Artigo 02
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Artigo 02
ISSN 1984-0411
https://doi.org/10.1590/1984-0411.88337
DOSSIÊ
Infância(s), Movimentos Sociais e Cidade: currículo(s) e formação docente
RESUMO
O artigo tem como objetivo discutir a questão da vulnerabilidade, ampliando seus horizontes e tocando
na vulnerabilidade educacional com foco nas infâncias na rua. É importante entender que vulnerabilidade
educacional é um fator a ser considerado nesse cenário de proteção e de garantias de direitos, onde os
pensamentos e as práticas ainda permanecem colonizadoras. Para esta discussão, é necessário se aproximar
das dinâmicas da criança e do adolescente em situação de rua no contexto urbano, sob a perspectiva da
politização da infância. As problematizações deste artigo, advindas da extensão universitária e da pesquisa-
ação no contexto das praças públicas de Niterói, em articulação com a práxis dos e das trabalhadoras sociais,
vêm para contribuir com outras práticas de pesquisa que destapem os ouvidos para escutar as vozes que
emergem das ruas, buscando entender o espaço como instrumental de infâncias reais dentro de ocupações
urbanas, casarões abandonados, abrigadas em barracas e que brincam e produzem vida nas ruas das
cidades em que ocupam. As relações entre a formação docente, a escola e a rua precisam, urgentemente,
de outros olhares e práticas, constituindo, assim, a infância como sujeitos políticos. Alertamos que todas as
transformações ocorrem por meio e através do corpo. Olhar atentamente para esses corpos que vivem nas
ruas pode dar pistas sobre formas de acolhimento e práticas pedagógicas que reduzam as vulnerabilidades,
dentre elas, a educacional.
Palavras-chave: Vulnerabilidade. Vulnerabilidade Educacional. Crianças e Adolescentes em Situação de Rua.
Educação.
ABSTRACT
The article aims to discuss the issue of vulnerability, broadening its horizons and touching on educational
vulnerability with a focus on childhood on the streets. It’s important to understand that educational
vulnerability is a factor to be considered in this scenario of protection and guarantees of rights, where
thoughts and practices still remain colonizing. For this discussion, it’s necessary to approach the dynamics of
a
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo, Brasil.
b
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
children and adolescent living on the streets in the urban context, from the perspective of the politicization
of childhood. The problematizations of this article, arising from university extension and action research in
the context of Niterói’s public squares in conjunction with the praxis of social workers, come to contribute
to other research practices that open the ears to listen to the voices that emerge from the streets, seeking
to understand space as an instrument of real childhoods – within urban occupations, abandoned mansions,
sheltered in tents and that play and produce life in the streets of the cities in which they occupy. The relations
between teacher training, the school and the street urgently need other perspectives and practices, thus
constituting childhood as political subjects. We warn that all transformations occur through and through the
body. Looking closely at these bodies living on the streets can provide clues about forms of reception and
pedagogical practices that reduce vulnerabilities, including education.
Keywords: Vulnerabilities. Educational Vulnerability. Street Children and Adolescents. Education.
Introdução
Para inaugurarmos nossa falação nos aliando ao modo dialógico freiriano de interagir, produzir
e compartilhar saberes, e às considerações de Ayres (2014), assumimos haver uma multiplicidade
de sentidos e de usos políticos para a categoria analítica das vulnerabilidades. Aqui, a proposta é de
nos debruçarmos pontualmente sobre alguns desses significados, a partir das articulações que se
façam possíveis de serem feitas para adentrar no campo temático dos processos de vulnerabilização
no ensino-aprendizagem e/ou da vulnerabilidade educacional.
Dito isso, observamos uma tendência de se utilizar o termo ‘vulnerabilidade social’ no
campo das políticas públicas voltadas para populações que se encontram em situação de pobreza,
marginalização ou exclusão social. Mas quem são essas populações reconhecidas como vulneráveis?
Por que, quem e para que são assim classificadas? Neste artigo, realizaremos uma discussão acerca
do que pode ser considerado vulnerabilidade, com ênfase no campo das infâncias em situação de
rua (não excluindo suas famílias, desde os bebês).
A literatura especializada sobre o tema das vulnerabilidades (Castel, 1998; Ayres, 2014; Costa
et al., 2018) afirma que os sujeitos em situação de vulnerabilidade são aqueles que possuem uma
cidadania fragilizada, isto é, não têm seus direitos básicos garantidos e por isso são o grupo social mais
suscetível a sofrer prejuízos, que vai da ordem existencial à moral (danos em razão da sua cidadania
fragilizada). Aqui apontamos que a natureza da vulnerabilidade não se encontra nos indivíduos,
como uma espécie de “destino inalienável”. Isso quer dizer que a apresentação de condições sociais
de existência favoráveis ao exercício pleno de sua cidadania1 (ou fortalecimento de sua cidadania)
pode permitir a esses sujeitos a superação da situação de vulnerabilidade em que se encontram (São
Paulo, 2021).
1
O uso do termo “cidadania” carrega valores distintos de acordo com a visão de mundo de quem o utiliza. Nesse sentido,
Paulo Roberto Felix (2019) contribui trazendo o que fundamenta a cidadania, na modernidade, são as relações sociais
coisificadas, contribuindo com a própria dinâmica do desenvolvimento do capital. Por isso, a meta seria a “emancipação
política”, como nomeia Marx, contudo, o cenário atual traz uma grande contradição, pois as relações sociais são dadas
por meio das trocas mercantis. Nesse texto, utilizamos o termo para trazer a viabilização de uma sociedade emancipada,
via esclarecimento, inclusive, de suas contradições.
Nesse sentido, no campo das políticas públicas, a discussão sobre a vulnerabilidade social
precisa extrapolar a análise da pobreza relacionada à questão de renda. Ayres e colaboradores (2003)
apontam três dimensões para abordagem da mesma: a individual, a social, e a programática. Sendo
assim, ao se pensar e atuar sobre tais dimensões, ficam circunscritos os interesses (individuais); as
relações de gênero, classe social, gerações (sociais) e a definição de políticas específicas, recursos
humanos e materiais (programática).
Ao redimensionarmos a vulnerabilidade enquanto categoria de análise, faz-se necessário
ainda considerarmos o contexto atual brasileiro, em relação ao cenário político, já que, em
decorrência dos discursos ideológicos, morais e de valores, existem grupos que sofrem outros
processos vulnerabilizantes, como a população LGBTQIA+2; os povos indígenas; os quilombolas; os
imigrantes, entre outros. Estes discursos e condutas encorajam atitudes de violência no cotidiano
das cidades, aumentando a vulnerabilidade dessas populações.
No campo dos estudos sociológicos da infância, um resgate histórico aponta para uma
continuidade em relação ao tratamento dado à questão, ou seja, a vulnerabilidade e o risco sempre
caminharam na mesma direção, autorizando uma série de intervenções (inclusive no âmbito
jurídico). A constituição e a validação das categorias bebês, crianças e adolescentes como sujeitos
de direitos passam por uma história de muito controle, discursos e práticas, perpassando o Código
de Menores (1927) até o movimento de luta social pela implementação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990). O Código de Menores utilizava a noção de “proteção” aliada ao de educação e
tinha como lógica a punição de pobres.
A ideia ainda é muito presente nos imaginários sociais, inclusive daqueles que atuam nas
políticas públicas de saúde, assistência social e educação no Brasil. A escola é tida como um espaço
de proteção e transformação social, como veremos mais adiante. Por ora, é importante entender que
vulnerabilidade educacional é um fator a ser considerado nesse cenário de proteção e de garantias
de direitos.
Assim, para avançarmos nas discussões aqui pretendidas, precisamos sempre ter no horizonte
os fatores históricos e sociais colonizadores que compõem a lógica punitiva da infância e das famílias
pobres brasileiras e não obliterar dos sentidos e das mediações produzidas e reproduzidas nos dias
de hoje. Corroborando a discussão sobre o campo dos Direitos Humanos e a educação, Schilling
(2015) coloca que o direito à educação é um campo de luta, em que há disputas permanentes por
sentido e orienta a buscar esclarecimento por meio da compreensão dos dilemas contemporâneos.
Para contribuir com tal proposição, incluímos nesses dilemas a ocupação do espaço público, a disputa
pelo espaço e pelo urbano (categorias importantes nas reflexões de Lefebvre) e a desigualdade
social brasileira sob o sistema capitalista.
De forma geral, Lefebvre considera que a infância está presente nas ruas das cidades,
brincando, colorindo e reivindicando sua existência nos centros urbanos (Lefebvre, 2001). Ele nos
diz também que a cidade é obra, no sentido de obra de arte, e não como um resultado simples de
produto material, composto por mercados, praças etc. A cidade é, portanto, uma mediação entre
2
Sigla que representa um movimento político e social que defende a diversidade e a busca por mais representatividade
e direitos. As letras expressam respeito a diferentes orientações sexuais e à identidade de gênero.
Temos como questões inaugurais da proposta político-pedagógica que norteia nossa práxis,
como: qual o papel da universidade, enquanto instituição social pública, diante das injustiças sociais
e desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira, e em especial quando vivenciadas
por meninas e meninos que vivem processos vulnerabilizantes históricos em nosso país? Como
garantir a inserção científica da produção acadêmica como um trabalho social, de modo que seja
potencializada a práxis de docentes e estudantes comprometidos com a transformação social? (Cruz,
2017).
Sendo assim, pelo entendimento que entre a afirmação da defesa da garantia de direitos, os
marcos legais e as ofertas de serviços voltados à proteção social de crianças e adolescentes estão
situados alunas e alunos, docentes e profissionais de diferentes áreas de formação, nasce, em 2017,
na cidade de Niterói (RJ), o projeto de extensão “Crianças e adolescentes em situação de rua e
acolhimento institucional: construindo estratégias de territorialização afetiva”. Ademais, buscamos
desenvolver atividades de sensibilização, por meio de oficinas e outras atividades lúdico-participativas
em praças, abrigos, entre outros locais frequentados pelas crianças, ações que colaborem para
a construção de vínculos entre elas e seus cuidadores/educadores. Desde o planejamento até
a implementação e avaliação, são priorizadas atividades participativas, reconhecendo-se e
potencializando-se saberes e práticas de todas e todos, sejam as crianças – entendidas aqui como
3
Na noção utilizada por Lefebvre (2008) serve de instrumento a interesses, provoca ilusões. O espaço que parece
racional, evidente, necessita de análises mais profundas. É instrumental, também, por ser definidor de “ordenamentos”,
manipulado por toda espécie de “autoridades”
4
Pesquisa-ação aprovada pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal Fluminense - CAEE
35424220.0.0000.8160/Parecer 4.172.076.
“sujeitos ativos” –, sejam jovens, sejam pessoas adultas. Tratando da população infanto-juvenil, a
ludicidade é priorizada e transversalizada nas atividades (Mitre, 2006).
Ao analisarmos seu percurso histórico, destaca-se, entre seus principais desdobramentos,
uma ação extensionista mensal realizada em praça pública, nominada inicialmente como “Ocupa
Praça”, intervenção planejada e executada em conjunto com a Equipe de Referência Infantojuvenil
para Ações de Atenção ao Uso de Álcool e outras Drogas (ERIJAD) e o Centro de Atenção Psicossocial
Infantojuvenil (CAPSi), entre outros parceiros. Ocupar a praça tem sido um ato de quebra da cadência
da invisibilidade daquelas e daqueles que ali habitam, além da retomada da acepção original de uma
praça: um lugar de encontros, de afeto e mistura. Nossa aposta metodológica para a construção
deste espaço é a escuta atenta, o corpo disposto para o encontro, o diálogo, o desenho, a capoeira,
a música, as oficinas e a partilha de roupas disponíveis para doação, bolo, pipoca, água, suco, e tudo
o que mais for possível e pudermos criar juntas e juntos.
Entre os anos de 2020 e 2022, o reconhecimento do projeto pelas autoridades municipais
culminou com a aprovação do projeto de pesquisa-ação (PA) “Niterói - uma cidade inteira para
todas crianças, adolescentes e jovens5”. A partir do campo das Ciências Sociais, a PA é considerada
como uma estratégia metodológica da pesquisa social aplicada, que se associa a variadas formas
de ação coletiva, orientadas em prol da resolução de um problema de modo ativo e participativo,
agregando, para tal, diversas técnicas em seus diferentes momentos ou processos de investigação,
como de “coletar e interpretar dados, resolver problemas, organizar ações, etc.” (Thiollent, 1986,
p.25). Assim, além da continuidade às ações extensionistas, a pesquisa-ação objetivou produzir um
amplo diagnóstico situacional sobre as políticas públicas municipais para a população infantojuvenil;
desenvolver estratégias de formação de trabalhadores sociais que atuam no Sistema de Garantia
dos Direitos da Criança e do Adolescente, e ampliar as ações extensionistas de incidência política e
produção de acesso nos territórios por meio do Ocupa Praça: ocupa, cuida e brinca e apoio a uma
ampla campanha municipal (Berger et al., 2021).
Assim, por meio de um programa ampliado em frentes de investigação e extensão
universitária, articuladas processualmente via estratégia metodológica da PA e princípios éticos,
políticos e pedagógicos da Educação Popular e da Extensão Universitária, seguimos buscando
enfrentar o agravamento dos processos vulnerabilizantes, ocupando lugares de grande circulação
e reconhecimento de crianças, adolescentes e jovens que têm os espaços públicos como locais de
vida, afeto e moradia, acreditando no território por eles usado, ou seja, “todo complexo onde se tece
uma trama de relações complementares e conflitantes” (Santos, 2000, p. 12), como alternativa de
educação e cuidado afetivos, participativos e democráticos. Ocupando praças, corações e mentes,
tem sido possível construir outros modos de ver, ouvir, sentir e interagir com esses atores enquanto
crianças e adolescentes que são!
Após mais de seis anos de pesquisa e atuação, temos um acúmulo de saberes e práticas
constituídas junto e com esses corpos. Para compartilharmos algumas reflexões advindas dessa
potente experiência, optamos por desenvolver o texto a partir de dois grandes eixos temáticos: a)
5
A pesquisa foi realizada com apoio da Prefeitura Municipal de Niterói, via convênio com a Universidade Federal
Fluminense no Programa de Desenvolvimento de Projetos Aplicados (PDPA).
[...] apesar de ter tido pouco mais de 5 anos de duração, acabou servindo para demonstrar
a falácia e o preconceito desse rótulo, ao viabilizar a escolaridade dos invencíveis. De fato,
a instituição-escola só virá a educar os “vadios”, a “marginália”, os negros, quando deixá-
los se apropriarem desse espaço, tornando-os centro do processo e donos de sua própria
aprendizagem (Leite, 1991, p. 23).
Trazemos a experiência da Escola Tia Ciata para a cena como um exemplo onde se ouvia, de
forma humanizada e transformadora, aquelas e aqueles estudantes, onde as crianças e adolescentes
podiam falar por si, possibilitando a contação de sua própria história a partir do seu ponto de vista.
Porém, infelizmente, na realidade educacional de hoje, o poder de decisão sobre a qualidade e o
tipo de educação não está sob o controle desta população. Não enxergamos uma participação ativa
e democrática das crianças nos espaços educacionais. A lógica educacional e sua matriz ideológica
são estabelecidas pelas necessidades de produção, de maneira oposta à libertação.
A politização da infância, conforme defende Castro (2008), parte de constatações de
uma sociedade na perspectiva societária que agencia o campo da infância e adolescência
pela representação das vozes por adultos. Em seu texto, a autora reflete sobre a questão da
representatividade nos espaços de poder, como nas conferências e nos espaços educacionais, e
problematiza que a infância e a adolescência não tinham/têm voz política nas instâncias legitimadas
do jogo político. Esta representação forjada por uma identificação será sempre insuficiente para com
os anseios e interesses deste público.
Os coletivos da juventude vêm se colocando frente a essas marcas, com questionamentos
importantes, buscando uma erosão do instituído. Principalmente em relação às denúncias de
opressão e reconhecimento social, questionando a responsabilização do Estado e problematizando
a responsabilização pessoal (o peso do destino individual) frente aos problemas e adversidades
encontrados nas cidades. Parece que aqui encontramos algo dos movimentos de denúncia e anúncio,
trabalhados em processos pedagógicos emancipatórios da educação popular, que, potencialmente,
se tornam alvo de preocupação prioritária de especialistas. É forjada, portanto, uma proteção social
dos futuros perigos, pois, nesta análise, inicia-se com a criança “em perigo” e com o adolescente que
pode se tornar “perigoso”. Nessa perspectiva, quem está em perigo precisa de cuidado, e quem é
perigoso tem que ser controlado e/ou eliminado (Lemos; Scheinvar; Nascimento, 2014).
Diante desse cenário, é importante reafirmar a ideia de que é necessário nos afastarmos das
armadilhas de concepções medicalizantes e patologizantes da não aprendizagem (São Paulo, 2021).
Contribuindo com tal afirmação, deve ser ampliada a situação em que a criança e o adolescente
não se enxergam mais dentro da escola. Desse modo, colocando em xeque os espaços educacionais
que também necessitam de um realinhamento das suas práticas, muitas vezes, engessadas e pouco
abertas às inúmeras aprendizagens realizadas fora dela.
As práticas vêm funcionando como um dispositivo de camuflagem do problema, pois
as políticas de inserção se limitam a atender os excluídos, predominando propostas de
assistências com componentes de moralização, culpabilização e tutela (Nascimento; Ribeiro,
2002, p. 25).
Existe um movimento de divisão entre nós e eles. Nós como aqueles que tutelam, classificam,
diagnosticam e produzem práticas sobre esses sujeitos. Já a categoria eles é preenchida inicialmente
com um afastamento, que beira à rotulação de incapacidade do outro. Para entender melhor tais
condicionantes, Baptista (2001) escreve uma fábula sobre um garoto que, quanto mais ele falava,
mais sumia sem deixar vestígios. Um dos apontamentos de pesquisa, diante do exposto até aqui, é
que precisamos junto dos bebês, crianças e adolescentes fortalecer suas reivindicações cotidianas,
quebrar com certezas vulnerabilizantes e de um lugar-comum, para ouvir e reparar as desigualdades
sociais que tanto contribuem para esse cenário de extermínio da juventude pobre e periférica (que
vive no centro das cidades e no campo).
A escola, enquanto integrante do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes
(SGDCA), para além do direito à educação e à segurança alimentar e nutricional, viabiliza a proteção
social dessa população via o acesso a outras possibilidades de recursos materiais, interação social
com a diversidade de corpos e histórias e com o próprio aprendizado de “leitura de mundo”, como
já dizia Paulo Freire (2018). Afirmamos aqui que as crianças e adolescentes em situação de rua
produzem esta leitura de mundo por meio de outras estratégias por meio de suas práticas (brincantes)
cotidianas de viração6 e sua própria resistência na ocupação de espaços públicos, onde são vistos
como corpos abjetos7.
Não estamos em busca de fórmulas mágicas para a redução da vulnerabilidade educacional,
estamos contextualizando aspectos sociais, históricos, políticos e pedagógicos dessa vulnerabilidade
para a realidade da infância na rua. Na busca por esse entendimento inicial, quais práticas poderiam
6
Viração é um conceito utilizado por Gregori (2000) que extrapola a ideia de designação do ato de se virar, conquistar
recursos para sua sobrevivência. O termo traz a noção, por meio da sua pesquisa com meninos em situação de rua,
que a viração é mais do que movimento, é uma comunicação persistente e permanente com a cidade e seus vários
personagens.
7
Corpos abjetos (Frangella; Rui, 2018) não são sujeitos, nem objetos, é uma sensação de horror que se firma na relação
do eu e do outro. Tal compreensão reforça uma fronteira do eu com o outro, ao mesmo tempo em que tais corpos
produzem efeitos políticos e espaciais no espaço urbano.
ser pensadas com as crianças para fora dos muros da escola? A práxis social da cidade pode ser
incorporada nas dinâmicas da escola?
A imagem 2 traz essa vivacidade de um garoto que vive nas ruas dentro da proposta de
uma brincadeira de caça ao tesouro, junto de outras crianças. Pistas foram espalhadas na praça e,
a partir dessa busca coletiva, eram desvendados mistérios e charadas9 daquele mesmo território,
8
Fotografia tirada em 2018, durante uma atividade de ocupação do espaço público em Niterói, junto das e dos
trabalhadores da RAPS, onde crianças e adolescentes brincavam de caça ao tesouro, descobrindo os espaços e
constituindo outras relações com o território.
9
Estas charadas serviam de abertura de diálogo sobre serviços no território que as crianças poderiam acessar quando
precisarem e contarem como rede de apoio, exemplos: “Qual o lugar que as crianças podem pedir ajuda perto da praça
quando precisarem conversar, comer e tomar banho?” e “Perto da praça tem algum lugar que as crianças podem pedir
ajuda quando estiverem machucadas?”
com enunciados com possibilidades de situar aquelas crianças e adolescentes naquele território. A
solidariedade foi um dos aspectos que chamaram a atenção no jogo, visto que algumas das crianças
não decodificavam as palavras ainda e outros atores compartilhavam seus conhecimentos, numa
aposta à coletividade para vencer o jogo juntos, cada qual com suas habilidades e conhecimentos.
Ao fim do jogo, o garoto da foto, com muita agilidade e destreza, encontra o ‘tesouro’, um pote
com chocolates. Num primeiro momento, comemora a descoberta e faz planos com o prêmio. Em
seguida, refaz seu plano e distribui alguns dos bombons às crianças que estavam ali, lado a lado
com ele. Minutos depois, encontramos o mesmo garoto ofertando os bombons aos motoristas
de carros e motos que paravam em uma sinaleira muito próxima da praça. O prêmio se tornou
mercadoria/criação.
A criança e o adolescente em situação de rua, ao conviverem com a violência da rua, riscos
e vulnerabilidades, também vive o senso de coletividade, grupo e partilha com os outros seres
viventes do mesmo território, como exemplificado na situação da imagem 1. Nesses casos, é preciso
ser grupo para garantir proteção, pois uma criança na rua sozinha é potencializar o risco, já que o
que é visto não é uma criança, mas “um problema” (Oliveira, 2004). De acordo com Vicentin (2016,
p. 40), ao tratar sobre as situações de isolamento, discriminação e preconceito, o coletivo é uma
qualidade, “[...] é potência de sustentação mútua daquilo que nos garante ligação com o outro:
garante-nos inventar diferentes espaços possíveis de existência”.
Pinazza e Gobbi (2014) dizem que o exercício humano de criação é cotidiano e se dá por
pares ou individualmente. Muitas vezes o olhar do adulto sobre as criações das crianças indicava
que estas eram inúteis e sem valor, porém, é por meio desse exercício que é colocado para fora
elementos da cultura vivida e elaborada por elas. Ainda afirmam que o ato de conhecer e criar
se dá de modo concomitante, expondo, assim, desejos, segredos existenciais, hipóteses e teorias.
Por isso, a aposta deve ser na arte do encontro, do olho no olho, lado a lado, no estar disponível
corporalmente para escutar, comunicar, interagir e brincar com estes sujeitos que ocupam o espaço
urbano das metrópoles.
A economia da sociedade liberal10 ordenou ao Estado a responsabilização na totalidade
das medidas relativas à higiene pública e privada, à educação e à proteção dos indivíduos. Toda a
perspectiva de política educacional e os processos de ensino-aprendizagem estavam e ainda estão,
de certo modo, visando a formação de capital humano11.
Nessa discussão, é importante trazer as ideias de Mbembe (2016; 2017), que problematiza
a violência contemporânea e as formas de atuação de um estado de exceção e/ou estado de sítio,
10
O Liberalismo é uma teoria política, econômica e social difundida no século XVIII, que lançava a mão da liberdade.
Algumas características importantes eram: a valorização das leis, o individualismo e a valorização do livre e, sobretudo,
a ampla e livre concorrência de mercado. Esta rápida nota não dá conta da complexidade do termo, porém, destacamos
que a teoria, por meio das leis, visava regular as relações sociais, afirmando algumas lógicas, como a penal, que tanto
influencia nos modos de vida das crianças e adolescentes. Um de seus principais teóricos foi Adam Smith (1723-1790).
Tempos depois, a teoria vem numa nova roupagem, com a versão Neoliberal.
11
Capital humano é um termo conceituado por alguns estudiosos e que tem forte ligação com o trabalho e a produção.
Schultz (1961) define o “capital humano” como o montante de investimento que uma nação ou os indivíduos fazem na
expectativa de retornos adicionais futuros. No campo educacional, a ideia se propaga na década de 1960 e 1970, como
tentativa de explicar o fenômeno da desigualdade entre as nações e entre indivíduos ou grupos sociais.
via necropolítica. Qual a cor de pele dessa infância que vive na rua? Qual a cor de pele das crianças
brasileiras vendidas para o tráfico de escravos no século XIX? Por se tratar de uma teoria mais
ampla e contemporânea, as reflexões de Mbembe se aproximam mais aos fenômenos sociais que
acontecem por aqui, no Brasil. As violências e o extermínio do povo preto no Brasil são evidentes,
estatisticamente comprovados, institucionalmente executados e, em sua maioria, moralmente
aceitos.
Por meio da necropolítica, é aprimorada uma tecnologia de matar, a violência contra
a população negra torna-se algo aceitável, comum (Mbembe, 2016). Em Niterói, tais práticas
violentas são vistas contra crianças e adolescentes dentro de uma política de morte e extermínio a
determinado grupo social, assim parece que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não se
efetiva na prática. Afinal de contas, como efetivar os direitos sem alterar as condições concretas de
vida da classe trabalhadora e historicamente injustiçada?
Em 2022, realizamos uma ocupação em uma praça pública de aproximação e diálogo com
algumas dessas famílias vulnerabilizadas. Em sua maioria, eram ex-moradores da ocupação do
“Prédio da Caixa”, localizado no centro da cidade, despejados em junho de 2019, que migraram para
as comunidades ao entorno do centro da cidade ou foram para a Instituição de Acolhimento Familiar
na mesma região. Participaram desse encontro muitos trabalhadores e trabalhadoras do setor público
da Saúde Mental, Assistência Social e Economia Solidária e Cultura, além de professores, estudantes
e extensionistas da UFF. Nesse encontro, que contou com a presença de mais de cinquenta crianças,
levamos papel, canetas, giz de cera e outros materiais. Desenhamos juntos e as crianças produziram
desenhos que representavam onde moravam. Colocamos abaixo três produções desses desenhos
de crianças de seis a 12 anos que brincaram durante o encontro na praça.
A sensibilidade dos corpos brincantes nas ruas mostra, por vezes, rotas de fugas (Deleuze;
Guatarri, 1996) que atuam como fator de um agenciamento e que levam todos a mudanças cotidianas,
produzindo mais marcas e histórias para os habitantes/sobreviventes da rua. Passam da resistência
à criação, como de quem cria rotas de fuga para elaborar sua realidade, por meio do encontro
com o outro na relação corpo e cidade. Pesquisar e atuar com essa população é se incomodar na
relação dos sujeitos, com a sociedade e consigo mesmo, pois aparecem na cena sentimentos que
corporificam a experiência, como o desconforto, o medo da violência do Estado e a certeza de que o
estado permanente de falta – material e emocional - está longe de ser amenizado.
O corpo é percebido, contemporaneamente, muito além de uma entidade na qual se
inscrevem mecanismos de poder e dominação, mas numa relação que se constrói com outros corpos,
simultaneamente física, material, social e política. As transformações ocorrem por meio e através do
corpo, sendo sujeitos corpóreos como meio fundamental desse movimento (Frangella; Rui, 2018).
A discussão desenvolvida até então traz um recorte sobre o olhar da infância na rua,
pensando nas vulnerabilidades, em especial a vulnerabilidade educacional, a politização da infância
e a representação desses corpos na rua. Com o objetivo de suscitar debates, queremos influir sobre a
formação de futuros professores na educação continuada dos/das que já atuam e no tensionamento
das instituições que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
(SGDCA). Nesse sentido, e já encaminhando para os finalmentes, colocamos em debate a perspectiva
da vulnerabilidade educacional como pertencente não apenas dentro dos limites escolares, partimos
de que as práticas realizadas por meio de oficinas e outras estratégias realizadas nas praças com a
infância que vive na rua podem contribuir para reduzir a desigualdade educacional de forma prática
e conceitual. As demandas anunciadas fora do âmbito escolar perpassam as famílias e se confrontam
com o acesso ou o não acesso das crianças, em sua tenra idade, às escolas e creches. Esperamos
que este texto tenha contribuído, de algum modo, para desestabilizar as bases da educação formal
colonizadora.
Para tal compreensão, é importante deixar claros os limites dos pesquisadores enquanto
corpos hegemônicos no constante exercício de levantar os estranhamentos produzidos a partir do
campo. Nesse sentido, almeja-se potencializar a atividade criadora por meio da pesquisa, trazendo
a reflexão junto das crianças que ali reivindicam sua existência e presença no mundo, sem deixar de
levar em consideração, na análise, as relações de poder e a transversalidade da classe social, gênero,
raça e geração, na produção e reprodução da/na cidade. Tudo começa pelo corpo como ser social e
político.
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Autor 1 – concepção e desenho da pesquisa; construção e processamento dos dados; análise e interpretação
dos dados; detalhamento de sua colaboração na elaboração do texto final.
Autor 2 – concepção e desenho da pesquisa; construção e processamento dos dados; análise e interpretação
dos dados; detalhamento de sua colaboração na elaboração do texto final.
APOIO/FINANCIAMENTO
Apoio da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF) com o projeto “Crianças e
adolescentes em situação de rua e acolhimento institucional: construindo estratégias de territorialização
afetiva” (nº 389761.2199.198453.20022023), além da Prefeitura Municipal de Niterói, via convênio com a
UFF no Programa de Desenvolvimento de Projetos Aplicados (PDPA) com a pesquisa-ação “Niterói - uma
cidade inteira para todas as crianças, adolescentes e jovens”.
O presente artigo foi revisado por Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha. Após ter sido diagramado,
foi submetido para validação do(s) autor(es) antes da publicação.
Recebido: 19/11/2022
Aprovado: 09/02/2024
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