Simetria Reversibilidade e Reflexividade Coletivo

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Simetria, Reversibilidade e Reflexividade

Grandes Divisores e Pequenas Multiplicidades

Rede Abaeté de Antropologia Simétrica

Algumas das mais importantes transformações ocorridas no campo da antropologia social ou


cultural ao longo das três últimas décadas não parecem ter se refletido muito nem em seu ensino,
nem em suas formas institucionais de organização e divulgação. Em relação ao primeiro ponto,
Tim Ingold já observava, desde 1996, (“Preface” a Key debates in anthropology, p. IX), que parece
haver “uma distância cada vez maior entre a antropologia tal qual é praticada e o modo pelo qual a
disciplina é publicamente apresentada e ensinada aos estudantes. Por que supor que todos os
grandes debates (...) tiveram lugar no mais distante passado?”. Diagnóstico que é provavelmente
verdadeiro para muitas das outras disciplinas que ocupam esse vago campo denominado ciências
humanas.
Em relação às formas de organização e divulgação, a distância parece ser de natureza um
pouco distinta. Pois é no mesmo momento em que, em boa parte da prática antropológica (e isso
também é provavelmente verdadeiro para alguns setores de outras ciências humanas), o interesse
autêntico por outros modos de pensamento e organização começou a ser expandido a limites antes
não imaginados que as formas dominantes de pensar e organizar a própria disciplina tendem a uma
espécie de calcificação. O sucesso de certas modalidades contemporâneas de antropologia aplicada
(obrigadas, por definição, a conceder universalidade a valores, princípio e modos de pensar sempre
particulares) e a dependência cada vez maior em relação a organismos estatais, para-estatais e não-
governamentais é um sintoma dessa situação.
Ingold respondeu a seu próprio diagnóstico organizando, entre 1988 e 1993, uma série de
seis key debates em torno de algumas questões centrais da antropologia: a antropologia é
necessariamente uma ciência generalizadora? O conceito de sociedade é teoricamente obsoleto? Os
mundos sociais são culturalmente construídos? A linguagem é a essência da cultura? O passado é
um “país estrangeiro”? A estética é uma categoria transcultural? É interessante observar, contudo,
que uma questão não tenha sido examinada diretamente, ainda que permeie, de fato, todos os
debates. Trata-se do famoso tema dos “grandes divisores”.
Como bem se sabe, essas divisões binárias sempre serviram de instrumentos ligados
sucessivamente às aspirações de conquista (“pagão-cristão”), exploração (“selvagem-civilizado”) e
administração (“tradicional-moderno”) das “outras” sociedades — e não apenas delas. Divisões
que ainda se manifestam hoje, especialmente a última, presente em diversos projetos de hegemonia
sociopolítica empreendidos pelos e nos estados-nação contemporâneos. É claro, assim, que a
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oposição entre sociedades “simples” e “complexas” representa apenas mais uma forma de enunciar
a dicotomia que marcou não só a história da antropologia mas do pensamento ocidental como um
todo. Evidentemente, não existem sociedades simples ou complexas, mas essa inexistência não
remete para uma “complexidade” generalizada (“todas as sociedades são igualmente complexas...),
que aboliria não só todas as diferenças mas a si mesma. A complexidade não corresponde a
propriedades do objeto, mas a um certo ponto de vista: basta prestar atenção a um coletivo
qualquer para que sua complexidade venha à luz, mas essa complexidade é sempre específica,
singular, as formas de socialidade correspondendo a arranjos particulares de elementos e processos
muito gerais. Princípio que permite ultrapassar as armadilhas da identidade absoluta e do
relativismo generalizado e retomar, em novas bases, as questões mais clássicas da antropologia:
em lugar de escolher entre o particular e o universal, trata-se de determinar singularidades,
entendidas como combinatórias locais (o que não significa diferença absoluta e irredutível) de
linhas de força difusas (o que não significa universalidade absoluta).
Sabemos, também, que a relação dos antropólogos com os grandes divisores e as oposições
binárias em geral sempre foi ambígua: fundada por eles e, muitas vezes, reforçando-os, a
antropologia tendeu sempre ao mesmo tempo, e às vezes não intencionalmente, a ultrapassá-los,
seja na direção de um universalismo monista, seja na de um relativismo pluralista. Observemos
igualmente, e de passagem, que os grandes divisores nunca se limitaram a funcionar em um plano,
por assim dizer, ontológico, no qual afirmam a existência de tipos distintos de sociedade;
operaram, também, em registros epistemológicos (sugerindo que formações sociais diferentes
deveriam ser tratadas por saberes distintos) e mesmo metodológicos (imaginando a existência de
métodos supostamente mais adequados para diferentes formações sociais).
De certo ponto de vista, parece, pois, ocorrer com a antropologia o mesmo que Deleuze e
Guattari sugeriram em relação à economia política e à psicanálise. Se Adam Smith e David
Ricardo descobriram que a riqueza é trabalho produtivo apenas para alienaram sua descoberta na
representação da propriedade, e se Freud descobriu o desejo para logo aliená-lo na representação
familiar do Édipo, talvez pudéssemos indagar se a antropologia não teria revelado um certo tipo de
experiência da alteridade para logo aliená-la, ao reduzir essa alteridade simplesmente àquilo que já
fomos (como no evolucionismo), ou que apenas não somos (funcionalismo), ou que poderíamos ter
sido (culturalismo), ou que todos somos (o homem em geral do estruturalismo).
Nascida do encontro de uma civilização imperialista com as sociedades que sua expansão
colocava no caminho, a antropologia surgiu com a invenção de uma imagem dessas sociedades
que, invertendo a que fazíamos de nós mesmos, servia para corroborar nossa suposta superioridade
e originalidade. Apenas constituída, essa dicotomia pôde ser em parte abandonada, e os
antropólogos passaram a estudar não mais a suposta oposição entre “nós” e “eles”, mas tudo aquilo
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que parecia se situar do outro lado da fronteira. Tratava-se de demonstrar que algo de “universal”
— de “natural”, portanto — permeava todas as diferenças culturais. De maneira oposta, esse
esforço também conduziu a uma percepção mais aguda do caráter tramado das instituições sociais,
de sua não necessidade.
Essa “desnaturalização” produziu efeitos na compreensão de nossa própria sociedade: em
lugar de aceitar como dados os recortes e categorias através dos quais nós — cientistas sociais ou
não — nos pensamos, os antropólogos tenderam a analisar os processos de produção social dessas
realidades: nem naturais, nem falsas, elas são agenciadas. Assim, se um dos traços marcantes do
desenvolvimento das pesquisas antropológicas nos últimos anos vem sendo sua progressiva
concentração na investigação da sociedade que a ela deu origem, isso nunca significou, claro, o
abandono do estudo das outras sociedades. Mas talvez possa significar também uma maior
problematização da própria noção de alteridade, ao converter nossa sociedade em objeto de
estranhamento, observável de uma perspectiva “outra” (o que, grosso modo, distinguiria a
perspectiva antropológica de outras) — operação que, simultaneamente, torna possível encarar
com seriedade ainda maior as “outras” sociedades e que promove um deslocamento que levanta
questões sobre a manutenção das abordagens clássicas e sobre a relação da antropologia com os
coletivos que estuda.
A questão que hoje se coloca é como utilizar um saber acumulado durante 150 anos na
elaboração de outras perspectivas sobre outras sociedades, saber fortemente marcado por sua
articulação com os saberes com os quais entra em relação. No momento em que se anuncia o “fim
da história” ou o advento de uma era de “globalização” (novas versões dos grandes mitos
ocidentais da evolução e do progresso), abrem-se novas possibilidades para um olhar treinado na
observação dessas realidades outras e para uma prática marcada pela articulação com outras
experiências. Ao colocarmos entre parênteses aquilo que tendemos a tomar como natural, abrem-se
novas perspectivas: de um lado, as sociedades ditas “primitivas” não podem mais servir de
ilustrações de nosso passado ou de laboratórios privilegiados para a descoberta de uma suposta
natureza humana. Quando levadas efetivamente a sério, revelam outros agenciamentos, ajudando a
problematizar nosso presente e — quem sabe — a imaginar nosso futuro. De outro lado, um certo
tipo de olhar sobre, ou uma outra modalidade de conexão com, nossa própria sociedade não pode
deixar de ter efeito sobre o estudo de qualquer sociedade.
Primeiro, porque se torna cada vez mais claro que o que vivemos e analisamos não são
“culturas”, “sociedades” ou mesmo “grupos” nitidamente distintos, mas sistemas abertos em
diferentes graus de coexistência. O que coloca, sem dúvida, uma série de dificuldades para
discursos mais ou menos informados por posições “culturalistas” e para o discurso mais ou menos
fácil das “diferenças culturais”.
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Em segundo lugar, o caráter ambíguo das categorias com que operamos parece ter sido
realçado. Pois se noções como cultura, identidade, política etc. estão no centro da antropologia,
elas aí aparecem, ao mesmo tempo, dotadas de propriedades objetivas e representacionais e
também como conceitos manipulados por nós mesmos. Em outros termos, e para simplificar
muito, quando se pesquisa “em sua própria língua”, é preciso se indagar o tempo todo do que,
afinal de contas, estamos falando. Na verdade, nunca estamos às voltas com puros conceitos ou
com simples realidades empírica ou mentalmente dadas: trata-se sempre de modos históricos de
refletir, articular e desenvolver diferentes práticas e experiências vividas. O que impõe um cuidado
com o risco sempre presente de utilizar de forma normativa ou impositiva certas categorias,
projetando-as sobre os contextos estudados. Nosso problema é de tradução, não de imposição — e
isso vale tanto quando trabalhamos na nossa língua e nas nossas sociedades quanto no caso
contrário.
Deve ficar muito claro, contudo, que a recusa radical dos grandes divisores, que deve fundar
qualquer antropologia, não significa, de modo algum, a recusa das pequenas multiplicidades e das
singularidades de todos os tipos — bem ao contrário. Porque o substantivo multiplicidade é
totalmente irredutível ao adjetivo múltiplo: este, sempre oposto ao um, nos assombra com todas as
formas de dualismo e suas variações; aquele remete a um pluralismo intensivo (ver Deleuze e
Guattari, Mille Plateaux, 1980, principalmente pp. 15-18, 43-50, 190-192).
O problema, como escreveu Donzelot (“Uma Anti-Sociologia”, In Manuel Maria Carrilho,
org., Capitalismo e esquizofrenia. Dossier Anti-Édipo, 1976, p. 172), é abandonar de vez o
comparatismo e o relativismo vulgares, que se contentam em repetir que “aqui é assim, ali de outra
forma”, em benefício de um microfuncionalismo que mostre como é que as coisas funcionam
efetivamente de outros modos, à maneira de Gabriel Tarde. Assim, em lugar de simplesmente
seguir proclamando, de modo abstrato, que não existe critério que permita hierarquizar sociológica
ou cognitivamente as sociedades, uma série de movimentos, no interior e fora, do campo
antropológico, passaram a extrair as conseqüências empíricas, teóricas e ético-políticas desse
posicionamento.

A antropologia assenta sobre três polaridades conceituais absolutamente condicionantes ou


congênitas: as oposições entre Primitivo e Civilizado, Indivíduo e Sociedade, e Natureza e Cultura.
Virtualmente todos os debates teóricos e distinções escolásticas importantes do século passado
giraram em torno do peso relativo de cada um dos pólos dessas três dualidades na definição do
objeto próprio da disciplina. Nos últimos anos do século, entretanto, tais polaridades conheceram
um crítica cerrada e entraram em crise terminal. Hoje, não mais definem o horizonte da disciplina
e, com isso, finda uma fase histórica das ciências humanas.
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Trata-se hoje, pois, de tentar responder à seguinte questão: em uma paisagem teórica que não
reconhece mais a pertinência da distinção entre Primitivo e Civilizado (ou Eles e Nós), Indivíduo e
Sociedade (ou Parte e Todo) e Natureza e Cultura (ou Um e Múltiplo), que relevância poderia ter a
idéia tradicional de “antropologia social” ou “cultural”? Trata-se de ir além dessa disciplina, ou
dos adjetivos que sempre a caracterizaram? As respostas, certamente, envolvem a elaboração de
uma linguagem conceitual alternativa, centrada nas idéias de rede (que dissolve a distinção entre
parte e todo), multiplicidade (que desloca o dilema da unidade e da pluralidade), e simetria ou
simetrização (que extrai todas as consequências da falência do contraste entre primitivo e
civilizado).
Observemos que já na década de 1970, Roy Wagner (The invention of culture, 1975/1981, p.
31) rompia as articulações epistemológicas do grande divisor, quando este supõe ser a reflexão
antropológica um privilégio do Ocidente, princípio que, insidiosamente, serve para nos separar de
todos os demais, irremediavelmente prisioneiros inconscientes de suas próprias culturas. Wagner
proclamava que, bem ao contrário, a antropologia poderia ser perfeitamente compreendida, antes
de tudo, como um modo de relacionamento com a alteridade, existente em qualquer coletivo
humano. E a “antropologia reversa” de que nos fala pode bem ser entendida tanto no sentido do
que o autor denomina uma modalidade “pragmática” de antropologia dos outros sobre nós
(elaborada a partir de uma noção de vida, não de cultura), quanto naquele em que se fala de
engenharia reversa, ou seja, como um caminho para revelar os procedimentos ocultos quando nós
mesmos fazemos nossa antropologia a respeito dos outros — como a literalização das metáforas
dos outros e a obliteração do caráter inventado dos conceitos com que operamos.
Alguns anos mais tarde, Marilyn Strathern (The gender of the gift, 1988, e, também, “The
limits of auto-anthropology”, In Anthony Jackson, ed., Anthropology at home, 1987) expandiu esse
movimento, prolongando a ruptura wagneriana do grande divisor epistemológico (já um
prolongamento da ruptura com o etnocentrismo ontológico dos tipos de sociedade) ao que
poderíamos denominar grandes divisores metodológicos. Ao demonstrar que a antropologia sobre
as outras sociedades tem necessariamente que levar em conta a antropologia das outras sociedades,
Strathern abria a possibilidade de uma antropologia sobre a nossa sociedade que não é apenas a
antropologia da nossa sociedade. Partindo da crítica pós-moderna ao primado da representação,
Strathern não se contenta em substituí-la por uma reflexividade que apenas nos mergulharia em
nós mesmos: o fato de os outros não serem transparentes não significa que eles sejam opacos ou
que sejamos nós os transparentes, e é apenas por meio de incessantes alinhamentos entre
fenômenos de diferentes coletivos que a antropologia pode funcionar de modo sempre translúcido.
Se a obra de Strathern está, sem dúvida, ligada à de Wagner, não se pode dizer o mesmo da
de Bruno Latour em relação a qualquer um deles. Ou mesmo em relação à antropologia em geral.
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Como diz o próprio autor, “os conceitos desenvolvidos pela antropologia me seduziram menos que
seus métodos” (Un monde pluriel mais commun. Entretiens avec François Ewald, 2003, p. 7).
Nesse sentido, a antropologia simétrica de Latour pretende investigar e analisar nossa própria
sociedade com o mesmo grau de originalidade e sofisticação com que, às vezes, somos capazes de
falar das outras sociedades.. Além de suspender qualquer juízo sobre uma suposta distinção de
fundo entre nós e os outros, não recorre a qualquer hipótese sobre uma superioridade intrínseca de
nossos modos de conhecimento (o que significa evitar a noção de natureza como realidade em si e
como juiz das diferentes representações) e busca aplicar sobre nossas instituições “centrais”
(ciência ou política, por exemplo) os mesmos procedimentos de investigação utilizados pelos
etnógrafos das outras sociedades.
É claro que a antropologia simétrica tal qual Latour a compreende não é a única possível. Há
vários sentidos para a simetria, assim como há vários problemas em Latour: distinção entre o que
seria central e periférico em cada sociedade; concentração da investigação nos aspectos tidos como
centrais; desconsideração das representações dos agentes; falta de dimensões mais comparativas; e
assim por diante. Não obstante, Latour colocou o dedo em uma ferida da chamada antropologia das
sociedades complexas ao sugerir que, “audaciosos com relação aos outros”, os antropólogos são
tímidos quanto a si mesmos” (Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica, 1991, p.
100).
No próprio campo dos estudos sobre as ciências, a obra de Isabelle Stengers (ver,
principalmente, A Invenção das Ciências Modernas, 1993) sinaliza outras possibilidades de
conexão. Ao definir o “princípio de simetria” simplesmente como uma injunção que obriga a “tirar
conseqüências do fato de que nenhuma norma metodológica geral pode justificar a diferença entre
vencedores e vencidos criada pelo encerramento de uma controvérsia”, e que proíbe, ao mesmo
tempo, “tomar emprestado o vocabulário do vencedor para contar a história de uma controvérsia”
(p. 17), a autora sublinha a necessária conexão de uma história das ciências que não se quer
evolucionista ou progressivista com os saberes minoritários aparentemente derrotados pelas
ciências triunfantes.
Ora, como bem sabemos, a antropologia foi freqüentemente caracterizada pelo estudo do
“marginal”; em lugar, entretanto, de continuarmos a protestar contra essa caracterização e a
reivindicar uma centralidade para os fenômenos que estudamos, talvez esteja na hora de substituir
a problemática noção de marginalidade (sempre ligada ao recentramento, à recuperação ou ao que
se chama hoje de inclusão) pela de minoria — ou, mais precisamente, pelo conceito deleuze-
guattariano de minoritário, quer dizer, aquilo, ou os aspectos daquilo, que não aspira a nenhuma
centralidade ou universalidade. Ao contrário da diferença entre minoria e maioria, que é
quantitativa e estatística, aquela entre o minoritário e o majoritário é de ordem qualitativa e
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política.
Nessa direção, a antropologia poderia reencontrar os passos da esquizoanálise de Deleuze e
Guattari, permitindo vislumbrar uma espécie de esquizoetnologia, onde a potencialidade do par
paciente-analista explorada pela primeira se transforma naquela do par nativo-etnógrafo, capaz de
romper com algumas camisas de força ou operadores de despontecialização (tais quais as noções
de sociedade, cultura, indivíduo, identidade, estrutura, história, e assim por diante).
Essa redefinição da antropologia, por sua vez, poderia afetar e contaminar produtivamente
práticas e pensamentos inspirados em Deleuze e Guattari. Se as tentativas coletivas de
reapropriação da vida por meio de processos de singularização exigem, como escreveu Guattari,
uma “nova teoria dos arcaísmos”, e se estes consistem não em regressões mas ma “utilização
diferente de elementos preexistentes, de comportamento ou de representação, para construir uma
outra superfície de vida ou um outro espaço afetivo, para dispor de um outro território existencial”,
a antropologia poderia ser parte desse processo. Ela seria, assim, uma espécie de cartografia de
territórios existenciais existentes e em vias de existir, lembrando que um território é o “conjunto
dos projetos ou das representações sobre as quais vão se desenvolver pragmaticamente toda uma
série de comportamentos, de investimentos, no tempo e nos espaços sociais, culturais, estéticos,
cognitivos”.
É possível, então, que esses múltiplos enxertos — das noções de reversibilidade e
reflexividade, tal qual pensadas por Wagner e Strathern, com uma noção de antropologia simétrica,
que parte da de Latour; desta com aquela dos saberes minoritários, de Stengers; desta com os
princípios de rizoma e multiplicidade, e com a esquizoanálise, de Deleuze e Guattari — possam
servir para delimitar um espaço de diálogo entre investigações empíricas sobre modos de
pensamento, formas de organização e modalidades de interação vigentes em diferentes formas de
socialidade. Formas de socialidade que, para além das diferenças entre sociedades ou da
diversidade cultural, talvez tenham em comum justamente o fato de constituírem experiências
alternativas às forças dominantes, permitindo catalisar a desestabilização dos modelos dominantes
que buscam se impor sobre nós mesmos e sobre os outros.
Um dos caminhos para isso, claro, é romper com uma certa divisão de “especialidades”, que
apenas reflete o grande divisor ontológico nós/eles que há muito tempo a antropologia proclama
ter abolido. É preciso, assim, estabelecer conexões transversais, capazes de promover novas
articulações e reviravoltas nos eixos epistemológicos e metodológicos envolvidos na investigação
empírica e teórica. Nesse sentido, procedimentos de investigação em geral privilegiados neste ou
naquele campo empírico podem ser postos em relação, ou em choque, com outros. E, mais do que
isso, essas correlações e entrechoques de práticas e saberes revelados nos diversos campos de
investigação podem permitir um realinhamento plural e complexo entre diferentes domínios e
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níveis de distintas formações socioculturais, tornando-nos capazes de ultrapassar tanto os impasses


de um comparatismo e de um relativismo simplistas, que se resumem a confrontar “nós” e “eles”,
quanto aqueles de um universalismo anêmico, que se contenta em proclamar a unidade abstrata de
todos os seres humanos. Ambos são, simultaneamente, formas dominantes de pensar e modos de
manter a dominação, e é deles que alguns dentre nós querem se livrar.

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