygren, essa antítese radical se perdeu para dar lugar a tentativas de síntese. Assim que o
cristianismo entra em contato cultural com o mundo grego e a visão platônica, já com Orígenes, há uma
reavaliação do eros, como movimento ascensional da alma rumo ao bem e ao divino, como atração universal
exercitada pela beleza e pelo divino. Nesta linha, o Pseudo Dionísio Areopagita escreverá que “Deus é eros”
[1], substituindo com este termo o ágape da célebre frase de João (I Jo, 4,10).
No ocidente, uma síntese análoga foi feita por Agostinho com a doutrina da caritas, entendida como doutrina
do amor descendente e gratuito de Deus pelo homem (ninguém falou da “graça” com mais força do que ele),
mas também como anseio do homem pelo bem e por Deus. É dele a afirmação: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e
inquieto está o nosso coração até descansar em ti” [2]. Também é dele a imagem do amor como um peso que
atrai a alma, como por força de gravidade, para Deus, como ao lugar do próprio repouso e prazer [3]. Tudo
isso, para Nygren, insere um elemento do amor de si, do próprio bem, e, portanto, de egoísmo, que destrói a
pura gratuidade da graça; é uma recaída na ilusão pagã de fazer a salvação consistir numa ascensão a Deus,
em vez de na gratuita e imotivada descida de Deus até nós.
Prisioneiros desta impossível síntese entre eros e ágape, entre amor de Deus e amor de si, são, para Nygren,
São Bernardo, quando define o grau supremo do amor de Deus como um “amar a Deus por si mesmo” e um
“amar a si mesmo por Deus” [4]; São Boaventura, com seu ascensional Itinerário da mente para Deus; e São
Tomás de Aquino, que define o amor de Deus infuso no coração do batizado (cf. Rom, 5,5) como “o amor com
que Deus nos ama e nos faz amá-lo” (amor quo ipse nos diligit et quo ipse nos dilectores sui facit) [5]. Isto viria
a significar que o homem, amado por Deus, pode, por sua vez, amar a Deus, dar-lhe algo de seu, o que
destruiria a absoluta gratuidade do amor de Deus. No plano existencial, ainda de acordo com Nygren, o
mesmo desvio acontece na mística católica. O amor dos místicos, com a sua fortíssima carga de eros, nada é,
para ele, senão amor sensual sublimado, uma tentativa de estabelecer com Deus uma relação de presunçosa
reciprocidade em amor.
Quem rompeu a ambiguidade e devolveu à luz a pura antítese paulina, segundo o autor, foi Lutero.
Fundamentando a justificação apenas na fé, ele não excluiu a caridade do momento-base da vida cristã, como
o acusa a teologia católica; antes, libertou a caridade, o ágape, do elemento espúrio do eros. À fórmula do
“somente a fé”, com exclusão das obras, corresponderia, em Lutero, a fórmula do “somente o ágape”, com
exclusão do eros.
Não me cabe estabelecer se o autor interpretou corretamente neste ponto o pensamento de Lutero, que,
deve-se dizer, nunca pôs o problema em termos de contraste entre eros e ágape como fez com fé e obras. É
significativo, no entanto, que Karl Barth, num capítulo da sua Dogmática Eclesial, também chegue ao mesmo
resultado que Nygren de um contraste insanável entre eros e ágape. “Onde entra em cena o amor cristão”,
escreve ele, “começa de súbito o conflito com o outro amor, e este conflito não tem mais fim” [6]. Eu digo que
se isto não é luteranismo, é sem dúvida teologia dialética, teologia do “aut-aut”, da antítese, não da síntese.
O contragolpe desta operação é a radical mundanização e secularização do eros. Enquanto certa teologia
retirava o eros do ágape, a cultura secular era bem feliz, por sua vez, ao retirar o ágape do eros, ou seja, ao
retirar do amor humano toda referência a Deus e à graça. Freud apresentou para isto uma justificativa teórica,
reduzindo o amor a eros e o eros a libido, uma mera pulsão sexual que luta contra toda repressão e inibição. É
o estágio a que se reduz hoje o amor em muitas manifestações da vida e da cultura, principalmente no mundo
do espetáculo.
Dois anos atrás eu estava em Madri. Os jornais só faziam falar de uma certa mostra de arte na cidade,
intitulada As lágrimas do eros. Era uma mostra de obras artísticas de cunho erótico – quadros, desenhos,
esculturas – que pretendiam pôr em foco o inseparável vínculo que existe, na experiência do homem
moderno, entre eros e thanatos, entre amor e morte. À mesma constatação se chega quando se lê a
coletânea de poesias As flores do mal, de Baudelaire, ou Uma temporada no inferno, de Rimbaud. O amor que
por natureza deveria levar à vida acaba ao invés levando à morte.
3. Retorno à síntese
Se não podemos mudar de uma vez a ideia de amor que o mundo possui, podemos, sim, corrigir a visão
teológica, que, sem querer, a favorece e legitima. É o que fez de maneira exemplar o papa Bento XVI com a
encíclica Deus caritas est. Ele reafirma a síntese católica tradicional expressando-a com os termos modernos.
“Eros e ágape”, lemos ali, “amor ascendente e amor descendente, não se deixam jamais separar de todo um
do outro […]. A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto ao original fenômeno
humano que é o amor, mas aceita o homem todo, intervindo na sua procura pelo amor para purificá-la,
destruindo, em paralelo, novas dimensões suas” (7-8). Eros e ágape estão unidos à própria fonte do amor, que
é Deus: “Ele ama”, segue o texto da encíclica, “e este seu amor pode ser qualificado certamente como eros,
que, no entanto, é também e totalmente ágape” (9).
Entende-se o acolhimento insolitamente favorável que este documento pontifício encontrou mesmo nos
ambientes leigos mais abertos e responsáveis. Dá esperança ao mundo. Corrige a imagem de uma fé que toca
o mundo em tangente, sem penetrá-lo, com a imagem evangélica da levedura que faz a massa fermentar;
substitui a ideia de um reino de Deus que veio julgar o mundo pela de um reino de Deus que veio salvar o
mundo, começando pelo eros que é a sua força dominante.
À visão tradicional, própria tanto da teologia católica como da ortodoxa, pode-se dar, creio eu, uma
confirmação também do ponto de vista da exegese. Quem sustenta a tese da incompatibilidade entre eros e
ágape se baseia no fato de o Novo Testamento evitar com esmero – e, ao parecer, propositalmente – o termo
eros, usando em seu lugar sempre e somente ágape (a não ser por algum raro emprego do termo philia, que
indica um amor de amizade).
O fato é verdadeiro, mas não são verdadeiras as conclusões que dele se tiram. Supõe-se que os autores do NT
estivessem a par tanto do sentido que o termo eros tinha na linguagem comum (o eros assim chamado
“vulgar”) como do sentido elevado e filosófico que tinha, por exemplo, em Platão, o chamado eros “nobre”.
Na aceitação popular, eros indicava mais ou menos o que indica hoje quando se fala de erotismo ou de filmes
eróticos: a satisfação do instinto sexual, um degradar-se mais do que elevar-se. Na aceitação nobre, indicava
um amor pela beleza, a força que mantém o mundo e que impulsiona todos os seres à unidade, aquele
movimento de ascensão rumo ao divino que os teólogos dialéticos reputam incompatível com o movimento
de descida do divino até o homem.
É difícil defender que os autores do NT, dirigindo-se a pessoas simples e de nenhuma cultura, pretendessem
lhes falar do eros de Platão. Eles evitaram o termo eros pelo mesmo motivo que o pregador de hoje evita o
termo erótico, ou, se o emprega, é somente em sentido negativo. O motivo é que, tanto naquele tempo como
agora, a palavra evoca o amor na sua expressão mais egoísta e sensual [7]. A desconfiança dos primeiros
cristãos quanto ao eros se agravava ainda pelo papel que ele desempenhava nos desenfreados cultos
dionisíacos.
Tão logo o cristianismo entra em contato e diálogo com a cultura grega daquele tempo, cai por terra de
imediato, como já vimos, toda preclusão quanto ao eros. Ele é usado com frequência, nos autores gregos,
como sinônimo de ágape, e empregado para indicar o amor de Deus pelo homem, como também o amor do
homem por Deus, o amor pelas virtudes e por tudo o que é belo. Basta, para nos convencermos disso, uma
simples olhada no Léxico Patrístico Grego, de Lampe [8]. O sistema de Nygren e Barth, portanto, foi
construído sobre uma falsa aplicação do assim chamado argumento “ex silentio”.
O resgate do eros ajuda acima de tudo os enamorados humanos e os esposos cristãos, mostrando a beleza e a
dignidade do amor que os une. Ajuda os jovens a experimentar o fascínio do outro sexo não como coisa turva,
a ser vivida às costas de Deus, mas, ao contrário, como um dom do Criador para a sua alegria, desde que
vivido na ordem querida por Ele. Na sua encíclica, o papa acena ainda para esta função positiva do eros sobre
o amor humano quando fala do caminho de purificação do eros, que leva da atração momentânea ao “para
sempre” do matrimônio (4-5).
Mas o resgate do eros deve ajudar também a nós, consagrados, homens e mulheres. Eu acenei no início ao
perigo que as almas religiosas correm de um amor frio, que não desce da mente para o coração. Um sol de
inverno, que ilumina, mas não aquece. Se eros significa ímpeto, desejo, atração, não devemos ter medo dos
sentimentos, nem muito menos desprezá-los e reprimi-los. Quando se trata do amor de Deus, escreveu
Guilherme de Saint Thierry, o sentimento de afeto (affectio) é também graça; a natureza não pode infundir
um sentimento assim [9].
Os salmos estão cheios desse anseio do coração por Deus: “A ti, Senhor, eu elevo a minh’alma…”. “A
minh’alma tem sede de Deus, do Deus vivente”. “Preste atenção”, diz o autor da Nuvem do não
conhecimento, “a este maravilhoso trabalho da graça na tua alma. Ele não é senão impulso imprevisto, que
surge sem aviso e aponta diretamente para Deus, como uma centelha que se desencarcera do fogo… Golpeie
essa nuvem do não conhecimento com a flecha afiada do desejo de amor e não esmoreça, ocorra o que
ocorrer” [10]. É suficiente, para tanto, um pensamento, um movimento do coração, uma jaculatória.
Mas tudo isso não nos é bastante e Deus o sabe melhor que nós. Somos criaturas, vivemos no tempo e num
corpo; precisamos de uma tela na qual projetar o nosso amor que não seja apenas “a nuvem do não
conhecimento”, o véu de escuridão por trás do qual se oculta o Deus que ninguém nunca viu e que habita
numa luz inacessível…
A resposta que se dá a esta interrogação nós conhecemos bem: por isso mesmo Deus nos deu o próximo para
amarmos. “Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor se
torna perfeito em nós. Quem não ama o próprio irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1
Jo 4, 12-20). Mas devemos ficar atentos para não saltar uma fase decisiva: antes do irmão que vemos, há
outro que também vemos e tocamos: o Deus feito carne, Jesus Cristo! Entre Deus e o próximo existe o Verbo
feito carne, que reuniu os dois extremos numa só pessoa. É nele que o próprio amor ao próximo encontra o
seu fundamento: “Foi a mim que o fizestes”.
O que significa tudo isto pelo amor de Deus? Que o objeto primário no nosso eros, da nossa busca, desejo,
atração, paixão, deve ser o Cristo. “Ao Salvador é pré-ordenado o amor humano desde o princípio, como ao
seu modelo e fim, como uma urna tão grande e tão ampla que pudesse acolher a Deus […] O desejo da alma é
unicamente de Cristo. Aqui é o lugar do seu repouso, porque só Ele é o bem, a verdade e tudo quanto inspira
amor”. Não quer dizer restringir o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; quer dizer amar a Deus do jeito
que Ele quer ser amado. “O Pai vos ama porque vós me amais” (Jo 16, 27). Não se trata de um amor mediato,
quase por procuração, por meio do qual quem ama Jesus “é como se” amasse o Pai. Não. Jesus é um
mediador imediato; amando a Ele, amamos, ipso facto, o Pai. “Quem me vê, vê o Pai”; quem me ama, ama o
Pai.
É verdade que nem mesmo a Cristo se vê, mas ele existe. Ressuscitou, vive, está conosco, de modo mais real
do que o mais apaixonado esposo está com a esposa. Eis o ponto crucial: pensar em Cristo não como uma
pessoa do passado, mas como o Senhor ressuscitado e vivente, com quem eu posso falar, a quem eu posso
beijar se quiser, certo de que o meu beijo não termina na estampa ou no lenho de um crucifixo, mas num
rosto e em lábios de carne viva (ainda que espiritualizada), felizes de receber o meu beijo.
A beleza e a plenitude da vida consagrada depende da qualidade do nosso amor por Cristo. É só o que pode
nos defender dos altos e baixos do coração. Jesus é o homem perfeito; nele se encontram, em grau
infinitamente superior, todas aquelas qualidades e atenções que um homem procura numa mulher e uma
mulher no homem. O amor dele não nos elimina necessariamente a sedução das criaturas e, em particular, a
atração do outro sexo (ela faz parte da nossa natureza, que Ele criou e não quer destruir). Mas nos dá a força
para vencer essas atrações com uma atração mais forte. “Casto”, escreve São João Clímaco, “é quem afasta o
eros com o Eros” [11].
Será que tudo isso destrói a gratuidade do ágape, pretendendo dar a Deus alguma coisa em troca do seu
coração? Anula a graça? De jeito nenhum. Antes, a exalta. O que, afinal, neste mundo, damos a Deus se não o
que recebemos dele? “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19). O amor que damos a Cristo é
o seu próprio amor por nós, que devolvemos a Ele, como o eco nos devolve a nossa voz.
Onde está então a novidade e a beleza deste amor que chamamos eros? O eco reenvia para Deus o seu
próprio amor, mas enriquecido, colorido e perfumado com a nossa liberdade. E é tudo o que Ele quer. A nossa
liberdade lhe paga tudo. E não só isto, mas, coisa inaudita, escreve Cabasilas, “recebendo de nós o dom do
amor em troca de tudo o que Ele nos deu, Ele ainda se reputa nosso devedor” [12]. A tese que contrapõe eros
e ágape se baseia em outra conhecida contraposição: a contraposição entre graça e liberdade, e, mais ainda,
na negação da liberdade no homem decaído.
Eu procurei imaginar, Veneráveis padres e irmãos, o que diria Cristo ressuscitado se, como fazia na vida
terrena, quando entrava aos sábados numa sinagoga, viesse agora sentar-se aqui, no meu lugar, e nos
explicasse em pessoa qual é o amor que Ele deseja de nós. Quero compartilhar com vocês, com simplicidade,
o que eu penso que Ele diria. Pode nos servir para o nosso exame de consciência sobre o amor:
O amor ardente:
É me colocares sempre em primeiro lugar.
É procurares me alegrar em todo momento.
É confrontares teus desejos com o meu desejo.
É viveres como meu amigo, confidente, esposo, e seres feliz assim.
É te inquietares ao pensamento de ficar um pouco longe de mim.
É seres repleto de felicidade quando estou contigo.
É estares disposto a grandes sacrifícios para nunca me perder.
É preferires viver pobre e desconhecido comigo a rico e famoso sem mim.
É falares comigo como ao amigo mais amado em todo momento possível.
É te confiares a mim olhando para o teu futuro.
É desejares perder-te em mim como meta do teu existir.
Se vocês acharem, como eu acho, que estamos muito longe dessa situação, não nos desencorajemos. Temos
alguém que pode nos ajudar a chegar lá se pedirmos sua ajuda. Repitamos com fé ao Espírito Santo: Veni,
Sancte Spiritus, reple tuorum corda fidelium et tui amoris in eis ignem accende: Vinde, Espírito Santo, enchei
os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor.
***
Notas:
[1] Pseudo Dionísio Areopagita, Os nomes divinos, IV,12 (PG, 3, 709 em diante.)
[2] S. Agostinho, Confissões I, 1.
[3] Comentário ao evangelho de João, 26, 4-5.
[4] Cf. S. Bernardo, De diligendo Deo, IX,26 –X,27.
[5] S. Tomás de Aquino, Comentário à Carta aos Romanos, cap. V, liç.1, n. 392-293; cf. S. Agostinho,
Comentário à Primeira Carta de João, 9, 9.
[6] K. Barth, Dogmática eclesial, IV, 2, 832-852.
[7] O sentido que os primeiros cristãos davam à palavra eros se deduz do famoso texto de S. Inácio de
Antioquia, Carta aos Romanos, 7,2: “O meu amor (eros) foi crucificado e não há em mim fogo de paixão…não
me atraem o nutrir corrupção e os prazeres desta vida”. “O meu eros” não indica aqui Jesus crucificado, mas
“o amor de mim mesmo” , o apego aos prazeres terrenos, na linha do paulino “Fui crucificado com Cristo, não
sou mais eu que vivo” (Gal 2, 19 s.).
[8] Cf. G.W.H. Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, pp.550.
[9] Guilherme de St. Thierry, Meditações, XII, 29 (SCh 324, p. 210).
[10] Anônimo, A nuvem do nao conhecimento, trad. Italiana, Ed. Áncora, Milão, 1981, pp. 136.140.
[11] S. João Clímaco, A escada do paraíso, XV,98 (PG 88,880).
[12] N. Cabasilas, Vida em Cristo, VI, 4.