Imputaçao de Declaraçoes de Vontade - Conti

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ANDRÉ NUNES CONTI

Possui graduação em Direito pela Universidade de


São Paulo (2020) e mestrado em Direito (LL.M.) . -·
pela Ludwig-Maximilians-Universitiit München (202;,}.:'~unaI d;; ..1
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DESCO~SIDERAÇÃO
~ 1 .)

ATRIBUTIVA NO
DIREITO PRIVADO

A IMPUTAÇÃO DE FATOS DA PESSOA


JURÍDICA AOS SEUS MEMBROS E VICE-VERSA

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, primavera de 2022
editoraquartier@uol.com.br
@) @editoraquartierlatin
ANDRÉ NUNES CONTI
Desconsideração Atributiva no Direito Privado: SUMÁRIO
A imputação de Jatos da pessoa jurídica aos seus membros e vice-versa
Agradecimentos ........................................................................................ 13
São Paulo: Qyartier Latin, 2022. Lista de abreviaturas e siglas ..................................................................... 15
ISBN 978-65-5575-163-5 Prefácio ..................................................................................................... 17

1. Direito Privado. 2. Desconsideração da Personalidade Jurídica.


3. Responsabilidade por Dívida Alheia. I. Título
I. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA NO CONTEXTO DO
Editor DIREITO BRASILEIRO: IMPUTAÇÃO DE FATOS DA PESSOA
Vinícius Vieira
JURÍDICA A SEUS MEMBROS E VICE-VERSA, 21
Produção editorial
José Ubiratan Ferraz Bueno

Diagramação
II. CARACTERIZAÇÃO GERAL DOS PROBLEMAS DE
Victor Gasperazzo Guimarães Nakamura DESCONSIDERAÇÃO D~:PERSONALIDADE JURÍDICA, 25

Finalização
1. lmputação e titularidade enquanto juízos de pertinência subjetiva
Anderson dos Santos Pint SUPERIOR TRIBUNÃLDAJUSTICÂ na aplicação do direito ........... :'............................................................. 25
BIBLIOTECA M. OSCAR SARJ;.IVA
Revisão gramatical a) Imputação enquanto juízo de pertinência entre os fatos da
Studio Qyartier hipótese de uma norma e o destinatário de suas consequências ........ 25
b) Conceitos úteis relacionados 'à imputação ......................................... 29
Capa '
Anderson dos Santos Pint:~.-.._,;,~~b........iU•.J...l,.i.,,..;.;..~.!.,,.;~..J
c) Funções gerais da imputaçãó como figura metodológica na
aplicação do direito ........................................................................... 30
EDITORA QUARTIER LATINDO BRASIL 2. O princípio da separação entre a pessoa jurídica e seus membros ......... 31
Rua General Flores, 508 a) Separação entre a pessoa jurídica e seus membros enquanto
Bom Retiro - São Paulo
CEP 01129-010
segregação dos juízos de imputação e titularidade ............................ 31
Telefones: +55 11 3222-2423; +55 11 3222-2815 b) Fundamento legal do princípio da separação ..................................... 34
Whatsapp: +55 11 9 94311922 c) Teleologia do princípio da separação ................................................. 36
Email: editoraquartier@uol.com.br 3. A vigência do princípio da separação como regra geral.. ....................... 38
@ @editoraquartierlatin
a) Derrogabilidade do princípio da separação em concorrência
TODO.SOS DIREITOS _RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por ual- com outras normas ......... '.,. ................................................................ 38
quer ~e10 ou processo, espeaalmente por sistemas gráficos, microfílmicos fotográficos reproqgra' _ b) Relação regra-exceção enquanto distribuição do ônus argumentativo .... .39
fi cos wnográfi
, . cos, VI•deográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação
' total ou parcial
' b c) Ônus argumentativo em favor do princípio da separação ................. .41
como a mclusão d al d b , em
E .b. _ e .qu quer parte esta O ra em qualquer sistema de processamento de dados
s~as proi ~ç~es aplicam~se_ tam~ém às características gráficas da obra e à sua editoração. A vio~ 4. A desconsideração da personalidade jurídica enquanto exceção
laçao dos ~1:='e1tos autorais e pumvel como crime (art. 184 e parágrafos do Código p al) ao princípio da separação .................................................................... .43
Pena de pnsao emulta, busca e apreensao _ . . en , com
e mdemzações diversas (arts. 101 a 110 d L · 9 610 d
19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). a e1 • , e a) Desconsideração da personalidade jurídica enquanto juízo de
imputação ou titularidade contrário ao princípio da separação ........ .43
140 - ÜESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO ÜIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CoNTI -141

estudo sistemático dos casos de imputação do conhecimento deveria ser vantara a possibilidade (pelo menos em tese) de imputação de conheci-
feito com base nas premissas de que: (i) cada caso deve ter o fundamen- mentos dos sócios à sociedade, para imputar à sociedade o conhecimento
to principal de sua solução na teleologia concreta da norma de referência prévio dos sócios a respeito de uma ação que havia sido proposta em face
que se deseja aplicar (e não em uma suposta norma geral de imputação deles, e assim caracterizar inércia consciente da sociedade (litisconsor-
de conhecimento entre sócio e sociedade); (ii) as considerações que per- te passiva necessária) para ingressar no litígio254 . O Tribunal de origem
mitem determinar se a teleologia de uma norma comporta a típica pro- tratou do caso como se de desconsideração para imposição de respon-
ximidade societária como critério de imputação do conhecimento são sabilidade por dívida alheia se tratasse e fundamentou sua decisão em
semelhantes às que acima se apresentaram para aferir se a típica proxi- uma aplicação do art. 50 do CC baseada em um suposto abuso da per-
midade societária pode funcionar como critério de imputação de atos, sonalidade jurídica255 - que evidentemente não estava em jogo. O STJ,
pois o conhecimento sempre é relevante como pressuposto para agir (o por sua vez, negou-se a enfrentar o problema, indicando que os demais
conhecimento implica a reprovabilidade da não adoção de determinada fundamentos do acórdão já bastav:am para mantê-lo hígido, sendo ades-
conduta alternativa), de modo que desempenha na hipótese da. norma consideração apenas um argumento adicional, cujo mérito não precisa-
um papel semelhante ao da efetiva ação; (iii) mas, por outro lado, deve- va ser rediscutido se os demais fundamentos já estavam confirmados256 .
-se atentar para as particularidades do modo concreto como o conheci-
mento se transmite ou se torna pertinente através da típica proximidade
societária, levando-se em conta especialmente as possibilidades efetivas
4. IMPUTAÇÃO DE DECLARAÇÕES DE VONTADE

de exercício dos direitos de informação - que decorrem não propria- Uma espécie muito particular de atos que podem figurar como ob-
mente do controle, mas da simples participação (em alguns casos, pelo jeto de imputação são as declarações de vontade. Essa problemática se
menos minimamente relevante) no capital da sociedade; (iv) a interpre-
tação sistemática das normas de referência que trazem o conhecimento 254 Cj STJ, REsp 1.715.499-RJ, 3ª l;urma, rei. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 14.08.2018,
DJe 17.08.2018: "Fundamento. Arguição de nulidade do processo por ausência de
como elemento de sua hipótese deve levar em conta não só o princípio
litisconsorte passivo necessárip. lnocorrência. Pessoa física que seria agraciada,
da separação, mas também as várias normas que tratam do dever de di- futuramente, com cotas sociais por intermédio da donatária ingrata. Ato não
consumado e mera expectativa de direito. Interesse jurídico apenas legitimador de
ligência dos sócios, para determinar, em vista desse sistema mais amplo, assistência simples. Nulidade do processo suscitada pela pessoa física. Ausência de
se as normas de referência pressupõem um conhecimento efetivo ou (im- prequestionamento. Deficiente fundamentação recursai. Incidência das súmulas
211/STJ e 284/STF. Incapacidade. Ausência de intervenção do ministério público.
pondo um dever de diligência) a mera possibilidade de conhecimento253 . Ausência de prequestionamento. Possibilidade de intervenção por ocasião do
prosseguimento do feito com o julgamento dos embargos infringentes interpostos
Uma tal sistematização mostrar-se-ia bastante proveitosa, princi- pelos donatários. [ ... ] Na hipótese, verifica-se que a pessoa jurídica teve ciência
palmente porque, assim como no que se refere a outros problemas de plena e inequívoca da ação de revogação de doação, mais de 06 anos antes da
arguição, em virtude do fato de que 03 de seus 04 acionistas, que respondem por
desconsideração atributiva, a jurisprudência brasileira tem tido que en- 70% de seu quadro acionárip, serem os réus da referida demanda[ ... ] Não há que
frentar problemas dessa espécie sem contar com uma base doutrinária se falar em desconsideração' inversa da personalidade jurídica quando, de obiter
dictum, afirma-se no acórdão recorrido que a ciência inequívoca da existência da
sólida, o que tem resultado em decisões criticáveis. Por exemplo, o STJ ação pela pessoa jurídica também decorre do fato de a maioria de os seus acionistas
já enfrentou um caso em que o Tribunal de origem adequadamente le- serem os réus da ação revocatória [ ... ]".
255 No acórdão recorrido constara: "Poder-se-ia mesmo, numa leitura teleológica do art.
50 do CC, aplicá-lo em mão inversa e contrario sensu para tomara peticionante de fls.
253 Cj Crigoleit, FS Canaris, 2017, p. 254 (é contra legem a imputação de conhecimento, 1322/1330 porciente da presente ação através de seus sócios, caracterizando a sua pre-
em normas que pressupõem conhecimento efetivo, feita com base em simples sente manifestação como hipótese de abuso processual da personalidade jurídica".
violações do dever de diligência organizacional dos sócios). 256 Cf ibid., inteiro teor, p. 27.
142 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CONTI -143

insere no contexto mais amplo da "extensão de deveres contratuais" do se acaba de propor entre essas três formas de extensão de relações jurí-
sócio à sociedade, ou vice-versa, que tanto se discute (por vezes sem dicas contratuais.
precisão técnica) sob a denominação de "desconsideração atributiva".
A) DISTINÇÃO FRENTE A CASOS DE IMPUTAÇÃO DE ELEMENTO
As precisões feitas neste trabalho a respeito do conceito de desconsi-
deração da personalidade jurídica (vide supra Il.4) e da distinção entre PREVISTO EM NORMA CONTRATUAL

desconsideração para atribuição de responsabilidade por dívida alheia A doutrina frequentemente trata como casos de desconsideração da
e desconsideração atributiva (vide supra III), no entanto, exigem uma personalidade jurídica as situações em que uma cláusula de um contra-
separação cuidadosa entre três distintas espécies de problemas de "ex- to (em que o sócio figura como parte) é aplicada ao próprio sócio com
tensão de deveres contratuais", que merecem, cada uma, um tratamento base na imputação de elementos dessa norma que só se realizam, pri-
substancialmente diverso. mariamente, na sociedade257 . Esse modo de enfrentar o problema, con-
Com efeito, é possível "estender deveres contratuais" do sócio à so- tudo, não é adequado.
ciedade (ou vice-versa) no sentido de que uma cláusula de um contrato As declarações de vontade (tal como os negócios a que elas dão
em que o sócio figura como parte é aplicada ao próprio sócio com base na origem) devem ser interpreta<}f:s com o objetivo de se aferir a intenção
imputação de algum elemento da hipótese de fato dessa norma contra- concreta das partes nelas cpnsvl,,stanciada (art. 112 do CC), levando-se
tual que se realizou no âmbito da sociedade e que, graças à típica proxi- em conta, como critérios normativos para solucionar dúvidas interpre-
midade societária, se pode também imputar ao sócio.Nesse caso, nenhum tativas, a boa-fé e os usos do lugar (art. 113 do CC, cujos parágrafos es-
dever chega a ser "estendido" à sociedade, mas a sociedade é levada em pecificam mais detalhadament~ como aplicar esses critérios). Qµando
conta para aplicar os deveres do sóGio ao próprio sócio - e, como se verá, não é possível identificar sinais da intenção das partes com relação a uma
esses não são casos de desconsideração da personalidade jurídica. questão relevante, está-se diante de uma lacuna negocial, que deve ser
Além disso, também é possível "estender deveres contratuais" do preenchida mediante a integração do contrato pelo julgador258 , o qual
sócio à sociedade (ou vice-versa) sem que haja uma relação específica se deve pautar, então, pelos me,smos critérios do art. 113 do CC (boa-fé
entre a sociedade (a quem será imposto o dever contratual que só era e usos do lugar), mas sempre em busca do que seria a intenção hipoté-
titulado pelo sócio) e a fonte de que se originou o dever estendido (i.e. tica das partes, tendo em vista seus interesses concretos e as circunstân-
o contrato com cuja celebração o sócio contraíra o dever). Nessa hipó-
tese, está-se diante de uma verdadeira desconsideração da personalida- 257 Cf por exemplo Casillo, RT 528 (1979), p. 26; Pargendler, Apontamentos sobre
a desconsideração regulatória, p. 590; Justen Filha, Desconsideração da
de jurídica, porém - conforme a definição acima longamente exposta personalidade societária, pp. 61, 142; França/Adamek, Direito processual societário,
(vide supra III.3.b) - na modalidade de imposição de responsabilidade nº 15.4, p. 109 (imputação de conduta prevista em cláusula de acordo de acionistas).
Cf especialmente Pargendler, U. Pa. L. Rev. 169 (2021), p. 778: "Veil peeking is also
por dívida alheia. common in contract dispute?. Unlike contractual veil piercingclaims, which center
on the assets available to satlsfy contractual obligations, contractual veil peeking
Ap~nas se deveres contratuais forem "estendidos" do sócio à socie- focuses on the meaning and scope of contractual duties. Most contractual veil
dade (ou vice-versa) com base na imputação, à sociedade, da declaração peekingcases concern regulatory arbitrage, as when one contractparty establishes
a separate legal person to evade existing contractual duties. The textbook example
de vontade com que o sócio contraíra esse dever, é que se estará dian- is the creation of a corporation by party A to carry outa type ofbusiness that party
A is prohibited from pursuingdue to a contractual covenant notto compete. Faced
te de um caso de desconsideração atributiva. Antes de tratar dessa pro- with thisscenario, courts have often agreed to peekandfind a contractual violation".
blemática, porém, cumpre justificar mais detidamente a distinção que Na jurisprudência alemã, cf. OLG Karlsruhe, GmbHR 1990, 303.
258 Cf Staudinger/Roth, BGB, § 157, Rn. 15; Larenz/Canaris, Methodenlehre, p. 121.
144 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NuNES CoNT1 -145

cias específicas do negócio. A integração do contrato jamais pode servir estar livre de conflitos com todas as normas e valores legais, ela só pre-
para que o julgador imponha às partes os valores gerais da lei sem base cisa respeitar o âmbito (relativamente pequeno) das normas cogentes261 .
em indícios de que elas livremente teriam querido assumir a solução Nesse sentido, quando se está a interpretar (ou integrar) uma nor-
que deles decorre259 . Em outras palavras, integrar um contrato lacunoso ma contratual, o princípio da separação não deve ser levado em conta
é buscar o regramento contratual que as circunstâncias permitem iden- como uma norma potencialmente concorrente, mas apenas, no máximo,
tificar como provável ou hipoteticamente querido pelas partes, por ser como uma premissa de que as partes partem razoável (boa-fé) e habi-
razoável (boa-fé) e habitual (usos do lugar), e não um suposto regramen- tualmente (usos do lugar). Assim, quando se constata que uma norma
to legal para o assunto que a lei deixou à livre contratação das partes26º. contratual deve ser aplicada mediante a imputação de um dos elemen-
O que com isso se quer dizer é que tanto a interpretação quanto a tos de sua hipótese fática com base no critério da típica proximidade so-
integração de um negócio sempre gravitam em torno dos interesses con- cietária, não há propriamente um conflito com o princípio da separação
cretos das partes e das circunstâncias específicas do negócio. Assim, sob (que é irrelevante no âmbito da in~erpretação contratual) e, pois, não há
pena de se violar a essência do princípio da autonomia privada, elas nun- propriamente um problema de desconsideração da personalidade jurídi-
ca podem ser uma aplicação de soluções legais abstratas e genéricas ba- ca. É dizer, o princípio da separação não impede que o sócio livremen-
seadas nos valores do ordenamento jurídico como um todo. É evidente, te assuma responsabilidade_por,e,ventuais atos da sociedade (como nada
portanto, que o princípio da separação entre pessoa jurídica e membros, impede que alguém assuma livremente a responsabilidade por atos de
enquanto condensação de valores abstrata e genericamente protegidos terceiros, ou mesmo por eventq_s casuais). Qyando se coloca a questão
pela lei, não pode desempenhar nesse contexto o mesmo papel que ele relativa a se uma norma contratual contraída pelo sócio pode ou não ser
desempenha na interpretação sistemática de normas legais. Qyando se aplicada ao próprio sócio mediante a imputação de urna conduta da so-
está a interpretar (ou integrar) uma norma legal, é preciso levar em con- ciedade, o problema se esgota na interpretação contratual (investigação
ta o sistema jurídico como um todo, de modo que o princípio da separa- da vontade concreta das partes, balizada pelos critérios do art. 113 do
ção se apresenta como uma das normas componentes desse sistema, com CC), sem que se faça necessári~ qualquer ponderação com o conteúdo
a qual a norma de referência a ser aplicada pode colidir, exigindo uma teleológico do princípio da separação.
ponderação que solucione o conflito.Já quando se está a interpretar (ou Para ilustrar essas considerações que, até aqui, se mantiveram bas-
integrar) uma norma contratual, o sistema jurídico como um todo é, em tante abstratas, convém considerar, como exemplo concreto, o caso da
si, praticamente irrelevante, devendo o intérprete ater-se aos sinais da aplicação de regras contratuais de não concorrência, que frequentemen-
intenção concreta das partes (i.e. aos valores concretos e específicos das te é encarado pela doutrina (sem razão) corno hipótese de desconside-
partes), deixando-se balizar, no máximo, pelos critérios da boa-fé e dos ração da personalidade jurídica.
usos do lugar (art. 113 do CC), que estão longe de ser uma ponte que É bastante frequente que, nos mais variáveis contextos, sejam esti-
permita trazer para a interpretação do contrato todos os valores da or- puladas cláusulas de não concorrência - principalmente com a finalida-
dem jurídica enquanto sistema geral. Uma norma contratual não precisa de de assegurar a efetiva transferência do valor econômico de um ativo,

261 A respeito da diferença entre a interpretação da lei e de negócios jurídicos no


259 Cf Staudinger/Roth, 8GB, § 157, Rn. 23. tocante à necessidade de evitar contradições com normas legais, cf. Larenz/Canaris,
260 Cf Staudinger/Roth, 8GB, § 157, Rn. 31 ss. Methodenlehre, p. 168.
146 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CONTI -147

como quando se vende uma empresa, e o antigo empresário precisa se ser frequente 263 ), nada mais precisa ser feito antes de aplicar a cláusula
abster de utilizar sua experiência e o conhecimento de informações sen- nesse sentido. Ao contrário dos problemas de desconsideração atribu-
síveis que diminuiriam a capacidade de concorrência da empresa vendida, tiva, que até aqui se vêm discutindo, não é necessária nenhuma ponde-
ou quando se aluga um terreno para fins comerciais e o locador preci- ração entre a teleologia da cláusula de não concorrência e o conteúdo
sa se abster de alugar terrenos vizinhos a concorrentes do locatário, que, teleológico do princípio da separação. A única função que este último
com sua concorrência, poderiam diminuir o potencial lucrativo do pon- pode ter desempenhado em todo o problema é a de ajudar a determinar
to alugado 262 . As cláusulas desse tipo são por vezes tão detalhadas que se as partes, no seu silêncio, habitual e razoavelmente assumiriam como
abrangem expressamente, não apenas atos de concorrência praticados premissa a irrelevância da típica proximidade societária como critério •
pessoalmente pela própria parte contratual, mas também atos de tercei- de imputação para os elementos da hipótese fática da cláusula. Caso se
ros a ela ligados, inclusive atos de sociedades de que ela participa ou de possa considerar que a vontade (pelo menos hipotética) das partes era
sócios que dela participam (caso a parte seja, ela mesma, uma socieda- dar relevância a esse critério, o princípio da separação nada mais tem a
de). Qpando, porém, não houve um regramento expresso com relação a contribuir para a resolução do problema.
t
atos de terceiros, é pela interpretação (ou integração) contratual que se i Nesse sentido, por exeme,lo, Adamek confere um tratamento ade-
deve decidir se atos de terceiros (inclusive de uma sociedade ou de um t quado a um caso de imputa_çã~ ~~ conduta prevista em norma contratual
sócio) são imputáveis à parte. quando se baseia exclusivamente na interpretação (sobretudo teleológi-
Essa interpretação deve-se pautar pelos métodos gerais de interpre- 1 ca) da cláusula em questão ( clál!sula de exclusão de cobertura securitária
tação dos contratos, examinando se há expressões que podem apontar t por culpa grave), para concluii:..que a exclusão contratual de cobertura,
implicitamente para a relevância da típica proximidade societária como no caso, abrangia a culpa grave do controlador264 .
critério para imputar à parte (fazendo-a sofrer as consequências da que-
B) DISTINÇÃO FRENTE A c;Asos DE IMPOSIÇÃO DE
bra da não concorrência) atos de concorrência de uma sociedade em que
ela participa, ou de sócios que nela participam. Deve-se considerar tam-
1 RESPONSABILIDADE POR DÍVIDA ALHEIA

bém o contrato como um todo, e levar em conta sobretudo, no âmbito de Costumam também ser indevidamente encarados como problemas
uma interpretação teleológica, a viabilidade prática e o sentido da obri- de desconsideração atributiva os casos em que uma relação jurídica con-
gação de não concorrência de que se trata, para averiguar se faz senti- tratual é estendida do sócio à sociedade (ou vice-versa) sem que se cons-
do que atos de concorrência dos sócios ou da sociedade da parte sejam tate entre a sociedade (que será atingida) e a fonte da relação estendida (o
excluídos da abrangência da cláusula. Eventuais dúvidas interpretativas negócio do qual ela surgiu) qualquer relação de pertinência. Isso porque
que restem devem ser resolvidas com base nos critérios do próprio art. há uma tendência a considerar que se qualifica como "desconsideração
113 do CC, principalmente em favor da solução que melhor se coaduna atributiva'' toda e qualquer extensão de relações jurídicas que não sejam
à boa-fé e que corresponde aos usos do lugar. Caso por fim se constate obrigações pecuniárias (com~ a extensão de obrigações de não-fazer, ou
que a típica proximidade societária é relevante para imputar à parte os a extensão da sujeição à jurisdição arbitral), embora, como acima se viu,
atos de concorrência de uma sociedade por ela controlada, por exemplo, o critério que realmente caracteriza a desconsideração para imposição
ou de um sócio que tem nela participação relevante (o que não deixa de 263 Cf Pellegrinelli, A obrigação de não concorrência, p. 301.
264 Cf Adamek, Imputação de culpa grave em contrato de seguro no âmbito dos grupos
de sociedade, pp. 688-689.
262 Cf por exemplo Diez, Erstreckung vertraglicher Schuldverhãltnisse, p. 158.

1
148 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CüNTI - 149

de responsabilidade por dívida alheia seja, não a natureza pecuniária da imposição da nova relação ao alvo da desconsideração. No caso aqui co-
"responsabilidade" que se estende, e sim o fato de que a dívida (rectius: mentado, portanto, seria necessário sustentar que o abuso da personali-
a relação jurídica de qualquer tipo) estendida é alheia, no sentido de que dade jurídica (com os requisitos rr..ateriais do art. 50 do CC, e segundo
seu a alvo não é imputável a fonte que lhe deu origem. o procedimento dos arts. 133 e seguintes do CPC) é apto a justificar a
Essa distinção é extremamente importante porque, conforme já imposição, à sociedade, de um dever de não concorrência análogo ao do
dito, entre as duas modalidades de desconsideração existe uma diferen- sócio (ou vice-versa).
ça enorme no que diz respeito aos seus pressupostos. A qualificação de Assim, por exemplo, se alguém, tendo assumido uma obrigação con-
uma verdadeira extensão de relações contratuais como "desconsideração tratual de não concorrência, constitui uma sociedade e passa a concorrer,
atributiva", nesse sentido, é utilizada por muitos justamente como uma por meio dela, no mercado em que não poderia atuar, pode ser possível,
tentativa de justificá-la com base nos pressupostos menos exigentes dessa sem entrar em problemas de desconsideração, simplesmente mediante a
modalidade de desconsideração. A coerência com a distinção que acima se interpretação do contrato, imputar ao sócio os atos da sociedade para fa-
traçou entre as duas modalidades, no entanto, exige que se aponte clara- zer com que aquele sofra as consequências previstas na obrigação que ele
mente quando uma extensão de relações contratuais configura desconsi- assumiu, por exemplo sendo forçado a se retirar da sociedade que realiza
deração para imposição de responsabilidade por dívida alheia, para assim a concorrência, ou a inden~zar,,;ºcontraparte contratual. No entanto, não
evidenciar os pressupostos muito mais exigentes a que ela se submete. é possível ir além e impedir a própria sociedade de realizar a concorrência
Para utilizar como exemplo, novamente, as cláusulas contratuais de (estendendo a ela a obrigação ~e não concorrência que só vincula o só-
não concorrência, a extensão de que aqui se trata ocorreria quando, ao cio, por estar prevista em um contrato que só foi celebrado por ele) sem
invés de aplicar a cláusula prevista em um contrato do sócio ao próprio atender aos requisitos do art. 50 do CC e 133 e seguintes do CPC265 .
sócio (com base em uma conduta da sociedade, conforme acima discu-
e) IMPUTAÇÃO DA DECf4RAÇÃO DE VONTADE DE CONTRAIR
tido), tal cláusula fosse aplicada à sociedade, para fazê-la sofrer as con-
DIREITOS E OBRIGAÇÕES EM GERAL
sequências da violação da não concorrência por sua atividade (seja em
forma específica, com medidas voltadas a inibir a manutenção da con- Já se a extensão da relação jurídica (como um dever de não con-
corrência, seja em forma da obrigação de indenizar). corrência) for justificada com base em algum fato que permita imputar
a declaração de vontade do sócio à sociedade (ou vice-versa), de sorte
Qi.ando essa extensão não se justifica com base em alguma relação
que a própria sociedade (ou o sócio) possa ser considerada parte do ne-
de pertinência entre o seu alvo (i.e. a sociedade, que sofrerá as conse-
gócio de que surge a obrigação estendida, então, sim, estar-se-á dian-
quências da cláusula prevista no contrato do sócio) e a fonte da rela-
te de um verdadeiro problema de desconsideração atributiva. A questão
ção estendida (i.e. o contrato do sócio), o que se tem é uma verdadeira
se coloca no plano da interpretação da norma (rectius: do conjunto de
situação em que novas relações são impostas à sociedade (ou, no caso
normas) em que está disciplinada a imputação de declarações de vonta-
inverso, ao sócio) sem que se possa contar, para tanto, com um funda-
de, incluindo o aspecto sistemático da interpretação que exige, no caso
mento legal anterior já configurado. Trata-se, pois, da típica situação de
de se atribuir relevância a um critério de imputação fundado na típica
desconsideração para imposição de responsabilidade por dívida alheia,
em que os fatos que levam à desconsideração (abuso da personalidade
jurídica) precisam servir, eles mesmos, de fundamento bastante para a 265 Cf para uma distinção adequada desses casos Pe[{egrinelli, A obrigação de não
concorrência, pp. 303-304,
150 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CONTI -151

proximidade societária, uma ponderação entre a teleologia das normas (com a "intenção real" do art.112 do CC), quanto da sua pertinência ao
que levam a imputar declarações de vontade com base nesse critério, de destinatário da declaração, que precisa poder compreendê-la como uma
um lado, e o conteúdo teleológico do princípio da separação, de outro. declaração (estando a intenção "consubstanciada'' da declaração, como
Como é óbvio, o problema jamais poderia se restringir ao plano da exige o mesmo dispositivo).Além disso, um ato de comunicação tem di-
interpretação da norma contratual que se deseja estender2 66 , pois a inter- ferentes camadas de profundidade, e a imputação pode se referir a uma
pretação de uma norma sempre pressupõe a sua vigência, não podendo ou outra: além do fato de ser, externamente, um ato de comunicação, ele
fundamentá-la. Em outras palavras, a interpretação é questão que visa a tem, internamente, um conteúdo concreto que precisa ser imputado269 .
estabelecer o conteúdo de uma norma que se sabe vigente, mas para apli- Todos esses fatores de complexidade (dupla perspectiva do declaran- •
car uma norma contratual a um terceiro que não celebrou diretamente te e do destinatário, duplo aspecto externo e interno do ato de comuni-
o contrato de que ela surgiu é preciso determinar, antes de mais nada, cação) são organizados por nossa ordem jurídica em regras de imputação
se se pode afirmar que tal norma está vigente para esse terceiro (pois as que se estruturam segundo um esquema sofisticado de imputação "pro-
normas contratuais, de regra, só vigem para as partes que celebraram o visória" eventualmente passível d~ impugnação. Sempre que alguém li-
contrato, segundo o conhecido "princípio da relatividade dos efeitos do vremente (com o que os alemães denominam "Handlungsbewuístsein")
contrato"). Para responder a essa questão, não adianta examinar o con- exterioriza um comportan:ient;;:,que socialmente se pode compreender
teúdo da norma contratual, é preciso examinar as circunstâncias em que como declaração negocial, ocorr<:; a imputação provisória, a qual, porém,
ela foi contraída à luz da regra legal que determina como se contraem no caso de faltar uma relação 4e pertinência entre a vontade do decla-
obrigações contratuais. rante e o conteúdo da declaração (camada mais profunda do ato comu-
nicativo), pode ser impugnada (em um prazo decadencial) segundo as
É verdade que não existe uma única regra legal escrita que deter-
regras da anulabilidade por vícios de vontade. Essas regras são comple-
mine com precisão os critérios de imputação das declarações de vonta-
mentadas pelas normas que tratam da representação, que permitem im-
de (como existe, por exemplo, o art.186 do CC para estabelecer a culpa
putar a uma pessoa as declarações de vontade de outra.
e o dolo como critérios gerais de imputação dos atos ilícitos). Existe, no
entanto, um complexo de regras escritas e não escritas que tratam do Nesse contexto, pode-se questionar se, na ausência de poderes de
assunto 267 e estabelecem, para a imputação de declarações de vontade, representação, a típica proximidade societária pode servir de critério
uma disciplina muito mais complexa do que a que vale para outras es- para imputar à sociedade uma declaração de vontade do sócio, ou vice-
pécies de atos. Isso porque as declarações de vontade são atos de comu- -versa. Essa questão se torna ainda mais complexa quando se considera
nicação que, por força de uma norma de competência (não escrita), são que ela deve abranger as diversas facetas da imputação de declaração de
reconhecidos pela ordem jurídica como aptos a estabelecer as normas 1 vontade - distinguindo-se a imputação do ato de declaração enquanto tal
estipuladas em seu conteúdo268 . Sua relevância, portanto, depende tanto (possivelmente sujeito a anuJ.ação) da imputação do seu conteúdo (para
da pertinência da declaração ao declarante, que precisa querer comunicar a imposição definitiva do regramento que ele prevê) - e que toda essa

Como, no entanto, sugerem alguns autores, if. MüKo-GmbHG/Merkt, § 13, Rn. 359;
266
Baumbach/Hueck/Fastrich, GmbHG, § 13, Rn. 14; Gehrlein/Born/Simon/Mau/, 1 269 Cf Lüdeking, Die zugerechnete Willenserklãrung, p. 69 ("no caso da declaração
GmbHG, § 13, Rn. 35. de vontade é preciso distinguir entre a imputação do sinal da declaração e a
267 Cf Lüdeking, Die zugerechnete Willenserklãrung, p. 64. imputação do conteúdo da declaração"; no original: "lm Fali der \(Villenserklãrung
muss zwischen der Zurechnung des Erklãrungszeichens und derjenigen des
Cf Canaris, AcP 184 (1984), pp. 218-219; Flume, AT li, § 1, 2, p. 2; MüKo-BGB/fmst,
268
Vor § 241, Rn. 36. 1 Erklãrungsinhalts unterschieden werden").

1
152 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CüNTI -153

problemática deve ser encarada segundo a lógica própria de um ato de D) EXTENSÃO DA CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
comunicação, de modo que não basta a configuração dos critérios gerais Para ilustrar essa conclusão e aprofundar nas razões que a ela le-
pará. a imputação de uma ação como conduta indireta de quem toma a varam, convém tratar mais detidamente de um caso específico em que
decisão que está em sua origem, sendo necessário, além disso, que o des-
f
tinatário da declaração (sob sua perspectiva) possa razoavelmente assu- ! se tende a pensar na extensão de uma relação jurídica contratual com

mir que a declaração é um ato de comunicação daquele a quem ela está


1 base na imputação da declaração de vontade com que ela foi contraída:
l
~
o caso da extensão de uma cláusula compromissária. Aqui fica particu-
sendo imputada. 2l larmente clara a distinção entre a definição do conteúdo de uma rela-
De modo geral, as considerações que acima foram tidas por sufi- ção jurídica, de um lado, e a determinação de sua vigência em face de
cientes para justificar a imputação de atos dos sócios à sociedade (e vice-
-versa) mostram-se pouco convincentes quando utilizadas para sustentar
1
l
determinada pessoa, de outro.
Como se sabe, o art. 3° da Lei nº 9.307/96 estatui que é possível a
a possibilidade de imputação de declarações de vontade. O fato de um 1 alguém submeter-se a jurisdição arbitral mediante uma convenção de ar-
sócio controlador tomar a decisão a respeito da emissão de uma decla- bitragem, de que a cláusula compromissária é espécie. O art. 4° da mes-
ração de vontade pela sociedade não muda o fato de que a declaração 1 ma lei, em seu caput, define..-a cláusula compromissária como sendo "a
é emitida como ato de comunicação pessoal da sociedade, não podendo convenção através da qual as; partes em um contrato comprometem-se
ser razoavelmente tomado por terceiros como um ato de comunicação a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamen-
de quem decide se ele é tomado ou não (eventuais confusões e faltas de cla- 1 te a tal contrato", e, no seu ~ 1°, estabelece, como requisito de validade
reza que levem terceiros a imaginar que é o sócio quem está se pronun- para esse tipo de cláusula, a forma escrita. Interpretando esses disposi-
ciando, quando, na verdade, quem o faz é a sociedade, dizem respeito a tivos, a doutrina brasileira, em consonância com a doutrina estrangei-
outro problema, e se solucionam segundo as regras de responsabilidade ra270 , entende que a manifestação expressa (e escrita) de vontade pelas
pela aparência), de modo que o controle não se apresenta (nem mesmo partes interessadas é o presduposto fundamental da jurisdição arbitral271 .
sob a forma de uma influência direta na emissão de determinada decla- Esse princípio foi enfaticamente reconhecido pelo STF quando do jul-
ração) como um critério adequado para imputar declarações de vontade gamento da Homologação de Sentença Estrangeira nº 5.206, constan-
da sociedade aos sócios. E o fato de um sócio se beneficiar indiretamen- do no conhecido voto do relator que:
te dos direitos da sociedade está ainda mais longe de justificar qualquer "[... ] a sustentação da constitucionalidade da arbitragem repousa
pertinência entre a sociedade e as declarações emitidas pelo sócio, pois, essencialmente na voluntariedade do acordo bilateral mediante
diferentemente da imputação de condutas no âmbito do contrato de se- o qual as partes de determinada controvérsia, embora podendo
guro, por exemplo, a imputação de declarações de vontade nada tem a submetê-la à decisão judicial, optam por entregar a um terceiro,
ver com o beneficiário de suas consequências. particular, a sotução da lide, desde que esta, girando em torno de
Em regra, portanto, não parece possível imputar uma declaração de direitos privados disponíveis, pudesse igualmente ser composta por
transação. A marca de consensualidade da instituição mediante
vontade de um sócio à sociedade, ou vice-versa, simplesmente com base
na típica proximidade societária, de modo que os problemas de descon-
Cf por todos Müller/Keilmann, SchiedsVZ 2007, p. 113.
sideração atri~mtiva sequer chegam a se configurar nesse contexto. Cf Tepedino, Consensualismo na arbitragem, p. 256; Scalerscky, RBA 46 (2015), p. 32;
Munhoz, Arbitragem e grupos de sociedades, p. 154; Beneduzi, RP 290 (2019), pp.
473-492, parte 1 (acesso RTOnline).
154 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO
ANDRÉ NUNES CoNTI -155

compromisso do juízo arbitral é, assim, dado essencial à afirmação de jurisdição do árbitro - ou do juiz estatal - para julgar a demanda
de sua legitimidade perante a Constituição."272 . ajuizada também ou apenas contra ele (questão processual)"276 .

Além disso, embora os efeitos principais da cláusula compromis- Caso haja uma decisão aplicai1do a desconsideração da personali-
sória sejam processuais, no sentido de sujeitar as partes à jurisdição ar- dade jurídica, com base no art. 50 do CC, para responsabilizar um sócio
.bitral e de definir o regulamento que se aplicará ao procedimento a ser pelas dívidas da sociedade em face de um credor, e caso a sociedade es-
instaurado, ela também tem efeitos importantes de direito material (a teja se defendendo contra a cobrança da dívida perante esse credor em
começar pela obrigação de adiantar parte das custas do procedimento)273 , um procedimento arbitral, nada impede que o sócio, desejando, solicite
e se rege, no que diz respeito ao modo como é estipulada, pelas regras intervir no procedimento como assistente litisconsorcial da sociedade,·
do direito material274 . na qualidade de terceiro não signatário interessado, alegando o interes-
se que, por causa da decisão de desconsideração da personalidade jurídi-
Assim sendo, coloca-se frequentemente, na prática, a questão desa-
ca (proferida em outro processo), ele tem no deslinde do procedimento
ber em que medida os efeitos de uma cláusula compromissória podem
arbitral em questão. Tal sócio, no entanto,jamais pode ser forçado a par-
ser estendidos a uma parte que não celebrou diretamente o contrato em
ticipar do processo como litisconsorte passivo, pois a imposição de res-
que ela consta. Normalmente, a doutrina se limita a discutir o assunto
ponsabilidade acessória pelo Vâlor de certas dívidas (por via do art. 50
levantando a possibilidade de que, tendo uma sociedade celebrado um
do CC) não nada tem a ver co~ ,a sujeição à jurisdição arbitral.
contrato, a extensão das obrigações nele previstas por via da desconside-
ração para a imposição de responsabilidade por dívida alheia (pelo art. Uma outra possibilidade dy extensão da cláusula arbitral ao sócio da
50 do CC) acarrete reflexamente, "de tabela", uma extensão simultânea sociedade que a assinou, contudo, poderia ser buscada no âmbito da
da cláusula compromissória prevista no contrato. Essa possibilidade é desconsideração atributiva. Não se trataria, então, de estender a jurisdi-
quase unanimemente rejeitada pelos autores nacionais e estrangeiros275 ção arbitral como reflexo da exte.nsão das obrigações de um contrato por
(com razão), pois, como é óbvio: via do art. 50 do CC, mas de imputar ao sócio, com base na típica pro-
ximidade societária, a própria ~eclaração de vontade que subjaz à cláu-
''A circunstância de que um terceiro, à luz do direito material
sula arbitral, de modo que ele possa ser considerado verdadeira parte da
aplicável, pode ser responsabilizado com fundamento na
desconsideração (questão de mérito) não se confunde com a convenção de arbitragem.
investigação, que lhe é logicamente antecedente, sobre a existência A imputação da declaração de vontade subjacente à cláusula com-
promissória, no entanto, cumpre aqui observar, não se confunde com a
conhecida "teoria dos grupos de sociedades" que, a despeito do nome
genérico, designa nesse contexto, especificamente, a solução desenvol-
272 STF, SE 5.206, Pleno, rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.12.2001, DJ 30.04.2004, voto vida no caso Dow Chemical,para estender a jurisdição de um tribunal
do relator, p. 26.
arbitral, instaurado por quatro sociedades francesas, a uma sociedade
273 Cf Haas/Oberhammer, FS K. Schmidt, 20091 p. 509.
274 Cj MüKo-ZPO/Münch, § 10291 Rn. 14. americana que só com uma das requerentes havia assinado uma cláusula
275 Cf _Didier )r./Aragão, Desconsideração da personalidade jurídica no processo compromissória277 . Embora essa decisão tenha chegado a ser exaustiva-
arbitral, pp. 266-267; Marques/Almeida/Mas, Os grupos de empresas, pp. 682-683.
Cf também Wald, A arbitragem, os grupos societários e os conjuntos de contratos
conexos, p.131. Na doutrina estrangeira, cf. pela rejeiçãoMüller/Keilmann, SchiedsVZ 276 Beneduzi, RP 290 (2019), pp. 473-492, parte 2 (acesso RTOnline).
20~7, p. 11~; Musielak/Voit/Voit, ZPO, § 1029, Rn. 8; )ürschik, Ausdehnung der 277 Cf Decisão ICC 4131/1982,JDI 110 (1983), pp. 899 ss.
Sch1edsvereinbarung, p. 235; pela possibilidade Cross, SchiedsVZ 2006 1 p. 195.
156 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO ANDRÉ NUNES CONTI -157

mente discutida ao redor do mundo, ela era relativamente simples, e se Assim, deixando em aberto a questão relativa a se a teoria dos gru-
limitava a afirmar que, tendo participado direta e ativamente das nego- pos de sociedades se coaduna com a exigência de forma escrita para a
ciações com todas as requerentes, a sociedade americana requerida havia cláusula arbitral (art. 4°, § 1°, da Lei nº 9.307/96) 283 , tem-se que essa
se comportado como parte em relação a todas as requerentes, inclusive teoria não se confunde com a desconsideração atributiva, que propõe es-
referindo-se ao contrato delas como o "nosso" contrato. Em razão desse tender a jurisdição arbitral decorrente de uma cláusula compromissória
seu comportamento, ela havia se vinculado pessoalmente à cláusula ar- a um terceiro mediante a imputação da declaração que subjaz à cláusula
bitral, ainda que não figurasse expressamente como parte no contrato. apenas por causa da típica proximidade societária, e não por causa de uma
A "teoria dos grupos de sociedade", portanto, na forma em que efe- participação direta do terceiro nas negociações ao fim das quais a cláu.:.
tivamente consagrada na decisão do caso Dow Chemical, bem como sula foi assinada. A desconsideração atributiva, em todo caso, encontra
na forma em que efetivamente aplicada em decisões subsequentes da aqui os obstáculos que acima se apontaram quando se tratou da imputa-
ICC278 e mesmo em decisões do judiciário brasileiro279 , afirma singela e ção de declarações de vontade em geral, pois as relações que compõem a
simplesmente que, havendo um grupo de sociedades, a intensa e dire- típica proximidade societária (i.e. o controle e a titularidade indireta do
ta participação das sociedades do grupo nas negociações que culminam patrimônio e dos lucros) não,, são
__ _
aptas a fundamentar uma verdadeira
,_,._..,,,

em um contrato contendo cláusula arbitral pode fazer com que as so- pertinência, ao sócio, da ~ecfar,ação de vontade emitida pela sociedade,
ciedades do grupo sejam tratadas como verdadeiras partes do contrato nem uma verdadeira pertinência, à sociedade, de uma declaração emi-
(e, pois, da cláusula arbitral), ainda que elas não figurem expressamente tida por um sócio.
como tais no instrumento. É dizer, trata-se do reconhecimento de uma Com efeito, quando uma ·sociedade emite uma declaração de vonta-
declaração tácita por comportamento concludente, ou, no máximo, da de manifestando sua intenção de submeter-se à jurisdição arbitral, a im-
outorga de poderes de representação por tolerância280 - sempre haven- putação dessa declaração a um sócio controlador não parece viável, nem
do, pois, alguma forma de consentimento pessoal e direto, embora im- mesmo diante de um ato concreto do sócio para determinar a emissão
plícito281 . Não se trata, porém, de uma teoria para imputar aos sócios a da declaração pela sociedade, porque, em todo caso, o que está em jogo
celebração de uma cl;íusula arbitral pela sociedade simplesmente com na definição de quem é o declarante (i.e. na imputação da declaração)
base na pertença a um mesmo grupo econômico282 .
économique unique dont le tribunal arbitral doittenir compte lorsqu'il statue sur sa
278 Cf um resumo das principais decisões em Melo, RArb 36 (2013), pp. 255-278, parte propre compétence, en application de l'article 13 (version de 1955) ou de l'article 8
4 (acesso RTOnline). (version de 1975) du Rêglement de la C.C.I." (Decisão ICC 4131/1982, JDI 110 (1983),
279 Cf o caso Trelleborg, TJSP, AC 267.450-4/6.00, 7ª Câm. Dir. Priv., rei. Des. p. 904). No entanto, até mesmo no comentário publicado junto com a decisão
Constança Gonzaga, v.u., j. 24.05.2006 (constava na convenção de arbitragem o podia ler-se: "li ne découle pas de leur décision, ce qui serait excessif, qu'à partir
nome, mas não a assinatura da Trelleborg lndustri AB, que participara ativamente du moment ou la personne moral e ou physique qui contrôle un groupe, voire un
das negociações). membre de celui-ci, signe ,une convention d'arbitrage, l'ensemble des sociétés
280 . Cf a respeitoAdamek/Conti, Teoria da aparência, pp. 655 ss. composant ce groupe se trouvent liées par la convention d'arbitrage. Cette signature
281 Cf Didier Jr./Aragão, Desconsideração da personalidade jurídica no processo constitue seulement un commencement de preuve quine se trouvera confirmé que
arbitral, p. 265; Scalerscky, RBA 46 (2015), p. 27; Beneduzi, RP 290 (2019), pp. 473- par la participation effective de de ces sociétés aux opérations contractuelles. Seules
492, nt. 24 (acesso RTOnlinec); Tepedino, Consensual ismo na arbitragem, p. 273. les sociétés du groupe qui ont joué une un rôle dans la négociation, la conclusion
282 Muitos passaram a interpretar com essa amplitude a teoria com base em uma ou la résiliation du contrat, engageait de façon virtuelle l'entité économique qui
parte da decisão que, lida fora de contexto, poderia fazer pensar em uma extensão constitue le groupe" (ibid., p. 906).
automática da cláusula compromissária com base na pertença a um grupo 283 Pela compatibilidade da teoria dos grupos de sociedades com essa exigência,
econômico, cf. "Considérant qu'un groupe de sociétés possêde, en dépit de la if. Tepedino, Consensualismo na arbitragem, p. 271; pela incompatibilidade, if.
personnalité juridique distincte appartenant à chacune de celle-ci, une réalité Carmona, Arbitragem e prncesso, p. 83.
158 - DESCONSIDERAÇÃO ATRIBUTIVA NO DIREITO PRIVADO
ANDRÉ NuNES CoNT1 -159

não é a fonte da decisão de emitir a declaração, mas sua efetiva emis-


Na sequência, serão abordados os casos de: (i) aplicação das regras
são pessoal: afora os casos de falta de clareza na distinção das esferas do
de impedimento de voto em caso de conflito formal de interesses, pre-
sócio e da sociedade (que se resolvem pela teoria da aparência ou pela
vistas nos arts. 115, § 1º, 1ª parte, da LSA e art. 43 da LRE, median-
outorga de poderes de representação por tolerância, e não pela descon-
te a imputação dos interesses de um terceiro ao titular de um direito de
sideração da personalidade jurídica) os terceiros que contratam com a
voto, para configurar na pessoa deste o conflito formal de interesses que
sociedade nunca podem compreender uma declaração emitida por esta
o impede de votar; (ii) a aplicação das regras sobre invalidade em caso de
como uma declaração emitida por outrem. E quando um sócio declara
conflito de interesses entre representante e representado, especialmente
vincular-se a uma cláusula arbitral, não se vislumbra nada na sua relação
o art. 117 do CC, mediante a imputação da qualidade de representan-
com a sociedade que permita justificar a imputação da declaração a ela.
te à parte do negócio que se trata de invalidar; (iii) a aplicação das re-
Os casos em que uma extensão da cláusula compromissária a ter- gras legais de proibição da concorrência, principalmente os arts. 1.001
ceiros se afigura especialmente necessária, sob pena de se configurar uma e 1.147 do CC, mediante a imp-µtação da condição de sócio ou de alie-
grande injustiça, portanto, só podem ter solução se se entender possível nante do estabelecimento comercial a um terceiro atingido pela obriga-
coadunar o requisito de forma escrita à adesão tácita de membros de um ção de não concorrer; e (iv ),}·A.aplicação do art. 4 5, § § 1° e 2°, da LRE,
grupo econômico a uma convenção de arbitragem em cujas negociações que prevê uma votação pS)r rr;i.~oria simples, mediante a imputação dos
eles participaram intensamente (pela teoria dos grupos de sociedade, na interesses de um credor a outro, para configurar a convergência de in-
forma restrita em que realmente consagrada pela jurisprudência), ou se teresses que priva um credor da autonomia necessária para a contagem
for possível justificar, no caso concreto, a aplicação da desconsideração individual do seu voto por cabeça.
da personalidade jurídica para imposição de responsabilidade por dívida
Como se vê, além dos casos em que se trata de imputar propria-
alheia, não para estender a jurisdição arbitral como um efeito colateral
mente um interesse, seja para configurar um conflito (art. 115, § 1º, da
da extensão de outras obrigações (o que, como se viu, nunca é possível),
LSA e art. 43 da LRE), seja para configurar uma convergência de inte-
mas para sancionar de forma específica um eventual abuso da personali-
resses (art. 45, §§ 1° e 2°, daLRE) que a lei considera relevante, serão
dade jurídica de alguém que esteja procurando frustrar a jurisdição arbi-
também tratados dois casos em que não são propriamente interesses o
tral querida pelas partes. Por via da desconsideração atributiva, em todo
objeto de imputação. Cuida-se dos casos de conflitos de interesses entre
caso, essa extensão é inviável.
representante e representado (art.117 do CC), e de conflitos de interes-
ses que justificam a imposição de obrigações legais de não concorrência
5. IMPUTAÇÃO DE INTERESSES (arts. 1.001 e 1.147 do CC). Estes casos, em que não se trata de impu-
Convém agora explorar um quinto grupo de casos em que se trata tar interesses, no entanto, também serão abordados aqui porque a sua
de imputar elementos relacionados a comportamento, mas que não são solução obedece a uma lógica semelhante à dos demais.
nem propriamente atos, nem simples pressupostos de atos (como oco- Não se trata, neles, de verificar se há uma situação de conflito de
nhecimento). Cuida-se da imputação de interesses, compreendidos como interesses na pessoa de alguém, mas de constatar, na pessoa de quem já
fins tendencialmente perseguidos por alguém, isto é, como fins capazes se sabe estar em conflito, as condições que tornam perigoso o coriflito de in-
de estabelecer uma tendência a atuar de certa forma. teresses. Em outras palavras, trata-se de, com a imputação da posição de
representante, de sócio ou de alienante do estabelecimento, verificar se

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